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QUASE QUOTIDIANO Um verso antes de
JESSEMUSSE CACINDA
JORNALISTA
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QUASE QUOTIDIANO
Um verso antes de morrer
Acabo de urinar nas calças, tento, mas nem sequer consigo respirar fundo, seguro-me para não soltar as fezes que já sinto a tocar o algodão da roupa que me cobre. Estou desidratado e preciso de água, mas não posso falar porque estes tipos que me querem matar, nem sequer tempo têm para deixar-me beber um último gole. Fecho os olhos para sentir a faca a perfurar o lado esquerdo do meu peito. Um coração que se fechou a amores desde que inventei que me haviam magoado, na verdade, eu mesmo me havia magoado desde que cruzei os braços à espera que todas as mulheres tivessem habilidades para descobrir, por si, o que me faria feliz. É o corolário de uma luta renhida, uma medição de forças como as que fazia na infância, uma prática que abandonei porque queria ser aquilo que me ensinavam e diziam o que deve ser um “bomhomem”, uma vontade que perseguiu minha história nesta passagem pela terra. A rua está deserta de gente que me acuda. O universo parece não estar a meu favor. Me fiz à rua porque me dei conta que o sal acabou, justamente quando preparava o jantar. Ou servia uma comida sem sal ou me fazia a uma rua que já é famosa pela sua insegurança. Talvez seja o preço que pago por não casar. A minha avó sempre me alertou a respeito, dizia que casar é como que ter uma bengala para a vida, e se um homem ou uma mulher casados não sentem isso, talvez não compreenderam o sentido de uma vida conjugal. Mas sempre consegui cuidarme o suficiente a ponto de nunca ter chegado a sentir que precisasse de uma bengala para a vida. Por isso que, quando dei conta da falta do sal em minha cozinha, optei por sair de casa como tantas outras vezes. Desta, a sorte não me acompanhou. Dois homens vestidos de ninja bloqueiam-me os movimentos muito antes de chegar a banca mais próxima de casa, deixando-me em apuros. As histórias de criminalidade que experimentámos no bairro funcionam como que uma ordem de proibição de movimento com medo de uma pandemia viral que se pega na rua. Perco a noção do tempo e espaço. Vejo uma noite infinita, sem estrelas e nem luar, o tufo deste ar não tem melodia do amor, “vamos matar esse cabrão” é o que dizem os ninjas, “a gente deu tempo demais para o gajo aprender”, persistem na conversa ameaçadora. Ocorre-me um flashback; fotografias de gente que magoei vêm-me à memória, as imagens rodam como se de uma apresentação se tratasse. Recordo-me das apresentações que fazia no serviço, sempre que tivesse um novo produto ou recebesse a visita de um novo cliente. “Achas que consegues tudo o que queres? Ou que o mundo pode ser como queres? E como em vida não aprendeste a ser humilde, vamos te por esta faca para ver se és tão duro assim”, os dois homens ainda encontram tempo para dizer algumas coisas antes de matar-me. Estou a usar, como nunca, as minhas capacidades, o que me faz compreender como as mulheres têm força para múltiplas acções. Elas beijam enquanto trabalham, namoram enquanto cozinham, amam enquanto descansam e ainda brincam enquanto conversam. Nunca achei que isso fosse possível. Os meus ouvidos captam todas as palavras sinistras destes homens ao mesmo tempo como que outros sons passeiam o meu ouvido. A minha mente é um mercado grossista, regista movimentos simultâneos e combinados e o corpo já não me pertence. Cada rosto que visualizo apresenta os motivos de nossos desentendimentos, é muita matéria que, se os ninjas pu-
dessem seguir-me para casa e beber uma taça de vinho, que lhes serviria antes de me matarem, escreveria um ensaio sobre o desentendimento humano, onde poderia defender uma tese sobre o papel da vaidade no estado social. Dissertaria sobre o quão estamos fechados em nossas próprias histórias, experiências e sonhos, e alertaria da necessidade de também compreendermos os territórios que marcam as experiências existenciais dos outros. Construiria argumentos, rebateria contra-argumentos e, no final, estaria a contradizer-me, ao escrever contra a vaidade, estando eu mesmo a ser vaidoso. Em meio ao desespero, busco recordar-me das lições sobre a arte de conversar que, um dia, tive numa dessas aulas de Filosofia. O meu professor, um velho que sempre disse ser jovem, gostava da ideia de Heidegger, segundo a qual, o ser é o seu próprio mundo e recomendava-nos a ter em conta que uma conversa é um diálogo de mundos particulares, “talvez tentar compreender o mundo destes homens seja um bom ponto de partida para convidá-los a uma conversa”, falo para os meus botões, que, imediatamente, me comunicam a falta de tempo. “Faz a tua última oração, cabrão! É o mínimo que te podemos dar para que, ao menos, tenhas paz definitiva”, ordenam os homens enquanto continuo de olhos fechados. Nesse instante já sinto a faca quase no peito, as imagens que desfilam dentro da minha cabeça, multiplicam-se. Agora vejo filmes das derrotas. As vezes que tive de contentar-me por não ter o que sempre quis, consolam-me. Se nunca tive mesmo nada, parece-me não fazer sentido preocupar-me com a vida, penso, enquanto uma nuvem de paisagens lindas esconde-se entre o rosto coberto do homem que segura a faca. “Parece que já não sente medo, este cabrão! o que se passa? comenta um dos homens, “percebeu que da morte não se foge, mais dia, menos dia, ela chegará”. “Sim, mas o homem não estava preparado, quanto mais queria curtir a vida, eis que lhe acaba hoje” conversam aos sorrisos de gozo. Depois de perder a esperança, porque a seguir será a vez da vida, eis que me pedem para dizer uma última frase. Neste instante, entre uma mensagem positiva e negativa, prefiro uma positiva, pois já não tenho tempo para lamentações, o que resta é mesmo tempo para agradecer pelo dom da vida. Muito rapidamente, recito, com tanta gratidão, um verso de Pablo Neruda, “confeço que vivi” – o meu grito soa mais alto do que o apito do comboio, “ah cabrão, então não te vamos matar para experimentar as coisas dolorosas que a vida ainda não te deu”, diz um dos ninjas enquanto escuto o som da faca ao cair sobre o chão sem asfalto e quando finalmente consigo abrir os olhos, vejo os ninjas a desparecer entre os becos do bairro.
