EDIÇÃO ESPECIAL
CARTA AO LEITOR
EXPEDIENTE Universidade Santa Cecília Faculdade de Artes e Comunicação - FaAC Diretor: Humberto Challoub; Coordenador: Robson Bastos; Orientador: Marcus Vinicius Batista; Diagramação: Diego Corumba Fotos: Daniela Silva / Letícia Machado / Arquivo Pessoal / Pedro Ernesto Guerra Azevedo Repórteres: Daniela Silva / Letícia Machado; Colagem: Daniela Silva; Capa e Ilustrações: Erika Hembik SANTOS / SP
Dentre as várias funções do jornalismo, uma delas é dar voz a quem precisa. Não é possível achar “comum” o fato de que no Brasil, segundo o último levantamento do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), mais de 54% da população é negra, e essa parte só é lembrada em matérias ligadas a criminalidade ou discussões sobre cotas raciais. Essa parcela da população movimenta o país, faz história e precisa ser vista. É isso que desejamos. Ao criarmos esse projeto, nós refletimos e chegamos à conclusão de que a formação da identidade, descoberta da individualidade e a importância da confiança passam por tudo o que está ao nosso redor e nos influencia. As histórias que encontrarão aqui serão reais, algo com que você se identifique. A mulher negra não é apenas uma
estatística, ela é um sinônimo de força e a cara do nosso país. O nome desta publicação é um tributo à grande guerreira Dandara dos Palmares. Além de esposa de Zumbi e mãe de três filhos, ela lutou com armas pela libertação dos negros no Brasil e liderava mulheres e homens. Uma mulher que não se encaixava nos padrões que até hoje perpetuam em nossa sociedade. Uma homenagem mais do que justa. Nesta edição, nossos principais assuntos serão a representação da mulher negra nos veículos de comunicação, a luta por direitos iguais e mostrar a cultura perpetuada por essas mulheres, seja no cinema, no grafite ou na música. Além de trazer o divertimento, queremos fazer refletir sobre questões de diversidade. Boa leitura.
A revista Dandara é um projeto experimental para Trabalho de Conclusão de Curso dos alunos de Comunicação Social / Jornalismo da Universidade Santa Cecília, em Santos/SP. Esta edição é um volume piloto, publicado em novembro de 2016, podendo sofrer alterações posteriormente. Dúvidas, sugestões, reclamações ou elogios, favor encaminhar para o e-mail de nossa publicação, revistadandara01@gmail.com.
DANDARA A Guerreira de Palmares Pág. 6
EMPRESAS Pág. 30
O perigo dorme ao lado Pág. 8
ROTEIRO Pág. 32
Me Representam Pág. 14 FEMINISMO Pág. 26 Ideologia na rima Pág. 10
Ruth de Souza: Vida dedicada às artes Pág. 17 Futebol Feminino continua no escanteio Pág. 20 Não basta torcer, Pág. 22 tem de ir aos estádios
Uma boneca igual a mim Pág. 29
A rua é delas! Pág. 34
Protagonista sim! Pág. 41
ENSAIO Pág. 24
ENTREVISTA Valéria Pág. 38
INDICAÇÕES Pág. 44
Dandara, a guerreira de Palmares No ano de 1680, as fofocas corriam na alta sociedade da colônia portuguesa. Mas nada de competições entre os donos de engenhos sobre quem tem os melhores escravos. O que corria de boca em boca era a preocupação com o quilombo formado no alto da Serra da Barriga e com a força econômica perdida pela capitania. Cada vez mais, o quilombo crescia e ouvia-se muito um nome: Zumbi, líder dessa revolução. Porém, o que mais me chamava atenção na história era a mulher que usava armas para lutar contra homens enfurecidos. Ela carregava a marca de ser negra e enfrentar a escravatura. Isto era inaceitável. Uma negra enfrentando o sistema? Quem seria esta “desencaminhada”? Seu nome era Dandara. As referências de mulheres fortes eram europeias, como Joana D’arc. Havia um exemplo aqui mesmo, no Brasil, e eu não podia deixar passar a chance. Após muitas tentativas de contato, estando quase por desistir, recebi um recado me dizendo que Dandara esperavame no Quilombo dos Palmares. Estava ansioso para conhecêla, mas também com medo de encontrar os temidos capitães do mato e até os foragidos que, com razão, estranhariam a presença de um homem branco e português em casa. Quando cheguei, senti olhares curiosos, mas me fixei em uma mulher sentada que amamentava um bebê e cantarolava uma canção em dialetos africanos. Soube que era ela, foi a única que
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casa e trabalha na plantação. Todo mundo faz algo. Plantamos milho, feijão, banana, mandioca e cana-de-açúcar. Colhemos frutos e caçamos. Além dos artesãos, há ferreiros que fazem armas e ferramentas. me olhou fixamente e sorriu. Dandara: Olá, eu sou Dandara. Como foste a caminhada até aqui? Jornalista: Estou feliz em vêla. Foi cansativa, é uma área montanhosa de uma floresta densa, mas sem encontros indesejados. D. Imagine correr nessas condições, sem poder parar por ter pessoas em seu rastro. Correria como nunca antes na vida, mas não indico como atividade. Vem, vamos entrar. J. Estava ansioso para te encontrar. D. Eu também. Sairá em algum jornal? J. Sairá no periódico que escrevo, com o pseudônimo Rúbem Vasconcelos. O jornal só circula em Portugal. Aqui é proibido. Não tem medo de provocar os donos de engenhos com essa entrevista? D. Medo? Medo tenho desde que fui afastada da minha família e forçada a trabalhar para enriquecê-los. Essa é nossa vida, mas é o que nos mantém aqui, juntos. Maior que o medo é a vontade de podermos viver como bem quisermos. J. Houve vários ataques ao Quilombo. D. Sim, tiveram e não vão parar.
Vieram com vários homens, mas somos muitos. O que se vê aqui é só uma parte. O Quilombo é formado por nove comunidades, esta que estamos se chama Cerca Real do Macaco, a maior de todas. Eu não sei ao certo em quanto somos, mas estimo cerca de 20 mil pessoas aqui. J. É cansativo lutar e estar alerta todo dia? D. Sim, mas cuidar de três crianças dá muito mais trabalho. Zumbi, meu marido, ainda quer mais, acredita? Ele pensa que é fácil. Mas sim, é cansativo estar em alerta o tempo todo, claro. Mas aqui acreditamos que é pior trabalhar nas lavouras sem poder descansar, sem ter o que comer ou água para beber. J. Como conseguiram superar a todas as investidas? D. Somos bons em estratégias. Você passou por vários portões antes de chegar. Nossas linhas de defesa estendem-se por mais de
cinco quilômetros, com guardas a cada dois metros. J. Acha que as investidas podem diminuir agora que os holandeses foram expulsos e levaram as técnicas do engenho do açúcar? D. O que a invasão dos holandeses trouxe foi distração, já que os brancos estavam preocupados demais brigando entre si e muitos de nós conseguimos fugir. Eles são iguais. Se agora os portugueses estão passando por dificuldades, isto nos preocupa mais, já que aí sim vão querer nos recuperar. J. Você lutou ao lado do antigo líder Ganga-Zumba, mas se posicionou contra o acordo assinado por ele e que foi responsável por sua morte. Como isso ocorreu? O acordo do governante da capitania, Pedro de Almeida, não estabeleceria a paz? D. Acredita mesmo nisso? Você é muito ingênuo, os brancos não fazem acordos com pretos. O
que eles querem é nos separar. Logo mais estaríamos todos presos em senzalas. O privilégio era para poucos. O que adianta a liberdade dos que aqui estão, se ainda seríamos submetidos às decisões do Governo quando fossemos para Cucaú e outros que chegassem ao quilombo seriam devolvidos? Ele foi um bom líder, manteve tudo junto e organizado, mas essa decisão não era a melhor. A morte de GangaZumba foi necessária. J. Ouvi falar que você também luta, é verdade? D. Faço exatamente o que precisa ser feito. É preciso aprender a se virar, ainda mais se for mulher. Sou uma fugitiva e, se for pega, imagina o que vai acontecer. Faço tudo por meus filhos, marido e por todos que lutam comigo. J. O que Zumbi acha disso? D. Ele não tem de achar nada não, mas se quer saber se ele se opôs, não. Eu já lutava antes dele ser meu marido. Por mim, a gente tomava Recife, vencemos várias batalhas e poderíamos fazer isso, mas ele não quis. Achou demais. Pode isso?
J. Se um dia conseguirem entrar no Quilombo, o que faria? D. É uma ótima pergunta, moço, com uma resposta simples. Eu apenas lutaria até o fim. Tentaria manter meus pequenos Motumbo, Harmódio e Aristogíton protegidos. J. Posso perguntar uma última coisa? D. Pode, não creio que nos veremos novamente. J. Por que aceitou falar comigo? D. Mandei vigiá-lo, soube coisas de você e, depois de tanto insistir, pensei que poderia confiar. Perdão, mas eu não podia simplesmente aceitar de primeira. Estamos em posições diferentes. Nunca posso dar um passo em falso. J. Tenho certeza disso. Obrigado, já estava pensando que você era uma lenda. D. Espero mesmo que meu nome se espalhe como as lendas.
Republico esta matéria em homenagem à grande mulher que conheci, Dandara, e que foi morta ontem, 6 de fevereiro de 1694, após o ataque do exército comandado pelo bandeirante J. Mas além de lutar você trabalha Domingos Jorge Velho. Seu aqui? nome, Dandara, ainda irá se D. Claro, a gente luta, cuida da perpetuar.
