Revista Fluida
Edição n. 1 Abril de 2022 Brasil
A publicação de arte marginal brasileira.
Capa: “Sozinho”, de Cris Amorim - Pincelada Nômade
Edição n. 1 Abril de 2022 Brasil
Editorial Cá estamos nós na primeira edição da nossa tão esperada Revista Fluida! Este é um trabalho coletivo feito a partir da pura teimosia, para colocar para fora nossos gritos e suspiros, para nos conectar através deste material que foi costurado com muito amor por Tiê. Essa edição foi lançada em março de 2022, depois de já ter tido outras tentativas anteriores, com outros nomes e pessoas envolvidas. Foi um caminho longo até entender que o movimento inicial para a Fluida acontecer teria que sair da forma como está saindo: despretensiosamente, porém com toda verdade e tendo como fundo a conexão que nasce a partir do afeto. Recebemos trabalhos de artistas que já se assumem com este nome e com quem está se descobrindo como “artista” neste momento. Também houve quem entrou em crise ao tentar se inscrever nesta edição e compartilhou o processo. Os processos criativos, assim como as múltiplas leituras de um trabalho são redes complexas de construção, desconstrução e reconstrução. É um exercício que requer tempo, entrega e paciência, além de coragem. Porque quando criamos e nos expomos é como se desnudássemos. Por aqui acredita-se na fluidez da vida e no fortalecimento de nossas raízes. A arte apresentada aqui também acessa esses espaços de auto conhecimento e descoberta. Boa viagem, bons caminhos.
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Revista Fluida - Ed. 1. Abril 22
ABRE CAMINHO
l a r o
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Revista Fluida - Ed. 1. Abril 22
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Sobre nós A Fluida é uma publicação mensal e online feita por e para pessoas que criam, desenham, escrevem, produzem e que muitas vezes deixam esses trabalhos guardados na gaveta. Aqui temos espaço e voz! A Revista Fluida é um projeto criado por Tiê, artista visual e pessoa trans não binária (não se identifica com a dualidade feminino x masculino), cria periférica e umbandista com muito amor e orgulho, depois de já ter tido muitos nomes diferentes e estar sendo gestada há alguns anos. Segundo o dicionário, Fluida é a qualidade do que se expressa com leveza, regularidade, suavidade. Essa revista é também um grito áspero, um berro. E um canto, um choro. Aqui contém luta, luto e amor. Este trabalho dialoga sobre os fluxos de água e de sangue que sustenta nossos corpos. E seguindo o fluxo nasce numa lua nova.
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Apóie este trabalho para que a partir daqui possamos crescer e frutificar.
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Revista Fluida - Ed. 1. Abril 22
Artistas da primeira edição!
Editorial/design gráfico/projeto
Tiê Pires Fotografia
Thayná Pires Ilustrações
Tiê Pires Michelle Mendonça Evelyn Ramos Isadora Xavier Paula Braggion Maria Julia Cris Amorim
Artistas convidadas Escutavisual
Rosa Rosa Escrevivências
Rosie Gomes Luana Ferrari
Poesia
Rafaela Cicarelli Breno Morita
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Antes de mergulhar, dá uma olhada nesse trabalho aqui:
E s c u t a v i s u a l Série Não (descantar) - 2022 Rosa Rosa @pedraflor A "série Não (descantar)" é um registro de processo do que pode a voz em fluxo presente. Voz e flauta. Camada por camada, como o formato de uma cebola cortada ao meio, cada escuta vem de um sentir as vozes próprias e sustentá-las. Não sinto mais vontade de cantar como antes, não sinto mais. O jeito é descantar
"Descantar é entrega. A viagem se mistura com o destino, um fluxo espontâneo com a natureza essencial... sabor de liberdade para nossos bichos" Stênio Mendes
Veja aqui (preferencialmente de fone)
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Prestadora de atenção, artista interlinguagens, educadora e gestora em Ações Culturais e Educativas, gosto do exercício experimental da liberdade e de desfazer jeitos de olhar e escutar as coisas sozinha e no coletivo. Amo estar entre crianças que são pra mim grandes artistas contemporâneas. Experimentar minha voz e minha escuta tem sido chão fértil para minha reexistência nesse mundão.
