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Tulabogbé les Première Incantations - Benim, 2013 Artista: Azèbaba | Técnica: Pintura à óleo | Dimensões: 165cm x 150cm
"Um rio não pode ir fazer guerra a outro rio." (Odi Meyi, Nei Lopes)
"A surpresa para os colonialistas e a felicidade para nós é que, quando nós chegamos ao território dos indígenas, encontramos modos parecidos com os nossos. Encontramos relações com a natureza parecidas com as nossas. Houve uma grande confluência nos modos e nos pensamentos. E isso nos fortaleceu. E aí fizemos uma grande aliança cosmológica, mesmo falando línguas diferentes. Pelos nossos modos, a gente se entendeu." (Mestre Nego Bispo)
2 • Revista ODÙ - 1ª Edição
ODÙ Contracolonialidade e Oralitura
Apoio Financeiro:
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EXPEDIENTE COORDENAÇÃO JADE ALCÂNTARA LÔBO CONSELHO EDITORIAL CILENE PEREIRA DE ANDRADE (Cicí Andrade) CLARICE LIS MARCON CLEONILSON DOS SANTOS PEREIRA FÁBIO ALEX FERREIRA DA SILVA JADE ALCÂNTARA LÔBO LUIZ CARLOS SILVA DOS SANTOS JUNIOR PRODUÇÃO CLARICE LIS MARCON FÁBIO ALEX FERREIRA DA SILVA ASSESSORIA DE CONTEÚDO ANTÔNIO BISPO DOS SANTOS (Mestre Nego Bispo) DIAGRAMAÇÃO E IDENTIDADE VISUAL AMANDA NASCIMENTO - ATELIER LIBÉLULA REVISÃO TÉCNICA ROGÉRIO MODESTO CAPA1 ARTUR SOARES
Contato: revistaodu@gmail.com @revistaodu
2 • Revista ODÙ - 1ª Edição
COLABORADORES Any Manuela Freitas/Arnaldo de Lima - Mestre Naldinho/AZÈBABA/Cacica Valdelice/Célia Tupinambá/Cobra Mansa/Deborah Santos Martins/Edna Maria Santana - Mãe Edinha/ Fernanda Nascimento/Gleicy Ellen Oliveira/ Grupo Mipây’ré’pâx Suniatá’xó/ Ismael Silva/ Itocovouty Galache Melo/Iyalorixá Marlene de Nanã/Joana Angélica Moreira/Luana Cardoso Fonseca/Luana Gonçalves/ Maine Jesus/ Mameto Ilza Mukalê/Mariana Cruz A. Lima/Mateus Aleluia/Max Fonseca/Nego Bispo/ Rainha Belinha/Rosildo do Rosário/ Rutian Pataxó/Seu Badu/Tianalva Silva/ Tiganá Santana/Vovó Cicí/Zelinda Barros ¹ A obra da capa foi feita sobre uma pedra sedimentar do tipo argilito, também conhecida como ardósia da Chapada Diamantina. Usando a técnica da gravação em baixo relevo policromado. A pintura foi feita com outras pedras do tipo hematita (pedra de sangue) e ocre de óxido de ferro, coletadas na beira do rio. O artista Artur Soares é descendente de gravadores de pedra da Chapada e atualmente está escrevendo sua dissertação de Mestrado na UFBA usando essas pedras como objeto de sua pesquisa.
Editorial
Revista Odù: Contracolonialidade e Oralitura
Ago, Mokuiu, Motumbá, Kolofé, a benção às mais velhas, às iguais e às mais novas
Laroie, Bandagira, Saravá, Mojubá pedimos licença para confluir e compartilhar nosso propósito.
