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ATUALIDADE
O “Gabinete judaico” do Presidente Biden
Muitos se perguntam como será o novo Presidente dos Estados Unidos e quais os seus vínculos com a comunidade judaica americana e com Israel. Vejamos, pois, algumas de suas principais escolhas: O Chefe de Gabinete, Secretário de Estado, Secretário de Segurança Interna, Secretário do Tesouro e seu Procurador Geral (equivalente ao nosso Ministro da Justiça) estão entre os membros judeus do gabinete dE Governo do Presidente Biden.
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Oconsistente apoio do novo presidente a Israel tem sido uma constante em todas as cinco décadas de sua carreira na vida pública, desde que foi eleito para o Senado americano em 1972. No ano seguinte, Biden visitou Israel. Apesar de nem sempre estar de acordo com as decisões políticas do país, seu comprometimento com Israel sempre foi inamovível. Batalhou no Senado pela valiosa ajuda americana anual a esse país, referindo-se à mesma como “o melhor investimento de US$3 bilhões que já fizemos”, além de se opor a qualquer tentativa de corte ou imposição de condições negativas à ajuda ao país amigo.
Ele também representa uma forte voz contra o antissemitismo. Joe Biden prometeu que, como Presidente, continuará a assegurar que o Estado Judeu, o Povo Judeu e os valores judaicos tenham o apoio inquebrantável dos Estados Unidos da América. Ademais desse tradicional apoio, o Presidente Biden e a Vice-Presidente Harris têm laços familiares muito próximos com os judeus.
O marido de Kamala Harris, Douglas Craig Emhoff, é judeu. E o Presidente Biden também tem uma mishpachá judaica – todos os seus três filhos são casados com cônjuges judeus. Em um evento político em Ohio, em 2016, Biden declarou: “Sou o único católico irlandês que vocês conhecem que viu concretizado o seu sonho de ver sua filha casada com um cirurgião judeu”...
No tocante à questão israelense, a escolha do gabinete de Biden alinha-se muito intimamente com suas visões políticas. Talvez ele nem sempre concorde com o Primeiro-Ministro Bibi Netanyahu quanto à necessidade de uma solução de dois estados ou quanto aos assentamentos na Cisjordânia, mas para ele a salvaguarda da segurança do Estado Judeu não é negociável e é da maior importância na região.
Antes mesmo de tomar posse, o novo presidente já havia dado sinais sobre a possibilidade de os Estados Unidos voltarem ao Acordo Internacional sobre o programa nuclear do Irã.
A princípio, Israel se opõe a isso e pede que o governo Biden inclua novos termos no acordo, como limitações do programa balístico iraniano e exigências de que o Irã pare de patrocinar o terrorismo ao redor do mundo. Ainda é cedo para se dizer se o Presidente Biden retornará ao acordo inicial, assinado pelo governo Obama, sem novas exigências. E isso constitui um preocupante ponto de interrogação para Israel.
O Primeiro-Ministro Bibi Netanyahu vê o Irã como a maior ameaça a Israel e sempre se opôs abertamente aos termos do Acordo Nuclear de 2015. Em 2018, o Presidente Trump retirou os Estados Unidos desse Acordo Nuclear com o Irã, afirmando que o país é o “principal Estado patrocinador do terrorismo” e que nada que o Irã faça é mais perigoso do que a busca por armas nucleares. Ao retirar os Estados Unidos desse Acordo, Trump restaurou sanções econômicas contra o Irã. Contudo, o governo de Donald Trump não demonstrou que tomaria ações militares para impedir que esse país adquirisse armas nucleares, apesar do programa nuclear iraniano ter avançado durante os quatro anos da administração Trump. Não se sabe o que uma administração Biden fará se o Irã continuar com suas ambições nucleares.
Vejamos os integrantes judeus do Gabinete do novo Presidente dos Estados Unidos da América: Ron Klain, Chefe de Gabinete
Ron Klain foi a primeira nomeação importante do novo presidente americano e sua função é a de Chefe de Gabinete na Casa Branca (ou Chefe da Casa Civil, como conhecemos no Brasil). Klain foi uma escolha óbvia para Biden, que
Ron Klain
gosta de se cercar de seus leais confidentes de longa data. Ademais de ser um veterano insider com grande vivência e trânsito em Washington, Klain é conhecido como o “alter ego político” do presidente.
O Chefe de Gabinete da Casa Branca serve de íntimo conselheiro presidencial e gerencia toda a equipe da Casa Branca, inclusive o escritório de comunicações. O ocupante dessa função desempenha importante papel na implementação da agenda do Presidente. Negocia com o Congresso, outras agências e grupos políticos em nome da Casa Branca. Ademais, atua como confidente do Presidente, além de controlar o acesso ao Oval Office e ao próprio Presidente.
Ron Klain nasceu em 8 de agosto de 1961, em Indiana. Seu pai era empreiteiro e sua mãe, agente de viagens. “Cresci em Indiana, em uma comunidade judaica de bom tamanho, mas sempre fomos uma minoria”, ele contou ao The New York Times em 2007. redação e implementação do Plano de Recuperação Econômica do governo Obama.
Ele foi também um importante assessor da campanha presidencial de 2020 de Joe Biden. Ajudou a formatar a resposta de Biden ao Coronavírus, ajudando-o também a se preparar para os debates presidenciais. Klain tem experiência com os surtos de vírus, tendo sido o coordenador da reação da Casa Branca ao Ebola, no governo de Obama, e foi apelidado de “Tsar do Ebola” pela maneira hábil com que conduziu a reação ao surto dessa doença, em 2014. No ano seguinte, foi incumbido pelo presidente e seu vice Biden a implementar um gabinete de prevenção a pandemias, na Casa Branca, que funcionou até 2018, quando foi extinto pelo Presidente Donald Trump.
Pelo acima descrito, a escolha de seu Chefe de Gabinete deixa muito evidente o alto compromentimento do Presidente Biden com o controle e erradicação da pandemia do Coronavírus.
“O fato de não termos uma árvore de Natal era parte importante de nossa identidade judaica em um lugar onde todo mundo a tinha”.
Klain ainda frequenta a sinagoga onde cresceu, sendo sempre convidado para dirigir a palavra ao Kahal, e comparece aos serviços religiosos nos feriados judaicos.
Juntamente com seu Rabino, ele participou de um video sobre a pandemia da Covid-19, em que comparou a praga dos primogênitos da história de Pessach a uma doença infecto-contagiosa, e os judeus que receberam a ordem de ficar em casa durante essa praga a todos nós que temos que manter distanciamento social, atualmente.
Biden e Klain têm trabalhado juntos desde a década de 1980. Em 1987, Klain trabalhou na primeira campanha presidencial do hoje presidente. Serviu como Chefe de Gabinete de Al Gore (no governo Clinton) e de Joe Biden (durante o primeiro mandato de Obama), em que ambos eram vice-presidentes. Em 2009, Klain teve um papel central na
Já a política do Oriente Médio não é a área de especialização de Ron Klain, mas ele é considerado amigo de Israel. Em certa ocasião criticou o Primeiro-Ministro Bibi Netanyahu pelo Twitter por seu relacionamento com o Presidente Trump. “O Primeiro -Ministro de Israel aparentemente não vê problema em Trump abraçar os nazistas que cantam ‘Os judeus não nos substituirão’ ”, ele tuitou em 17 de março de 2018, após protestos de supremacistas brancos em Charlottesville.
Klain conhece bem o Presidente Biden, bem como o funcionamento interno da Casa Branca. Seu staff conta com aproximadamente 4 mil
funcionários e um orçamento anual de cerca de 700 milhões de dólares.
Tony Blinken, Secretário de Estado
Este é outro dos leais confidentes, de longa data, de Biden. Os dois trabalham juntos há 20 anos. Há mais de uma década Blinken tem sido um dos assessores políticos mais próximos do novo Presidente americano.
Antony John Blinken nasceu em Nova York em 16 de abril de 1962. Seu pai, Donald, era um gigante no ambiente de capital de risco e sua mãe, Judith, mecenas das artes.
O bisavô de Blinken, Meir Blinken, conseguiu escapar dos pogroms da Rússia, e emigrou para os Estados Unidos. Era um conceituado escritor em iídiche.
Samuel Pisar, padrasto de Tony Blinken, era sobrevivente do Holocausto e se tornou um renomado advogado, autor de livros e Assessor de Política Externa do Departamento do Estado e dos comitês do Senado e da Câmara. Tendo sobrevivido a dois campos de morte, Auschwitz e Dachau, contou certa vez ao The Washington Post que acreditava que as histórias que contara a seu enteado tinham causado grande impacto no jovem, influenciando sua visão de mundo. Pisar foi co-fundador do Yad Vashem-França.