Bicho-do-mato Tiê
E
nasci numa estrada que não permitia que a gente saísse para brincar de tão grande que ela era. De largura, de tamanho. u
Era uma grande descida e a gente morava quase onde passava a linha do trem. Havia ali o “pontilhão”: a pontezinha de poucos metros que era o topo da montanha russa, por onde tantas vezes passei o mais rápido possível para sentir o friozinho na barriga. Ali havia um mural escrito bem grande: “Bem-vindo a Caucaia”. Crescemos numa vila no ponto mais alto da linha de trem que liga Mairinque a Santos, num lugar chamado Caucaia do Alto (do alto por ser justamente o ponto mais alto).
E também existe a leitura de que esse nome pode ter saído das palavras Kakuaá e Kukaaikoé, do tupi guarani (em tudo idênticas ao falar Carijó, que era a língua do povo originário caucaiano), que significam Enorme e Grande, ou Alto. Já a sabedoria popular contava que Caucaia tinha muitos coqueiros e o povo de lá gritava
Côco, caia do alto!, côco caia do alto, côcaia do alto!
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ficou Caucaia do Alto.
Dizem que esse nome tem alguns significados possíveis. Pode ter a ver com a junção dos termos em tupi guarani ka'a ("mata") e kaî ("queimar"), então mata queimada; Pode ter a ver com o mesmo motivo pelo qual existe uma cidade com este nome (sem o do Alto) no Ceará, que dá nome a uma planta medicinal do alto Amazonas; Revista Fluida - Ed. 1. Abril 22
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É um sentido poético e bonito do nome do nosso lugar. A estrada onde morávamos, que ligava Caucaia às “cidades grandes” de Cotia e São Paulo, era (e ainda é) lugar de passagem de pessoas a pé, de bicicleta, a cavalo, trator, ônibus, caminhão. O trem era meu companheiro mais barulhento da vida. Quando ele passava, levava junto todos os meus pensamentos. Pode ter sido o primeiro contato com algo semelhante à meditação, talvez. A soja e o cheiro de bicho morto (que se confundiam a cada rajada de vento) eram os aromas de todo dia daqueles ares.
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Lá, mesmo sem correntes nem cadeados, os portões não podiam ficar abertos, nem tanto pelo medo de que alguém pudesse entrar (ali todos se conheciam), mas para que as crianças não tivessem acesso ao movimento intenso do pontilhão. Entre nossas casas e a rua havia um espaço considerável e portões pesados de ferro que carregavam em seu desenho Sankofa. Sankofa, um dos adinkra mais conhecidos, significa a sabedoria africana de aprender com o passado para construir o presente e o futuro. Seu símbolo é o pássaro que olha para trás. Essa representação ganhou
estilização gráfica na forma de dois símbolos que transmitem a ideia expressa no provérbio “nunca é tarde para voltar e apanhar aquilo que ficou atrás”. (isso vem de uma pesquisa sobre Abdias Nascimento) O que “trancava” os portões dos terrenos de minha família não eram chaves nem os cadeados, era o peso. Mas um dia eu corri por um desses portões, era bem criancinha, tinha acabado de aprender a andar, talvez. Contam que fui no maior silêncio, abri o portão e só saí correndo pro meio da estrada de Caucaia. Do nada assim. Quis atravessar, ir pro lado de lá.
Amaralina era (e é) intensa, barulhenta e faladeira, rua de passagem, rua de festa, fervo de um bairro jovem, periférico, em crescimento. Meu despertador que antes era o barulho do trem, agora era o toc toc dos saltos altos, de chaves, de pessoas correndo atrasadas, de conversas fragmentadas e de brigas, de brisas. Gente que ouvia música, que cantava, que falava ao telefone. Gente que passava em silêncio e delas só se ouvia os passos pesados. No final da tarde quem passava era o barulho de metal e gente cansada, que só queria pôr aqueles pés logo em casa, livres de sapatos, sutiãs e de amarras.
... De lá fui para outra rua, que era menor, e eu era um pouco maior. Adolesci na Amaralina.
