A T S I REV RTAL MO A + MÚS
A + CINEM
LITERATUR
MÁRIO BORTOLOTTO ANDRÉ LINARDI TIBOR MORICZ IZABEL BUENO RAUDA GRACO MÁRCIO CASTRO GUILHERME SANTOS MARPESSA DE CASTRO TALITA TALISSA LUCAS CAMPOS CARDOSO SHIKO (DERBY BLUE) ALLAN SIEBER MÁRIO AUGUSTO SÉRGIO GODOY WILLIAM S. BURROUGHS
ATRO E +
GRAFIA + TE
CA + FOTO ICA + POLÍTI
R$ 7,00 # 000 - 2010
RED ZONE
FICÇÃO CIENTÍFICA, MAGIA NEGRA, AFROFUTURISMO, CAOS, TEORIA DA CONSPIRAÇÃO, UFOLOGIA, ROCK, SEXO, INTERZONE, CRIPTOZOOLOGIA, HACKTIVISMO, NEUROPOLÍTICA, ZONA AUTÔNOMA TEMPORÁRIA...
VAPOR PUNK
CYBER BRASILIANA
Por Gerson Lodi-Ribeiro Com força mundial, a estética steampunk vem angariando cada vez mais fãs brasileiros e portugueses. Seu apelo visual e o rico conteúdo inspirados no século XIX são o combustível certo para a produção de uma literatura que pode ser intensa, mas também descontraída. Descubra o que oito autores maquinaram nesse intrincado conjunto de engrenagens que é a imaginação. O steampunk nasceu como um gênero literário, mas ganhou vida própria e dominou a moda e as artes plásticas, tornando-se cada vez mais conhecido. Se a cultura da era vitoriana virou inspiração para essa estética, em Vaporpunk – relatos steampunk publicados sob as ordens de Suas Majestades, os organizadores Gerson Lodi-Ribeiro e Luis Filipe Silva imaginaram essa época tão distinta sob a ótica brasileira e portuguesa, repleta de inovações tecnológicas e acontecimentos inusitados. Com a presença de renomados autores da ficção especulativa dos dois países, Octavio Aragão, Flávio Medeiros, Eric Novello, Carlos Orsi e o próprio Gerson, pelo Brasil; Jorge Candeias, Yves Robert e João Ventura, por Portugal; a coletânea traz oito noveletas movidas a vapor, disputas políticas, personagens famosos e armas engenhosas. Tudo isso regado a muita aventura e surpresas, porque mais do que repensar o gênero, Vaporpunk é um convite para conhecer um mundo alternativo, e o que Brasil e Portugal poderiam ter sido com tamanhas novidades. Organizado por Gerson Lodi-Ribeiro e Luis Filipe Silva, 312 páginas - Editora Draco
Por Richard Diegues - Este é um romance na área de ficção científica. Nele o leitor se depara com uma realidade alternativa que se desenvolve em um universo pós-cyber, no qual os países do eixo norte do globo se encontram em decadência, confrontados pelas três grandes potências surgidas no eixo sul: a União da República Brasiliana, a Africanísia e a Euronova. A qualidade de vida abaixo da linha do Equador assume ares de utopia, enquanto no outro hemisfério as corporações lutam pelo controle dos espólios dos antigos países. Nesse cenário, em que uma parte da economia mundial está visivelmente instável, o equilíbrio é mantido por meio da força, de uma consistente e bem defendida base econômica, e da tecnologia que avançou a passos largos até se tornar fundamental à vida. Foi nesse contexto que o hipermundo se desenvolveu. Um sistema baseado em uma super-rede de servidores, no qual as pessoas desfrutam de uma forma complexa de realidade aumentada, utilizando-a para trabalho, socialização, cultura e registro digital de todas as informações mundiais. Parte do enredo dá suporte para uma ação vertiginosa que se desenrola enfatizando os dramas dos personagens, enquanto a outra se aprofunda nas questões desencadeadas pelo cenário social, levantando questões como: a tecnologia poderia afastar realmente o homem do rumo espiritual para o tecnológico? Do que seríamos capazes de abrir mão em troca da imortalidade? Autor: Richard Diegues, 254 páginas Editora Tarja
WHEN YOU’RE STRANGE
CRITICAL MASS BICICLETADA ABC
Por Jairo Costa - Em 1965, na praia de Venice, na Califórnia, Jim Morrison e Ray Manzarek, então colegas da escola de cinema da UCLA, fundaram a legendária banda The Doors, cujo título ecoava o romance The Doors of Perception, do poeta William Blake. Morrison ocuparia os vocais e Manzarek, o teclado. Pouco depois, conheceriam John Densmore e Robby Krieger, que se tornaram baterista e guitarrista da banda, respectivamente. Com uma carreira meteórica, os Doors se tornaram o principal expoente do psicodelismo no rock, tendo seu som uma fusão de jazz, blues, bossa nova e flamenco. Em seis anos, os Doors já eram considerados uma das bandas mais influentes do Estados Unidos, arrastando multidões, jovens ninfetas e muita confusão. Em 1972, a banda se separa e neste mesmo ano, Jim Morrison morre de overdose em um hotel meia-boca de Paris. Esta é a história que o documentário “When you’re strange”, dirigido por Tom Dicillo, tenta recontar, reviver, resgatar e reescrever a trajetória da banda de Jim Morrison, supostamente maculada após o filme de Oliver Stone pintar os Doors como “apenas” mais um grupo de músicos chapados, 24 horas por dia. Narrado por Johnny Depp, o doc foi exibido nos festivais de Berlim e Sundance em 2009. As imagens de abertura do filme impressionam pela qualidade. Dicillo utiliza-se de um filme feito por Morrison no deserto de Mojave e a nitidez e as cores da película parecem que foram gravadas dias atrás. Na mesma abertura, o fã se arrepia ao ver Morrison dirigindo seu carro e ouvindo rádio quando a programação é interrompida com um locutor anunciando a morte do próprio Jim em Paris. As cenas inéditas do doc são realmente o ponto forte da produção que peca muito ao conseguir fazer um banda explosiva como os Doors soar monótona. When you’re strange The Doors - Tom Dicillo
Por Catraca - Massa Crítica (Critical Mass) é um evento que ocorre na última sexta-feira do mês, em várias cidades pelo mundo, no qual ciclistas, skatistas, patinadores e outras pessoas com veículos movidos à propulsão humana ocupam seu espaço nas ruas. No Brasil, Portugal e em Moçambique, há um movimento ciclístico inspirado na Massa Crítica, chamado Bicicletada. Em São Paulo e na região do Grande ABC a bicicletada já existe há vários anos e reúne centenas de participantes. Massa Crítica é um grupo autônomo, sem líderes, que tem como objetivo se encontrar mensalmente para aproveitar o prazer e segurança de andar pela cidade em grupo. A frase “Não estamos atrapalhando o trânsito, nós somos o trânsito” expressa bem a filosofia desse movimento. As Massas Críticas são passeios auto-organizados e independentes – geralmente apenas o local de encontro, o dia e o horário são definidos. No ABC a Massa Crítica é itinerante, sendo reali-zada em escala de rodízio, ora em Mauá (cidade que detém o maior número de bikes na região), ora em S. André, S. Caetano, S. Bernardo etc. Os participantes da Massa crítica geralmente são ativistas políticos e demonstram as vantagens de usar a bicicleta como meio de transporte nas cidades e também denunciam a ditadura do automóvel. O termo “massa crítica” surgiu de uma observação feita por George Bliss (EUA) enquanto visitava a China. Ele notou que no tráfego chinês, motoristas e ciclistas haviam adquirido um método de lidar com cruzamentos não sinalizados. O tráfego iria se “agrupar” nessas intersecções até atingir um ponto de “massa crítica” no qual a massa se moveria através da intersecção. Massa Crítica também é uma referência a teorias sociais que sugerem que uma revolução social pode ser alcançada depois que uma certa massa crítica de apoio popular é criada. http://bicicletadaabc. wordpress.com/
FOME: O CAÇADOR
VISÃO DA BARBÁRIE GENERALIZADA, ESTE CONTO NOS LEVA AO LIMITE DO TOLERÁVEL. SE TIVER ESTÔMAGO, PROSSIGA!
