Mitocondria #1

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Foto: gualter naves

a CULtUra qUe resPira a Cidade 0 1 Maio de 2014

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Biblioteca Pública Estadual Luiz de Bessa Nesta página, em que comemoramos 2014 nossos 60 anos, agradecemos todos que construíram esta história, levando para suas casas páginas e páginas do nosso acervo e que mantêm em sua memória muitos momentos deste tempo.

Biblioteca Pública Estadual Luiz de Bessa 2014

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editoriaL

A CULTURA que respira a cidade Esta revista é resultado de uma necessidade intrínseca ao humano: o pleno exercício da liberdade de expressão. Não essa que vem servindo de adereço a uma suposta afirmação de cidadania leviana e autoritária, que ofende, humilha, reforça estereótipos em nome de quase nada. Mas a liberdade que reafirma direitos conquistados historicamente, que abre caminhos para reflexão, crítica e autocrítica, acerca de uma realidade que nos salta aos olhos. Muitas vezes, sem que tenhamos tempo de percebê-la.

Quer tratar de uma cultura construída e consolidada coletivamente, numa sociedade de indivíduos heterogêneos, singulares por natureza, atados por sentimentos comuns. Por isso será generosa na busca e no reconhecimento das múltiplas identidades, comprometida com os diferentes pontos de vista, a interação e a convergência, bem como atenta à cultura que respira a cidade, que reflete o que somos e o que não queremos ser. E, nessa toada, se permitirá todas as licenças poéticas necessárias, sem pudor para lidar com a palavra que revela o olhar, o pulso e a respiração de quem a traduz, em tempos e sotaques um tanto particulares.Faz parte desta aventura um time que ainda não tem a real dimensão do que está por vir. São eles os mitocondríacos Simone, Chico, Baxter, Jaque, Margot, Gualter, Camila, Hudson, Lu, Fábio, Magali, Catiara Daniel, Ricardo, Dani, Alex, que aceitaram o desafio com surpreendente sentimento de adesão a uma proposta ainda embrionária. Antes deles, Laura, Eliane, Solanda, Soraya e Perla, que acreditaram numa ideia então intangível, que só agora poderão tatear. E você, que renunciou, pelo menos por este instante, à solidão das redes sociais para experimentar outra forma de compartilhar, curtir e comentar relações que se estabelecem em outro ritmo. Não menos fugaz. Nem melhor. Nem pior. E se for o inverso, pouco importa. Mitocôndria parece uma brincadeira. Ou o nome de uma praga. Talvez seja ambos. Seja como for, faz referência a organismo responsável pela energia e respiração das células fundamentais ao corpo humano. Nada mais afim ao que reconhecemos como cultura, ao que ela representa em todas as suas dimensões, materiais e simbólicas, na vida de cada um, e ao papel que ela assume nos territórios visíveis ou não de qualquer cidade.Nas próximas páginas está o melhor que pudemos concretizar, com a única ferramenta capaz de possibilitar tal ousadia: disposição para preservar sentidos alertas e conectados. Não espere relatos empolados e pedantes. Nem verdades inquestionáveis. Adiante, estão reunidos comentários, críticas, opiniões e olhares acerca do que nos tocou nos últimos meses. Esperamos que valha a leitura Janaina Cunha Editora Geral

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expediente Janai na Cunha E diç ão Ge r a l Janaina Cunha E diç ão adj un ta Ricardo Aleixo Re daç ão

Editora geral Graduada em Comunicação Social - Jornalismo, pela PUCMinas, tem especialização em gestão cultural, atuou como repórter nos jornais O Tempo e Estado de Minas, e integrou equipe da revista Roda – Arte e Cultura do Atlântico Negro, como editora adjunta e repórter especial. minajcm@yahoo.com.br

C hico Cereno, Ice Band, Simone Castro, Magali Simone, Daniela Mata Machado, Black Josie

Re v i são Marcelo Hauck F oto gr a f i a Gualter Naves

Ric ardo Ale i xo Editor adjunto, cronista e redator Poeta, escritor e artista visual. Autor, entre outros, dos livros “Modelos vivos” (2010) e “Mundo palavreado” (2013). É editor da revista “Roda – Arte e cultura do Atlântico Negro” jaguadarte@hotmail.com

Proj e to Gr á f ico Gustavo Baxter e Daniel Brasil

C hico Cere no

Di agr a m aç ão Alex Oliveira e Daniel Brasil Produç ão E xec u t i va Jaqueline Cunha Melo Ge stão e S ust e n ta bi li dade Camila Collier A sse ss ori a de I mpre nsa A Dupla Informação A sse ss ori a Con tá bi l Clac Cultural

I mpr e ssão

Gráfica e Editora O Lutador

Tir age m

1 mil exemplares

Periodic idade e-m ai l

Bimestral

revistamitocondria@gmail.com

Te l e fone

+55 (31) 3267-2419

Redator Graduado pela UFMG, atua como diretor artístico, produtor cultural e atualmente é coordenador de ações internacionais do Programa Música Minas. É membro do Fórum da Música de MG e representante da aérea de musica no Conselho Municipal de Cultura de BH. chicocenicas@gmail.comv

Gustavo Ba x t er Designer Fotógrafo profissional reconhecido nacionalmente, foi citado pelo colunista da ESPN Brasil e guia de montanha Eliseu Frechou como “Uma das grandes revelações da fotografia de montanha do Brasil”. Tem trabalhos publicados em revistas como Go Outside, Fotografe Melhor, Revista Brasileira de Ecoturismo entre outras, além de exposições coletivas e individuais em Minas Gerais, Maranhão e São Paulo. gustavobaxter@gmail.com

Ice Band Redator Rapper e arte-educador, Ice Band é idealizador do Projeto Hip Hop – Educação para a Vida, de cultura e mediação de conflitos, realizado em escolas públicas, é presidente-fundador da ONG Centro de Referência Hip Hop Brasil e desenvolve trabalho autoral no rap mineiro. crh2b@yahoo.com.br

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equipe Si mone C a st ro Redatora Natural de Belo Horizonte, jornalista também formada em direito. É colunista de TV dos jornais Estado de Minas e AQUI, tendo atuado no Diário da Tarde. Observadora atenta da cena cultural, fez incursões no jornalismo cultural em Portugal, na década de 90. simonearcastro@gmail.com

Gualt er Nave s Fotógrafo Graduado em Publicidade pela PUCMinas (2000) e em Psicologia pela Fumec (2005), atua como fotógrafo desde os anos 90. Integrou equipes dos jornais Hoje em Dia, Estado de Minas, O Tempo e da revista Minas Business. Premiado em diversos concursos, incluindo Carnaval BH 2013. gualternaves@lightpress.com.br

Dan ie l Br a si l

Dan ie l a M ata M achado

Design Gráfico Pós-graduado em animação na PUC-Rio. Focado em motion design, animação, 3D e pós edição, nos tempos livres fotografo e ilustrado. daniel@madmail.com.br

Jaque li ne Cunha Me lo Produtora executiva Atua em projetos como Hip Hop Educação para a Vida, Mostra Movimentos Urbanos FIT-BH 2010, da performance Barrocodelia, de Ricardo Aleixo, Circuito Musical Status, Diversidade Urbana no Reciclo Asmare e revista Roda – Arte e Cultura do Atlântico Negro. jaquelinecmelo@yahoo.com.br

Redatora Graduada em Comunicação Social, com habilitação em Jornalismo, pela PUCMinas. Tem especialização em Gestão Cultural (UNA). Atuou no jornalismo cultural por mais de 10 anos, com ênfase na cultura da infância, desde a concepção do website BH da Meninada, em 2012. danielamatamachado@gmail.com

C a mi l a Col lier Gestora Graduada em Turismo e Hotelaria pela Fead – Centro de Gestão Empreendedora, é consultora de planejamento de turismo municipal ou regional, com foco em roteiros turísticos e culturais, com ampla experiência em articulação institucional. camilacollier@hotmail.com

Bl ac k Josie

M agali Si mone

Redatora Diretora Musical, cantora e cravista do Grupo de Estudos de Música Histórica Cameratta Lusittana, que se dedicava à interpretação da música colonial brasileira. Estudiosa da música popular brasileira dos anos 70, atua como DJ, tecladista e preparadora vocal. djblackjosie@gmail.com

M arce lo H auc k Revisor Doutor e mestre em Literaturas de Língua Portuguesa pela PUCMinas, pós-graduado em Tradução pela Universidade Federal de Minas Gerais e graduado em Letras pela Universidade Presidente Antônio Carlos, é professor de Língua Inglesa e tradutor. marceloarhauck@hotmail.com

Redatora Jornalista graduada pela PUCMinas, com pósgraduação em Comunicação, Mídias, Línguas e Tecnologias (Uni-BH) e mestra em Letras (UFSJDR). Atualmente trabalha como professora do curso de Jornalismo da Faculdade Estácio de Sá-BH e é colunista do site BH da Meninada magalisimone1@gmail.com

aLEX OL I V EIRA Produtor Editorial / Design Gráfico Graduado em Produção Editorial pela UNI-BH (2004), com Pós-graduação em Imagens e Cultura Midiáticas pela Universidade Federal de Minas Gerais (2007). Integrou equipe do jornal O Tempo e as principais agência de propaganda de Belo Horizonte. Desenvolve projetos com publicidade e propaganda e webdesign. alexcezar1970@gmail.com

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BarBas de MoLHo?

e L eVad or de se rV iÇo

e Nsa io CULt Ur a Ur BaNa

seMeNte

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Festa PoPULar

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eM seU LUG ar

Cidade sUsPeNsa

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aNotaÇÕes

sUMário

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F e s t a p o pul a r

Enc o n t r o s In t e r n a c i o n a i s d a m ú s i c a VA L E U, Z É !

P A L C O E F U N Ç Ã O SO C IA L

E x p e r i m e n t a çã o D i g i t a l

ETER N O E I N ES G OTÁ V E L

Hotel BogotA Berlin

T e mp o d e r e c o n s t r u i r

S U M á RI O

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i n s t i t uc i o n a L

MGS mergulha no universo das artes O filme O menino no espelho e o próximo CD do Pato Fu estão entre os projetos patrocinados pela empresa Fotos: Gustavo Baxter/Divulgação

Cora Coralina disse, certa vez, que “se a gente cresce com os golpes duros da vida, também podemos crescer com os toques suaves na alma”. O sentimento da escritora é compartilhado pela presidente da MGS - Minas Gerais Administração e Serviços S/A, Soraia Ghader. Como a poeta, ela acredita que a arte é capaz de gerar nas pessoas uma espécie de encantamento que as conscientiza de seu papel na sociedade de forma mais leve e criativa. “Quantas pessoas não se deixam inspirar por filmes, músicas e espetáculos para mudar alguma coisa em sua vida? A cultura educa e desperta quem, na correria diária, não tem tempo para fruir da beleza da cidade onde mora e da responsabilidade de cuidar não só das ruas, mas de todos os espaços que ocupa. A arte é transformadora”, afirma Soraia Ghader. Imbuída desse sentimento, a MGS celebra seus 60 anos, em 2014, com uma decisão importante, que ressalta sua responsabilidade social: a empresa, que conta com mais de 20 mil empregados que prestam serviços em 163 municípios mineiros, incluindo a capital, decidiu investir em cultura, contribuindo para o desenvolvimento do setor artístico no Estado. Entre dezenas de projetos aprovados pelas leis Municipal e Federal de Incentivo à Cultura, a MGS escolheu o filme O menino no espelho, a programação artística do Ecum - Encontro Mundial das Artes Cênicas, a gravação de CD que comemora os 20 anos da banda Pato Fu, a revista Mitocôndria e projeto da Fundação Clóvis Salgado. “A parceria entre a Fundação Clóvis Salgado e a MGS é de grande importância para a nossa instituição”, destaca Fernanda Machado, presidente do maior complexo de produção e fruição cultural do Estado.

Valorização A ideia de investir em cultura era um desejo antigo da empresa, lembra a presidente Soraia Ghader. “Há muito tempo já discutíamos essa possibilidade. Além de acreditar na capacidade transformadora da cultura, queremos valorizar os nossos 20 mil funcionários”, disse. Ela lembra que a MGS não é a única patrocinadora dos projetos apoiados, mas espera que o aporte seja tão importante para os realizadores como a execução dos projetos será para a empresa. Em contrapartida aos investimentos feitos, observa Soraia, os funcionários terão, por meio de sorteio, acesso a sessões exclusivas do filme O menino no espelho, ao show do Pato Fu e a CDs da banda, entre outros benefícios.

Lino Facioli interpreta o protagonista Fernando, no filme O menino no espelho Para Soraia Ghader, os investimentos em cultura são também uma forma diferenciada de valorizar os empregados da MGS. Muitos terão a oportunidade de experimentar, pela primeira vez, a expressão artística em diferentes formas. “Acredito que nossos funcionários terão orgulho de trabalhar em uma empresa que acredita no potencial transformador da cultura. A arte desperta talentos, muda a forma de enxergar as coisas, estimula novos ideiase faz nascerem sonhos”, afirma.

Cultura Realização de impacto nacional, com estréia prevista para 27 de junho, a história do menino que queria ter um sósia para ficar livre de “fazer as coisas chatas da vida” será narrada no filme O menino no espelho – baseado na obra do jornalista e cronista mineiro Fernando Sabino. Dirigido por Guilherme Fiúza, de Meu nome não é Johnny (2007), o filme conta com produtores como André Carreira, de Lavoura arcaica (2001) e de Uma onda no ar (2002). No elenco, Mateus Solano e Regiane Alves, entre outros artistas. “Os recursos da MGS e dos demais patrocinadores foram fundamentais. Fazer cinema é uma atividade muito cara, que exige a contratação de uma grande equipe”, lembra André Carreira. Idealizador do Ecum – Encontro Mundial de Artes Cênicas, Guilherme Marques também destaca a importância do patrocínio da MGS, destinado a viabilizar a programação artística prevista durante a realização do Encontro. O Ecum promove discussões fundamentais sobre o teatro brasileiro e internacional, e conta com a participação de artistas de diferentes segmentos.

Magali simone

Este é um espaço destinado aos patrocinadores e apoiadores que tornam possível a realização da Mitocôndria. Aqui, eles também são notícia.

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ensaiO Fotos: Gualter Naves

CULT URA URBANA

A estética das ruas na perspectiva do fotógrafo e pesquisador Gualter Naves. Veja mais no miolo desta edição

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de oLHo Na CeNa Foto: gualter naves

Bar dançante, o Bolota reúne dezenas de pessoas que se divertem ao som de música ao vivo.

