Primeiras Palavras O primeiro número de nossa revista apresenta matéria especial sobre mulheres musicistas. Começamos com textos da jornalista Nilceia Baroncelli, paranaense radicada há décadas em São Paulo, que escreveu um texto sobre mulheres compositoras 40 anos atrás, em que resgatava, de forma sucinta, uma cronologia de musicistas no Ocidente. Nilceia também tem formação pianística e é compositora com peças para piano e também para o canto. A convite da editoria desta revista, ela retomou seu texto e falou sobre seus estudos dedicados às mulheres compositoras.
al de professores e estudantes da Licenciatura em Música da PUCPR. Não descartamos de modo algum o método científico de investigação da música e de seu contexto, mas procuramos ser uma plataforma de divulgação de olhares, trabalhos e encontros musicais com uma linguagem mais acessível, pois temos o interesse em comunicarmos para mais pessoas o que tem sido discutido, pesquisado e analisado no meio acadêmico.
Ao fim das matérias especiais, alguns alunos a Integram, também, esta primeira convidamos escreverem resenhas e crônicas que edição da MUSICANDO textos de alunas do Curso de Licenciatura em relacionem álbuns, livros e filmes Música da PUCPR sobre o preconceito que são música para seus ouvidos. étnico-racial discutido em sala de aula a partir de uma música Que comecem os jogos. Boa leitura! cantada por Sandra de Sá, e também sobre os timbres e estilos vocais peculiares das cantoras de rádio Joêzer Mendonça brasileiras da chamada Era de Ouro Professor do curso de Música da entre os anos 1930-50. Conversei PUCPR com a professora e roqueira Carol Editor da Musicando Massambani, alumni da PUCPR, que contou sua empolgante transição de contadora à educadora musical sem esquecer Beethoven e o heavy metal. O objetivo de nossa revista é proporcionar um espaço para a pesquisa acadêmica e a vivência profission-
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Quem é essa aí, Papai?
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Mulheres Compositoras
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Como nasceu o livro Mulheres Compositoras
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Olhos Coloridos
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As Vozes das Cantoras na era do Rádio
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Uma professora Rock n’roll
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Essa é a Joni
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Trainspotting
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A Voz do Coração
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Richie Kotzen - Cannibals
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Como a Música Ficou Grátis
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Quem ĂŠ essa aĂ,
Papai? Mulheres Musicistas
Artista: Moritz Daniel Oppenheim imagem: http://thejewishmuseum.org/collection/31380-portrait-of-fanny-mendelssohn-hensel
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E
nquanto cantava uma música no palco, a cantora Ivete Sangalo fez uma pergunta estranha ao seu marido que estava num camarote com uma desconhecida acompanhante: Quem é essa aí, papai? A curiosidade da esposa Ivete no meio de uma música pode ser estendida à perplexidade com que alguns veem as mulheres atuando no palco. Quem é essa aí que está invadindo uma praia repleta de homens, principalmente em áreas como composição, arranjo e rock pesado?
Ser mulher e compositora sempre foi uma atividade que esteve na contramão das expectativas sociais para as mulheres. No entanto, em tempos de maior conscientização e empoderamento do feminino, surgem novas oportunidades de desarraigar preconceitos caquéticos e visões unidimensionais a respeito das mulheres e suas atividades musicais.
O impedimento do acesso das mulheres a funções musicais que não sejam educação, canto ou dança é antigo. Hoje, Fanny Mendelssohn é considerada compositora e pianista muito talentosa. Mas seu bem mais famoso irmão Felix escreveu uma carta à mãe deles insistindo que sua irmã fosse apenas bela, recatada e do lar:
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Pelo que eu sei de Fanny eu diria que ela não tem inclinação e nem talento para a composição. Para uma mulher, ela já sabe a respeito de música o suficiente. Ela administra sua casa e sua família e não se preocupa com o meio musical, e, com certeza, ela não coloca estas preocupações à frente de suas preocupações domésticas. Publicar suas obras só perturbaria estas suas preocupações, e eu não posso dizer que aprovaria isso
"
(Carta de Felix Mendelssohn à Lea Mendelssohn-Bartholdy, 24 de junho de 1837).
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Fanny Mendelssohn, mulher que pertencia a uma ascendente burguesia, não poderia dedicar-se à uma ocupação que não apenas era reduto masculino, mas também era incompatível com as demandas domésticas. A brasileira Chiquinha Gonzaga, também no século XIX, enfrentou a severa resistência familiar contrária ao seu desejo de enveredar pelo ramo profissional da música, tendo alcançado seu objetivo de forma excepcional para o seu tempo.
os editores, especialmente na França, fecham os ouvidos quando alguém lhes oferece uma peça que não consideram grandiosa... Por isso, as suas obras [de Farrenc] caíram no esquecimento hoje, sendo que em qualquer outra época seus trabalhos teriam lhe trazido grande apreço” (The Chamber Music Journal, vol. 18, nº 3, 2007, p. 7). As razões para o menor número de mulheres nas atividades musicais de composição e regência, por exemplo, não envolvem habilidades ou competências musicais, obviamente. Mas está bastante relacionada com demandas, impedimentos e restrições socialmente impostas que estão sendo vencidas pouco a pouco em algumas regiões. Os tempos ainda estão mudando. Nossas convidadas para a matéria especial desta edição podem responder à pergunta “Quem é essa aí?” com uma lista infindável de mulheres musicistas.
Fanny Mendelssohn imagem: https://www.loc.gov/resource/ihas.200155963.0
Ainda no século XIX, o crítico musical Fétis comentou os motivos da ignorância social a respeito da compositora Louise Farrenc: “Infelizmente, o gênero da grande música instrumental, à qual Madame Farrenc se sentiu chamada, envolve recursos de desempenho que um compositor adquire com um enorme esforço. Outro fator é o público, cujo único padrão para medir a qualidade de um trabalho é o nome do autor. Se o compositor é desconhecido, o público permanece pouco receptivo, e
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MULHERES COMPOSITORAS Nilceia Baroncelli.
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Imagem: http://theconversation.com/off-key-women-composers-get-a-raw-deal-on-play-rates-17149
bíblicos, sabe-se da participação das mulheres em grupos instrumentais e em danças. Na Grécia, tocar flauta podia ser fator de ascensão social para a prostituta comum – “pornai” – que passava a “alêutrida”. O historiador Indro Montanelli, em seus clássicos sobre a história de gregos e romanos, afirma que Aspásia foi a primeira feminista da História, e que ela fez essa ascensão, antes de tornar-se “hetera” (categoria mais elevada ainda de mulher livre); depois, Aspásia casouse com o estadista Péricles e chegou a fundar uma escola de filosofia e letras para moças, que fechou logo depois, por ser motivo de escândalo.
O crítico do New York Times, Donald Henahan, declarou certa vez: “O longo eclipse da mulher como compositora está chegando ao fim”. Para chegar a essa conclusão, ele ouviu e analisou obras contemporâneas, e preconiza com entusiasmo um lugar ao sol para as compositoras do presente e do futuro. Talvez uma nova mentalidade em relação à mulher compositora esteja surgindo. MULHER ANTIGUIDADE
MUSICISTA,
NA
Não existe referência direta à participação da mulher na atividade musical dos povos antigos, pois não havia consciência da mulher como participante e, além disso, há pouca informação sobre a música em si. Os antigos painéis egípcios mostram sempre mulheres tocando instrumentos – os de sopro, principalmente, seriam proibidos aos homens? Quer dizer que as mulheres tocavam – embora não se saiba se elas compunham o que tocavam. Do Antigo Israel, segundo os registros
Hoje nossos hábitos artísticos são mais “especializados”, mas na Grécia escrever poesia, criar música para ela, cantá-la e dançá-la era um só ato de criação. Das quatro diferentes artes conjugadas de um autor grego, só a poesia pôde ser grafada e consequentemente só ela chegou até nós. Por isso, hoje fala-se de Safo como poetisa, quando ela foi também compositora de talento, ocupando lugar de destaque entre os expoentes da Arte Grega, juntamente com Myrtis e Corinna (outras compositoras), ao lado de Píndaro e Anacreonte. Como todo artista atuante, Safo não foi poupada pela censura, que proibiu um “modo” (escala para composição) criado por ela por ser considerado “lascivo”. As reuniões de família dos romanos eram animadas por audição de peças das damas, que assim exibiam mais uma de suas prendas – como se fazer música fosse o mesmo que executar uma toalha de crochê. Mas os romanos tiveram uma musicista que passou para a História: Santa Cecília, mártir cristã, denominada de padroeira dos músicos.
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Na Idade Média, apesar da pouca referência ou ilustração sobre a atividade musical feminina, já havia uma espécie de guia de comportamento para meninas, o “Livro de Paula”, no qual previnese que a menina não deve sequer tomar conhecimento da existência da música, a bem de sua moral.
Santa Hildegard de Bingen.