A palavra Odù faz referência aos 16 signos de Ifá, o deus do conhecimento, precursor das artes, das palavras e da oralidade. Presente neste mundo para nos elucidar, ele nos auxilia em nossa jornada no ayé (a terra). Os Odùs são os mensageiros e guerreiros de seus conhecimentos e agregam todo o saber existente nessa terra decifrando passado, presente e futuro. Por isso, seguindo esses saberes, nossa revista ouve essas poesias primordiais da ancestralidade, confluindo-as com a experiência afroindígena na diáspora e projetando as oralidades como as raízes que se fundem em rizomas, criando redes entre os povos contra-coloniais, confluindo as suas histórias de luta, de resistência e de beleza. Oralitura é um termo emprestado da Leda Maria Martins, poeta, pensadora e tradutora de linguagens que transita entre a teoria e a poesia; o reinado e a academia; o texto e a performance. Como rainha do reinado do Rosário do Jatobá, propôs o conceito de Oralitura para nos dar outras chaves e epistemologias possíveis a fim de pensarmos sobre as performances negras, nosso registro oral, práticas, fazeres. Nós compreendemos que essa forma de interpretar as diferentes experiências narrativas e literárias dos corpos negros também se integra às experiências, corporeidades, saberes, fazeres e performances indígenas. A Oralitura caminha de mãos dadas com a Contracolonização, nos ensinada por Mestre Nego Bispo, co-editor desta revista. Esse movimento se constitui como um “processo de enfrentamento entre povos, raças e etnias em confronto direto no mesmo espaço físico geográfico”. Assim, a luta contra as desigualdades perpetuadas pelo colonialismo nos permite reeditar nossas histórias, a partir do envolvimento entre povos, da biointeração, do politeísmo, dos saberes orgânicos de nossas/os mais velhas/os e da cosmopolítica dos povos contra os colonizadores, afropindorâmicos, negros e indígenas. A Nossa perspectiva editorial aborda as confluências, possibilidades e porvires da literatura a partir dos conhecimentos que emergem nos fazeres e saberes de mestras/es afrodiaspóricos e indígenas. A manifestação desses saberes, em diferentes localidades, confluem em seus modos de existir e resistir contra-colonialistas, nos ensinando diferentes alternativas a antigos problemas que perduram até hoje. Convidamos a todes para se somarem a essa confluência de saberes por meio das entrevistas, poesias, imagens e narrativas desses coletivos que trazemos aqui. Toda a produção da Revista Odù é ao lado desses mestres e mestras dos saberes negros/as e indígenas. Esta revista será distribuída em aldeias, quilombos, terreiros e escolas públicas e escolas próprias, tecendo uma rede de povos do circuito aldeia-quilombo-favela. Vivas! Conselho Editorial
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SUMÁRIO 16 Odùs – Os guerreiros de Ifá
6
O Manto Tupinambá
8
Cultivar liberdade tecendo autonomia: a experiência da Teia dos Povos
16
Clarice Lis Marcon
Célia Tupinambá
Mariana Cruz A. Lima
Das tábuas do charuto ao reconhecimento como Patrimônio da Humanidade: O Samba de Roda da doutora do Samba, Dalva Damiana
22
Um vento, o tempo e a força do infinito
24
Eu sou porque nós somos: a nossa dança é a história de muitas mulheres
28
Retomadas Tupinambás: Uma história de resistência
30
Eu Sou Cabocla do Reinado de Angola
34
Nego Azul
38
Afroconfluenciando
39
O Homem da Coroa do Capim Dourado
40
Cosmoangola e a ginga na linha da Kalunga: uma reflexão a partir dum bate-papo entre Mestre Cobra Mansa e Mestre Nego Bispo
41
A arte de prevenir o mal, com Mestre Badu
44
Mulheres Pataxó: Histórias de luta e Resiliência
48
Any Manuela Freitas
Mãe Edinha de Oxum
Gleicy Ellen Oliveira
Cleonilson dos Santos Pereira e Jade Alcântara Lôbo
Mameto Ilza Mukalê
Obra de Maine Jesus
Poema de Mestre Nego Bispo
Obra de Artur Soares
Cicí Andrade
Luana Gonçalves
Rutian Pataxó
4 • Revista ODÙ - 1ª Edição
Seo Mateus Aleluia, o Afrobarroco
52
Obara-Mêji
82
Nós somos Afrobarroco
53
Oxe-Mêji
84
A mão Negra na Carne Ausência
59
Tchê/Oxe
85
A oralitura das manifestações contracoloniais
86
A Colcha de Retalhos da Memória e a Comida Afetiva de Dona Angélica
60
88
64
Egidia Trajano da Silva Memória-viva do Nosso Povo Pataxó Hã-Hã-Hãe
Cozinha Anticolonial Pataxó Luz sobre Fá
66
Grande alma da floresta
89
O Quilombo e os Deuses: Cânticos, Patuás e lutas da comunidade quilombola de Custanera
70
União: uma palavra forte
91
Migrantes
94
Chegança dos Marujos Fragata Brasileira um barco feito de canto
74
Quero ser ouvida
98
Retratos Do Cotidiano Quilombola
78
Negra Índia
81
Obra de Artur Soares
Mateus Aleluia
Poema de Tiganá Santana
Jade Alcântara Lôbo
Deborah Santos Martins
Azèbaba
Arnaldo de Lima
Vovó Cicí
Obra de Azèbaba
Fábio Alex Ferreira da Silva e Jade Alcântara Lôbo
Itocovouty Galache Melo
Obra de Artur Soares
Iyalorixá Marlene de Nanã
Tianalva Silva
Rosildo do Rosário
Luana Cardoso Fonseca
Mipây’ré’pâx Suniatá’xó
Vovó Cicí
Fernanda Nascimento
Obras do Sumário “Oxotocanxoxo”, (Díptico) 2019 - grafite, nanquim e acrilica sobre papel. Artista: Max Fonseca
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16 Odùs