Cidade sUsPeNsa As vielas verticais de um hipercentro múltiplo

o centro urbano suspenso nas noites mineiras é um convite à boa música às pessoas enfim o que poderíamos chamar de aperitivo social sonoro (ASS) no Casarão do Soul por exemplo o aperitivo sonoro é a Black Music a bebida sonora é James Brown Soul Band ou magnificamente JBS é com esse deleite musical que pessoas de diferentes camadas sociais do policial civil ou militar aposentado à velha guarda da malandragem e do cidadão se divertem gentes dos antigos redutos da Soul Music onde e quando os agentes de segurança chegavam se ouvia a famosa frase: cidadãos para um lado, traficantes pro outro putas gays e lésbicas pro outro nisto se ouvia o tilintar de facas estiletes e

canivetes entorpecentes e até arma de fogo, hoje em dia já não tem tensão o lance é diversão se soltar extravasar através da dança o dia a dia estressante esta energia se renova na força Soul ou Soul Power como todos gostam de falar atinge mineiros e convidados que soltam o gingado e fazem da sexta feira o melhor dia de suas vidas neste momento sinto entre os convivas que aquele aperto no buzão o acordar cedo na matina a marmita azeda o calor infernal e os suores com diferentes odores de marcas de desodorantes famosas já ficaram no passado nas horas dançantes regadas a boa cerveja com preço amargo ou mesmo um bom vinho ou destilado nacional ou importado fazem do salão uma sauna dançante é uma boa pedida para um corpo saudável queimar as calorias ao som dos DJs Convidados da noite que se revezam no amor ao Soul aos discos às

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de oLHo Na CeNa Foto: gualter naves

A Praça 7 é um dos principais cenários da “cidade suspensa” em BH

BoLota re staUr aN t e e sHoW av. afons o Pena, 5 26, C e n t ro (31) 3 201-7810 danças e às amizades o bacana é ver que existe uma Diegese (envolvimento pessoa com ação) entre os convivas a música soul man.s e mina.s é música show é a Mitocôndria envolvente de timbres vocais misturada à soul band com seus baixos e baixistas sax e saxofonista guitarras bumbos e caixas enfim esta magia Soul que contagia é a música made in usa com JamesBrownmadein. brasilcom Gerson King Combo que conta histórias mirabolantes sobre a vinda de James Brown ao Brasil consta que Mister James convidou Mister Combo pra subir ao seu quarto e juntos dançarem durante horas made in revolução com o pensador Negro Abdias do Nascimento (in memoriam) que também tinha um carinho com a música Soul do enigma corporal tipo. Qual é o Código do Seu movimento? quando você está dançando em uma festa BlackMusic? O movimento Soul foi difundido na década de 70 entre Black man.s e Black Girl.s lutando com a expressão corporal contra as desigualdades e a diferença de ideias por causa da cor negra e a inquietação racial que se via no país negros sendo mandados para a guerra no Vietnã a guerra civil acontecendo na Jamaica usando poderes ditatoriais para massacrar milhões de inocentes no Brasil negros recém-libertados da escravidão também se espelhavam no orgulho e Foto: gualter naves

No Casarão do Soul, veteranos preservam a tradição da black music

destaque de artistas negros brasileiros e americanos na vertente Soul na música da alma em um tempo que já foi dito metaforicamente era dividido entre a maioria branca racista e minoria negra com seus pensadores filósofos artistas na busca por diálogo e conquista de espaço primeiro o direito de sentar onde quisesse no ônibus depois a dignidade... a musicalidade negra influenciou muito no comportamento e na valorização da pessoa com tom de pele diferente é bacana ver no casarão do Soul um misto de alegria suor e contentamento de corpos se requebrando no legado sonoro da Música Negra Mundial. E ainda falando das células que nos envolvem em locais onde as atividades de cultura lazer

C a sar Ão d o soUL av. afonso Pena, 5 24, C en t ro

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de oLHo Na CeNa entretenimento e afins uns desses locais onde se tem alguns bares nesta que é conhecida como a capital desses estabelecimentos é a Praça Sete centro da capital de Minas Gerais um dos famosos é o Restaurante Show do Bolota onde a Coordenação Principal fica por conta do Radialista da Rádio Itatiaia Robson Laureano um local que oferece variadas músicas e shows com bandas diversas atraem sempre uma população popular e pitoresca onde diferentes gerações do nosso cotidiano se encontram para degustar um variado cardápio musical onde o gosto musical é diferenciado e o aperitivo culinário também na famosa Praça Sete alguns fatos além dos bares mexem com o imaginário popular e fazem parte do folclore mineiro é a área central de BHCity onde cidadãos infratores pegos à margem da lei em flagrante delito como posse de arma ou substância entorpecente confessam sempre pro agente da lei que o local onde ele adquiriu o produto foi na famosa praça do pirulito observando ultimamente vejo que tem um pingo de verdade nessa história. Palco também das concentrações das manifestações populares de Minas Gerais e o

que diriam os gestores da cultura aqueles que a respiram trabalhando sobre as políticas culturais para serem desenvolvidas para a população e saber cultural das grandes metrópoles teria que viver e respirar esta cultura que está no ar levitando em locais acima do solo nas galerias suspensas ao redor da praça central tecnicamente no restaurante do bolota por exemplo...sem lorota só prosa e bom som de quarta-feira até sábado as bandas que se apresentam na casa são Douglas e Banda, Nova Geração, Banda Solar e Banda DéGraús um cardápio variado do apetite musical brasileiro vários tons de pele dançando no salão vários sons populares da regionalidade brasileira e no cardápio degustativo típico da célula da cozinha mineira batatas fritas com bacon e queijo foi a nossa pedida da noite enquanto apreciávamos o local acima do solo e abaixo do céu um lindo céu estrelado entre os imensos edifícios da nossa grande metrópole que é a nossa Belo Horizonte ICE BAND

Foto: gualter naves

Bares se localizam no segundo andar dos prédios, no centro da cidade

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CHeGa Mais Foto: guto Muniz/divulgação

Os poetas Leo Gonçalves e Bruno Brum participaram da programação do Sarau do Memorial, no Circuito Cultural Praça da Liberdade

aNotaÇÕes Sarau revela a potência da poesia produzida em Minas Gerais

a poe si a não te m te mpo, hi stóri a ou argumen to. Não é be l a ne m ru i m. Não de m anda erudiç ão. A poesia é cotidiana,

como pausas em ambiente de histeria coletiva – mesmo quando abrasiva. É fato em si, tangível, embora dinâmico, pela capacidade de assumir contornos flexíveis, como a própria estrutura que a originou.

E nesse ritmo a Mitocôndria abre caminho para os poetas, sem a responsabilidade de atribuir-lhes mérito, ou demérito. Sem avaliar trajetória ou pertencimento. Porque o poeta não é feito de; apenas sente que é e assim se faz. Os aspectos formais são posteriores a isso. Nesta primeira edição da revista, o leitor terá acesso a poemas curtos, como extratos ou anotações,

que, como música incidental, percorrerão as páginas desta revista. Isso para conduzir ao sentimento óbvio de que a poesia está em todos os lugares, habitual a qualquer um, ainda que não se reconheça. De Wagner Merije, criador multimídia, se oferece fragmentos de torpedos (2012). Nascido em Belo Horizonte, há pouco mais de um ano ele está radicado em São Paulo, tem trabalhos lançados no Brasil e no exterior. É também autor dos livros Viagem a Minas Gerais (2013), turnê do encantamento (2009) e Mobimento – Educação e comunicação mobile (2012) – Finalista do Prêmio Jabuti 2013. De Leo Gonçalves, amostras do livro das infimidades, publicado em 2004 pelo selo in vento, aqui destacadas pela justa comemoração de uma década do feito. Poeta performático, atua também

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ch e g a M AI s como tradutor, tendo já percorrido a comédia O doente imaginário, de Molière, poemas do escritor senegalês Léopold Sédar Senghor e do argentino Julio Cortázar. De Bruno Brum, passagens de Mastodontes na sala de espera. Poeta e designer gráfico, ele é natural de Belo Horizonte e iniciou trajetória com a publicação de Mínima idéia, em 2004. Três anos depois, ele lançou Cada e em seguida foi agraciado com o Prêmio Governo de Minas de Literatura com Mastodontes na sala de espera. Bruno Brum é apontado pela crítica como um dos mais promissores de sua geração.

Foto: Guto Muniz/Divulgação

Entre outros trabalhos, Bruno Brum mostrou poemas do livro Mastodontes na sala de espera

Segundo encontro Era manhã de domingo no final de março quando os poetas subiram ao palco na réplica da Casa da Ópera de Ouro Preto, abrigada no Memorial Vale, na Praça da Liberdade de Belo Horizonte. Wagner Merije como curador de um projeto que reúne poetas para performances, leituras, reflexões que celebram a poesia e revelam Foto: Guto Muniz/Divulgação

Leo Gonçalves fez performance poética a partir de textos autorais

o cenário de uma produção literária tão expressiva quanto relevante em Minas Gerais. Como falta eco, local, nacional e internacionalmente, a intenção é fazer reverberar o texto e também o reconhecimento da qualidade dessa produção. Como convidados, Bruno Brum e Leo Gonçalves não pouparam o público da picardia habitual aos poetas. Defenderam seus trabalhos individualmente, mas também interagiram, produziram efeitos de repente nordestino, num jogo de pergunta-resposta com versos aparentemente desconexos. Fizeram confundir humor e ironia, sedução e sexualidade, fato e intuição, numa entrega generosa diante o exercício de superação da palavra escrita que precisa se impor nas condições adversas da oralidade. E assim se encerra o ciclo de um projeto simples na sua execução, mas de resultados robustos. O Sarau não rifa os participantes nem vulgariza o ato poético; apenas o reconduz ao cotidiano que lhe pertence. E por isso mesmo merece o reconhecimento de público, parceiros e patrocinadores, que garantem sua continuidade.

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ch e g a M AI s Foto: Glaucia Rodrigues/Divulgação

no

vro na ra

MEMORIAL MINAS GERAIS VALE Toda a programação é gratuita. Praça da Liberdade, s/n, esq. Gonçalves Dias Horários de funcionamento Terças, quartas, sextas e sábados, das 10h às 17h30 com permanência até as 18h. Quintas, das 10h às 21h30 com permanência até as 22h. Domingos, das 10h às 15h30 com permanência até as 16h. Classificação Livre http://www.memorialvale.com.br Kiko Ferreira foi um dos convidados do Sarau em outubro do ano passado

Foto: Guto Muniz/Divulgação

Depois do evento que os reuniu, os três poetas voltam a se encontrar, desta vez nesta Mitocôndria, pelo estado de inquietação que seus versos provocam.

Memorial oferece programação intensa O Sarau do Memorial integra programação do Memorial Minas Gerais Vale. O espaço, situado no complexo cultural da Praça da Liberdade e desenvolvido a partir do conceito de “museu de experiência”, apresenta programação diversificada, que dialoga com a produção cultural mineira. Entre as iniciativas estão a Performance no Memorial, o Boa Noite Memorial, o programa Tradições Mineiras, Exposições Fotográficas, Exposições de Novos Artistas e o projeto Férias Divertidas no Memorial, que tiveram início em 2013. Neste ano, a programação foi ampliada com as novidades Eu, criança no museu!, destinado ao público infantil, o Leituras Raras, voltado à leitura de textos dramáticos inéditos, com curadoria de Anderson Aníbal, além da parceria com o projeto Simbio, que será realizado no Memorial, entre outros janaina cunha

A escritora Adélia Prado realizou a primeira edição do projeto que quer difundir a poesia de Minas Gerais

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família dinossaurO Foto: Carol Reis/Divulgação

E M SE U L U G AR Um home m de te at ro. W i l son Oli ve i r a, 5 8 anos, nat ur al de Peç anha, Mi na s Ger ai s,

não só é um dos mais importantes diretores do estado como também uma referência no assunto. Mas é modesto. Fundador do Grupo Teatral Encena, tem uma trajetória incrível, recheada de sucessos nos palcos. No entanto, prefere não fazer um balanço da carreira. “O passado já está escrito e o futuro aos deuses pertence”, afirma. Diretor com vários prêmios, Wilson Oliveira tem no currículo, além do grupo que comanda e que em 2014 comemora 30 anos, uma das montagens mais relevantes de O beijo no asfalto, de Nelson Rodrigues, produzida em 1996, um divisor de águas em sua carreira. Foi, sem dúvida, o reconhecimento unânime do seu trabalho. Na época, Wilson e a peça receberam, nas categorias de melhor diretor e melhor espetáculo, os prêmios Amparc/ Bonsucesso e Sesc/Sated. O teatro entrou na vida de Wilson Oliveira quando chegou a Belo Horizonte e “assisti a várias peças dirigidas por José Mayer. Não conhecia teatro, mas a atmosfera daqueles trabalhos me causou inquietação. Percebi ali um lugar para exercitar a imaginação e transformar a fantasia em algo concreto e estimulante. Precisava de instrução e técnica. Busquei as escolas do Palácio das Artes e a Oficina de Teatro, que me trouxeram conhecimento e experiência prática que foram fundamentais para a minha profissionalização na área”, relembra.

O diretor Wilson Oliveira é uma das referências das artes cênicas em Minas Gerais

o interesse maior mesmo foi pela confecção da estrutura. Segundo Wilson, o processo como diretor de teatro é diferente. “Preciso conhecer bem a história e como desejo mostrá-la. É fundamental estabelecer relação de confiança com a equipe e particularmente com os atores. É preciso gostar deles, estimulá-los a descansarem de si mesmos, de suas pequenas vaidades, para conhecerem o universo misterioso que é a vida de cada personagem. Então, através da ação ininterrupta das ações cênicas, da necessidade de transformá-las em imagens significativas, encontramos a forma de mostrar a história desejada.”

A estreia, primeiro como ator, nos anos 1980, foi em dois espetáculos. “Fernando Linares trouxe de Buenos Aires um texto juvenil impactante e propôs a um grupo de iniciantes Jogos na hora da sesta, de Roma Mahieu. Na fase adulta tudo já foi dito fazer parte do elenco de Galileu Galilei, mas como eu não acredito produzido pelo Teatro de Pesquisa, foi deixo o dito importante. Fui apresentado ao teatro pelo não dito profissional de Belo Horizonte e à obra de Bertolt Brecht”, conta. A escolha da direção teatral como ofício sempre foi e se você quiser natural para Wilson Oliveira. Se no início eu repito da carreira, com alguma regularidade, LEO GONÇALVES se dividia entre peças infantis e adultas,

A lira dos vinte anos marcou o início da trajetória de Wilson Oliveira como diretor. A montagem, em 1984, foi com o recém-fundado Grupo Teatral Encena e mostrou que ambos, grupo e diretor, estavam no caminho certo. “O texto de Paulo César Coutinho trazia nossas inquietações. Éramos estudantes

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família dinossaurO universitários, tínhamos os resquícios de um processo histórico violento (1968) ecoando em nossos ouvidos, embora nenhum de nós tenha vivido aquela época. As lutas sociais por uma divisão mais equânime das riquezas e o grito por maior liberalidade nos costumes parece que repercutiu na juventude que assitia à peça, que ficou dois anos em cartaz. Nenhum de nós esperava esse reconhecimento”, comenta.