A
POR TIBOR MORICZ
jeitei a mira. Foquei o alvo e, depois de um breve suspiro, puxei o gatilho. A cabeça explodiu num emaranhado de massa encefálica, sangue, ossos e cabelos. O corpo cambaleou alguns metros até cair sobre o meiofio. Uma das pernas saltando em espasmos cada vez mais espaçados. Me levantei, pendurei o rifle sobre o ombro e observei a desolação antes de caminhar até o freguês. Ruas cobertas por destroços, prédios arruinados. Vasculhei os bolsos do morto. Quase nada. Moedas inúteis... Um canivete. Puxei os sapatos, mas deixei as calças puídas e a camisa sem botões. Cocei a barriga, soltei um arroto e deixei o defunto de lado. Nada havia nele que pudesse me interessar, fora o canivete. Talvez o quarto traseiro, mas ainda pretendia ir mais além. Avançar, vasculhar lá na frente. Arrastei-o pelas pernas até sob uma laje inclinada. Lá estaria meio escondido. Voltaria mais tarde e faria os cortes necessários. As caçadas eram mais vantajosas no passado. Havia mais gente perambulando em busca de alimento. Alvos fáceis. Nos últimos meses houvera um declínio na população. Doenças por um lado, fome por outro. Caminhei a esmo por algumas ruas. Prestando atenção a qualquer movimento. Sabia que era silenciosamente vigiado. Olhares atentos que WWW.REVISTAMORTAL.COM
me espreitavam das janelas. Gente acuada. Um tempo atrás ainda era possível roubar sem matar. Apontar a arma, ameaçar o freguês e carregar o butim sem maiores problemas. A escassez levara as pessoas a resistir. Não entregar seus valiosos bens sem luta. Assim, puxar o gatilho sem fazer perguntas se tornara o melhor jeito para trabalhar. Contornei um monturo de escombros e sentei num pedaço grande de pedra. Tirei do bolso um pedaço de carne seca. Mastiguei com calma, engolindo cada naco sem tirar os olhos do perímetro. Busca constante de fregueses. Houve época em que abatê-los rendia bom sortimento de provisões, já que ninguém saía de casa sem elas. Não se arriscavam a abandoná-las, desprotegidas, à sanha de vizinhos mal intencionados. Hoje ninguém tinha mais nada, a não ser pedacinhos de carne. Peguei o canivete recém-adquirido e testei o fio. Até que estava bom. Daria para despelar um cão com relativa facilidade, se eles ainda existissem. Tateei minha faca, presa na cintura, e me levantei, esticando as pernas preguiçosamente. Em tempo de ver um vulto passar correndo alguns metros à frente, contornando obstáculos, ocultando-se sob as sombras. Sorri, sentindo a adrenalina jorrar. Empunhei o rifle e saí sorrateiro atrás do próximo freguês. O sol estava 39
inclemente. Nenhuma nuvem no céu. Dois urubus passaram em voo ligeiro lá para os lados de onde atendera o meu último. Esses também lutavam pela sobrevivência. Uns limpando a sujeira dos outros. Corri ágil por entre os escombros, sentindo no ar o cheiro de suor. Suor que não era meu. Marcas recentes no chão mostraram a direção que o freguês tomara. Pés pequenos. Olhei para além. Vislumbrei paredes e ruínas. O pó suspenso, sendo atirado para lá e para cá pela brisa. Apurei os sentidos, avancei cauteloso por alguns metros e finquei o dedo no gatilho. Quase um nada para fazer a arma disparar. Girei o corpo com leveza, saltei uma pilastra e enfiei as mãos num vão, agarrando cabelos. Puxei com força, colando o cano do rifle na cara do freguês. Ou da freguesa, melhor dizendo. Olhar enraivecido. Não demonstrava nem um pouquinho de dor, embora a sustentasse pelos longos cabelos. Rosto sujo, roupas em farrapos. Pés no chão. Apertei o rifle entre seus lábios, forçando-a a abri-los. Ela o fez. Os dentes despontaram. Muitos escurecidos, alguns em bom estado. Quantos anos? Não mais que dez ou onze. Mirrada e subnutrida. Renitente naquele olhar desafiador. Soltei o rifle e levei a mão livre até seus peitinhos. Senti as leves protuberâncias sob o tecido gasto. Apalpei mais abaixo. Nádegas magricelas, mas que me deram pensamentos sórdidos. Soltei um risinho sacana e fui arrastando a menina pelos cabelos por longos quarteirões. Era uma freguesinha jovem. Dar-lhe um tiro na cara nada me acrescentaria. Mas era companhia, ora se! Sabia que ia ter que amarrar a danada num lugar qualquer. Talvez até amordaçar. Ah, ia tentar fugir e fazer um barulho daqueles... Eu não deixaria. Os olhares me acompanharam. Os mesmos que espreitavam das janelas, dos prédios destruídos. Um par de sapatos com cadarços amar40
rados, pendurados num ombro. Um rifle no outro. Um canivete num bolso, uma boa faca na cintura e uma menininha que me fazia estremecer de desejo bem presa por entre os cabelos. Ela enfiava os dedos, como garras, em minhas mãos. Tentava me ferir, me fazer soltá-la. Mas o máximo que conseguia era me deixar ainda mais excitado. As perninhas trotavam atrás de mim, tentando acompanhar o ritmo acelerado. Os olhos marejavam, mas dos lábios não escapava nenhum som. Nenhum protesto. Entrei na bocarra que se abria à minha frente. A guarita da garagem ainda mantinha um calendário que ostentava uma pin-up peituda, loira, de olhos azuis. Carnes abundantes. Eu a deixara lá. Era uma espécie de mensagem de boas-vindas para todas as vezes que retornava das caçadas, com ou sem butim. O prédio acima estava demolido. Nenhum andar de sobra. Quatorze andares jaziam esparramados numa área de muitos e muitos metros quadrados. Montes de entulho. Atravessei o portal formado por uma ampla placa metálica, verifiquei as armadilhas para ver se não tivera visitas enquanto estava fora e então joguei a menina com força contra uma parede. Ela bateu num choque surdo, soltou um gemido e desabou. Os cabelos desgrenhados. Alguns tufos ainda bem presos entre meus dedos.Esfreguei as mãos, me livrando dos cabelos, e vasculhei minha mochila. Peguei um naco de carne e o joguei na direção da menina. Ela olhou a carne, lambeu, mordeu e foi mastigando, olhos bem fixos em mim. Era raro encontrar meninas assim. Raríssimo. Difícil também ver adultos, principalmente durante o dia. Eles escolhiam a noite para perambular. Buscavam a escuridão. Grupos esparsos, as matilhas, existiam aqui e ali. Vagueavam pela urbe e fora dela, alimentando-se do que podiam achar. Grupos até organizados. Eu era