Seguem-se alguns comentários de Tony Blinken ao aceitar sua nomeação para titular da Secretaria de Estado:
“Meu falecido padrasto, Samuel Pisar, era uma das 900 crianças de uma escola em Bialystok, Polônia, mas o único a sobreviver ao
A Vice-presidente Kamala Harris prestando juramento, ladeada por seu marido
Tony Blinken
Holocausto, após quatro anos em campos de concentração. Ao fim da guerra, conseguiu fugir da Marcha da Morte e se refugiou nas florestas da Bavária. Em seu esconderijo, ouviu o som de um tanque que se aproximava. Ao invés da Cruz de Ferro, ele avistou uma Estrela Branca de cinco pontas. Correu em direção ao tanque. A abertura superior se abriu e um soldado afro-americano olhou para ele. Ele caiu de joelhos e disse as únicas três palavras que sabia em inglês, ensinadas por sua mãe: “God Bless America”, D’us Abençoe a América. O soldado o fez subir ao tanque, à América, à liberdade. É isso que somos”. No início da década de 2000, Tony Blinken foi nomeado Diretor de Pessoal da Comissão de Relações Exteriores do Senado, presidida pelo então Senador Joe Biden. Em 2008, ajudou o Senador na campanha presidencial. Quando Biden foi escolhido para vice de Obama, Blinken serviu como Assessor de Segurança Nacional de Biden, até posteriormente quando Obama o promoveu a ViceAssessor Nacional de Segurança e Vice-Secretário de Estado, de 2015-2017.
Blinken tem credenciais muito sólidas a favor de Israel. Em várias oportunidades, durante a campanha presidencial, ele declarou perante grupos judeus que Biden não exporia as divergências entre os Estados Unidos e Israel em público – de maneira diferente da posição assumida pelo governo Obama. E disse que, no entender do novo presidente, amigos mantêm suas diferenças entre quatro paredes. Blinken tentou levar Obama a adotar semelhante atitude com Israel, mas nem sempre teve sucesso.
O novo Secretário de Estado também afirmou que Biden jamais condicionaria a ajuda militar a Israel a uma determinada política
israelense. Em outras palavras – o novo presidente dos EUA não condicionará a ajuda a Israel a qualquer decisão política, como a anexação ou outras decisões do governo de Israel com a qual o governo americano possa não concordar. Blinken reiterou o compromisso de Joe Biden de retomar o auxílio aos palestinos desde que se cumpram as restrições do Congresso – que o condicionam à cessação, por parte da Autoridade Palestina, de pagamentos de recompensa a família de palestinos que mataram ou atentaram contra a vida de americanos e israelenses.
Blinken afirmou que manterá a Embaixada americana em Jerusalém, dará apoio incondicional a Israel nas Nações Unidas e rejeitará o movimento BDS. E pretende dar continuidade aos Acordos de Abrahão intermediados pelo governo Trump entre Israel, os Estados Unidos, os Emirados Árabes Unidos e Bahrein. E manifestou sua esperança de que à medida que mais países árabes normalizem suas relações com Israel – a exemplo dos recentes Marrocos e Sudão – Jerusalém se sinta mais seguro para firmar um acordo de paz com os palestinos.
Os políticos israelenses conhecem Blinken, com quem mantêm uma boa relação de trabalho. Assim sendo, a indicação de seu nome foi muito bem recebida por israelenses de todos os setores. Michael Oren, que foi Embaixador nos EUA, tuitou que não podia imaginar uma escolha melhor e mais adequada do que Blinken para o cargo.
O Departamento de Estado tem um orçamento de cerca de 52 bilhões de dólares e conta com 69.000 funcionários. Ele conta que cresceu com uma forte identidade judaica. Hoje, casado e com três filhas, diz com orgulho que lhes transmitiu essa sólida herança.
No governo do ex-Presidente Clinton, Mayorkas ocupou o cargo de Secretário de Justiça para o distrito central da Califórnia e durante o mandato de Obama foi Vice-Secretário de Estado de Segurança Interna. Nessa função trabalhou muito próximo a grupos judaicos, discursando com frequência sobre as ameaças enfrentadas pelos judeus americanos e a ascensão do antissemitismo e dos crimes de ódio.
O novo casal presidencial americano
Nascido em Cuba, em 24 de novembro de 1959, Alejandro Mayorkas é um imigrante judeucubano, filho de pai judeu sefardita, de Cuba, e mãe judia da Romênia, que, sobrevivendo ao Holocausto, conseguiu escapar para Cuba. Em 1960 a família conseguiu fugir do regime de Fidel Castro para os Estados Unidos. Alejandro tinha um ano.
Alejandro Mayorkas Durante o mandato de três anos na Secretaria de Segurança Interna, Mayorkas alocou grande parte de doações não-governamentais destinadas à área de segurança para combater manifestações antissemitas online, e para implementar medidas de contraterrorismo para proteger sinagogas e outras instituições judaicas. Ele luta feroz e abertamente contra o antissemitismo.
Mayorkas foi homenageado pelo Conselho das Federações Judaicas “por seu trabalho no combate ao antissemitismo como parte de suas obrigações com a pasta de Segurança Interna”.
Sua primeira visita a Israel ocorreu em 1977 e desde então tem voltado inúmeras vezes, muitas delas a trabalho. Tem vários parentes em Israel, adora a comida israelense e sempre manifesta seu respeito pelo excelente trabalho feito pelo país na questão da segurança cibernética.
O novo Secretário de Segurança Interna de Biden é conhecido por seu empenho na questão de cibersegurança. Em 2016, Mayorkas liderou um contrato para
automatizar o compartilhamento de dados cibernéticos entre Israel e os Estados Unidos: “Compartilhamos informações de modo a fortalecer ambos os nossos países”.
O novo Secretário não tem medido esforços para fortalecer e melhorar as relações entre os Estados Unidos e Israel e seu empenho ajudou a reforçar a sólida parceria que existe entre ambos.
Apesar de não ser o primeiro judeu a chefiar o Departamento de Segurança Interna, ele é o primeiro imigrante, e de origem latina, nesse importante cargo. E chefiará uma Secretaria que dispõe de um orçamento de cerca de 50 bilhões de dólares e conta com 240.000 funcionários.
Janet Yellen, Secretária do Tesouro
Janet Yellen nasceu em 13 de agosto de 1946, no Brooklyn, filha do médico Julius e da professora Anna Yellen. Ambos judeus poloneses, “não eram muito chegados à religião”.
Como mulher e economista, ela quebrou todas as barreiras em sua profissão, sendo uma das pessoas mais respeitadas em sua área. Em 1963, Janet se formou em primeiro lugar no Ensino Médio e foi aceita pela Brown University, onde cursou Economia. Em 1971, tirou o Doutorado em Economia, por Yale, sendo a única mulher da turma. De 1971-1976 foi Professora Assistente em Harvard, à época a única mulher a lecionar Economia. A faculdade, no entanto, não lhe abriu o caminho para ser professora titular. Em 1976, começa a trabalhar como pesquisadora em Economia no Federal Reserve, o Banco Central americano, onde ela conheceu seu futuro marido, George Arthur Akerlof, também economista. Em 2005, ela foi a primeira gestora no âmbito federal a descrever como uma “bolha” os crescentes preços das moradias, com sérias possibilidades de se tornar um grave problema para a Economia. E alertou sobre o crescente perigo dos créditos hipotecários de alto risco, conhecidos como sub-prime, que, como se viu, contribuíram para o colapso financeiro de 2008.
Em 2010, o Presidente Barack Obama a nomeou para a vicepresidência do Federal Reserve. Três anos depois ele a indicava para presidir o importante banco central americano, no lugar do economista Ben Bernanke, também judeu.
Janet Yellen
Casaram-se e têm um filho, que seguiu a profissão dos pais. Seu marido, George, foi o co-ganhador do Nobel de Economia, em 2001. Durante vários anos Janet foi professora titular na Universidade da Califórnia em Berkeley e, de 1997 a 1999, presidiu o Conselho de Consultores Econômicos, no governo de Bill Clinton. Em 2014, Janet Yellen teve importante papel na recuperação do país da grande recessão que o assolava, com repercussão nas economias mundo afora.
Ela foi a primeira mulher a presidir o todo-poderoso Fed, e nessa função contribuiu para o controle da inflação e do desemprego.
Presidente Joe Biden no Salão Oval
Em seu mandato também cresceram a empregabilidade e os salários, enquanto conseguia manter baixas as taxas de juros. Discreta e muito eficiente, esteve durante um mandato à frente do Federal Reserve, até ser substituída pelo Presidente Trump, em 2018.