FANTASIA

de bicicleta amar amar amar persigo esse horizonte entre curvas e janelas andar andar andar conheço esse relevo por apalpadelas

Ao longo de sua carreira, Wilson Oliveira, ator, diretor, teatrólogo e professor de artes cênicas, foi apontado por muitos como um “construtor de atores”. Ele reflete sobre essa maneira muito própria de conduzir todo o processo. “Sempre escolhi cuidadosamente os atores com quem trabalhei. É fundamental dirigir o mesmo ator em diferentes espetáculos. Só assim cria-se um entendimento que dispensa muitas vezes a palavra. A capacidade de expressão de cada pessoa se diversifica com o exercício da repetição e cabe ao diretor perceber até onde poderá exercitar a sugestão sem inibir a delicadeza da expressão.” Ele acrescenta que sempre tem pelo menos um

LEO GONÇALVES

dos atores da primeira montagem do grupo em cada trabalho que dirige. Mais: sempre tem pelo menos um novo ator recém-formado em cada novo projeto. “Assim, o embate cuidadoso do tempo dialoga na minha frente e cabe a mim escolher o ângulo melhor da abordagem para o olhar do espectador.” Para Wilson, as cenas entre Gustavo Werneck e Leonardo Fernandes em Nossa cidade são o exemplo feliz de como técnicas distintas apreendidas em momentos diversos podem servir tão bem a uma história.

E quem segue fazendo história é o Grupo Teatral Encena. Afinal, são 30 anos. Sobre esta trajetória coletiva, Wilson Oliveira deixa a modéstia de lado, fala sem reservas e não esconde o orgulho. “É preciso encontrar a nossa turma, não é? Ainda aluno percebi que a inquietação mais vibrante estava - como hoje em Belo Horizonte - no movimento de jovens que buscavam sua forma de expressão. Então, convidei oito colegas para montarmos uma peça adulta. Apesar de temerário, aceitaram. Trinta anos depois estão todos trabalhando com teatro. Desde então, o Grupo Teatral Encena é reconhecido como Foto: Guto Muniz/Divulgação

Michele Castro e Sandra Inês protagonizaram “O Tempo e os Conways”, de J.B. Priestley, dirigida por Wilson Oliveira em 2005

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família dinossaurO Foto: Christoph Reher/Divulgação

Leonardo Fernandes, Andrea Baruqui e Raquel Lauar, no espetáculo Nossa Cidade, em 2010

uma companhia que sempre levou aos palcos os conflitos do homem urbano.”

grupo local, pesquisas no Encena sobre poesia e dramaturgia contemporânea. Wilson pretende, ainda, buscar o doutorado em artes. Antes de se Entre as montagens, ele destaca as que considera dedicar ao teatro, ele foi bancário e diz ter tirado terem tocado diretamente o espectador. “Cada da profissão algumas lições, como “é tênue a espetáculo é fruto da necessidade de expressão em linha que separa as pessoas e o dinheiro. E nessa momento específico. Mas, pensando nesse habitante da linha se equilibra a tragédia. Foi aí que aprendi grande cidade, na incomunicabilidade nessa multidão, a observar as pessoas, ver sua mediação com a creio que acertamos ao abordamos a ineficácia vida e tirar dessa observação o subsídio para a do ensino em Inimigos de classe; a antropofagia em ficção.” Posteriormente, Wilson foi professor e diretor Trivial simples; o advento da Aids, de peças em produções na Oficina em Algo em comum; a sexualidade de Teatro e no CEFAR do Palácio um poema bonito em Uma relação pornográfica; a das Artes. Atualmente, leciona no seria assim um poema conflito desagregação familiar em O tempo e curso de artes da Universidade rio-percurso no mundo infinito os Conways e a poesia do cotidiano Federal de Ouro Preto - UFOP e em Nossa cidade. E para rir da vida, se dedica, além das obrigações cabeça de chumbo que ninguém é de ferro, trouxemos didáticas e administrativas, a um palavra de vento Besame mucho, Eu te amo, ditadura e projeto de extensão, com ênfase LEO GONÇALVES Ópera de sabão.” no teatro infantil. Wilson Oliveira ressalta que o grupo tem revelado atores de grande qualidade, alguns com reconhecimento nacional e, nesses anos todos, tem se pautado pela escolha de temas que dialoguem intensamente com a realidade do espectador. Para comemorar as três décadas do grupo, com trabalhos ininterruptos, estão previstos dois espetáculos, um destinado ao público adulto, ainda em fase de negociação de direitos autorais, e outro ao público infantil, que também já foi brindado com incursões nas obras de Maria Clara Machado e Ziraldo. Também envolvido em outros projetos, o diretor tem programadas leitura dramática com um

Do alto da posição que ocupa no cenário artístico-cultural do estado, reconhecido nacionalmente à frente do Grupo Teatral Encena, Wilson Oliveira identifica uma produção cultural em Belo Horizonte muito diversificada que “deverá se estabelecer no mesmo espaço onde a indústria cultural de artes cênicas de circulação nacional plantou novas e confortáveis sedes subsidiadas pelas leis de incentivo à cultura.” E desses anos todos dedicados ao teatro, o diretor resume as melhores experiências. “Descobrir no teatro uma fonte inesgotável de fantasias, possibilidades e riscos pelos quais vale a pena viver.” simone castro

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Vicen Peluc proc


um p a s s o a d i n a t e Foto: Tomás Arthuzzi/Divulgação

Vicente França, Gabriel Perpétuo, Tiago Eiras, Gulherme Peluci e Antônio Vinícius, do Dibigode, apostam em processo de imersão para criação de novos trabalhos

B AR B AS DE M O L H O ? “Sabe quando você vai passar o fim de semana em casa e não se preocupa em fazer a barba?”

A ssi m me e xplic ar a m o sign i f ic ado da pa l av r a Di bigode, quando conhec i a banda a lguns anos at r á s. E star “de big ode”

é o mesmo que estar de bobeira, sem grandes pretensões, apenas curtindo o tempo livre com os amigos. É claro que, com esse ponto de partida, o Dibigode poderia estar interessado apenas em passar bons momentos na companhia dos amigos arranhando acordes e melodias. Só que não! A banda formada em 2007 se situa entre as revelações do cenário independente da música brasileira e a cada ano se renova. O que antes era um perfeito passatempo para eles acabou mudando os rumos da vida desses

jovens, que nunca deixaram de ser um grupo de amigos. É claro que para um ou outro, a música não seria, talvez, o destino ou pelo menos o primeiro caminho a seguir. Mas como “mexer em time que está ganhando?”, eles lembram. Como não se envolver tanto com um projeto criativo e independente que a cada dia consegue dar passos maiores e, sem dúvida, mais sólidos. O dilema deu lugar à convicção de que era necessário e possível seguir adiante. No início, o que eles buscavam era um dia tocar em alguma casa de shows underground da cidade, como A Obra - um pequeno espaço de shows de Belo Horizonte que há muito tempo é o destino obrigatório das bandas de rock que passam pela cidade. Logo em seguida veio o

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U M Pa s s o a di N at e Foto: site dibigode/divulgação

Grupo Dibigode em show do CD Naturais e idênticos

Por essas e outras, o Dibigode resolveu realizar um sonho antigo: Encontrar um espaço comum onde alguns integrantes do grupo possam residir, em processo de imersão. Para isso, convidaram técnicos de som e engenheiros de áudio, de forma que hoje o grupo cria, ensaia e grava no mesmo lugar, sem que haja qualquer distanciamento entre o processo de criação e produção. Não se pode dizer que essa seja uma experiência É claro que todos Um deles nova. Guardadas as esses anos de construção proporções, ícones do não foram fáceis. O grupo os que acreditam fazem perguntas aos que parecem rock como os Rolling reconhece a importância [acreditar. Stones já experimentavam fundamental de participarem esse formato décadas do programa de formação os que parecem, parecem não ouvir. atrás, como narra Keith do Sebrae “Meu negócio os que ouvem permanecem calados. Richards na contundente é música”. Certamente, as os que respondem parecem não acreditar no que diz autobiografia Vida, horas de construção de os que perguntam. lançada no Brasil, em planilhas estratégicas, todos se parecem em silêncio. português, pela Editora planos de negócio, e BrUNo BrUM Globo. Mas a falta de questionários sobre quem, ineditismo da estratégia porque, onde, como, quando não representa qualquer demérito às ambições do e (porque não) quanto serviram para questionar as Dibigode. próprias expectativas da banda, bem como renovar as perspectivas e indicar melhores estratégias para A julgar pela trajetória, ainda curta, mas já fazer o tal negócio musical prosperar. exitosa da banda, não há que se esperar menos que ótimos frutos desse novo momento do grupo. Hoje o Dibigode completa 6 anos de banda Com tantos desafios superados, projetos em e uma coleção de conquistas. Além de turnê pelo andamento e o processo de imersão, o Dibigode exterior (custeada com recursos da banda e via tende a superar expectativas ainda este ano, e, crowdfunding), o grupo se prepara para gravar um assim, continuar a meritosa trajetória de parceria, disco nos Estados Unidos. Além disso, os diversos amizade e trabalho. Muito trabalho. E entrega, editais e festivais de que participaram serviram como num casamento, só que entre várias pessoas. para dar credibilidade e notoriedade para a Neste caso, pelo menos cinco. Precisa dizer mais? banda, que recentemente foi convidada para fazer a trilha sonora do novo espetáculo de dança do ChiCo Cereno grupo Primeiro Ato. segundo desfio: ser uma banda conhecida na cena musical independente da capital mineira. E depois, tocar em São Paulo. No Brasil…Fora do Brasil. E assim, tijolo por tijolo, degrau por degrau, o grupo foi planejando e construindo fortes bases para tornar-se hoje uma banda respeitada por outros grupos musicais e também reconhecida por profissionais renomados de outras áreas da cultura.

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CULt Ur a NeGr a Foto: norman rockwell

Ruby Bridges, escoltada por policiais, a caminho da escola, em registro histórico de Norman Rockwell

e L e Va d o r de s e rV iÇo Nem as modernas estruturas superam os vícios de uma sociedade escravista

ruby Bridges, uma criança de Nova orleans, protagonizou uma das fotografias mais

importantes do século XX e que depois motivou o quadro The problem we all live with. O que deveria ser rotina, sua caminhada até

a escola, se transformou em uma cena inesquecível: Ruby, do alto de seus seis anos de idade, desce uma

escadaria sob forte escolta de policiais federais – necessária porque a população local não aceitava que uma criança negra frequentasse a mesma escola que seus filhos brancos. Ruby nasceu em uma época em que se fazia cumprir uma Lei da Corte Suprema dos Estados Unidos, de 1954, que determinava que negros frequentassem

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cul t u r a n e g r a locais que até então só aceitavam brancos. Alguns anos depois, em 1960, a mãe de Ruby inscreveu sua filha em uma espécie de “programa de inclusão” para enfrentar a resistência de professores, pais de alunos e alunos das escolas que insistiam em não aceitar estudantes negros. A resistência se manifestava não só por meio de protestos e da não aceitação de matrículas, mas também pela hostilização da criança mesmo após ela estar matriculada.

seus visitantes. O de serviço, para os que trabalham nas casas, as babás, as empregadas domésticas – o novo contorno de uma velha relação social dos tempos de colônia. Educadora musical de famílias de muitas posses de Belo Horizonte, sempre fui convidada pelos porteiros dos prédios (a maioria negros) a me dirigir ao elevador dos fundos, por uma questão de hábito. Este é o racismo impresso nas atitudes cotidianas, que revelam nosso resquício de sociedade escravista ainda não superado.

Ruby teve assegurado o seu direito de ingressar na escola, mas precisou da polícia federal em seus primeiros dias de aula. A presença da polícia para Guardadas as devidas proporções da relação da conduzir Ruby até a escola foi para impedir agressões realidade brasileira com a obra de Norman Rockwell, físicas consequentes da fúria de pais de alunos e a resistência ao ingresso de alunos negros em escolas da sociedade local. Depois de vencer as primeiras tradicionalmente frequentadas por brancos se deu dificuldades de acesso à no Brasil também. Talvez não escola, ela teve que iniciar suas O mundo dá muitas voltas. Não consegue ir direto com tanta violência explícita. aulas sozinha, separada das Matriculada em escola púbica ao assunto. outras crianças. Não foi bem considerada referência no recebida pela maior parte das BRUNO BRUM ensino e na educação de professoras, até que uma delas crianças abastadas, nos aceitou cuidar de seus estudos. anos 60, minha mãe ainda se lembra das situações em que foi hostilizada e da discriminação por parte No Brasil de 2014, a princípio, essa obra de arte das professoras. Diante de suas colegas de sala, ela parece ter nada ou muito pouco a nos dizer por dois convivia com as constantes acusações de ser “suja e fatores: aconteceu em outro lugar, longe do Brasil, e fedorenta”. também foi em outra época. Afinal, hoje as pessoas negras não são impedidas de frequentar qualquer Embora tenha acontecido há mais de 50 anos, lugar por serem negras. a reação desumana quanto à presença indesejada de uma pessoa negra em algum local é algo que Acreditar nisso é admitir que os novos contornos do ainda acontece no Brasil. Para refrescar a memória, racismo ou o racismo moderno é oculto para diversas basta mencionar o episódio corrido em São Paulo pessoas. Muitos acreditam que ele não existe e que não em 2012. Um casal de espanhóis, junto de seu filho passa de um posicionamento de vítima – o dos negros que alertam para o preconceito presente no dia a dia adotivo negro, estava de férias no Brasil e, depois de um passeio, resolveu comer em um restaurante de homens e mulheres em nosso país. Uma boa parte no bairro dos Jardins, na capital do Estado. O das pessoas também não entende o posicionamento de menino se afastou dos pais em algum momento e pessoas brancas que percebem a existência cotidiana foi abordado pelo dono do restaurante. A criança, do preconceito e se engajam no debate. de seis anos, é nascida na Etiópia e não fala O Brasil possui um passado escravista, todos português. Ao ser abordada pelo dono do local, sabemos. Como sociedade, temos mais séculos de não entendeu o que lhe foi dito e não soube existência como opressores e escravistas do que responder. Foi expulsa do restaurante e encontrada como sociedade livre e democrática. Talvez seja até pelos pais do lado de fora do local, sozinha. ingênuo ter a expectativa de que uma sociedade que Vem daí a constatação de que são infinitas as permitiu a escravidão entre 1500 e 1888 (são quase conexões entre a obra de Norman Rockwell, que desde quatrocentos anos), em 2014 (pouco mais de um século 2011 integra o conjunto de obras do Salão Oval depois), já estivesse livre de vícios de comportamento da Casa Branca, e o modus vivendi da sociedade que foram legitimados durante tanto tempo. brasileira, cada vez mais esclarecida, mas não menos Em pleno século XXI, como mulher negra, fui tolerante com o inadmissível... a despeito de todas as submetida ao racismo em ocasiões diferentes. A mais possibilidades de apreciação da arte e sua inegável marcante, num dos modernos prédios de Belo Horizonte, contribuição para a reflexão e o desenvolvimento que possuem em seu projeto original dois elevadores: o social e o de serviço. O primeiro, para moradores e black josie