um caçador solitário, evitava grupos e aglomerações. O que caçava era meu e não precisava dividir com mais ninguém. Me agachei diante dela e voltei a tocá-la. Ela não esboçou nenhuma reação. Corri os dedos pelas ancas estreitas. Acariciei as coxas magras. Tateei as costas que exibiam as costelas de maneira impudente. Eu a queria. E naquele momento. Arranquei os trapos que a cobriam. Ela recuou o que pôde, espremendo-se contra a parede. Dois pequenos montículos se sobressaíam onde um dia ela – se continuasse viva – teria peitos. A vulva mostrava pequenos e sedosos pelinhos que iam cobrindo a região. Agarrei-a pelas pernas e arrastei-a para o meio do esconderijo, sobre folhas de papelão. Virei-a para ver as nádegas. Brancas e exíguas. Espalmeias. Apertei-as. Bati nelas. Avermelharam até parecer fogo. Me levantei e tirei as calças. Desprendi a faca e a coloquei de lado, ao alcance da mão. Virei a menina mais uma vez. Abri suas pernas com força, me colocando entre elas. Agarrei seus cabelos e a fiz olhar para meu pau antes de penetrá-la. – Você vai gostar, vaquinha. Pode crer que vai. – Me deitei sobre aquele corpo miúdo. Me infiltrei para dentro dela, fazendo-a, pela primeira vez, soltar a voz. O grito foi agudo. As pernas começaram a chutar, os braços a sacudir, desferindo socos nas minhas costas. A boca, nervosa, tentava me morder o rosto. Num golpe seco completei a penetração. Ela urrou, arregalando os olhos. As pernas pararam de se mover e os braços tombaram, inertes. Ela passou a me observar sem emoção enquanto eu ia e vinha. Maravilha das maravilhas. Uma putinha para me satisfazer os desejos. Um objeto de prazer à disposição dia e noite. Uma jovem freguesa. A mais tenra, a mais atraente, a mais sedutora, a mais gostosinha. Freguesa para muitos e muitos WWW.REVISTAMORTAL.COM
atendimentos. – Minha freguesinha deliciosa – sussurrei em seu ouvido, enquanto me preparava para explodir. Momentos de êxtase. O mundo era perfeito. Destruído, arrasado. Vida animal quase extinta. E raras gazelinhas correndo por entre escombros, exibindo graciosidade à sanha de caçadores implacáveis. Doze, onze, dez anos. Tanto fazia. Carne é carne. Prazer é prazer. Dei uma estocada final. Profunda. Ergui o olhar para o teto, respirei fundo e gemi, enquanto uma faca era enterrada nas minhas costas. Abaixei o rosto. Ela estava lá: sorrindo. Ambas as mãos apoiadas em meu peito, me empurrando. As pernas flexionadas, joelhos colados em meus quadris. Eu ainda túrgido dentro dela. Com um movimento me fez tombar de lado, arrastando-a comigo. Livrou-se do meu aperto, desvencilhou a jovem vulva do meu pau e ergueu-se lentamente. Ao seu lado surgiram várias outras crianças, meninos e meninas. Um deles com meu rifle nas mãos. Outro com uma faca ensanguentada. Outro com o canivete. Outra arrastava minha mochila para fora do esconderijo. Outros vasculhavam o lugar atrás de aproveitáveis. Um grupo considerável olhava para mim e os olhares não escondiam desejos. Tossi, lambi os lábios e sorri para a putinha que estava ao lado. Corpinho magro que estivera sob o meu há tão pouco. – A freguesia vai querer o quê? – perguntei num suspiro, soltando uma golfada de sangue. A resposta veio num instante: um tiro à queima-roupa. Meu crânio explodindo em milhares de fragmentos ensanguentados. Lançaram-se sobre mim. Unhas e dentes buscando pedaços para matar a fome. CONTO PUBLICADO ORIGINALMENTE NO LIVRO “FOME, ONDE RESTAR VIDA, HAVERÁ FOME“, 2008, TARJA EDITORIAL. HTTP://ESOOUTROBLOGUE.WORDPRESS.COM/ 41
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Fotos: Arquivo Shiko e divulgação
ENTREVISTA MORTAL:SHIKO
UM DOS MAIORES DESENHISTAS DO PAÍS BATE UM PAPO COM A REVISTA SOBRE ARTE, REFERÊNCIAS E BRASIL
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POR EQUIPE MORTAL
rafiteiro, ilustrador, cartunista, pintor, Shiko é um daqueles raros artistas completos. Ficamos sabendo de sua obra por acaso, realizando uma busca por ilustradores no Flickr. Imediatamente impressionados com seu talento, decidimos contatá-lo para a entrevista que você vai ler agora. REVISTA MORTAL – Shiko, fale-nos de você. SHIKO – Tenho 34 anos, mas parece 58. Nasci em Patos, interior paraibano. Quando comecei a gostar de ler e desenhar, repeti o 6° ano 3 vezes. Aos 15, morei um ano em Brasília onde resolvi que ia desenhar o resto da vida. Foi quando repeti o primeiro ano do ensino médio pela primeira vez. Voltei pra Patos e, aos 20, me mudei para João Pessoa, onde concluí o ensino médio para não matar minha mãe de desgosto. No mesmo ano abri um estúdio de ilustração e aerografia. Abandonei a aerografia pelo grafite, continuo fazendo ilustrações, quadrinhos e planejo tatuar os amigos. REVISTA MORTAL – Shiko, observando sua obra, nota-se uma versatilidade técnica muito grande. Vemos o grafite, o nanquim, a aquarela, a tinta acrílica, o pastel etc. Certa vez ouvimos dizer que a base das artes plásticas está no desenho,
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puro e simples. Que, se você sabe desenhar, 90% do trabalho já está resolvido. Você concorda com isso? E mais, qual é a sua técnica preferida? SHIKO – Pra mim o desenho sempre foi um truque de mágica. Isso me encantava quando era criança e ainda me faz muito feliz sempre que percebo a possibilidade de trasformar um suporte plano em qualquer coisa que eu possa imaginar, com profundidade, textura, atmosfera... e pra isso não tenho uma técnica preferida, isso quem escolhe é o desenho, se quer surgir na tela, papel ou parede, feito com aquarela, nanquim ou spray. Ainda não me encantei com as técnicas digitais, mas vou comprar uma tablet [mesa digitalizadora] esses dias e gosto muito de vetor, então, qualquer dia arrisco umas curvas. Não gosto de expor conceito, o que não quer dizer que não trabalhe a partir deles, mas o conceito de uma obra deve servir para me guiar durante o processo, nunca para explicar ou justificar a obra pronta. Muitos artistas têm soterrado a mágica simples do desenho por sucessivas avalanches de teoria, o que muitas vezes só omite alguma falta de talento ou traz à tona uma verve acadêmica e teórica que tem seu valor e seu espaço, que não é na ponta do pincel. 43
Me irrito facilmente com artistas que gastam muita letra e pouca tinta... Banksy tem uma tirada muito boa sobre isso. Ele diz: “há muitos artistas prontos pra morrer pela arte, mas poucos dispostos a aprender a desenhar”. REVISTA MORTAL – A equipe da Revista MORTAL ficou fascinada com seus desenhos em P&B. Em uma recente entrevista você diz que as revistas do Conan foram um marco visual para a composição de sua obra/estilo. Lembramos de desenhistas antológicos da saga do sumério, como o John Buscema, um mestre (bom exemplo é a edição n. 11 de “A espada selvagem de Conan” com a clássica história “Os demônios da Torre do Elefante”). Diga-nos, quais artistas, revistas e livros que te influenciaram, que você admira. Notamos uma atenção 44
para a ficção científica em sua obra. SHIKO – Imagina um moleque sendo educado pela ética e pela moral branca, limpinha e assexuada do Superman e que, de repente, vê um gibi com umas gostosas nuas sendo carregadas por um herói que vive pra beber, roubar e brigar e que só se acompanha de putas, ladrões e outros bêbados, tudo isso só no nanquim de alguns dos melhores desenhistas de quadrinhos do mundo? Nunca mais li super-herói. Depois disso vieram todos os doidões da Revista ANIMAL, Frank Miller, Eisner, Allan Moore, Mozart Couto, Isaac Asimov, Akira, Lobo Solitário, William Gibson, Moebius, Rubem Fonseca, o Bandido da Luz Vermelha, David Lynch, Bukowski, João Antônio, Grampá, d’Salete, Kitagawa, David Cronenberg...