Seu trabalho foi elogiado por democratas e republicanos. Muito respeitada na Wall Street, ela ficou conhecida por não ter medo de enfrentar os grandes banqueiros.
Seus colegas a descrevem como firme, mas muito gentil, brilhante e sempre a pessoa mais preparada em uma reunião. Conhecida, também, por sua habilidade de conseguir o consenso e ser ótima mediadora, ela é discreta e simples. Quando trabalhava no Fed ela era vista frequentemente almoçando no refeitório do Fed – e não nos caros restaurantes preferidos pelo mercado.
Durante meados do ano de 2020, Janet Yellen foi uma voz forte a pressionar o Congresso para aprovar mais auxílio financeiro para evitar os danos duradouros da pandemia da Covid-19. Ela também é forte defensora da regulamentação a favor do clima e endossa a criação de um imposto sobre as emissões para combater as mudanças climáticas.
Rompendo novamente as barreiras, ela é a primeira mulher a ocupar o cargo de Secretária do Tesouro desde que a instituição foi criada, em 1789. E é a terceira pessoa judia, em seguida, a ocupá-lo, após Steven Mnuchin (no governo Trump) e Jack Lew (no segundo mandato de Obama).
Esta Pasta é responsável pela cobrança de impostos, emissão de dívida, impressão de papel moeda, supervisão dos bancos e aconselhamento do Presidente em questões de política econômica e financeira. E como Secretária do Tesouro, Janet Yellen enfrentará o gigantesco desafio de reerguer a economia americana num momento em que a mesma tenta se recuperar do baque do Coronavírus.
A pandemia tirou a vida de centenas de milhares de americanos, levando ao fechamento de outros tantos milhares de empresas, grandes e pequenas. A nova Secretária terá que enfrentar o enorme desemprego, o aumento nos números da pobreza e os incontáveis cidadãos que enfrentam despejos e outros inúmeros e graves problemas de subsistência.
Janet Yellen é a primeira pessoa a acumular em seu currículo a Presidência do Tesouro, do Federal Reserve e do Conselho de Consultores Econômicos da Casa Branca – um feito nada desprezível. Como Secretária do Tesouro, ela supervisionará 87 mil funcionários e um orçamento de cerca de 20 bilhões de dólares.
Merrick Garland, Procurador Geral
Merrick Brian Garland nasceu em Chicago, em 13 de novembro de 1952, e cresceu em um subúrbio com uma grande população judaica. Advogado e jurista, ele conta com grande orgulho a história de sua família, imigrantes judeus aos Estados Unidos. Seus avós vieram da Rússia no início dos anos 1900, fugindo do antissemitismo e almejando uma vida e um futuro melhor na América. Seu pai, Cyril, provém de uma família de imigrantes judeus da Letônia e tinha uma pequena empresa de publicidade que funcionava em sua casa.
A mãe, Shirley, fazia trabalho voluntário, tendo trabalhado como diretora do Voluntariado do Conselho de Idosos Judeus, em Chicago. Ao ser nomeado para o Supremo pelo Presidente Obama, Garland declarou que aprendera com seu pai “a importância do trabalho duro e dos acordos justos” e, com a mãe, o valor do trabalho voluntário.
Sua esposa, Lynn Rosenman, vem de uma respeitada família judia. Seu avô, Samuel Rosenman, de Nova York, foi juiz da Corte Suprema estadual e conselheiro especial de dois presidentes, Franklin Roosevelt and Harry Truman. O casal, que se casou em 1987 e tem duas filhas, é conhecido por seus Seders de Pessach, que contam com ilustres convidados.
O novo Procurador Geral, cargo que equivale a nosso Ministro da Justiça, é descrito com tendo fortes valores éticos judaicos. E quem trabalhou com ele o descreve como muito metódico, detalhista, determinado e muito inteligente. Antes de se tornar juiz, Merrick Garland ocupou vários cargos importantes no Ministério da Justiça. Também trabalhou na Promotoria federal, tendo contribuído para a condenação de Timothy McVeigh pela explosão de Oklahoma City, que matou 168 pessoas.
Em 1997 foi indicado pelo Presidente Bill Clinton para Juiz do Tribunal de Recursos dos EUA pelo Distrito de Colúmbia, tornando-se presidente desse tribunal em 2013, onde serviu até se tornar Procurador Geral.
Em várias ocasiões esteve na lista de finalistas para um assento no Supremo. O Presidente Obama chegou a indicá-lo para esse tribunal máximo em 2016, mas os republicanos do Senado se recusaram a votar nele ou sequer sabatiná-lo. Mas hoje ele é o Procurador Geral do governo do Presidente Joe Biden.
O Procurador Geral é o titular da pasta da Justiça dos Estados Unidos, membro do Gabinete e principal advogado do governo federal. Representa os Estados Unidos em questões legais e aconselha e emite opinião diretamente ao Presidente e aos chefes dos demais ministérios, quando consultado.
Durante a campanha eleitoral, Biden prometeu adotar medidas para pôr um fim às disparidades raciais nos julgamentos, acabar com o uso da pena de morte federal e restaurar o papel do Ministério da Justiça de investigar e responsabilizar os departamentos de polícia pela “máconduta sistêmica”.
Apesar de muitas dessas iniciativas necessitarem de aprovação do Congresso, na qualidade de Procurador Geral Garland terá muito poder e poderá tratar desses assuntos e influenciar as políticas a serem adotadas.
O Presidente Biden chamou Merrick Garland de “um dos mais respeitados juristas da atualidade”, dizendo que o colocou à frente desse ministério para “restaurar a fé dos americanos no Estado de Direito e tentar erguer um sistema de justiça mais equilibrado”.
Com esse Gabinete tão qualificado, fazemos votos de que o novo presidente dos Estados Unidos da América tenha sucesso em contribuir para a tranquilidade do povo americano e a paz entre as nações e os povos.
Merrick Garland
Primeiro-Ministro Bibi Netanyahu (à dir.) conduz coletiva de imprensa durante visita do então Vice-Presidente Joe Biden. Jerusalém, 9 mar. 2016
Rabi Adin Steinsaltz ZT”L
POR TEV DJMAL
Rabi Adin Even-Israel Steinsaltz zt”l (1937-2020) foi um professor, filósofo, crítico social e autor prolífico. Ele foi a única pessoa na História a concluir uma tradução completa e um comentário sobre todo o Talmud Bavli e o Tanach.
ORabino Adin Even-Israel Steinsaltz nasceu em 11 de julho de 1937 em Jerusalém. Seus pais, Avraham Moshe Steinsaltz e Rivkah Leah Krokovitz, eram imigrantes do Leste europeu que se identificavam como comunistas. Avraham Steinsaltz, bisneto do primeiro Rebe de Slonim, era um fiel comunista que lutou na Espanha, ao lado das Brigadas Internacionais, na Guerra Civil Espanhola contra as forças fascistas do General Francisco Franco. Era também membro do Le’hi, acrônimo em hebraico para Lohamei Herut Israel, Lutadores pela Liberdade de Israel (o Grupo Stern) – organização paramilitar sionista, atuante de 1940-1948, que lutava para expulsar as forças de ocupação inglesas da Terra de Israel.
Os intelectuais mais venerados na família Steinsaltz não eram rabinos, mas Marx, Lenin e Freud. Mas, apesar de sua ideologia, Avraham Steinsaltz, nacionalista judeu imensamente orgulhoso de seu judaísmo, contratou um professor de Talmud para seu filho Adin, quando este tinha apenas 10 anos de idade. E disse ao filho: “Não me importo se você for um Apikores (um herege), mas filho meu não será um Am Ha’aretz (um ignorante em questões da Torá)”. É assombroso que um marxista fervoroso como Avraham Steinsaltz pudesse considerar os estudos de Torá de importância capital, mas aquilo deixou uma marca profunda em seu filho. De fato, o Rabino Adin Steinsaltz creditava a seu pai o fato de lhe ter indicado o caminho para a obra de sua vida. Foi aquela exposição ao estudo da Torá, juntamente com o que o Rabino Steinsaltz descreveu como seu ceticismo inato, o que o levou à religião. “Por natureza, sou um cético”, declarou em uma entrevista ao The New York Times, há uma década, “e as pessoas muito céticas começam a questionar o ateísmo”. Em outra ocasião, ele disse ao mesmo jornal americano: “Cheguei ao ponto em que o mundo não conseguia conter minha busca pela verdade”.