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ensaiO

C U L T U RA U R B A N A No amplo horizonte do que pode ser denominado cultura urbana nos dias atuais, o fotógrafo Gualter Naves revela olhar um tanto particular acerca dessa produção na capital mineira. Amparado pela dimensão universal dos elementos do Movimento Hip Hop, Naves percorreu lugares que fazem parte do cotidiano desta metrópole, para fazer saltar aos olhos cenários no mínimo instigantes, que muitas vezes passam desapercebidos pelos que fazem da via apenas um lugar de passagem. Também fazem parte

desta pesquisa de campo realizada pelo fotógrafo os inusitados deslocamentos dos dançarinos de rua, os b.boys, que subvertem a lógica com a intensidade de passos que atam tradição e contemporaneidade, ao fundir capoeira e street dance. É assim que protagonistas deste importante movimento de periferia instituem novos ritos para a reafirmação do sujeito e sua relação com tempo, espaço e memória. janaina cunha

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SUMARIO

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crônica

SE M E N TE

senão quando cometem algum crime. Seu pai é honesto. Homens honestos não costumam ocupar as páginas dos jornais e revistas. Você vai muitas vezes ao cinema com sua mãe e sua irmã mas ainda não descobriu Foto: Arquivo Pessoal que pode procurar seu pai nas telas. Talvez porque os filmes que sua mãe escolhe para ver com você e sua irmã não tenham sido filmados em Belo Horizonte nem em Nova Lima os dois únicos lugares onde ele viverá a vida toda.

Vo cê é pequeno e proc ur a se u pai nos ve lhos jor nai s e re v i sta s que e le e sua m ãe colec ionava m c ada um por um mot i vo di f eren t e an t e s de se c a sare m. E que depois foram dados a sua irmã e a você para que aprendessem a gostar de ler.

Não é em todos os jornais e revistas que você procura seu pai. Apenas nos que trazem reportagens sobre Belo Horizonte.

Você se lembra do tempo em que você e sua irmã de olhos fechados saiam de casa rumo à rodoviária e tomavam o ônibus para Nova Lima. Algumas das melhores viagens ao limite do mundo em que Nova Lima se tornou para você foram feitas na cama junto com sua mãe e sua irmã. A voz entre terna e tensa de sua mãe conduzia vocês por cada etapa do caminho até a casa dos parentes.

Você se habituou a ler e reler infinitas vezes o mesmo jornal e a mesma revista. Por isso guarda detalhes de reportagens bastante antigas. Seu pai também é assim. Ele nasceu em Nova Lima. É muito velho para ser pai de um menino. E isso confunde você. Nova Lima fica perto demais de Belo Horizonte para ser considerada outra cidade. Mas é o lugar mais distante para onde você foi na infância. Aquele homem velho que é seu pai poderia ser o seu avô. Você que sempre soube que os pais de seus pais morreram antes de você nascer sabe que o homem é seu pai apesar de tão velho.

Evisceração A cada dia Restar-se.

Sua mãe é quase tão velha quanto seu pai. Você procura o homem velho que é seu pai nas fotografias que ilustram reportagens nos jornais e revistas. E não o encontra. Porque ele é um homem absolutamente comum e homens absolutamente comuns não têm suas fotos publicadas nas páginas de jornais e revistas

BRUNO BRUM

Um dia sua mãe já não se recordará dessas viagens. Nem de muitas outras coisas. Ela deixará de lembrar até de que se casou com seu pai. De papel passado e tudo. E que fizeram dois filhos: primeiro sua irmã e depois você.

Certa noite cortada por trovões e relâmpagos você e sua irmã conversam. Assunto: os pais. Qual deles morrerá primeiro? Qual você prefere que morra primeiro? Nenhum dos dois. E você? Um longo silêncio e a pergunta muda. Qual dos dois você prefere que viva para sempre? Nenhum dos dois. Mamãe diz que ninguém fica para semente Ricardo Aleixo

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correria Foto: Gualter Naves/Divulgação

Grupo Bloco Rei alia elementos tradicionais à estética contemporânea em show de participação na Virada Cultural de Belo Horizonte

f e s t a p o pul a r O Blo co Re i Surgi u com a un i ão de se i s a mig os, M úsicos apai xonados pe lo sa mba,

com a intenção de fazer um projeto de percussão. Um dos objetivos principais era mostrar a força e a expressão do Carnaval, principalmente no fortalecimento dessa festa popular e tradicional em Minas. Também estava no foco do grupo o resgate dos blocos nas montanhas das Gerais.

na cidade de João Monlevade, onde ditaram o ritmo numa festa a fantasia. O Bloco Rei é formado por grandes músicos, que se destacam em Belo Horizonte pelo talento e também pela trajetória marcada de êxitos. Um deles é o sambista da Velha Guarda também chamado de Mandruvá. Ele é um dos principais vocalistas da banda. Os outros são Diego do Cavaco Trindade, Bernardo Romanneli na percussão, Marcelo Toledo defende o violão. O grupo conta ainda com mais seis integrantes free lancers que tocam teclado, baixo, metais, guitarra e bateria.

Com 9 anos de atuação, o grupo reúne músicos que, em sua maioria, são moradores do bairro Nova Pampulha. Um dos sonhos da banda é tornar-se multidisciplinar e multicultural, Enquanto o coração bater expressando a identidade dos Vai haver amor para dizer blocos espalhados pelo mundo. O outro é tornar-se uma banda Nenhum amor é vago ou vão mundialmente famosa por sua Mesmo o amor mais fraco é revolução identidade mineira. WAGNER MERIJE Quem cuida do agendamento de shows é o jovem empreendedor Daniel Bevilcqua, o Severino da Banda. Ele é o cara-crachá, o produtor responsável pela banda tocar em espaços como a Virada Cultural 2013, o projeto Brincando na Vila, em parceria voluntária com a Fundação Municipal de Cultura e a Secretaria Municipal de Esportes de Belo Horizonte. Esta ação foi desenvolvida em nove Regionais da capital, para convidados e comunidades vizinhas dos Centros Culturais gerenciados pela PBH. O grupo também já se apresentou no Ação Global 2013, na Via 240 e também

Eles trabalham com dois tipos de show, o de rua, que é Bloco em ação, e o de boate, que é com a banda. Nas apresentações, fazem a mistura de vários ritmos — Samba, Rap, Mpb, música caribenha e sons tradicionas de bloco da América Latinas. Geralmente são musicas que estão no gosto popular e também músicas próprias. Em centros culturais, eles tiveram a oportunidade de ministrar oficinas de percussão pra jovens das comunidades carentes. Na visão dos músicos, uma das coisas mais gratificantes foi ver o sorriso estampado dos jovens ao terem a oportunidade de aprender percussão e fazer contato com os músicos do Bloco. Isso realmente nos leva a acreditar que a música, mais que lágrimas, também pode trazer muitos sorrisos Ice Band

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um p a s s o a d i a n t e Foto: Chico Cereno/Arquivo Pessoal

Feiras internacionais são importante ponto de encontro para artistas, produtores e articuladores

E N C O N TROS I N TER N A C IO N AIS ARTI C U L A M C ADEIA P ROD U TI V A DA M ÚSI C A Mais de 6 mil pessoas participaram da Midem, em Cannes, na França

E m f r ancê s, a sigl a Mi de m sign i f ic a M arch a I n t er nac ional do Di s co e da E diç ão M usic a l e representa a maior feira dedicada ao

artistas e espaço no mercado fonográfico e a cada ano faziam da Midem a vitrine mundial da música. Nessa época, vender CDs ainda parecia estranho e suspeito, pois o vinil era o “rei do mercado” e cada mercado da música. Realizada anualmente desde álbum podia movimentar durante anos os caixas das 1967, a sua mais recente edição ocorreu nos dias 1 lojas especializadas, das gravadoras e dos artistas. a 4 de fevereiro de 2014, no Palais des Festivals et Era o reino das gravadoras. Um mar de produtos dês Congrès, em Cannes, na França. Mais de 6 mil físicos em que a Warner, a Sony Music e, no Brasil, participantes dentre músicos, produtores, agentes, a Som Livre, nadavam de braçada. Lembro de um gestores, advogados, executivos, empresários e jormesmo álbum ser lançado nas versões LP, K7, e alguns nalistas de todo o mundo comparecem a anos depois, também em CD. Para quem esta edição do evento para fazer negóestá na faixa dos 20 anos, isso pode paEntre a manhã cios com editoras, sociedades de direitos recer estranho, mas, acreditem, assim era autorais, startups (desenvolvedores e E o choro da criança nosso recente passado musical. grandes empresas de tecnologia) e com as agências de promoção e distribuição Nos anos 90 as grandes transformaWAGNER MERIJE da música. ções tecnológicas fizeram com que a Midem se transformasse em um mercado de A Midem não é um festival de música. É, tecnologias, negócios e inovações que revolucionasobretudo, um mercado em que profissionais do seram a maneira como fazemos, negociamos e ouvimos tor buscam contratos e parcerias internacionais de música. Só para se ter uma ideia, produtos como o distribuição ou de licenciamento para os artistas. A Ipod teveram o seu lançamento mundial nessa feira. última edição da Midem também atraiu um número crescente de representantes das novas tecnologias, NEGÓ C IO interessados em obter conteúdos musicais para suas diversas plataformas. O mercado da música mundial é hoje um negó-

A mãe

Nos anos 80, as grandes gravadoras disputavam

cio que influencia e é influenciado pelo mundo digital. O que antes cabia aos roqueiros ou grandes em-

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um p a s s o a d i a n t e presários da música, pessoas de ouvidos apurados ou mesmo produtores artísticos que sabiam qual seria o novo hit do momento, hoje, além desses “iluminados”, as empresas de distribuição e promoção, apoiadas pelos novos suportes digitais, detêm boa parte do poder sobre a mercado musical mundial.

Foto: Chico Cereno/Arquivo Pessoal

Evento provoca reflexões acerca das estratégias de desenvolvimento de grupos

Na verdade, sem a tecnologia atual e os meios de distribuição, promoção, compartilhamento digitais seria praticamente inviável a sustentação da música de mercado, na forma que existe hoje. Não que a música deixaria de existir ou mesmo que deixaria de ser um negócio, mas o que se trata agora é de um tipo de escuta, acesso e relacionamento com a música muito diferente do que esperaríamos poucos anos atrás. Hits mundiais estouram em diversos países, levando milhares de pessoas a darem foco a consecutivos e momentâneos supersucessos. Bandas pop, cantores e MUN DO DIG ITAL cantoras que muitas vezes não chegam a lançar um segundo álbum na carreira vão do nada ao tudo Queiram ou não os colecionadores de vinil e os em questão de poucos meses, e mais rápido ainda amantes do velho e bom toca-fitas, o mercado interperdem seu lugar na esteira rolante da fama. Os fanacional da música refere-se hoje ao universo digital. mosos “quem?” de hoje e caídos no esquecimento de Está intimamente conectado com vários outros granamanhã continuam a se sucederem, de uma maneira des mercados e, assim, se fortalece, abre para novas tão orgânica quanto digital, o que faz com que o possibilidades e muda profundamente a maneira inesquecível astro pop de antes dê lugar a uma infinicomo nós, ouvintes, músicos ou produtores nos conecdade de estrelas cadentes. São famosos instantâneos tamos com a música. que se sucedem, ficando pouco de cada um, a não ser o detalhe que os une: um dia fizeram sucesso. Explico: hoje existe uma infinidade de novas possibilidades de escutar o mesmo som, Não bastasse essa velocidade mas em formatos, mídias, e qualidades quase vertiginosa de tantos novos diferentes. Para além do já conhecido A dúvida é minha sucessos, existem também as mudanças álbum preferido, as possibilidades de Companheira na classificação dos estilos musicais, que compartilhamentos e interações criadas Mais certa tentam acompanhar o frenesi da pop pelas redes sociais abrem o campo das No caminho que escolhi music mundial. Assim, a nova música pop possibilidades de escuta, uma vez que WAGNER MERIJE japonesa, bem como a taiwanesa e a o tempo todo tem alguém descobrindo coreana acabaram de ganhar um novo um novo som, uma nova banda em amnome. Podemos quase nos perder em meio biente virtual e compartilhando em nossas a siglas como J-Pop, T-Pop, K-Pop (Japão, Taiwan e páginas ou perfis pessoais. Assim, uma espécie de Corea do Sul) e ainda assim fica a pergunta: será o rádio amig@, onde sempre há algo novo no ar, nos B-Pop a definição para a música brasileira que faz mantém à mera distância de um clique da nossa sucesso em grande escala? Estaremos colocando toda música preferida e também do desconhecido unia turma do sertanejo, do axé e, por que não, do tecno verso sonoro, pronto para nos surpreender. E por brega na mesma panela? Sob a alcunha de B-Pop? que não escutarmos de tudo? Seja músico ou não, Parece que sim. Pode soar estranho, mas é isso que está abrir os ouvidos significa abrir-nos para novas posna boca do povo, ou melhor, dos gringos. Interessante sibilidades. Vamos nessa, abertos às surpresas desaqui é que não se trata de entendermos como nós nos se assustador e admirável novo mundo e também identificamos ou como queremos ser chamados, mas sim sem deixar de dar um carinho na agulha que toca como eles nos chamam. E vocês sabem, quem dá nome o vinil às coisas geralmente se sente dona delas ou quer legitimar a sua influência sobre elas. Chico Cereno

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homenagem Foto: Ana Paula Oliveira Migliari/ TV Brasil- EBC (09/09/2010)

Ator e diretor marcou a história da cultura nacional

VA L E U, Z É ! José Wilker deixa importante legado para as próximas gerações

Um sábado menos feliz. Provavelmente, a maioria das pessoas, ao acordar naquele 5 de abril deste ano , se deparou com a notícia

que abalaria o cenário artístico brasileiro em todo o dia e nos outros que viriam: morreu o ator e diretor José Wilker. “Meu querido amigo, para sempre!”, lamentou a atriz Sônia Braga, parceira de Wilker com quem compartilhou inúmeras experiências no cinema e na televisão. A última vez em que ele apareceu na TV tinha sido três dias antes, no Vídeo show (Globo). Com 49 anos de carreira completados em 2014, o artista saiu de cena aos 68 deixando uma trajetória das mais brilhantes, imortalizadas em tipos carismáticos na TV, no teatro e no cinema. E José Wilker não foi muito bom apenas na frente da câmera. Ele também se destacou atrás dela ou dirigindo seus pares no palco, um lugar que amava.