NA SOCIEDADE OCIDENTAL
Apesar da mentalidade vigente, uma grande figura de compositora surge na Idade Média – e é importante notar que ela deixou seu nome, numa era de autores anônimos: Santa Hildegard de Bingen. Alemã, também poetisa, ela viveu de 1098 a 1179 e compôs cerca de setenta peças musicais religiosas e o drama Ordo virtutum. Estudos mais recentes citam o nome de Cassiana (também chamada de Kassia ou Eikasia), abadessa que viveu entre 810 e cerca de 867, cujos hinos ainda são cantados na Igreja Ortodoxa do Oriente. Foram encontrados 47 breves hinos de oração e 2 cânones de sua autoria, com sua notação ainda legível. À medida em que termina a Idade Média, surge a ópera, delineiase o balé, renasce o teatro; mas a participação da mulher nessas atividades é por algum tempo limitada. Até o século XVII, os papéis femininos eram sempre representados por castrati, homens que eram castrados ao chegar à puberdade para que suas vozes se mantivessem num registro agudo. Esse costume, bárbaro para nossos padrões atuais, foi acabando pouco a pouco, mas demorou para extinguir-se, pois o próprio Haydn (1732-1809) foi convidado a castrar-se e seu pai não o permitiu.
Santa Hildegard de Bingen.
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COMEÇAM COMPOSITOR AS
A
SURGIR
O fim da castração coincide com o aparecimento das primeiras compositoras, e não por acaso. Tendo acesso à cena e à música, as mulheres puderam vir a ser profissionais, o que lhes garantia melhor formação musical e a possibilidade de mostrar o próprio trabalho.
Clara Schumann Imagem: https://alchetron.com/Clara-Schumann-1143535-W
O número de compositoras vai aumentando à medida em que o tempo passa. As italianas Francesca Caccini e Barbara Strozzi são duas das mulheres compositoras mais conhecidas do século XVII. A maioria do trabalho de Caccini se perdeu, sobrevivendo apenas o “balécômico” La Liberazione di Ruggiero, considerada a ópera mais antiga composta por uma mulher, e trechos de La Tancia e Il Passatempo. Suas partituras revelam uma compositora hábil no tratamento harmônico. Barbara Strozzi foi uma compositora bastante prolífica, sendo também autora dos textos de suas obras vocais. Nascidas no século XVII, temos cinco compositoras, das quais quatro são membros da família Couperin, que, como a família Bach, sobejava em músicos. Já o século XVIII registra treze compositoras. Amélie Julie Candeille e Maria Theresia von Paradis teriam sido aquelas de maior êxito; mas o mesmo século poderia ter visto Anna Maria Mozart, talento precoce como o irmão, que não alcançou o profissionalismo e a fama deste. O romantismo do século XIX foi um período brilhante e o mais documentado da música ocidental até então. Além das vinte e uma personalidades femininas compositoras do período, merecem destaque especial Fanny Mendelssohn e Clara Schumann.
Fanny Mendelssohn foi a irmã de Felix e, como ele, recebeu primorosa educação musical. Dizem que aos nove anos tocava de memória o “Cravo Bem Temperado”, de Bach. Fanny dedicou-se à composição e suas peças aparecem, hoje, entre as do irmão, assinadas por ele. Kurt Pahlen diz que “Fanny sem dúvida se houvera tornado uma das pouquíssimas mulheres com gênio criador na música, se o pai não a houvesse convencido da opinião geral da época de que a arte para as mulheres só poderia ser adorno e passatempo, nunca uma profissão”.
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Já o pai de Clara Wieck Schumann tinha uma outra posição. Era professor de piano e logo reconheceu o talento excepcional da filha: determinou mesmo que ela não se casasse, para
determinou mesmo que ela não se casasse, para poder dedicar-se inteiramente à música
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poder dedicar-se inteiramente à música. Robert Schumann precisou recorrer aos tribunais para casar-se com ela, pois Herr Wieck opunha-se tenazmente ao casamento dos dois, apesar de gostar muito de Robert. De certa forma, esse pai radical tinha
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razão. Casada, Clara enfrentou todo tipo de dificuldades, teve seu tempo dividido entre o trabalho de casa, os seis filhos e, depois de algum tempo, as sucessivas crises de loucura do marido. Quando ele morreu, ela passou a sustentar a família, dando aulas de música e concertos para divulgar a obra dele. Suas composições, de nível respeitável, só agora começam a sair do esquecimento, mas ainda não têm a divulgação que merecem. Do fim do século passado para cá é que se encontra a maior proporção de mulheres compositoras, ao todo setecentas e sessenta e três (exceto as brasileiras) das quais algumas encontraram apoio e chegaram a desenvolver carreira brilhante. Como Germaine Tailleferre, que pertenceu ao Grupo dos Seis, Gena Branscombe, Luísa Casagemas Poll, Mabel Wheeler Daniels, Rebecca Clarke e ainda Cécile Chaminade, Sofia Gubaidulina, Rachel Portman. Lili Boulanger (1893-1918), irmã de Nadia Boulanger, professora de harmonia de grandes nomes da música de concerto contemporânea, foi uma compositora de extraordinária fertilidade. Com quatro anos de estudos assimilou os conhecimentos de conservatório. Apesar dos preconceitos, ganhou o Grande Prêmio de Roma, em 1913. Faleceu aos vinte e cinco anos e é reconhecida como um gênio inconteste. A atividade musical da mulher brasileira poderia constituir-se num
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No Brasil estudo à parte, pois o desenvolvimento cultural brasileiro segue rumos bem diferentes do europeu, ou norteamericano. No Brasil Colonial viveu uma certa Dona Mariana, compositora de modinhas; e Francisco Curt Lange, que pesquisou a música do ciclo do ouro, se refere a Ana Maria dos Santos, organista cega, e Thomazia Onofre do Lírio, ambas substitutas (em diferentes ocasiões) de Emerico Lobo de Mesquita – pois com a decadência da mineração as despesas foram reduzidas, substituindo-se os músicos de melhor paga pelos de menor. No século passado, a condessa Rafaela Roswadovska encenou no Rio (1862) uma ópera de sua autoria, “Dois Amores”. Alguns anos depois, uma outra mulher encenava óperas no Brasil: Chiquinha Gonzaga. Mais conhecida como compositora popular, era também excelente compositora de operetas; e sua primeira ópera, com libreto de Arthur Azevedo, não foi encenada... por ser música escrita por mulher. Mas as seguintes setenta e cinco o foram, com sucesso. Fazia também orquestração e foi a primeira mulher a reger em público no Brasil. Dinorá de Carvalho, ainda hoje atuante, acumula prêmios no Brasil e Europa. Talvez seu nome não seja conhecido pelos brasileiros como mereceria, e como o é no exterior, mas no ano de 1976 ela ganhou o prêmio da Associação Paulista de Críticos de Música.
Jocy de Oliveira Imagem: http://fotografia.folha.uol.com.br/ galerias/27888-lancamento-do-livro-dialogos-com-cartas
Vale destacar a curitibana Jocy de Oliveira, pioneira no desenvolvimento de um trabalho que agrega música contemporânea a projetos multimídia, reformulando o sentido da ópera tradicional. Suas experimentações artísticas mostram que as mulheres compositoras, da música vocal antiga ao contemporâneo midiático, não podem ser colocadas no rodapé dos estudos musicológicos e que elas merecem uma audição musical mais ampla. * Este texto foi publicado pela primeira vez no jornal Brasil Mulher, São Paulo, ano I, n. 5, 1976, p.15 e recebeu atualização e revisão para este número da Musicando.