Ivan Mazanga: um político feito de livros
Ivan Mazanga é um político e académico moçambicano formado em Relações Internacionais, pelo Instituto Superior de Relações Internacionais (ISRI), rebaptizada como Universidade Joaquim Chissano. É como se todos os caminhos fossem dar à política. Mas não é bem assim.
LUCAS MUAGA E CELESTE MANGANHELA
Ivan Mazanga foi escolhido pela política. Podia se pensar o contrário, não fosse daqueles que admitem ter puxado muito do pai. Tem no político moçambicano, Fernando Mazanga, um proeminente membro da Renamo, o seu progenitor. É um político que também explica os seus caminhos, abrindo o seu o seu baú de memórias. Confessa ser feito de livros, músicas e filmes. Afirma ter uma paixão intensa pelo desporto, com uma umbilical ligação com o Costa do Sol e o Barcelona. Ivan Mazanga encontra na leitura, uma das soluções para os dias difíceis de quarentena e diz passar o tempo a alimentar o espírito, lendo livros, encara este acto como político e de cidadania. Daí estar na escola a sua primeira explicação para o seu gosto pela leitura. Foi do pai que recebeu uma das obras que mais o marcaram. Chama-se “O Triunfo dos porcos”, de George Orwell. Há uma razão por detrás. “No início dos anos 90, ainda tinha muita força do pensamento socialista e comunista do povo moçambicano, dentro da literatura. Faz (o
autor) uma sátira a esta situação”, diz Ivan Mazanga. Mas não ficam de fora livros como “Papalagui”, de Eric Schumann. “Bastante influência teve em mim, em termos de visão, sobre quais são as plataformas que colocam a vida, em vários sentidos. Num sentido de transformar e contemplar a natureza”, conta Mazanga. Dentro de portas, Ivan Mazanga recomenda a leitura de livros considerados clássicos. Para este, vale a pena navegar na vasta obra de Paulina Chiziane e, para já, propõe a leitura de “O Sétimo Juramento”. Em tempos de crise, como a que o mundo atravessa, o tédio não pode, segundo Mazanga, abater a humanidade. Recomenda, para o ouvido, a voz de músicos já afirmados, como António Marcos, que em “Txuvukane pambene”, traz esperança para o mundo. Podemos perceber que Mazanga faz-se de nostalgias. Todas as músicas que partilhou, como a de António Marcos, lembra-o a família. Dela, “sentia nostalgia e aquela história do meu pai”. Assim, deixa uma frase sobre “Sala nwanawamamani”, de Jeff Maluleke. “No sentido de quem está a despedir a sua família para encontrar outra forma de vida”
LIVROS
No oco do mundo, Vários autores Ano de publicação: 2019 Género: Conto Editora: Trinta Zero Nove Preço: 400Mt
No oco do mundo, Vários autores Ano de publicação: 2019 Género: Conto Editora: Trinta Zero Nove Preço: 450Mt A Perseverança, Raymond Antrobus Ano de publicação: 2019 Género: Poesia Editora: Trinta Zero Nove Preço: 320Mt Eu Não Tenho Medo, Niccoló Ammaniti Ano de publicação: 2019 Género: Romance
Editora: Trinta Zero Nove Preço: 450Mt a engenharia da morte, Mélio Tinga Ano de publicação: 2020 Género: Contos Edição do autor Preço: 600Mt
DISCOS & ÁUDIOLIVROS
A Perseverança, Raymond Antrobus Ano de publicação: 2019 Género: Poesia Editora: Trinta Zero Nove Preço: 450Mt Eu Não Tenho Medo, Niccoló Ammaniti Ano de publicação: 2019 Género: Romance
Editora: Trinta Zero Nove Preço: 450Mt