Na conta de Wilker, personagens arrebatadores que interpretou, além de duas novelas, um seriado e um filme que dirigiu. Da estreia em 1965 até o último papel, Herbert, médico na novela Amor à vida (Globo, 2013-2014), de Walcyr Carrasco - ironicamente um personagem que não fazia jus ao enorme talento de seu intérprete -, o ator deixou uma galeria de composições majestosas, em que se destaca, por exemplo, o moderno e visionário Mundinho Falcão, da primeira versão de Gabriela, de Walter George Durst (Globo, 1975), baseada no livro Gabriela, cravo e canela, de Jorge Amado. O personagem era o galã da trama e conquistou o público. É curioso que no remake de Gabriela (Globo), de Walcyr Carrasco, exibido em 2012, José Wilker tenha novamente dominado a cena, mas com um personagem totalmente às avessas. Ele foi o machista coronel Jesuíno Mendonça, um homem duro, arrogante, frio, capaz de assassinar a mulher e o amante ao flagrá-los na cama. Uma das frases do

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homenagem coronel caiu na boca do povo. “Vou lhe usar”, dizia para a mulher, Dona Sinhazinha (Maitê Proença), dando-lhe ordens de que deveria se lavar para o ato sexual. Deu o que falar! “Jesuíno é uma das melhores coisas que já fiz na minha carreira. A melhor coisa que pode acontecer a um personagem é ver suas falas serem apropriadas pelo público”, declarou José Wilker à imprensa, à época. Entre os dois personagens, muitos e muitos outros trabalhos memoráveis. José Wilker estreou na TV em 1971, na novela Bandeira 2, de Dias Gomes, em que viveu Zelito, filho do bicheiro Tucão, de Paulo Gracindo. Até chegar ao Mundinho Falcão, fez, entre outros, o Bandeira de O bofe (Globo, 1972), de Bráulio Pedroso, novela da qual pediu para sair quando o autor se retirou para fazer um tratamento de saúde. A solução foi matar o Bandeira de um ataque de riso. E assim foi. O personagem caiu duro depois de ouvir uma piada. Wilker ainda fez o Atílio, de Cavalo de aço, de Walter Negrão (Globo, 1973), Martinho Ghirotto, de Os ossos do barão (Globo, 1973), de Jorge Andrade, o Fábio, de Corrida do ouro, de Lauro César Muniz e Gilberto Braga (Globo, 1974). Depois de Gabriela, na década de 1970, José Wilker tornou-se um ator requisitado para o papel Foto: Phael Diniz/ Flickr Commons (30/06/2012)

de galã. Um dos homens mais sensuais de seu tempo, ele foi um José Mayer e, para atualizar o posto, um Cauã Reymond. Assim, viveu o Rodrigo, de Anjo mau (Globo, 1976), de Cassiano Gabus Mendes, o Renato/Paulo, de Plumas e paetês (Globo, 1980), também de Cassiano e, mais uma vez, Rodrigo, de Final feliz, de Ivani Ribeiro (Globo, 1982). Em 1983, Wilker participou da minissérie Bandidos da falange (Globo), de Aguinaldo Silva e Doc Comparato.

“ F E LOME NAL” Dois anos depois, ao formar um triângulo amoroso com Regina Duarte e Lima Duarte, o ator interpretou um dos seus personagens mais icônicos, Luís Roque, da novela Roque Santeiro (Globo), de Dias Gomes e Aguinaldo Silva. A novela é considerada uma das melhores de todos os tempos. A trama, que misturava misticismo e política, mobilizou a audiência até o capítulo final, muito em função de quem seria o escolhido da fogosa Viúva Porcina, de Regina: Roque ou Sinhôzinho Malta, de Lima, que levou a melhor. Mas, para o ator, a importância do folhetim foi muito além: “A gente andava meio chutando pedra na rua, e o Roque foi de encontro ao sentimento que surgia”, destacou na última entrevista ao Vídeo show, lembrando os ventos da liberdade depois dos anos de chumbo da ditadura militar no Brasil. Apesar do sucesso na emissora, José Wilker se transferiu para a extinta Rede Manchete. Na trama de Carmem (1987), estrelada por Lucélia Santos, de autoria de Glória Perez, o ator, que interpretou Camilo, também esteve atrás das câmeras e dividiu a direção com Luiz Fernando Carvalho, atualmente no comando da novela Meu pedacinho de chão (Globo). No mesmo canal, Wilker foi Ulisses, em Corpo santo (1987), de José Louzeiro, e na direção usou o pseudônimo de João Matos. Foi uma das boas tramas da emissora.

Wilker protagonizou personagens memoráveis

De volta à Globo, José Wilker fez O salvador da pátria (1989), de Lauro César Muniz, como João Mattos/Miro Ferraz, as minisséries Anos rebeldes (1992), de Gilberto Braga, como Fábio Andrade, Agosto (1993), de Jorge Furtado, baseada em romance homônimo de Rubem Fonseca, como Pedro Lomagno. Depois, o ator emendou uma novela na outra: Fera ferida (1983), de Aguinaldo Silva, no papel de Demóstenes Maçaranduba, outro trabalho de destaque, Renascer (1993), de Benedito Ruy Barbosa, como coronel Berlamino, A próxima vítima (1995), como Marcelo, e O fim do mundo (1996), de Dias Gomes e Ferreira Gullar, como Tião Socó. Um sucesso atrás do outro.

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homenagem Foto: Phael Diniz/ Flickr Commons (30/06/2012)

José Wilker inspirou cinebiografia da documentarista Nice Benedictis

José Wilker escreveu seu nome na TV brasileira. Entre tantas novelas em quase três décadas, também atuou em minisséries e programas humorísticos importantes, como, respectivamente, A muralha (2000), interpretando Dom Diego, O quinto dos infernos (2002), como o Marquês de Marialva, e Sai de baixo, como Beto, emprestando a voz no episódio Ghost não se discute (1997). Na trama da novela Desejos de mulher, de Euclydes Marinho, em 2002, interpretou o homossexual Ariel que vivia com o companheiro Tadeu (Otávio Müller). Em 2004, arrebatou o Brasil com o seu impagável ex-bicheiro Giovanni Improtta, dono do bordão “Felomenal”, em Senhora do destino, de Aguinaldo Silva. Um dos personagens mais carismáticos da TV e da carreira do ator, Giovanni Improtta, com sua gravatinha borboleta, era o eterno apaixonado por Maria do Carmo, a nordestina de Susana Vieira. E “Felomenal” não tinha exclusividade na boca do ricaço sem cultura. Quem não se lembra de “Vou me pirulitar-me”? ou “A vaca vai voar!”?, ainda, “O tempo ruge e a Sapucaí é longa!”? e “Giovanni Improtta, em charme e osso”? O sucesso do personagem gerou um filme, Giovanni Improtta, protagonizado e dirigido pelo ator, lançado em 2013. Para homenagear José

Wilker, especula-se que a Globo vai reprisar Senhora do destino no Vale a pena ver de novo, a partir de junho, em substituição a Caras e bocas.

V oz i nconf undíve l O presidente do Brasil, Juscelino Kubitschek, virou personagem da minissérie, JK (Globo), em 2006. José Wilker viveu o político na maturidade, sucedendo a Wagner Moura. No ano seguinte, o ator encarou uma novela e outra minissérie, Amazônia, de Galvez a Chico Mendes, de Glória Perez, em que interpretou Luiz Gálvez Rodriguez de Arias. O espanhol, vivido pelo ator, típico don Juan, estava talhado para o charme e a elegância de Wilker. Já a novela foi Duas caras, de Aguinaldo Silva, no papel de Francisco Macieira. Com Aguinaldo Silva e Susana Vieira, Wilker também participou da série Cinquentinha (2009), como Daniel, um milionário supostamente falido que deixa parte de sua fortuna para uma das três ex-mulheres - aquela que consiguisse tirar a empresa do buraco -, entre elas, a decadente atriz Lara Romero, vivida por Susana. Outro personagem especial esperava pelo ator, em 2011: nada menos

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homenagem “Meu querido amigo, para sempre! Conheci o Wilker quando fui para o Rio com a peça Hair, em 1969, e me apaixonei loucamente por aquela pessoa linda. E por toda a minha vida continuei amando-o intensa e platonicamente.” Sônia Braga - atriz do que Zeca Diabo, da minissérie O bem amado, remake com roteiro de Cláudio Paiva e Guel Arraes. Só para lembrar: o personagem foi interpretado por Lima Duarte, na novela de 1973, escrita por Dias Gomes. Já o remake, antes de se tornar minissérie, foi lançado como filme em 2010. Antes de Amor à vida, a última novela de José Wilker foi Insensato coração (2011), de Gilberto Braga e Ricardo Linhares. Ele fez uma participação especial como Humberto Brandão. Entre uma e outra, além do remake de Gabriela, também atuou, como Reinaldo Fachetti, no seriado A mulher invisível (2011), que venceu o Prêmio Emmy Internacional, espécie de Oscar da televisão mundial, edição 2012, na categoria de Melhor série de comédia, e na minissérie O brado retumbante (2012), de Euclydes Marinho, com colaboração de Nelson Motta, Guilherme Fiuza e Denise Bandeira. Destaca-se, ainda, a contribuição de José Wilker para a TV como diretor. Além das tramas da extinta Manchete, na Globo ele dividiu a direção da novela Louco amor (1983), de Gilberto Braga e Leonor Bassères, com Wolf Maya, Ary Coslov e Fred Confalonieri. Transas e caretas (1984), de Lauro César Muniz, foi outra experiência do diretor Wilker, embora também atuasse no papel de Thiago. De 1996 a 2002, ele foi um dos diretores da siticom Sai de baixo. Com uma carreira vitoriosa na televisão brasileira, José Wilker também foi narrador - fique atento que talvez ainda ouça a voz inconfundível em algum off -, apresentador e crítico de cinema. Na primeira função, está a série A vida como ela é (1996), de Nelson Rodrigues, um quadro do Fantástico (Globo), e o último trabalho, o documentário sobre a vida do piloto Ayrton Senna, em quatro episódios, exibidos em abril deste ano, no Esporte Espetacular (Globo). Apresentador, esteve à frente do programa Palco & plateia, transmitido pelo Canal Brasil (TV paga), e do quadro Papos de cinema, no programa Cineview, do Telecine Premium (TV paga). Como crítico de

cinema, Wilker, um cinéfilo assumido e conhecedor como poucos da sétima arte, se destacou como comentarista, especialmente durante a cerimônia do Oscar. Um multiartista que fez história se foi. Com a partida de um dos mais queridos e talentosos atores, o Brasil, com certeza, ficou culturalmente mais pobre. E mais triste.

tradução da realidade brasileira O malandro e mulherengo Vadinho, do filme Dona Flor e seus dois maridos, com certeza, povoa o imaginário popular. Com ele, José Wilker cravou seu nome também como um homem de cinema. A cena em que o personagem, depois de morto, aparece nu, de braços dados com a viúva, de Sônia Braga, por sua vez, apoiada no braço do novo marido, vivido por Mauro Mendonça, descendo a ladeira do Pelourinho, é uma das sequências antológicas da telona. Até participar, em 1976, do longa-metragem festejado de Bruno Barreto, Wilker já tinha feito outros dez - de dois a três por ano - em quase uma década de atividades. A estreia no cinema foi com uma ponta no filme A falecida (1965), de Leon Hirszman e Eduardo Coutinho, estrelado por Fernanda Montenegro - também em seu primeiro filme - do qual nem consta o nome do novato ator nos créditos. Em 1971, Wilker encarnou Tiradentes, em Os inconfidentes, de Joaquim Pedro de Andrade, uma produção brasileira e italiana. Sobre Dona Flor, que por mais de 30 anos foi o filme nacional mais visto nos cinemas - perdeu o topo do ranking para Tropa de elite 2, em 2010 -, o ator falou ao Vídeo show, em sua última entrevista: “Eu tinha certeza que Dona Flor seria um fracasso. Eu dizia para mim assim: ‘Um filme erótico e espírita não pode dar certo’, porque é a história de um sujeito morto que volta para atazanar a vida sexual da viúva. Erótico e espírita não podia dar certo. A gente fez o filme, se divertiu muito, brincou, mas tinha certeza de que o filme iria passar em brancas nuvens.” Estima-se que mais de 10 milhões de espectadores se deliciaram com o triângulo amoroso. Dona Flor e seus dois maridos não foi a primeira parceria entre José Wilker e Sônia Braga. Um ano antes, eles estrelaram o filme O casal, dirigido por Daniel Filho. Como o longa de Barreto, Xica da Silva (1976), de Cacá Diegues, foi outro trabalho importante na carreira do ator. Aliás, com Cacá, ele voltaria a filmar mais uma vez, no verdadeiro desbunde que é Bye Bye Brasil (1979).

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homenagem Sob o comando de Lorde Cigano, personagem de Wilker, artistas mambembes atravessam o país na Caravana Rolidei. Eles tentam sobreviver frente à ameaça da chegada da TV. Até hoje é impossível ouvir a música Bye bye Brasil, de Chico Buarque e Roberto Menescal, na voz de Chico, principal música da trilha sonora, e não nos transportarmos logo para o universo do filme.

mil filmes de sua coleção particular, que soma mais de quatro mil títulos, para o acervo da TV Globo, na expectativa de que sejam vistos pelos jovens. Em tempos de celebridades instantâneas, a maioria com muito pouco a dizer, José Wilker é exemplo para futuras gerações.

Dois longas marcariam a trajetória de Wilker na telona nos anos 1980. Bonitinha, mas ordinária (1981), baseado na peça homônima de Nelson Rodrigues, e O homem da capa preta (1985), de Sérgio Rezende, em que o ator viveu o polêmico político Tenório Cavalcanti, personagem com o qual ganhou o Kikito de Melhor ator no Festival de Gramado.