Chiquinha Gonzaga Imagem: http://lounge.obviousmag.org/m_de_ marina/2014/09/chiquinha-gonzaga-uma-vida-ao-somda-transgressao.html
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Como nasceu o livro
“Mulheres Compositoras”
Este texto, escrito e publicado há quarenta anos, era uma tentativa de contrapor a idéia de ocultamento que permeia este tema. Nessa época, eu trabalhava na revisão do jornal O Estado de S. Paulo, e naquele momento, difícil para a grande imprensa, muitos
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órgãos da imprensa alternativa surgiram e tiveram durações variadas. Este primeiro texto, escrito a pedido da jornalista Laís Fagundes Oreb, falecida em maio deste ano, se baseava na consciência que eu já tinha, nessa época, da existência de mulheres compositoras, embora este fosse um conhecimento esparso. A casa onde cresci, em Cambé, PR, era junto da nossa loja de aparelhos elétricos e eletrodomésticos, que também vendia discos. Tive, portanto, à minha disposição, durante muitos anos, muita música para ouvir. E guardei a percepção clara da existência de muitas compositoras, embora não fosse, em 1976, capaz de identificá-las, pois as fui conhecendo em um período que foi da infância para a adolescência. Quando me propus a escrever esse primeiro texto, comentei com o também jornalista e musicista Oswaldo de Camargo, até hoje um amigo muito querido. Ele se propôs a emprestar alguns dicionários biográficos de músicos, e somando estes a obras de referência do meu acervo, pude então elaborar esse texto. Em 1977 saí do jornal, por ter um bebê e não ter com quem deixálo. Eis aí um problema de muitas mulheres... Mas um ano depois, em 1978, fui contratada pela Secretaria Municipal de Cultura do Município de São Paulo. Minha função era prestar assistência musical à equipe de bibliotecários que foi contratada para reestruturar a antiga Discoteca Pública Municipal, criada por Mário de Andrade, e desenvolvida e mantida por Oneyda Alvarenga. A Discoteca foi, em 1975, elevada à condição de Divisão, deixando de ser Seção (o que foi durante quarenta anos). Chamada agora Divisão de Discoteca e Biblioteca de Música – IDART.3, ela tinha mais verba e mais pessoal. Trabalhando com a seção de livros e com a de partituras musicais, e sempre examinando, uma por uma, as partituras, ajudando a selecioná-
las, agrupando o que estava esparso, sempre ao lado de bibliotecários, pude fazer muitas anotações que reviviam e completavam o conhecimento trazido da infância. De 1977 a 1982, tive três filhos. Já tinha muitos apontamentos, agendas, contatos... E, com três crianças para criar, não sabia se essa pesquisa seria útil, se valeria à pena colecionar apontamentos que só cresciam. Então, em 1985, fui conversar com Roswitha Kempf, editora, cujo escritório era perto de minha casa. Ela achou a pesquisa muito interessante, anotou meu telefone, e nos despedimos cordialmente. Continuei fazendo anotações. E, meses depois, ela me telefonou dizendo que havia proposto a edição de um livro, baseado na minha pesquisa, para o Instituto Nacional do Livro. Como sei que uma grande oportunidade não aparece duas vezes, conversei com meu marido, com toda a família, e também com a direção do Centro Cultural São Paulo, para onde a Discoteca tinha sido transferida, em 1982, retornando ao “status” de Seção. Todos foram unânimes em me ajudar. A direção permitia que eu levasse para casa, por empréstimo, dicionários, de onde extraía os dados pertinentes ao trabalho. Foi exaustivo, mas compensador. Não deixei de atender minha família, não deixei de atender a Discoteca. E em fins de 1987, saiu publicado o livro Mulheres Compositoras – elenco e repertório. O livro abrange quase 1.200 compositoras de 50 países e da Antiguidade clássica, e tem indicações de cerca de 5.000 partituras e gravações, existentes em acervos públicos de São Paulo e do Rio de Janeiro, principalmente da Discoteca, agora chamada Discoteca Oneyda Alvarenga. Portanto, se neste ano de 2016, completei quarenta anos de meu primeiro texto sobre o assunto, em 2017 completarei trinta anos da publicação do livro.
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UMA NOVA VISÃO No decorrer desse tempo, minha visão da questão das Mulheres Compositoras mudou muito. Começando pelo aparecimento das primeiras compositoras, tal como colocado no texto inicial: na realidade são muitos os fatores que influem nesse suposto “aparecimento”. O que realmente aparece são os registros escritos, onde até hoje nos baseamos, em gerações sucessivas, para indicar os nomes que conhecemos. Hildegard de Bingen, sendo religiosa, é hoje lembrada porque teve sua obra preservada pela Igreja, e seus manuscritos se transformaram em interpretações e gravações. As outras, do período clássico, ou de outras culturas e etnias, tiveram também alguma forma de informação registrada, que as integrou na história de seus países. A partir de 1500, com a imprensa que gradativamente se desenvolve, as “notícias” vão se multiplicando pouco a pouco. Há mais notícias, não só de compositores e compositoras, em países que alfabetizam suas populações, que em outros que não o fazem. Os que reservam a escrita e a leitura para uma classe dominante roubam de sua população o conhecimento sobre seu passado. Mas temos hoje uma contrapartida: com a Internet, as informações, gravações e partituras vão aumentando dia a dia, ampliando as oportunidades de pesquisa e conhecimento, fazendo com que este conhecimento circule pelo mundo. Uma ressalva: a ópera, em seu surgimento, e ao contrário do que consegui levantar no primeiro texto, já conta com nomes de compositoras, como Francesca Caccini, cuja ópera La Liberazione di Ruggiero dall’Isola d’Alcina, de 1625, foi editada pela Smith College, dos EUA, em 1945. Nossa Biblioteca Nacional tem um exemplar.
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OUTROS LIVROS SOBRE O TEMA Com o tempo e a continuidade do trabalho, conheci e adquiri outros livros sobre compositoras. O primeiro deles é de 1902 e pode ser baixado na Internet: Women Composers, de Otto Ebel. Em 1981 Aaron J. Cohen, da África do Sul, edita International Enciclopedia of Women Composers, hoje com duas edições; em 1987, Mulheres Compositoras – Elenco e Repertório, de minha autoria, e Nós, as Mulheres, de Eli Maria da Rocha. Em 1988, Antje Olivier e Karin WeingartzPerschel editam, pela Tokkata-Verlag, Komponistinnen von A-Z, e em 1994, Julie Anne Sadie e Rhian Samuel lançam The Norton/Grove Dictionary of Women Composers. São três livros em inglês, dois em português e um em alemão. Além dos idiomas, que já representam uma diferença significativa, a abordagem deles também diverge em alguns pontos. Komponistinnen von A-Z e The Norton/Grove Dictionary of Women Composers se assemelham, ao prestigiar principalmente autoras de música clássica e contemporânea. Estes livros são editorialmente muito ricos, detalham o repertório de cada compositora e trazem belas ilustrações. O livro de Aaron Cohen, na primeira edição, que é a que tenho (agora já são duas edições) apesar de ser maior, em número de compositoras, que os dois anteriormente citados, estende os meios de expressão das compositoras, incluindo outros gêneros musicais. Meu livro também amplia, abrangendo também a música popular de consumo dos anos 80, e as compositoras de obras didáticas. Nós, as Mulheres, (que tem como subtítulo Notícia sobre as Mulheres Compositoras) alarga ainda mais o horizonte, ao colocar também arranjadoras. Nenhum destes três livros tem ilustrações junto aos verbetes, mas Cohen coloca uma série de retratos no final do livro.
VER, LER E OUVIR
Livro: Mulheres Compositoras, de Nilcéia Cleide da Silva Baroncelli (Roswitha Kempf, 1987. Com o apoio técnico e financeiro do MinC/ PRÓ-MEMÓRIA, Instituto Nacional do Livro). Obra esgotada e rara. Disponível no acervo da Biblioteca da PUCPR - Campus Curitiba.
Livro: Canções de Dinorá de Carvalho: uma análise interpretativa, de Flávio Cardoso de Carvalho (Editora da Unicamp, 2001 - acompanha CD)
Ampliando o leque de compositoras para outros gêneros musicais, estes livros atendem também a outras áreas de estudos sobre as atividades das mulheres, principalmente a Sociologia. Nos últimos tempos tenho cruzado nomes e datas dos quatro livros que abordam de maneira internacional este tema (apenas Eli Maria da Rocha trabalha somente com brasileiras), chegando ao número de mais de 4.500 compositoras. Na sequência, pretendo cruzar o livro de Otto Ebel, de 1902, que só obtive este ano, com estes quatro; e cruzar o livro de Eli Maria da Rocha com as brasileiras do meu livro.
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Livro: Clara Schumann: compositora x mulher de compositor, de Eliana Monteiro da Silva (Ficções Editora, 2011).
Livro: Safo Novella, de Silvana Scarinci (Algol Editora).
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Filme: Sonata de amor. Dir. Clarence Brown. Com Katharine Hepburn, Robert Walker e Paul Henreid, 1947. (Em DVD Classicline, Sucessos inesquecíveis) (obs: História romanceada de Robert e Clara Schumann)
CD: Crepúsculo de Outono. (3 CDs com a obra completa da compositora Maria Apparecida Côrtes Macedo). A própria compositora ao piano e diversos outros intérpretes convidados. Gravado no Estúdio Salaviva, São Paulo, 2011.
Hõkrepoj. Núcleo Hespérides – Música das Américas: Obras de Kilza Setti. Produzido por Laser Disc do Brasil Ltda., 2016.
***** Alguns cânticos de autoria de Cassiana estão disponíveis para visualização no YouTube, como este entoado pelos membros do coro bizantino da Catedral de St. George, em Pittsburgh: ht t ps://w w w.yout u b e.com/ watch?v=I2umh7EQFus
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Nilcéia Cleide da Silva Baroncelli (Cambé, PR, 1945), escritora e musicista radicada em São Paulo. Dedica-se desde 1976 a pesquisar obras de mulheres compositoras. Publicou em 1987 o livro Mulheres Compositoras – elenco e repertório, editado por Roswitha Kempf Editores e subvencionado pelo Ministério da Cultura. Escreve comentários sobre mulheres compositoras no blog w w w. m u l h e r e s - c o m p o s i t o r a s . blogspot.com e sobre música, literatura e atualidades, no blog www.escrevo-existo.blogspot.com Compõe para piano, canto e piano e variadas formações instrumentais.
