Revista Mina

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DISTRIBUIÇÃO GRATUITA • VENDA PROIBIDA

trabalho de conclusão de curso de jornalismo UNIVAP - novembro 2015

VEJA TAMBÉM moda plus size • cosméticos naturais • transexualidade •

Mulher Negra e sua luta contra a opressão



EDITORIAL

O poder da informação O feminismo tem o poder de promover mudanças através do conhecimento. Sabe como? Diariamente, as mulheres sofrem diversos tipos de opressões e violências, sejam elas físicas, emocionais ou até mesmo institucionais. Padrões de beleza inatingíveis, uma sociedade construída com base no racismo e no preconceito são apenas alguns dos fatores que aprisionam e oprimem. O conhecimento pode mudar a vida das pessoas. A partir do momento em que reconhecemos as opressões que sofremos, fica mais fácil entender o que o machismo traz para nossas vidas e mudar o que nos incomoda. Mulheres transexuais, negras, gordas e engenheiras são só alguns exemplos de minorias que sofrem por não se encaixar nos padrões. Mas ver a luta diária dessas mulheres para superar as dificuldades é inspirador.

E é pra isso que surgiu a Mina. Pra dar visibilidade às mulheres, pra mostrar que, mesmo sofrendo dia após dia, temos a chance de mudar nosso destino e de todas as outras para melhor. Sejam bem-vindas e bem-vindos à Mina. É de vocês. • Emeline Domingues

EXPEDIENTE A Revista Mina é um produto do trabalho de conclusão de curso de Comunicação Social Jornalismo da Univap da aluna Emeline Domingues Repórter, editora e projeto gráfico: Emeline Domingues • Orientação: Vânia Braz de Oliveira • Coorientação: Lucaz Mathias e Vinícius de Melo • Colaboradoras: Camila Ferracioli, Juliana Dacosta, Isabella Damião, Melissa Mel*, Mônica Lisboa, Paula Vinhas e Priscila Vanti • Apoio jornalístico: Kátia Zanvettor e Eloisa Helena • Apoio de design: Thiago Pereira • Revisão: Juliana Diniz • Edição de texto: Priscila Vanti • Fotos: Aline Lara, Emeline Domingues, Érica Mendes, Julieta Vinhas, Léo Augusto, Larissa Isis, Matheus Carlos, Mislene Firmino, Priscila Vanti • Ilustrações: The Noun Project • Tiragem: 1000 exemplares Fale com a Mina! Email: revistamina@gmail.com • facebook.com/revistamina. Novembro de 2015 • Ano I • Edição I


Obrigada!

Para que a Revista Mina pudesse chegar mais longe, foi feito um financiamento coletivo. Muitas pessoas ajudaram a tornar esse sonho realidade, e aqui, a Mina agradece imensamente o apoio de todas e todos que contribuíram. Muito obrigada! Ana Paula Bimbati Amanda Pedrassolli de Jesus Antônio Carlos Machado Guimarães Ângela Salles da Silva Mineiro Oliveira Bruna Alice Oliveira Bruna Masarolo Franchi Bruno Arantes Camila Ferracioli Camila Mitie Uemura Caroline Bittencourt da Rosa Celeste Marinho Manzanete César Augusto Palomares Daniela Lopes Daniella Zarro Danielle de Souza Santos Débora Barreto Ornellas Diego Cordeiro Doris Bonini Edilson Moura Eduardo Salles da Silva Mineiro Érica Marques Fernanda Cavalcanti Fernanda Vasconcelos Giovane Liberato Isabella Damião Jader Arantes João Paulo Souza José Guilherme dos Santos

Juliana Dacosta Kátia Zanvettor LABCom Univap Luciane Suzana Paulela Maria Norma Jacinto de Medeiros Maria Ribeiro Matheus Dias Melissa Wolff Michael Silva Moema Domingues Murilo Lélis Natalee Neco Paula Vinhas Paulo Roxo Barja Priscila Vanti Ranna Nicolau Raquel de Andrade Raquel Caratti Piani Renata Pasquini Cursino Rodrigo França Sheila de Souza Lima Santos Sheila Uberti Thais Campoy Thiago Pereira Vânia Braz de Oliveira Vera Zaninoto Novo Vinicius de Melo Vittória Pereira Carvalho Yara Zaninoto Domingues


Nesta edição 06

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Artigo Políticas para mulheres? Só por mulheres!

Variedades Quadrinhos, livro e poesia

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Educação As meninas que desafiam os números e somam forças no ITA

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Capa As filhas de Dandara

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Profissão Quer ser cozinheiro? Ou quer ser chef de cozinha?

Entrevista D’Origem

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Moda Vitrine sem regras

Resenha Representatividade, diversidade e clones

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Papo de Amiga Mulheres do mundo, uni-vas!

Beleza & Saúde Cosméticos naturais

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Tabu Mulheres trans: do silêncio ao grito de liberdade

Crônica Parto da palavra


Políticas para mulheres?

Só por mulheres! FOTO: ARQUIVO PESSOAL

Por Priscila Vanti

Priscila tem 32 anos, é jornalista especializada em política e, antes de tudo, mulher

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Na democracia representativa que vivemos no Brasil, quem te representa? Já se fez essa pergunta? Sabemos que as políticas públicas para mulheres estão muito aquém do esperado, vivemos isso diariamente, mas é difícil paramos para refletir sobre nas mãos de quem estão as decisões sobre os nossos corpos e direitos. A maioria do eleitorado brasileiro é composta por mulheres (52,07%), segundo o Tribunal Superior Eleitoral. No entanto, elas correspondem a apenas 9,94% dos 513 parlamentares da Câmara dos Deputados. No Senado, a representação feminina sobe para 16%, mas ainda é ínfima. Com números tão baixos, o Brasil aparece na 116ª posição no ranking mundial da União Interparlamentar (IPU, na sigla em inglês), órgão internacional parceiro da ONU, que compila dados sobre parlamentos de 190 países. Para fazer alguns comparativos, a taxa de participação feminina no Legislativo brasileiro é menor que no Conselho de Representantes do Iraque (25%) e no Congresso Nacional argentino (em torno de 35%).


ARTIGO Na prática, a falta de representação feminina no Congresso se reflete diretamente na ausência de políticas públicas para as mulheres, criando barreiras para a descriminalização do aborto, o aumento da licença paternidade e o fomento à construção de creches, entre outras medidas. Para tentar reverter esse cenário, o Brasil tenta aprovar cotas para aumentar o número de mulheres no Legislativo. A Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 98/2015, aprovada pelo Senado em setembro, prevê a reserva de 10% dos assentos nas próximas eleições, 12% na seguinte e 16% nas que se seguirem, o que ainda deixaria o país abaixo da média mundial (20%). A proposta agora está na Câmara dos Deputados para análise. No entanto, ainda que seja sancionada a emenda, a cota não garante que a representatividade, de fato, ocorra. Desde 1997, a legislação eleitoral exige que 30% dos candidatos de cada partido sejam mulheres, mas a lei é “driblada” pelas siglas, que costumam usar candidatas “laranja” sem qualquer perspectiva de se eleger. Além disso, a exigência só chegou a ser cumprida em 2012. Sendo assim, a bancada feminina que temos no Congresso, além de pequena, com raras exceções, não tem o comprometimento com as demandas das mulheres, e acaba se concentrando em questões pouco problemáticas, que não envolvam discussões religiosas e que sejam apartidárias. E isso pode continuar a se repetir mesmo com as cotas. Exemplo disso é o recém-oficializado Partido

da Mulher Brasileira (PMB), que pode lançar candidatos a partir das próximas eleições. Além de receber filiações de homens, o PMB já se posicionou contrário a uma das principais demandas dos movimentos de mulheres: a descriminalização do aborto. Ou seja, mesmo levando a Mulher no nome, não há a menor garantia de que as pautas femininas sejam apoiadas pelo partido. Mais do mesmo. Mudar este triste cenário da política brasileira depende de todas nós. A democracia representativa para as minorias só funciona quando ela é também participativa, tem engajamento. A legitimidade das decisões políticas tem que vir por meio de processos de discussão, do pluralismo, da igualdade participativa, da autonomia e da justiça social, reordenando a lógica de poder político tradicional. Quando for escolher seus representantes, preste atenção nas pautas que eles(as) defendem, tenha preferência por mulheres. Participe dos processos políticos, se posicione. Não permita que as políticas para mulheres não sejam feitas por nós. Só assim conseguiremos algum avanço em nossas demandas. Lugar de mulher é na política, sim. Avante! •

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EDUCAÇÃO

O quarto rosa As meninas que desafiam os números e somam forças no ITA Por Emeline Domingues

Ser mulher e fazer parte de um ambiente dominado por homens é um grande desafio. Se esse ambiente é o Instituto Tecnológico da Aeronáutica (ITA), conhecido por ter um dos vestibulares mais disputados do Brasil, o desafio é ainda maior. No vestibular de 2015, com 170 vagas, apenas 18 meninas foram aprovadas. Fundado em 1950, o instituto permite o ingresso de mulheres há menos de 20 anos. Em 1996, primeiro ano após a mudança nas regras, apenas duas entraram. O cenário melhorou, mas a diferença entre os aprovados na instituição ainda é gritante. No último vestibular, dos 7792 inscritos apenas 1801 foram mulheres. Mas o fato não é isolado: de acordo com último Censo 2010 realizado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), elas somam apenas 21,9% das pessoas formadas nas áreas de engenharia, produção e construção no Brasil.