Drama, tragédia, humor. O ator José Wilker viveu a emoção de todos os gêneros em quase meio século de carreira. O início foi no rádio como locutor. Cearense de Juazeiro do Norte, nasceu em 20 de agosto de 1946, filho de seu Severino, caixeiro viajante, e de dona Raimunda, dona de casa, batizado José Wilker Almeida. Aos 13 anos se mudou com a família para Pernambuco e alguns anos mais tarde o primeiro papel, já como ator, foi como figurante de teleteatro na TV Rádio Clube, no Recife. A coceirinha do palco já o instigava e a primeira peça foi Julgamento em novo sol, em 1962. Aos 19 anos, Wilker partiu rumo ao Rio de Janeiro. Em 1963, estudou interpretação com o cineasta sueco Arne Sucksdorff. E participou da equipe do documentário Cabra marcado para morrer, de Eduardo Coutinho, cujas filmagens foram interrompidas pelo golpe militar de 1964. A faculdade de sociologia na PUC, anos depois, ficou para trás quando passou a se dedicar exclusivamente ao teatro.

Besame mucho, dirigido por Francisco Ramalho Jr., em 1986, foi outro destaque. Muitos filmes depois, vieram Guerra de Canudos (1997), de Sérgio Rezende, em que deu vida a Antônio Conselheiro, Casa da mãe Joana, de Hugo Carvana, em 2008, Romance, de Guel Arraes, no mesmo ano, O Bem amado, também de Guel, em 2010, em que Wilker interpretou Zeca Diabo, e Giovanni Improtta, em 2013, dirigido e estrelado pelo ator. O roteiro escrito por Aguinaldo Silva, criador do personagem que dá título ao filme na novela Senhora do destino, contou com uma parceria especial: Mariana Vielmond, filha mais velha do ator. Apesar de não ter correspondido às expectativas em termos de público e desagradado à crítica, o longa-metragem atendeu aos anseios de Wilker, que o queria como uma crítica social. Na ficção e na vida, o ator nunca dissociou seu papel de cidadão a serviço da arte e da realidade que o cercava, sempre com um olhar consciente e atento. Em entrevista ao programa Roda viva, da TV Cultura, em 1996, ele comentou: “Eu acho que, através do cinema, eu posso entender minimamente o que acontece aqui no Brasil. E acho que eu posso, entendendo o Brasil, compreender alguns filmes e até perdoá-los [risos].” Dedicado ao seu ofício e orgulhoso da profissão, foi diretor-presidente da Riofilme - distribuidora de filmes do município do Rio de Janeiro - de 2003 a 2008. Cinéfilo, queria dividir o seu amor à sétima arte. Por muitos anos, tratou do assunto em coluna do Jornal do Brasil, mas deixa inacabado o livro Este não é um livro sobre cinema (em que fala sobre suas experiências como ator e diretor). Em compensação, poucos dias antes de sua morte, doou mais de três

PALCO E VIDA

“Vi José Wilker a primeira vez nos anos 60, ator jovem, recémchegado ao Rio estreando ao lado de Rubens Corrêa e Tetê Medina num dos mais belos e contundentes espetáculos daquela década: A China é azul. Depois disso assisti a outros espetáculos onde ele sempre brilhava e, particularmente, em Mephisto, no início dos anos 90, no Teatro dos Quatro. Talento nato, meticuloso, expressivo, o cinema e a TV exigiram dele maior presença do que nos palcos. O impagável Vadinho de Dona Flor e seus dois maridos e a construção que ele fez da figura de JK no seriado da Globo foram marcantes na sua carreira. Um grande ator que vai fazer falta à cena brasileira.” Pedro Paulo Cava diretor, ator, produtor, professor P 33

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homenagem Nos anos 1960, com o grupo Teatro Jovem, fez a peça Chão dos penitentes. No Teatro Ipanema, local onde foi realizado o velório do ator e que sempre foi o seu lugar, participou da encenação das peças de vanguarda como A ópera dos três vinténs, de Bertolt Brecht, e O rei da vela, do Grupo Opinião, de Zé Celso Martinez Corrêa. Uma década depois, subiu ao palco com as peças A China é azul e O arquiteto e o imperador da Assíria, de Fernando Arrabal, dirigido por Ivan Albuquerque. Por esse trabalho, José Wilker levou o Prêmio Molière de Melhor ator. Durante a ditadura militar, mais engajado do que nunca, integrou o elenco das peças Hair e Hoje é dia de rock que afinavam com o clima de resistência que pedia mudanças na sociedade. Nenhuma novidade para o ator que, ainda no início da adolescência, já dedicado à sua arte, tirava das lições do educador Paulo Freire temas para encenações dirigidas especialmente aos trabalhadores como método de alfabetização. E militava no Movimento de Cultura Popular (MCP) do Partido Comunista. Outra peça de destaque foi Os filhos de Kennedy (1977), dirigida por Sérgio Britto, em que contracenava com Susana Vieira. José Wilker dirigiu, entre outros colegas, as atrizes Eva Wilma e Eliane Giardini na peça Querida Foto: Ana Paula Oliveira Migliari/ TV Brasil- EBC (09/09/2010)

“Ficou na minha memória o ator (José Wilker) da peça O arquiteto e o imperador da Assíria, de Fernando Arrabal, no Teatro Ipanema, anos 70, durante a ditadura, contracenando com o fantástico Rubens Corrêa, duas atuações memoráveis. Vejo neste momento cenas e climas do espetáculo que, basta acender uma luzinha na cabeça, elas reaparecem como poesia maluca, anárquica, surrealista, naqueles idos do teatro pânico.” Eid Ribeiro - ator, diretor e autor de teatro

mamãe, e recentemente preparava para fazer o mesmo com Ary Fontoura, em O comediante. A volta aos palcos também era um dos projetos para este ano do ator que era incansável no seu ofício. “A pior coisa que pode acontecer na vida de um artista é já ter feito o seu melhor”, disse à revista Rolling Stone. Não deu tempo. Ele morreu dormindo, vítima de um infarto fulminante, na casa da namorada, a jornalista Cláudia Montenegro, no Rio de Janeiro. José Wilker, que foi casado com as atrizes Renée de Vielmond, Mônica Torres e Guilhermina Guinle, deixou as filhas Mariana e Isabel, respectivamente dos dois primeiros relacionamentos, a saudade no coração dos inúmeros fãs e o legado de sua extrema dedicação à arte.

ÚLTIMAS CENAS José Wilker ainda poderá ser visto em dois filmes inéditos. Em agosto está prevista a estreia do longa Isolados, do cineasta Tomás Portella. Mariana Vielmond, filha do ator, assina o roteiro, estrelado por Bruno Gagliasso e Rejane Alves. Wilker interpreta o psiquiatra do personagem de Bruno. Outra produção é A hora e a vez de Augusto Matraca, de Vinícius Coimbra, ainda sem data de estreia. Filmado em Diamantina, é inspirado no conto homônimo de Guimarães Rosa. José Wilker interpreta o jagunço Bem-Bem, que lhe valeu o prêmio de Melhor ator coadjuvante na mostra Première Brasil, do Festival do Rio, em 2011.

Ator participava de debates e atividades de formação

Como não poderia ser diferente, a trajetória de José Wilker também inspirou uma cinebiografia. A documentarista Nice Benedictis assina o projeto que ainda não foi concluído simone castro

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Na academia Foto: Christoph Reher/Divulgação

O ator e produtor mineiro Luiz Arthur defende arte para além do entretenimento na Escola de Teatro da PUC

P A L C O E F U N Ç Ã O SO C IA L “O artista tem uma função social a ser cumprida”.

É com essa certeza que Luiz Arthur, ator, diretor e produtor mineiro, leva o seu trabalho à frente da Escola de Teatro da PUCMinas. “Além do entretenimento, temos de levar informação e consciência ao público sobre o mundo que nos rodeia”, enfatiza. A entidade é, provavelmente, uma das mais sólidas e importantes de Minas Gerais. E, ao

um banner com a imagem da fachada de nossa sede, a partir de uma foto que ela própria tirou, apenas para demonstrar sua satisfação com a inquietude artística que levamos para seu bairro”, conta Luiz Arhur.

mesmo tempo em que objetiva a formação de atores, também se projeta junto à comunidade que a cerca. Ou seja, do universo acadêmico se integra aos anseios da sociedade e os compartilha.

A Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais - PUCMinas mantém quantidade significativa de ações culturais regulares que estimulam ligação direta e participação do público muito além do seu entorno, com resposta positiva da comunidade. A Escola de Teatro é um termômetro dessa “parceria” pelo alcance do gênero artístico como veículo de transformação para todos.

De casa nova - a atual sede funciona na Avenida 31 de março, portaria 09, prédio 20, dentro do campus -, a Escola de Teatro da PUCMinas já colhe frutos de sua instalação no bairro Coração Eucarístico, principalmente junto aos moradores mais próximos. “Outro dia, ficamos todos supergratificados com uma simpática senhora do bairro. Ela produziu

A formação de atores é o principal objetivo da Escola. E segue como uma experiência para toda a vida, faz questão de destacar seu coordenador. “É claro que temos alunos que, depois do curso, não seguem na profissão, mas levam para a vida o rigor que conquistaram durante o tempo em que mergulharam em nosso processo criativo. Eu digo

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Na academia sempre: não faz diferença se o aluno vai ou não seguir na profissão, mas que ele saia efetivamente maior do que entrou. Para isso, é fundamental dedicar-se por inteiro ao processo e confiar na condução de nossa equipe, que conta com profissionais experientes. Independentemente de seguir ou não na área, o aluno tem que se dedicar como se assim o fosse. Aí, sim, os resultados, certamente, virão. Hoje, diversas metodologias possibilitam uma absorção de conhecimento, de técnicas, num prazo muito mais rápido e eficaz, graças às instituições que se apropriam do exercício teatral com a seriedade devida”, afirma Luiz Arthur. Para além da formação do ator, a Escola de Teatro da PUC busca, com seu projeto pedagógico, reformulado regularmente, atrelar essa função a um olhar dilatado sobre o movimento atual do mercado profissional. Do nascimento como um curso livre ao status que já ocupa não é de hoje, fruto do seu constante aprimoramento didático, a Escola é credenciada pelo seu processo profissionalizante, sem dúvida, seu maior cartão de visitas. Graças a uma parceria firmada desde 2008 com o Sindicato de Artistas e Técnicos de Espetáculos de Minas Gerais, os alunos que são considerados aptos nos três módulos que compõem a grade curricular, têm direito ao registro profissional de ator. Mas, ao contrário do que possa parecer, isso não é tudo. “Ter o DRT, no fundo, não significa Foto: João Marcos Rosa/Divulgação

Samira Ávila e Luiz Arthur em Dança comigo como a chuva, com direção de Cynthia Paulinho

Foto: Netum Lima/Divulgação

Cena do espetáculo Entre nebulosas e girassóis

muita coisa. Se o ator não tiver um instrumento de trabalho refinado, conhecimento profundo sobre a história do teatro, sobre a luta que possibilitou que nós, atores, pudéssemos ter nossa profissão reconhecida, de nada adianta um título. Queremos mais de nossos alunos. Estamos às vésperas de completar 50 anos do golpe de 64 e um timão de excelentes artistas foi à luta nos anos de chumbo para garantir esse direito. Talento e vocação são primordiais, mas respeito pelos palcos e pela sua história é algo também inerente ao fazer teatral”, ensina. Mesmo fora da área humana, a Escola recebe universitários em grande número também das áreas exata e biológica. Desses, muitos vão em frente e transformam o teatro em profissão e, muitas vezes, o conciliam com outras carreiras. Mas há as pessoas que procuram o exercício no palco como terapia ou para perder a timidez e, ainda, simplesmente para melhorar a oratória. A Escola de Teatro da PUCMinas, todavia, como ressalta Luiz Arthur, é norteada pelo processo que mira o profissionalismo. “É lugar para a formação de atores, com toda a singularidade que o ensino da arte pede. E só. Isso já é muito.” Todo semestre, desde 2008, quando foi implantado o processo profissionalizante, o mercado tem recebido novos atores saídos da Escola de Teatro da PUCMinas. A lista é longa e aumenta a cada ano, desde o início da entidade, ainda como oficina de teatro. “O bacana é ver que aqueles que realmente querem uma carreira consistente procuram o exercício de compreensão deste ofício, seu aprendizado, que não cessa nunca.” Hoje, a Escola conta com cerca de 200 alunos.

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Na academia Para Luiz Arthur, também professor de interpretação na Escola que, entre outros trabalhos marcantes nos palcos, atuou no ano passado na montagem de Entre nebulosas e girassóis, a Escola de Teatro e a PUC cumprem o papel social de levar cultura e arte à população. “A Escola, o Museu de Ciências Naturais, as publicações literárias, entre outras várias iniciativas, são ações efetivas no cumprimento desta vocação de fazer cultura e oferecê-la de forma ampla, inclusiva e democrática”, garante.

Foto: Catarina Paulino/Divulgação

prof i ssiona li zaç ão A Escola de Teatro da PUCMinas oferece cursos profissionalizantes e de curta duração. São três modalidades: processo profissionalizante, especial de montagem e iniciação teatral para crianças e adolescentes. O processo profissionalizante oferece as disciplinas de interpretação, improvisação, expressão corporal, expressão vocal, história do teatro, teoria e pesquisa, maquiagem cênica e prática de montagem. O curso especial de montagem tem como público-alvo alunos já formados em busca de um exercício específico de criação e encenação. A iniciação teatral para crianças e adolescentes conta com as disciplinas de expressão corporal e vocal e interpretação/ improvisação simone castro

Luiz Arthur em A morte de DJ em Paris, com direção de Walmir José

E stá nos pl anos da E s col a, par a e st e a no, of erecer c ur sos, a bai xo c usto, de danç a s ur ba na s e de per for m ance s, com dur aç ão de t rê s me se s c ada um. I nfor m açõe s: (31) 3 319-4014 Foto: Escola de Teatro da PUCMinas/ DIvulgação

Luiz Arthur (ao centro), com atores formados pela Escola de Teatro da PUC

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d e o lh o n a c e n a Foto: Arquivo Pessoal/Divulgação

L a b o r a t ó r i o d e E x p e r i m e n t a çã o D i g i t a l apresenta game desenvolvido por crianças

Coordenadora do Centro de Convergência de Novas Mídias da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da UFMG, a professora Regina

Foto: Arquivo Pessoal/Facebook

Helena Alves Silva não tem dúvidas do quanto os games podem ser úteis no desenvolvimento das competências e habilidades durante a infância. Heavy user de equipamentos eletrônicos – é impossível vê-la sem um smartphone ou um Ipad em uma das mãos –, ela assina a Coordenação Geral do projeto Boalópolis – Explorando a cidade, game concebido para crianças do Ensino Fundamental II (de 11 a 14 anos), elaborado com a participação dos alunos do Espaço Escola Copen, em Belo Horizonte. O jogo, realizado pelos desenvolvedores do Laboratório de Experimentação Digital do CCNM, com financiamento do Proext 2013, foi lançado no sábado, 12 de abril, durante um evento na Copen. O cenário do game é um ônibus escolar. Ao entrar nesse universo, os jogadores decidem se querem ser o motorista ou o acompanhante das crianças. “Qualquer uma das escolhas será um enorme desafio, como você pode imaginar”, explica Regina Helena. O jogador deve ter a capacidade de conduzir o ônibus em

Regina Helena coordena o Centro de Convergência de Novas Mídias da Fafich/UFMG

meio ao trânsito caótico da cidade, sem descuidar do combustível e do bom estado do veículo, além de evitar os possíveis acidentes no percurso. Se optar por ser o acompanhante, ele terá de garantir a felicidade do grupo – medida em barrinhas de satisfação –, resolvendo conflitos que vão desde uma briga por lanche até disputas entre turmas rivais.