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Olhos Coloridos Profa. Ms. Viviane Alves Kubo; Melissa Micoski Pereira e Potira Vieira Cargnin
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Da resistência à aceitação. Um relato sobre diversidade e preconceito no PIBID em Música.
23 Imagem: http://pt.gwcpics.com/cilios-imagens-papeis-de-parede-do-olho-preto-e-branco-do-vetor-aluno-fundos/
A escola constitui um espaço importante de vivência da coletividade e da diversidade, além da prática do respeito e da empatia em relação ao diferente. A educação musical, neste contexto, pode ser um agente de transformação social, oportunizando o contato dos alunos com o patrimônio cultural, desenvolvendo o sentimento de pertença e a consciência da diversidade. Segundo a Declaração Universal Sobre a Diversidade Cultural (2002) da UNESCO, a sociedade tem o dever de “promover, por meio da educação, uma tomada de consciência do valor positivo da diversidade cultural e aperfeiçoar, com esse fim, tanto a formulação dos programas escolares como a formação dos docentes”.
Com esta afirmação em mente, os alunos do Curso de Licenciatura em Música da Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR) têm ingressado em um programa que constitui um espaço de introdução à prática docente para os estudantes, o PIBID (Programa Institucional de Bolsa de Iniciação à Docência), que consiste em uma oportunidade única de vivência da realidade do ensino público brasileiro e da multiplicidade econômica e social do país. Em ação em um colégio estadual de Curitiba, as bolsistas Melissa Pereira e Potira Cargnin vivenciaram uma situação envolvendo o tema do preconceito e da diversidade cultural no ensino da música, relatada a seguir.
De acordo com Mauro Coelho e Wilma Coelho, “a música detém um caráter simbólico que parece diluir as fronteiras sociais, pelo menos no que diz respeito a certos aspectos da visão de mundo construída”. Portanto, a música, dentro do contexto escolar, pode ser um agente de transformação social, gerando
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contato dos alunos com o patrimônio cultural, desenvolvendo o sentimento de pertença e a consciência da diversidade.
Conforme a legislação, é dever da escola fornecer uma educação que inclua a diversidade cultural e étnica do país. Para a professora americana Donna T. Emmanuel, “a música na sala de aula torna-se muito mais que um lugar onde se faz música multicultural. Torna-se um lugar de autodescoberta, aceitação, reflexão, imaginação e, finalmente, de mudança social”. Assim, buscar a diversidade no ensino da música também promove a possibilidade de fornecer ferramentas para que os alunos se sintam pertencentes a cultura e se reconheçam.
Uma situação-problema exemplifica essa discussão: em uma oficina realizada em sala de aula, as bolsistas Melissa Pereira e Potira Cargnin, estudantes do curso de Licenciatura em Música da PUCPR, ofereciam, além da prática vocal em grupo, orientações individuais de técnica vocal para cada aluno. Para desenvolver as atividades, foram colocados em um mesmo grupo alunos de diferentes idades (do ensino médio). O objetivo era, desde a primeira aula, desenvolver a desinibição frente a pessoas desconhecidas, bem como incentivar a socialização e a cooperação. Nas oficinas de canto, foram realizadas atividades de aquecimento vocal, para que o canto fosse realizado de forma correta e, também, para ressaltar a importância dos cuidados com a voz. Durante a escolha do repertório, as bolsistas levaram em consideração as indicações dos alunos.
A participação dos alunos na escolha das músicas foi de fundamental
importância, pois as bolsistas puderam mapear as diversidades culturais dos alunos e considerá-las em seus planejamentos de aula. Segundo Donna T. Emmanuel, a preferência musical pode ser compreendida como a materialização do gosto num objeto musical, assim a análise do repertório de preferência tem algo a nos dizer sobre o gosto musical oriundo da consciência musical incorporada que acontece no ato de ouvir.
Foto: Patricialino - Baculejo da De Sá – teatro caixa – Brasília JUL/13 Imagem: http://patricialino.com.br/portfolio/sandra-de-sa/
Além das composições escolhidas pelos estudantes participantes da oficina, foram escolhidas outras canções de compositores dos diferentes estilos musicais do Brasil, com o objetivo de promover o contato com a diversidade musical brasileira. Visando atender as especificidades vocais de uma aluna que faria um solo, uma das músicas escolhidas foi Olhos Coloridos, do compositor Macau, com interpretação mais famosa na voz de Sandra de Sá.
Durante a apresentação das músicas, um dos participantes relatou para o grupo que havia passado por uma situação embaraçosa com a música Olhos Coloridos. Contou que um grupo de crianças, ao apresentar a música no Dia da Consciência Negra, cantou a letra de uma forma errada. Na parte do refrão onde é cantado “sarará crioulo”, as crianças cantaram “sai pra lá crioulo”. Ao ouvir este comentário, a aluna escolhida para interpretar a música passou a mostrar resistência, dizendo não querer cantá-la.
Sandra de Sá
Inicialmente, as bolsistas Melissa e Potira não fizeram relação entre a resistência momentânea da aluna em interpretar esta música com o comentário citado anteriormente. Diante da mudança de comportamento
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da estudante quanto à canção que iria interpretar, elas insistiram para que a aluna apresentasse a música, valorizando seus atributos vocais, acreditando que esta resistência se devia a questões de timidez ou insegurança. Após alguns dias, a aluna veio até uma das bolsistas e relatou que havia ficado muito triste com o comentário feito no dia da distribuição dos solos. Ela disse que não gostaria de apresentar a música com receio de ser chamada de “crioula”.
Frente a tal situação, as bolsistas procuraram o auxílio de supervisores e coordenadores do PIBID e pesquisaram textos sobre preconceito e diversidade cultural. Depois dessa busca, elas recomendaram que a aluna pesquisasse sobre a composição e procurasse assistir alguns vídeos da cantora, para compreender o sentido e o papel daquela música contra o racismo. O compositor da canção, Macau, afirmou que a música foi um “desabafo” depois de ter enfrentado uma situação traumatizante de racismo no início dos anos 70: “Eu comecei a olhar o mar e veio, de uma forma única, o texto de Olhos coloridos. Eu comecei a chorar, veio na minha mente todo esse texto. Eu corri para casa, peguei o violão e comecei a tocar a canção”. As bolsistas também deixaram claro para a aluna que a escolha de cantar era dela, que não haveria problema caso ela não se sentisse à vontade para interpretar a música naquele momento.
Após as explicações e muitas conversas, a aluna foi se mostrando cada vez menos resistente, e compreendeu o papel de pertencimento do termo “sarará crioulo”. A estudante apresentou a música para a comunidade escolar e relatou estar muito orgulhosa de estar
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dando voz a tal mensagem.
As bolsistas consideraram esta experiência como inesperada e incomum. Poucos estudantes de licenciatura imaginam que irão lidar com situações parecidas antes de entrar em contato com a prática educacional. Estudantes de música e bolsistas do PIBID enxergam a música como patrimônio cultural, como algo que dá sentido e mobiliza identidades. A música, vem sendo, há anos, uma forma de expressão, ou como diz o compositor Macau, um “desabafo” das minorias.