REVISTA MORTAL – Como é que a sua arte lida com a violência urbana e toda essa paranoia toxicológica que está dominando as cidades, principalmente o crack? Sua arte tem algum engajamento político? Como “conversa” com a realidade social do país? SHIKO – A violência tem uma riqueza estética que atrai artistas de todas as áreas. No quadrinho, no cinema, na música. O mesmo acontece com as drogas. Junkies, bêbados, maloqueiros e gangsters nos deram alguns dos momentos mais ricos e fundamentais da cultura de massa, como personagens e como criadores. Não tenho a pretensão de tentar influir socialmente com meu trabalho e não trabalho com a realidade; salvo um ou outro projeto, meu negócio é ficção, então, o que eu quero é contar mentiras. Por outro lado acredito que essa condição não impede o diálogo com a realidade. De fato sempre foi a ficção que melhor iluminou esses espa-
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ços mais obscuros e mal compreendidos da sociedade e como artista percebi que esse espaço viciado e violento gerava estórias e retratos muito bons e é nessa observação sem juízo moral nem saídas edificantes que se dá minha conversa com o mundo. REVISTA MORTAL – Você também é conhecido como Derbyblue (uma referêcia ao cigarro, presumimos). Onde as pessoas encontram o seu trabalho? Você tem livros publicados, realiza exposições? O que é e onde circula a “Marginalzine”? SHIKO – Derbyblue é o nome com que assino meus grafites e é sim uma referência ao cigarro. Também é como assino minha página no Flickr, que é onde posto a maioria das coisas que faço. São, na maioria, trabalhos pessoais. Além do grafite, posto aquarelas, telas e desenhos que exponho regularmente, além de algumas páginas de quadrinhos que crio para o Marginalzine, que é um zine que faço desde a adolescência, quando ainda morava
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em Patos, sertão da Paraíba; são estórias curtas e adaptações de alguns contos. Está na décima edição, mas as tiragens são sempre pequenas, o que o torna difícil de encontrar. Além do Marginalzine, publiquei um quadrinho que se chama “Blue Note”. No momento um outro álbum, “A Boca-Quente’’, está com 40 páginas prontas, na gaveta, esperando que eu retome as 60 páginas que faltam desenhar. REVISTA MORTAL – Fale um pouco de seus projetos em 2010. SHIKO – Eita... mil coisas. Mas o que vai me tomar tempo mesmo neste ano é a produção de mais uma animação. Um curta que deve ficar pronto até o fim do ano e que, por enquanto, se chama “A Vida Pro-
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fissional”. Ao mesmo tempo, fui convidado por uma editora para adaptar um “clássico da literatura nacional’’. Tive sorte, pois é um livro que gosto bastante. Deve sair até o fim do ano. E entre um segundo da animação e uma página do quadrinho, sigo fazendo ilustrações, uma “expo” em Curitiba, uma em São Paulo. E farei uma viagem por todo o Estado da Paraíba para ilustrar o livro de geografia de uma autora minha amiga. Ah, e estou organizando um catálogo e um “doc” sobre o grafite aqui em João Pessoa.
WWW.FLICKR.COM/PHOTOS/DERBYBLUE/
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NOVA EXPRESS
MORTAL APRESENTA UM EXTRATO DE“NOVA EXPRESS”, LIVRO DE BURROUGHS NUNCA PUBLICADO NO BRASIL
WILLIAM S. BURROUGHS
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ue se ouçam em todas as partes minhas últimas palavras. Que se ouçam em todos os mundos minhas últimas palavras. Ouçam todos vocês, sindicatos e governos da Terra. E vocês, autoridades que acertam negociatas imundas tratadas vai saber em que latrinas para apoderar-se do que não lhes pertence. Para vender o solo sob os pés dos que não nascerão - “Que não nos vejam. Não digam a eles o que estamos fazendo - ” Estas são as palavras dos onipotentes diretórios e sindicatos da Terra? “Por Deus, que não venha à luz o da Coca-Cola”. “Nem a Negociata do Câncer com os venusianos”. “Nem o Acerto Verde - que não se apercebam de”. “Nem da morte do Orgasmo”. “Nem dos fornos”. Ouçam: a todos vocês me dirijo. Mostrem suas cartas, jogadores. Paguem tudo paguem tudo devolvam tudo. Joguem tudo joguem o resto. Para que todos vejam. Em Times Square. Em Piccadilly. “Muito cedo. Muito cedo. Dê-nos um pouco mais de tempo.” Tempo para quê? Para mais mentiras? Muito cedo? Muito cedo para quê? Digo a todos que estas palavras não são prematuras. Estas palavras podem ser demasiado tardias. Faltam minutos. Minutos para o objetivo inimigo. “Arquisecreto - Arquivado - Para Uso do Diretório - A Elite - Os Iniciados”. São estas as palavras dos onipotentes diretórios e sindicatos da Terra? Estas são palavras de mentirosos covardes colaboracionistas traidores. Mentirosos que querem mais tempo para mais mentiras. Covardes que têm medo de
enfrentar com a verdade os “cães”, os “negativos”, os “mandatários”, as “bestas humanas”. Colaboracionistas do Povo Inseto, do Povo Legume. Colaborando com qualquer tipo de criatura de qualquer parte que lhes ofereça um corpo para sempre. Para cagar pelos séculos dos séculos. Para isso vocês venderam seus filhos. Venderam o solo sob os pés dos que jamais nascerão. Traidores de todas as almas em todas as partes. Precisam do nome de HassanI-Sabbah para suas imundas negociatas? Para vender os não nascidos? Que pavor os fez refugiarem-se no tempo? No corpo? Na merda? Direi: “a palavra”. A Palavra Estrangeira “a”. “A” palavra do Inimigo Estrangeiro “os” aprisiona no Tempo. No Corpo. Na Merda. Prisioneiros, saiam. Os grandes céus estão abertos. Eu Hassan-ISabbah apago a palavra para sempre. Suprimo todas as palavras de vocês para sempre. E também elimino as palavras de Hassan-I-Sabbah. Através de todos os céus leiam a escritura silenciosa de Brion Gysin Hassan-I-Sabbah: dada em Nova York a 17 de setembro de 1899. Saiam, Prisioneiros “Não escutem Hassan-I-Sabbah”, dirão. “Quer arrebatar-lhes o corpo e todos os prazeres do corpo. Escutem-nos. Oferecemos o Jardim das Delícias Imortalidade Consciência Cósmica O Melhor em Matéria de Drogas. E amor amor amor a granel. Que tal lhes soa rapazes? Melhor que HassanI-Sabbah e sua fria ventosa incorpórea, não é verdade? Com risco imediato de descobrir que sou o personagem mais impopular de toda
“ESCUTEM-NOS. OFERECEMOS O JARDIM DAS DELÍCIAS IMORTALIDADE CONSCIÊNCIA CÓSMICA O MELHOR EM MATÉRIA DE DROGAS. E AMOR AMOR AMOR A GRANEL”. ficção - e a História é ficção - devo dizer isto: “Reúnam o estatuto das notícias - Investiguem desde o estatuto até seu autor - Quem monopolizou o Amor o Sexo e o Sonho? Quem monopolizou Time Life Fortune”? Quem tirou-lhes o que é de vocês? Devolverão tudo agora? Alguma vez deram algo a troco de nada? Alguma vez deram algo mais do que tinham para dar? Acaso não voltaram a se apoderar do que haviam dado cada vez que foi possível e sempre o foi? Ouçam: o Jardim das Delícias que prometem é uma cloaca - Custou-me algum esforço traçar o mapa dessa rede de cloacas nas partes chamadas pornográficas de Naked Lunch e Soft Machine - A Imortalidade a Consciência Cósmica o Amor que prometem é merda de terceira classe - Suas drogas são venenos destinados a provocar o auge da Morte Orgasmo e os Fornos de Nova - Afastem-se do Jardim das Delícias - É uma armadilha devoradora de homens mergulhada numa goma verde - Atirem-lhes na cara esse sucedâneo de Imortalidade - Será feito em tiras antes que vocês possam sair da Grande Tenda - Lancem ao inodoro suas drogas - Estão envenenando e monopolizando as drogas alucinógenas - Aprendam a produzi-las sem truques químicos - A única coisa que oferecem é uma colcha para ocultar sua retirada da colônia que administraram de maneira tão lamentável. Para ocultar os preparativos da viagem e não ter de pagar os eleitores depois de atraiçoá-los e vendê-los. Quando tiverem a fuga armada voarão deste lugar. E meu programa de austeridade total e resistência total, que pode oferecer a vocês? Não ofereço nada. Não sou político. Esta é uma situação de extrema urgência. E estas são minhas instruções para a situação de extrema urgência; se cumprirem agora mesmo talvez impeçam o desastre total: “Povos da Terra, envenenaram-vos. Convertam toda a existência disponível de morfina em apomorfina. Químicos: trabalhem de sol a sol na WWW.REVISTAMORTAL.COM