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Desafiando os dados vem Rafaela Godoy. A jovem de 20 anos saiu de Porto Ferreira, no interior de São Paulo, para estudar no ITA. Foi aprovada no vestibular de 2014, e foram anos de estudo focado que a levaram à instituição. “Aos 12 anos decidi que queria ser engenheira. Entrar no ITA se tornou meu sonho por volta dos 15, quando entrei no ensino médio, e comecei a focar meus estudos no vestibular”, conta. Como não passou no vestibular ao concluir o Ensino Médio, Rafaela se mudou para São José dos Campos para estudar em um famoso cursinho da cidade. O cursinho é o caminho que muitos escolhem para chegar ao tão sonhado instituto. Maria Ribeiro, 20 anos, é uma das 71 meninas atualmente matriculadas nas turmas focadas especificamente para o vestibular do ITA do Colégio Poliedro, totalizando 21% dos alunos matriculados nessas turmas. O gosto pela engenharia, especialmente aeronáutica, começou cedo. “Desde pequena eu


FOTO: EMELINE DOMINGUES

Maria Ribeiro

gostava de construir e desenhar plantas de casas, mas nem sabia o que era isso direito. Eu desenhava para depois construir os projetos com meus brinquedos”, lembra Maria. O incentivo da família desde a infância pode ajudar a multiplicar as meninas na engenharia. Rafaela conta que seus pais sempre a apoiaram, mas sente que no ambiente de exatas há um certo preconceito contra as mulheres. “Sinto que somos tratadas como a exceção, pois é algo ‘para os caras’. Acho que não temos tantas mulheres no campo de exatas porque desde pequenas somos incentivadas a brincar de casinha e estimular a criatividade, enquanto os meninos ganham ferramentas, carri-

nhos e blocos de montar”, afirma. O ambiente escolar também pode dificultar a vida daquelas que sonham com a área das exatas. Thais Santos, com apenas 17 anos, saiu de Assú, no Rio Grande do Norte, para estudar no ITA e sentiu na pele o preconceito por ser mulher. Ela conta que, antes de vir para São José dos Campos, observou muito machismo durante o período escolar. “Sentia muito o favorecimento dos meninos, independente de você ser tão boa ou melhor do que eles. Te respeitavam mais se você fosse homem. Alguns professores simplesmente tiravam as dúvidas das meninas, enquanto criavam laços de companheirismo com os rapazes”, desabafa Thais. 9


FOTO: EMELINE DOMINGUES

Joana D’Arc

Lutando por respeito

Se na sociedade em geral as mulheres já sofrem preconceitos, em ambientes predominantemente masculinos os exemplos são ainda mais marcantes. Joana D’arc, 1ª Tenente Engenheira da FAB, formada no ano de 2012, lutou muito para conquistar o respeito na área de exatas. Ex-aluna do ITA, optou pela carreira militar e, desde 2013, é instrutora na instituição. “Um costume que é passado entre os alunos homens é de que as mulheres, por mais que já sejam veteranas, ainda devem ser chamadas de ‘bichetes’. Diziam que não evoluíamos ao longo dos anos”, lembra Joana. E de acordo com a

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aluna Débora Ornellas, a situação não mudou muito. As dificuldades encontradas por ser mulher no ambiente dominado por homens a inspiraram a buscar forças e ajudar as outras meninas na instituição. Indignada com o tratamento dado pelos meninos, começou a provocar mudanças. “Esse fato de nos chamarem de ‘bichetes’ sempre me incomodou muito, até que pedi para que um colega do quarto ano conversasse com os outros homens da instituição, com o objetivo de acabar com essa cultura. Acho que foi a primeira vez que alguém pensou que isso não é respeitoso”, conta. Depois disso, Débora disse que sentiu que a prática diminuiu muito. Entretanto, esse não era o único problema que a estudante identificava em seu dia a dia. Ela conta que há uma brincadeira pejorativa dos meninos que consiste em contabilizar com quantos rapazes cada menina já “ficou” dentro da instituição, e chamam o número de “estrelas”. “Quanto mais estrelas, pior é a reputação da menina. E acompanhado desse ranking sempre vinham comentários machistas do mais baixo escalão”, revela a aluna. Como diretora executiva do Departamento Cultural do ITA (DepCult), Débora resolveu pôr em prática uma campanha para o Dia Internacional da Mulher. “Eu estava desiludida com o comportamento das pessoas. Sugeriram flores para celebrar a data, eu achei muito brega, e os meninos não se importam


Nossa cultura é machista e, às vezes, eu não entendo que isso me prejudica Taíse Nurian, aluna do ITA

muito conosco”, lembra. Foi aí que ela desenvolveu frases em cartazes que foram distribuídos pelo ITA, pelo alojamento dos alunos (H8) e no Facebook. “Você diz que daria o céu para elas... mas ainda as julga pelo número de estrelas?” foi a frase da cam-

panha mais direcionada e “interna”, e segundo a diretora do DepCult alguns colegas disseram que foi um “golpe de mestre”. As meninas, então, finalmente se sentiram representadas como grupo. Thais aprovou a iniciativa: “A campanha fez que com que não nos sentíssemos sozinhas, serviu para sentirmos que podemos nos unir contra esse tipo de prática”. A colega de quarto de Thais, Taíse Nurian, também achou a campanha positiva, mas sente que é algo que precisa ser mais recorrente. “Sou a favor de ter mais ações como essa, e mais repercussão. Acho que a mente dos meninos está se abrindo, mas ainda tem muito machismo”, conta. A estudante de Salvador (BA) completa reconhecendo o machismo internalizado até mesmo nas mulheres: “Nossa cultura é machista e, às vezes, eu não entendo que isso

FOTO: EMELINE DOMINGUES

Rafaela Godoy

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me prejudica. Agora, consegui me libertar muito mais, e vindo morar fora eu consegui desconstruir certos preconceitos”. Um deles foi a liberdade das mulheres em relacionamentos. Taíse diz que agora busca pela igualdade e equilíbrio entre os gêneros. “Quando vim para cá, achava feio meninas ficando com muitos caras. Hoje em dia, acho totalmente normal uma pessoa ficar com quantas ela tiver vontade, desde que haja respeito”, conta.

A importância da representatividade

Além do enfraquecimento como grupo, a pequena parcela feminina na engenharia carece de maior representatividade, e foi então que Débora, mais uma vez, decidiu mudar o cenário. Como fruto de um programa que tem o objetivo de criar jovens líderes para o futuro, a estudante criou a página do Facebook “Vou ser engenheira”. Com mais de 800 curtidas, a página realiza entrevistas com engenheiras formadas e estudantes, visando dar visibilidade e dar o exemplo para quem sonha com a profissão, mas sente falta de alguém em quem se espelhar. “Eu queria que tivessem mais mulheres na engenharia. Eu queria que as meninas na escola pensassem em engenharia como uma opção para elas, algo que as pertence caso elas queiram”, explica Débora. A história dela poderia ser bem diferente, mas

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uma simples imagem representou uma grande força para sua jornada: “Eu não conhecia nenhum exemplo de mulher engenheira no meu convívio, então era bem estranho quando eu assistia ao vídeo institucional do ITA e via um quarto todo rosa. Quarto rosa? Menina? Senti que, por ter meninas lá, eu também conseguiria”. Os exemplos, ainda que tímidos, de meninas que enfrentam as duras estatísticas em busca de seus sonhos, podem inspirar jovens para a mudança no cenário. Uma publicação no Facebook, o exemplo de uma colega próxima ou a simples cor de um quarto podem, sim, ser parte da mudança na representação feminina na engenharia. •


PROFISSÃO

Quer ser cozinheiro?

Ou quer ser chef de cozinha?