Os guerreiros de Ifá Ifá é uma divindade de origem yorubana, que se desdobra em um sistema divinatório de múltiplas faces estabelecendo-se na Nigéria, no Benin, no Togo e na diáspora ao longo dos últimos séculos. Ifá representa o conhecimento, a arte, a sabedoria, a cura e a elucidação dos nossos problemas no Ayé (terra). Ele assume a forma de signos binários impressos em um sistema divinatório que pretende trazer ao mundo “de cá” mensagens para quem o consulta: ele é capaz de prever o futuro e mostrar passado e presente, e, a partir das suas combinações possíveis, o Bokonon/Babalawo – ou o sacerdote que conhece a leitura de Ifá – canta os versos presentes em seus 16 principais Odùs, que se desdobram num total de 256 – seu corpus de poesia. Seus versos são denominados ẹsẹ Ifá que remetem aos conhecimentos Yorubá e a uma vasta gama de informações históricas, conhecimentos tradicionais, cosmovisões, além de novas temáticas contemporâneas, uma verdadeira enciclopédia de conhecimento. Tudo do nosso mundo está presente nesse corpus, não há nada nem no passado, nem no futuro que não possa ser visitado pelos Odùs (ou que já não tenha sido). Ifá se apresenta como um sistema pragmático de conhecimento e conexão e traça um diálogo entre os mundos visível e invisível. Ele é a ponte. E seus Odùs são os guardiões de seus saberes, de suas poesias ancestrais que nos mostram todos os caminhos percorridos e a percorrer. Ifá se expande na complexidade de seu corpus em seus Odùs poéticos e garante sua existência como divindade, como técnica e tecnologia, como oráculo, como artista, griô e filósofo, como mensageiro do mundo dos Deuses e como formas de saber e fazer. Ele representa a epistemologia, ele representa o conhecimento em si. Para compreender Ifá e seus Odùs é necessário ir muito além do olhar acadêmico, antropológico e etnográfico, é também preciso compreendê-lo sob o prisma das filosofias, das religiões, das cosmopolíticas, das produções de conhecimento, da valorização e manutenção dos saberes e da sobrevivência através das artes e performances.
¹ Sobre Ifá e os Odùs consultamos obras de referência, como os livros de Wande Abimbola, Ifá Divination Poetry, Nei Lopes, Ifá Lucumi, Agenor Miranda Rocha, Caminhos de Odù e Luis Nicolau Parés, O Rei, o Pai e a Morte.
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Ilustração Fábio Alex (2021)
Associado à divindade de Orunmilá, Ifá deve ser das divindades mais antigas do panteão yorubano. Ele ocupa na mitologia, o papel do mensageiro de Orunmilá, o criador, tomando a via pela qual Exu passa primeiro e trazendo ao nosso mundo suas poesias de cura, elucidação e conhecimento. É nesta troca entre mundos que se constitui toda e qualquer palavra, arte ou performance. E é nesta troca que nos baseamos para criar aqui o nosso corpus de poesia. Para nós da Revista Odù, a poesia oral contida nesses versos representa os diversos saberes que queremos trazer aqui. A capacidade de sobrevivência destes saberes e as mensagens contidas em cada Odù são parte de um sistema complexo de conhecimento que permanece entre nós, fundindo-nos às nossas contradições e transformações e que guerreia, se expandindo no mundo atual. Fruto dos conhecimentos dos ancestrais, esse saber não se limita ao passado e se projeta no nosso futuro, forte entre as poesias que circulam entre mundos, dando-nos ferramentas para seguir seja qual for a situação. Nesta edição traremos alguns Odùs a partir do conhecimento de mestres e sacerdotes que nos auxiliam nesta jornada em busca do conhecimento. Azèbaba, o rei dos feiticeiros, artista beninense nos traz o quarto Odù, Di-Mêji, contando-nos o nascimento de Ifá a partir de sua tela e sua entrevista. A célebre griô Ebomi Cici, nos traz dois Itãns sobre Obara-Mêji e Oxe-Mêji, que nos ensinam o valor de respeitar nossos mais velhos e suas sabedorias ancestrais que permanecem como nossos alicerces nos dias de hoje. Boa leitura!
por Clarice Lis Marcon
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O MANTO TUPINAMBÁ por Célia Tupinambá¹ Edição: Fábio Ferreira da Silva, Daniela Fernandes Alarcon
E
Meu filho Ory também é responsável pelo manto. É ele quem cata no terreiro as penas dos gansos e me dá, dos patos, e traz para eu fazer o manto e me enche de pergunta. Ele tem pergunta cabulosa, que mexe com a mente da gente, que a gente nem sabe como. Ele vem com a inspiração, traz uma pena, quer saber a história do manto, quer saber como foi o manto, onde está o manto, porque carregou o manto e quem tem que vestir o manto. Ele pergunta muito. A gente tem a nossa curiosidade, mas ele impulsa a gente a buscar mais ainda.
u adoro palavras, letras, papéis, livros, revistas, gibis – isso é um mundo muito rico. Eu sou professora na minha comunidade. Agora, nesta pandemia, eu estou mais agricultora, porque estou trabalhando na roça com a minha mãe e estou aprendendo muito mais, porque agora eu sou aluna, ouvinte, então eu estou aprendendo com os mestres, minha mãe (Maria da Glória de Jesus), meu pai (Seu Lírio - Rosemiro Ferreira da Silva, pajé da aldeia), eles são os mestres. Eles sabem lidar com a terra, com a quadra da lua, com diversos sentidos que a gente não tem e a gente só vai aprender indo para a prática.