* Este artigo foi apresentado em formato de pôster no XVII Encontro Regional Sul da ABEM [Associação Brasileira de Educação Musical], Curitiba, 13 a 15 de outubro de 2016
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As Vozes das Cantoras na era do Rรกdio Yara Teles
Imagem: https://papodehomem.com.br/como-transformar-um-radio-antigo-num-mini-amplificador-de-guitarra/
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Quando se faz menção à Era de Ouro do rádio brasileiro, logo vêm à mente as famosas rainhas do rádio: cantoras consagradas que fizeram carreira inicialmente neste meio de comunicação. Dalva de Oliveira, Aracy de Almeida e Emilinha Borba são alguns dos mais renomados exemplos desta virtuosidade vocal, característico de sua época. Os [r] “rolados”, glissandos e vibratos líricos, grande extensão vocal, dicção exagerada e clara... Um estilo clássico, popular, que conquistou audiência e marcou as transmissões radiofônicas. E para entender este fenômeno musical, bem como sua contribuição histórica para a música popular brasileira, é preciso fazer um resgate histórico, uma análise minuciosa dos aspectos estilísticos, sociais e culturais que tiveram início a partir do começo do século XX. Programas musicais e os cantores de rádio Acredita-se que o canto popularizado, que está em questão neste mote, voltado às massas através dos programas musicais das rádios no começo do século XX, tenha origem no século XIX. Seu fácil consumo, midiatização e mercantilização são explicados pelo seu propósito, que é a obtenção de audiência e preferência popular. No entanto, mesmo esta música sofrendo a influência mercadológica, ela possui outros aspectos históricos, sociológicos e culturais que a constituem, sendo seu resultado peculiarmente característico de sua época. Os programas musicais ganharam bastante na preferência popular nos anos 1930, e, logo depois, os primeiros cantores seriam contratados para apetecer o gosto do ouvinte. Inicialmente, somente os homens tinham destaque, pois as mulheres
ainda sofriam muito preconceito neste meio. Orlando Silva, conhecido como “O cantor das multidões”, trazia sua grande extensão vocal, com vibratos moderados, um canto empostado e boa articulação rítmica. Tinha caráter dramático em sua interpretação por excelência, e foi o maior representante masculino de seu estilo vocal. Então, após o sucesso de Carmem Miranda, com as cantoras sendo cada vez mais evocadas nas rádios, as primeiras intérpretes foram contratadas. Aracy de Almeida, Emilinha Borba e Dalva de Oliveira representam bem este início, com o estilo vocal se assemelhando ao dos cantores masculinos. Os cantores evocavam o canto lírico em consonância ao popular e adaptado ao microfone elétrico - muito sensível naquele momento; isso então pedia que o seu canto fosse suavizado, sutil, quase falado, para que se tornasse claro ao ouvinte. Modo erudito de canto Para melhor elucidar o estilo vocal aqui apresentado, é preciso um aporte histórico de sua origem: o modo erudito de canto, ligado à tradição europeia, ao virtuosismo vocal, canções entoadas, e vibratos. Seu início está ligado às modinhas brasileiras, adaptações de canções líricas portuguesas, interpretadas por castrati trazidos por D. João VI ao país; estes cantores davam um tom mais leve e ágil às canções. Mais tarde, a liberdade rítmica do lundu influenciaria a modinha, trazendo um contorno recitativo. Os cantores do teatro de revista do início do século XX utilizavam o modo erudito (com certas adaptações do popular) para uma maior projeção vocal, já que nesta época ainda não existiam meios artificiais de captação
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do som. Variavam da ressonância de cabeça para o peito, de forma a alcançar o público, e isto se dava muitas vezes de forma intuitiva e imitativa, já que os estudos formais de canto costumavam ser muito onerosos. Outra grande influência advém do fraseado do Jazz, que trouxe um contorno dramático com tonalidade mais grave ao canto popular, reforçando o modo erudito; referenciando o modelo francês do teatro de revista. O canto lírico permite que o texto tenha mais eloquência, além de imprimir um aspecto divino ao intérprete: a transcendência da voz de forma precisa, uniforme, impecável, dando um status sublime e carismático ao cantor. Este modo vocal favorecia os artistas que precisavam usar o microfone, que ainda era muito sensível; pois o erudito reforçava a clareza na captação do microfone, pela concordância com o modelo fonético da língua brasileira, seus acentos e características. A articulação italiana era considerada um bom modelo de dicção, com pronúncia clara e acentuação nas vogais. Glissandos e vibratos adaptados do canto lírico eram um grande recurso, além dos [r] rolados, advindos da pronúncia italiana, considerado um bom modelo de dicção. Rainhas do Rádio Carmen Miranda literalmente abriu alas para as cantoras brasileiras, e seu sucesso fez com que as cantoras ganhassem espaço nas rádios e na mídia. Desta forma, grandes nomes caíram no gosto popular, como Aracy de Almeida, Isaurinha Garcia, Emilinha Borba, Marlene e Dalva de Oliveira. As rádios promoveram então concursos para Rainha do Rádio, objetivando a
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venda de revistas e discos dos artistas. Era a época também dos programas de auditório, onde o público tinha um contato direto com seus cantores e programas favoritos. Destaque para Curiosidades Musicais (1938), de Almirante, e Um Milhão de Melodias (1943), de Radamés Gnattali. Aracy de Almeida foi grande amiga e intérprete das canções de Noel Rosa. Começou a carreira interpretando sambas e músicas carnavalescas, sendo apelidada por César Ladeira como “o samba em pessoa”. Tinha um canto interpretativo, inspirado nas cantoras do teatro de revista, melancólico e inflexivo característico do samba canção. Isto é bem elucidado no trecho da canção Cabrocha Bonita, de Lamartine Babo: Dalva de Oliveira representa bem a construção midiática do artista de rádio. Sua vida foi explorada pelas revistas, que espalhavam boatos sobre seus divórcios, a relação com os
popular, foi solicitada a dublar a voz e as canções do filme Branca de Neve e os Sete Anões, em 1938. Dalva possuía a dramaticidade das cantoras de sua época, como observado em Bandeira Branca, composta pela dupla Max Nunes e Laércio Alves:
“...Saudadí, ma[l] dí amo[r], dí amo[r]! Saudadí, do[r] que dói dímaaais! Vem, meu amo[r], bandeira branca eu peço paa-az.” (Dalva de Oliveira, 1970)
“Cab[r]ocha bonita, nascida na [r] oça, tem aroo-maa! Quando vem da igreja, lá da Freguesia Traz no olha[r] feitiçari-aa! ” (Aracy de Almeida, 1958) filhos e sua postura social. Devido ao seu virtuosismo vocal e carisma, sua carreira nunca foi abalada e seguiu em sucesso estrondoso. Começou artisticamente no Trio de Ouro em 1935, e com sua separação de Herivelto em 1947, começou a cantar sozinha a partir daí. Reconhecida como ícone
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O [r] vibrante marcando o tempo, pronunciado rolado, comum no meio de comunicação vigente, é uma das maiores características de Dalva. Soprano, possuía o virtuosismo para o canto lírico, como se pode ouvir nos registros de sua interpretação para Ave Maria, de Schubert, num antigo programa de auditório de Flávio Cavalcanti. Legado A era de Ouro do Rádio brasileiro deixou uma grande marca histórica na música brasileira. Foi a base para diversas formas de canto, popularizou a música, além de apontar a MPB como elemento construtor da identidade nacional como a que temos – ou vendemos para o exterior. Aquela época favoreceu o estudo aprofundado do canto e da estilização do canto popular, abrindo espaço para o surgimento de novos estilos e técnicas. Tudo isso foi possível graças ao grande facilitador tecnológico: o rádio. Perceber como a construção vocal foi feita, com suas bases históricas e sociais, é vital para se entender nosso canto brasileiro, mesclado e múltiplo – assim como nossa etnia e um ramo importante da cultura brasileira.
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Imagem: http://www.radioemrevista.com/wp-content/uploads/2015/04/download.jpg
Imagem: http://jornalggn.com.br/blog/laura-macedo/conversa-relampago-com-aracyde-almeida-por-laura-macedo
PARA SABER MAIS
ELME, M. Matias. As técnicas vocais no canto popular brasileiro: processos de aprendizagem informal e formalização do ensino. 2015. 269 páginas. Dissertação (Mestrado) – Universidade Estadual de Campinas, Instituto de Artes.
PINTO, T. dos Santos. Construção da identidade brasileira. Disponível em < http://mundoeducacao.bol.uol.com. br/historiadobrasil/a-identidade-nacaobrasileira.htm>.
Dalva De Oliveira – Bandeira Branca. Disponível em < https://youtu.be/ RQLhK7sLvzY >.
Aracy de Almeida – Minha Cabrocha. Disponível em < https://youtu.be/ j4NJgAHBl8A?t=5m37s>.
Yara Teles é estudante do curso de Música da PUCPR. Atualmente integra o Núcleo de Pesquisa e Prática em Canto da PUCPR.
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UMA
PROFESSORA ROCK Nâ&#x20AC;&#x2122;ROLL
Entrevista com Carol Massambani
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Numa sexta-feira de 2013, eu lia o Caderno G da Gazeta do Povo quando me deparei com uma roqueira que respondeu assim a uma pergunta sobre seus músicos prediletos: “Ultimamente, tenho gostado muito de Beethoven. Ele foi alguém que revolucionou não só a música, mas também o modo como os músicos viam e faziam música”. Tratava-se de uma entrevista com Carol Massambani, na época, estudante do curso de Licenciatura em Música da PUCPR. Me enchi de satisfação, porque a conclusão dela provavelmente tinha nascido durante minhas aulas de História da Música. Atualmente, Ana Carolina Massambani é professora de musicalização infantil na Escola de Música Alecrim Dourado e baixista de duas bandas de rock. Nessa conversa, ela conta sobre o modo como tem visto e tem feito música no palco e na sala de aula: Como era sua visão sobre música antes de cursar a Licenciatura em Música? Antes do curso, minha visão se limitava ao que estava no meu mundo musical: o que eu ouvia, o que minha família e amigos ouviam. Eu sabia da existência de vários outros mundos musicais, porém não tinha contato ou nunca me aprofundei neles. No curso, tive um contato mais profundo com esses outros mundos. Um exemplo foi a música erudita. Me descobri amante da música romântica (e não estou falando de Roberto Carlos ou Daniel, e sim de Beethoven!), me inspirei com as composições eruditas contemporâneas, além de conhecer mais a fundo gêneros musicais que eu nunca havia gostado e passei a respeitá-los. Enfim, me permiti ser sensibilizada e aprendi a sensibilizar com esses novos sons.