FOTO: MISLENE FIRMINO

por Camila Ferracioli

Camila tem 22 anos e é estudante de Gastronomia na UFRJ

Grande parte das profissões possuem estereótipos, perfis que a sociedade inventa, como: todo personal trainer tem que ser magro e saradão e, se não for, não é um bom profissional e nutricionistas nunca (jamais!) comem petit gateau com sorvete e calda de chocolate, porque não é saudável! Com cozinheiros e estudantes de Gastronomia não é diferente. Assim que comecei a ter respostas para perguntas sobre qual profissão iria seguir, na época do vestibular, só ouvia coisas do tipo “Ah, ela vai ser chef! Que chique!” “Chef Ferracioli!” “Vai fazer aqueles pratos sofisticados iguais aos da TV, usar aquele chapéu grandão, olha que chique!” “Quando você vai fazer um jantar gourmet pra mim?” Então vamos lá: Não chame um estudante de Gastronomia de chef, nem pense que quando ele se formar ele vai ser um chef, porque chef de cozinha é uma posição, um cargo. Você estará sendo chef quando estiver no topo de uma brigada na cozinha, quando for o responsável por ela, o líder, mas ainda assim você será cozinheiro. Chef é um cargo, cozinheiro é a profissão! 13


Essa onda de reality shows e programas de culinária, em que profissionais da área aparecem com uma aparência saudável -sem olheiras nem varizes- iludem as pessoas, que passam a ver a Gastronomia como uma área de glamour, sofisticação e talvez fama e dinheiro. É por isso que as taxas de evasão dos cursos de Gastronomia no Brasil são tão altas, porque as pessoas se iludem com o que é mostrado na TV, com o que imaginam ser a vida de cozinheiro e quando descobrem a verdade, se frustram. Apesar de ser uma mera aspirante a cozinheira, poderia enumerar diversas verdades sobre como é ser cozinheiro no Brasil que a maioria das pessoas não imagina. A profissão é muito desvalorizada, a jornada de trabalho pode ir de 10h até quando seu corpo aguentar -não é raro ouvir relatos de uma jornada de 17h de trabalho, dependendo do lugar-, o trabalho é sob pressão, em altas temperaturas, em pé o tempo todo, com folgas geralmente apenas uma vez na semana e baixíssimas remunerações.

Tenho 22 anos e já tenho varizes. Mas eu olho pra elas e de certa forma sinto um orgulho pelo trabalho realizado todos os dias, por ser mais uma mulher em um meio profissional dominado por homens e pela satisfação em ver pessoas felizes ao terminarem uma refeição que ajudei a fazer. As pessoas que desejam ingressar nessa área precisam ter conhecimento da realidade da profissão. Não digo que ninguém deva sonhar em ser um chef famoso, que aparece na TV, ganha muito dinheiro e viaja muito. Mas é preciso saber que caso o desejo seja chegar lá, existe um caminho duro e literalmente doido à frente, e que, talvez, você não chegue. Se quiser ser cozinheiro pelo que sente ao cozinhar e ao estar em uma cozinha, ao servir pessoas, então vá em frente e tente, mas se quiser ser cozinheiro para ser chef, é melhor conhecer um pouco mais sobre a profissão antes de entrar em um curso profissionalizante onde geralmente a mensalidade é maior do que o salário de um cozinheiro recém-formado. •

De acordo com o MEC, em 2010 cerca de 80% dos alunos de Gastronomia no estado do Rio de Janeiro desistiram do curso. Por isso, é importante saber a realidade da profissão, que pode trazer reconhecimento, mas que tem um árduo caminho até lá.

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MODA

Vitrine sem regras Mulheres plus size e a desventura de uma moda que não as representa

FOTO: LÉO AUGUSTO

Por Emeline Domingues

Débora Fernandes

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FOTO: LÉO AUGUSTO

Débora Fernandes

Beleza real, corpo ideal? Padrões irreais irrompem televisões e revistas, impõem tamanhos inatingíveis e ignoram a maioria da população: segundo o Ministério da Saúde, 52,5% dos brasileiros estão acima do peso, enquanto 17,9% estão obesos. Os dados não mentem, e mostram uma oportunidade de mercado para a moda plus size, que é destinada a pessoas que usam roupas acima do tamanho 44. Esse nicho cresce 6% 16

ao ano, movimentando cerca de R$ 5 bilhões, o que equivale a 5% do total do segmento de vestuário, segundo a Associação Brasileira do Vestuário (Abravest). Apesar do crescimento, ele ainda é tímido e algumas mulheres sentem falta de roupas que vistam seus corpos. A assistente administrativa Bruna Masarolo, 28 anos e manequim 52, tem dificuldades em fazer compras de vestuário. “É muito difícil encontrar roupas específicas para o público jovem e, quando encontro, são bem caras. O que mais tem são roupas em tamanhos especiais com um ar mais senhoril”, conta. A estudante de Publicidade Daniella Zarro, de 21 anos, foi do manequim 54 para o 38, e conta que as diferenças na hora de comprar roupas são gritantes. “Por ter muita dificuldade de encontrar roupas de que gostasse, eu usava sempre a mesma coisa: jeans e camiseta. Raramente comprava em lojas físicas, encontrava o que eu gostava mais na internet, e sempre era mais caro. Hoje em dia acho roupas com muito mais facilidade, principalmente calças jeans, e os tamanhos ‘padrão’ são bem mais baratos”. Daniella emagreceu após uma cirurgia bariátrica e diz que, apesar de hoje ter aceitado o fato de ter feito a cirurgia e conviver bem com isso, passou por momentos difíceis. “Sofri muito no pós-operatório, e cheguei a me questionar sobre o porquê de ter feito aquilo: foi por mim ou pelos outros? Eu não me arrependo da cirurgia, mas hoje enxergo melhor a gordofobia da nossa sociedade”, desabafa.


Enquanto isso, a blogueira joseense Débora Fernandes começa uma pequena revolução na internet. Quebrando tabus e mostrando para o mundo que gordinhas podem, sim, usar tudo que quiserem, ela desconstrói regras que aprisionam e mostra no blog Débora Fernandes Plus algumas das peças mais desafiadoras para as mulheres, como o biquíni. “No ano passado fiz vários posts de biquíni, e tive um retorno muito legal das leitoras. Algumas disseram que compraram seu primeiro biquíni por minha causa e, quando li esse comentário, senti que valeu a pena o que fiz”, conta. Para ela, esse retorno é uma das melhores coisas: saber que mudou para melhor o jeito como alguém se sente com seu corpo e com a moda. Quanto às regras de moda plus size, a blogueira, que também é modelo e consultora de moda, se diz completamente contra. “A partir do momento que você priva uma pessoa de vestir algo, você a está julgando. Não se deve privar ninguém de usar o que gosta, o que você pode fazer é ajudar aquela pessoa a usar da melhor maneira as peças que tem vontade”, explica. Já Bruna fala que se atenta a algumas dicas de moda para facilitar na hora de se vestir. “Acho interessante parecer mais elegante. Elegante, e não menos gorda, porque gorda eu sou e não escondo isso. Gosto de me vestir de uma maneira que realce meus pontos fortes”.

FOTO: LÉO AUGUSTO

Inspiração

Dica definitiva?

Não existem regras universais de moda, e aquela velha história de “gordinha só usa preto, não pode usar listras, estampas e peças longas” já não existe mais para Débora. “O mais importante é conhecer seu corpo, saber o que você quer valorizar e disfarçar. A partir do momento que você conhece seu corpo, passa a se vestir melhor. Ame suas curvas, sorria” completa. • 17


Mulheres do mundo,

“uni-vas”! FOTO: MATHEUS CARLOS

Por Isabella Damião

Isabella tem 21 anos e é estudante de Jornalismo

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Sempre me senti deixada para trás por algumas amigas em certos assuntos. Roupas, maquiagem, acessórios, sexualidade... Alguns rapazes gostavam dessa atitude, me dizendo aquela velha frase “é legal que você não seja como elas” e me adotavam como amiga. Porém, quando chegava a hora de escolher alguma garota para se relacionar, os mesmos rapazes escolhiam justamente as mais “femininas”. A comparação começou a deixar um gosto amargo em minha boca. Passei a me sentir cada vez mais sozinha e estranha nesse mundo. Ah, como desejava que, em apenas uma vez, eu vencesse a comparação e alguém me escolhesse. Na internet, encontrei meninas que passavam pelo mesmo que eu. Meninas tão inocentes e cheias de vida como eu era na época, eram submetidas diariamente aos mais variados tipos de abuso por criaturas hediondas e negligenciadas por uma cultura que valorizava seus atacantes em detrimento de saúde física e paz de espírito delas.