¹ Glicéria Jésus da Silva, mais conhecida como Célia Tupinambá, é da aldeia Serra do Padeiro, localizada na Terra Indígena Tupinambá de Olivença, no sul do Estado da Bahia. Atualmente com 38 anos, ela participa intensamente da vida política e religiosa dos Tupinambá, envolvendo-se, sobretudo, em questões relacionadas à educação, à organização produtiva da aldeia, a serviços sociais e aos direitos das mulheres. Atualmente, é professora no Colégio Estadual Indígena Tupinambá Serra do Padeiro (CEITSP) e cursa a Licenciatura Intercultural Indígena junto ao Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia da Bahia (IFBA). Foi também presidente da Associação dos Índios Tupinambá da Serra do Padeiro (AITSP), sendo responsável pela aprovação e gestão de projetos voltados ao fortalecimento da aldeia. Atuou na Articulação dos Povos e Organizações Indígenas do Nordeste, Minas Gerais e Espírito Santo (Apoinme) e foi membro da Comissão Nacional de Política Indigenista (CNPI). Além disso, representa seu povo junto à Entidade das Nações Unidas para a Igualdade de Gênero e o Empoderamento das Mulheres (ONU Mulheres). Realizou, em 2015, o documentário “Voz das Mulheres Indígenas” (17 min.) que reúne depoimentos de mulheres indígenas da Bahia, Pernambuco, Rio Grande do Norte e Alagoas acerca de suas trajetórias no movimento indígena. [Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=MLSs_5elMqk]. Desde então, continua trabalhando na área audiovisual, realizando vídeos junto com o grupo jovem da comunidade. Em 2010, após uma audiência em Brasília, em que denunciou ações violentas da Polícia Federal contra seu povo, foi presa, junto a seu bebê de colo, episódio que suscitou veementes críticas de entidades do Brasil e exterior. Em razão disso, passou a ser assistida pelo Programa de Proteção aos Defensores dos Direitos Humanos da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República.
8 • Revista ODÙ - 1ª Edição
O manto, para mim, foi uma coisa inédita. Eu já vinha tentando fazê-lo havia um tempo. Teve um primeiro esboço, que foi em 2006, 2007, que ficou na exposição Os primeiros brasileiros, organizada por João Pacheco de Oliveira. Isso foi um marco para a luta de resistência, de demarcação do território e revitalização e fortalecimento da cultura, mostrando o nosso interesse pela retomada da nossa identidade. Isso nos fortalece. Buscar por onde estavam os nossos resquícios foi um desafio. A gente conseguiu fazer o primeiro esboço, fazer uma exposição, mas ainda não fiquei satisfeita, não era o ideal. Para fazer o manto, teria que ter toda uma base, e eu não tinha essa base, tinha e não tinha. Eu tinha o apoio, num primeiro momento, do meu pai, então eu conversava com ele, perguntava, falava com ele e ele dava as dicas. Em cima das dicas dele, eu tentava reproduzir.
dedo, se desmanchava tudo. Você pensar que ele está em um lugar que passa por várias portas, crachá, autorização, lista, vistoria para chegar até ele e, quando você chega, é aquele castelo de areia, que a onda passa e desfaz, o vento leva, e ele está lá, protegido, com um cuidado especial só para ele.
“O que eu acho mais interessante é o que ele queria me dizer. Ele guardava nele uma vontade de falar.”
Quando eu tive a oportunidade de viajar, ir para a França conhecer o manto pessoalmente, foi incrível. O manto estava em um forte, tão protegido! Uma coisa tão leve, tão sensível, que, se estalasse um Foto: Célia Tupinambá Realizadas e cedidas, gentilmente,pelo Projeto Um Outro céu - UFBA, UFRB, UNEB e SUSSEX
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Eu senti que ele tinha algo a me dizer. É um objeto, não fala, mas guarda uma memória, uma fala, uma vontade ali. As pessoas o admiravam, mas ele não se comunicava. Quando eu cheguei e entrei e vi, foi um reencontro que precisava haver entre eu e ele. E ele falando comigo, se comunicando comigo. Eu senti as penas, como fazer! Eu viajei no manto. Fiquei com ele durante uma hora e fui entendendo a trama, a feitura do manto, o cordão, o algodão com que ele foi tramado. Entendi que ele foi feito com cera de abelha, e, por isso, tem durabilidade. Vi as penas, a forma em que foram colocadas as penas, as da direita e da esquerda, para não fechar. Observando os nós, eu pensei: “Isto aqui eu sei fazer”. A trama era feita com cordão e linhas de tucum, a linha era artesanal, era feita da folha do tucum com algodão; são especiarias que eram utilizadas na aldeia pelas mulheres e pelos homens, que faziam embira, corda, coisas resistentes para amarrar. E como a linha era mais frágil, utilizavam a cera de abelha, para ter durabilidade e resistência. Tudo o que os mais velhos falavam comigo, eu encontrei lá no manto.
beira do rio. Quando eu voltei lá, para ela me ensinar, ela disse que não precisava, porque o ensinamento não é da gente, ele vem. Se eu já tinha visto no sonho, se veio na ideia, então eu ia fazer, ela não precisava me ensinar.