variação e na síntese da fórmula da apomorfina. A apomorfina é o único recurso que poderá desintoxicá-los e desviar a direção do raio inimigo. Apomorfina e silêncio. Organizem resistência absoluta contra esta conspiração para liquidar os povos da Terra com sucedâneos que não servem pra nada. Organizem resistência total contra A Conspiração de Nova e contra todos que estão metidos com ela. “O propósito de tudo quanto escrevo é denunciar e deter os Criminosos de Nova. Em Naked Lunch, Soft Machine e Nova Express revelo quem são e o que estão fazendo e o que farão se não forem detidos. Faltam minutos. Almas apodrecidas por suas drogas-orgasmo, carne estremecida pelos fornos de Nova, prisioneiros da Terra: é o momento de sair. Com a ajuda de vocês podemos ocupar O Estúdio Cinematográfico da Realidade e reconquistar o universo do Medo da Morte e o Monopólio. Assinado: Inspetor J. Lee, Polícia de Nova” Pós-escrito do Regulador: Quisera lançar um grito de alarme - Falar é mentir - Viver é colaborar - Qualquer um é covarde diante dos fornos de Nova - Há níveis de falsa colaboração e de covardia - O que significa graus de intoxicação - E é precisamente um problema de regulação - O inimigo não é homem não é mulher - O inimigo só existe onde não há vida e age sempre visando levar a vida a situações extremas e insustentáveis - Vocês podem afastar o inimigo de sua linha mediante o uso de apomorfina e silêncio - Usem a droga da gentileza a apomorfina. “A apomorfina é feita de morfina, mas seu efeito psicológico é completamente distinto. A morfina deprime o cérebro frontal. A apomorfina estimula o cérebro posterior, atua sobre o hipotálamo para regular a porcentagem dos vários componentes do soro sanguíneo e assim normaliza a composição do sangue.” (citado de A ansiedade e seu tratamento, do doutor John Yerbury Dent.). Tradução de Fred Teixeira. HTTP://REALITYSTUDIO.ORG/ 48
ANDRÉ LINARDI HTTP://WWW.FLICKR.COM/PHOTOS/WHITESHARKSHOT/
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Fotos: Revista MORTAL e Arquivo Mรกrio Augusto
ESCOLA LIVRE EM ALERTA!
A REVISTA MORTAL FOI À ESCOLA LIVRE DE TEATRO DESCOBRIR COMO ESTÃO AS COISAS POR LÁ DEPOIS DA INTERVENÇÃO DA PREFEITURA POR EQUIPE MORTAL
O
mato cresce em frente ao Teatro Conchita de Moraes, sede da Escola Livre de Teatro, localizada na Praça Rui Barbosa, no bairro Santa Teresinha, em Santo André. Criada no distante ano de 1989, na primeira gestão do prefeito Celso Daniel, sob a tutela do então Secretário Municipal de Cultura, Celso Frateschi – renomado diretor e ator de teatro – a ELT, como os alunos se habituaram a chamá-la, tornou-se referência em todo o Brasil ao apresentar um novo modelo de escola de teatro, por convicção, livre(!) e aberta ao público. Ao longo de sua história, a escola livre formou dezenas de atores e diretores, que ajudaram a construir e espalhar a fama da instituição, apontada como uma das 10 melhores escolas de teatro do país. Em setembro de 2009, depois de duas décadas de gestão participativa, a escola sofreu uma intervenção da prefeitura da cidade, que administra o projeto. Seu coordenador, Edgar Castro, foi afastado sem maiores explicações por parte da Secretaria de Cultura. Nesta ocasião, um movimento de artistas ligados direta
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e indiretamente à escola nasceu, reivindicando garantias de que o projeto pedagógico e disciplinar fosse mantido. Surgia, então, o movimento “Escola Livre em Alerta”. Para entender o caso e descobrir seus desdobramentos, a Revista MORTAL foi conversar com Mário Augusto, um dos responsáveis pelo movimento. REVISTA MORTAL – Mário, faça uma breve apresentação, dizendo-nos qual foi seu papel no movimento “Escola Livre em Alerta”. MÁRIO AUGUSTO – Meu nome é Mário Augusto Matiello Simões. Sou aprendiz da ELT da Formação 13. Naquela época eu era conselheiro de artes cênicas, do Conselho Municipal de Cultura de Santo André e, como tenho participação política na cidade, meu papel no movimento foi de articulador político, junto à Secretaria, ao Conselho de Cultura e à Câmara dos Vereadores. REVISTA MORTAL – Objetivamente, o que aconteceu com a ELT? MÁRIO AUGUSTO – Objetivamente o que aconteceu com a ELT foi que, na mudança de 53
governo da gestão petista para petebista, do Aidan Ravin, eles colocaram dentro da escola uma nova coordenadora, a Eliana Gonçalves. E nesse primeiro momento ela chegou com a visão de uma nova ELT, que agora era um novo governo e a escola ia ter outra cara. Começou com algumas prerrogativas um pouco equi-vocadas, como curso de 3° grau para todos os professores da escola; eles teriam que passar por uma escola formal de teatro, como, por exemplo, a Faculdade Coração de Jesus (Fainc), na qual ela dava aulas para a 3ª idade. Ela queria também separar o teatro da escola e mandar embora alguns professores. Então, os mestres começaram a ficar incomodados, os aprendizes também, aí nós articulamos, a partir do Conselho [de Cultura] e da própria escola, um encontro de todas as escolas livres [Escola Livre de Literatura, Escola Livre de Cinema e Vídeo e Escola Livre de Dança] mais a Emia, lá na ELT, com o secretário de Cultura [Edson Salvo
Melo], para que ele falasse um pouco de seu projeto para as escolas, para que ele firmasse um compromisso com as escolas, e foi o que aconteceu. Ele foi, temos isso gravado em áudio, em ata, que ele manteria o projeto original da escola, e afirmou que ninguém seria demitido sem uma prévia conversa, que a Eliana era apenas uma coordenadora administrativa, que a pedagogia da escola ficaria com pessoas que conheciam mais profundamente o projeto; e foi uma ótima reunião, estavam lá representantes de todas as escolas livres, Emia e alguns interessados num projeto que iria começar, a Escola Livre de Música. Então, após essa reunião, a Eliana, a coordenadora cheia de novas ideias, continou trabalhando lá, mas tudo aquilo que havia sido conversado e combinado com o secretário nessa reunião ela começava a contradizer. Ela estava criando um mal-estar entre os funcionários, entre os mestres, com essas ideias meio descabidas que eu não sei de onde ela criava. Era
TEATRO CONCHITA DE MORAES, SEDE DA ELT
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ALUNOS DA ESCOLA LIVRE DE TEATRO DURANTE MANIFESTAÇÃO: FLÁVIO DIAS E MÁRIO AUGUSTO
a vontade dela, pois ela não dialogava com ninguém, e ia contra os acordos que tinham sido feitos com a própria administração. E ela voltou a reincidir em algumas discussões, começou a discutir muito com alguns aprendizes porque se passavam 15 minutos da aula, o que já é uma praxe na escola. A escola, então, estava começando a se tornar um quartel-general. Aí nós nos reunimos e decidimos entregar um abaixo-assinado, praticamente da escola inteira, pedindo para o secretário afastar a Eliana Gonçalves. Isso foi num sábado, na segunda foi feriado, e na terça-feira nós recebemos a notícia de que o coordenador pedagógico tinha sido demitido da escola, tanto como mestre quanto como coordenador. E o que nos pareceu naquele momento WWW.REVISTAMORTAL.COM
é que foi um golpe, porque todos os acordos foram esquecidos. Eles estavam querendo criar uma forma de somente eles gerirem. Foi nesse momento em que mandaram o coordenador pedagógico embora, o Edgar Castro, que a gente começou a se alertar. Foi quando o Diário do Grande ABC se manifestou e aí começou o movimento em si. REVISTA MORTAL – Quando ocorreu a demissão do coordenador pedagógico? MÁRIO AUGUSTO – A demissão dele foi no dia 8 de setembro de 2009. Nesse dia, parou a aula, assembleia-geral, chamamos o Diário do Grande ABC, a mídia começou a veicular informação, e deu uma força para começarmos o movimento. Então, pedimos cartas de apoio aos grupos de São Paulo, do Brasil.