Quando se inscreveu no vestibular da PUCPR já pensava em se tornar educadora musical profissional? Eu sabia que estava me inscrevendo para um curso de Licenciatura e que ele me prepararia para ser professora, porém não tinha ainda me visto como educadora. Eu sabia que queria me aprofundar na música, sabia que queria ser uma baixista melhor e que o curso me daria as ferramentas para aprimorar minha habilidade no instrumento, ser professora seria consequência. O que aconteceu durante o curso foi que me apaixonei pela educação, especialmente pela educação musical infantil. Então, o que lhe impulsionou a trabalhar com educação musical? Antes de estudar música, me formei em Ciências Contábeis, mas eu sempre soube que não era isso que eu queria ser na vida. Uma sucessão de fatos acabou me levando para essa profissão, o que foi bom, já que me deu mais tempo e maturidade para entender realmente o que eu queria fazer. O curso de Licenciatura em Música foi um divisor de águas. Ali eu me encontrei. Como se uma chavezinha no meu cérebro tivesse virado e me acordado para o fato de que eu nasci para ser professora. Durante o curso entendi a real importância da educação musical e como ela pode mudar a vida das pessoas. Decidi que eu iria ensinar música e fazer minha parte para tentar melhorar o mundo.
O curso de contribuiu para banda?
Música também sua atuação na
Sou uma das idealizadoras, baixista
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e uma das compositoras da banda de rock autoral The Sharons com influência de diversas ramificações do rock e de outros gêneros, inclusive fazemos uma citação de Stravinsky em uma das músicas! Gravamos um álbum com 12 músicas chamado Soturna que em breve vai ser lançado [a banda é formada por Bruno Karam, guitarrista, Isabel Gabiatti, baterista, e Scheila Foltran, vocalista]. Minha vivência no curso foi muito importante para minha carreira musical. Além do aprofundamento em teoria musical, a expansão do meu repertório aumentou as influências que eu utilizo em minhas composições, as dinâmicas de conjunto, espetáculos musicais e trabalhos em grupos me ajudaram a aprofundar a habilidade de trabalhar em equipe. Aprender história da música foi crucial para entender como cada gênero evoluiu, o porquê das diversas formas de composição e as particularidades dos compositores. Isso influenciou muito meu fazer musical e minha forma de fruir, pensar, compor e ensinar música. Você já estava no palco, mas decidiu que queria ir para a sala de aula também. Por outro lado, eu sempre soube que ser contadora não era meu sonho, e quando descobri o que realmente queria, tracei os planos para a mudança de profissão. Meu primeiro objetivo foi entrar para o curso de Licenciatura em Música. Passei em vários vestibulares, porém o curso da PUCPR, por ser noturno, era o único que eu poderia fazer e o trabalho na contabilidade me permitiu financeiramente realizá-lo. Me dediquei e fiz o melhor que pude para extrair o máximo dos professores, além de aprender muito ao observar a forma de ensinar de cada um.
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Durante as aulas com a professora Ângela Sasse de metodologias do ensino da música, já no primeiro semestre do curso, me identifiquei com a musicalização infantil e passei a procurar mais sobre o assunto em livros, cursos e conversando com profissionais. Eu sempre passava na frente da escola de musicalização Alecrim Dourado e pensava: “Um dia vou trabalhar aí”. Quando tivemos a exigência de estágio, fui à escola e me ofereci como estagiária. Fui muito bem acolhida e passei a vivenciar na prática a musicalização infantil. Essa prática foi fundamental para que eu pudesse ter certeza de minha escolha. De acordo com o regulamento de estágio, eu não poderia permanecer no mesmo contexto por mais de um semestre, então fui fazer estágio como professora de violão na penitenciária feminina em Piraquara. Outra experiência gratificante que fez muita diferença na minha vida como profissional e pessoal. De contadora à professora música. Como foi essa transição?
de
A Alecrim Dourado depois de um tempo me fez uma oferta de trabalho, mas não pude aceitar na época, pois eu ainda não poderia sair do meu emprego como contadora, porém a proposta me deu ainda mais convicção de que a hora da mudança estava chegando. Quando me formei pude finalmente aceitar a oferta e realizar o desejo que eu tinha desde o começo da faculdade de fazer parte do quadro de professores da escola. Eu ainda passei quatro meses trabalhando como contadora em conjunto com as aulas da escola e finalmente em junho de 2016 pude me dedicar somente à música. Para isso tive o apoio incondicional do meu marido e da minha mãe que sempre me incentivaram.
Na escola dou aula para turmas de crianças entre 1 e 6 anos de idade e é extremamente gratificante ver a evolução dos pequenos. Posso comprovar na prática tudo o que aprendi na teoria e cada vez mais ver como a música é importante para a formação do ser humano. Não foi uma transição fácil, mas foi bem pensada e programada. Hoje vivo exclusivamente da música como professora e musicista, e posso dizer que sou uma pessoa realizada! Além disso, você toca numa banda formada só por mulheres. Sou baixista da banda TN/SHE, um tributo ao AC/DC composto por mulheres e o único do mundo a ter duas vocalistas que representam as duas fases da banda: com Bon Scott e com Brian Johnson. Também são integrantes da banda TN/SHE: Lely Quinn e Jordana Soletti nos vocais, Nayara Krug e Esprila nas guitarras, e Lucy Peart na bateria. Fazemos shows em bares de Curitiba, interior e outros estados como Santa Catarina e Goiás sempre com uma ótima aceitação, e esse 2017 esse leque de destinos será ampliado.
Mas também por sermos mulheres é que primamos tanto por qualidade, tanto musical como visual. Estudamos e ensaiamos muito, pensamos nos mínimos detalhes musicais e de presença de palco. Nosso show tem figurino, cenário, interatividade com o público... Sabendo que muitos vão nos ver, num primeiro momento, incrédulos (meninas tocando ACDC?), mas fazemos nosso melhor para surpreender nosso público. E tem dado certo! Temos ótima receptividade e temos fãs por todo o Brasil, inclusive em cidades em que nunca fomos, que nos acompanham pela internet. O mais legal é sentir o orgulho que muitas mulheres que assistem nosso show demonstram! Elas sempre dizem que representamos muito bem as mulheres rockeiras! Isso é maravilhoso!
Como é a recepção em Curitiba e nas viagens e shows Brasil afora a uma banda de rock pesado cujas integrantes são mulheres? Então, essa questão é muito curiosa. O que geralmente acontece quando tocamos em um lugar novo é que as pessoas nos olham com curiosidade e se surpreendem com o som. Ouvimos muitos elogios de pessoas surpresas com o peso da banda, como se por sermos mulheres, a música fosse mais suave! (risos)
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Essa ĂŠ
joni por Jorge Falcon
(Coordenador e Professor do Curso de Licenciatura em MĂşsica da PUCPR)
Joni Mitchell Vogue, February 1969 Photo Jack Robinson
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Quero falar sobre aquela que considero a maior artista e cantora com que tive oportunidade de me defrontar (bom, me defrontei com os vinis dela... embora ainda conserve a esperança de vê-la... mesmo que sem cantar). O nome artístico dela é Joni Mitchell. Roberta Joan Anderson nasceu em Alberta, Canadá, em 1943, numa cidadezinha de dois mil habitantes. Poderia escrever horas sobre ela, e explicar porquê, num mundo em que não faltam cantoras de qualidade, ela conserva para sempre a primeira posição no meu ranking.
Tremendamente criativa, ela é a artista plástica que concebeu e produziu as capas de quase todos seus álbuns. Também não é motivo suficiente. Ganhar pouco?
oito
Grammys?
Acha
Cada coisa dessas me faz respeitála. Mas a soma, que sempre é maior que as partes, faz que o primeiro lugar seja dela, desde que ouvi Blue, em 1980. Num mundo recheado de cantoras o 1o lugar é dela. 2o, 3o e 4o lugares estão vagos. Após isso vem uma legião com Madonnas, Elises e Anittas.
Em primeiro lugar, não é porque ela tem uma das vozes mais incríveis do mundo, com um alcance matador, porque compõe ainda melhor do que canta, com uma inventividade que faz que nenhuma estrofe seja igual à anterior, demonstrando criatividade e ousadia. Também não é porque toca o violão magnificamente, a ponto de ser escolhida como a 75º melhor guitarrista de todos os tempos pela revista norte-americana Rolling Stone, num mundo de fritadores (geralmente homens) desgovernados. Também nem é porque faz parte de uma geração incrível que gerou Woodstock, festival para o qual foi convidada mas não participou por motivos pessoais. O fato de escrever letras sensíveis, honestas, humanas, poeticamente e politicamente coerente, nuas mas profundamente devastadoras não a faz merecedora de tal lugar.
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Recomendo ouvir alguns dos
seus álbuns icônicos:
1- Blue (1971). Acústico, docemente triste, cruamente suave. Genialmente humano.
2 - The Hissing of Summer Lawns (1975). Ainda folk mas já com banda. A canção “The Jungle Line”, criada sobre uma base de tambores (The Drummers of Burundi) estava 30 anos a frente de todo mundo (Björk deve ter escutado muito isso quando criança)
3 - Don Juan’s Reckless Daugther (1977). Muito experimental, tem até um sambinha com pandeiro, com sotaque canadense, claro.
