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REVISTA LÍRICA DIGITAL Revista Literária 01- MARÇO, 2018


Sumário

ENTREVISTAS � Linhas Raras- Transcrição da Entrevista de Clarice Lispector, concedida em 1977 a TV Cultura. � Luas de Recife- Transcrição da Entrevista de Clarice Freire ao site Heloisa Tolipan. Indicações- Indicações Literárias � Literações � Literanota Artigos O (in)consciente caos de Clarice- Uma abordagem sobre o hibridismo literário presente na obra Água Viva de Clarice Lispector Curiosidades � Bisbilhotice Literária Ensaio- A importância da literatura Portuguesa para a formação literária Brasileira. Literatudo


Linhas Raras *Entrevista concedida ao jornalista Júlio Lerner, em 1 de fevereiro de 1977, para o programa “Panorama”, da TV Cultura, de São Paulo.

Clarice Lispector, de onde veio esse Lispector? É um nome latino, não é? Eu perguntei a meu pai desde quando havia Lispector na Ucrânia. Ele disse que há gerações e gerações anteriores. Eu suponho que o nome foi rolando, rolando, rolando, perdendo algumas sílabas e foi formando outra coisa que parece “Lis” e “peito”, em latim. É um nome que quando escrevi meu primeiro livro, Sérgio Milliet (eu era completamente desconhecida, é claro) diz assim: “Essa escritora de nome desagradável, certamente um pseudônimo…”. Não era, era meu nome mesmo. Você chegou a conhecer o Sérgio Milliet pessoalmente? Nunca. Porque eu publiquei o meu livro e fui embora do Brasil, porque eu me casei com um diplomata brasileiro, de modo que não conheci as pessoas que escreveram sobre mim. Clarice, seu pai fazia o que profissionalmente?


Representações de firmas, coisas assim. Quando ele, na verdade, dava era para coisas do espírito. Há alguém na família Lispector que chegou a escrever alguma coisa? Eu soube ultimamente, para minha enorme surpresa, que minha mãe escrevia. Não publicava, mas escrevia. Eu tenho uma irmã, Elisa Lispector, que escreve romances. E tenho outra irmã, chamada Tânia Kaufman, que escreve livros técnicos. Você chegou a ler as coisas que sua mãe escreveu? Não, eu soube há poucos meses. Soube através de uma tia: “Sabe que sua mãe fazia um diário e escrevia poesias?” Eu fiquei boba… Nas raras entrevistas que você tem concedido surge, quase que necessariamente, a pergunta de como você começou a escrever e quando? Antes de sete anos eu já fabulava, já inventava histórias, por exemplo, inventei uma história que não acabava nunca. Quando comecei a ler comecei a escrever também. Pequenas histórias. Quando a jovem, praticamente adolescente Clarice Lispector, descobre que realmente é a literatura aquele campo de criação humana que mais a atrai, a jovem Clarice tem algum objetivo específico ou apenas escrever, sem determinar um tipo de público? Apenas escrever. Você poderia nos dar uma ideia do que era a produção da adolescente Clarice Lispector? Caótica. Intensa. Inteiramente fora da realidade da vida. Desse período você se lembra do nome de alguma produção?


Bem, escrevi várias coisas antes de publicar meu primeiro livro. Eu escrevia para revistas — contos, jornais. Eu ia com uma timidez enorme, mas uma timidez ousada. Eu sou tímida e ousada ao mesmo tempo. Chegava lá nas revistas e dizia: “Eu tenho um conto, você não quer publicar?” Aí me lembro que uma vez foi o Raimundo Magalhães Jr. que olhou, leu um pedaço, olhou para mim e disse: “Você copiou isso de quem?” Eu disse: “De ninguém, é meu”. Ele disse: Você traduziu?” Eu disse: “Não”. Ele disse: “Então eu vou publicar”. Era sim, era meu trabalho. Você publicava onde? Ah, não me lembro… Jornais, revistas. Clarice, a partir de qual momento você efetivamente decidiu assumir a carreira de escritora? Eu nunca assumi. Por quê? Eu não sou uma profissional, eu só escrevo quando eu quero. Eu sou uma amadora e faço questão de continuar sendo amadora. Profissional é aquele que tem uma obrigação consigo mesmo de escrever. Ou então com o outro, em relação ao outro. Agora eu faço questão de não ser uma profissional para manter minha liberdade. A sua produção ocorre com frequência ou você tem períodos? Tenho períodos de produzir intensamente e tenho períodos-hiatos em que a vida fica intolerável. E esses hiatos são longos? Depende. Podem ser longos e eu vegeto nesse período ou então, para me salvar, me lanço logo noutra coisa, por exemplo, eu acabei uma novela, estou meio oca, então estou fazendo histórias para crianças.


Como você explica a Clarice Lispector voltada para a literatura infantil? Começou com meu filho quando ele tinha seis anos, seis ou cinco anos, me ordenando que escrevesse uma história para ele. E eu escrevi. Depois guardei e nunca mais liguei. Até que me pediram um livro infantil. Eu disse que não tinha. Eu tinha inteiramente esquecido daquilo. Era tão pouco literatura para mim, eu não queria usar isso para publicar. Era para o meu filho. Aí lembrei: “Bom, tenho, sim”. Então foi publicado. Foram publicados três livros de literatura infantil e estou fazendo o quarto agora. É mais difícil você se comunicar com o adulto ou com a criança? Quando me comunico com criança é fácil porque sou muito maternal. Quando me comunico com o adulto, na verdade, estou me comunicando com o mais secreto de mim mesma. O adulto é sempre solitário? O adulto é triste e solitário. E a criança? A criança tem a fantasia solta. A partir de que momento, de acordo com a escritora, o ser humano vai se transformando em triste e solitário? Ah, isso é segredo. Desculpe, não vou responder. A qualquer momento da vida, basta um choque um pouco inesperado e isso acontece. Mas eu não sou solitária. Tenho muitos amigos. E só estou triste hoje porque estou cansada. No geral sou alegre. Normalmente o contato do jovem estudante com você revela que tipo de preocupação? Revela coisas surpreendentes, que eles estão na minha.