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O perigo dorme ao lado A maior parte dos casos registrados em 2015 é relativo a violência física, totalizando 50,15%
“No começo eram palavras doces, planos para o futuro e demonstrações de carinho, mas, com o passar do tempo, as palavras doces se tornaram xingamentos e o carinho se tornou agressões constantes”. Essa frase é da Ana (nome fictício), de 32 anos de idade, que com apenas 17 anos resolveu deixar a família para morar com o namorado. O comportamento agressivo do marido foi se revelando aos poucos. Após a chegada do primeiro filho, perda do emprego e o uso excessivo de bebida alcoólica, ela viu a personalidade do companheiro mudar completamente. As agressões começaram de forma psicológica. “Ele foi minando a minha
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autoestima de uma forma que eu passei a me sentir totalmente dependente dele”. Depois do primeiro sinal, não demorou muito para que a primeira agressão física acontecesse. Após dias fora de casa, ele chegou embriagado e tentou ter relações sexuais com ela, ao se negar ele a queimou com ferro de passar roupa. Foram 15 anos de ameaças, agressões psicológicas e físicas até que Ana colocasse um ponto final nessa união violenta. “Quando vi meus filhos olhando para tudo que estava acontecendo não tive como não começar a reagir. Eles me deram força. Não foi fácil, não está sendo fácil”. Os violentos golpes que sofreu durante esses anos
PASSEI A ME SENTIR TOTALMENTE DEPENDENTE DELE Ana, vítima de violência
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deixaram mais do que marcas pelo corpo, a marcou na alma. “Foram os piores dias da minha vida!”, desabafa, aos prantos. Ana faz parte do grupo de mulheres que mesmo após dez anos da sanção da Lei Maria da Penha, ainda se sente menores diante de um homem agressivo e violento. Os casos de violência contra a mulher no país cresceram 44,74%, em 2015, se comparado ao ano anterior. Dados da Central de Atendimento à Mulher Ligue 180 indicam que no ano passado foram registradas 76.651 denúncias em todo o Brasil, ante 52.957, em 2014. Isso representa um caso de violência a cada sete minutos em todo o país, no ano de 2015. As ocorrências específicas de violência sexual --estupro, assédio e exploração-- saltaram 129%, de 1.517 para 3.478 relatos. No país, foram 9,5 estupros por dia.
IDEOLOGIA NA RIMA Elas tombam! Rappers conquistam espaço no cenário musical ao cantar a realidade e as causas das mulheres
A voz da música negra em Mayara Magalhães A cantora cubatense Mayara Magalhães, 27 anos, leva na voz a música negra. Ouvi-la é passear pelo rap, soul, samba, funk e todas as demais influências africanas nas canções. A presença marcante, livre e que fala o que pensa no palco não deixa transparecer a mulher tímida que existe por trás da voz. Mayara se tornou cantora profissional há 13 anos. O rap entrou na vida dela por meio dos Racionais MC’s, que lhe trouxeram uma nova direção na vida pessoal e na carreira. O ritmo foi o despertar para a realidade difícil na periferia. “Eu nasci nos anos 90, foi uma época muito difícil e violenta na periferia e via coisas e entendia o que as letras falavam”. A jovem sempre viveu em um ambiente musical por ter pais e avô músicos, que se apresentavam na igreja. Quando descobriu o rap, quis desvendar o inteiro universo musical que poderia cantar. “Conforme ia crescendo e ganhando minha liberdade, o rap foi me auxiliando, sendo meu amigo, me ajudou a militar sobre o que eu acreditava” A militância está nas canções que falam sobre a auto-afirmação e também trazem outros temas que buscam retratar situações com as quais as pessoas possam se identificar. Por isso, Mayara faz as letras mais íntimas possíveis a partir de experiências pessoais. “O jeito que eu escrevo é muito pessoal. Traduz a vontade de me aproximar das pessoas. Por isso, minhas músicas são menores e reflexivas”. Apesar dos 13 anos de carreira, Mayara nunca sentiu necessidade de fazer um disco. A preparação
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O RAP ME DEU UMA DIREÇÃO E PERCEPÇÃO DE COMO ERA A VIDA Mayara Magalhães, rapper
para isso aconteceu aos poucos, por meio de experiências como a passagem pelo programa Ídolos, em 2009, que - para ela - foi um período de grande aprendizado. O álbum reunirá todos os estilos derivados da música negra, que são as raízes do trabalho que desenvolve, em um CD que deverá sair ainda este ano. “Exploro de tudo um pouco, o disco vai ter mais da cultura negra, tem algumas coisas tribais africanas. Estou gostando do resultado.” A rapper chegou a ser preterida por produtores de eventos que, por diversas vezes, a deixavam se apresentar por um tempo menor se comparado aos dos homens ou nem chegava a subir no palco. Para ela, a situação de machismo existe, mas o espaço para as rappers ampliou-se. Ela crê numa tendência. Embora a realidade da vida de músico não seja fácil e a ideia de desistir já tenha sido uma opção, ela afirma não mais conseguir viver sem o trabalho que realiza. Mayara interpreta Elza Soares no SESC-Santos
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O SENTIDO DE ESTAR NO RAP É PARA FORTALECER AS PESSOAS Priscilla Feniks, rapper
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Priscilla Feniks luta por questões sociais por meio do rap
Junto e misturado, o rap envolvente de Priscilla Feniks Priscilla Feniks carrega o nome da ave mitológica. A escolha reflete a força de todos os anos de batalha na vida pessoal e profissional. Cheia de atitude e voz potente, ela deixou de apenas fazer participações em refrões e assumiu os palcos. Hoje, integra junto com outras mulheres a Frente Nacional de Mulheres do Hip Hop, que luta pelo fortalecimento do rap feminino.
O ritmo entrou na vida de Priscilla por meio da dança. Ela sonhava em ser B-girl, mas um problema no joelho a impediu de seguir o sonho. O que não sabia é que um gosto antigo por escrever poesias a fez descobrir um novo rumo: ser MC. Dos 33 anos de idade, são 12 dedicados à música. O hip hop trouxe identidade a ela. “Minha história é um pouco mais de ser mulher. A forma que me posiciono, que eu quero ser e sinto”.
Apesar do tempo de carreira, Feniks lançou o primeiro álbum “Só a gente sabe” apenas em 2013, e a música que dá nome ao disco ganhou um clipe em 2016. As canções falam de preconceito, a vida nas periferias, sobre o rap e relacionamentos. No álbum, é notável a preocupação não só com as letras, mas também com as melodias e beats que misturam ritmos brasileiros e foram montados em parceria com o produtor musical E-Beilli. Os flows são envolventes com o uso de instrumentos de sopro, cordas, baterias e outros. Priscila se nutre de diversas fontes para compor, como a literatura, a mbp, samba, rap e disco music, além das experiências de vida e problemas da sociedade. A preocupação com o conteúdo vem principalmente por saber que a maioria do público é adolescente, que está em fase de descobertas e formação de identidade. “O sentido de eu estar no rap é para fortalecer as pessoas. Eu me preocupo com a forma de fazer música, porque penso de um jeito e quem escuta pode ter outra impressão devido às experiências de vida.”. Das vivências e dificuldades por ser mulher e negra, ela tirou
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o aprendizado, crescimento pessoal e também muitas composições. No cenário do rap enfrentou por diversas vezes o machismo. As vozes que gritavam pelos problemas sociais se esqueciam das mulheres. A luta era seletiva. Elas estavam sempre atrás dos homens. Ofereciam suporte para as vendas, eram produtoras e responsáveis pelas divulgações. No palco estavam apenas como backing vocals. Com a necessidade de lutar pelos direitos específicos, o rap feminino surge com nomes fortes como Dina Di, Negra Li, Rubia RPW e Sharylaine, para que novas rappers pudessem continuar fortalecendo o movimento. Hoje, elas investem nas próprias mídias, assessoria especializada e estúdio. “O rap feminino está crescendo muito,
casas fechadas, mas - saudosista -, ela afirma que aceitar o convite iria contra o objetivo do projeto. Para Feniks, a casa do hip hop é nas ruas.
A rima política de Issa Paz
CD é resultado dos 8 anos de som
mas até hoje os programas de TV convidam uma ou duas, parece cota, por isso lutamos ainda por espaço. Quando meninas de seis anos veem outras mandando ideias no palco, sabem que podem ser isso também se quiserem”.
De volta as origens
No início, Priscilla fazia refrão para outros MCs
Produtora cultural, a cantora tentou unir as duas paixões por meio do projeto Baile Soul Brasi,l em 2008, festa que acontecia no Centro de São Paulo, com o objetivo de voltar as raízes da cultura do hip hop, onde surgiram breakers como Nelson Triunfo. Por conta própria, ela correu atrás de apoio com a Subprefeitura da Sé e editais, mas após dois anos o projeto teve que acabar por enfrentar dificuldades financeiras. A festa até teve convites para acontecer em
Cada verso é um universo, canta a rapper paulista Issa Paz, de 24 anos. Rima direta, atitude e voz forte, ela se destacou na cena com o primeiro EP, “Essência”, pela qualidade das letras. A cantora bate de frente e escancara uma sociedade desigual, preconceituosa e violenta. Issa faz da arte do rap, há 16 anos, um instrumento de informação e transformação social. O rap entrou na vida dela pelas batidas americanas quanto tinha apenas oito anos, mas foi quando conheceu os Racionais MC’s que escolheu a vida que gostaria de ter. A música a permitiu expressar o talento que tinha para escrever. Desde então, não parou mais. Issa começou em uma parceira com o Pulga MC no projeto Rimologia, depois lançou o EP solo; na sequência, o álbum “A Arte da Refutação” e mais recentemente o projeto chamado “Rap Pluz Size”. Conteúdo para tantas produções é o que não falta. As inspirações surgem de experiên-
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TODO DIA QUE TENHO VIVIDO NO RAP TEM SIDO MARCANTE E ÙNICO Priscilla Feniks, rapper
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Gravação do clipe “Levante sua cabeça” do álbum Rap Plus Size
cias, teorias e referências externas como livros, cinema, música e temas atuais. Todas as canções recebem o mesmo cuidado para que as ideias cheguem da forma que deseja ao público. “Planejo muito meus sons, qual contexto devem ter, sob qual perspectiva devem ser inseridos e como devem ser abordados”. Para fazer e levar o som que gosta, Issa tem que lidar com as intimidações. Em várias músicas, a exemplo de “Respeita Nosso Corre”, ela levanta a realidade que existe na cena do rap. Em um meio predominantemente masculino, a mulher sofre a tentativa de ter a voz silenciada. “Os caras se desesperam em ver as minas se juntando. Antes era microfone desligado, hoje em dia é mais sutil, parece até que alguns entendem, mas quando você vê, não é diferente”. Embora o rap feminino tenha ganhado mais reconhecimento, as barreiras surgem de outras
formas. Fora dos padrões de beleza impostos pela sociedade, Issa sente um peso a mais por parte da indústria fonográfica e de projetos que usam o quesito estético para fazer a seleção das artistas. Contra a imposição de um padrão, a rapper lançou o álbum “Rap Pluz Size”, com a amiga Sara Donato. Questões sobre gordofobia, feminismo, racismo e amor próprio são abordados nas faixas que contam com várias participações de nomes fortes como Luana Hansen, Tássia Reis e Rubia RPW. “Fazer esse disco para a gente foi muito importante. Trouxemos nossas maiores influências para eles e misturamos tudo o que gostamos e somos”. Exigente, para ela, o último trabalho é sempre o melhor, pois revela a
evolução na técnica de escrita e a qualidade sonora. Tal capacidade de escrita e a influência da poesia pulsam quando Issa declama sobre a batida mais lenta de “Eu nasci”. Quem escuta a canção que fala sobre tudo que incide ser mulher, entende, então, o quanto o rap a permitiu ser e viver o que queria. “Todo dia que eu tenho vivido no rap tem sido marcante e único. Ter tantas aliadas ao meu lado tem me mantido exatamente onde eu gostaria e preciso estar.”