4 - Mingus (1979). Obra ímpar em que Joni mistura canções próprias com peças do jazzista Charles Mingus, a quem homenageia. A banda? Jaco Pastorius, Herbie Hancock, Peter Erskine, Wayne Shorter... quer mais?
"
Obrigado,
Joni.
Você ainda me emociona... a cada dia Jorge Falcon
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5 - Shadows and Lights (1980). Show ao vivo em vídeo, sem pósprodução, com Lyle Mays e Pat Metheny, mais Pastorius, Shorter e Don Alias. Recomendo ver a performance em The Dry Cleaner from Des Moines.
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A MĂ&#x161;SICA NO FILME DA SUA VIDA Daniel Benelli
Trainspott
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Imagem: https://omelete.uol.com.br/filmes/noticia/trainspotting-2-comeca-suas-filmagens/
potting
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No dia 3 de novembro de 2016, a Sony Pictures finalmente revelou o trailer oficial da tão esperada sequência para o início de 2017 de Trainspotting, filme absolutamente icônico da segunda metade dos anos 90, que marcou a vida de muitas pessoas, considerado ainda hoje um dos grandes retratos da juventude da época. Para além da discussão se esta sequência era necessária, se fez justiça ao filme original ou não, ou outro tema qualquer que possa gerar polêmica, o que realmente me golpeou os sentidos foi a música tema, “Born Slippy”, do Underworld, grupo britânico de progressive trance . “Nos primeiros acordes de Born Slippy, eu já chorei”, comentei com alguém. Ainda que isso seja apenas uma figura de linguagem e que eu não tenha realmente chorado, me sinto confortável para dizer que o gatilho emocional realmente aconteceu aos primeiros acordes, quando facilmente me transportei uma vez mais para aquela Glasgow suja e marginal, e à vida caótica e desesperançosa de Mark Renton, Rentboy para os íntimos, um viciado em heroína, capaz de disparar várias críticas à sociedade moderna e pôr em xeque o que realmente tem valor na vida. Isso soa um tanto perturbador, visto que tais reflexões partem de um junkie que a princípio não tem controle nenhum do rumo de sua vida, perdido e escravo de um vício terrível. Por outro lado, isso faz total sentido, talvez porque o fato de ele não ter nada a perder o faça perceber detalhes que pessoas com rotinas e vidas estabelecidas não percebam. Fato bastante curioso que acontece comigo, que acredito que possa acontecer também com outras pessoas é o poder de reminiscência que algumas obras literárias, ou audiovisuais, ou musicais possuem: o poder de me transportar para
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uma outra época da minha vida num piscar de olhos. Várias vezes já me peguei relendo um livro, e ao mesmo tempo em que folheava as páginas e entrava novamente no universo descrito no enredo, eu era assaltado por imagens, sentimentos, cheiros e lembranças nítidas de detalhes que me eram caros na primeira vez que li aquilo. E é essa uma sensação sui generis, tanto para o bem quanto para o mal, uma vez que podem ser lembranças boas ou más. Independente do que venha, me parece magnífico o poder da memória, pois todos tem um disco dos Beatles, um prelúdio de Debussy, um ensaio ou poema de Fernando Pessoa ou Shakespeare ou Nietzsche, ou um plano-sequência de Kubrick ou Fellini ou Lynch ou Jonze, ou quaisquer outros nomes. Aliás, os nomes não são importantes, o que importa são as obras que lhes são caras, que tem um poder reminiscente tão latente que quando se precisa de uma dose de melancolia ou nostalgia ou o que seja, é aquele fonte que se recorre. A partir de um prisma weberiano de desencantamento do mundo, me parece bastante evidente que um dos últimos grandes recantos onde a magia de fato reside nas vidas modernas é a arte, seja em suas formas mais complexas e apenas compreendidas por iniciados, ou mesmo em suas formas mais populares, em diferentes níveis e intensidades. Como qualquer pessoa que tenha nascido na era da internet e que teve desde muito cedo ao dispor um infinito repertório de cultura pop e que viu muita coisa dentro dessa perspectiva, entendo que nessa cultura há obras evidentemente muito rasas e descartáveis, que servem apenas como passatempo, as vezes nem isso, e no outro extremo, há obras por
vezes tão densas e complexas que se tornam intragáveis para outras pessoas. Há exemplos dessa dupla perspectiva em todas as expressões artísticas, sendo que em ambos os casos, há um público específico propenso a consumir. Mas existem alguns casos raros, que talvez sejam as obras que mais me agradam e me intrigam, que de certa forma, conseguem juntar os dois extremos, exprimindo o total poder contestatório, onírico e reflexivo que a boa arte deve ter, na maioria dos casos, ao mesmo tempo que conseguem atingir grandes públicos e cravar seu nome na cultura pop para sempre.
obras em si, e também da minha própria vida. E para você, quais músicas são um link com filmes que você ama e te levam para o passado? A partir dessa reflexão, me parece justo incluir mais um entre os tantos poderes metafísicos que a música tem e que nos faz amá-la tanto: esse novo poder seria a viagem no tempo. Daniel Benelli é estudante de música e apaixonado pelas mais diversas expressões artísticas, acredita na arte como um simulacro impreciso porém belo do que é a vida e os sentimentos, e acredita também que essa imprecisão a torna mais interessante, bela e inspiradora, afinal, de realidade já nos basta a rotina dos dias.
Falando de cinema, na minha humilde opinião, Trainspotting é exemplo disso, e não foge a uma regra que eu observo em todos os grandes filmes que conseguem essa façanha: sempre são acompanhados de músicas espetaculares, seja soundtrack ou score original. Essa relação entre a canção “Born Slippy” e o filme Trainspotting de forma geral, me fez saltar à memória vários outros exemplos de canções já existentes ou compostas especificamente para um obra fílmica, que sem fazer parte da trilha sonora original, conseguiram se fundir tão profundamente que acabam se tornando uma só coisa dentro da memória. Os exemplos são muitos: “Where is my Mind” dos Pixies, em Clube da Luta; “Mrs Robinson” de Simon & Garfunkel, em A Primeira Noite de um Homem; “Eye of the Tiger”, do Journey, em Rocky II; ”Don’t You (Forget About Me)” dos Simple Minds em O Clube dos Cinco; “Stayin’ Alive” dos Bee Gees em Embalos de Sábado a Noite, ... Todos eles me trazem memórias das
Imagem: http://www.adorocinema.com/filmes/filme-14788/
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A VOZ DO CORAÇÃO Joêzer Mendonça
Imagem: https://colorindonuvens.files.wordpress.com/2013/03/a-voz-do-corac3a7c3a3o-internato.jpg
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Meninos carentes e marginalizados, uma escola de música em ruínas, professores desmotivados, fracasso de público. Quem poderá salvar essa escola? Um professor obstinado e com uma técnica motivacional irresistível. No cinema, esse professor é muitas vezes retratado como um messias da educação, rejeitado, mas capaz de salvar a escola e a vida dos meninos. Esse é o argumento de filmes como Mr. Holland – Adorável Professor (1990), Música do Coração (1998) e de A Voz do Coração (2004), que apresentam um cenário semelhante de desordem escolar, problemas juvenis e a chegada de um professor de música. Em Mr. Holland, Richard Dreyfuss é um professor de música perfeccionista que leciona numa escola pública que lhe disponibiliza uma sala específica e instrumentos para os alunos – no Brasil, isso seria uma realidade bastante remota. Em Música do Coração, uma professora de violino consegue organizar uma pequena orquestra numa escola da periferia, a custo de muito suor e lágrimas. A grande atriz Meryl Streep evita a pieguice ao interpretar uma violinista teimosa e um tanto rude, o que a torna mais próxima de um ser humano comum, e não de uma figura messiânica. Até porque é muito difícil para alguém viver o tempo todo como aquele professor inspirado e inspirador de Sociedade dos Poetas Mortos. Aliás, os professores brilhantes que fazem alunos vencedores são um híbrido da nobreza de Sidney Poitier em Ao Mestre com Carinho, do autossacrifício de Conrack e da simpatia do prof. Freddy Shoop em Curso de Verão. Filmes americanos como esses têm a saudável virtude
de serem divertidos e emocionantes, mas a realidade indica que há um sistema inoperante que afasta os alunos da escola. Infelizmente, não é toda escola que pode “ensinar as alegrias da música”. Filmes franceses, como Quando Tudo Começa (1999) ou Entre os Muros da Escola (2009), mostram que o assunto Educação foi relegado a segundo plano mesmo nos países do chamado Primeiro Mundo. Mais problematizadores, esses dois filmes não resolvem as questões relacionadas à educação escolar no fim do filme. E é exatamente no francês A Voz do Coração que o professor Clement Mathieu irá mudar o caótico cenário que encontra na escola. Ali, a música alivia a brutalidade do cotidiano dos alunos, mas também acaba funcionando como a única saída para que eles superem um ambiente opressivo. A Voz do Coração é esquemático e um tanto sentimental como todo filme edificante. Mas as pequenas fragilidades são compensadas diante do seu retrato sincero da luta diária de profissionais da música envolvidos com crianças cuja saída (às vezes, a única) da situação em que se encontram está em fazer música, em tocar um instrumento numa orquestra ou banda, em cantar num coral. Para alguns estudantes, será suficiente tocar e entender música. E nisso não há nenhum demérito. Mas há situações, como em A Voz do Coração, ou como no filme brasileiro Orquestra dos Meninos, em que uma criança envolvida numa orquestra ou num coral pode estar começando a superar sua herança opressiva e a refazer sua história.