O que significa “estar na sua”? É que eu penso às vezes que eu estou isolada e quando eu vejo estou tendo universitários, gente muito jovem, que está completamente ao meu lado e é gratificante, não é? Nós ouvimos com frequência que as novas gerações pouco leem no Brasil. Você confirma isso? Bem, os universitários são obrigados a ler porque impõem a eles a obra. Agora não estou a par dos outros. De seus trabalhos qual aquele que você acredita que mais atinja o público jovem? Depende. Por exemplo, o meu livro “A Paixão Segundo G.H”, um professor de português do Pedro II veio até minha casa e disse que leu quatro vezes e ainda não sabe do que se trata. No dia seguinte uma jovem de 17 anos, universitária, disse que este é o livro de cabeceira dela. Quer dizer, não dá para entender. E isso acontece em relação a outros trabalhos seus? Também em relação ao outros trabalhos, ou toca ou não toca. Suponho que não entender não é uma questão de inteligência e sim de sentir, de entrar em contato. Tanto que o professor de português e literatura, que deveria ser o mais apto a me entender, não me entendia. E a moça de 17 anos lia e relia o livro, não é? O que é um alívio. Antes de nos encontrarmos aqui no estúdio você me dizia que está começando um novo trabalho agora, uma novela… Não, eu acabei a novela. Que novela é essa, Clarice? É a história de uma moça que só comia cachorro-quente. A história é de uma inocência pisada, de uma miséria anônima…


O cenário dessa novela é… É o Rio de Janeiro… Mas o personagem é nordestino, é de Alagoas… Onde você foi buscar a inspiração, dentro de si mesma? Eu morei no Recife, me criei no Nordeste. E depois, no Rio de Janeiro tem uma feira de nordestinos no Campo de São Cristóvão e uma vez eu fui lá. E peguei o ar meio perdido do nordestino no Rio de Janeiro. Daí começou a nascer a ideia. Depois eu fui a uma cartomante e ela disse várias coisas boas que iam acontecer e imaginei, quando tomei o táxi de volta, que seria muito engraçado se um táxi me atropelasse e eu morresse depois de ter ouvido todas aquelas coisas boas. Então a partir daí foi nascendo também a trama da história. Qual o nome da heroína da novela? Não quero dizer. É segredo. E o nome da novela, você poderia revelar? Treze nomes, treze títulos. Rilke, em seu livro “Cartas a um Jovem Poeta”, respondendo a uma das missivas, pergunta a um jovem que pretendia se tornar escritor: se você não pudesse mais escrever, você morreria? A mesma pergunta eu transfiro a você. Eu acho que, quando não escrevo estou morta. Esse período? É muito duro, esse período entre um trabalho e outro, e ao mesmo tempo é necessário para haver uma espécie de esvaziamento para poder nascer alguma outra coisa, se nascer. É tudo tão incerto… Clarice, mas como é que você escreve? Existe algum horário específico?


Em geral de manhã cedo. As minhas horas preferidas são as da manhã. Você acorda a que horas? Quatro e meia, cinco horas. Fico fumando, tomando café, sozinha sem nenhuma interferência. Quando estou escrevendo alguma coisa eu anoto a qualquer hora do dia ou da noite, coisas que me vêm. O que se chama inspiração, não é? Agora quando estou no ato de concatenar as inspirações, aí sou obrigada a trabalhar diariamente. Você se considera uma escritora popular? Não. Por qual razão? Me chamam de hermética. Como é que eu posso ser popular sendo hermética? E como você vê esta observação “hermética”? Eu me compreendo. De modo que não sou hermética para mim. Bom, tem um conto meu que não compreendo muito bem… Que conto? “O ovo e a galinha”. Entre seus diversos trabalhos existe um filho predileto. Qual aquele que você vê com maior carinho até hoje? “O ovo e a galinha”, que é um mistério para mim. Uma coisa que eu escrevi sobre um bandido, um criminoso chamado Mineirinho, que morreu com três balas quando uma só bastava. E que era devoto de São Jorge e que tinha uma namorada. Sobre esse seu trabalho em torno de Mineirinho, qual o enfoque você deu?


Eu não me lembro muito bem, já faz bastante tempo. Há qualquer coisa assim como “o primeiro tiro me espanta, o segundo tiro não sei o que, o terceiro tiro…” Eu me transformei no Mineirinho, massacrado pela polícia. Qualquer que tivesse sido o crime dele uma bala bastava, o resto era vontade de matar. Era prepotência. Em que medida o trabalho de Clarice Lispector no caso específico de Mineirinho pode alterar a ordem das coisas? Não altera em nada. Eu escrevo sem esperança de que o que eu escrevo altere qualquer coisa. No seu entender, qual é o papel do escritor brasileiro hoje? De falar o menos possível Você tem mantido contato como outros escritores? Eventualmente. Quais aqueles que você acredita serem os mais significativos? Eu prefiro não citar nomes porque eu vou esquecer alguns e vai ofender, vai ferir. Assim, eu não cito ninguém. Você discute muito com a Clarice Lispector escritora? Não. Eu me deixo ser… E convivem em paz? Ás vezes não em paz, mas… Normalmente, que tipo de problema a Clarice Lispector escritora traz a você? Às vezes o fato de me considerar escritora me isola.