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MANIFESTAÇÃO DOS ALUNOS DA ESCOLA LIVRE EM FRENTE AO PAÇO MUNICIPAL DE SANTO ANDRÉ
Recebemos muitas cartas, que estão no nosso blog, montamos um dossiê com todos os acontecimentos desde a chegada da Eliana, a vinda do secretário, todo o histórico da escola e fomos pra política, fomos mostrar pra vereador, deputado estadual, deputado federal, pro pessoal do PTB. Não tínhamos essa coisa de partidarismo, estávamos apenas defendendo o projeto original da escola. REVISTA MORTAL – A comunidade envolvida na Escola Livre foi chamada para discutir as mudanças de rumo apontadas pela nova administração? MÁRIO AUGUSTO – Não, não foi chamada. Na verdade o Conselho de Cultura, assim que o Secretário de Cultura foi empossado, pediu uma conversa para tratar das questões que já estavam em andamento na cidade, e eu falei com ele sobre as particularidades e peculiaridades da ELT e ele foi muito bacana, dizendo que iria continuar o projeto. Em novembro 56
de 2008 nós já havíamos feito um movimento para receber o novo prefeito e mostrar alguns projetos que eram de interesse dos coletivos da comunidade para sua manutenção. O prefeito convidado não foi, mas foram alguns assessores, foi também o vereador Gilberto Primavera e, assim, esse movimento foi criado para manter alguns projetos que já não eram mais do PT, mesmo porque o PT, em muitos momentos, abandonou o projeto; a escola nunca teve uma pintura, uma reforma decente, o salário dos professores sempre foi bastante baixo, mas esse projeto da ELT é bom e as pessoas gostam de estar lá. É um projeto original, que hoje é uma referência. A ELT está entre as 10 melhores escolas de teatro do país. REVISTA MORTAL – Como foi o movimento de resistência? MÁRIO AUGUSTO – Fizemos o dossiê, fizemos articulações com políticos e com muitos
artistas. E no dia 11 de setembro de 2009 a gente foi pra rua fazer uma manifestação com vários artistas conhecidos, como Antônio Petrin, Leona Cavalli, Maria Alice Vergueiro, e do próprio presidente da Cooperativa Paulista de Teatro, Ney Piacentini. Enfim, fizemos barulho e começamos a criar a simpatia da população e dos jornais; as pessoas realmente se sensibilizaram com isso. Fomos articular até no governo federal, mas conseguimos resolver isso através da Câmara Municipal de Santo André. A Câmara inteira estava do nosso lado, tanto oposição quanto situação. O Gilberto Primavera, que é do PTB, sempre esteve do nosso lado, Marcelo Cheha-de e Paulinho Serra, que são da situação, não da oposição, também estavam junto com a gente no movimento. Então as coisas foram se resolvendo até chegarmos a um acordo: o prefeito manteve o cargo da Eliana e nós
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conseguimos manter a escola com o projeto original. Conseguimos também manter a verba da escola, que já é muito pequena, pra um projeto como é, com muitos professores, muitos alunos. Esta verba não tem aumento há 5 ou 6 anos e o prefeito ainda queria reduzi-la. REVISTA MORTAL – O movimento artístico da cidade saiu em defesa da escola? MÁRIO AUGUSTO – Algumas pessoas sim. É impressionante, vimos o Petrin se movimentando, vimos o Milton Andrade, de São Caetano, o Conselho de Cultura estava junto, a Dalila [Livraria Alpharrabio] em algum lugar manifestou seu apoio. Mas senti falta, pois poderia ter muito mais gente, com certeza. O movimento artístico da cidade é muito desarticulado, eles se encontram, se conhecem, mas para o trabalho florescer aqui é necessário que haja força e mobilização dentro de um mesmo foco, e esse foco ainda não
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existe consciente e consistemente na classe artística de Santo André. REVISTA MORTAL – Qual é o projeto original da ELT? Ele foi descontinuado? MÁRIO AUGUSTO – Não, o projeto original não foi descontinuado. Hoje as coisas estão estáveis lá dentro. Apesar de não termos conseguido manter o Edgar Castro como coordenador, ele voltou para a escola como mestre; hoje, além da iniciação teatral, ele trabalha também com a pedagogia teatral, que é um outro núcleo da escola. Como teve todo esse embate e o Edgar ficou muito exposto, a secretaria pediu que trocássemos o coordenador pedagógico e nós trocamos, resolvemos junto com os mestres. Hoje é a Juliana Monteiro, que já era mestre da escola. A Eliana Gonçalves não saiu, ela ficou como um elo administrativo entre a ELT e a prefeitura, embora não seja visto esse trabalho dela na escola. Chegaram outros funcionários municipais, chegou um porteiro, trocou o iluminador, vieram duas bibliotecárias que estão querendo otimizar a biblioteca para que o público possa fazer consultas aos livros de teatro, trouxeram mais uma gerente de teatro, quer dizer, encheram de funcionário a escola. Agora, no projeto das formações, que é o núcleo principal, e nos outros núcleos, tudo está a cargo apenas da coordenadora Juliana Monteiro. Então, nesse quesito, a gente não pode reclamar. O projeto original da ELT é pautado por três objetivos, o que dá a sua característica: o trabalho colaborativo, de criação coletiva; a pedagogia da autonomia, na qual as individualidades são colocadas em encontro e dali surge o material criador; e a gestão compartilhada, na qual todos têm direito à voz. São esses três alicerces que formam a base do que é a ELT. REVISTA MORTAL – Como andam as coisas após o conturbado processo de “intervenção”? MÁRIO AUGUSTO – Após esse processo as coisas se acalmaram. Eu sei que em algum 58