Conhecido ao longo de sua vida por sua incontida curiosidade intelectual, o Rabino Adin Steinsaltz estudou Matemática, Física e Química na Universidade Hebraica de Jerusalém, enquanto completava seus estudos rabínicos na Yeshivat Tomchei Temimim – do movimento Chabad-Lubavitch – na cidade israelense de Lod. Após completar os estudos, passou a fundar várias instituições educacionais. Aos 24 anos, tornou-se o mais jovem diretor de escola em Israel.
Rabi Adin Even-Israel Steinsaltz: mestre, cientista, escritor, místico e crítico social
Em 1965, Rabi Adin Steinsaltz fundou o Instituto Israelense de Publicações Talmúdicas, dando início ao monumental trabalho de sua vida: um projeto iniciado quando ele tinha apenas 27 anos e que trouxe à tona seu conhecimento enciclopédico sobre um texto enciclopédico – o Talmud. Como, à época, ele era diretor de escolas, ele chamava a tradução e elucidação do Talmud de “meu hobby”, mas esse “hobby” se tornaria o coroamento de sua realização intelectual. Ele passou 45 anos escrevendo uma tradução para o hebraico moderno e comentários sobre todo o Talmud Babilônico, o Talmud Bavli, que é escrito no hebraico do período Mishnaico e no aramaico Babilônico, sem pontuação e sem vogais. A tradução e comentários do Rabino Steinsaltz tornaram o Talmud acessível a milhões de pessoas. Esse projeto épico foi completado em do texto labiríntico e enigmático. Sua obra inclui biografias dos Sábios talmúdicos e explicações sobre expressões e conceitos do Talmud.
O Rabi Steinsaltz declarou que sua tradução e comentário dessa obra destinavam-se a atender até mesmo os iniciantes, que tivessem um mínimo de conhecimento. Esse projeto, que levou mais de quatro décadas para ser completado, foi um feito revolucionário – um divisor de águas na História Judaica que causou grande comoção. O ex- Rabino-chefe sefardita Shlomo Amar louvou sua capacidade de “expandir as fronteiras da Santidade” de modo a abarcar aqueles que não são versados nos estudos do Talmud.
Durante séculos, o estudo do Talmud era restrito às ieshivot. O grande feito do Rabi Steinsaltz foi estendê-lo para além de sua esfera
2010, após um longo trabalho de 16 horas diárias, no mínimo.
O trabalho do Rabi Steinsaltz foi bem além de traduzir, pontuar e inserir as vogais nas 2.711 páginas duplas do Talmud Bavli. Ele também forneceu seus próprios comentários, elucidando cada frase
relativamente seleta e, com uma tradução e comentários no hebraico moderno, permitir que os judeus que nunca haviam frequentado uma ieshivá pudessem estudá-lo e entendê-lo. Como muitos judeus que vivem na Diáspora não dominam o hebraico, a Edição Steinsaltz do Talmud foi totalmente traduzida ao inglês. Alguns volumes também foram traduzidos a outros idiomas, entre os quais francês, espanhol e russo. Em 1996 foi publicado impenetrável, de dois mil anos de idade. Em 2010, ao terminar o último dos 45 volumes de sua tradução e comentários do Talmud, o The New York Times publicou que três milhões de cópias já tinham sido vendidas, mundo afora.
“O Talmud é o pilar central da sabedoria judaica, muito importante para a total compreensão do significado do Judaísmo”, disse certa vez Rabi Steinsaltz à Jewish
A Yeshiva University atribui ao Rabino Steinsaltz o título de Doutor Honoris Causa
o primeiro volume em russo, constituindo a primeira edição russa do Talmud permitida na Rússia desde a Revolução Bolchevique de 1917. À época, a notícia mereceu destaque no The Washington Post.
Essa realização épica do Rabino Steinsaltz desvendou para milhões de pessoas um texto judaico fundamental, mas quase sempre
1Dialética é o conflito originado entre princípios teóricos ou fenômenos empíricos. Telegraphic Agency. “Mas é um livro que os judeus não conseguem entender. Trata-se de uma situação perigosa, como uma amnésia coletiva. Tentei abrir caminhos pelos quais eles pudessem penetrar no Talmud sem encontrar barreiras intransponíveis. Trata-se de algo que sempre será um desafio, mas tentei diminuir esses desafios ao máximo”.
Em 2012, o Rabino Steinsaltz disse ao The Times of Israel que “O Talmud é o livro da sanidade mental. E quando você o estuda, ele lhe dá uma certa medida de sanidade”. Afinal, ele explicava, essa obra consiste principalmente de insistentes discussões lógicas e racionais sobre questões legais, que visam a chegar à verdade factual. O que poderia ser mais são do que isso? A propósito, o Rabino Steinsaltz, que nasceu e viveu em Israel durante praticamente toda a sua vida, dizia o seguinte sobre o estudo da Torá nas escolas israelenses: “Foi um grande erro basear tanto a educação em Israel no Tanach (Torá, Profetas e Escritos). Pois o Tanach foi escrito por profetas. E quem o lê, de certa forma se torna, em sua mente, um pequeno profeta. E é assim que os israelenses falam um com o outro – eles não conversam; todos se autoconsideram donos de um conhecimento total e ilimitado. O estudo do Talmud mudaria a forma de pensar israelense, pois essa obra versa sobre e se conecta com a dialética1”.
Sua tradução e comentários do Talmud fizeram com que o Rabi Steinsaltz fosse comparado a Rashi – o Sábio do século 11, nascido na França, que escreveu o comentário clássico sobre o Tanach e quase todo o Talmud Babilônico. A revista Time saudou Rabi Steinsaltz como a oncein-a-millennium scholar: um erudito como ele vem a este mundo uma vez em cada mil anos. Já a revista Newsweek assim se manifestou: “A tradição judaica está repleta de histórias de rabinos excepcionais. Mas certamente nenhum dos que hoje estão vivos pode ser comparado em talento e influência a Adin Steinsaltz, cujos talentos extraordinários como estudioso, mestre, cientista, escritor, místico e crítico social atraíram discípulos de todas as facções da sociedade”.
Além de, como vimos, ter traduzido e comentado linha por linha do Talmud Babilônico inteiro, Rabi
Steinsaltz também escreveu um comentário sobre todo o Tanach (que também foi todo traduzido ao inglês), sobre a Mishná – o núcleo da Torá Oral, sobre o Mishnê Torá – o Código da Lei Judaica, de Maimônides, e também o Tanya – trabalho central sobre a Cabalá, de autoria do Rabi Shneur Zalman de Liadi, fundador e primeiro Rebe da dinastia ChabadLubavitch. Além de todas essas obras magistrais, o Rabino Steinsaltz escreveu 60 livros, entre os quais um volume considerado referência no Misticismo Judaico, The Thirteen Petalled Rose, um clássico que foi traduzido em oito idiomas, inclusive o português, com o título A Rosa de Treze Pétalas: Introdução à Cabala e a Fé Judaica (Editora Maayanot). Ele também escreveu centenas de artigos sobre uma variedade de assuntos judaicos.
Tendo fundado uma rede de ieshivot em Israel e na antiga União Soviética, o Rabino Steinsaltz foi muito atuante no trabalho com os judeus na Cortina de Ferro. Em 1989, fundou uma ieshivá em Moscou, que foi a primeira instituição judaica sancionada pelo governo russo em 60 anos.
Entre os inúmeros títulos honorários, prêmios e homenagens que recebeu, inclui-se o renomado Prêmio Israel, em 1988 – a mais alta honraria do país.
O Rabino Steinsaltz e o Lubavitcher Rebe
Sem sombra de dúvida, as épicas realizações do Rabino Adin Steinsaltz foram o produto de sua mente privilegiada, seus dotes intelectuais e espirituais e sua dedicação incansável. Ele era conhecido por seu amor a D’us, sua reverência à Torá, sua proeza intelectual, sua voraz sede de conhecimento e significado, sua sabedoria profunda, sua determinação em terminar seus projetos e ignorar seus críticos, e sobretudo, sua humildade e humanidade que fizeram com que fosse apreciado e amado por tantas pessoas. No entanto, há algo de muito intrigante na trajetória de sua vida: como o filho de comunistas ardorosos – que admitia ter estudado as obras de Marx e Lenin antes mesmo de ler a Torá – podia ter se tornado o erudito sobre o Talmud mais respeitado e influente de sua geração? Quem teria capturado o coração e a mente desse jovem prodígio e ajudado a acender sua alma?