Por qual razão? Me põe um rótulo. E você acredita que as pessoas olham para você através desse rótulo? Às vezes através desse rótulo. Tudo o que eu digo, a maior bobagem, é considerada como uma coisa linda ou uma coisa boba. É por isso que não ligo muito para essa coisa de ser escritora e dar entrevistas e tudo. Você acredita que uma pessoa vá a uma livraria comprar especificamente um livro de Clarice Lispector? Parece que isso acontece. Eu sei porque às vezes me telefonam e me perguntam em que livraria encontram meu livro. Então eu sei que tem pessoas que vão procurar exatamente o meu livro. É que no fundo eu escrevo muito simples, sabe? Será que as coisas simples hoje são recebidas de maneira complicada? Talvez, talvez… Eu escrevo simples. Eu não enfeito. Na sua formação como escritora quais aqueles autores que você sente que realmente lhe influenciaram, que marcaram? Eu não sei realmente porque misturei tudo. Eu lia romance para mocinhas, livro cor-de-rosa, misturado com Dostoiévski. Eu escolhia os livros pelos títulos e não pelos autores. Misturei tudo. Fui ler, aos treze anos, Hermann Hesse, [o romance] “O Lobo da Estepe”, e foi um choque. Aí comecei a escrever um conto que não acabava nunca mais. Terminei rasgando e jogando fora. Isso ainda acontece de você produzir alguma coisa e rasgar? Eu deixo de lado… Não, eu rasgo sim. É produto de reflexão ou de uma emoção?


Raiva, um pouco de raiva. De quem? De mim mesma. Por que, Clarice? Sei lá, estou meio cansada. Do quê? De mim mesma. Mas você não renasce e se renova a cada trabalho novo? Bom, agora eu morri. Mas vamos ver se eu renasço de novo. Por enquanto eu estou morta. Estou falando do meu túmulo.

Entrevista concedida ao jornalista Júlio Lerner, em 1 de fevereiro de 1977, para o programa “Panorama”, da TV Cultura, de São Paulo.


Luas de Recife *Por Fabiane Pereira Clarice é pernambucana, arretada e cresceu repleta de influências artísticas – pra se ter uma ideia: “Meu pai frequentava a casa de Ariano (Suassuna) e, com frequência, eu ia com ele nessas visitas”, relembra. A jovem e bemsucedida escritora também é prima do premiado poeta Marcelino Freire, uma das primeiras pessoas que leram seus versos e a incentivaram. Conheci Clarice Freire pessoalmente na Bienal do Livro do Rio de Janeiro ano passado. A empatia foi instantânea. Este ano, voltei a entrevistá-la no último sábado na Bienal do Livro de São Paulo (que vai até dia 4 de setembro no Pavilhão do Anhembi) e foi muito bom constatar que seu segundo livro, “Pó de Lua nas Noites em Claro” (editora Intrínseca), já me apontava: seu amadurecimento como poeta. No livro, Clarice coloca a “noite” como protagonista. É a partir da meia-noite, quando as ruas se calam e as pessoas se recolhem, que a poesia de Clarice desperta para correr solta madrugada afora, explorando a liberdade da noite e se aprofundando em seus muitos mistérios. Em sua vigília criativa pela noite adentro, prosa e verso se encontram nas horas silenciosas que antecedem o amanhecer. Percorrendo becos e avenidas cheias de prédios, Clarice conduz os leitores por uma viagem cheia de personagens carismáticos — às vezes delirantes. Aqui, uma entrevista sincera, quase um tricô entre amigas, com Clarice Freire. O sucesso desta escritora engajada que olha o outro com um amor intrínseco e sincero, está só começando. Em breve, ouviremos muito falar sobre ela e seus projetos sociais. Afinal, desde sempre, sabemos que a poesia não muda o mundo. Quem muda o mundo são as pessoas. A poesia só muda as pessoas. FP:

Clarice,

como

a poesia

entrou na

sua

vida

pessoal

e

profissionalmente? CF: Desde muito cedo. É parte de mim de uma forma muito literal. Meu pai é


escritor, compositor… e minha mãe ilustra muito bem. Para estar com eles, brincava de desenhar e de escrever, acredito que a imagem e a escrita se misturaram como uma coisa só dentro de mim e saiu uma poesia desenhada. Profissionalmente acabei entrando no mundo da publicidade e propaganda, como redatora. Trabalhei muito tempo no mercado publicitário, o que me ensinou muito sobre criatividade e o poder da síntese. Mas entre um job e outro na agência, não parava de desenhar as minhas poesias, até criar o blog (jogava tudo que fazia no lixo, meus colegas de trabalho descobriram e me “obrigaram” a criar o Pó de Lua). Foi assim que minha escrita despretensiosa começou a tomar um corpo profissional. FP: Os processos de produção dos seus dois livros foram muito diferentes?
Se sim, em que eles se diferenciam? Se não, nos conte como foi o processo de produção de ambos (a escolha das ilustrações e dos poemas). CF: É difícil falar em diferenças porque cada processo foi único. Cada livro é um retrato diferente da mesma alma, por assim dizer. O intervalo entre um livro e outro foi de dois anos. O primeiro foi fruto de um trabalho que já vinha sendo feito há alguns anos e poesias inéditas, divididas nas fases da Lua. O segundo veio do zero e misturou bastante prosa com a poesia desenhada. Outra diferença é o contexto: este é, de maneira poética, a “saga” de uma personagem insone que sai pela noite em busca de si mesma. O livro começa à meia-noite e termina às cinco da manhã. As poesias foram escolhidas e criadas de acordo com o que definir ser o espírito daquela hora da madrugada. O “Noites em Claro” também tem muita prosa, o que é uma novidade. FP: Seu segundo livro, “Pó de Lua nas Noites em Claro” traz poemas mais maduros além de versos não ilustrados. O que mudou na Clarice do livro de estreia para a escritora consagrada nas redes sociais e no mercado

editorial

com

este

segundo

livro?