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d e o lh o n a c e n a Regina Helena acredita que, na mesma medida em que jogos violentos como o GTA (sigla para Grande Ladrão de Carros em português) podem estimular um comportamento agressivo, games educativos podem ajudar a resolver conflitos fora das telas. “Qualquer coisa vaza”, sentencia. Para a professora, no entanto, é preciso avançar um pouco mais nessa discussão. Ela não acredita que os games, por si só, tornarão as crianças mais espertas ou inteligentes. Mas também não faz coro com aqueles que entendem que o videogame é veículo de alienação. Seus filhos, com 3 e 4 anos, ela conta, conhecem vários aplicativos direcionados à primeira infância e lidam bem com os muitos eletrônicos que ela tem em casa. E também pulam amarelinha, correm e são capazes de se pendurar no lustre se alguém não aparecer para impedi-los. Ou seja, são crianças como quaisquer outras, deste século ou do passado.

Educativos A coordenadora geral do projeto Boalópolis acredita que a maioria dos pais e professores persiste com um conhecimento equivocado acerca dos games. É preciso entender o que as crianças buscam nos jogos, para assim buscar uma ponte com as expectativas também dos adultos. “As pessoas entendem os games pelos conteúdos e não pelas habilidades”, acredita.

Enquanto os teóricos divergem em relação às barreiras entre os mundos v irtual e f ísico, os pais de crianças pequenas div idem-se em dois grupos: os que defendem a inteligência mais acurada das crianças graças à inserção no mundo digital; e os que pregam uma total rejeição às telas, promovendo o resgate de uma infância à moda ant iga como forma de resistência à “invasão” dos v ideogames e tablets. Ela afirma que, em geral, os jogos educativos são uma coisa enfadonha, repleta de textos explicativos e pouquíssima aventura. Uma espécie de livro escolar transposto para as telas. Dessa forma, muda-se o formato, mas a linguagem continua distante do que realmente atrai o público interessado. Boalópolis foi concebido de um jeito diferente. O jogo não só desenvolve as habilidades na resolução de conflitos, como apresenta pontos importantes da cidade e trás alertas para os pequenos sobre aspectos da vida cotidiana, como as questões de trânsito. Participantes ativos do processo de criação do game, os alunos do Espaço Escola Copen deram palpite em cada detalhe: dos percalços que ocorrem nas excursões às roupas que os personagens deveriam usar para ficarem mais parecidos com eles próprios. Desse jeito, o jogo fala de perto para quem realmente importa. Foto: Arquivo Pessoal/Divulgação

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d e o lh o n a c e n a Foto: Arquivo Pessoal/Divulgação

Foto: Arquivo Pessoal/Divulgação

Estrada Real Antes de Boalópolis, Regina Helena, que é vinculada ao Departamento de História da Fafich, coordenou a produção de outro game educativo, também para crianças do Fundamental II, chamado Estrada Real. A ideia do jogo, voltado às escolas, é inserir os alunos no universo da história local, promovendo uma viagem pelos destinos turísticos da Estrada Real. Também aqui, houve uma preocupação em tornar o game “menos conteudístico” e mais lúdico, como se nota

Bai xe o jogo Boalópoli s: ht tp://ccnm.faf ich.ufmg.br /boalopoli s/ Conf ir a o t r ail ler do jogo E st r ada Re al: ht tp:// you t u.be / YSY 8H4l5T6E

Foto: Arquivo Pessoal/Divulgação

no próprio argumento do jogo. A protagonista, filha do prefeito de Ouro Preto, tem de lidar com o sequestro do seu pai, no dia da entrega da Medalha da Inconfidência. A partir daí, o roteiro é de aventura. As habilidades são desenvolvidas, inclusive por meio de minigames inseridos no jogo, e a curiosidade das crianças pelo conteúdo é aguçada. Mas o jogo não se encerra em si mesmo e oferece vasta possibilidade de interação. Regina Helena enfatiza que papel do professor não é direcionar o jogo; é discuti-lo depois, desenvolvendo atividades que o complementem Daniela Mata Machado

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ETER N O E I N ES G OTÁ V E L Reação amorosa marca a despedida de Gabriel García Márquez

Uma comoção literária invadiu as redes sociais na tarde de quinta-feira, 17 de abril. Minutos depois do anúncio da morte do escritor colombiano Gabriel García Márquez, o nome do autor tornava-se trending topic mundial, ou seja, o assunto mais citado no Twitter. Em poucas horas, ele também se revelava um dos temas mais mencionados no Facebook e ganhava reportagens e programas especiais na TV. No dia seguinte, matérias sobre sua vida e obra foram publicadas pela maioria dos periódicos de grande circulação pelo mundo afora. El Gabo, como era conhecido na América Latina, morreu aos 87 anos, na Cidade do México, onde vivia há mais de 30 anos. Nascido em Aracataca, na Colômbia, o autor de Cem anos de solidão lutava contra um câncer linfático desde 1999. Gabo é a prova cabal de que o pop pode ser denso e elaborado, desde que não seja pedante ou excessivamente hermético. A narrativa da

saga da família Buendía traduz as idiossincrasias da América Latina de forma tão singular e tão apaixonante que fez do romance Cem anos de solidão, lançado em 1967, a obra mais importante da literatura hispânica desde Dom Quixote de La Mancha, o clássico de Miguel de Cervantes. Até hoje, o livro de García Márquez já vendeu mais de 50 milhões de exemplares e foi traduzido para 35 idiomas. Pelas suas páginas, desenvolvem-se os dramas de amor e de guerra vividos por sete gerações de uma mesma família, habitante de uma aldeia fictícia chamada Macondo. Cem anos de solidão é uma das obras que ajuda a consagrar García Márquez como o principal expoente de um estilo literário conhecido como realismo mágico, um movimento que promove o cruzamento entre o realismo histórico e o imaginário, e que marca, ainda hoje, a identidade da literatura latino-americana no mundo. Mas esse não foi o único sucesso literário de El Gabo. Aliás, ele mesmo afirmou, mais de uma vez, que nem era essa a sua melhor obra.

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HoMeNaGeM “Foi a época em que fui quase completamente feliz”, o escritor descreveu, em entrevista ao jornal norte-americano The New York Times, o período em que escreveu o romance o amor nos tempos do cólera, lançado em 1985, três anos depois de ele ser agraciado com o Prêmio Nobel de Literatura pelo conjunto de sua obra. Para Gabo, a dolorosa história do amor de Florentino Ariza e Fermina Daza constituíase a sua melhor produção literária. “Cem anos de solidão não é o meu livro”, ele chegou a afirmar numa entrevista. “Meu livro é O amor nos tempos do cólera. Esse é um livro que vai ficar. Cem anos de solidão é um livro mítico e eu não trato de tirar dele mérito algum. Mas o amor nos tempos do cólera é um livro humano, com os pés na terra do que somos de verdade.” Nessa obra, García Márquez resgata a história verídica do amor de seus pais, o telegrafista, violinista e poeta Gabriel Elígio García e Luiza Santiago Márquez, que enfrentou a oposição do avô do escritor, pai de sua mãe, Coronel Nicolas. “Todas essas coisas, para mim, são parte da nostalgia”, ele afirmaria, três anos após a publicação do livro, também em entrevista ao The New York Times. “Nostalgia é uma fonte incrível para inspiração literária, para inspiração poética.”

Jor na li smo O escritor colombiano estudou Direito e Ciências Políticas na Universidade Nacional da Colômbia, mas abandonou os estudos antes de se graduar. Em 1948, mudou-se para Cartagena das Índias, também na Colômbia, onde passou a escrever para o jornal El Universal. Gabo acreditava que o jornalismo era “a melhor profissão do mundo”. Seu primeiro romance, a revoada (O enterro do diabo), escrito em 1950, foi publicado em 1955, por seus amigos, enquanto ele trabalhava como correspondente internacional da Europa. Nesse livro de estréia, a mítica Macondo, consagrada anos mais tarde no romance Cem anos de solidão, já aparecia como cenário para a história que

se desenrola a partir do enterro de um personagem odiado por toda a aldeia. Em 1961, ele publicou seu primeiro grande sucesso, Ninguém escreve ao coronel, que narra a história de um veterano de guerra que espera pela correspondência que lhe traria a confirmação de uma pensão a que tinha direito, ao lado da mulher asmática e de um galo de briga, deixado como herança pelo filho, morto pela polícia. Entre suas obras essenciais, destacam-se ainda o outono do patriarca, lançado em 1975, e Crônica de uma morte anunciada, em 1981. O primeiro tem sua ação desenvolvida em um país fictício, às margens do Mar das Caraíbas, governado por um general ditador, e recria o estereótipo das ditaduras latino-americanas do século XX. O segundo trata do assassinato de Santiago Nassar, acusado de desonrar Ângela Vicario, pelos irmãos da moça. Em 1996, García Marquez publicou Notícias de um sequestro, misturando ficção e realidade para produzir um retrato da guerra do tráfico de drogas na Colômbia. Seis anos mais tarde, já doente, Gabo lançaria sua autobiografia, Viver para contar, narrando, por si mesmo, a trajetória inigualável que percorreu como escritor e as origens do realismo fantástico, gênero literário que ajudou a consagrar. Em 2012, o irmão de Gabo, Jaime García Márquez, lamentou que o escritor, já sofrendo de demência senil e lutando contra a perda da memória, não tivesse mais condições de escrever a segunda parte do livro.

HistÓria de eNCaNtaMeNto Os números relativos a Gabriel García Márquez são impressionantes. Somente no Brasil, são mais de 30 títulos publicados e mais de 1,5 milhão de exemplares vendidos. O volume de premiações que ele ganhou também é imenso. Mas Gabo provavelmente não se impressionaria com isso. O jornalismo, que ele considerava a melhor profissão do mundo, era feito menos de números do que de histórias. Histórias de gente. Por isso mesmo, melhor que enumerar seus feitos é mergulhar na sua obra, nos seus relatos, na sua realidade e na sua fantasia. Assim, e só assim, é possível entender – ou sentir, o que é sempre melhor do que entender – porque esse colombiano comoveu e vai seguir comovendo tanta gente mesmo depois de partir para Macondo daniela Mata MaChado

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homenagem Foto: Francis Giacobetti-divulgação

O fun d a m e n t o d e um a r e v o luçã o Escritor defendeu integração latino-americana como um princípio

Ser protagonista na defesa da unidade latinoamericana é um importante legado deixado por

García Márquez, entre outros tantos que fazem de sua obra e biografia um universo inesgotável. Impregnada por uma lógica anticapitalista e antiimperialista, essa é uma ideologia que define, do ponto de vista cultural, um território não-geográfico, histórico e fundamental para os novos contornos da produção artística em sua vasta possibilidade.

Se no aspecto político o pensamento latinoamericano está ancorado essencialmente no materialismo dialético marxista, na cultura ele se expressa como uma atitude convergente, que faz dialogar e interagir García Márquez, Mercedes Sosa, Simón Bolívar, Jorge Amado, Betinho de Sousa, José Carlos Mariátegui, José Martí, Herbert Vianna, Silvio Rodrigues, Frei Betto e tantos outros em todos os países deste amplo espectro que envolve o Caribe, o corredor Andino e a América do Sul, incluindo o Brasil. Assim mesmo se misturam artistas, intelectuais e militantes, de diferentes gerações e origens, pertencentes a algo maior que transcende a temporalidade. Defender a unidade latino-americana diz-respeito a uma maneira bastante particular de interpretar a realidade; é integrar a “Família Grande”, recorrente imagem projetada pelos artistas sobretudo cubanos, quando se trata de celebrar a soberania de povos que se protegem para além de suas fronteiras. E é neste sentido que a arte e a cultura prestam imensa contribuição, não apenas como ferramenta de difusão e consolidação desta ideologia, mas como elemento fundante de sua estrutura; prerrogativa de sua existência. Assim como a capoeira, seus ritos e cânticos foram fundamentais aos quilombos e ao sentimento que realmente gerou consciência acerca da necessidade imperativa de libertação dos escravos, o movimento cultural em torno da integração latino-americana se alimenta de romances, canções, filmes e tantas outras

expressões criativas deste tempo. Assim, cada obra, a despeito da sua materialidade superior, perde seu valor em si mesmo para se transbordar em signos, símbolos e referências capazes de estabelecer relações múltiplas entre passado e presente; memória e processo; produto e pensamento; idéia e convicção. Talvez por isso a despedida de Gabo, assim como a de Ibraim Ferrer e Mercedes Sosa, por esperadas que fossem, desperte uma reação amorosa tão imediata, contundente e universal, por representar mais que uma ausência funda. Apesar do legado inquestionável deixado por cada um, fica também o sentimento de subtração de outras travessuras, que seguramente eles estariam prestes a aprontar. Gabriel García Márquez marcou sua geração, seu tempo, e se fez eterno em seus romances. Mas, para além destes atos de rebeldia, contribuiu para a superação de pensamentos estanques em favor de idéias libertárias, de ruptura, com o intuito inevitável de desconstrução de paradigmas. Isso é revolução, que se faz cotidianamente e para sempre, na solidão de cada um, por muito mais de um século janaina cunha