PAPO DE AMIGA Alguns desses abusos nunca vieram até mim, uma vez que não sou o padrão que a sociedade encara como “esteticamente bonita”. Nunca me senti com tanta raiva. Raiva por ser comparada a meninas, quando nenhuma de nós deu a permissão para esta competição. Raiva por viver em uma sociedade em que somos pressionadas a nos encaixar em um padrão. Raiva por me sentir obrigada a competir com as meninas, quando o que eu mais queria era ser feliz da maneira que eu era. Mas isso foi só até me tornar mulher perante a sociedade. Em 2013, aos 19 anos, fui alvo de uma “cantada”. Ao me vestir “como uma menina” num dia que estava muito quente, um de meus colegas de faculdade, muito mais velho, me disse que eu estava muito bonita usando meu vestido, com meu decote e pernas de fora. A vergonha foi grande e a vontade de me cobrir, enorme. Tinha vontade de me encolher o máximo possível; de correr para casa e trocar de roupa. É loucura, mas me senti realmente suja com aquilo. A raiva por tais pensamentos veio depois. É meu corpo. Meu e de mais ninguém. A raiva só cresceu na semana seguinte quando, para o mesmo “senhor”, eu não estava bonita o suficiente porque estava de calça comprida. Foi no mesmo ano que o assunto ganhou nome e quem o trouxe até mim foi a cantora Beyoncé. Cresci escutando algumas de suas músi-

cas e vendo que ela era dona de seu nariz - e eu sempre quis isso para mim. Ao acordar em um belo dia e ver que seu álbum autointitulado estava entre nós, eu enlouqueci. Deixei que aquelas músicas entrassem em mim e algo “clicou”. Enquanto as amigas encaravam só a parte sexual das músicas e dançavam, eu vi aquilo como um grito de liberdade para tudo: meu corpo, minha sexualidade, meus pensamentos, minha vida. E dancei junto. Ao escutar a voz de Chimamanda Ngozi Adichie descrevendo algo a muito dentro de mim, a venda foi tirada. O assunto ganhou notoriedade em todos os lugares e eu entendi toda a complexidade dos nossos problemas. Abusos, violências, desprezo, descrédito, inferioridade, negligência. Não que o feminismo tenha resolvido os meus problemas. O movimento me fez mais consciente com os que acontecem a minha volta. Deu-me garras e voz. Abriu a porta para que eu começasse a buscar a minha felicidade. Aprendi que lutar por mim e por outras meninas não é errado. Que amar meu corpo não é loucura. Que ter ambição não deve afastar as pessoas que me desejam o melhor: eu posso ter uma carreira, marido e filhos. Fez-me ver que sim, eu mereço algo muito melhor do que eu buscava quando era mais nova e que ninguém vai tirar o meu sucesso e felicidade de mim. Nem de outra mulher, se eu puder evitar. • 19


Mulheres Trans: do silêncio ao gri Imagine só ter uma identidade de gênero imposta. Sentir-se uma de uma maneira, mas ter a obrigação de ser outra. Sentir-se mulher, mas viver em uma sociedade que te diz que você é homem. Essa é a realidade das mulheres transexuais, que possuem a identidade de gênero diferente daquela que lhe foi atribuída ao nascimento. Pessoas que precisam de voz, que exigem respeito e lutam dia a dia contra as dificuldades e preconceitos. Cinthia Góes tem 28 anos e desde criança já tinha uma inclinação feminina. Ela, que é cabelereira, conta que colocava camisetas na cabeça para fingir cabelos longos e prendia cobertores no cós da bermuda para brincar de saia. “Me sentia uma princesa”. E se a infância já não é muito fácil para a maioria das pessoas, para uma criança trans a dificuldade é ainda maior. “Tiravam sarro de mim na escola, diziam que eu parecia uma menina. Sempre fui diferente, mas até então eu não entendia muito bem o que acontecia comigo”. Sua consciência de que tinha algo fora dos padrões impostos surgiu muito 20

cedo. Aos 11 anos, Cinthia, ainda com a identidade masculina, começou a se apaixonar por meninos e, aos 13, já estava namorando. Na época não contou aos pais, mas aos 16 anos sua mãe a chamou para conversar. “Ela disse que sabia que eu era gay, mas que me amaria da mesma forma”, lembra Cinthia, que nunca teve problemas em casa e mora com os pais até hoje. A história de aceitação da família da jovem cabeleireira se assemelha ao acolhimento que Monique Top teve em casa. A jornalista relata que tem uma família muito aberta e receptiva. “Minha mãe é minha melhor amiga, e quando decidi assumir meu lado trans, nunca precisei dizer aos meus pais, eles sempre souberam”.

A transição

“Nunca me descobri, acho que não existe isso. Eu nasci assim, é um processo natural”. Foi esse o sentimento de transição de Monique. Ela diz que sabia ser gay, não sentia atração por mulheres, mas não havia a discussão de gênero. Aos 18 anos começou a frequentar o meio LGBTT (Lésbicas, Gays,


TABU

ito de liberdade

Por Emeline Domingues

Bissexuais, Travestis e Transexuais), e foi aí que o interesse por “se montar” surgiu. O termo é utilizado pelas drag queens e remete à caracterização para os shows. Quando Monique teve seu primeiro contato com as drags, logo quis se caracterizar como elas, e o resultado foi emocionante. “Me montei, olhei no espelho e vi que era eu, finalmente. Aquela imagem correspondia ao que eu era por dentro. Até então, toda vez que eu me olhava no espelho não me enxergava, achava tudo muito estranho”. Foi nesse momento que a jornalista percebeu que sua identidade era feminina, descobrindo também que não era homossexual, mas sim, trans. Cinthia também teve seu pontapé para a transição após o contato com drag queens. “Comecei a frequentar baladas LGBTT aos 16 anos e, um ano depois, me inscrevi em um concurso de drag queens”. Ela venceu o concurso. A maquiagem, peruca e o salto alto podem parecer simples elementos para quem observa, mas foram essenciais para a autodescoberta da cabeleireira. “Fui percebendo que toda vez que me

montava, me sentia realizada, amava o que via no espelho. Era a única maneira de eu me sentir bem, me sentia mais confiante e segura”. A um certo ponto, a transformação tornou-se uma necessidade e, por volta dos 21 anos, conversou com outras meninas trans e começou o processo de hormonização.

A hormonização e as formas femininas

Após revelar para sua mãe que não era homossexual, mas sim que queria uma identidade feminina, Monique decidiu iniciar a hormonização. Mais uma vez, teve todo o apoio de que precisou e, como a mãe é enfermeira, ela mesma aplicou os hormônios na filha. A hormonização das pessoas trans é feita para readequar o corpo ao gênero, e, no caso das mulheres trans, as formas femininas vão surgindo pouco a pouco. “A mudança foi maravilhosa, seios surgindo, cintura afinando, pernas torneando. Era uma alegria diária, era eu me reencontrando”. E vendo seu corpo se adequar ao seu coração e à sua mente, sua autoestima foi crescendo junto. 21


No entanto, em busca das tão sonhadas formas femininas, as jovens trans muitas vezes buscam alternativas um tanto quanto perigosas. E por conta da dificuldade em encontrar dados e pesquisas direcionadas ao público transexual, as consequências são graves. A Política Nacional de Saúde Integral de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais (LGBTT), do Ministério da Saúde, levanta um ponto alarmante para a saúde das mulheres trans: a aplicação do silicone industrial, muito utilizado para alcançar formas femininas de maneira imediata. Segundo a Política, “mesmo sem estudos específicos sobre o assunto, o dimensionamento do problema justifica a necessidade de definir e praticar protocolos clínicos para os serviços do SUS”. Rhayana Meirelles, militante e presidente da ONG Orienta Ação LGBTT de São José dos Campos, tem em seu corpo o silicone industrial. “Comecei pelo processo hormonal e, depois de alguns anos, parti para o silicone. Na época, só tinha acesso ao silicone industrial e tenho seis litros no corpo. Não aconselho a ninguém, mas é o caminho que muitas fazem”, conta Rhayana.

Militância e representatividade

Para lutar pelo direito das pessoas trans, a briga é difícil. Rhayana, que hoje tem 39 anos, é trans desde os 16 e milita em prol da causa, mas encontra diversas barreiras. “Infelizmente, no momento temos uma Câmara [Municipal] muito conservadora. Dos 21 vereadores atuantes, apenas três apoiam a

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causa LGBTT e defendem a questão de gênero. Portanto, em cada batalha já sabemos que o resultado será uma derrota”. Para tentar mudar o cenário político para a população LGBTT, a taubateana Monique Top decidiu levar sua representatividade à política da região. A jornalista especializada em política já foi candidata a vereadora e deputada estadual. Filiou-se a um partido que acatasse as demandas LGBTT e, apesar de não ter sido eleita, a aceitação da população foi positiva. “A causa LGBTT não é minha única luta, mas eu simplesmente por ser quem sou, já represento a causa. Conquistei muito respeito e reconhecimento das pessoas, isso foi muito importante e me deu credibilidade”, explica. Como toda mudança encontra suas barreiras e divergências, a luta pela causa LGBTT também está se adequando e conquistando espaços. Para Monique, o movimento trans é organizado, contando com fóruns e conselhos, mas são passos muito lentos. “Falta representatividade política efetiva, com pessoas eleitas, mas é uma longa caminhada. Fico feliz por fazer parte das pessoas que abriram essa porta para o movimento, espero que seja mais forte em alguns anos”, diz Monique. Rhayana também compartilha do mesmo sentimento de dever cumprido na luta, e reconhece as vitórias do passado: “Se hoje sou Rhayana e farei 40 anos, lá atrás muitas apanharam e morreram para que eu tivesse essa liberdade. Talvez eu não veja os resultados de muitas de minhas provocações, mas estou lutando pelas próximas gerações”. •

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Varie dades

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FOTO: ÉRICA MENDES

Juliana tem 23 anos e é ilustradora


Ponto e Vírgula

Poeta Soul Sou Poeta De lares e olhares Sou Poeta das luzes E de tantos pesares Sou poeta Deusa sem hora Da vanguarda, amante Escrava de outrora Sou poeta em alma Em cena, em arte Em pulmões Em metades Em simples suspiros de piedade

Letícia Ramos e Poliana Lorena, estudantes de Jornalismo, lançam em novembro o livro-reportagem “Ponto e Vírgula”, que conta a história de mulheres com câncer de mama na região do Vale do Paraíba. O livro é fruto do trabalho de conclusão de curso das meninas, e retrata a dor da perda, a alegria da vitória e as diversas dificuldades da jornada de guerreiras que lutam contra essa doença tão cruel. Se você gostou e quer ler o livro, envie um email para a Letícia: leticia.rramos@outlook.com.