CF: Acho que o processo de amadurecimento da vida acaba passando para as páginas. É impossível ser diferente. Neste tempo aprendi, como diria Carrero, que “a literatura salva” e transforma qualquer noite em claro. Minha relação com meu trabalho também amadureceu comigo, acredito, do livro de estreia


pra cá. Hoje tenho muito mais consciência da minha voz, do que quero dizer…o “como” é que é uma constante transformação e isso é uma maravilha! FP: Quando você cria seus poemas ilustrados, você os cria pensando nas imagens que eles podem ter já visando a promoção deles através dos compartilhamentos nas redes sociais ou estes shares são consequências naturais

de

uma

criação

isenta

desta

perspectiva?

CF: Sou uma criatura de pensamento bagunçados, eles não param. O que sai em forma de poesia não poderia ter tanta ordem assim…eu não tenho a imagem nem a palavra definidas. Algumas vezes, primeiro vem a palavra. Outras, a imagem. Muitas, só a palavra ou só a imagem. Se ficasse presa ao que agrada nas redes sociais, teria um limitador e um limitador é terrível para que algo verdadeiro nasça. Gosto, nesse caso específico, de ser fora de ordem. FP: Você cresceu numa família de artistas (além dos pais, Clarice é sobrinha do poeta Marcelino Freire e irmã da cantora Sofia Freire). Como os

atravessamentos

artísticos

influencia

sua

escrita?

CF: Completamente! É tudo orgânico, tão parte da nossa vida quanto arroz e feijão. Lá em casa a arte é da família mesmo, pessoa de perto. Eu não sei o que é viver sem mergulhar na música, no teatro, na literatura. Meus pais me criaram assim, graças a Deus. rsrs.

FP: Pernambuco é celeiro de talentos musicais. Há mais de duas décadas vem lançando ritmos/gêneros musicais e bandas/artistas para o Brasil. Como a música te influenciou artisticamente e te influencia no dia a dia? CF: Tenho um orgulho imenso do caldeirão criativo que ferve na minha terra. A influência da música em mim veio também desde a infância, porque meu pai é parceiro de Antônio Nóbrega e costumavam compor lá em casa. Meu pai com papéis, Nóbrega com seus instrumentos, eu queria me meter. Eles me mandavam inventar partes da música. Depois, no Carnaval, via a multidão cantar o que eles estavam fazendo lá em casa e isso sempre foi mágico. Tinha uma mania de desenhar ouvindo Djavan quando criança (gostava quando ele pedia o dragão emprestado a São Jorge). Depois Lenine, o Sá Grama, eram


paixões da minha terra. Hoje eu só escrevo ouvindo música! Beirut, Kings of Convenience, Versos que Compomos na Estrada, minha irmã tocando piano na sala e milhares de outros. FP:

Até

que

ponto

sua

escrita

é

autobiográfica?

CF: Do ponto de partida ao ponto de chegada. E não é ao mesmo tempo. Existe na minha escrita uma “personagem” que fala coisas que eu gostaria de dizer e não digo, vai a lugares que não vou…mas esses lugares, essas palavras, são meus, minhas. Ou dela? Vai saber. FP: Quais outras poetas contemporâneas inspiram você e sua arte? CF: Sou apaixonada pela Cecília Meireles. Quando adolescente, li uma poesia dela chamada “Lua Adversa” e me encantei completamente. Comecei a procurá-la em toda parte e desde então Cecília me acompanha. Gosto muito das crônicas e dos contos de Clarice Lispector e sou particularmente fã da Adriana Falcão. Micheliny Verunsky é genial. FP: Quais são, na sua opinião, as maiores limitações impostas pela nossa sociedade a uma mulher (seja ela escritora ou não)? E de que maneira você

acha

que

se

pode

mudar

esta

conjuntura?

CF: Falar só sobre este assunto já daria, infelizmente, um livro. São muitas as limitações e elas têm um contexto histórico tão enraizado na nossa sociedade que de fato teria milhares de coisas a dizer. Vou falar apenas algumas. Ser mulher é um vôo profundo a lugares que só nós somos capazes de ir, é uma dádiva. Ao mesmo tempo é um absurdo perceber o quanto ainda estamos longe, muito longe, de uma verdadeira igualdade. A igualdade que acredito não faz da mulher e do homem criaturas iguais: nossas diferenças são lindas. Mas de direitos iguais. Isso devia ser óbvio. Como, no mundo de hoje, ainda ganhava metade do salário da minha dupla de criação (homem, claro) na época de agência, tendo o mesmo tempo de experiência que ele? Como é possível que não possa andar pela rua sem me sentir ameaçada a cada olhar, cada assédio que sofremos para ir até a esquina? Nossas limitações começam a partir do momento em que qualquer homem acha que tem o direito de impor qualquer coisa ou invadir uma mulher, ou desacreditar nela profissionalmente simplesmente porque ela é mulher. Isso não faz o menor sentido. Acredito que estamos em tempo de, finalmente, começar a falar, a lutar, a questionar. Isso é


fundamental. Por isso não abro mão do olhar e da voz feminina que existe no meu trabalho: ela existe em mim. E com orgulho! FP: Quais conselhos você daria a alguém que, como você, deseja viver da própria

escrita?