Cantora conta com parceria de Sara Donato
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A jornalista Luciana Barreto âncora do jornal “Repórter Brasil” integra a lista dos exemplos e percebeu certo avanço, mesmo que por meio de um processo arrastado. Para ela a transformação se deve a organização das mulheres negras na luta pelas mudanças sociais e na ocupação de espaço. A descoberta da negritude e da militância aconteceu ainda na adolescência. Hoje, na posição que possui como âncora e editora-executiva, consegue realizar o objetivo que tinha desde que decidiu por seguir na profissão, denunciar as injustiças e dar voz a quem são esquecidos ou silenciados. “Crescemos com Karina comanda o programa “Boa Tarde
Luciana Barreto é a única âncora negra da TV brasileira
Me representam Jornalistas usam visibilidade para reverter o estereótipo na imagem da mulher negra na mídia
Joana é uma criança dos anos 80 com um sonho comum a muitas garotas, ser Paquita. Porém, a menina é negra, e não existe paquita negra no programa da Xuxa. Joana é apenas uma personagem do curta Cores e Botas, de Juliana Vicente, mas poderia ser qualquer criança ou mulher negra que crescem influenciadas pelo padrão disseminado na mídia para se ter uma vida de sucesso: possuir um perfil estético europeu. Mulheres negras possuem espaço reservado nas mídias, mas como empregadas, camareiras, as mulatas atraentes, as mulheres periféricas, as rainhas de bateria da escola de samba entre outros estereótipos,
a ausência de representatividade nos meios de comunicação. Nossa identidade é violada a todo momento, por isso opino muito no conteúdo, ao mesmo tempo, recebo muitas sugestões para formar o jornal”. Vinda de uma família humilde, conseguiu ter acesso aos estudos devido a programas sociais e sabe da importância dos negros de ocuparem todos os espaços, por isso enfrenta o preconceito e busca no diálogo a forma para a transformação de base com fim de provocar mudanças na estrutura da sociedade. Para a repórter do programa “Bem Estar” da TV Globo
Fox” desde 2012
além de ocuparem a grade dos telejornais nas matérias de violência. O problema não está nestas características, o problema está na continuidade dos mesmos papéis e o quase que inexistente espaço oferecido às mulheres negras. É como se não pudessem dar vidas a advogadas, empresárias, professoras e demais profissões ou estarem na frente de programas e jornais de credibilidade. A pouca e indevida representação do negro nos veículos de comunicação é uma das causas questionadas pelo movimento. A passos ainda lentos, novos nomes surgem na mídia, seja nas redações ou na telinha. Karina durante sua primeira cobertura olímpica Rio-2016
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Além de apresentadora, Luciana é editora-chefe do telejornal “Repórter Brasil”
Valéria Almeida a adesão de profissionais negros nos veículos ajuda no desenvolvimento da autoestima deles, que encontram exemplos e conseguem lutar pelas metas pessoais e, consequentemente, servir de inspiração para outros, cria-se um ciclo que visa mudar os baixos casos de representatividade. “Quando mais da metade da população é negra e você ainda tem apenas alguns nomes ou é lembrada como a menina de tal programa ou confundem por causa do cabelo é porque ainda somos a exceção”. A consciência de ser referência não assusta a jornalista e apresentadora do programa “Boa Tarde Fox” Karine Alves. Embora não tenha
sofrido racismo no ambiente de trabalho, a jornalista reconhece que a maioria dos empregados negros não estavam nas redações, mas sim em trabalhos operacionais como cinegrafistas e motoristas. Recorda, também, de uma situação em que foi almoçar com uma estagiária loira e alta. Ao chegar no local, os funcionários, sem questionar, acreditaram que a novata era a repórter. A situação fez Karine notar o quanto o racismo está impregnado na sociedade. Ciente deste aspecto, busca exemplo e inspirações em outras profissionais, ao mesmo tempo que procura atender ao público nas redes sociais a fim de manter
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uma proximidade. Para ela, ser referência não é um peso, mas uma consequência positiva do trabalho. “Sinto muito orgulho e felicidade de pensar que a luta de uma vida pode representar o início de uma mudança para uma geração”. O despertar do processo e as transformações exigidas por esta nova geração de mulheres negras que compõem o movimento, profissionais ou não da área, revelam que a fórmula estabelecida pela mídia para obter o maior número de vendas, audiência ou cliques em um país miscigenado e multicultural já passou da hora de ser reinventada para mostrar como realmente é a mulher negra.
Ruth de Souza: vida dedicada às artes Exatamente há 71 anos, Ruth de Souza passou correndo pelo palco do Teatro Municipal do Rio de Janeiro. O palco que fora inaugurado em 1909, após 21 anos da Lei Áurea, era um projeto ambicioso do Estado e contava com desenhos europeus e participação dos maiores pintores e escultores da época.
O local foi inaugurado pelo próprio presidente da República, Nilo Peçanha, e era voltado à elite nacional. Apersonagem de Ruth era uma fugitiva de guerra. Foi a primeira vez que uma atriz negra pisava naquele palco, desde a inauguração. E ali foi o início de uma vida dedicada às artes.
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A história da atriz Ruth de Souza, 95 anos, se mistura com nascimento do teatro negro, da televisão brasileira e com o desenvolvimento do cinema nacional. Dali, Ruth construiu uma carreira que reúne 37 filmes, 30 novelas e 25 peças de teatro. Mineira, ela cresceu ouvindo da mãe histórias da cidade grande, que lhe despertavam imaginação e curiosidade. Quando o pai faleceu, Ruth foi viver no Rio de Janeiro. Ali, cidade onde até hoje reside, que aconteceu o encontro com a arte. A mãe a levara para ver Tarzan, o Filho da Selva, no extinto cinema Copacabana. Quando as luzes do cinema se apagaram, ela já sabia o que queria fazer pelo resto da vida. Decidida a ser atriz, Ruth conheceu um coletivo de atores negros que se reuniam na União Nacional dos Estudantes. O grupo liderado pelo ativista cultural Abdias do Nascimento decidiu formar em 1945, o Teatro Experimental do Negro (TEN). “Nós criamos a companhia porque o negro não tinha oportunidade no teatro. Quando tinha personagem negro, sempre pintavam o ator branco de negro e muitas vezes eram personagens caricatos”. A peça era “O imperador Jones”, baseado na obra do dramaturgo Eugene o’Neill. Foi nos palcos que ela conheceu e se tornou-se amiga de Jorge Amado. O escritor visitava os ensaios diariamente da adaptação para o teatro do livro “Terra do Sem Fim”. Quando os direitos da obra
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ENFRENTEI BEM ESSA QUESTÃO DE PRECONCEITO PORQUE COMECEI A CARREIRA JÁ SABENDO QUE ISSO IA EXISTIR Ruth de Souza
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foram vendidos para o cinema, ele a indicou para fazer o mesmo papel e a ajudou a realizar o sonho de fazer cinema. O teatro também foi porta para a atriz ganhar novos destinos. Após indicação do diretor e amigo Paschoal Carlos Magno, Ruth foi para
os Estados Unidos passar um ano se dedicando aos estudos. Frequentou a Karamu House, o mais antigo teatro-escola afroamericano, a Universidade Harvard e a Academia Nacional do Teatro Americano. No exterior, teve aulas de canto, dança e interpretação e montagem de peças. Ela teve o talento reconhecido mundo afora. O filme “Sinhá Moça” foi, para a atriz, o trabalho que fez despertar o interesse de outros produtores. No longa, o papel era coadjuvante, mas Ruth ganhou o prêmio Saci pela atuação, conferido aos melhores do cinema nacional pelo jornal O Estado de São Paulo. O papel também a levou a disputa ao Leão de Ouro no Festival de Veneza, em 1958, ao lado das atrizes Katharine
Ruth recebe o prêmio Saci no Teatro Municipal de São Paulo
Hepburn (quatro vezes vencedora do Oscar), Michèle Morgan e Lilli Palmer, que ficou com o prêmio. Era a primeira vez que uma atriz brasileira concorria a uma premiação internacional. Atravessando gerações, ela também participou de trabalhos de cineastas como Walter Salles em “A Grande Arte”, Joel Zito Araújo em “As filhas do vento” e Aluízio Sanches em “Um copo de Cólera”, além de ter contracenado ao lado de nomes como Grande Otelo, Oscarito e Milton Nascimento.
Nas telas da TV Já pensou em acompanhar uma novela que acontecia ao vivo? Essa era a realidade do início das telenovelas brasileiras e Ruth estava lá. Do cinema, ela passou para a televisão e fez os primeiros teleteatros da TV Tupi e da TV Record, nos anos 50. Depois, integrou o elenco da TV Excelsior, em “A Deusa Vencida”, em 1965. Quatro anos depois, estreiou na TV Globo, com “Passos do Vento”, de Janete Clair e o grande destaque pela qual é lembrada, “A Cabana do Pai Tomás”, onde interpretou a primeira protagonista negra, a Cléo. Das lembranças, ela guarda com carinho a relação com a escritora Janete Clair, com quem trabalhou em quatro novelas. “Ela era maravilhosa, reunia os atores na casa dela para saber o que estavam achando do papel. Hoje é mais difícil se aproximar dos autores, é tudo mais fechado”. Ruth sempre teve dificuldades em ser uma atriz negra, mas nunca se abalou. Quando
Ruth em cartaz do filme “Sinhá Moça”, de 1953
não gostava dos rumos ou características do personagem, cobrava os autores e a própria emissora. E não tinha medo de pedir para deixar o papel, como fez na novela “O Rebu”, de Bráulio Pedroso. “Sempre fui bem na minha carreira e sempre tive consciência dos autores com quem trabalhei, mas fiz grandes papéis porque sempre cobrei. Enfrentei bem essa questão de preconceito porque comecei a carreira já sabendo que isso ia existir”.