Então, eu comecei a tentar fazer o manto. Mostrei a foto para painho e ele falou: “Célia, esse manto é montado em um gabarito”. Aí, ele foi, pegou as varas, amarrou, ajeitou. Eu fui, peguei o cordão, encerei o cordão e estiquei. No outro dia, meu filho foi lá, pegou a tesoura e cortou tudo! Ele disse que a tesoura falou com ele e ele foi lá e cortou o cordão. Eu senti que eu já tinha me perdido e larguei o manto.
Nesse período, eu sonhava. Aí, o sonho veio ensinando. O sonho veio e me disse que o mais difícil era fazer o capuz. Mainha foi matando as galinhas, foi mandando as penas, chegou aqui com um saco de penas, fiquei rica! Os meninos mataram o peru, me deram as penas. A primeira proposta era conseguir penas brancas para tingir, pra fazer vermelho. Depois, pensei: o primeiro cocar do cacique Babau (Rosivaldo Ferreira da Silva) foram penas com cores fortes, da natureza, representando a mata, a terra, o território, então, não vai ser diferente com o manto. Por isso, ele traz essas cores fortes, as cores que representam o ambiente, cores de luta, da batalha para a conquista do território, do bem viver. Não pode ser um manto festivo, é um manto que traz essa força. Não fui eu que escolhi, foram eles que foram enviando.
Depois, eu descobri que eu sabia fazer. Vieram as ideias, as informações para a cabeça. Eu pensei “minha madrinha (Dona Dai - Dilza Bransford da Silva) sabe fazer” e levei uns três quilos de cordão para ela, porque ela faz jereré e rede, e pedi para ela me ensinar. Ela me mostrou com um ponto tão miúdo, que não passa nem piaba, ela disse que era para pegar um camarão bem miudinho que tem na
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Eu fui tentar entender como era a feitura do manto. Eu pensei: “Eles devem ter amarrado em algum lugar para fazer”. Bom, o pescoço é redondo, então eles fizeram numa árvore. Aí, eu comecei a tecer, foi fazendo sentido. Foi toda uma pesquisa, uma sensibilidade, um sentir, despertar a ideia que está na gente e a gente consegue fazer. Eu precisava saber a crescença, que a minha madrinha me explicou. Eu consegui fazer o corpo, faltava a cabeça. Lembrei que era um círculo, aí fui no dedão do pé, rodei e consegui fazer da mesma forma, depois arranjei uma pedra para tentar moldar e deu certo! Depois eu fiz a outra parte. São várias peças montadas, foi a leitura que eu fiz do manto. Uma parte, eu fiz na árvore e a outra, na pedra, mas eu acho que eles devem ter feito com o crânio dos inimigos, eu tenho essa ideia!
Eu não pensei no resultado, só fui fazendo o que vinha. Daí, vieram os cantos. Meu filho sentava de junto e cantava. A mente ia fluindo. No corpo do manto, ele tem 2.500 penas, eu contei, porque foram botadas uma por uma. Eu até lembrei um canto: “Tupinambá foi na caçada, matou uma juriti, a carne não deu pra todos, as penas pra dividir, uma por uma, as penas pra dividir”. Aí, eu sonhei de novo: o cacique queria saber como eu estava fazendo o manto. Eu falei: “Estou fazendo com pena de galinha, gavião, peru, arara. E as penas de gavião, eu vou botar na cabeça, para ter essa visão do gavião, a plenitude, voar bem longe e ter a visão de longo alcance
e focar”. Aí, ele falou: “Não, você tem que colocar uma pena de pássaro que não voa. Porque você não vai ficar o tempo todo voando, vai ter que pousar e, nesse momento, como você vai sair se estiver encurralado? Tem que colocar as penas de um pássaro que não voa, porque ele tem a sua própria defesa, sabe se camuflar”. Eu contei para mainha, painho e para Babau. Daí, eu estava na roça e painho falou: “Célia, olha o pássaro de que você quer as penas, está cantando. É o casal, a tururim, um canta e o outro responde, até se encontrarem”. Eu fui aprendendo sobre os pássaros e a virtude, a força que eles trazem. Foi pedido para pegar essas penas, meu irmão fez a arapuca, pegou
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o pássaro, tirou as penas necessárias e soltou o pássaro, porque não pode matar. Igualmente o gavião, eu sonhei, meu irmão foi no lajedo e o gavião deixou umas cinco penas para mim. Os pássaros conversam com a gente. Eu comecei a montar o capuz e, quando chegou na cabeça, eu não sabia como fechar. Mainha falou: “Quem te ensinou até agora, vai te ensinar até o final!”. Eu fui dormir. No sonho, alguém jogou um monte de semente de jatobá em cima de mim e falou: “Se preocupe não, eu vou te ensinar”. Pegou a semente, botou no centro, “você faz assim”. Aí, eu acordei e lembrei: “Eu tenho essa semente”. Felisberto (Felisberto Fulgêncio Barbosa) – é um senhorzinho aqui, que está aqui desde o início da luta de retomada, um ancião aqui da comunidade – tinha catado e mandado para mim. Eu coloquei e deu certo! Matei a charada que nenhum antropólogo, pesquisador lá da França matou, do centro da cabeça. Não fui só eu fazendo sozinha, eu fui teleguiada! Aí, fechou-se um círculo; 1555, já tem 465 anos do manto, e, agora, se fecha um círculo, de os Tupinambás conseguirem reproduzir um manto.