CF: Ser verdadeiro. Acima de tudo buscar verdade na sua escrita, no seu trabalho. A internet é um meio maravilhoso de divulgação, eu sou um exemplo disso! Mas pode ser um terreno perigoso de “troco likes” , no qual muitos querem agradar a todo custo. Outra coisa: ler, estudar, mostrar seu trabalho a quem entende.


Clarice Freire.


Livros de Clarice Freire


INDIC AÇ ÕES

� LITERAÇ ÕES Através de enquete realizada nas redes sociais de Kaline Lima, foram questionadas aos seus . amigos quais seriam as obras, que na opinião deles seriam obras literárias indispensáveis para a formação literária dos jovens.


Abaixo listamos as obras mais* indicadas:

Dom Casmurro O Cortiço Iracema Memórias Póstumas de Brás Cubas Senhora Amar verbo intransitivo Felicidade Clandestina . A hora da Estrela Capitães de Areia Fogo Morto O Quinze Vidas Secas Fernando e Isaura Memórias do Cárcere *Listamos apenas as obras que tiveram mais de 5 indicações para que a seção não ficasse demasiadamente extensa.


� LITERANOTA

(Seção composta de pequenos textos/ frases/fragmentos de obras)

Andorinha lá fora está dizendo: — “Passei o dia. à toa, à toa!”

Andorinha, andorinha, minha cantiga é mais triste! Passei a vida à toa, à toa...

� MANUEL BANDEIRA In Libertinagem, 1930

“Somos todos escritores, só que alguns escrevem e outros não.” José Saramago.


O (in)consciente caos de Clarice- Uma abordagem sobre o hibridismo literĂĄrio presente na obra Ă gua Viva de Clarice Lispector. Por Maria Kaline


A escolha pela obra literária água-viva foi desde o inicio desafiadora. Clarice possui um tipo de escrita muito único e singular. A própria Clarice já no inicio da obra, nos adverte sobre a leitura que está por vir, um livro denso e sem divisão de capítulos, onde um personagem que não se identifica, escreve pra um “alguém” que não interage, só a “escuta”. Não se compreende música: ouve-se. Ouve-me então com teu corpo inteiro. Quando vieres a me ler perguntarás por que não me restrinjo à pintura e às minhas exposições, já que escrevo tosco e sem ordem. É que agora sinto necessidade de palavras — e é novo para mim o que escrevo porque minha verdadeira palavra foi até agora intocada. A palavra é a minha quarta dimensão.

A obra acontece e segue um fluxo de pensamentos ininterruptos, mas nem todos esses pensamentos são interligados, não é um livro editado de forma clara e coerente, a narradora se deixa levar por seus pensamentos durante horas. E em seus próprios escritos novamente identificamos essa escrita indefinida e quase distraída. “Não quero ter a terrível limitação de quem vive apenas do que é passível de fazer sentido. Eu não: quero é uma verdade inventada.”

É uma leitura lírica e poética, é necessário mergulhar nesse mistério até tocalo. Clarice deixa-se acontecer. “Deixo-me acontecer.”

O tempo é totalmente relativo na obra, é um monologo repleto de associações e reflexões filosóficas, a autora apresenta a personagem (que do meu ponto de vista é a própria Clarice e seus pensamentos) como uma pintora, a obra se passa no Rio de Janeiro, cidade de Clarice. “Por enquanto o tempo é quanto dura um pensamento.”

O texto nos parece estar sempre em construção. O tom e o assunto da obra mudam repentinamente.


“Sou um ser concomitante: reúno em mim o tempo passado, o presente e o futuro, o tempo que lateja no tique-taque dos relógios.” Clarice... “Na verdade ainda não estou vendo bem o fio da meada do que estou te escrevendo. Acho que nunca verei — mas admito o escuro onde fulgem os dois olhos da pantera macia. A escuridão é o meu caldo de cultura. A escuridão feérica. Vou te falando e me arriscando à desconexão: sou subterraneamente inatingível pelo meu conhecimento. Escrevo-te porque não me entendo. Mas vou me seguindo.”

Nós que queremos nomear, definir e classificar tudo. É uma ousadia tentar classificar Clarice, água viva passeia entre a prosa e a poesia. Coerente talvez tenha sido seu titulo, o livro caracteriza-se de fato como uma água-viva. Uma leitura fluida, mas extremamente escorregadia, límpida, mas que “queima” nossos pensamentos em busca de compreensão, tal qual uma água viva em alto mar.


Curiosidades sobre Clarice Lispector Uma das autoras mais citadas na internet nos últimos anos, (mesmo que em frases que não sejam de sua autoria) é natural que as pessoas sintam curiosidade sobre a vida e a obra de Clarice. A segui trazemos 5 curiosidades sobre Clarice que foram publicadas no site http://capituvemparaojantar.com. A Hora da Estrela Você sabia que este foi o último livro publicado em vida por Clarice Lispector? “A Hora da Estrela” foi escrito à mão em vários papéis picados. O texto foi organizado pela datilógrafa de Clarice, Olga Borelli. Clarice foi internada logo depois do lançamento da obra por causa de câncer no ovário e faleceu no dia 9 de dezembro de 1977 , um dia antes de completar 57 anos e menos de dois meses depois de lançar um dos seus livros mais famosos. Única entrevista Durante toda a carreira, Clarice deu uma única entrevista televisionada. É um registro histórico muito interessante para quem tem curiosidade de conhecer o pensamento da escritora sobre a própria obra. Naquele momento ela havia acabado de terminar “A Hora da Estrela” e diz que a história é de uma nordestina tão pobre, tão pobre, que só come cachorro-quente. A entrevista aconteceu em fevereiro de 1977 e foi cedida ao repórter Júlio Lerner da TV Cultura.