Muito crédito merece seu pai, Avraham Steinsaltz – que, apesar de comunista ferrenho, insistia em que nenhum filho seu fosse ignorante em Torá. O Rabino Steinsaltz
O Rabino Steinsaltz e seu mestre, o Lubavitcher Rebe
“Meu Rebe” – biografia do Lubavitcher Rebe escrita pelo Rabino Steinsaltz reconhecia a importância de uma série de figuras rabínicas na sua juventude – começando certamente pelo professor de Talmud contratado por seu pai para lhe ensinar, aos 10 anos. Mas a influência suprema em sua vida e que ofuscou todas as demais foi a do Lubavitcher Rebe, e a tal ponto que na pedra tumular do Rabino Steinsaltz, o epíteto que mais se destaca foi que ele era “devotado, de corpo e alma, ao Lubavitcher Rebe”.
A trajetória a partir de uma casa não religiosa e marxista até se
tornar um dos mais importantes estudiosos e comentaristas da Torá, de todos os tempos – que abriu para milhões de pessoas o portão para o estudo do Talmud e de outros textos judaicos fundamentais – foi em grande parte impulsionada pelo Rebe e seus emissários – rabinos do movimento Chabad-Lubavitch – que, nas palavras do próprio Rabino Steinsaltz, “esbanjaram amor, tempo e paciência em um certo rapaz”.
O Rebe de Lubavitch foi o mestre, guia e a fonte de inspiração de Rabi Steinsaltz – e este, por sua vez, foi seguidor dedicado do Rebe, de quem recebeu uma atenção e uma proximidade excepcionais, e que lhe retribuiu por meio de suas conquistas épicas. De inúmeras formas, pode-se dizer que Rabi Steinsaltz se tornou um desdobramento do Rebe. Ele teve um papel central na visão do Rebe e em seu objetivo de atingir todos os judeus e os trazer para mais perto do Judaísmo.
O significado da obra magistral do Rabino Steinsaltz
O Rabi Adin Even-Israel Steinsaltz ostenta a distinção especial de ter sido a única pessoa na História a escrever um comentário tanto sobre todo o Tanach como sobre todo o Talmud Bavli. Ele foi um dos mais – senão o mais – prolífico comentarista da Torá de todos os tempos. Os inúmeros e belos artigos publicados após seu falecimento nos veículos de comunicação mais destacados, como o The New York Times e o The Washington Post, louvam suas obras e conquistas, em particular o fato de ele ter tornado o estudo do Talmud acessível a milhões de pessoas. Mas há algo fascinante e fundamental sobre a vida do todos dispõem de 24 horas por dia, mas isso talvez não seja verdade. Algumas pessoas, como o Rambam (Maimônides), pareciam ter mais de 24 horas em seu dia”. E, ao que tudo indica, o Rabi Steinsaltz era uma dessas pessoas, pois não é possível explicar como ele conseguiu produzir tanto quanto ele o fez em vida. E nisso reside uma das várias semelhanças entre o Rabi Steinsaltz e Rashi – o maior de todos os comentaristas da Torá. Um dos aspectos sobrenaturais da vida de Rashi é que é impossível que um ser humano tenha escrito tanto quanto ele conseguiu, ao longo de sua vida. No entanto, não há dúvidas de que foi ele mesmo quem escreveu tudo o que leva seu nome. O mesmo pode ser dito acerca do Rabino Adin Steinsaltz.
Ainda que ele não tivesse feito nada mais além de escrever, na vida, teria sido impossível produzir tamanha quantidade de textos como ele o fez, especialmente se considerarmos a profundidade e complexidade de todas as suas obras. O mais espantoso é que ele fez muito mais do que escrever. Era pai, era esposo;
O Rabino Steinsaltz em frente à estátua de Lenin, na cidade de Yalta, Crimeia
Rabino Steinsaltz que os autores desses emocionantes obituários não cogitaram: como foi possível que ele tivesse escrito tamanha quantidade de trabalhos? Ainda que o Rabino Steinsaltz trabalhasse 16 horas ou mais por dia, e que tivesse alunos seus o auxiliando, há algo muito surpreendente – talvez sobrenatural, mesmo – no fato de ele ter conseguido escrever tanto.
Certa vez, o Rabi Steinsaltz disse: “A maioria das pessoas pensam que
FOTO: Tamir Platzmann
era rabino, professor e conselheiro. Era um homem profundamente religioso que se imergia em orações e amava recitar os Salmos. Tendo um conhecimento enciclopédico sobre a Torá – e sendo um de seus mais prolíficos disseminadores – ele estudou a fundo todos os principais trabalhos sobre a Torá. Um de seus filhos, o Rabino Meni Even-Israel Steinsaltz, revelou recentemente que seu pai estudava, todo ano, tanto o Talmud Bavli como o Talmud Yerushalmi na sua totalidade. Mesmo para um Mestre do Talmud, como ele era, isso constitui uma desmedida quantidade de estudo da Torá, bem mais do que conseguem os grandes eruditos que estudam Torá o dia inteiro. Ainda mais marcante é o fato de que ele não estudava apenas os textos religiosos judaicos. Rabi Steinsaltz era uma verdadeira enciclopédia – cientista e matemático com profundo conhecimento sobre uma enormidade de áreas. Ele lia e apreciava a boa literatura laica e até se permitia desfrutar das histórias de detetives e de ficção cientifica. Além de tudo o que estudou e escreveu, o Rabino Steinsaltz trabalhou com todas as forças para disseminar o Judaísmo. Fundou e dirigiu escolas, ieshivot e centros educacionais, dando aulas, palestras e entrevistas em Israel e na Diáspora. Não há explicação racional para se entender como ele encontrou tempo para produzir suas obras épicas, especialmente se considerarmos o quanto ele estudava e trabalhava. Mas, ainda assim, da mesma forma como quando nos referimos a Rashi, não há dúvida de que o Rabino Steinsaltz escreveu tudo o que foi publicado em seu nome. Talvez ele não o admitisse, mas havia um toque de sobrenatural na história de sua vida. Ao contrário do Lubavitcher Rebe, que foi um quase-profeta e fazedor de milagres, não foram atribuídos poderes sobrenaturais ao Rabi Steinsaltz. Ele é famoso por suas qualidades de Sábio e gênio – um intelectual extraordinário, erudito, cientista, professor, crítico social, escritor e comentarista da Torá. Contudo, quem examina sua vida e tudo o que ele produziu, invariavelmente se pergunta se ele, a exemplo de nossos mestres Rashi, Rambam e o Rebe, também transcendia os limites naturais de nosso mundo.
Mas a singularidade da obra do Rabi Steinsaltz não reside apenas na quantidade de trabalhos dele, mas em seus efeitos espirituais. Para se compreender a magnitude de seu legado, é necessário entender que o estudo da Torá é incomparável ao de qualquer outro campo de sabedoria e conhecimento. Como ensina a Cabalá, a Torá é a interface que permite que nós, seres humanos finitos, possamos interagir com D’us Infinito. É por meio do estudo da Torá que o homem e D’us se comunicam. Portanto, ao traduzir e escrever comentários sobre todo o Talmud, o Rabino Steinsaltz foi muito além de desvendar o estudo desse trabalho enciclopédico, enigmático e complexo, fundamental para que se entenda realmente o Judaísmo. Sendo assim, Rabi Steinsaltz também construiu pontes sobrenaturais que levam a D’us. Ao democratizar o estudo do Talmud, ele abriu novos canais de comunicação entre o ser humano e o Santo, Abençoado o Seu Nome.
O Rabino Steinsaltz carregando um Sefer Torá
O Rabino Steinsaltz e seu filho, Rabino Meni Even-Israel, com um volume recém-impresso da edição em inglês do Talmud Steinsaltz
Seu filho, o Rabino Meni EvenIsrael Steinsaltz, contou que seu pai dizia que “a Torá é o registro de D’us falando com o ser humano. No entanto, o Talmud registra o ser humano falando com D’us”. E seu pai disse certa vez: “Essa obra é essencial para nossa existência”.
Além de ter sido o estudioso do Talmud mais influente de nossa geração, o Rabino Adin Steinsaltz também foi um místico e um mestre da Cabalá. Sendo assim, não surpreende o fato de ele ter decidido traduzir e escrever comentários sobre os textos sagrados fundamentais do Judaísmo: o Tanach, a Mishná, o Talmud Bavli e obras Cabalísticas como o Tanya. Ele dedicou sua vida a tornar acessíveis esses textos magistrais ao máximo possível de judeus, pois, como ensina a Cabalá, o estudo dessas obras é o caminho para os Quatro Mundos que constituem a Existência: Assiyá (o Mundo da Ação), Yetzirá (o Mundo da Formação), Beri’á (o Mundo da Criação) e Atzilut (o Mundo da Proximidade Divina). O estudo do Tanach é associado ao mundo de Assiyá – nosso mundo físico. O estudo da Mishná é a escada para Yetzirá – o mundo dos anjos. O estudo do Talmud (Guemará) é a ponte para Beri’á, que é o mundo dos anjos mais elevados. Finalmente, o estudo dos trabalhos Cabalísticos, como o Tanya, forja uma conexão com o mais elevado dos Quatro Mundos – Atzilut, onde a Luz Divina irradia e se une ao Santo, Bendito é Ele. As traduções e comentários do Rabi Steinsaltz
Página do Talmud: texto escrito no hebraico do período Mishnaico e no aramaico Babilônico, sem pontuação e sem vogais sobre o Tanach, Mishná, Talmud Bavli e Tanya possibilitam a praticamente qualquer um de nós, judeus, alcançar os Quatro Mundos da Existência.