Olha só como os Tupinambás foram sábios, de ter uma peça frágil, com mais de 400 anos, e estar hoje lá na Europa, esse resquício, e dizer que os Tupinambás estão vivos e que estão presentes. Essa é a sabedoria que ultrapassa o tempo. Pense numa pena, que dura um nada, e hoje você tem várias penas de guará daquele tempo lá. Então, eu acho que a sabedoria tupinambá antiga, dos encantados, de forma roubada, doada ou presente, levada para lá, são as pegadas, é um caminho onde o povo Tupinambá pode tracejar, pode seguir, pode ir e fazer a sua trilha. Nós, aqui, temos outro olhar em relação a isso de trazer de volta, não pensamos nisso. Ele fica com a pena dele, o perdão nosso ele não terá. Se trouxer, perdoou o inimigo. O inimigo tem que seguir carregando sua pena, ele que cumpra. A pena dele é prevalecer cuidando, preservando a cultura de Tupinambá. Tem melhor castigo que esse? Como você vai perdoar o castigo do outro? Ele está sendo punido. Tem coisa mais bela que isso? Tupinambá foi inteligente, foi maquiavélico, conseguiu prender o outro para dizer: “Vai existir meu povo séculos e séculos”. Então, eu vejo isso pelo lado positivo, não pelo lado negativo.
Para nós, Tupinambás da Serra do Padeiro, o manto que está lá na França tem que ficar lá. A gente não pede ele de volta, porque, se a gente o pegar de volta, a gente vai ter perdoado tudo o que foi feito com a gente. Então, existe uma pena, que eles estão pagando. Esses são os rastros onde Tupinambá percorreu, por onde Tupinambá passou. E hoje qualquer Tupinambá pode ir à Europa e fazer a revitalização da sua cultura, entender a sua história. Se você fizer esse regresso, esses passos serão apagados. O interessante é deixá-los com o castigo deles, que é cuidar e preservar a cultura tupinambá, enquanto a gente está aqui lutando pela nossa terra. Isso é mais difícil que trazê-lo de volta e, dentro de dois dias, ele virar poeira.
Pelos nossos encantados, isso é uma punição, e você não pode passar a mão na cabeça, não pode perdoar. Se não foi dada autorização, então a pena dele é cuidar, enquanto nós vamos estudar, vamos lá, seguir os passos, analisar e voltar para casa cheios de conhecimento, sabedoria ancestral, respostas que a gente busca além do tempo. Encontrar o nosso mundo do passado, do presente e construir algo do futuro muito mais forte e poderoso. É isso que Tupinambá, que a gente pensa ao longo do tempo. O tempo dos encantados não é o nosso tempo! Os que nós vivemos hoje, os encantados já passaram, já viveram, já sabem. Eles veem apenas como memória, um sonho, um flash, um déjà vu, e a gente sente, mas já se passou.
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Eu já vi vários outros mantos. Cada um tem uma forma de se expressar, só que este, que eu fiz, é diferente. Tem uma leitura, uma lembrança, um entendimento de um outro manto, mas ele não é uma réplica. Ele é! Ele é o manto, não é uma cópia, ele tem personalidade própria, se comunica. Ele vai passar por um processo ritual, temos que fazer uma apresentação do manto para a natureza, para os encantados, para a lua, para o sol, para ele ter essas energias fortes e proteger a pessoa que vai vestir. Eu percebi na feitura deste manto que ele traz uma forma de camuflagem, de você se misturar, de estar, de ser a natureza. Nós somos filhos de uma árvore, fomos esculpidos de uma árvore, nossas digitais são de uma árvore. A gente não veio da terra, a gente não veio do pó, não veio do barro, viemos das árvores. Se queimar uma árvore, vai virar cinza, e os nossos ossos vão virar cinzas. Como nós viemos da natureza, eu acho que a linguagem maior que há para nós é a dos encantados, porque essa é a ligação, é o elo. O pessoal quer o mistério, sabendo que veio de uma coisa tão simples, uma árvore. Quando você entra debaixo de uma floresta, você vai se sentir em casa. Para mim, foi importante trazer essa memória. Eu fico muito grata pelo resultado que estamos tendo hoje. De certa forma, politicamente, a arte é também um meio de falar sobre os conflitos territoriais, a resistência política e quanta força tem este manto para ter esta representação, esta linguagem de mexer com o território.