O interessante é que a entrevista foi realizada em fevereiro, mas só foi divulgada dez meses depois da morte da escritora, que aconteceu em dezembro daquele ano. O motivo? Foi a própria Clarice que fez este pedido como condição para dar a entrevista. Assista abaixo: Perto do Coração Selvagem “Perto do Coração Selvagem” foi o primeiro livro de Clarice Lispector, publicado quando ela tinha 24 anos, em 1943. A obra teve uma ótima recepção da crítica que abriu os olhos para este novo talento que surgia na literatura nacional. Logo, a escrita de Clarice foi comparada a de Virginia Woolf por causa do uso de elipses e fluxo de consciência, artificio em que o narrador se deixa levar pelos pensamentos, escrevendo livremente e convidando o leitor a conhecer o personagem mais profundamente, escancarando suas reflexões. Só que na época Clarice disse que nunca tinha lido Virginia Woolf antes de escrever “Perto do Coração Selvagem”. Quando o livro foi publicado na França, foi ninguém mais, ninguém menos que Henri Matisse quem ilustrou a capa da obra.

Tradutora


Poucos sabem, mas além de escritora, Clarice trabalhou muitos anos como tradutora para a Editora Artenova. Aliás, Clarice começou a trabalhar traduzindo grandes obras estrangeiras dois anos antes de lançar “Perto do Coração Selvagem”, em 1943. É ela a responsável por traduzir para o português obras de escritores como Oscar Wilde, Agatha Christie, Anne Rice e Edgar Allan Poe. Sobre a profissão ela disse: “Traduzir pode correr o risco de não parar nunca”. Restaurante Preferido O restaurante preferido de Clarice Lispector era o La Fiorentina, localizado no Rio de Janeiro. Ali na Avenida Atlântica, 458. Este restaurante era ponto de encontro de grandes intelectuais. A escritora Nélida Piñon revelou na biografia de Clarice que era este o restaurante preferido da amiga. Ela costumava ir todos os sábados e comia o supremo de frango com batata grisette. Mas às vezes também se rendia a uma boa pizza do cardápio. As companheiras fiéis do passeio eram as amigas Nélida Piñon, Rosa Cass e Maria Bonomi **** Link de acesso direto a reportagem sobre as curiosidades: http://capituvemparaojantar.com/5-curiosidades-sobre-clarice-lispector/


A importância da literatura Portuguesa para a formação literária Brasileira . Por Maria Kaline

Denomina-se literatura Portuguesa, a literatura escrita no idioma português em Portugal, excluindo da lista a literatura de outros países lusófonos, como o Brasil por exemplo. A importância do estudo de Literatura Portuguesa é muito discutido e debatido em nosso país. Os estudiosos se dividem e prós e contra este estudo.


O que não pode ser negado é a importância do legado recebido por nós, dos nossos colonizadores. Não foi apenas a exploração colonial que aqui ocorreu, a literatura lusitana é o principio de nossa literatura. As obras literárias portuguesas são dotadas de certa riqueza cultural e histórica, riqueza esta por nós herdada. Mesmo com tantas divergências sobre este estudo, o aprofundamento na literatura portuguesa é um mergulho em referências que nos colonizaram. Os primeiros escritos literários portugueses são datados do Século XII, as canções ou cantigas, sucedidas pelos Trovadores. A terra de Camões, autor de os Lusíadas, é um tanto quanto subestimada. Parece-me que não conhecemos na profundidade Fernando Pessoa, Eça de Queiroz, José Saramago, Antônio Lobo (Prêmio Camões de Literatura), Almeida Garrett ou o lirismo presente nas poesias de FlorBela Espanca ( abaixo um dos poemas de Florbela, um dos meus preferidos). Eu Florbela Espanca

Eu sou a que no mundo anda perdida Eu sou a que na vida não tem norte Sou a irmã do Sonho, e desta sorte Sou a crucificada... a dolorida

Sombra de névoa ténue e esvaecida E que o destino amargo, triste e forte Impele brutalmente para a morte! Alma de luto sempre incompreendida!


Sou aquela que passa e ninguém vê Sou a que chamam triste sem o ser Sou a que chora sem saber porquê

Sou talvez a visão que Alguém sonhou Alguém que veio ao mundo pra me ver E que nunca na vida me encontrou! A literatura Lusitana foi o pontapé de nossa literatura, mesmo não sendo nossa essência, mas credito que para que ocorra uma compreensão da Literatura Brasileira, sua história e origens, é imprescindível conhecer as origens da Literatura Portuguesa, que influenciou e ainda influencia nossa produção literária.


LiteraTUDO POEMAS

Das utopias Se as coisas são inatingíveis… ora! Não é motivo para não querê-las… Que tristes os caminhos se não fora A mágica presença das estrelas! – Mario Quintana, do livro “Espelho mágico”, 1945-1951.

Poeminho do Contra Todos esses que aí estão Atravancando meu caminho, Eles passarão... Eu passarinho! Mario Quintana- Prosa e Verso, 1978.


Poesia

Clarice Freire, Pรณ de lua nas noites em claro, 2016.