Poeta sou Não pelo Senhor Amor E sua falta de senso de realidade Poeta sou Pela vontade de contar bobagens Em silêncios, vassalos, de mil milagres Melissa Mel* Melissa Mel é o codinome de uma mina de 24 anos que adora escrever, mas ainda é tímida para mostrar sua escrita para o mundo. Entretanto, a poetisa aceitou o convite para escrever para a Mina, sob a condição de manter seu anonimato.

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As filhas de

A luta diรกria das mulheres

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CAPA

MC Preta Ary e MC Meire

e Dandara

s negras contra a opress達o

Por Emeline Domingues

FOTO: EMELINE DOMINGUES

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Um nome pouco lembrado nos livros de história, talvez pelo mistério que ronda sua vida. A esposa de Zumbi, que lutou ao lado do marido em defesa do Quilombo, é mãe, é sangue que deu origem às mulheres negras no Brasil: Dandara dos Palmares. Pouco se sabe sobre história da mulher negra e escravizada que lutou com armas de ferro e de palavras, mas que raramente é citada nas salas de aula. Entretanto, sua resistência deu à luz mulheres que lutam por uma sociedade mais igualitária, e que a cada dia desafiam todas as opressões às quais são submetidas. As algemas não são de ferro, mas rasgam a alma e aprisionam essas mulheres dentro do preconceito. A falta de conhecimento sobre a história de Dandara destaca um importante pilar do racismo estrutural do Brasil. A historiadora Valéria Zanetti, autora do livro Calabouço Urbano, que trata da situação do escravo na sociedade brasileira, revela porque não temos livros que contêm a história de Dandara. “A história do Brasil foi escrita pela classe dominante, o homem branco. Por conta disso, não há nos livros os fatos sob o ponto de vista do negro. Os negros somente são citados em documentos judiciais, processos criminais”, explica. Esse fator colabora para a escassa disseminação da real situação do negro no Brasil, suas origens e sua vida. Atualmente, forças se unem para combater a discriminação e construir a real identidade do negro no Brasil. Um dos documentos que busca 28


embasar e explicitar o porquê da necessidade de se discutir a mulher negra na sociedade é o Dossiê das Mulheres Negras, estudo realizado pelo Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada). Em 2009, segundo o dossiê, o Brasil contabilizava 50 milhões de mulheres negras, em uma população total de 191,7 milhões de habitantes. Simplificando: mais de um quarto da população brasileira é composto por elas. Seu espaço na sociedade, entretanto, tem um alcance muito limitado. Comparando brancas e negras, as primeiras somam 49,3% das mulheres, enquanto negras são 50%. Mesmo com a maioria absoluta dos dados, as filhas de Dandara ainda sofrem com a opressão da maioria dominante. A mestre em Filosofia Política

Djamila Ribeiro tem sua linha de pesquisa voltada para a situação da mulher na sociedade, e faz um recorte em relação às mulheres negras. “Além da violência machista, a mulher negra lida com o histórico de anos de opressão. Esse estigma faz com que elas estejam mais suscetíveis à violência”, explica. O relatório do Ipea levanta também essa necessidade de se ter um olhar mais profundo sobre as opressões, dizendo que as situações do cotidiano “são vivenciadas de forma diferenciada se consideradas mulheres negras e brancas (...). A menção da desigualdade de gênero, considerando-se apenas homens e mulheres, torna-se, a partir desta perspectiva, bastante simplificador, e não reflete inteiramente o que de fato acontece”.

FOTO: LARISSA ISIS

Daniele da Mata

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FOTO: LARISSA ISIS

Larissa Isis

FOTO: LARISSA ISIS

Tássia Reis

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Com a voz: elas

Para mudar essa situação e gritar por justiça e representatividade, mulheres negras combatem com diferentes armas as inúmeras formas de discriminação. Algo que pode parecer muito simples, mas que tem uma grande importância no empoderamento da mulher, como a maquiagem, tem o poder de aumentar a autoestima e autoaceitação. A maquiadora Daniele da Mata trabalha para mostrar a beleza a mulheres, muitas vezes, esquecidas pela mídia e pelas marcas de cosméticos. Ela é fundadora da DaMata Makeup, escola itinerante de maquiagem para a pele negra, e viaja pelo Brasil levando a oficina de automaquiagem de maneira acessível e colaborativa. Porém, ela conta que a dificuldade de encontrar produtos próprios para a pele negra foi uma de suas preocupações. “Quando abri a escola de maquiagem fiquei com muito medo, pois como eu iria trabalhar? Toda a minha pesquisa para encontrar produtos, principalmente bases, foi feita com produtos importados. Fora do país existem marcas com grande variedade de tons, mas que muitas vezes não chegam aqui. Para mim, isso é preconceito. As marcas sabem que consumimos, mas preferem não trazer”, desabafa Daniele. Além da dificuldade em encontrar produtos, Daniele diz sentir que a publicidade não é direcionada à mulher negra. “Somos mulheres que consomem, independente da ‘raça’. Existem pessoas que nos representam, sim, modelos que lutam e resistem, mas ainda temos muito o que melhorar”.


FOTO: LARISSA ISIS

Janaína de Melo

Daniele da Mata FOTO: LARISSA ISIS

E é aí que Larissa Isis chega com sua sensibilidade em capturar imagens e sentimentos. A fotógrafa conta que também sente falta de representatividade da mulher negra. “Não somos representadas e ponto final. Raramente vemos negros em propagandas, acredito que seja porque os clientes não aceitam, pois não é o ‘padrão ideal’. Pô, que saco!”. Ela ainda pontua alguns momentos em que os negros ficam em evidência: “Somos lembrados apenas no Carnaval, aliás, por quê acham que toda mulher negra samba? Na Copa [do Mundo de Futebol], porque jogadores negros são bons, e em novembro, no Dia da Consciência Negra, porque, aí, todos querem falar de nós. E nos outros dias do ano? Estamos aqui todos os dias!”. Assim, Larissa, através de seu trabalho, constrói a imagem do negro com a visão por trás de suas lentes, cria referências para mudar a realidade que vive e mostra ao mundo uma outra que não são todos que querem ver. Para gritar ainda mais alto, ela criou o projeto “Cansei” - que consiste em fotografar mulheres negras segurando uma placa que contém algo que cansaram de ouvir, de fazer, de ver - e conta que o retorno tem sido muito positivo. “Acredito que quando as pessoas se identificam é sinal de que realmente valeu a pena. Recebo muitas mensagens de pessoas me contando sobre o que estão cansadas de passar. Realmente, cansamos”. O trabalho de criar referências e exaltar símbolos da cultura negra é essencial para a construção da identidade. A historiadora Valéria Zanetti reforça a

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importância de resgatar a essência do Ao falar sobre importância de seu ser: “Até pouco tempo atrás, o negro trabalho, Claudete não contém a emoprecisava se negar para se afirmar na ção, e o nó na garganta demonstra o sociedade, negar suas origens para ser amor que tem pelo que faz. “O meincluído. Os movimentos que buscam lhor de tudo é ver minhas irmãs empoexaltar a identidade negra são de ex- deradas, se olhando no espelho e se trema importância para construir uma sentindo lindas. É muito lindo ver uma visão positiva da cultura negra no país, menina se assumir”. A força da mulher afinal, anos se passaram com o negro negra está no corpo, na pele, na alma sendo lembrado apenas por seus as- e nos cabelos. pectos negativos”. Essa exaltação do lado negativo Black Girl Power feita pelos euroQue os cabepeus no Brasil fez los tomam boa com que a luta do parte do tempo negro fosse soda maioria das O melhor de tudo breposta pela luta mulheres, isso do branco, que se não é novidade. é ver minhas irmãs reafirmava através Mas o que vemos empoderadas. do apagamento por aí? Larissa dá do negro. O apauma dica: “Faça É muito lindo gamento foi feito um teste simples, ver uma menina através de diversas por favor: digite se assumir opressões, além ‘mulher bonita’ no do racismo, a subGoogle. ConcorClaudete Santos, da jugação da cultura de comigo, o que marca afro Chinue negra. aparecem são muPara suprir a lheres brancas”. falta de referências Fez o teste? Pois é. estéticas vem ClauUma das formas dete Santos, idealizadora da marca de de empoderamento da mulher negra é a moda afro Chinue. Em busca de roupas aceitação de seu cabelo e a consciência que remetessem ao seu estilo e exaltas- de que, se decidir alisar, deve ser sem sua beleza negra, encontrou mui- por escolha, e não por imposição. tas dificuldades e poucas referências. A cabeleireira Janaína de Melo, do Percebeu, então, que outras mulheres Espaço de Beleza Dandara, trabalha há também tinham este problema e, por mais de 20 anos cuidando dos cabelos isso, investiu na marca que tem roupas das negras, levando referências e afro de todos os tamanhos, principal- incentivando a autoaceitação, remando mente para mulheres gordinhas, que contra a maré do padrão liso. “Na têm dificuldade de encontrar roupas maioria dos salões, as fotos que vemos que sirvam em seus corpos. são de mulheres brancas e de cabelos 32


