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Luís Amorim
Luís Amorim
Oeiras, Portugal
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A colega do meio rural
Os holofotes acenderam-se e ele já não conseguiria ficar a salvo, tendo de enfrentar marés, às quais tentaria remar pelos braços contra a forte corrente, ele que até nadava com grande embaraço, sobretudo quando havia gente ao redor em trejeito de frontais mirones, à sua natural e subjectiva perspectiva. De certa forma, implorava perante si mesmo que não tivesse de passar novamente em semelhante prova discursiva, ele que já perdera a conta certa por tantos sacrifícios dessa indesejada tormentosa natureza, qual tempestade sem porto de abrigo. Mas nada havia a fazer, pois uma vez metido nisso, apresentação faria parte da avaliação, a qual começava por contar até mesmo antes de mexer os lábios. Só o facto de estar ao cimo do estrado de madeira e pronto a debitar sabida teoria, preferencialmente bastante à vontade, assim era no óbvio requerido, já o deixava nervoso pelo que ainda não fora proferido. A enorme confusão presente na sua cabeça não tinha cessação e o rápido acelerar das batidas cardíacas era perfeitamente audível, suspeitando que até na última fila se ouviria sem a menor dificuldade pelos eventuais que não teriam audição devidamente apurada. Sentia-se fechado entre paredes exíguas, com relógios de quantidade infinita por contagem improvisada a tocarem em permanente ruído ensurdecedor. Desejava regressar a casa onde pudesse estar descansado, preparando provas escritas, onde poderia demonstrar todo o seu potencial, não percebendo como se valorizava mais o falado do que o escrito. Nesta vocação, os que sabiam não precisavam de ajuda e no silêncio da prova inscreviam nela todo o seu comprovado saber, enquanto na primeira, a habilidade do falar, a sabedoria poderia não estar lá, até ser hipotética por trabalhada como encostada e no indevido, aproveitada
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para dar apenas como bonita situação aquela que os formadores mais apreciavam: quem soubesse bem falar e encantar a plateia, mesmo sabendo pouco e realmente menos do que aqueles que eram mais inibidos mas com grande arte para colocar tudo por escrito, digno de forte aplauso. O que lhe valia é que em trabalhos de grupo, alguma solidariedade existia e havendo alguém menos dotado para arte inspirada de escrita, mas disfarçando isso discursando com os tais inegáveis dotes de oratória, trabalho acabaria por ser quase aclamado, dando a impressão que formador não lia, apenas ouvia, talvez por ser menos trabalhoso. Ouve algum gaguejar por inexistente falar à vontade, mas o pronto socorro apareceu sempre em devida altura, ainda que no fim quisesse mesmo ir para o aconchego do lar, envergonhado e ainda de tez avermelhada, quando havia mais outros trabalhos para serem ouvidos. E a seguir no alinhamento, era a apresentação por três raparigas, uma das quais a colega da zona rural, onde esta habitava, e que muito o apreciava, apesar do seu trejeito notoriamente reservado, ou talvez até mesmo por esse motivo, já que na sua terra não havia agitação própria do meio urbano, sendo tudo calmo, deixava antever ela por anteriores conversas. E a dedicação afectiva era recíproca, tanto que já mais relaxado, só tinha olhos para ela, mesmo quando eram as outras duas na parte oratória. A colega mais querida para ele, curiosamente uma dotada no escrever e falar, parecia que só o fazia para ele, quase ignorando o homem que chefiava a formação, o qual apercebendo-se do que estava a ocorrer bem debaixo do seu nariz, fervia e não era pouco. Elas falavam à vez, mas a certa altura, a colega do meio rural, uma pequena mas acolhedora e simpática aldeia, tomou a liderança até ao fim, quase um improvisado solo e conseguiu estender toda a sua sabedoria num discurso que parecia interminável mas que prendia toda a interessada assistência. Os colegas atentos tinham muita consideração por ela, no seu bom feitio e encanto natural e, também por tanto saber acumulado, davam-lhe vasta audição, em especial um discreto certo colega, incentivando-a em permanente silêncio, no apenas observando carinhosamente a sua especial amiga,
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para quem ela retribuía no seu charme teorizador que tanto o encantava, para desespero e nervosismo do formador, a olhar para o seu relógio de pulso demasiadas vezes em tão pouco tempo. Mas a conclusão do trabalho apresentado, acabou mesmo por chegar, para alívio de quem já nem tinha fivela que lhe segurasse o relógio e suava a olhos vistos perante todas as dispostas cadeiras incrédulas. A jovem que falou por imenso tempo pediu licença para ir lá fora beber um pouco de água refrescante que estaria realmente a precisar, o que foi de imediato autorizado. Só depois da saída dela, com a sala num grande alvoroço, de tanta conversa até ser dada nova ordem para começar apresentação seguinte, é que o professor feito ao ensino formativo de adultos e jovens havia meses poucos, com a camisa toda molhada de tanto suar, é que se lembrou que deveria ter-lhe pedido uma garrafa também para ele. De pronto, como bom ouvinte, o colega predilecto da rapariga então ausente, ofereceu-se de instantânea prontidão a ir tratar de encontrar água fresca, em especial cordialidade para o seu formador. Este aceitou e, sem demoras, pediu o retomar dos trabalhos em palco para sua audição e, de preferência, com menor extensão, pois o seu impaciente relógio nunca parava. Volvidos alguns minutos e como água para ele parecia uma ansiada miragem, largou como interrupção na dita ordem de trabalhos o estranho desabafo, ou talvez não, pois que entre colegas de sala já muito se sussurrava havia longos minutos algo semelhante: «Aqueles dois parece que foram em par beber a minha água e continuar recíproca apresentação do trabalho em privado!»
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