CRÔNICA

A DESCOBERTA DO MUNDO (CRÔNICA DE CLARICE LISPECTOR)

O que eu quero contar é tão delicado é tão delicado quanto a própria vida. E eu queria poder usar delicadeza que também tenho em mim, ao lado da grossura de camponesa que é o que me salva. Quando criança, e depois adolescente, fui precoce em muitas coisas. Em sentir um ambiente, por exemplo, em aprender a atmosfera íntima de uma pessoa. Por outro lado, longe de precoce, estava em incrível atraso em relação a outras coisas importantes. Continuo aliás atrasada em muitos terrenos. Nada posso fazer: parece que há em mim um lado infantil que não cresce jamais. Até mais que treze anos, por exemplo, eu estava em atraso quanto ao que os americanos chamam de fatos da vida. Essa expressão se refere à relação profunda de amor entre um homem e uma mulher, da qual nascem os filhos. Ou será que eu adivinhava, mas turvava minha possibilidade de lucidez para poder, sem me escandalizar comigo mesmo, continuar em inocência a me enfeitar para os meninos? Enfeitar-me aos onze anos de idade consistia em lavar o rosto tantas vezes até que a pele esticada brilhasse. Eu me sentia pronta, então. Seria minha ignorância um modo sonso e inconsciente de me manter ingênua para poder continuar, sem culpa, a pensar nos meninos? Acredito que sim. Porque eu sempre soube coisas que nem eu mesma sei que sei. As minhas colegas de ginásio sabiam de tudo e inclusive contavam anedotas a respeito. Eu não entendia mas fingia compreender para que elas não me desprezassem e à minha ignorância. Enquanto isso, sem saber da realidade, continuava por puro instinto a flertar com os meninos que me agradavam, a pensar neles. Meu instinto precedera a minha inteligência. Até que um dia, já passados os treze anos, como se só então eu me sentisse madura para receber alguma realidade que me chocasse, contei a uma amiga íntima o meu segredo: que eu era ignorante e fingira de sabida. Ela mal acreditou, tão bem eu havia fingido. Mas terminou sentindo minha sinceridade e ela própria encarregou-se ali mesmo na esquina de me esclarecer o mistério da vida. Só que também ela era uma menina e não soube falar de um modo


que não ferisse a minha sensibilidade de então. Fiquei paralisada olhando para ela, misturando perplexidade, terror, indignação, inocência mortalmente ferida. Mentalmente eu gaguejava: mas por quê? Mas por quê? O choque foi tão grande – e por uns meses traumatizante – que ali mesmo na esquina jurei alto que nunca iria me casar. Embora meses depois esquecesse o juramento e continuasse com meus pequenos namoros. Depois, com o decorrer de mais tempo, em vez de me sentir escandalizada pelo modo como uma mulher e um homem se unem, passei a achar esse modo de uma grande perfeição. E também de grande delicadeza. Já então eu me transformara numa mocinha alta, pensativa, rebelde, tudo misturado a bastante selvageria e muita timidez. Antes de me reconciliar com o processo da vida, no entanto, sofri muito, o que poderia ter sido evitado se um adulto responsável se tivesse encarregado de me contar como era o amo. Esse adulto saberia como lidar com uma alma infantil sem martirizá-la com a surpresa, sem obrigá-la a ter toda sozinha que se refazer para de novo aceitar a vida e os seus mistérios. Porque o mais surpreendente é que, mesmo depois de saber de tudo, o mistério continua intacto. Embora eu saiba que de uma planta brotar uma flor, continuo surpreendida com os caminhos secretos da natureza. E se continuo até hoje com pudor não é porque ache vergonhoso, é pudor apenas feminino. Pois juro que a vida é bonita. Clarice Lispector A descoberta do mundo – Crônicas


CONTO

O menino e o velho Conto de Lygia Fagundes Telles

Quando entrei no pequeno restaurante da praia os dois já estavam sentados, o velho e o menino. Manhã de um azul flamante. Fiquei olhando o mar que não via há algum tempo e era o mesmo mar de antes, um mar que se repetia e era irrepetível. Misterioso e sem mistério nas ondas estourando naquelas espumas flutuantes (bom-dia, Castro Alves!) tão efêmeras e eternas, nascendo e morrendo ali na areia. O garçom, um simpático alemão corado, me reconheceu logo. Franz?, eu perguntei e ele fez uma continência, baixou a bandeja e deixou na minha frente o copo de chope. Pedi um sanduíche. Pão preto?, ele lembrou e foi em seguida até a mesa do velho que pediu outra garrafa de água de Vichy. Fixei o olhar na mesa ocupada pelos dois, agora o velho dizia alguma coisa que fez o menino rir, um avô com o neto. E não era um avô com o neto, tão nítidas as tais diferenças de classe no contraste entre o homem vestido com simplicidade mas num estilo rebuscado e o menino encardido, um moleque de alguma escola pobre, a mochila de livros toda esbagaçada no espaldar da cadeira. Deixei baixar a espuma do chope mas não olhava o copo, com o olhar suplente (sem direção e direcionado) olhava o menino que mostrava ao velho as pontas dos dedos sujas de tinta, treze, catorze anos? O velho espigado alisou a cabeleira branca em desordem (o vento) e mergulhou a ponta do guardanapo de papel no copo d’água. Passou o guardanapo para o menino que limpou impaciente as pontas dos dedos e logo desistiu da limpeza porque o suntuoso sorvete coroado de creme e pedaços de frutas cristalizadas já estava derretendo na taça. Mergulhou a colher no sorvete. A boca pequena tinha o lábio superior curto deixando aparecer os dois dentes da frente mais salientes do que os outros e com isso a expressão adquiria uma graça meio zombeteira. Os olhos oblíquos sorriam acompanhando a boca mas o anguloso rostinho guardava a palidez da fome. O velho apertava os olhos para ver melhor e seu olhar era demorado enquanto ia acendendo o cachimbo com