Mas, apesar dessas contribuições singulares ao Povo Judeu e ao universo do estudo da Torá, Rabi Steinsaltz – como muitos dos gigantes em Torá do passado, como o Rambam e o Ramchal – teve também sua parcela de críticos e oponentes. Eles o criticavam por ter facilitado o estudo do Talmud. “Ler o Talmud Steinsaltz em inglês é como tentar entender um quebracabeças depois de o mesmo ter sido desvendado”, escreveu um de seus críticos no The Nation, revista prestigiosa norte-americana. Mas, algo que aparentemente esse crítico e outros do trabalho do Rabi Steinsaltz não entenderam é que o Talmud não é um tipo de quebra-cabeças complicado nem um desafio para o intelecto. D’us não deu Sua Torá ao Povo de Israel para que os judeus pudessem usá-la para aguçar sua mente e sair vencendo uma infinidade de Prêmios Nobel. Na verdade, um dos pontos mais mal compreendidos sobre o estudo da Torá é que seu propósito não é a realização intelectual. O que verdadeiramente importa é a pureza do relacionamento com o texto e não o grau de sua compreensão intelectual. Utilizá-lo para aprimorar ou mesmo provar suas capacidades intelectuais é um uso indevido do Talmud e talvez até uma blasfêmia. O Talmud é um canal para a Luz Divina – um trabalho de santidade que constitui um meio de comunicação entre o homem e D’us – e é apenas com esse espírito que deve ser estudado.
Foi justamente a ciência de que o estudo da Torá forja a conexão mais íntima possível entre o homem e D’us o que levou Rabi Steinsaltz a realizar
1. 2. 3.
1. Com o primeiro-ministro Ariel Sharon em 2002 2. O Rabi Steinsaltz é homenageado pelo Presidente Shimon Peres – 9 fev. 2012 3. Dois gigantes de nossa geração: Rabi Steinsaltz ZT”L e Rabi Lord Jonathan Sacks ZT”L
algo que não tinha sido feito em quase um milênio. Há praticamente mil anos, Rashi escreveu o primeiro comentário abrangente sobre o Talmud Bavli. Aclamado por sua capacidade de apresentar o significado básico do texto de forma concisa e lúcida, Rashi atraiu tanto eruditos quanto iniciantes e seus trabalhos permanecem sendo centrais ao estudo do Talmud. Seria extremamente difícil entender o Talmud não fossem os esclarecimentos de Rashi.
Mas, apesar de seus comentários fundamentais e abrangentes, o Talmud continuou sendo um livro fechado para a maioria dos judeus, que não conseguiam ler e entender sua linguagem – em hebraico do período Mishnaico e aramaico do período Babilônico, sem vogais e sem pontuações. Foi o Rabino Steinsaltz quem deu continuidade ao trabalho de Rashi, democratizando ainda mais amplamente o Talmud – ele o tornou acessível mesmo àqueles que não o podem estudar em seu idioma original.
Há ainda outro paralelo marcante entre Rabi Steinsaltz e Rashi. O Rashbam, um dos netos de Rashi, revelou que seu avô lhe havia dito que se ele tivesse que reescrever seu comentário sobre o Chumash (os Cinco Livros da Torá), ele o teria feito de forma mais simples, mais literal. Sem dúvida alguma, Rashi é o pai de todos os comentaristas da Torá e seu trabalho sobre o Chumash é a obra clássica, escrita por ele com inspiração e assistência Divinas: cada uma de suas palavras transborda de santidade e sabedoria. Mas, por outro lado, de maneira oposta a seu comentário sobre o Talmud, seu comentário sobre o Chumash é complexo, apesar de que ele tivesse afirmado que tinha sido escrito para que uma criança de cinco anos pudesse entendê-lo. Na verdade, mesmo aquelas partes que parecem ser simples são tão profundas que há mais de 300 comentários que analisam sua escolha de linguagem e suas citações, de autoria de alguns dos maiores nomes na literatura rabínica, inclusive o Maharal de Praga. Por outro lado, o comentário do Rabino Steinsaltz sobre o Chumash é uma explanação clara e objetiva do texto da Torá, adequada para ser ensinada a uma criança de cinco anos. Talvez seja semelhante ao que Rashi teria feito se ele tivesse a oportunidade de reescrever um comentário mais literal sobre o Chumash. Rabi Steinsaltz tem sido aclamado como “o Rashi desta geração”. Mas esse título é uma meia-verdade, um eufemismo, pois ninguém nas gerações passadas fez o que Rashi ou Rabi Steinsaltz fizeram. Ninguém, na História Judaica, tornou o estudo da Torá e do Talmud mais acessível aos judeus do que esses dois Sábios. De fato, há algo estranhamente semelhante na vida de Rashi e do Rabi Steinsaltz. Ao que parece, o Rabino Adin Steinsaltz veio a este mundo para terminar o que Rashi não pôde concluir em vida.
O Legado do Rabi Adin Steinsaltz
Na sexta-feira, 17 do mês de Menachem Av de 5780, 7 de agosto de 2020, o Mestre do Universo determinou que o Rabi Adin Steinsaltz completara sua missão neste mundo. E o Rabi Steinsaltz ascendeu ao Alto aos 83 anos de idade. Muito justo que sua partida deste mundo tenha sido de Jerusalém – a cidade onde ele veio ao mundo – a mais sagrada das cidades, capital eterna e espiritual do Povo Judeu. O Rabi Steinsaltz, que faleceu em virtude de uma pneumonia aguda, havia lutado heroicamente contra várias enfermidades ao
longo dos anos. Em 2016, ele, um verdadeiro amante das palavras, que pontuou os dois milhões e meio de palavras em hebraico e aramaico do Talmud Babilônico, e que escreveu mais palavras sobre a Torá do que é humanamente possível, perdeu sua capacidade de falar após sofrer um derrame. Apesar de não conseguir falar, o Rabino Steinsaltz continuou a trabalhar e editar seu trabalho anterior, assinalando a seu filho, silenciosamente, o que era para ser editado.
É impressionante – e certamente não uma coincidência – o fato de que o Rabi Adin Steinsaltz tenha subido aos Céus na semana em que se leu a porção Ekev da Torá, sobre a qual Rashi escreve: “... o falecimento dos Justos é difícil perante o Eterno, Abençoado o Seu Nome, assim como o foi o dia em que as Tábuas foram quebradas” (Rashi ao comentar Deuteronômio 10:6-7). Tal analogia é particularmente aplicável ao Rabi Steinsaltz, que foi a personificação da Torá e um de seus maiores disseminadores em toda a nossa história. O dia em que ele ascendeu ao lugar mais alto das Alturas foi o dia em que nosso mundo perdeu um luminar que brilhava mais intensamente do que o Sol. Podemos aplicar a ele as palavras que o Talmud usa para falar de Rabi Akiva – o maior Mestre em Torá de todos os tempos: seu nome reverbera de um canto a outro do Universo.
A obra magistral e o legado do Rabi Steinsaltz transcendem o tempo e o espaço – são imensuráveis e eternos. Sozinho ele disseminou a Palavra de D’us a milhões de pessoas, possibilitando que eles entrassem em comunhão com o Eterno ao imergirem no estudo de Sua Torá. E graças a ele, o Talmud deixou de ser um livro fechado. O Talmud Bavli é atualmente estudado não apenas nas sinagogas e ieshivot, mas nos metrôs de Nova York e nos cafés de Tel Aviv. Hoje o Talmud é estudado não apenas pelos rabinos e alunos das ieshivot, mas até mesmo por judeus iniciantes no estudo do Judaísmo. Graças ao Rabi Steinsaltz, a luz da Torá fica cada dia mais forte, brilhando intensamente em inúmeros lares judeus mundo afora. Como seu Mestre, o Lubavitcher Rebe, o Rabino Adin Even-Israel Steinsaltz conseguiu realizar uma tarefa quase impossível – reverter a perda de conhecimento sobre a Torá decorrente do Holocausto, do Socialismo soviético e da enorme assimilação nos Estados Unidos.