E de gente mais nova que voltava da escola fervendo de hormônio e energia.
Amaralina que vem das águas do mar da praia baiana. O bairro inteiro, o popular Agreste, tem ruas com nomes de praias brasileiras.
Continua...
Tiê já foi Caroline, que já foi Capima. Hoje Tiê é um passarin que ama escrever e acredita que o registro de suas memórias é ferramenta de sobrevivência e fortalecimento em tempos caóticos.
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Paula Braggion Texto e xilogravura: 10
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Hoje eu não dormi. Hoje eu acordei de uma pesada sensação de imersão. Abri os olhos e não vi luz. A janela não me deixou ver nada. Hoje eu caminhei. Caminhei pela rodovia sentindo o sol me esquentar logo cedo. A vontade das pernas de se movimentarem era mais forte que eu. E eu cedi. Cedi a essa vontade de andar. Hoje eu tomei banho e com a água fresca batendo nos meus ombros, o peso foi lavado. O ralo entupiu e a água subiu, cobrindo os meus pés. Como tsunami, a água lavou meus tornozelos e o chão se abriu, levando todo peso pelos encanamentos da casa. Hoje eu li e reli. Me li e reli você. Confundi palavras e comi várias letras, na ânsia de ser. E não fui. Hoje eu caminhei. Andei pelas ruas do meu bairro, sentindo todos os olhares e sentindo todos os cheiros de pássaros mortos e escapamento das motos. Elas desfilam pelo asfalto como se fosse uma dança para todos verem. Eu desci as ladeiras da cidade. Eu fui para o centro na esperança de ver um olhar amigo. E recebi olhos mascarados. Eles me esperavam. Hoje eu comi sorvete. Eu não comia sorvete de casquinha há bastante tempo. Eu não era há bastante tempo. E hoje eu fui. Hoje eu fui chocolate congelado em redemoinho segurada com firmeza pelas minhas próprias mãos. Hoje eu me refresquei com o vento que quase me acabou. Hoje eu fui. Hoje eu sou. Caminhei com os pelos do corpo arrepiados de uma sensação que ainda não sei te explicar. Hoje eu fui olhos e aromas. Hoje eu fui. E ainda não dormi. Ainda me sinto imersa num mar que não tem mais ninguém. Estou sozinha, com todos os seres me espiando lá no fundo do oceano. Hoje eu fui peixe voador. Daqueles que saltam do mar pra chegar um pouquinho mais perto do céu. Daqueles que tem sede de experimentar o que não chega nas águas. Hoje eu ouvi vozes e burburinhos. Tive o corpo seco pela ressaca da noite. Fui ouvida e ouvinte. Vi fotos e me emocionei. Hoje eu fui, saudade.” Revista Fluida - Ed. 1. Abril 22
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você não está só. nós não estamos sós.
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O feminino? Tiê
A
té mesmo a palavra que define o feminino tem a letra O.
- É menino ou menina? disseram no hospital, na escola e na rua, quando na adolescência eu andava por aí sempre de roupas largas.