PARA SABER MAIS: SILVA, Glicéria Jesus da. [Mimeo]. Arenga tatá: revitalização da língua na aldeia tupinambá da Serra do Padeiro no tecer do manto sagrado (Terra Indígena Tupinambá de Olivença, sul da Bahia). Projeto de trabalho de conclusão de curso (Licenciatura intercultura indígena). Porto Seguro, Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia da Bahia – Campus Porto Seguro.
Fotos: Célia Tupinambá Realizadas e cedidas, gentilmente,pelo Projeto Um Outro céu - UFBA, UFRB, UNEB e SUSSEX https://umoutroceu.uf ba.br/o-projeto/
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Dona Maria Mayá e as sementes. Caramuru Paraguaçu, Povo Pataxó Hã-hã-hãe, Pau Brasil (BA) 2016 Foto: Mariana Lima
Cultivar liberdade tecendo autonomia: a experiência da Teia dos Povos por Mariana Cruz A. Lima¹
E
u planto. É milho, é feijão… Porque sem a terra, nós não podemos viver. E sem as sementes, nós também não podemos viver. Temos que plantar. Com essas palavras, Dona Maria Mayá, anciã e professora na Terra Indígena Caramuru Paraguaçu, do povo Pataxó Hã-hã-hãe, e mestra da Teia dos Povos, arrematou sua fala enquanto trazia em suas mãos algumas das espigas que são fruto da retomada do cultivo em seu território. Este processo teve início em 2012, quando recebeu um punhadinho de sementes do Assentamento Terra Vista, território de Reforma Agrária localizado em Arataca, município vizinho ao seu, no sul da Bahia. Tanto sua aldeia quanto o assentamento são, eles próprios, resultado de lutas para retomar e ocupar terras que estiveram, por séculos, nas mãos de latifundiários da região. No entanto, a conquista da terra, por si só, não garantiu que a vida livre e em abundância florescesse. Seria necessário, ainda, retomar a soberania sobre e no território: recuperar o solo, as sementes crioulas, os cursos d’água e a vegetação; produzir alimentos para todos os seres; fortalecer os conhecimentos e modos de vida ancestrais. E isto, por sua vez, não seria possível sem uma aliança entre comunidades em movimento.
¹ A fala completa de Dona Maria Mayá e a uma descrição mais detalhada da questão das sementes crioulas para a Teia dos Povos, podem ser acessadas na série de textos “O caminho das sementes”: https://teiadospovos.org/ caminhos-das-sementes-1-o-chamado-a-partilha-do-milho-crioulo-para-a-construcao-da-autonomia-edo-bem-viver/
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A Teia dos Povos germinou neste contexto. Ainda em 2012, mais de quinhentas pessoas viajaram de seus quilombos, assentamentos, acampamentos e territórios indígenas ao Assentamento Terra Vista para construir a 1ª Jornada de Agroecologia da Bahia. A partir da escuta a anciãs como Dona Maria Mayá e do diálogo entre os povos e seus contextos de luta e vida, firmaram o compromisso de consolidar uma articulação permanente entre comunidades e organizações, de modo a construir um projeto de emancipação ancorado na defesa da terra e do território, pela via da autonomia. Esta última, por sua vez, diz respeito ao fortalecimento de laços entre comunidades e processos de luta, sem atrelá-los à política eleitoral e às instituições estatais . Desde então, a Teia vem cultivando a libertação dos povos e a fartura da vida que florescem quando a capacidade de criar as condições de defender a existência estão nas mãos dos povos. Cultivo, aqui, não é meramente uma metáfora. Se você retornar ao primeiro parágrafo, vai se lembrar que as palavras de Dona Maria refletem o que ela traz em suas mãos: as sementes crioulas permitiram que ela, segundo nos contou, não fosse obrigada a comprar seu alimento na cidade. A gente tendo do nosso é melhor, que é o que acontece comigo: eu tenho o milho pro nosso cuscuz, pro nosso mungunzá, é só preparar aqui. Pode acontecer, no entanto, de uma comunidade não poder produzir um alimento em seu próprio território. Algumas centenas de quilômetros ao norte da comunidade de Dona Maria Mayá, por exemplo, a comunidade quilombola de Conceição de Salinas, no Recôncavo Baiano, trocou mariscos e pescados – frutos do manejo de seu território de mangues e mares – por açúcar, farinha e demais alimentos das roças dos assentamentos e acampamentos da Brigada Ojefferson, vinculados ao MST e localizados na região Baixo Sul da Bahia.