Nossa geração teve o privilégio de ter em seu meio o Rabino Steinsaltz. Um comentarista da Torá prolífico como ele vem a este mundo uma vez em cada mil anos. Ele era um verdadeiro homem de D’us e a personificação da santidade, da bondade e da sabedoria. Aqueles de nós que fomos privilegiados de conhecê-lo sabemos quão grande era a bênção de apenas ficar em sua presença. Conhecê-lo pessoalmente foi uma experiência singular e inesquecível.
Gostaríamos de informar a nossos leitores que a maioria dos artigos religiosos que escrevemos na Morashá tomaram por base os escritos e ensinamentos do Rabino Steinsaltz. É raro não ver seu nome mencionado na bibliografia de qualquer dos artigos religiosos publicados nesta Revista ao longo dos anos. Ele e o Mestre que compartilhamos com ele – o Lubavitcher Rebe – são nossas principais fontes de sabedoria, conhecimento e inspiração.
Agradecemos ao Todo Poderoso por nos ter dado o Rabi Adin EvenIsrael Steinsaltz, filho de Avraham Moshe e Rivka Leah. Agradecemos ao Rabi Steinsaltz por ter dedicado sua vida ao Povo Judeu – por nos ter dado, generosamente, o maior de todos os presentes: a dádiva da Torá – fonte de todas as bênçãos e bondade, a ponte até D’us, Abençoado o Seu Nome, e o portão para a Eternidade.
Zecher Tzadik Livrachá – que a memória do Tzadik seja uma bênção.
Médicos nazistas, indignos de homenagens
POR Morton Scheinberg
Não obstante os persistentes esforços da Sociedade de Medicina Interna Alemã (SAMI ) PARA evitar que as atrocidades médicas realizadas no Terceiro Reich se tornassem públicas, as aberrações médicas ocorridas nesse período acabaram por vir à tona, levando à reconsideração de títulos honoríficos CONCEDIDOS A MÉDICOS que praticaram atrocidades durante o nazismo.
O
legado da medicina nazista e o papel da Sociedade Alemã tem sido tema de discussões no âmbito médico nas últimas décadas.
O desenvolvimento da prática da Clínica Médica e sua história na transição do século 18 para o século 19 passam, inexoravelmente, pela Medicina Interna, termo que hoje se refere à Prática Clínica, porém com limites imprecisos em relação às demais práticas da Clínica Médica. A Medicina Interna engloba especialidades como Ortopedia, Cirurgia, Ginecologia e Pediatria. O termo foi inicialmente usado em 1882, em um encontro de Clínica Médica intitulado “Deutsche Gesellschaft für Innere Medizin”. Não demoraria muito para o termo Medicina Interna cruzar o Oceano Atlântico e chegar aos Estados Unidos. Sob a influência da Sociedade Alemã de Medicina Interna (SAMI), o conceito rapidamente se difundiu nos Estados Unidos, com a fundação do American College of Physicians, em 1927. Em paralelo à criação dessa entidade, foi fundada também uma das revistas médicas de maior prestígio dos dias atuais, a Annals of Internal Medicine, coordenada pelo American College of Physicians. Em 1932 a SAMI realizou seu congresso, no qual foi eleito como presidente o Dr. Leopold Lichtwitz, um clínico respeitado, chefe do Departamento de Medicina Interna do Hospital Rudolf Virchow, em Berlim. À época, essa entidade médica já contava com a participação de proeminentes médicos de origem judaica que viviam na Alemanha.
Em 1933, enquanto Dr. Lichtwitz preparava o próximo congresso da SAMI, Adolf Hitler ascendeu ao poder. O Dr Alfred Schittenhelm, médico pró-Nazismo, pediu aos membros da SAMI que destituíssem o Dr. Lichtwitz. Argumentava que o novo congresso da SAMI, que seria inaugurado no dia 20 de abril de 1933, cairia no dia do aniversário do Führer, e não faria sentido que o judeu Lichtwitz, presidente do congresso, assinasse uma carta de congratulações a Hitler – cujo ódio aos judeus era bem conhecido. Todos os médicos assinaram a carta pedindo a renúncia de Lichtwitz, mesmo os que não tinham afinidade com o Partido Nazista e até os vários críticos do governo. Poucas semanas após sua saída forçada da SAMI, Lichtwitz e sua esposa deixaram a Alemanha rumo à Suíça. Em seguida, o casal foi para os Estados Unidos.
Médicos julgados em Nuremberg por crimes de guerra e contra a humanidade, em 1947
Com o auxílio de outros judeus alemães imigrantes, Lichtwitz assumiu a chefia do Departamento de Medicina Interna do Hospital Montefiore, em New York, e recebeu uma cátedra na Columbia University, onde passou a lecionar.
Escreveu o livro Pathology of Regulations and Functions, que obteve grande sucesso. No entanto, a Gestapo não poupou críticas à obra, acusando Lichtwitz de “menções desrespeitosas” à classe médica nazista. Ele faleceria em 16 de março de 1943, em New Rochelle, NY, sem ter notícias da sua família que ficara na Europa. Seus dois irmãos foram mortos durante o Holocausto.
Médicos judeus na Alemanha Nazista
Em 1933, cerca de 11% de todos os médicos alemães no exercício da profissão eram judeus. Milhares desses médicos judeus atendiam dezenas de milhares de pacientes alemães. Ainda que Hitler houvesse decidido excluir todos os judeus da vida alemã, o rompimento dos
Dr. Leopold Lichtwitz laços entre esses médicos e seu vasto número de pacientes poderia causar um descontentamento generalizado. Ele sabia, portanto, que teria que agir com maior cautela que em relação a outras profissões. Mas não seriam de forma alguma poupados. O primeiro passo que levaria à destruição dos judeus europeus foi a promulgação de novas leis para “limpar” a nação alemã da presença judaica, e resultaram na exclusão dos judeus de áreas importantes: a própria estrutura estatal (Lei do Serviço Civil), a saúde (Lei dos Médicos) e a estrutura social (a revogação das licenças dos advogados judeus).
Já em abril de 1933, uma legislação afetou drasticamente as assim chamadas “atividades judaicas”, que eram a Medicina e o Direito. E pouco a pouco o governo nazista foi implementando leis e decretos que subsequentemente limitaram
o pagamento devido aos médicos judeus pelos fundos públicos dos seguros de saúde. O governo da cidade de Berlim proibiu advogados e notários judeus de exercerem suas profissões; Munique proibiu os médicos judeus de tratarem pacientes não-judeus; e a Secretaria do Interior da Bavária proibiu que os judeus estudassem Medicina. E assim por diante até a exclusão total de todos os judeus da área médica em particular. Essas leis receberam a corroboração de importante parte da sociedade médica - assim como da jurídica - da época, tendo ambas abandonado seus princípios éticos e morais para incorporar as regras do nacionalsocialismo.
Ao assumir a presidência da SAMI, o Dr. Alfred Schittenhelm, acima citado, adotou uma postura nacionalista, nazista e o discurso abjeto de “higiene racial” na prática de Medicina Interna, fazendo jus a suas convicções: filiou-se, em maio de 1933, ao Partido Nacional Socialista dos Trabalhadores Alemães, tornou-se membro da Liga Alemã de Médicos1 e da Liga de Palestrantes Nacional-Socialista Alemã (a NS-Dozentenbund) e do Schutzstaffel (SS, a Tropa de Proteção nazista), alcançando, em 1938, a patente de SS-Standartenführer. Uma das primeiras medidas adotadas pela SAMI foi a exclusão dos médicos judeus. Quando Hitler assumiu o poder, a Sociedade contava com 1.200 membros, dos quais 230 foram expulsos e da respiração celular que ocorre na matriz mitocondrial das células eucariontes, ele recebeu, em 1953, o Prêmio Nobel de Medicina por seu trabalho, que hoje é estudado nas aulas de Bioquímica nas faculdades de medicina.
Com o crescimento dos regimes totalitários fascistoides e prónazistas, a Suíça passou a ser, por
1 A Liga Alemã de Médicos, presidida pelo Ministro da Saúde do Reich, era uma filial do Partido Nazista com a missão de integrar a profissão médica alemã à visão de mundo nazista. A Liga foi organizada estritamente de acordo com os “ideais” do
Führer. perseguidos por serem de origem judaica. Estima-se que 31 desses médicos foram executados durante o Holocausto ou cometeram suicídio. Cinquenta e cinco desses profissionais emigraram para os Estados Unidos.