Pioneira A luta dela ajudou a abrir espaço para novos artistas negros. Embora não se enxergue dessa forma e credite muitas das conquistas aos amigos, Ruth tornou-se referência. O reconhecimento vem em forma de agradecimentos e homenagens como o carinho e reverência de Lázaro Ramos
e Taís Araujo. “Eles são muito gentis comigo. Eles estão realizando um grande sonho que eu sempre tive de ver os atores negros em destaque”. A história da vida artística também rendeu dois livros “Ruth de Souza, Estrela Negra” e “Uma Estrela Negra no Teatro Brasileiro”, além de uma mostra que reúne algumas das produções da TV e do cinema. A mostra, idealizada por Breno Lira Gomes, percorreu Brasília, Rio de Janeiroe São Paulo, com 25 obras. Em meios a tantas homenagens, das quais fala com alegria, Ruth permanece humilde e declara ser feliz para atuar no que gosta. Ela dá vida a personagens, toma suas dores, causas e alegrias, os faz grande e os vive em plenitude, vê no prazer de atuar uma terapia. Tudo o que não for do personagem fica fora do set. Para Ruth, atuar é viver.
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Futebol feminino continua no escanteio Durante toda a minha infância quando me perguntavam o que eu gostaria de ser quando crescer, a resposta era rápida e cheia de convicção: “jogadora de futebol”. As reações eram sempre as mesmas, aquele toque de consolo no ombro ou uma alta risada seguida de um “você não vai querer isso”. O tempo passou e finalmente descobri o porquê daquele tipo de reação à minha resposta. Cada vez que ouvimos a palavra “futebol”, fazemos referência a algo masculino. Somos influenciados a acreditar que esse esporte é apenas para homens, afinal, o destaque dado pela mídia ao futebol feminino é mínimo, ou até inexistente, se comparado ao destaque pelo “futebol dos meninos”. Enquanto o masculino recebe patrocínios, incentivo, além de comissão técnica especializada dos clubes e da seleção, há décadas as mulheres batalham por seu espaço. Apesar de ter desistido desse sonho muitas
Precariedade, ausência de apoio oficial e cultura machista formam a barreira ao futebol feminino.
Nova formação do time feminino , após retorno em 2015
resolveram seguir adiante. Disputando a bola com os rapazes na rua desde a infância, Camila Martins, de 26 anos, já cansou de ouvir que futebol não é coisa de menina, que lugar de mulher é na cozinha ou que garota jogando futebol é coisa de “sapatão”. Natural de Pernambuco, ela já passou por mais de cinco times por todo o país em busca do sonho de se tornar jogadora profissional. Há pouco mais de um ano, Camila é zagueira do time Santos Futebol Clube. Ligada ao futebol desde a infância, a trajetória da jogadora Katiuscia Fernandes começou ainda na infância por influência
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do pai. "O meu pai é do esporte e, por eu ser a única de cinco filhos a me interessar, ele sempre me incentivou a nunca desistir". A jovem zagueira começou a sentir na pele desde cedo o preconceito por escolher a bola ao invés da boneca. "Apesar de minha família apoiar, sempre tinha aquela vizinha para fazer uma piadinha". Aparecida Santana de Lira, a Cida, é a mais experiente das três, a também pernambucana de 30 anos passou por diversos times nordestinos até chegar à Vila Belmiro. Assim como muitas das jogadoras o apoio da família só veio com tempo e muito esforço. Por causa de toda sua bagagem a análise de Cida sobre as condições das boleiras é fria e objetiva: “Nós não somos apoiadas”. Ela ainda ressalta a importância do time da baixada para o futebol feminino nacional.
“O Santos é único clube onde as jogadoras têm a carteira assinada, a CLT (Consolidação das Leis do Trabalho), além de toda estrutura". Segundo a zagueira, dentro do clube as jogadoras possuem o mesmo tratamento do time masculino, desde nutricionista, até a academia. Aliás o clube santista, batizado de Sereias da Vila, chegou a contar com Marta no elenco e foi o de maior expressão na modalidade nos últimos anos. Em 2012, o clube fechou as portas para o futebol feminino, alegando aumento dos gastos com o time masculino e falta de interesse da Confederação Brasileira de Futebol (CBF). Voltando aos gramados em abril de 2015.
Preconceito e descaso marcam ascensão da modalidade A falta de seriedade e de investimento da CBF na categoria pode ser apontada como um dos motivos para o não desenvolvimento e profissionalização. O primeiro Campeonato Brasileiro de Futebol Feminino na década, por exemplo, realizado em 2013, só foi possível após a colaboração do Ministério do Esporte e da Caixa Econômica Federal. Mesmo quando a estrutura oferecida é excepcional, as atletas ainda precisam enfrentar os seus maiores problemas: o preconceito, o machismo e a homofobia por parte dos
Zagueira Camila se inspira em Durval, do Sport, na função de “xerife”
torcedores rivais. “Já perdi as contas de quantas vezes escutei durante um jogo “olha lá a Maria macho””, conta Camila. Para ela, o futebol feminino vem crescendo dentro do país, mas ainda em passos lentos por falta de apoio. “A mídia não divulga com tanta paixão como é divulgado o futebol masculino. Com isso pessoas não costumam ir ao estádio prestigiar um jogo. Como se nosso futebol não tivesse a mesma credibilidade”. Já para a zagueira Cida, o grande motivo pela falta de apoio é o preconceito. Pois, segundo ela, o Brasil ainda é um país de cultura machista. “Esse preconceito é gerado pela falta de visibilidade que o esporte tem, causada pelo descaso da mídia”, conta. Orgulhosa, ela fala que trabalha por amor, pois financeiramente é uma faixa mínima de mulheres que conseguem sobreviver apenas com o futebol. “Ser mulher e trabalhar diretamente com
o futebol é uma luta diária”, afirma. As histórias dessas garotas são quase sempre iguais. Todas estão ali movidas pela paixão incondicional à bola, sem receber sequer o devido reconhecimento por seu trabalho e conquistas. Desafio, esta é a palavra certa para descrever o cenário futebolístico feminino no Brasil. Como sabemos, esta é a modalidade mais praticada entre os brasileiros, mas com a diferença do masculino ser mais valorizado. No dito 'país do futebol', todos devem parar de acredita que lugar de mulher é apenas fora do campo.
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PERDI AS CONTAS DE QUANTAS VEZES ESCUTEI DURANTE UM JOGO ‘OLHA LÁ A MARIA MACHO’ Camila, zagueira
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Não basta torcer, tem de ir aos estádios!
Pluri Consultoria desenvolveu em 2012 um estudo sobre os times de maiores torcidas entre as mulheres. E os dados indicam que de 98,2 milhões de brasileiros que são mulheres, 68,9 são fãs de algum time de futebol. Analisando, os dois times mais populares são os que apresentam os maiores percentuais de mulheres como torcedoras, Flamengo com 48,4 e o Corinthians com 49,8. Seguidos por Grêmio com 45,9%, Bahia 45,7% e Palmeiras com 34,5%. Apesar do crescimento, a mulherada ainda tem dificuldades de acompanhar seus clubes. Ellen afirma já estar cansada de sofrer
Encontrar mulheres acompanhando os jogos do seu time do coração vem se tornando cada vez mais comum.
preconceito por ser mulher. E ouvir essas bobagens de “torcida é coisa de homem”, ou “futebol é coisa de homem”. Mas garante que o pensamento dos homens vem mudando aos poucos. “No começo houve certo receio por parte deles, mas estamos mostrando que o amor pelo clube é igual", garantiu. A São Paulina Camila de Araujo destaca que nos dias de hoje se tornou normal as mulheres irem a estádios. "Nós estamos tomando nosso espaço nesse meio. Cada vez mais vejo mulheres conversando e discutindo sobre, isso é muito bacana". Essas mulheres são iguais a mim e a você, mas quando se fala em futebol cada uma torce de um jeito, sofre, xinga se for preciso e sempre dão um jeito de acompanhar o time do coração em campo. Elas fazem parte da grande massa que está compondo as arquibancadas.
Marina se apaixonou pelo futebol acompanhando o pai e o irmão nos estádios
Será que torcida em estádio de futebol é só de homem? Ellen Barros, 22 anos, prova que não e afirma “é cada vez mais frequente a presença feminina nas arquibancadas. Principalmente dentro das Torcidas Organizadas.” A corinthiana há 4 anos faz parte da Torcida Fiel São Vicente Baixada. Já a advogada Marina Prado, 24 anos conheceu a Sociedade Esportiva Palmeiras por influencia do pai e irmão, apaixonados pelo clube. Quando criança Marina começou a acompanhar os jogos da equipe pela televisão e no estádio. "Com seis anos, já me levavam ao estádio, principalmente ao antigo Parque Antárctica. Foi o estádio que fez com que eu me apaixonasse pelo futebol". Com um pai fanático Camila de Araujo, 30 anos também foi
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influenciada pela família. Seu amor pelo São Paulo nasceu vendo seu pai torcer pelo clube. "Ver a paixão com que o meu pai torcia fez com que eu me apaixonasse. Me tornei tão fanática que já de pequena eu comecei a discutir por causa do time", conta aos risos. Historias como a de Ellen, Marina e Camila estão se tornando cada vez mais comuns. Mulheres estão dominando as arquibancadas e garantindo espaço em um lugar onde antes apenas homens frequentavam. Devido a essa invasão, a
O amor de Camila pelo São Paulo veio do pai
VOCÊ SABIA? O futebol feminino ganhou visibilidade, pela primeira vez, na Inglaterra durante o período da Segunda Guerra Mundial. Com os homens em combate, sobrou para as mulheres assumirem seus lugares nas fábricas. No futebol, não foi diferente. Apesar de não ser o inventor do esporte, o Brasil assumiu o status de país do futebol. Mas as mulheres já praticavam o esporte antes dos títulos mundiais masculinos. Araragari Atlético Clube foi o primeiro time nacional que se tem registro. O primeiro jogo aconteceu em 1921, entre Catarinenses e Tremembeenses. Em 1941, uma lei proibiu as mulheres de praticarem futebol no país, anulada apenas em 1981. Ainda assim, mesmo com o direito garantido de praticar e jogar, elas não podiam se profissionalizar. A primeira seleção brasileira feminina foi montada em 1988; a primeira participação em Copas do Mundo, em 1991. A equipe feminina firmou-se a partir da década de 90, ainda enfrentando obstáculos como à tentativa de erotização das jogadoras no Campeonato Paulista de 1997, cujo critério de seleção das atletas levava em conta os atributos físicos, e não aspectos técnicos e objetivos. Atualmente, as mulheres representam cerca de 10% dos jogadores no mundo. No Brasil, segundo a CBF, são 80 mil mulheres.