Ilustrações: Maria Júlia @frogs_like_jelly
- É homem ou mulher? - dizem as crianças e os adultos nas portas dos banheiros, nos postos de gasolina, nas praças, até hoje, todos.os.dias. O olhar que corta, que penetra,
que julga. Aí, quando me lançam esses olhares e eu tento acompanhá-los, procuram por algo no meu corpo que defina meu gênero. E muitas vezes acham as tetas. Nessas horas sinto que meus peitos são tão "decisivos" no grande tribunal da leitura alheia, que o mundo gira em torno disso mesmo: sistemas duais e erotização do corpo. Mesmo sabendo que nem todo olhar tem a intenção de me cortar ou me julgar, hoje ainda é difícil pra mim me deixar olhar com curiosidade pelos olhos do mundo. Meu corpo deveria se sentir menos mutilado com olhares, mas o mundo me trouxe até aqui e não tem como voltar, pelo menos por enquanto. Performar feminilidade ou ser mulher, o que eu estava vivendo até agora? Alguns anos da minha vida dediquei em performar um ser feminino. Revista Fluida - Ed. 1. Abril 22
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Pra mim parecia o "certo". Hoje parece quase culpa católica. A raiva em ser lida como homem na rua, a falta de empatia com meu próprio corpo, o desejo inalcançável em ser aceita em grupos femininos e na família tradicional brasileira, mesmo quase sempre caindo num lugar de objetificação, fetichização e servidão relacional/sexual, sem a menor intenção de aprofundar nos sentimentos e convivências. E nunca entendendo as dinâmicas e disputas em torno dessas "comunidades". Sempre achando que o problema era eu. Tudo isso me fez perceber que (agora sendo bem escrachado) tanto quanto o masculino, pra mim, representava violência e opressão, o feminino representava o inalcançável e performático papel superficial. Mesmo quando tentam desconstruir ou trazer um discurso feminista pro rolê, a mesma lógica continua vigente e atravessando sem dó corpos que não performam uma coisa OU outra. (pausa: aqui, estou falando principalmente de vivências 14
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Ilustrações: Maria Júlia @frogs_like_jelly
trans e não binárias. A crítica é principalmente ao sistema CIS). Quando consegui não sentir mais raiva ao viver a confusão diária de "você é homem ou mulher?", me vi como sou (ou estou sendo): um ser não binário. Fluido. E isso não me fere mais. Dá um baita alívio no coração conseguir chegar nesse lugar. Podem procurar peito, quadril, bunda, volumes, podem caçar pêlo, podem reparar nas tatuagens, nas cicatrizes, nas olheiras que não tento mais disfarçar com maquiagem: tudo isso sou eu.
Tem dia que sangro e me sinto a anciã. Não consigo me referir a mim no masculino nesses dias. Tem outros que preciso ter um sangue no zóio pra seguir em frente e convoco as minhas masculinidades que, mesmo frágeis, estão sendo construídas pouco a pouco aqui dentro. Mas na maioria dos dias não me sinto nesse lugar de gênero, de "A" ou de "O", sabe? Queria apenas ser. Uma coisa meio Gil. Aprender a só-ser. Mas a nossa língua é teimosa e precisa definir os gêneros toda hora. Nos obriga a decidir como queremos ser tratades a cada frase.
E isso me cansa um pouco. Demorei 34 anos pra me achar linde? nem sei se ainda cheguei nisso. Mas foram 34 anos pra me aceitar como sou. E agora a construção é olhar pra essa inteireza, trabalhar no que precisa ser trabalhado e seguir em frente pra receber esse novo ser de dentro pra fora de mim. Honro as raízes femininas familiares e honro a Caroline que me fez vir até aqui. E quebro também esta corrente neste momento para que, daqui onde estou, eu seja visto pela minha inteireza que não quer mais ter que representar algo que não sou.
O Brasil é, pelo 13º ano consecutivo, o país que mais mata pessoas trans e travestis no mundo. E ironicamente é o que mais procura o termo “trans” nos sites de pornografia. Revista Fluida - Ed. 1. Abril 22
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Um pouco de droga, um pouco de salada
M ú s i c a
O que vale a pena ver e ouvir por aí
Afroito - Menga Um dos trabalhos musicais em destaque por aqui é o álbum Menga, do cantor e compositor pernambucano Afroito. É um mergulho poético nas raízes afrobrasileiras.
LAZÚLI - De Lua Lazúli é o novo nome e projeto de Ju Strassacapa, dona de uma potência de voz que abraça a alma. Sem querer querendo passei um aniversário na companhia do álbum novo “De Lua”, fruto mágico de uma imersão de 15 dias com as musicistas Àiyé, Cris Botarelli e Lena Papini, trio com o qual Lazúli coproduziu e arranjou o disco. Coisa linda de ouvir e viver.
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o r t a e T Cavalos pretos são imensos Peça teatral, escrita por Bárbara Ismênia, aborda encarceramento, debate racismo estrutural, violência de gênero e sexualidades. Cavalos pretos são imensos apresenta cinco personagens em situação de cárcere e seus cotidianos marcados por uma rotina por vezes morosa, por vezes agitada. Com nada ou muito pouco a fazer, as personagens conversam sobre muitos temas: o que querem ao saírem dali, as visitas íntimas, as famílias, filhas e filhos, as relações sexo-afetivas ali dentro, as paqueras, as relações de poder, as disputas, os castigos, a saudade. muitas saudades. O espetáculo estreiou em abril no Centro Cultural São Paulo, que lançou recentemente a publicação sobre o trabalho, que pode ser visto aqui.