O Dr. Hans Adolf Krebs foi um dos médicos judeus que conseguiu deixar a Alemanha. Mundialmente
reconhecido pelo que é hoje chamado de Ciclo de Krebs, fase algum tempo, o lugar para onde muitos perseguidos conseguiram emigrar. Entre eles, o Dr. Julius Bauer, eminente endocrinologista austríaco, que lecionava em Viena e escreveu vários artigos sobre sua área de especialização, um deles publicado em um jornal médico suíço. Pouco após a publicação, o Reichsarztefuhrer, chefe da Liga Alemã de Médicos, passou a atacar o trabalho, conclamando a um boicote internacional de seu autor.
Dr. Hans Popper (no centro, atrás) e equipe, Instituto Patológico, Hospital Mount Sinai, N. York, 1967
Dr. Hans Adolf Krebs Envolvimento da SAMI em crimes de prática médica
Entre 1933 e 1945, todos os presidentes da SAMI eram filiados ao Partido Nacional Socialista.
Após a derrota do Terceiro Reich, o congresso que realizaram em 1948 fez discreta menção à “politização” pró-Nazismo da instituição. No entanto, foram homenageados na ocasião muitos médicos que participaram da entidade durante o período do Terceiro Reich como foi o caso de Dr. Alfred Schittenhelm, como vimos acima, responsável por implementar diretrizes nazistas na Sociedade.
Em 1967, Arthur Jones, um estudante de Lichtwitz que presidiu o congresso da entidade naquele ano, convidou Joannes Juda Groen, professor da Universidade Hebraica de Jerusalém, para palestrar no evento. Na ocasião, este último discorreu sobre as atrocidades cometidas no período nazista, solicitando revisão histórica sobre o comportamento da SAMI nesse período. Infelizmente, várias tentativas de fazer essa revisão acabaram frustradas ou ficaram incompletas, pois sempre eram realizadas por pessoas ligadas à Sociedade. Só pesquisas realizadas por pessoas totalmente descomprometidas com a SAMI tiveram sucesso em desvendar parte da verdade sobre suas funestas atividades durante o Terceiro Reich.
O resultado dessas pesquisas foi promover a exposição a um público muito maior sobre as atrocidades da época nazista. Por exemplo, o renomado gastroenterologista de Yale, Prof. Howard Spiro, desencadeou, em 1984, um forte movimento contra o título do então Prêmio da Falk Foundation da Alemanha, que levava o nome Hans Eppinger, médico austríaco nazista (de origem judaica!), chamando a atenção para todas as ambiguidades e os aspectos morais de sua conduta. dentro de 6-12 dias. Após a 2ª Guerra, Hans Eppinger se suicidou um mês antes de se apresentar nos Julgamentos de Nuremberg. O Prof. Howard Spiro defendia, com toda a propriedade, que os médicos que haviam praticado atrocidades durante o período nazista não deveriam ter sua memória homenageada.
O Dr. Spiro foi brilhante em chamar a atenção da comunidade médica mundial para a necessidade da biografia das pessoas homenageadas ser condizente com os valores morais, éticos e científicos das premiações médicas. O prêmio mudou de nome e passou a se chamar Hans Popper Prize em 1989, homenageando um especialista de fígado que fugiu do Nazismo e se tornou chefe de Patologia no Hospital Mount Sinai, de New York. Nessa mesma linha, eu mesmo publiquei, há dois anos, nesta Revista, um artigo sobre o tema, intitulado a Ética Médica Nazista.
Uma outra evidência histórica foi a medalha Gustav von Bergmann, também criada pela SAMI, homenageando o médico com esse nome que participou ativamente na adoção dos “princípios” médicos do Nazismo. Em 2013, o corpo diretivo da SAMI removeu essa premiação e a rebatizou de Medalha Leopold Lichtwitz.
Examinando gêmeos, Dr. Otmar von Verschuer, diretor do Departamento de Hereditariedade Humana no Kaiser Wilhelm Institute
Hans Eppinger, médico austríaco nazista
No campo de Dachau, médicos da Luftwaffe, a Força Aérea Alemã, e da Instituição de Aviação Experimental alemã realizavam experiências usando os prisioneiros como cobaias. Hans Eppinger foi um dos médicos envolvidos. Seu macabro “estudo” baseava-se em desidratar as cobaias humanas. Noventa ciganos foram isolados em uma área restrita e proibidos de beber água potável, apenas ingerindo água salgada. O objetivo “científico” da “experiência” era descobrir quantos dias um marinheiro nazista poderia sobreviver em alto-mar consumindo apenas água salgada e determinar que sintomas severos experimentariam
Em 2016, a Universidade de Kiel retirou o nome de Alfred Schittenhelm da relação de seus membros honorários. No mundo acadêmico, é um consenso o fato de que a Sociedade de Medicina Interna da Alemanha, SAMI, demorou longos anos para trazer transparência ao que realmente ocorreu dentro da sua entidade entre 1933 e 1945. Nunca vamos saber o que de fato se passou, mas é fato que muitos médicos se submeteram a condutas deploráveis, sem coragem de resistir ou de o denunciar publicamente - e tampouco, acabada a Guerra, de revelar para o mundo o que de fato ocorrera. Vale ressaltar que alguns médicos, como os julgados em Nuremberg, participaram entusiasticamente de experimentos atrozes.
Tentando conviver com o passado
As manobras políticas da Sociedade de Medicina Interna Alemã durante a era nazista demoraram muitos humanos, o denominador comum começa no Termo de Consentimento assinado por um voluntário, como é o caso de voluntários ao recebimento de uma vacina ainda em avaliação, ou aos testes de inovação com medicamentos novos para melhorar o prognóstico de doenças crônicas. E termina quando o Termo de Consentimento assinado é retirado pelo paciente ou voluntário em programas de vacinas, como é o caso das vacinas para prevenção da Covid-19.
Bibliografia:
Schittenhelm A, Letter to Leopold Lichtwitz, 22 March 1933, Archive signature Paul Martin Collection Folder 77 located at the Institute for Medical Humanities, University of Bonn, Germany To study race problems, German Medical Society will have new program, says chairman. New York Times April 20,1933. Bauer J., Gefahrliche Schagworteauf dem Gebet der Erbbiologie, Schweizer Medizinische Wochhernschift , 1935:65,63) Scheinberg M.: Passado Nazista Altera Nome de Doença. Morashá, Ed. 75, 2012 Scheinberg M .: Ética médica nazista. Morashá, Ed. 97, 2017 Mo. Med. 2013 Nov-Dec; 110(6): 486–488: German Medical Association Finally Apologizes For Atrocities Committed by German Physicians Under the Nazis [History of the German Society of Internal Medicine (DGIM) - Part 2: The DGIM in the PostWar Period].
Judeu ou não? Medição do nariz, um dos testes para determinação da raça ariana
anos para vir à tona. Após o término da 2ª Guerra Mundial, a SAMI não queria que sua imagem ficasse comprometida por sua participação no regime nazista e procurou ocultar muito do que ocorrera durante esse período. Buscaram manter uma imagem “despolitizada”. Mas, em 1980, em seu centenário, os discursos dos ex-presidentes que atuaram durante o período nazista foram encurtados em comparação aos extensos discursos de presidentes que presidiram em outros períodos. Esforços no período pós-guerra em evitar confrontos com as atrocidades médicas realizadas durante o Nazismo persistiram durante muitos anos. No entanto, as aberrações médicas ocorridas nesse período acabaram por vir à tona.
Hoje temos o Código de Nuremberg, criado em 1947 após a 2a Guerra Mundial, que eliminou condutas experimentais sem respaldo científico e estudos sem princípios éticos da prática médica. A tradição de consolidar o legado de excelência na Medicina seguirá em frente, considerando, no entanto, a diversidade, a igualdade e a rejeição à complacência com condutas inaceitáveis, entre as quais o racismo. No caso do Código de Nuremberg, em relação a Pesquisa Clínica em Palavras Finais
A Medicina não tem exclusividade quando se faz necessária a reconsideração dos títulos honoríficos. A constatação pública do racismo de certa forma institucionalizado nos EUA levou, por exemplo, à retirada do nome de Woodrow Wilson da Princeton University School of Public and International Affairs, pois, como presidente dos EUA, várias de suas intervenções têm nítidas características de supremacia branca.
Reconsiderar nomes honoríficos na Medicina não é uma prática comum, mas que começou a ser mais utilizada após os horrores que gradualmente foram-se tornando públicos por relatos de pacientes sobreviventes do Holocausto. Hoje, mais uma vez reiteramos que médicos nazistas que praticaram atrocidades não devem ter sua memória e seu trabalho celebrados e homenageados quaisquer que tenham sido suas descobertas.
Morton Scheinberg é especialista em doenças autoimunes, PhD pela Boston University, Professor Livre Docente pela USP, Master do American College of Rheumatology