lisos, e é isso que nos é oferecido: alisamento. No meu salão não tem nada que não remeta ao negro. O cabelo negro tem muita diversidade, várias texturas. Queria que as meninas chegassem no salão e sentissem ‘esse é o meu lugar’, e foi isso que aconteceu”, conta. Somando-se à maquiagem e às roupas, os cabelos ajudam a formar um ícone de resistência. Para Janaína, a mudança na visão do próprio cabelo ajuda muito, altera a visão de mundo da mulher, porque, até então, a que ela tem é fora de sua representação. A desconstrução não é fácil, mas é feita por mãos fortes que se unem e são a esperança de fazer brotar no peito de mulheres negras de todas as idades a beleza que há em si. “No nosso salão chegam mulheres dizendo que têm cabelo ‘ruim’, trabalhamos muito para desconstruir isso. É mais fácil com as meninas mais novas, porque as mais velhas muitas vezes passam pela vida toda sem empoderamento”, conta Janaina. A dona de casa Shirlene Monticelli passou boa parte de sua vida buscando ser aceita, alisando os cabelos e fazendo exercícios físicos. “A busca era sempre externa, porque o interior estava derrotado. Quando comecei a faculdade de Serviço Social, questionei minha subjetividade”, conta. Seu primeiro passo para se aceitar e melhorar sua autoestima foi aceitar seu cabelo afro e cuidar dele como é, naturalmente. “Foi aí que dei a volta por cima. A minha libertação foi perceber que as pessoas estavam me olhando da maneira que realmente sou”. Ela diz que, como a mulher negra sofre muito com 33


a opressão, o processo de aceitação é de dentro para fora. “O impacto é o mesmo com muitas: quem sou eu? Eu achava que era o que as pessoas me diziam. Depois que me aceitei, parei de me importar com a opinião dos outros. Eu me acho linda, é isso que realmente importa”.

Mistura da raça

Mantendo vivas tradições afro-brasileiras, a educadora infantil Márcia dos Santos Cunha traz a riqueza do jongo para os dias atuais, e não deixa morrer essa dança tão emblemática dos negros do Brasil. O jongo é uma dança brasileira de origem africana, desenvolvida ao som de tambores típicos, como o caxambu, seu outro nome em algumas regiões do país. Vinda da Barra do Piraí, no Rio de Janeiro, Márcia não teve muita proximidade com o jongo em sua in-

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fância. Após conhecer o atual marido, o mestre jongueiro Laudení de Souza, teve contato com a dança e descobriu que sua própria mãe tinha memórias do jongo da época em que era criança. Ela conta que seus avós participavam, mas que sua mãe não podia participar por ser mulher. “Diziam que era uma dança profana e, por causa disso, maridos e pais não deixavam as mulheres e as crianças participarem, pois diziam que elas atrapalhavam. Por isso, o jongo acabou em muitas cidades, já que não tinha muita gente para continuar”, conta. Mas essa realidade hoje é diferente. Márcia e seu marido fundaram o grupo de jongo Mistura da Raça, em São José dos Campos, que resgata as origens, mas dá um toque de revolução aos antigos costumes. Hoje em dia, além de dançar, as mulheres tocam até os tambores na roda, mostrando que no jongo


contemporâneo não há espaço para o preconceito. Além disso, ela conta que lançaram uma novidade na música, que hoje inspira outros grupos. “No jongo temos o desafio, que é uma prática comum. Séculos atrás ele era entre dois jongueiros brigando, um querendo se impor contra o outro. Nós fazemos diferente: colocamos a questão da mulher, uma questão atual, dentro da música do jongo. No nosso desafio é o homem contra a mulher”. Ela conta que as pessoas adoram e que as mulheres cantam junto, se unindo e nutrindo um sentimento de empoderamento. “Se antigamente não podíamos nem participar, hoje em dia tocamos tambor, cantamos e ainda acabamos com os homens”, brinca. Uma atividade muito importante realizada pelo grupo é a participação em escolas. “Acreditamos que a mudança começa pelas crianças e que, por meio delas, temos o poder de transformar, pois é do ambiente escolar que as crianças tiram a maior parte de seus aprendizados”, conta Márcia. Valéria Zanetti, que também é educadora, ressalta a importância da educação na transformação da sociedade. “A educação tem um papel fundamental na luta contra o racismo, e os professores precisam estar bem preparados. As escolas têm que abrir as portas para o debate”. Segundo a educadora, o racismo não tem base científica, é construído social e historicamente, destacando ainda mais o que uma educação que luta contra a opressão pode fazer para mudar a sociedade para melhor.

Jongo de Desafio Grupo Mistura da Raça Ficou curiosa pra conhecer um pouquinho da letra do jongo de desafio entre homem e mulher? Veja um trecho da música: Homem: ”pode secar o mato que eu não vou morrer de fome, tá chegando o dia da mulher tratar dos homens.” Mulher: “essa mordomia mulher não vai te dar, se você quiser comer, vai ter que trabalhar. Peixe vai nascer plantado, milho vai nascer cozido, as mulher usando calça, vestindo saia no marido” Homem: “isso me dá dor de cabeça, isso me dá dor de ouvido, homem usando saia, isso é coisa que eu duvido.” (...)

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Centro Dandara

São José dos Campos tem um centro de apoio às mulheres com um nome forte: Centro Dandara de Promotoras Legais Populares. Inaugurado em 2001, o centro consiste em uma associação de defesa e promoção dos direitos humanos com enfoque nas questões de gênero, raça/etnia e desigualdades socioeconômicas. Sem fins lucrativos, a busca é, além de tudo, empoderar e amparar as mulheres da região. A casa atende mulheres vítimas de violência e promove ações para que elas conheçam seus direitos e se sintam acompanhadas. “O curso de promotoras legais populares proporciona formação política, social, sobre direitos civis e constitucionais. Conhecendo seus direitos na sociedade, a mulher se empodera, e isso é fundamental. A informação liberta”, conta Viviana Mendes, diretora de projetos do Centro Dandara. As atividades sociais transformam, e Viviana diz que consegue notar que as mulheres chegam de um jeito ao centro, e saem totalmente diferentes, autônomas e com conhecimento. As mulheres que fazem o curso estão sempre estudando e se qualificando para saber lidar com suas irmãs que podem sofrer qualquer tipo de violência e precisar de apoio. “Mesmo sendo ‘estranhas’, somos mulheres, e isso facilita no momento em que elas querem fazer uma denúncia. Quando ela chega para denunciar, já sofreu muitos tipos de violência, psicológica, física e até institucional”.

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Apesar do Dandara ainda estar levantando suas estatísticas para um recorte étnico-racial nos atendimentos, o Mapa da Violência construído em 2010 pelo Instituto Sangari mostra a anatomia dos homicídios no Brasil. Segundo o estudo, em 2010 morreram 48% mais mulheres negras do que brancas vítimas de homicídio. Valéria Zanetti, historiadora, levanta um importante ponto da realidade do nosso país: “Por mais que vivamos em uma dita democracia racial, podemos ver, sob diversos fatores, que isso não é verdade”. Além de seus ideais e sua união contra o racismo, as mulheres gritam em uníssono: apesar de a sociedade ter evoluído nos últimos anos, ainda há muito o que melhorar. E certamente a luta de cada uma se soma para construir um futuro melhor e, quem sabe, sem racismo. •


ENTREVISTA

“Origem Africana, Latino-americana” Resgatando origens com muita atitude, as MC’s Meire e Preta Ary vêm “metendo os pés na porta”, como elas mesmas dizem. As duas, que formam o grupo de rap D’Origem, rompem as barreiras do machismo e do racismo levando informação e empoderamento a quem mais precisa. Meire, joseense que trabalha em administração de condomínios e Ary, araraquarense

que é atendente em um restaurante, se unem e vivem o hip hop em sua essência: a sede de mudança e a visão de esperança. Há quase dez anos as jovens do D’Origem trazem ao Vale do Paraíba a força de suas rimas, gritando para o mundo a que vieram, impondo respeito e tocando em feridas que muitos preferem ignorar.