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Turbantes A origem de uma moda política
A origem deste acessório ainda é desconhecida, mas sabe-se que já era usado no Oriente muito antes do surgimento do islamismo em 570 DC. O uso é comum no Oriente como símbolo da fé e na Índia para designar as castas e para proteger do clima severo. Na África, o turbante é parte da cultura do povo. São usados por homens e mulheres e cada amarração, torção e cores tem um significado. Podem ter funções sociais, religiosas e fazem parte da moda e do estilo africano. No Brasil, foi introduzido pelos negros africanos. As mucamas usavam os turbantes nas cabeças que podiam ser coloridos ou não.
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Me gritaram negra Negra! Sim Negra sou!
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medo!
As palavras são da poeta cubana Victoria Santa Cruz. Ela tinha apenas 5 anos quando o grupo de amigos a excluiu pelo pedido de uma menina branca e loira que não queria brincar com a criança negra. Assim como ela, outras mulheres se reconheceram negras e notaram que a realidade que enfrentavam era diferente da mulher branca. O movimento feminista não bastava para representar o gênero, porque a mulher não é uma massa uniforme. A história do mundo tem cor e é branca. No Brasil, a luta pelos diretos das mulheres ganham força em 1922 sob liderança de Berta Lutz, Nísia Floresta e Carlota Pereira de Queirós, que defendiam o direito ao voto, a escolha do domicílio e o trabalho sem autorização do marido. Uma liderança branca e de classe média alta. A voz negra começa a ser ouvida apenas a partir de 1985, quando ocorre o 2º Encontro Feminista Latino-americano, em Bertioga, no litoral paulista. A partir deste ponto, nomes como Sueli Carneiro, Lélia Gonzales, Núbia Moreira, Luiza Bairros, entre outras, abrem caminho para a representação negra feminina no Brasil.
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Uma boneca igual a mim Mulheres Negras, em Brasília, que reuniu 70 mil pessoas”.
Ativismo na era digital
Mariana Martins e Alzira Rufino, duas gerações de luta pelo feminismo
Feminismo negro pra quê? A mulher negra ocupa o topo das estatísticas que revelam um Brasil desigual para gênero e cor. São elas as maiores vítimas de homicídio do país. Segundo o “Mapa da Violência 2015: Homicídio de Mulheres no Brasil”, o índice aumentou em 54%, enquanto de mulheres brancas caiu 9,8%. As negras buscam ser reconhecidas por beleza e que merecem ser vistas pelas marcas de cosméticos como um público promissor e não por ter as capacidades determinadas pela cor da pele. Mesmo que realizem jornadas duplas, elas recebem 40% menos que os homens brancos no mercado de trabalho. Na Baixada Santista, uma representante importante é Alzira Rufino, criadora da Casa da Cultura da Mulher Negra de Santos, que existe há 26 anos. A casa foi criada com a finalidade de oferecer suporte para a população negra, principalmente para as mulheres, e promover apoio psicológico e jurídico, além de cursos profissionalizantes. Após enfrentar problemas financeiros, a casa perdeu a sede,
mas continua a defender as causas do movimento por publicações de materiais voltados à capacitação de professores e a implantação da cultura negra nas escolas. A professora Cinthia Abreu aprendeu a lidar com o preconceito quando teve de enfrentar a vida sozinha. Na infância, nunca foi discutido com ela o racismo ou a autoestima. Desde jovem, ela já possuía crítica política e participou de movimento estudantil e, posteriormente, do sindicato de professores. No feminismo, descobriu vertentes com as quais se identificava, o movimento negro e os direitos LGBTs. Cinthia participou da formação do núcleo da Marcha das Mulheres Negras, em São Paulo. Hoje integra a Marcha Mundial das Mulheres, na qual promove as “Conversa de Pretas”, grupo para discutir sobre racismo, além de participar do “Samba Negras em Marcha”, projeto que ensina mulheres a descobrirem uma nova vida por meio do aprendizado de instrumentos musicais. “Exigimos outra postura política. Queremos estar à frente, temos nossas pautas políticas; para isso, idealizamos várias ações, como a Marcha das
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Selfies, textões opinativos, imagens contra os mais variados tipos de preconceito e vídeos que abordam temas das minorias, só “close certo” nas redes sociais da estudante Mariana Martins, de 19 anos. A estudante utiliza as redes sociais para propagar e defender as causas que acredita. Nem branca, nem negra era como Mariana se sentia. Ela negava as características porque entendia ser negro algo ruim devido ao que a sociedade e a mídia ditavam ser bonito e certo. Quando o feminismo negro entrou na vida da jovem, Mariana procurou por outras mulheres que passavam pelas mesmas situações. “Via aquelas mulheres usando turbantes, se sentindo lindas e pensei: caramba, sou que nem elas. Fora a troca de experiência e como lidar com casos de racismos. Elas estão me ajudando a construir uma identidade que achava que não tinha”. As ações que pratica na internet já deram resultados. Mulheres que conhece apenas virtualmente se aproximaram para conversar, desabafar ou elogiá-la por servir de inspiração. Mesmo que com pequenas mudanças, sente-se feliz por poder transmitir a mensagem da importância da afirmação da identidade negra.
Cabelos crespos, olhos pretos, pele preta e de pano, as bonecas negras são construídas por mãos também negras de mulheres que não se viam representadas em seus brinquedos. As produções artesanais fazem parte de um mercado que corre fora das grandes indústrias no Brasil. As irmãs Joyce, Lúcia e Cristina Venâncio criaram a Loja Preta Pretinha, há 16 anos, especializada na venda de bonecas pretas e de outras minorias como orientais, pessoas portadoras de problemas físicos, muçulmanas, judias e indígenas. A loja nasceu de um sonho. Pequenas, elas não se reconheciam nos brinquedos e, por isso, a avó, Maria Francisca, começou a fazer bonecas de seda e malhas na cor marrom e preta para as netas. Para Joyce, muitas crianças não tem a autoestima trabalhada em casa e acabam se sentindo feias e até se escondem usando toucas. “Isso não é bom. Desde então, falava que nós teríamos uma loja de bonecas negras para mudar essa realidade”, afirma Joyce. A loja, uma casa situada na Vila Madalena, em São Paulo, tem em vitrine bonecas negras com tranças, dreads, black power, roupas africanas, bailarinas e todas as possibilidades que as crianças podem imaginar e desejar distribuídas nas prateleiras. As proprietárias compreendem que o trabalho delas envolve inclusão social. Trabalho que se reflete nos rostos de crianças e mulheres que nunca tiveram bonecas negras. “É a felicidade
em seus olhares. Elas choram e abraçam a boneca. Essa relação de amizade e afeto só se cria com bonecas”, afirma Joyce. Comprar uma boneca é adquirir os valores transmitidos pelos brinquedos e participar da formação da identidade da criança. Um artigo publicado pela especialista em educação infantil Leni Vieira Dornelles constata que os brinquedos constituem um modelo de controle. As formas e a estética produzem efeitos no jeito de ser criança, pois fabricam modos de subjetividade que as aprisionam em verdades sobre como devem ser seus corpos, comportamento, atitudes e valores. Um exemplo disto é a Barbie,
que há 57 anos está no mercado e teve de aderir às mudanças por causa de queda de 20% nas vendas desde 2012. A tradicional ganhou a companhia de outras bonecas de sete tons de pele, quatro tipos de corpos, 22 cores de olhos e 24 estilos de cabelos diferentes. Notícia comemorada nos Estados Unidos, que mereceu capa da revista “Time”, e também aqui no Brasil. Veículos de comunicação e blogs festejaram a atitude da empresa. A representatividade tinha alcançado a boneca mais famosa e vendida do planeta. Mais de um bilhão dessas bonecas já foram vendidas ao redor do mundo. Mas a verdade é que as Barbies “reais” e outras bonecas negras ainda não são facilmente encontradas nas prateleiras e em lojas online.
As irmãs Venâncio transformaram o sonho de infância em negócios
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EMPREENDEDORISMO A prática empreendedora vem crescendo no Brasil, principalmente quando diz respeito à população negra. É o que afirma o estudo do Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas, Sebrae, publicado em 2015 com base na Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios, a maior parte dos empreendedores são afrodescendentes. De acordo com o relatório o número de pardos e pretos cresceu 24%, passando de 9,5 para 11,8 milhões, enquanto que o número de brancos caiu 2%, de 11,7 para 11,5 milhões. Para Ana, analista do Sebrae, a criação da figura jurídica do Microempreendedor Individual (MEI) é o principal motivo desse aumento. "O MEI facilitou a regularização no mercado para aquele trabalhador informal". Com uma taxa mensal de aproximadamente R$40,00, esse trabalhador consegue contribuir com a previdência social e se cadastrar de modo efetivo no Portal do Empreendedor.