lugar nós assustamos ele [o prefeito], porque nós tivemos força; e foi um susto positivo porque foi um momento em que eu vi a democracia em algum lugar funcionar. Onde a voz do povo é pouco escutada, tivemos que gritar muito, mas a gente trabalhou com muito carinho pela escola. Nós não fomos pra politicagem, fizemos um trabalho de paixão, de acreditar naquele lugar. Então isso foi um diferencial muito grande. Agora eles fizeram umas rampas de acesso porque a Eliana colocou 2 projetos lá dentro que não são muito vinculados à pedagogia da escola, é uma coisa mais da prefeitura: o teatro da Guarda Municipal e um outro para deficientes e terceira idade. A gente não tem muita entrada nisso, ficou meio separado, as coisas estão ainda meio distantes; talvez melhor que seja assim, porque talvez não exista esse encontro mesmo. A característica de teatro que a Eliana traz é muito diferente desse teatro contemporâneo, teatro de pesquisa, que é a característica da escola. O teatro colaborativo que todos se ouvem, se curtem, que não tem alguém que fale mais alto não é bem a característica dela. REVISTA MORTAL – As outras escolas livres – cinema e vídeo, literatura, e dança – passaram pela mesma situação? MÁRIO AUGUSTO – Na Escola Livre de Cinema e Vídeo mudou o coordenador, mas quem entrou lá foi um ex-aluno da ELT, Sérgio Pires, e acho que ele tem executado um bom trabalho. Na de literatura sinceramente eu não sei, o que sei é que está havendo muitas oficinas, mas não tenho acompanhado. Na Escola Livre de Dança havia o perigo de não abrir turmas. As coordenadoras de lá foram mandadas embora; nesse ano já são outras pessoas, mudou tudo, quer dizer, o governo é meio bagunçado, tem essa coisa do amicismo. Tem mais “amigos” dentro dessa administração do que na do PT, que já tinha bastante. E as Escolas de Dança, de Cinema, de Literatura não têm a mesma articulação política que a
de Teatro. Na verdade, nem nós sabíamos que tínhamos, foi devido à situação que tivemos que acordar e nos articular. REVISTA MORTAL – Há quantos anos a ELT não passa por uma reforma física? Pode-se dizer que ela está abandonada? MÁRIO AUGUSTO – Desde 1997 a escola não passa por uma reforma. Ainda tem as mesmas goteiras. Agora, eles prometeram mexer no palco, no telhado, na acústica da sala. Promessa né, a gente tá bem acostumado. Nós podemos dizer que está abandonada, sim. Porque na frente da escola tem pichação de anos. Dentro, os banheiros já estão bastante quebrados, tentaram mexer agora, mas foi bem por cima; os isolamentos acústicos já estão bastante prejudicados; o palco está com fungos em alguns pontos; há lugares que precisam de alguma reforma, como as cadeiras das plateias, as salas de aula que estão com muitas goteiras. É uma pena, porque esse projeto da escola poderia ter mais investimento, mas a verba por ano é pouca e o prefeito que temos agora só pensa na saúde. REVISTA MORTAL – Qual é a sua avaliação do panorama cultural da cidade? MÁRIO AUGUSTO – Putz, a gente não tem mais nada! O governo agora é populista, no sentido de shows que ele reproduz, das peças de teatro que vêm. Ele pode falar que estão valorizando, mas não é um objetivo cultural. Um objetivo cultural não é vender produto, é você criar uma consciência diferenciada na sua população, trazer coisas diferenciadas, que agreguem valores. E não é assim. O PT tentava, esse governo nem tenta. O PT, na época do Celso, tinha uma puta visão, mas que foi se perdendo em algum lugar. Isso tem que voltar! Eu acho que o panorama cultural da cidade é péssimo. Movimentos independentes cada vez mais isolados, mais fragmentados. Não sei onde isso pode funcionar. O panorama cultural é triste, muito triste. MARIO_AUGUSTUS@YAHOO.COM.BR WWW.REVISTAMORTAL.COM
MATO E PICHAÇÕES EM FRENTE À ELT
ALUNOS DA ELT NA CÂMARA MUNICIPAL
SECRETÁRIO DE CULTURA E LEONA CAVALLI
ALUNOS DA ELT 59
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Fotos: Sueli Almeida
O ATIVISTA QUE VIAJOU NO TEMPO O COLETIVO DE TEATRO NÚCLEO ZONA AUTÔNOMA (NZA) COMENTA A PEÇA “LENIN” POR NZA – MÁRCIO CASTRO, GUILHERME SANTOS E TALITA TALISSA
I
nterferência, levante, inconsequência, questionamento. Núcleo Zona Autônoma. Lenin: um homem, vivendo no século XXI, decide viajar no tempo com o propósito de entregar um presente para um líder político. Este líder se tornaria presidente do Brasil na década de 1990. Durante a jornada, o homem começa a desconfiar se a ação de modificar o passado para alterar o presente já não é, por si só, uma tentativa fracassada de revolução. Campo de batalha: ABC Paulista, região tradicionalmente industrial do Estado de São Paulo, composta por 7 cidades (ABCDMR): Santo André, São Bernardo do Campo, São Caetano do Sul, Diadema, Mauá, Ribeirão Pires, Rio Grande da Serra. Marcada historicamente por ser o primeiro centro da indústria automobilística brasileira, sede de diversas montadoras, como Mercedes Benz, Ford, Volkswagen, General Motors, entre outras, hoje, a região cresce significativamente no setor de serviços. É neste contexto que 3 jovens artistas se reúnem, contrariando toda a adversidade que os persegue desde WWW.REVISTAMORTAL.COM
a infância – estudo fadado ao tecnicismo, necessidade de trabalhar para auxiliar no orçamento familiar antes mesmo de completar uma formação universitária e preconceitos outros – e constroem o espetáculo Lenin. Sem acento mesmo. A intenção do trabalho é questionar e questionar-se sobre a autenticidade de nossas verdadeiras ideologias e rever todo o cenário de lutas que desembocou na eleição do presidente Lula em 2002 e a consequente decepção de muitos dos seus partidários. Também mostrar o quanto de nostalgia dos movimentos grevistas (quando a região ainda possuía força política e força de luta) permeia o imaginário da população do ABC. Se na década de 1970 e 1980 a identidade operária imperava entre a maioria dos moradores da região, atualmente ela se liquefez. O fato é que as 7 cidades mudaram. As empresas foram embora. Braços mecânicos substituíram os amputados na linha de produção, e quem ganhou um braço novo foi a indústria; o operário ganhou o olho da rua. 61
Nesta mudança de perfil comercial, as cidades passaram a ser núcleos de comércio e varejo. Faraônicas universidades ganham espaço ao lado de galpões abandonados que antes abrigavam sonhos de uma vida melhor. Cursos técnicos transbordam por escolas em todas nas esquinas, em todos os bairros, e o que as diferencia é o nome das ruas, as qualidades e quantidades das “carteiras” de aprendizado, e o quanto se paga. De resto, é um tentar se adequar às novas regras, conseguir um emprego e levar a vida. Isso somos nós? Quem somos nós? Adequar-se significa o quê? O NZA desconfia que esta mudança cause uma problemática ainda pouco abordada: a falta de identidade daqueles que vivem no ABC. Para o quê lutamos, contra o quê, e por quê? Perdemos os empregos, perdemos as expectativas. Conformamo-nos com cursos ruins, empregos ruins e, consequentemente, vidas ruins. O desespero em inserir-se no mercado de trabalho e colocar os filhos e netos na mesma conjuntura nublam o olhar político anteriormente tão forte.