FOTO: EMELINE DOMINGUES

MC Meire e MC Preta Ary

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MINA: Como se conheceram? Meire: No palco. A Ary foi cantar em um evento de hip hop que eu estava participando. A vi cantando e fiquei maravilhada, “ah meu Deus, quero conhecer essa preta, ela tem que cantar comigo”, porque eu também cantava, mas assim como ela, em um grupo masculino. Eu já tinha muita vontade de trabalhar a visibilidade da mulher dentro e fora do cenário hip hop. Foi um casamento. Ary: Eu também tinha essa vontade, escrevia algumas coisas, mas até então nunca havia tido a oportunidade de cantar, pois era backing vocal. Não que eles me privassem nem nada, mas eu ainda não tinha a atitude de rimar. Eram letras deles, ideias deles. O nosso intuito é falar de ideias nossas, foi mesmo um encontro. MINA: Como surgiu o grupo? Meire: Nesse evento já conversamos e na maior cara de pau eu falei: “quero que você fique comigo”, porque eu já tinha um projeto. A partir do momento que criamos a dupla “Mc Meire e Preta Ary”, em 2006, tiramos do 38


baú e da cabeça nossas letras. Duas mulheres se entendem, falávamos dos mesmos assuntos e tínhamos os mesmos ideais: filhas de pais pobres, periféricas, com o intuito de visibilizar a mulher, falar do negro. MINA: Por que D’Origem? Ary: Um dia, cantando a letra da música, tivemos a ideia do nome. E, sem querer, tem muito a ver com a gente, é um nome sugestivo, faz com que as pessoas pensem em várias coisas e, por outro lado, ele reflete muito nossas características culturais. Meire: Automaticamente, falamos da origem negra, que é a nossa origem, dos nossos ancestrais. As pessoas sempre perguntam, por mais que seja um nome que vai remeter à origem africana. MINA: Do que falam as músicas? Ary: Muitas das vezes as pessoas falavam: “vocês vão falar só disso, só de mulher? Ninguém quer ouvir, os caras não querem ouvir”, até mesmo mulheres nos disseram isso. Mas a questão é justamente porque essas opiniões eram limitadas, a gente procurava falar da nossa realidade, que é 39


a mesma de milhares de pessoas, de mulheres. Não falamos só de mulher, falamos da periferia também, e lá tem homem, mulher, crianças. Falamos de coisas que negros passam. Temos que retratar, porque a mulher sofre por ser mulher, a mulher negra sofre duas vezes mais, por ser mulher e ser negra. Então são coisas que as pessoas precisam ouvir. Tem algumas músicas que levam as pessoas a uma realidade fora das que elas vivem, elas não estão alertas ao que está acontecendo. O rap desperta as pessoas para a realidade e para a luta. Você pode lutar contra isso. Meire: E também mostrar que você não está sozinha! É incrível como as pessoas param a gente nos lugares, mas principalmente as mulheres, falam que “escutei sua letra, me deu uma força, um ânimo”. Falar de consciência negra e de mulher é falar como um todo. Minha pele não é escura, mas eu sou negra, a cor da minha pele não condiz com meu nariz, com meu cabelo, tudo isso são vivências, e o rap dá essa possibilidade de liberdade de expressão. 40

MINA: Já sofreram com o machismo por falarem sobre mulheres nas músicas? Ary: Quando vamos a alguns lugares, ouvimos que preconceito racial e de gênero não existe, mas sabemos que existe sim, só é maquiado. Algumas vezes vemos aquela cara de admiração por serem duas mulheres, e alguns não nos acham capazes por sermos do interior também. São vários preconceitos a serem quebrados, mas assustamos alguns homens porque eles nos subestimam.


Meire: Em muitos dos rolês que participamos os homens acabam admirando. Recebemos muitos elogios dos manos também, dizem “você tem que conhecer minha mulher, minha mãe”, é incrível, compram CD para as amigas, mãe, filhas. Acho que às vezes a mulher tem medo de se mostrar porque lamentavelmente vivermos em uma sociedade machista, temos medo dos homens não gostarem. Alguns que ficam com cara de “não precisava de tanto”, mas a grande maioria, principalmente no rap, tem uma boa aceitação, às vezes nos subestimam, mas na hora, “uau”.

MINA: E o retorno das mulheres, como é? Meire: Temos uma identificação muito legal das mulheres, muitas amigas, pessoas desconhecidas procuram nossas páginas pessoais pra falar com a gente depois de ouvir as músicas, dizem que se identificaram. Às vezes, a mulher não precisa falar, ela coloca D’Origem pra tocar (risos). MINA: Como é o cenário hip hop para as mulheres? Ary: Há muitas mulheres com o mesmo intuito que a gente no rap, mas dependendo do assunto, ele é maquiado, não é relevante porque faz com que as pessoas se empoderem. O “melhor” é fazer com que essas pessoas sejam marginais para que ninguém as ouça. Não é “interessante” saber que o direito que a mulher tem, o quanto ela pode. Toda pessoa que tem esse tipo de luta não é interessante que seja vista, pois gera indignação e questionamento. Então não falta mulher no rap, falta espaço e visibilidade. Meire: Por aqui temos poucas mulheres. A característica da mulher que entra no rap acaba sendo de 41


militância, justamente pela nãoaceitação dos manos e da família. MINA: Como foi a aceitação da família de vocês quando decidiram cantar rap? Meire: É muito complicado chegar pra sua mãe e falar “mãe, canto rap”. Hoje, talvez não muito mais, mas quando começamos, sim. Eu canto há 14 anos e, quando eu comecei, embora eu fosse de periferia, tivesse vários problemas com a justiça e fosse uma adolescente muito rebelde, quando falei que cantava rap foi um choque, “agora marginalizou de vez, vai pra cadeia, virou bandida, só anda com ladrão”. Essa era a visão da minha família. Mas a gente acredita no hip hop como meio de transformação, e não só do menino preto pobre favelado, é de transformação dentro de casa, no seu dia a dia, do seu companheiro, da sua companheira. O rap foi uma transformação pra mim, a minha família viu a minha melhora como pessoa, como ser humano. Aquele movimento que ia “me enfiar no buraco”, me tirou do buraco. Hoje, no clipe do D’Origem tem minha família, eles amam o hip hop e me apoiam. 42

Ary: Quando falei pra minha mãe que eu ia cantar rap ela falou: “Não faz isso, rap? Vai cantar outra coisa, isso é coisa de maloqueiro”, e hoje ela é uma das minhas maiores fãs. É muito importante aprender a respeitar. MINA: Qual a importância do rap? Ary: Existe rap pra curtir, mas a maioria é pra conscientizar, ele surgiu pra isso. Tem outras vertentes, mas a ideia de quando surgiu foi essa, pra fazer com que os jovens que estavam se matando no tráfico tivessem uma alternativa. Algumas pessoas, por não conhecerem, acabam tendo uma visão distorcida, mas a gente tá aí pra mudar essa mentalidade. Meire: A nossa característica é a militância. O rap pra nós veio com esse significado. Muitos jovens de hoje talvez não vejam da mesma maneira que a gente porque pegaram um outro momento, não viveram toda a luta. Hoje estamos de calça apertada, maquiagem. Quando começamos a cantar rap as mulheres não andavam assim, elas se vestiam como homens pra poder fazer parte do cenário, porque você só era aceita se fosse vista


como eles, pra você ver como a sociedade é machista. MINA: Qual a relação do rap com a vida das pessoas? Meire: Já participamos de eventos, já ministramos palestras inclusive na Fundação Casa, é muito louco ajudar as outras pessoas, jovens e crianças, principalmente. Já encontrei ex- internos da fundação e ouvi “poxa, escutei o que você disse naquele dia, mudou a minha vida”. Sabe qual é a responsabilidade de ser um

agente de transformação, de mudança de vida? É uma responsabilidade muito grande e é muito gostoso, porque poucas pessoas vão experimentar isso na vida. •

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Representatividade, diversidade e clones

FOTO: JULIETA VINHAS

Por Paula Vinhas

Paula tem 21 anos, é estudante de Jornalismo e apaixonada por séries

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Se você ainda não faz parte do Clone Club, pegue sua agenda e marque uma maratona de Orphan Black para o próximo final de semana. Essa série de ficção científica canadense tem cuspido na cara dos padrões sociais e construído personagens femininas incríveis. Você pode argumentar que mulheres fortes em obras de ficção científica não são nenhuma novidade. Ellen Ripley em Alien, Sarah Connor em O Exterminador do Futuro ou Alice em Resident Evil; entretanto, todas essas mulheres incríveis estavam inseridas in a men’s world. A cartunista Alison Bechdel criou um teste que pode não definir a qualidade de uma obra, mas apresenta um cenário alarmante da completa falta de representatividade da mulher nos roteiros. O teste foi criado para aplicação nos quadrinhos, mas podemos utilizá-lo das maneiras mais variadas. Se você ainda não conhece o teste, escolha um filme, seriado, livro ou qualquer tipo de história e faça três perguntas bastante simples: Existem no mínimo duas