Jornalista cria food-bike como opção para renda fixa Com uma situação financeira muito delicada e em busca de uma segunda fonte de renda Milena Graziela Silva dos Santos teve a ideia de transformar uma bicicleta em vitrine para os brigadeiros. Em 2013 criou a marca Dona Chita para promover um dos maiores ícones da nossa confeitaria popular. Filha de quituteira, fez o primeiro brigadeiro aos oito anos, "minha mãe me ensinou, desde cedo os segredos de doces e bolos que carregam um sabor caseiro". Jornalista e funcionaria publica de carreira, Milena começou a produzir e vender essas guloseimas para amigos, como uma forma de ter renda extra. A ideia inicial era um food truck, mas o alto investimento necessário a fez mudar de idéia. Milena adaptou uma cargueira usando uma caixa de frutas enfeitada com flores e criou uma logomarca. A partir daí começou a rodar pelas ruas da cidade. “A bike também serve como
Milena fez do empreendedorismo seu estilo de vida um balcão de negócios. Uma alternativa fácil e sustentável”. Diferente de muitos que buscam abrir o seu próprio negocio visando sua independência financeira, Milena acredita que esse não deve ser o objetivo
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principal. “Empreender não é ter sucesso e ganhar dinheiro a qualquer custo, isso deve ser apenas conseqüência. Empreender é criar, é buscar seu protagonismo criativo”.
Estudantes criam o primeiro aplicativo para empreendedores negros A proposta do projeto é conectar empreendedores negros aos interessados em consumir seus serviços. Foi então que Víctor del Rey, graduando em Ciências Sociais, Administração e Direito da Fundação Getúlio Vargas, Hallison Paz e Kizzy Terra ambos mestrandos em matemática na FGV decidiram unir seus conhecimentos, experiências e o desejo de transformação social para realizar a criação do primeiro aplicativo de afroempreendedores, o Kilombu. Com mais de 500 inscritos, a plataforma foi lançada em fevereiro deste ano, reunindo produtos e serviços de empreendedores negros e consumidores interessados em adquirir serviços dos anunciantes. Para quem quer contratar, basta fazer o download, disponível para celulares e buscar os seus interesses através dos filtros de categoria. Para empreendedores que desejam cadastrar seus negócios basta criar uma conta pessoal e logar. A iniciativa surgiu do trabalho universitário de Víctor, cujo papel é formalizar e prestar consultoria jurídica para micro e pequenos empreendedores.
“Percebi que os empreendedores que frequentavam a clínica eram mulheres negras com mais de 40 anos e das comunidades no entorno da FGV. A maioria não possuía O aplicativo estimula o empreendedorismo no Brasil instrução formal voltada a negócios, buscavam sobreviver atuando com aquilo que eles Apesar do apoio, até o fazem de melhor”, afirma. momento o aplicativo está O principal objetivo é de sendo financiado integralmente expansão. “Queremos prepara pelo trio. “Até o fim do ano, o afroempreendedor para tocar pretendemos custear as despesas o negocio. Então já temos por meio por alguns serviços algumas parceiras, como por como links patrocinados. exemplo a FGV, então quem Estamos estudando a anuncia no Kilombu tem aulas possibilidade de oferecer um de gestão de negócios. Além sistema de pagamento dentro das futuras com a ESPM e o do aplicativo e com isso uma SEBRAE”. pequena comissão sobre a venda seria nossa”, finaliza Victor, cofundador do projeto.
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Roteiro Afro
Igreja Nossa Senhora da Boa Morte
A cultura afro ajudou a construir a cultura brasileira e é muito presente também na vida da cidade de São Paulo. As manifestações estão por todos os lados e enriquecem muito a cultura local com ritmos, crenças e costumes que realçam a diversidade existente no país. Espaços dedicados à capoeira, ao candomblé e até a igreja a celebrar a primeira missa com brancos e negros em um mesmo ambiente são os destaques deste roteiro negro pela cidade.
Construída há mais de 110 anos, ela é conhecida como o primeiro templo católico a reunir negros e brancos em uma missa de São Paulo. Rua Tabatinguera n° 301 (próximo a estação Sé do metrô) Aberta diariamente 24h.
Axé Ilê Obá Fundado na década de 70, o terreiro Axé Ilê Obá (na língua iorubá, significa Casa da Força do Rei) é tombado como patrimônio cultural pelo CONDEPHAAT. É um dos maiores templos de candomblé da América Latina. Rua Azor Silva n° 77 – Jabaquara Atendimento: segunda à quinta-feira, das 9h às 13h, e das 14h às 18h
Centro Cultural Candomblé
Museu Afro Brasileiro Este museu abriga um acervo com mais de 6 mil obras como pinturas, esculturas, gravuras, fotografias, documentos e peças etnológicas relacionadas aos universos culturais africanos e afro-brasileiros, produzidas desde o século 18. Avenida Pedro Álvares Cabral (Portão 10) – Parque Ibirapuera Atendimento: de terça à domingo, das 10h às 17h
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Idealizado pelo babalorixá Pai Toninho de Xangô, este centro conta com um salão decorado com pintura de orixás, exposições de arte com esculturas, telas e vestimentas, palestras e festas, e uma sala de jogo de búzios. Rua do Bosque n° 246 – Barra Funda Atendimento: Segunda à sexta-feira, das 13h às 19h.
Casa mestre Ananias Fundada por Mestre Ananias, um dos precursores da capoeira em São Paulo, essa casa do bairro do Bixiga tem como objetivo a transmissão oral e difusão dessa expressão considerada Patrimônio Cultural Nacional. Rua Conselheiro Ramalho n° 945 – Bela Vista Confirmar programação no site www.mestreananias.blogsport.com
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A rua é delas
As artistas Mag Magrela, Fixxa e Madô Lopes ganham espaço em um meio em que predominam grafiteiros homens. Em um universo majoritariamente masculino, o Brasil também tem um time de feras do spray com as mulheres grafiteiras. Mostrando que não estão nem aí para a barreira de gênero, elas se expressam pelas ruas e ganham espaço e admiração. Por mais que as pessoas associem grafite a vandalismo, a exposição urbana dá peso aos artistas por mostrar ideias, cores e desenhos livres dos padrões. Tratado como patrimônio cultural hoje em dia, o grafite está em outro patamar e combina muito bem com o talento dessas meninas que mostram poder com desenhos e, apesar das trajetórias diferentes, os temas fortes conquistam quem passa em frente aos muros grafitados por elas. O reconhecimento internacional é apenas um reflexo da conquista da personalidade de cada uma, cujas histórias conhecerá agora:
Mag Magrela O ateliê do Muriqui, Vila Madalena, é o “santuário” de Mag Magrela. Lugar calmo, de paredes brancas, com plantas de decoração, além de mesas e cadeiras feitas de materiais reutilizáveis. Tudo ao redor dela parece combinar com a personalidade de Carolina Maciel, a mulher e artista plástica
Obra “Se Tarsila hoje em dia fosse”, exposta em Greenpoint, Nova York
por trás do pseudônimo. Criada na Vila Madalena, bairro de São Paulo famoso pelas expressões culturais, que atrai turistas de várias regiões, ela cresceu admirando e absorvendo todo tipo de informação. Em casa, ainda criança, via o pai pintar quadros. Todas essas influências renderam apenas algumas telas feitas em horas livres; de resto, foram guardadas como lembranças. Mag ingressou na universidade, mas logo percebeu que não era algo que a motivava. “Nunca passou pela minha cabeça levar a sério. Eu estava fazendo faculdade de Administração, totalmente em uma outra vibe”.
Embora a arte fosse fonte natural na família, ela conta que é “autodidata” e a reaproximação com a arte aconteceu durante uma crise existencial. Começou a sair com o irmão e redescobriu a cidade de São Paulo e seus moradores. A moça, agora com 22 anos, conheceu grafiteiros e quis também se expressar. Quando começou sua “história na rua”, como ela mesma chama, se viu intimidada e buscou fugir do que considerava “desenho de menina”. “Minhas criações eram mais agressivas. Eu não queria que alguém visse e pensasse: Ah, isso foi feito por uma mulher. Fazia personagens masculinos e infantis. Mas percebi o grande poder de pintar nas ruas e busquei
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Arte de Mag, “Ali onde me escondo”, exposta em São Paulo (2014)
mudar, desenhar mais, achar meu estilo”.
Historias contadas nos muros Com traços marcados, cores em excesso (principalmente laranja) e proporções distorcidas, ela procura expressar personagens machucadas ou sorridentes e pensativas. Spray e tinta esmalte são os principais materiais que usa na criação dos desenhos. Além deles, um diferencial é o uso de azulejos. Essa foi a forma de ela colocar um pouco da família no trabalho. Os avós eram portugueses e tinham como tradição a instalação de azulejos em paredes. A força e vulnerabilidade dessas figuras femininas estão nos muros em bairros nobres e na periferia,
onde Mag diz serem palco de da América do Norte e do Sul. quebras de tabus e conflitos. “A Em outubro do ano seguinte, pintura na rua nos tira da bolha. a artista de rua viajou de São Desfaz os nós e preconceitos. Paulo para Nova York, deixando Tanto das pessoas em relação a suas personagens nos bairros do mim, por ser mulher, como os Brooklyn e Manhattan. meus em relação ao todo”. Essa experiência mostrou para Em 2013, a produtora americana Alexandra Henry começou um novo projeto chamado “Street Heroines” (Heroínas Urbanas), um documentário para a web com grafiteiras Obra “Entre cacos e cortes: a dor de se redimir”
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Obra de Fixxa exposta no pátio da UniBR - São Vicente Mag o quanto o artista brasileiro é valorizado. “Como artista, essa viagem me mostrou como o nosso universo criativo e a mistura de culturas nos faz importantes lá fora”. Desde então, os desenhos dela se espalham por outros lugares, como Rio de Janeiro, Lisboa e Londres. Hoje, aos 31 anos, ela afirma que essa consagração só foi possível a partir do amadurecimento pessoal, autoconhecimento e aceitação da condição feminina. “Minha arte é a minha vida. As figuras que faço hoje são autorretratos, onde eu me expresso para limpar o coração. Todas temos isso dentro de nós, então, as mulheres se identificam”.
Fixxa Aline Benedito, ou simplesmente Fixxa, tem 36 anos e usa as ruas para se comunicar, espalhando desenhos, todos focados no cunho feminista, protestando e contando através da arte que a mulher tem voz e vez nas ruas.