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Texto e colagem:
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Evelyn Ramos
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meses sem minha mãe. toda vez q eu vejo uma notícia sobre propostas de vacinas que foram recusadas por esse governo funesto meu peito dói de tanta revolta (vem a revolta, a negação, a tristeza, às vezes parece q tudo vem a mesmo tempo. o luto é um processo conturbado e oscilante). e pra quem dizia q eu era muito “radical” quando se tratava de política, imagine agora. estou mais radicalizada do que nunca. mas hoje estou postando minha mãe criança com flores - orquídeas, sua flor preferida - pq preciso me
desgarrar um pouco dessa raiva (sem deixar de cultivala, porque ela é necessária para levar à ação) e ter um momento de leveza, até pra me revigorar e ir à luta, deixando a revolta pulsar dentro de mim. brutalidade o tempo todo é exaustivo. todos nós precisamos de um pouco de poesia. já dizia Trotsky: “Ela virá, a revolução, e trará ao povo não só direito ao pão, mas também à poesia”. e claro: FORA GENOCIDA! Revista Fluida - Ed. 1. Abril 22
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E s c r e v iv ê nc i a s * Luana Ferrari Eu sou uma mãe que escreve eu sou Luana antes de ser mãe, eu sou Luana sempre gostei de escrever, rabiscar umas linhas com as minhas ideias e palavras com os meus versos e sentidos sinto falta de ser Luana ser mãe tem consumido quem sou, minha essência, meu soul ser mãe foi a melhor e a pior coisa que me aconteceu ser mãe consumiu meu ser onde estou EU? me perdi nas entranhas da maternagem me perdi nas entranhas de mim mesma me perdi tentando me achar na/e/o Outra/e/o me per-di
Desenho: Isadora Xavier 20
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me achei me achei ao me re-reencontrar comigo mesma me achei ao ser morada de dois corpo, que ao saírem dividiram meu corpo ao meio por mil me achei ao me perder de mim sou mãe sou filha sou neta EU sou uma mãe, uma mãe que escreve 06/Outubro/2020 Texto Pandêmico - Pandemia da covid19
* A escritora brasileira Conceição Evaristo chama de “escrevivência” a escrita que nasce do cotidiano, das lembranças, da experiência de vida do povo negro brasileiro, principalmente as mulheres.
Luana Ferrari dos Santos Filha, neta, mãe. Luana Ferrari dos Santos nasceu em São Paulo, nos meados da década de 1980. Fruto da segunda geração de pessoas nascidas na terra da garoa, Luana traz em sua vivência fortes traços de seus antepassados vindos de Pernambuco, da Bahia, das Minas Gerais e do norte da Itália. Filha de pais negros e periféricos Luana cresceu convivendo com familiares, amigas e amigos, num ambiente onde as celebrações eram em sua maioria regadas a muita comida, o bom e velho samba, entre dias de luta e dias de merecido descanso da classe trabalhadora do país. Luana é mãe de Gaia Mariah e Indra Mayu, doula, inquieta, questionadora, corpo-brincante-dançante, das águas, vem desenvolvendo sua pesquisa para seguir na construção transdisciplinar de sua trajetória de vida, bem como de sua atuação profissional. Revista Fluida - Ed. 1. Abril 22
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Escrevivências
Rosie Gomes Fotografia: Thay Pires
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uando Tiê me fez o convite para escrever para Fluida, me perguntei sobre o que eu queria falar, e diante de tantas opções, me perdi e não consegui escolher. Decidir sobre algo, fazer uma escolha, sempre foi uma tarefa difícil para mim. Quando eu era mais jovem, brincava sozinha de me imaginar como um dos instrumentos que apareciam nas músicas que eu gostava de ouvir. Era muito difícil ter que escolher apenas um instrumento para expressar, e o que acontecia muitas vezes, era que eu fazia uma dança maluca tentando manifestar todos os instrumentos de uma só vez. “Não quero dinheiro (Só quero amar)”, do Tim Maia, é uma música que eu sinto uma sensação incrível de vida e de potência, quando ouço, canto e danço. Essa mesma sensação chega em mim através de “I Wanna Be You Are”, José Feliciano. O violão e a flauta na música do Feliciano, atravessam a minha racionalidade, e meu coração transborda coragem e ousadia. No violino e o (acho que) trompete na música do Tim, eu fecho os olhos e, cada segundo parece uma eternidade, prazer único. Revista Fluida - Ed. 1. Abril 22