gestos vagarosos, compondo todo um ritual de elegância. Deixou o cachimbo no canto da boca e consertou o colarinho da camisa branca que aparecia sob o decote do suéter verde-claro, devia estar sentindo calor mas não tirou o suéter, apenas desabotoou o colarinho. Na aparência, tudo normal: ainda com os resíduos da antiga beleza o avô foi buscar o neto na saída da escola e agora faziam um lanche, gazeteavam? Mas o avô não era o avô. Achei-o parecido com o artista inglês que vi num filme, um velho assim esguio e bem cuidado, fumando o seu cachimbo. Não era um filme de terror mas o cenário noturno tinha qualquer coisa de sinistro com seu castelo descabelado. A lareira acesa. As tapeçarias. E a longa escada com os retratos dos antepassados subindo (ou descendo) aqueles degraus que rangiam sob o gasto tapete vermelho. Cortei pelo meio o sanduíche grande demais e polvilhei o pão com sal. Não estava olhando mas percebia que os dois agora conversavam em voz baixa, a taça de sorvete esvaziada, o cachimbo apagado e a voz apagada do velho no mesmo tom caviloso dos carunchos cavando (roque-roque) as suas galerias. Acabei de esvaziar o copo e chamei o Franz. Quando passei pela mesa os dois ainda conversavam em voz baixa – foi impressão minha ou o velho evitou o meu olhar? O menino do labiozinho curto (as pontas dos dedos ainda sujas de tinta) olhou-me com essa vaga curiosidade que têm as crianças diante dos adultos, esboçou um sorriso e concentrou-se de novo no velho. O garçom alemão acompanhou-me afável até a porta, o restaurante ainda estava vazio. Quase me lembrei agora, eu disse. Do nome do artista, esse senhor é muito parecido com o artista de um filme que vi na televisão. Franz sacudiu a cabeça com ar grave: Homem muito bom! Cheguei a dizer que não gostava dele ou só pensei em dizer? Atravessei a avenida e fui ao calçadão para ficar junto do mar. Voltei ao restaurante com um amigo (duas ou três semanas depois) e na mesma mesa, o velho e o menino. Entardecia. Ao cruzar com ambos, bastou um rápido olhar para ver a transformação do menino com sua nova roupa e novo corte de cabelo. Comia com voracidade (as mãos limpas) um prato de batatas fritas. E o velho com sua cara atenta e terna, o cachimbo, a garrafa de


água e um prato de massa ainda intocado. Vestia um blazer preto e malha de seda branca, gola alta. Puxei a cadeira para assim ficar de costas para os dois, entretida com a conversa sobre cinema, o meu amigo era cineasta. Quando saímos a mesa já estava desocupada. Vi a nova mochila (lona verde-garrafa, alças de couro) dependurada na cadeira. Ele esqueceu, eu disse e apontei a mochila para o Franz que passou por mim afobado, o restaurante encheu de repente. Na porta, enquanto me despedia do meu amigo, vi o menino chegar correndo para pegar a mochila. Reconheceu-me e justificou-se (os olhos oblíquos riam mais do que a boca), Droga! Acho que não esqueço a cabeça porque está grudada. Pressenti o velho esperando um pouco adiante no meio da calçada e tomei a direção oposta. O mar e o céu formavam agora uma única mancha azul-escura na luz turva que ia dissolvendo os contornos. Quase noite. Fui andando e pensando no filme inglês com os grandes candelabros e um certo palor vindo das telas dos retratos ao longo da escadaria. Na cabeceira da mesa, o velho de chambre de cetim escuro com o perfil esfumaçado. Nítido, o menino e sua metamorfose mas persistindo a palidez. E a graça do olhar que ria com o labiozinho curto. No fim do ano, ao passar pelo pequeno restaurante resolvi entrar mas antes olhei através da janela, não queria encontrar o velho e o menino, não me apetecia vê-los, era isso, questão de apetite. A mesa estava com um casal de jovens. Entrei e Franz veio todo contente, estranhou a minha ausência (sempre estranhava) e indicou-me a única mesa desocupada. Hora do almoço. Colocou na minha frente um copo de chope, o cardápio aberto e de repente fechou-se sua cara num sobressalto. Inclinou-se, a voz quase sussurrante, os olhos arregalados. Ficou passando e repassando o guardanapo no mármore limpo da mesa, A senhora se lembra? Aquele senhor com o menino que ficava ali adiante, disse e indicou com a cabeça a mesa agora ocupada pelos jovens. Ich! foi uma coisa horrível! Tão horrível, aquele menininho, lembra? Pois ele enforcou o pobre do velho com uma cordinha de náilon, roubou o que pôde e deu no pé! Um homem tão bom! Foi encontrado pelo motorista na segunda-


feira e o crime foi no sábado. Estava nu, o corpo todo judiado e a cordinha no pescoço, a senhora não viu no jornal?! Ele morava num apartamento aqui perto, a policia veio perguntar mas o que a gente sabe? A gente não sabe de nada! O pior é que não vão pegar o garoto, ich! Ele é igual a esses bichinhos que a gente vê na areia e que logo afundam e ninguém encontra mais. Nem com escavadeira a gente não encontra não. Já vou, já vou!, ele avisou em voz alta, acenando com o guardanapo para a mesa perto da porta e que chamava fazendo tilintar os talheres. Ninguém mais tem paciência, já vou!… Olhei para fora. Enquadrado pela janela, o mar pesado, cor de chumbo, rugia rancoroso. Fui examinando o cardápio, não, nem peixe nem carne. Uma salada. Fiquei olhando a espuma branca do chope ir baixando no copo. Livro Invenção e Memória’, de Lygia Fagundes Telles.


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