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homenagem Arquivo pessoal: Andreas/Findingberlin

hOTE L B o g o t a B e r l i n E s cre ver sobre G abrie l G arc í a M árque z doi s di a s depoi s de sua morte, quando qua se

tudo já terá sido dito sobre o homem e sua obra, representa um grande desafio. Como não posso, a esta altura, senão escrever, considero a possibilidade de lançar mão de um estratagema do qual, confessadamente, o escritor se valeu desde os seus primeiros tempos como jornalista: a pura e simples invenção de fatos. A hipótese me parece boa, mas exporia meu escrito e eu à forçosa comparação com o tipo de jornalismo que predomina, hoje, no mundo, numa desleal concorrência com os autores de ficção. Em meio às dúvidas sobre qual caminho devo seguir, me acode a lembrança da romancista estadunidense que conheci na Alemanha, em setembro do ano passado, quando integrei uma delegação de escritores brasileiros convidados para a Feira de Frankfurt. Fiquei em Berlim 4 dias, para participar de um debate e para fazer uma performance no Festival Internacional de Literatura. Eu estava muito alegre por retornar à cidade, que conheci em 2003 e revi em 2012, e também me excitava saber que ficaria hospedado num hotel chamado Bogota Berlin. Quiseram os deuses que eu, já na manhã seguinte à minha chegada na cidade, encontrasse, numa das mesas do restaurante do hotel, junto com a chave de um quarto, um exemplar da tradução brasileira de “Cem anos de solidão”. Fiquei surpreso com o achado e, talvez porque ainda estivesse sob o efeito da viagem, não me ocorreu que o livro poderia ser de algum dos meus patrícios. Não era. Curvado sobre a mesa, ouvi um bom dia, Ricardo, dito em português por uma voz feminina suave, mas firme. Me virei e vi, toda sorrisos, a dona do livro. Muito prazer, Kia. Negra, bonita, corpo roliço e bem recortado como o de certas mulheres da minha família, Kia pousou na mesa o prato com as frutas de que se servira e me abraçou efusivamente. Muito agitada, convidou-me para sentar com ela, como quem dá ordens. “Vá se servir, rapaz, e volte logo”. Obedeci, enquanto tentava descobrir, pelos sinais aparentes, a idade dela. 48? 50? 53? Mais? Ela me chamou de rapaz, aquela mulher de quem eu nada sabia, mas que, pelo visto, sabia algo sobre mim. Voltei para a mesa e, com a

súbita coragem comum aos tímidos, disse, antes de me sentar, que tinha três perguntas para fazer a ela. Sem interromper a meticulosa operação de corte da fatia de abacaxi a que estava entregue, fez que sim com a cabeça. Eu: 1) Por que você fala tão bem o português?; 2) Por que sabe o meu nome? 2) Por que você está lendo García Márquez em português, e não em qualquer outra língua? Kia riu tão alto, e por tanto tempo, que os outros hóspedes e os garçons olharam para a nossa mesa, curiosos. Diante do meu visível desconforto, Kia quase sussurrou as respostas, uma a uma, o que provocou ainda mais a curiosidade das pessoas nas outras mesas: 1) Morei três anos em Salvador, em meados da década de 1970; 2) Você é brasileiro, vi seu nome na lista dos participantes do Festival, e como preciso praticar o português, te escolhi para ser meu interlocutor enquanto estiver por aqui; 3) Porque a minha tese de doutorado tem como principal foco o cotejo das traduções de “Cien años de soledad” para o alemão, o francês, o inglês e o português-brasileiro. Foi a minha vez de rir. Um riso breve: Kia fez sinal para que eu parasse e, em tom de conspiração,

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homenagem avisou que tinha um segredo para me contar, mas que não poderia ser ali, teríamos que ir para um outro lugar qualquer. Para evitar interrupções, compreende? Daqui a pouco já estarão aqui os outros brasileiros, e o que eu tenho para te contar é quente, quentíssimo. Ganhamos a rua e, depois de uma longa e um pouco confusa negociação sobre nosso destino ao longo do dia, optamos por procurar um café nas imediações do hotel. É sobre Gabo, disse, assim que nos sentamos. Gabo? Apesar de conhecer bem os títulos mais famosos de García Márquez, não me sentia à vontade para falar sobre o escritor com aquele tipo de intimidade que se permitem seus leitores assíduos. Sim, Gabo, ela confirmou. Gabo no Hotel Bogota Berlin. Em 1980, dois antes de conquistar o Nobel. E o que tem de extraordinário nisso?, perguntei, irônico. Kia respirou fundo, os olhos teatralmente fechados, e voltou à carga. Aquele não é um hotel comum. Durante a segunda guerra, o Bogotá Berlin foi ponto de encontro de cineastas ligados ao nazismo, que lá recebiam milionários de quem buscavam apoio financeiro para a realização de seus filmes, entendeu? Entendi parte da história. O que isso tem a ver com García Márquez? Seja paciente, rapaz e, eu te conto tudo. É cedo para uma cerveja? Já tomou desta? É a minha favorita. Pedido feito, continuou a contar sobre, vá lá, Gabo no Bogota Berlin. Kia era muito jovem quando a história aconteceu, me disse, e eu, por delicadeza, perdi a chance de perguntar a ela que idade contava na época. Não me surpreenderia se respondesse 87, 120 ou até 304 anos, quatro meses e doze dias, tamanho era o seu fascínio por seu amado Gabo. Entendi, naquele instante, que era melhor entrar no jogo e passei a me deliciar com cada frase sobre aquele tempo mágico, quando a sorte dela, que em seus primeiros anos na Alemanha era “uma simples camareira”, mudou da noite para o dia, ao reconhecer naquele amável senhor de bigodes, sempre cercado por muita gente, o autor do livro que a ajudava a suportar uma vida dura, de trabalho, mais trabalho e uma solidão que parecia durar cem anos.

de minha nova amiga, que ninguém poderia afirmar que Gabo, um “criador de mundos”, como diziam seus admiradores, fez ou não fez isso ou aquilo. Gabo me deu vida, Ricardo. E um rumo. Quando eu deixava o trabalho no hotel e pegava o metrô para casa, eu me sentia a caminho de Macondo. Meu apartamentozinho, pobre e feio, era Macondo. Macondo Berlin. Graças a Gabo eu criei coragem para viajar pela América do Sul. Foi assim que fui parar na Bahia, Macondo Salvador, de onde parti, depois de três anos sendo tratada como uma rainha, para Bogota. Você, agora, já não acredita em nada do que eu te conto, não é? Parece um menino de quem tiraram um brinquedo. Deixe, então, que a titia leia para você o trecho que ela mais gosta do livro que ela mais ama. PILAR TERNERA morreu na cadeira de balanço de cipó, numa noite de festa, guardando a entrada do seu paraíso. De acordo com a sua última vontade, enterraram-na sem ataúde, sentada na cadeira de balanço, que foi descida com cordas por homens num buraco enorme, cavado no centro da pista de dança. Lembra disso, Ricardo? Está gostando? As mulatas vestidas de preto, pálidas de pranto, improvisavam ofícios de trevas enquanto tiravam os brincos, os broches e os anéis, e os iam jogando na fossa, antes de que a selassem com uma lápide sem nome nem datas e lhe colocassem por cima uma montanha de camélias amazônicas. Depois de envenenar os animais, fecharam portas e janelas com tijolos e argamassa e se dispersaram pelo mundo com os seus baús de madeira, atapetados por dentro com figuras de santos, recortes de revista e retratos de namorados efêmeros, remotos e fantásticos, que cagavam diamantes ou comiam canibais ou eram coroados como reis de baralho em alto-mar. Não é maravilhoso? Pedimos outra cerveja? Ricardo Aleixo Arquivo pessoal: Andreas/Findingberlin

Quatro ou cinco cervejas depois, Kia desmentiu a história. Não toda, mas a parte relativa ao encontro com Gabo. Dobrava-se de rir. Nem mesmo sei, Ricardo, se Gabo já esteve algum dia em Berlim. Eu ainda tentava me apegar ao que ouvira antes, tão saborosa me pareceu a hipótese dele ter sido instalado no Bogota Berlin precisamente para receber a proposta de escrever um romance ambientado ali. Argumentava, fascinado com a inventividade

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Incub a d o r a Foto: Guto Muniz/Divulgação

TE M P O DE RE C O N STR U IR

Grace Passô imprime sua marca na dramaturgia contemporânea

De slo c a men to é pal av r a-chave par a compreender a dr a m at urgi a de Gr ace Pa ss ô .

Ao oferecer histórias que dialogam intimamente com o realismo mágico, sem se deter a ele como estrutura obrigatória para seus escritos, a autora conduz leitor-espectador a um mergulho interior intenso. Não bastasse provocar reflexões em vez de oferecer respostas a dilemas cotidianos, Grace lida com os temas de uma maneira bastante particular: manipula sentimentos como se eles fossem tangenciáveis, aproximando realidade e ficção sem cerimônia. A criação dramatúrgica, naturalmente, reflete processos e experiências pertinentes ao Espanca! – grupo do qual faz parte e que se converteu em território de investigações permanentes acerca da produção cênica e seu papel na contemporaneidade. Portanto, fala de si própria e de seus pares, mas avança consideravelmente na proposta de produzir encontros inesperados, numa relação com o público que já nasce propositiva de novos modelos de interação. Captura pela palavra, sem sucumbir à tentação de fazer do texto mera ferramenta.

Neste sentido, os quatro volumes da Coleção Espanca!, lançados pela editora Cobogó, são oportunidade singular para desfrutar de um conteúdo que faz sentido em cena, mas igualmente pertinente como literatura. Amores surdos, Por Elise, Congresso internacional do medo e Marcha para Zenturo revelam de Grace Passô, vencedora do prêmio Shell 2006, sua competente performance como autora. Também apresentam uma escritora tão complexa em seus pensamentos quanto popular, no melhor sentido do termo, em seus registros. Assim como não dependem dos atores que os interpretam, os livros também são independentes entre si. Têm formato de bolso, o que facilita manuseio e deslocamento, e fazem parte de uma experiência importante para o teatro contemporâneo no país, ao gerarem condição de memória da trajetória do grupo, uma vez que compila seus feitos, em texto, foto e comentários. A exemplo das provocações que os atores distribuem como pílulas aos espectadores em cena, a Coleção Espanca! amplia o acesso a repertório intenso, que traduz a qualidade de produção teatral em Minas Gerais janaina cunha

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iNCUBadora

treCHos Foto: Ana Alvarenga/Divulgação

P or e L i se Foi o primeiro trabalho do grupo, em 2005. Mostra as constantes revelações das relações humanas e as contradições dos sentimentos. “Eu sou a mulher que há alguns anos plantou um simples pé de abacate no quintal de sua casa. E ele cresceu. E então eu vivo assim. Assim! (ela sente medo!) Cuidado com o que planta no mundo! Mas por aqui, como eu, existem outros moradores desprotegidos, mesmo com cães dentro de casa. Companheiros de muros: muros de tijolos, muros de pele. Sabe, “proteção” é mesmo bem importante. Eu, por exemplo, sempre quis colocar colchões largos em volta do pé de abacate de minha casa. Sim, colchões. Já passei muito tempo imaginando essa cena: de abacates caindo sem medo do alto dos ramos das árvores. Sem medo.”

Foto: guto Muniz/divulgação

Número de páginas: 80 | Ano de edição: 2012 | Preço de capa: R$ 25 Foto: guto Muniz/divulgação

amore s surdos O espetáculo narra o cotidiano de uma família aparentemente comum. No entanto, suas relações, por mais amorosas e afetivas que sejam, traduzem uma distância insuperável na falta de comunicação que impede uma compreensão mútua entre os personagens. “Ninguém vai matá-lo. Essa é a nossa realidade. Tem coisas que não se mata! Tem coisas que foram feitas para se viver com elas. Essa é nossa realidade. Não se arranca a coluna por causa da dor nas costas. O grande bicho vai continuar aqui, nessa casa, dentro de nós. Dentro de nós. Ninguém vai matá-lo. Tem coisas que foram feitas para se viver com elas. Tem coisas que foram feitas para se viver com elas. Tem coisas que foram feitas para se viver com elas. Tem coisas que foram feitas para se viver com elas!”

Foto: guto Muniz/divulgação

Foto: guto Muniz/divulgação

Número de páginas: 88 | Ano de edição: 2012 | Preço de capa: R$ 25

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iNCUBadora M arch a par a Ze n t uro

Foto: alexandre ramos/divulgação

O espetáculo, criado em parceria com o Grupo XIX de Teatro (SP), apresenta o reencontro de uma turma de amigos numa festa de Ano Novo. Essa reunião desperta lembranças e reflexões sobre como o tempo transcorreu em suas vidas: como eram, o que desejaram ser, o que se tornaram, e o que ainda se tornarão. “Há alguma coisa nos olhos de Marco que eles não compreendem. Marco está com a arma nas mãos diante da plateia. - Não é pra ter medo de mim, acho que não. Nem sei se estão compreendendo as palavras que eu estou dizendo agora, talvez só os doentes estejam me ouvindo enquanto falo, mas tudo bem. Toma, pega! É um presente. O meu presente. O mais simples de todos os presentes: o presente. Puro e simples. Que por mais sólido que pareça, está aqui se transformando. Quem está aqui? Quem. Não se preocupem comigo. Eu estou bem.”

Foto: guto Muniz/divulgação

Número de páginas: 116 | Ano de edição: 2012 | Preço de capa: R$ 25

Congre sso i n t e r nac ional do Me do É uma reunião de indivíduos vindos de lugares – e culturas – distantes do mundo para integrar este encontro na tentativa de conceituar algumas questões que dizem respeito à humanidade. É a partir dessas distâncias que o texto propõe o encontro das similaridades através das diferenças; e busca encontrar o grande tesouro do conhecimento humano, na ciência ou na simples contemplação da natureza. Dentre as conclusões, está a amedrontadora constatação de que somos efêmeros e provisórios e que o medo é a véspera da coragem.

Fotos: guto Muniz/divulgação

“Escutem, eu nunca tive medo do conhecimento. De dissecar o mundo até encontrar seu átomo. Nunca temi entender a mecânica do movimento, a raiz da palavra, nunca temi entender o verbo “ser” na sua substância. Mas a morte, não. Eu nunca estudei a morte. A morte mesmo eu não sei. (para Doutor José) Doutor José, desculpe se não traduzi bem as suas palavras. (...) Mas também as palavras, às vezes, são tão menores do que o que queremos dizer. Ah! Eu estou dentro de mim, de costas para a minha face! Que temor!” Número de páginas: 72 | Ano de edição: 2012 | Preço de capa: R$ 25

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Nesta

página,

em

que

comemoramos

nossos 60 anos, agradecemos todos que construíram esta história, levando para suas casas páginas e páginas do nosso acervo e que mantêm em sua memória muitos momentos deste tempo.

Biblioteca Pública Estadual Luiz de Bessa Biblioteca Pública Estadual Luiz de Bessa

2014

2014

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a CULtUra qUe resPira a Cidade nesta edição Janaina Cunha Chico Cereno

Ricardo Aleixo

Simone Castro

Daniela Mata Machado Gualter Naves

REALIZAÇÃO

APOIO

Mitocondria, a cultura que respira a cidade numeo 01 V03_60.indd 50

Ice Band

Black Josie

Magali Simone

PATROCÍNIO

INCENTIVO

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