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Ultimamente, eu tenho esgotado o “botão” da “repetição” e posso escolher, com tranquilidade, o instrumento que eu quero dançar, quantas vezes eu desejar. A escolha, para mim, é um passo antes da decisão, e é a consciência de saber que não vou ter essa opção “repetir”, que me causa ansiedade, angústia, sofrimento. Numa busca de me entender com a vida e com os vários aspectos que ela me apresenta, conheci alguns recursos que me orientam e harmonizam as emoções, nesses momentos de conflitos internos. Vou citar os três que estão mais presentes na minha rotina diária. Respiração profunda é um recurso que tranquiliza o meu corpo físico, quando estou em estado de ansiedade ou excitação inesperada. Meditação me ajuda quando preciso do silêncio externo, para ouvir os barulhos secretos da minha alma e do meu coração. Movimento Vital Expressivo, que me proporciona encontros incríveis com os meus vários eus, dos quais me apego ou me liberto. Eu escolho.
*Dia desses, tomei uma decisão, vapt vupt, peguei a estrada e fui. O que me move? Pergunto a mim mesma...
Rosie é uma irmã e uma amiga que a vida me deu, mulher forte que vê coração em tudo. Rosie gosta de procurar figuras nas nuvens, nas paisagens. Quase sempre vê paixão e amor. Ela é mãe da Rosa (que não vive nesse plano) e de mais três (Rica, Rafa e Rei) e hoje vive no meio do mato e em conexão com a terra e o tempo. Companheira de todas as horas, nos conectamos nessa vida de maneira visceral, literalmente. Conheçam Rosie, minha parceira, voz de grande potência nesse mundo, nos dias de hoje. (Texto de Tiê) 24
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Arte: Pincelada Nômade
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A revolta ecoa Rafaella Cicarelli
Esse looping que chamamos de vida virou rotina infinita O salário do proletário é o cansaço de cada dia O dinheiro mal dá pra comida muito menos pro presente da filha Triste vida sofrida Eles não veem sua correria julgam sua cor com muita ousadia Vivem em bairros nobres e urbanizados enquanto há ruas que nem tem asfalto Cuidado é fato, eles andam armados se olham pra mim acham que é assalto Mas eu grito alto, não quero enquadro! Eu venho do alto e não me rebaixo O buraco é mais baixo e bem mais profundo cadê a prefeitura não tapa esse furo Poesia falada que abala os mundos agora estudados conquistamos tudo Educação sem competição
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Existe talento e dedicação a diferença é a condição os ricos têm e os pobres não O amor existe e não é valorizado A arte resiste com os dedos cortados
Ilustração: Tiê (2012)
Na natureza resiliência Na sociedade muita premência A ganância é o pior dos pecados falsos justos políticos no ato carro estacionado motorista parado Tempo congelado com ar condicionado Não sei o que é isso tenho bicicleta O Sol que ilumina reflete na testa Às vezes confunde e me deixa cega Não muda as buzinas que levo na pressa muitos dizem que isso é sequela que é culpa da roupa que veste a donzela onde há paz não existe guerra Revolta do povo que cansou da miséria.
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Anna contra os nazi Texto e colagens:
Michelle Mendonça
“nós vamos destruir tudo que você ama e tudo que chama “amor” nós vamos destruir…” Apocalipse Queer ou Cuíer A.P. (ou oriki de Shiva) Tatiana Nascimento
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A
série de colagens foi criada a partir da ideia do dia D, o qual finalmente os aliados em 6 de junho de 1944 invadiram a costa da Normandia, e puderam assim libertar a França do domínio nazista. No entanto, a guerra só acabaria em 1945.