RESENHA mulheres com nome? Essas mulheres conversam entre si? Sobre alguma coisa que não seja um homem? E quando eu digo “alguma coisa que não seja um homem”, pode ser qualquer coisa, até mesmo um simples: “me passa o sal?”. E aí, quantas obras que você conhece passaram? Orphan Black chega detonando todas essas perguntas contando a história de Sarah Manning. Após presenciar o suicídio de uma mulher idêntica a ela, Sarah descobre que faz parte de um experimento de clonagem e terá que se unir a suas irmãs para descobrir o que está acontecendo. Então, se você ainda olhava para alguma protagonista feminina e acreditava naquela balela de “isso, sim, é mulher de verdade”, prepare-se para rever seus conceitos e descobrir que todas somos mulheres de verdade. O pano de fundo da clonagem acaba se tornando o cenário perfeito para debater questões de identidade. Apesar de possuir os mesmos genes, cada clone tem personalidade

e história própria, são personagens extremamente complexas, com pontos fortes e fracos que vão te conquistar a cada episódio. Seja como uma dona de casa suburbana ou uma cientista lésbica, nenhuma mulher é subestimada em Orphan Black. Em meio a todo esse clima de empoderamento, o seriado ainda consegue tratar de temas como orientação sexual e gênero com naturalidade. Resumindo: uma série na qual mulheres se unem, se ajudam, se amam e às vezes ainda lutam entre si. Se todos esses motivos não pareceram suficientes para você querer fazer parte do Clone Club, a atuação incrível de Tatiana Maslany é minha cartada final. Indicada ao Emmy (prêmio da televisão americana) em 2015, Tatiana é uma atriz maravilhosa que consegue dar uma personalidade única a múltiplos clones e, só com sua interpretação, já consegue fazer valer a pena cada hora de maratona. •

• O site spoilers.tv.br tem ótimas críticas de seriados, sempre desconstruindo, falando de representatividade e preconceito. • O podcast “Mamilos” tem um episódio especial, o 41, sobre a violência contra a mulher na internet. Todos os programas são apresentados por duas mulheres incríveis, com um conteúdo cheio de inteligência e empatia. 45


Beleza Natural Os cosméticos naturais e seus benefícios para a saúde Por Emeline Domingues

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BELEZA & SAÚDE Pelas mãos de mulheres nascem cosméticos que prometem nos remeter às origens. Óleos essenciais, ervas e todo tipo de ingrediente natural são transformados pelas alquimistas da natureza em barras, cremes e pomadas com poderes quase mágicos. Se os industrializados fazem bem ou não para nossa saúde é uma controvérsia até mesmo entre os especialistas. Uma das substâncias que mais levantam polêmicas, o parabeno (um tipo de conservante utilizado em cosméticos industrializados), gera dúvidas em relação a possíveis malefícios ao organismo. “Um exemplo de discussão é a possibilidade dele causar câncer. Porém, atualmente, tanto a Sociedade Americana de Câncer, quanto a Agência Internacional pelo Estudo do Câncer, que faz parte da OMS, afirmam não existir provas dessa correlação”, pontua a dermatologista Leandra Leão. A preocupação com a saúde motivou a estudante de farmácia Fefa Pimenta a buscar alternativas aos industrializados. Em 2012, ela viu o marido ser diagnosticado com um tumor maligno e decidiram repensar todos os seus hábitos. “Notei o quanto nos intoxicamos com pequenas coisas, dentre elas, os cosméticos. Gosto muito de uma frase da Ayurveda (medicina indiana) que diz: ‘passe na sua pele apenas o que você poderia comer’. E não é verdade?”. O mais bonito da história de Fefa é que ela demonstra por meio dos cosméticos o amor que sente por seu marido. Ele, por sua vez, ao ver a dedicação da esposa, sugeriu que come-

çasse a comercializar esses produtos para que mais pessoas fossem abraçadas por esse carinho.

Responsabilidade

Quem pensa que não é necessário estudo só porque os produtos são artesanais, está muito enganado. Para trabalhar com fórmulas caseiras é necessário saber a combinação de ingredientes e há cursos e oficinas especializados no assunto. Maísa Correia, dona da marca de cosméticos naturais Donaflô, tem pai químico e irmã farmacêutica que a ajudam nas formulações, e também já fez oficinas de cosmética natural. Fefa, além da faculdade, é formada em aromatologia, perfumaria natural e botânica, argiloterapia e psicoaromaterapia. Tudo isso para garantir a qualidade dos produtos fabricados. Entretanto, mesmo com ingredientes naturais e estudo das fórmulas, os produtos naturais também podem causar alergias e irritações, motivo pelo qual um profissional deve ser consultado para cuidar de qualquer problema. A dermatologista Leandra alerta que reações, queimaduras e manchas podem aparecer na pele mesmo com produtos absolutamente naturais, o que não dispensa o conhecimento do produto utilizado e a consulta a um profissional especializado. As meninas do Balaio Aromático, Julianne Armstrong e Luciane Hulyk, também afirmam que alergias podem surgir com qualquer tipo de produto, mas 47


ressaltam que quando o produto é natural, a lista de ingredientes é bem menor, o que facilita na identificação do que pode causar a reação.

O QUE SÃO PARABENOS?

Procedência das matérias-primas Além dos cuidados com a beleza, as meninas que produzem os cosméticos naturais têm uma preocupação em comum: o impacto ambiental. “A relação das pessoas com a natureza causa impacto, sempre! É uma troca. Mas se pudermos fazer com que essa troca seja cada vez mais positiva, é isso que faremos”, conta Julianne. Maísa se preocupa em comprar alguns produtos como mel e ervas orgânicos de pequenos produtores, pois confia mais em seu trabalho e são mais acessíveis. “Eu já tive contato com produtores rurais, sei como eles trabalham, é algo muito mais natural e com respeito à natureza”, conta. Fefa também incentiva pequenos produtores, de preferência orgânicos, por acreditar que formam uma rede de produção. Outros ingredientes são feitos por ela mesma, através de frutas, castanhas e plantas em geral, como leites vegetais, polpas e extratos. Tudo com muito respeito à natureza e consciência. •

• Parabenos

são substâncias químicas sintéticas utilizadas comumente em cosméticos com a finalidade de conservação de produtos, evitando a contaminação por micro-organismos.

• Os

tipos mais comuns encontrados nas fórmulas são: metilparabeno, etilparabeno, propilparabeno e butilparabeno.

• Com

base em estudos sobre a substância, a Anvisa permite que os parabenos sejam empregados em produtos cosméticos.

• Os

parabenos são utilizados em produtos como shampoos, hidratantes, lubrificantes, maquiagens e perfumes. Fonte: Anvisa (Outubro 2015)

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CRÔNICA

Parto da palavra FOTO: ALINE LARA

Por Mônica Lisboa

Mônica tem 23 anos, é escritora e estudante de Publicidade e Propaganda

Incessantemente deposito da fé de que as palavras são as maiores armadilhas do mundo. E os escritores... Ah! Os escritores sabem e sempre souberam da coisa. Há lucidez de que o uso de cada palavra, vírgula e entonação podem conquistar o mundo; dão esperança, matam, morrem, iludem. Eu, como aspirante de sua melodia, tenho o devido conhecimento, respeito e prudência. Algum tipo de zelo é preciso em algo que transmite tanta emoção, onde somos mais humanos. Mesmo com tanta precaução, elas me hipnotizavam; levavam-me para longe, para onde pudesse dançar o ritmo delas. A brisa de uma dança leve, como se o vento conduzisse. Feliz de quem ousar sentir tal viagem. Ora minha felicidade era debruçada no papel, acariciada por meus dedos, pintada com meu sangue, minha tinta. Ora minha raiva, meu ódio, meu repúdio era agressivamente agredido, amassado, rasgado. Emoções humanas. E palavras. Sempre as palavras. Infelizmente - até felizmente em alguns casos - algumas são encaixadas 49


FOTO: PEXELS / DOMÍNIO PÚBLICO

de tal forma em nós que nos prendem imensamente. Aquela frase dita, escrita, que nos arrebata por dentro por tempo indeterminado. Que nos traz traumas, rancores, sentimentos de vingança... Mas, assim como enfraquece, nos ergue, como quando temos aquela carta de amor, de compaixão, de saudade. Do coração falando. Que os dias podem passar e serão lembradas com um sorriso. Essas são as palavras mais difíceis de encontrar: as sinceras, as vivas! Mas acredito que todos nós merecemos um dia encontrá-las. Assim como uma alma que escreve, sou humano. E muitas dessas palavras

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me embalam de vários modos. Mesmo lidando frequentemente com palavras, histórias e ficções, caio na armadilha chamada poesia. Perco-me em sua sedução. E gosto de me perder, mas na perdição sincera, não barata. Da sedução de penetrar à alma. Essa é a mais difícil. O carnal é fraco e efêmero. E nós, escritores, sabemos disso e tiramos proveito. Escritor tem algo de sensual, exala esse sabor. É um conquistador nato, com um charme misterioso e díspar. Joga a carta e tem cartas para jogar. Só preciso de uma palavra em sussurro e já era. Eu te ganho. Inteiro. •



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