Apesar do primeiro contato com a arte ter acontecido ainda na infância, com os pais que trabalhavam com cerâmicas, foi aos 21 anos que se interessou de verdade, quando começou a namorar com Vlaidner de Lima, o Colante, artista plástico conhecido na Baixada Santista. De lá para cá, a importância da arte de rua cresceu rapidamente em sua vida. “Quando estávamos arrumando a casa, me deparei com um monte de estêncil, fiquei curiosa e quis ir fazer com algo com aquilo na rua. Quando ele imprimiu o desenho na parede, eu comecei a chorar. Foi amor à primeira vista”, recorda Fixxa. Colante, segundo Fixxa, segue uma linha de grafite mais ao estilo Nova Iorque (cidade berço da arte de rua) anos 1990, enquanto ela desenvolve um voltado para a mulher, gerando um pequeno conflito no casal, solucionado da melhor forma possível: ela passou a realizar a própria arte. “Foi assim que comecei a consolidar o meu estilo”. Quanto ao apelido, Aline explica a origem: “Foi através de um sonho. Eu voltava da escola
riscando os muros por onde passava com esse nome, Fixxa. Achei que era um presságio e resolvi adotar”. A artista atua nos quatro segmentos mais difundidos da arte urbana: grafite, stencil, poster art e sticker art, ou seja, em tudo o que pode ser fixado nas paredes ou em outros suportes. A artista costuma retratar as mulheres coloridas e expressivas. “Suas meninas”, como as chama, são uma aposta e fortalecimento do protagonismo feminino. Aliás, a ideia que vemos representadas nos muros tem tudo a ver com a história da própria artista.
No trabalho mais recente, Fixxa representou o Brasil no Beantatuz – Festival Internacional de Arte Urbana, na Espanha. A participação no evento foi possível após um concurso da Secretaria de Cultura de São Vicente, em que os participantes criaram suas obras baseando-se no tema “Teatro de Bonecos”. Os grafites foram feitos nos muros do campus da UNIBR. Em junho, Fixxa reproduziu sua arte na parte externa do Museu Topic – Centro Internacional del Títere de Tolosa – e em um mural na mesma cidade.
Arte gringa com tinta caiçara
Madô Lopez
A arte de Fixxa está espalhada em vários locais da região, além de outras cidades brasileiras. “Tem também nas ruas de São Paulo e pelo interior. Além disso, tenho trabalhos de stickers e poster art na Itália, Portugal, Alemanha, Holanda, Japão, Inglaterra e Argentina. Enviei para todos esses países pelos Correios e foram colados nas ruas pelos artistas de lá”.
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Arte exposta em Monguaguá
Engajada com temas do universo feminino, a publicitária Madô Lopes, 34 anos, desde criança é aficionada por leitura e por pintura. Ela juntava as histórias que lia com a imaginação e rabiscava todos os cadernos da escola. Mas apenas no final de 2012 que iniciou no grafite e, após insistência de amigos artistas, começou a pintar pequenos murais. Autodidata, ela aperfeiçoou a técnica de grafite na raça e na insistência. Na primeira vez que uniu o spray à parede, o resultado não foi o que ela teria orgulho de expor por aí. “Foi um desenho muito feio e eu não tinha noção nenhuma de como mexer com spray. Achava que nunca ia fazer um traço perfeito no spray, mas é aquilo: tudo é treino”, conta, rindo. A artista começou a busca por identidade através da representação das emoções canalizadas em personagens que denomina “Cabeça de Gato”. “Hoje as minhas ideias vem do meu sentimento de mulher em relação ao mundo. Alguns
Arte “Sobre Desilusão”, exposta em Sumaré, São Paulo amigos dizem que eu sou uma rebelde adolescente, que quer mostrar toda a sua raiva”. Apesar da popularização dos últimos anos, o grafite ainda é uma expressão artística arginalizada. “Tem muitos adeptos, mas ainda falta apoio, interesse e inclusão cultural para ter espaço definitivo na cidade”. Ela também afirma que conquistar reconhecimento é difícil para mulheres desse universo. “As grafiteiras ainda estão marcando seu espaço, ainda temos chão pela frente. O machismo infelizmente ainda atinge esse meio”. Ao contrário do grafite, a pichação é baseada em letras. Segundo Madô, as duas tem um contexto social bem parecido. “A pichação é um protesto, uma maneira do cara da periferia ir lá dar seu grito de liberdade”. Desde a infância, ela é fascinada pelo picho e confessa: “Já fiz, até hoje faço. Pego minha bike e saio de madrugada. Preciso dar
meu grito também”.
Militância O envolvimento com a temática feminina foi além e, em 2011, após um período de incômodo e tristeza com o comportamento masculino, ela resolveu trazer o movimento “Marcha das Vadias” para o país. “Li em alguns jornais sobre as marchas cada vez mais populares nos outros países, então por que não ter aqui?”. Assim como em desenhos, Madô queria por em pauta temas que a afligiam. A grafiteira queria deixar a luta registrada no legado que tomaria conta da vida de várias meninas e as influenciaria positivamente, conforme vão se aproximando do mesmo sentimento. A luta dela não terminaria, nem mesmo nos momentos que estivesse longe das latas de spray e muros e continuaria gravada, não neles, mas na estima e mente de cada garota que integrasse à luta.
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Dandara: Negra, mulher, da periferia, como foi chegar á universidade? Valéria de Almeida: Foi bem difícil. Eu fiz faculdade em uma época em que só existia o Fies (Financiamento Estudantil), mas por não conseguir pagar as mensalidades em dia e não ter os comprovantes não pude fazer parte. Então foram anos com uma dívida absurda, fazendo acordos e tentando sobreviver por que eu não cabia num espaço universitário. Mas eu queria ser jornalista; então, eu fui. Não me orgulhava de assistir à aula devendo, mas - se eu não insistisse - me tornaria a garota que tinha o sonho e que morreu na periferia com esses sonhos. Quando chegou no último ano, fui retirada da sala por que não tinha condições de pagar. Fiquei dois anos fora pra pagar o que eu devia e eu voltei no momento limite.
Negra, pobre, vinda da periferia de Santos, órfã de mãe desde os dez anos, ela foi criada pelos avós nordestinos e semi-analfabetos, desacreditada por muitos ao redor, que diziam que o destino se resumia a ser “mulher de malandro”. Porém, nada disso foi empecilho para que Valéria de Almeida mudasse o roteiro que lhe foi dado. Hoje, repórter do programa “Bem Estar” da Rede Globo, a jornalista superou obstáculos sem nunca pensar em desistir, em busca daquilo que acreditava ser o papel dela no mundo, ser comunicadora.
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D: Por que jornalismo? V: Eu escolhi o jornalismo porque foi a minha forma de ganhar e ver o mundo. Eu sempre sonhei conhecer pessoas daqueles lugares do Brasil que ninguém quer falar e esse sempre foi o meu objetivo, criei esse foco na vida e segui. Sempre o achei libertador e uma profissão capaz de promover um trabalho social fantástico. Eu acredito no papel do comunicador, acredito que o jornalismo é pra mim a
No maior lixão da América latina, Brasília em 2015.
oportunidade de contar historias, de tornar pública uma situação para que provoque reflexão, para que incentive o despertar de uma consciência que aí não vai ter mais a desculpas para dizer que não sabia.
V: Eu passei por uma situação bem curiosa enquanto eu estava em Santos. Uma produtora de uma emissora local disse pra mim “nossa você leva jeito pra televisão, mas deixa eu te dar uma dica, deixa o teu cabelo crescer e alisa que eu consigo te D: Como você chegou ao colocar aqui”. Claro que não. “Profissão Repórter”? Se pra conseguir um emprego V: Por causa do meu TCC, que foi eu vou ter que me corromper, um livro fotográfico do MST, eu eu prefiro continuar onde estou. fui parar na revista Carta Capital, Nós passamos por processos de mas como assistente. Um veículo violência em tantos momentos, que falava sobre tudo aquilo que porque é negro, pelo cabelo, eu queria falar, mas - mesmo porque não é bonita, sempre tem assim - eu sentia falta de ser a os porquês, as razões. São coisas contadora, de mostrar meu olhar. que vão permeando. Não é um Então, quando uma colega da pacote de preconceito de uma vez revista me convidou para fazer só. um teste lá, eu fui e deu certo. Foram cinco anos que me fizeram D: O fato de você estar exposta ver que tudo valeu a pena. contribui para que aconteça com mais frequência? D: Em 2015, após uma V: Quando se nasce negra reportagem sobre violência nesse país, você sofre vários contra mulheres, o acusado preconceitos, desde o bullying começou na internet ataques na escola até o questionamento racistas e incitações a violência de como você conseguiu tal contra você e o Guilherme colocação no trabalho ou dizerem Belarmino. Como você lida que você não é a pessoa mais com o preconceito que existe preparada pra aquilo, mesmo sem na mídia? Lembra de algum base para afirmar isso. O racismo momento especifico?
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Protagonista sim! gente é comunicador e coloca a história em evidência e faz com que reflitam sobre isso, e esse é o nosso papel. D: Como você avalia a representação da mulher negra no jornalismo e no entretenimento? V: Eu não consigo comparar os dois, porém ao mesmo tempo quando eu olho a gente na mídia, sinto que é um reflexo da nossa sociedade. No jornalismo, a gente não está representada, a gente é a gente. Então sou eu, Valéria, contando uma história. Quando falamos de novelas e filmes, aí é mais cruel, porque somos representados sempre como a mulata, a empregada, o escravo, sempre o serviçal e isso dói pra caramba, mas ao mesmo tempo tem que refletir que é o nosso retrato social. Enquanto Além de repórter, Valéria também atuou como cinegrafista a sociedade continuar ofendida com os avanços dos negros, isso é de todo dia. O racismo não V: Quando eu sugiro uma pauta, vai refletir no filmes, nas novelas, acontece só porque sou jornalista, é lógico que eu estou sensibilizada em todos os tipos de arte. Acho que hoje existe uma mudança, só que, quando estamos expostos, com tudo que vivi. Porque eu sinto essa mudança chegando aos ficamos mais vulneráveis a isso. tenho a consciência do que é É difícil, é cansativo. Engraçado viver na periferia, dormir pra não poucos. E isso é fundamental, que, por outro lado, tem gente sentir fome e é lógico que o outro pois motiva uma transformação no cara que assiste e que se inspira que perde tempo tentando me nem precisa ter passado por isso em acreditar que também pode. convencer de que eu não sou para ter a sensibilidade e falar negra porque meu tom de pele dos problemas que temos, mas D: Hoje você também se tornou é mais claro do que o da Joyce eu acho que quando vem um e uma referência para os negros. Ribeiro, por exemplo. Eu sou conta isso, desperta uma nova V: Sim, e espero não ser uma negra, tenho certeza e me orgulho consciência e, se ele desperta inspiração só por causa do meu muito disso. É a minha historia e isso em um, aí vem mais um cabelo, ou da minha roupa, e mesmo assim tentam tirar o que é que vira comunicador e propaga sim pela minha força. Espero meu. essa informação. Quando a que pensem: “pôxa, se uma negra, favelada, órfã conseguiu, D: Sua historia de vida eu também posso”. Quando isso influencia de alguma maneira acontecer, vai ser sensacional. nas reportagens que você faz? Transformador.