O totalitarismo instaurado pelo regime fascista alemão tem seu eco até hoje, quase cem anos depois. As ideias, os símbolos e principalmente o discurso de ódio contra minorias. Sendo elas: Judeus, deficientes, mulheres, afrodescendentes, LGBTQIA+ e todos que não inspirassem a tal teoria eugenista criada na época para segregar e selecionar pessoas com genes tidos como supostamente melhores para criar a raça pura ariana. Era a teoria do “Bem nascido”, embasada no ódio, e que muita gente aderiu, inclusive no Brasil dos anos 20. E por muitos anos, enquanto a guerra se desenrolava, esses grupos foram exterminados como se carregassem um alvo nas costas, simplesmente por existirem. Assim como a Anna. O corpo desnudo é protesto, resistência e luta, os pixels é novo campo de batalha. E o encontro de recortes digitais rumam a liberdade. Sim, ela está pronta. É o dia Q, o apocalipse Queer chegou e essas bixas matam fascistas. Michelle Mendonça é artista visual.
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O outro Breno Morita Lágrima Logro A vontade do lodo no pé de apoio. Umidade Do dedo ao olho. Anda! Avança! Vão-se os pés, Ficam as botas.
Arte: Tiê
Quem Passa a existir Quando tomo consciência De mim?
Matéria limita matéria Ideia limita ideia O resto é transbordo (não metafísica) Anunciação do corpo: Quem passa a existir Quando tomo consciência de mim?
O silêncio confere sentido, né!? – A pausa – Quem continua a existir Quando me ausento de mim? – A pausa – mas agora é outra.
... não ... Tem um canto... Tem um jeito... Tenta de novo...
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Arte: Pincelada Nômade
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Pandemia ano 2 Breno Morita
Imagens dançam em minhas cavernas. Projetos de vidas me chamam, Lampejam lambidas da porta pra dentro da porta pra fora. Línguas de fogo Desenham desejos mexendo dançantes nos dentes e cantos. Enquanto escorrem sucos nos sulcos da pele como trilhas no mato, Pernas se emaranham em histórias e nos lábios mordidos o gosto das palavras não ditas. E nisso se toca o avesso e Se molha fértil A cova rasa de onde nascem o vil e o belo. Muitas coisas se passam Até se chegar a ser quem se é Hoje Muitas coisas nos passarão Para nós chegarmos até nós Amanhã
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Meu corpo é um coletivo Que corre selvagem, sobe livre e Cai em vertigem Essa vida coletiva Esse amor transbordante Esse outro tão distante
Há de se considerar o incontável, aceitar o imponderável. Viver de mãos dadas com as ruínas como quem se vê pelos olhos das eras. Arte: Tiê
Arte: Pincelada Nômade
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Eu Breno Morita
Eu sou o resultado daquilo que vive através de mim; Sou o resíduo dos meus sonhos. Minha opacidade visível É o que sobrou da ressaca dos mares, Suspensão do que a gravidade quis por abaixo. Sou imaturo porque sou muito mais o que ainda não nasceu do que esse resto de inércia ambulante de tudo aquilo que foi e que já não serve mais. Sou aquilo antes do tudo, aquilo que ainda não é. Amo em mim a parte que não tem nome, Me perfaço por tudo aquilo que só existe quando é tocado, Da casca, eu sou, hoje, o vão da rachadura.
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Ser-noite Breno Morita Sou noite, sou a que abriga aos feios e abjetos. Sou noite, sou para além da margem do visível. Sou aquela que só pode ser tocada pelo espírito. Sou noite, podem estender sobre mim sóis, lanternas e lamparinas. Muda o meu tamanho, não muda o que me habita. Sou a presença intensiva do que vive através de mim. Sou o que em mim vive. Sou o que em mim se crê possível. Ser-descanso: o outro lado da luz que vem de fora. Contra a luz que só permite ver refletindo e debatendo-se sobre a superfície do outro, Sou noite.
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