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RICHIE KOTZEN Rheydi Ã&#x2030;lisson
imagem: https://genius.com/Richie-kotzen-cannibals-lyrics
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Talento, bom gosto, genialidade e inovação são alguns dos adjetivos mais ouvidos sobre os trabalhos de Richie Kotzen. E o álbum Cannibals, o mais recente de sua carreira solo, também conta com essas qualidades. É um dos seus álbuns mais calmos e diversificados em relação aos anteriores. Cannibals é seu 20° trabalho de estúdio de sua carreira solo. Um álbum com menos guitarra e mais banda como um todo. Kotzen é quem faz também a bateria e o baixo nas gravações, que contam com participações nos vocais de Billy Sheehan e Doug Pinnick. O guitarrista com influências do rock, soul e blues conduz esse trabalho desde o funk até uma certa nostalgia do rock dos anos 80. Músicas como “Cannibals” e “Come on free” têm um baixo muito bem trabalhado, com frases marcantes, uma pegada forte e dançante, e até um solo cheio de técnica preenche a música. Em “Come on free”, pode-se ouvir até um “uh tererê” no final, áudio gravado descontraidamente enquanto amigos brasileiros visitavam sua casa. Faixas como “Shake it off” apresentam bons grooves, típicos do guitarrista, e ainda a faixa “You”, uma música baseada em uma composição que sua filha August deixou incompleta por volta dos 13 anos de idade. Cannibals é o oposto do trabalho que Kotzen tem feito paralelamente no Winery Dogs, um power trio que também conta com Billy Sheehan e Mike Portnoy, e foi o trabalho que rendeu o 27º lugar na lista Top 200 da Billboard. Kotzen vem se destacando desde seus 16 anos pelo seu virtuosismo. Felizmente, deixou para trás a “fritação”, que é aquele virtuosismo exagerado, notas atrás de notas, muita técnica, velocidade, mas pouca melodia, onde vários outros guitarristas se perderam soando
cansativos e repetitivos. No segundo álbum, em 1990, Fever Dream, Kotzen já se demonstrava um músico mais maduro e melodioso, com um ritmo mais swingado e composições mais refinadas. Kotzen fez parcerias com gente da estirpe de Stanley Clarke e Greg Howe, e hoje é visto como um dos melhores músicos da guitarra-fusion, estilo vindo da mistura de jazz com outros estilos, como rock, funk e rhythm and blues. É difícil comparar Kotzen com outros artistas, pela sua originalidade e criatividade, mas seus vocais lembram até certo ponto os de Chris Cornell (o próprio Kotzen já admitiu essa comparação), e sua identidade como guitarrista é comparada a nomes conhecidos como Frank Gambale, Scott Henderson e Guthrie Govan. Vale a pena conhecer outros trabalhos de Kotzen, como Mother’s Head Family Reunion, Bi-Polar Blues e Get Up, que destacam a versatilidade e o virtuosismo dosado em função da música e não do exibicionismo.
Rheydi Élisson é estudante do curso de Música da PUCPR. É músico profissional desde os 15 anos. Amante de história e filosofia, se vira nas seis cordas como professor, compositor, guitarrista, baterista, baixista e vocalista. Atualmente é guitarrista/ vocalista das bandas de hard rock Super Grind e Motor Crüe.
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COMO A MÚSICA FICOU GRÁTIS
Joêzer Mendonça
imagem: http://www.aescotilha.com.br/musica/caixa-acustica/como-musica-ficou-gratis/
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Em meados da década de 1990, o empresário Ricky Adar andava com uma ideia fixa na cabeça: a criação de uma jukebox digital, de onde todos poderiam baixar música pela internet e abandonar os CDs. Ele foi então até a Alemanha, onde desde os anos 80 o Instituto Fraunhofer trabalhava num projeto de compressão de áudio chamado mp3. Ao perceber a fidelidade com que o mp3 reproduzia música de CD e que um álbum inteiro usava apenas o espaço de 40 megabytes, Adar declarou ao líder da equipe de pesquisadores, Karlheinz Brandenburg: “Você tem noção do que fez? Você matou a indústria fonográfica!” Esse relato foi obtido pelo jornalista Stephen Witt, que após centenas de horas de entrevistas e investigação minuciosa, construiu uma narrativa empolgante que vai dos institutos de pesquisa às gravadoras e aos porões da pirataria fonográfica. Ele conta como a música paga ficou grátis no momento em que entrou nos computadores pessoais. A história começa com o processo de criação do mp3, passa pelo executivo mais poderoso da indústria fonográfica mundial e se mistura à vida de um funcionário de uma fábrica de CDs que vazou dois mil álbuns em dez anos. Isso envolve a história secreta da pirataria, os bastidores das gravadoras bilionárias e o modo como a novidade digital favoreceu o surgimento de novas relações do ouvinte com a música, do músico com os executivos e dos executivos com o mundo da ilegalidade. Witt também apanha o ceticismo dos executivos quanto ao novo mundo tecnológico e comercial que desabrochava diante deles. Numa exposição de produtos de computação e tecnologia musical realizada em Paris, um executivo da Philips disse: “Nunca haverá um player de mp3
que possa ser comercializado”. Hoje nós sabemos que até o tocador de mp3 veio, foi comercializado e se foi. Para os ouvintes que estão no século 21 vivenciando o admirável mundo tecnomusical, não parece haver fronteiras. Para os executivos, é terrível constatar que as regras do jogo e o lucro obtido nesse mercado se modificaram tanto e tão rapidamente. De repente, toda uma geração passou a cometer o mesmo crime. Essa foi a percepção de investigadores policiais e executivos de gravadoras depois que milhões de pessoas migraram sem volta para o mundo do compartilhamento virtual de música. A pirataria não nasceu digital. Ela tem um ancestral analógico, a fita cassete: capaz de copiar álbuns inteiros diretamente da vitrola, a fita K-7 facilitou a audição de sucessos em fones de ouvido e por outro lado favoreceu o comércio informal e ilegal de venda de música. O processo era lento demais - a cópia de um disco de vinil levava o tempo de audição do álbum inteiro - e o resultado sonoro estava bem abaixo da qualidade do som original. A idade da pedra lascada da pirataria musical deu um salto evolutivo para a modernidade com a possibilidade da conversão digital do som analógico. Surgiram os aparelhos de reprodução sonora, depois o mp3, o HD, o iPod, e então o streaming e a venda legalizada de músicas pelas megacompanhias detentoras dos direitos sobre a comercialização de músicas. A leitura deste livro nos proporciona saber que a vitória do mp3 sobre o mp2 foi um lance de sorte de seus inventores, uma equipe de cientistas de técnica notável mas cujo apelo de marketing era um fracasso; que
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um grupo de jovens que passava noites em claro copiando CDs e os distribuindo nos subterrâneos da web representava o maior desafio a uma indústria gigantesca que precisou da mão do Estado para conter os nerds dos anos 1990; que, de uma para outra, todas as músicas gravadas do planeta estavam ao alcance de um clique e todos os nossos downloads são questionáveis. Embora o livro revele como a pressão das gravadoras e dos grandes varejistas influiu decisivamente na entrada do FBI e da Interpol na caça aos sites de conteúdo e compartilhamento de música, Stephen Witt não avança no mérito da discussão ética envolvida nos downloads individuais de música. Se alguém estava roubando os CDs para compartilhá-los até antes do lançamento oficial do álbum, de fato, houve crime e os indivíduos estão compartilhando o produto de um roubo. Mas, e se alguém comprou o CD (ou se comprou o LP há muitos anos), e resolve compartilhá-los com mais pessoas interessadas, de que forma isso configura crime? Os avisos nos encartes proibindo a transmissão pública ou o compartilhamento não seriam medidas abusivas e protecionistas por parte das gravadoras? O objetivo do livro, que é relatar o processo que levou a música paga a virar artigo grátis, é cumprido com todos os méritos. Se o debate não é aprofundado, o próprio leitor pode fazer suas análises e ainda se divertir com histórias saborosas dos bastidores de uma indústria musical desesperada, com a incrível falta de ambição comercial dos inventores do mp3 que quase levou seu projeto a ser ignorado, com as tentativas de Steve Jobs de convencer a Universal Music a embarcar na sua ideia da iTunes Store e, não menos importante, com as histórias das pessoas comuns
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diretamente envolvidas na mudança de status da música em nosso tempo.
Para ler mais: Como a Música Ficou Grátis, de Stephen Witt (Editora Intrínseca)
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