Cineastas retratam nas telas histórias que constroem os dilemas da população negra O cinema negro nacional conta com poucos personagens marcantes. As cineastas Lilian Solá Santiago, Carol Rodrigues e Jessica Queiroz ganharam espaço ao relatar nas telas histórias que fazem parte do cotidiano dos brasileiros. Este estilo foi criado na década de 70 com o filme “Leão de sete cabeças” e se reinventa, saindo da margem de grandes produções para se aproximar do público. O objetivo continua o mesmo: expressar a posição sociocultural afrodescendente, porém quem conta a história agora são mulheres que veem no cinema uma forma de educar e questionar. Lilian Solá Santiago conhece bem o cenário do cinema negro nacional. No currículo, são mais de 10 produções. A cineasta, historiadora e criadora do festival Curta Salto vê no cinema uma forma de levar informação e reflexão através do entretenimento. Para ela, a ausência de representação e os estereótipos são prejudiciais na formação da identidade negra, atingindo principalmente crianças e jovens. Lilian explica que o cinema, a TV e a publicidade preconizam isso com força. Ela classifica como um genocídio a partir do imaginário. “Quando a metade
da população brasileira não branca chega à idade adulta, já está definitivamente enquadrada – ou você é o feio ou tenta ‘ser’ como aqueles, e faz alguma coisa a respeito – alisa o cabelo, pinta, faz plástica.” Um dos seus projetos mais conhecidos é “Balé de Pé no Chão” que retrata a história de Mercedes Baptista, a primeira dançarina negra do Teatro Municipal do Rio de Janeiro e precursora da dança afro-brasileira. O documentário surgiu de uma conversa com uma amiga estrangeira durante o final de uma aula de dança. Em parceria com a professora de escola, Marianna Monteiro, ela embarcou no projeto que já resultou em diversos prêmios, entre eles o 21º FESPACO – Burkina Faso, Oudgadougou (2009) e o Prêmio Palmares de
Comunicação (2005). No documentário “Eu tenho a palavra”, Lilian faz uma viagem linguística em busca das origens do dialeto falado entre os negros da costa, ainda preservado no bairro da Tabatinga, em Bom Despacho (MG). O idioma é composto por um português rural do Brasil-Colônia e línguas do grupo Banto, com predomínio do mbundu, falado
Cena de “Número e Serie”, de Jessica Queiroz
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A Cor do Cinema Brasileiro
Cena do filme “A Boneca e o Silêncio”, da cineasta Carol Rodrigues.
até hoje em Angola. Dona Fiota, falante da “língua do negro da Costa”, e Amadeu Chitacumula, falante de mbundu, guiam o passeio. “A ideia da produção surgiu em 2010. Á essa altura, já tinha meu interesse bastante focado na história e cultura bantu, o maior grupo de africanos escravizados no Brasil, indo contra um certo ”yorubacentrismo”.
A Periferia por ela mesma
A vida de personagens negros moradores da periferia estão nas histórias de Jessica Queiroz, cineasta e publicitária. Nada de bandidos, traficantes ou mulheres provocantes como foco das histórias. Para ela, as frustrações amorosas, as dúvidas da adolescência, aventuras infantis e mulheres fortes são a essência de seus filmes. Com a idéia de mostrar a
periferia com o olhar de dentro, Jéssica quer desconstruir arquétipos e desmistificar a periferia, o que significa acabar com a caricatura. “A meu ver, nós temos que contar a nossa história. Nós vivenciamos muitas coisas que o cinema nacional tradicional não consegue colocar no roteiro”. Na primeira produção da jovem cineasta, “Vidas de Carolina”, acompanhamos a história de Carolina de Jesus, poeta que levou a vida como catadora de lixo para criar os filhos sozinha na favela do Canindé, zona norte de São Paulo. Carolina registrava em livros que encontrava no lixo suas reflexões e percepções sobre o cotidiano na comunidade e na cidade. O curta de quase dez minutos mescla entrevistas com a interpretação das poesias de
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Carolina, que estão reunidas no livro “Quarto de Despejo”. A produção, nascida em 2013, veio um ano antes do centenário da poeta, o que despertou o interesse pela exibição da produção que já percorreu CEUs, escolas públicas, fábricas de culturas e festivais.
Provocações
A cineasta Carol Rodrigues, 32 anos, sabe o que procura abordar em seus filmes, enredos polêmicos e raramente vistos como aborto, homossexualidade e colorismo, como ela mesmo determina. O objetivo não é chocar, mas um meio de educar, provocar empatia e, como consequência, lutar por transformação social. O primeiro curta, “A boneca e o silêncio”, mostra a solidão de Marcela, uma menina de 14 anos que decide interromper uma gravidez indesejada, mas se vê desamparada diante da situação. Ela decide provocar o próprio aborto. “A solidão é uma das formas mais dolorosas
de opressão. Ela sempre vem acompanhada da violência. A sensação que você não tem quem a recorrer e, por isso, vamos diminuindo, definhando e deixando de ser uma pessoa completa.” A história nasceu de um conto escrito pela própria cineasta, em 2007, quando atuava no movimento feminista. Ao entrar no curso de cinema, encontrou no audiovisual um mecanismo de levantar questionamentos para pontos considerados tabus. O curta ganhou atenção do público e dos festivais, sendo premiado no FESTIN – Festival Itinerante de Língua Portuguesa, Melhor Curta-Metragem no Entretodos – Festival de Curtas de Direitos Humanos da cidade de São Paulo e Melhor curta pelo International Boat of Culture.
84% dos diretores
são do sexo masculino, caucasianos
13% dos diretores
Direção no Brasil
são do sexo feminino, caucasianas
Não há diretoras negras
2% dos diretores são do sexo masculino, negros
4% são negros.
Roteiro No roteiro, o cenário é tão
Já as roteiristas do sexo
preocupante quanto na direção.
feminino são 26%
No Brasil, o número de roteiristas
do total de todos os pesquisados.
do sexo
Destas,
dos pesquisados. Destes, apenas
analisados pelo grupo de pesquisa.
masculino representam 74% do total
não há roteiristas negras dentro dos 412
Identidade de gênero e cor
36%
44%
das atrizes são mulheres brancas
dos atores são homens brancos
14% dos atores são homens negros
4% das atrizes são mulheres negras
Dados retirados da pesquisa “A Cara do Cinema Nacional”, do gemaa (grupo de estudos multidisciplinares de ação afirmativa), da UERJ.
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MÚSICA
1. Histórias da preta - Heloisa Pires A autora conta histórias de Áfricas, com uma linguagem própria para a infância. É um livro para aprenderem sobre o povo que veio das Áfricas, sobre escravidão e sobre como nos tornamos Brasileiros com raiz africana.
Yzalú ficou conhecida em 2012 pela voz marcante e forte na interpretação da música “Mulheres Negras”, mas só agora, em 2016, a artista lançou o primeiro disco “Minha Bossa é Treta”. O álbum praticamente autoral possui 12 faixas de um repertório variado. Yzalú fala de descoberta, esperança, amor, a importância do rap, a força da mulher negra e a realidade das periferias. No disco o rap, que a consagrou, se mistura com outros gêneros como a MPB, samba jazz e afrobeat sempre acompanhados com o som do violão. ...............................................................................................................................................................................................
LITERATURA
CINEMA
Uma onda no ar Baseado na história real da Rádio Favela de Belo Horizonte criada Jorge, Brau, Roque e Zequiel. A rádio logo conquista os moradores por dar voz aos excluídos, mesmo operando na ilegalidade. O sucesso repercute fora da favela, trazendo também inimigos para o grupo. A história mostra a incapacidade da grande mídia de se comunicar com todas as classes da sociedade e revela a força que as comunidades possuem de criar seus próprios serviços.
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Aquém das nuvens O curta de Renata Martins conta a história de Nenê e Geralda, casados há 30 anos. Em uma tarde de domingo, como de costume, ele vai à roda de samba encontrar os amigos. Ao voltar para casa, surpreende-se com uma notícia sobre Geralda. Sem deixar que o ritmo do samba caia, Nenê encontra uma solução para ficar ao lado de sua eterna namorada. É uma história de amor e emociona pelos diálogos simples e ótimas interpretações de Mestre André e Cleide Queiroz.
4.Princesa Violeta - Veralinda Menezes A obra descreve as características dos personagens, negros, sem estereótipos, focando na beleza natural de cada um deles. Comparando a cor da pele dos personagens com chocolate e brigadeiro e os cabelos encaracolados com favos de mel. A princesa violeta luta para proteger seu reino e prova ao seu pai que, mesmo sendo mulher, ela pode ser forte, inteligente e garantir a continuidade de seu reino.
2.O Alegre Canto da Perdiz – Paulina Chiziane Primeira mulher de Moçambique a publicar um romance, Paulina Chiziane conta nesse livro a história de Delfina e Maria das Dores, mãe e filha, mas também a história de muitas mulheres africanas e dos impactos da colonização. O livro retrata conflitos profundos e questões como a miscigenação na África, prostituição e até mesmo a loucura feminina.
3.Os Nove Pentes D’África – Cidinha da Silva O livro conta a história do escultor e contador de histórias Francisco Ayrá, que partilha com os netos nove pentes, como do amor, perseverança e generosidade, perpetuando saberes às novas gerações.
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Boletim de ocorrência Alzira Rufino Mulher negra não pára por essa coisa bruta por essa discriminação morna tua força ainda é segredo mostra tua fala nos poros o grito ecoará na cidade capinam como mato venenoso a tua dignidade ferem-te com flechas encomendadas te fazem alvo de experiências tua negritude incomoda teu redemoinho de forças afoga não querem tua presença risca o teu nome com ausência mulher negra, chega mulher negra, seja, mulher negra, veja, depois do temporal.
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