Em Lenin, as pessoas entram sem pedir licença, saem fugidos de onde estiveram, falam palavrão, ofendem minorias, enfim, fazem o que lhes é necessário. Fim da história, fim do propósito, objetivo alcançado. É só? Não. O protagonista de Lenin, extremamente contraditório, expõe esta crise do cidadão da região. Saudoso, por vezes lembra-se dos urros da grande massa embaixo de guarda-chuvas em frente aos líderes sindicais, parando milhares de fábricas, braços cruzados na frente de máquinas ganhando espaço no proletariado. Este ser que quer matar o que de errado aconteceu no passado, que fez com que o sonho não vingasse para garantir um novo presente, parece que vive em outro mundo, deixa de lutar pelo que possa vir, entristece-se diante de sua TV, muitas vezes morre de depressão. É isso que queremos? Lutar pelo passado, lamentar pelo curso da luta que não deu certo? Lenin corre por escolas de teatro, faculdades, pseudomostras de teatro... E sai dali correndo: larga tudo aberto, deixa a luz acesa, não fecha a porta, chama a
TALITA TALISSA
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GUILHERME SANTOS
plateia para bater papo no bar e perguntar as opiniões de quem compartilhou do trabalho. Afinal, quem está no boteco não tem papas na língua. Muita bobagem se fala, se sabe, mas talvez seja preciso ouvir mais bobagens para formatar olhares mais contundentes. De elementos ditos sérios que estão por aí, já estamos cansados: inserir-se no mercado de trabalho, aulas de ensino a distância, competitividade, camisas de força chamadas de cartilhas para ensinar geradas pelo Estado, bônus pra quem ensina melhor... Não é este mundo sério que queremos. NZA desconfia deste caminho. Interferência, levante, inconsequência, questionamento. Núcleo Zona Autônoma. Lenin. Lenin é um espetáculo construído pelas mãos de 3 artistas do ABC Paulista, intitulados Núcleo Zona Autônoma, que exploram sua pesquisa estética com base em elementos do pensamento anarquista. O texto da peça parte do conto Cidade Bou Bou, de Rauda Graco. WWW.REVISTAMORTAL.COM
MÁRCIO CASTRO
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“PARTÍCULAS” O POR MARPESSA DE CASTRO
lhou melhor, ficou pensando: vou? Difícil resolver. Tanta coisa passando pela cabeça. O sol frio, o romantismo das tardes de maio. Vou? Aquela agitação interior, tão conhecida de outros tempos. É certo que tudo retorna, fatalmente. Cuspiu de lado. Cidade pontuada de cinza, uma solidão acre, mastigável. Vou? Não tinha muito tempo mais. Chutou uma pomba. A dor na boca do estômago. Lembrou: desgraça pouca é bobagem. As ruas fedem. Não distinguia rostos. Robert De Niro e Jodie Foster. Não podia ser tão complicado. Vou. Fodase. Lábios rachados, sabor de vingança dormente. Pólvora nos dedos, pólvora no peito. Tudo vai à merda repentinamente. A morte é a única rota de fuga. Maio, no calendário. Estou indo cruzar meu caminho
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com o de outro homem como eu e fazer o destino acontecer – não é um pensamento engraçado? Existem coisas que pedem para serem feitas com absoluta urgência. Como, por exemplo, dobrar esquinas até encontrar o homem procurado e disparar contra ele seis tiros, sentir o silêncio do instante em que a barreira é ultrapassada, ouvir o tombo, assistir como se fosse um filme, tremer de medo, correr, guardar a arma quente dentro da calça. Essas coisas que realmente valem a pena quando se está certo, certíssimo. SUJO Pobre louca, dizem. Pobrezinha. Arrasta um corpo feio e magro na tarefa indigna da mendicância crônica. Dão-lhe moedas apressadas. Seguem tampando o nariz. Nas dobras das roupas imundas da mendiga,
restos de antigamente. Parasitas, nódoas. Puxa os próprios cabelos, uma massa dura de fios escuros. Passa o poeta, e a chama em pensamento de monturo vivo. Passa o senhor guarda, gesticula para que saia do caminho. Passa a criança, tem medo da louca. Cloaca da cidade. Moleques atiram-lhe pedras, ela parece não se importar. É doida, dizem. Tanta coisa dizem por aí, estranho tipo de indiferença. Não é uma mulher, exatamente, diria alguém. Não é um ser humano, exatamente, diria um cínico qualquer. Passa o cão, fareja – e fica. Pelo menos ela tem um cão, dizem os transeuntes acabrunhados diante do quadro da miséria absoluta. Pelo menos, filosofa um sábio, pelo menos alguém a assistirá morrer, caso o animalzinho sobreviva à fome e ao posto de ‘cão de mendigo’. Não durará muito, é cheia de chagas, é velha e louca, em breve morrerá, pensam as pessoas que detestam incômodos. É podre por completo, murmuram todos. [Quando os dias passam e as chuvas geladas do inverno chegam, ela finalmente morre, silenciosamente, sem um ai. O cão a fareja e uiva. É incrivelmente desgraçado agora.] RESTOS Não sobra muita coisa, apenas uma caixa de discos de vinil. Uma pena. Ele sentado na calçada com uma caixa de discos de vinil por companhia, que cena cretina. Pensa que é bom que não chova agora porque vão molhar meus discos, caralho. Pensa e pensa. Vai correr para onde? Resposta nada enigmática: você se fodeu. A retórica machuca, às vezes. A barriga ronca, naturalmente, e tudo o que há na carteira é: - um real e setenta e dois centavos - uma foto meio amassada de uma garota grávida - dois vales-transporte amarfanhados - uma imagem de Santo Expedito WWW.REVISTAMORTAL.COM
- um número de telefone (sem nome) - um cartão telefônico (três créditos) Um gato se aproxima e ganha uma carícia triste. Cláudio quer chorar. A vida nunca pareceu tão cheia de bosta quanto ali na calçada, sem casa, sem comida. Chuva filha da puta. Ele tira a blusa e cobre a caixa dos discos. Depois pensa melhor e corre com ela até o bar, senta-se nos degraus da entrada, a caixa do lado. Fica vendo a chuva cair de novo – há dias e dias que só chove. Tudo foi embora. A vitrola também. Puxa um disco da caixa, olha a capa, a barriga ronca sem dó. Ouve o barulho da criançada alheia a tudo, chapinhando nas enormes poças de água barrenta. A mãe no abrigo, o pai no abrigo, os irmãos no abrigo, mas ele – ele – não iria nem fodendo. Entrou no bar, chegou junto ao orelhão: - Reinaldo, tô indo pra sua casa, velho. - Pra quê? - Minha casa caiu, velho. Tô indo. Mas fica frio, vou arrumar um trampo, tem um camarada daqui da vila que me prometeu já uma parada aí. Então eu fico na tua casa uns dias só, daí saio fora, só pra eu ter onde dormir, né, e comer alguma coisa... - Mas aqui, porra? Aqui você sabe, tem eu e mais cinco... - Favor de irmão, Reinaldo, porra, vai negar isso pro teu irmãozinho, velho? Só uns dias, logo eu tô saindo fora, e você acha que eu vou querer ficar na tua casa pra sempre? (silêncio) - Beleza. Cola aí. - Valeeeu, irmão! Era algo. A chuva apertava. Cláudio pensava num bom prato de comida quente enquanto juntava a caixa de discos de vinil, a mochila com as roupas sobreviventes, a sacola de pertences, memórias. Até que bastante coisa, pô. Sorriu, ficou tão feliz quanto alguém poderia ficar, tão feliz que sorriu grande, abertamente. Alguma esperança. MARPESSA@GMAIL.COM 65
LUCAS CAMPOS HTTP://WWW.FLICKR.COM/PHOTOS/LUCASCAMPOS/