Mestre Joelson Ferreira durante 3ª Jornada de Agroecologia da Bahia. Assentamento Terra Vista, Arataca (BA) 2014 Foto: Nara Oliveira
² Para uma descrição completa dos princípios, fundamentos e forma de organização da Teia dos Povos, ver https://teiadospovos.org/sobre/
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Assim, por meio de laços concretos de solidariedade, sem desvincular a palavra da ação, a Teia dos Povos vai costurando seu horizonte de autonomia e soberania. Isto ocorre em situações das mais variadas naturezas. Para citar apenas algumas, a Teia organiza eventos para a partilha de conhecimento se reflexões, como as Jornadas de Agroecologia, mutirões solidários com a presença de uma ou mais comunidades para a realização de uma tarefa concreta e uma reflexão conjunta, articula ações em defesa dos territórios em situação de ameaça e ações de ajuda mútua entre comunidades. Passo a passo e, por vezes, silenciosamente, nós vamos botando na nossa cabeça: nosso povo precisa estar unido. Não dá para o nosso povo estar disperso e continuar escravo. Nós não nascemos pra ser escravo, nós nascemos dentro da floresta pra ser livre como os pássaros, como os animais. Esta é a reflexão que fez Joelson Ferreira, camponês assentado no Terra Vista e mestre da Teia dos Povos, durante atividade realizada na Aldeia Tukun, território indígena Tupinambá, em Olivença.
A união de que fala, no entanto, não é monolítica, ou seja, não tem como objetivo que os diferentes povos e territórios pensem e vivam da mesma maneira, nem visa a substituir os movimentos sociais e bandeiras de luta específicas de cada comunidade. Um dos elementos chaves desta união é a constatação de que em diversas geografias e momentos históricos, os diferentes povos têm um inimigo em comum: o latifúndio. No Brasil, assim como em todo o continente, o acesso à terra – e a possibilidade de habitá-la segundo modos de vida que não o colonial capitalista – foi sistematicamente negado aos povos indígenas e negros. Neste contexto, uma aliança concreta entre povos potencializa a defesa de territórios contra-hegemônicos. O segundo elemento que constitui essa união entre diferenças pode ser ilustrada a partir da experiência concreta do Terra Vista, cuja transição agroecológica transformou profundamente a terra e as pessoas. Mestre Joelson avaliou que, em seu território, foi imprescindível construir uma outra forma de ver a terra, diferente de como a víamos: não mais a terra como inimiga, que precisava ser destruída para a acumulação de
Neto Onirê, coordenador da Brigada O jefferson, descreve e reflete sobre essa experiência no texto “Fazer quilombo hoje: caminhos para a liberdade”: https://teiadospovos.org/fazer-quilombo-hoje-caminhos-paraa-liberdade/ 4 Até o momento, foram realizadas seis edições da Jornada de Agroecologia. A última, em 2019, reuniu cerca de 4000 pessoas no território sagrado do povo indígena Payayá, em Utinga – Bahia. 3
5 Alguns destes mutirões ocorrem durante a realização de pré-jornadas de agroecologia. Para mais detalhes sobre essas atividades, ver os textos listados em: https://teiadospovos.org/category/pre-jornada/ 6 Há diversos exemplos de ações deste tipo propostas ou apoiadas pela Teia dos Povos. Ver, por exemplo, a Marcha em apoio ao Território Tupinambá da Serra do Padeiro, realizada em 2014. Um vídeo de síntese encontra-se no canal “Diálogo com os povos”: https://www.youtube.com/watch?v=TT2f53vqURs&list=PLN_ ne18o_83DozvYmZo01vDw05PcEdBxX&index=14
Além da troca citada no corpo do texto, outras atividades desta natureza ocorrem com frequência dentro da Teia dos Povos e têm sido fundamentais para a aproximação com territórios em luta localizados nas periferias de grandes cidades, como é o caso da articulação com a organização Reaja, ou será mort@!, em Salvador. 7
A atividade mencionada foi uma pré-jornada de agroecologia. Para a íntegra da reflexão de Mestre Joelson, bem como uma descrição mais detalhada da atividade, ver: https://teiadospovos.org/essa-grande-jornadaterra-autonomia-e-soberania-alimentar/ 8
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bens, acumulação de riqueza. Esta forma de se relacionar com a terra, herança da lógica do colonizador, foi sendo desfeita na medida em que o diálogo com os saberes ancestrais de povos negros e indígenas foi se consolidando, especialmente a partir da agroecologia enquanto instrumento de mediação 12.
Ao centro, Mestre Cassiano, do Quilombo Lagoa Grande em Feira de Santana (BA), durante atividade da 6ª Jornada de Agroecologia da Bahia, Terra Payayá, Utinga (BA) 2019 | Foto: Bárbara Lara
9 Para uma reflexão sobre como estes territórios constituem-se como quilombos, ver o texto de Neto Onirê, citado na nota 4. Para uma reflexão sobre o lastro histórico da aliança negra, indígena e popular em que a Teia dos Povos se inspira, ver o texto “Paz entre nós, guerra aos senhores – uma tradição rebelde de alianças”, de Joelson Ferreira e Erahsto Felício: https://jacobin.com.br/2020/07/paz-entre-nos-guerra-aos-senhoresuma-tradicao-rebelde-de-aliancas/ 10 Este excerto encontra-se no livro de Joelson Ferreira, intitulado “Terra Vista, Terra Mãe: Existência grandiosa no campo”, publicado pela Editora Chão de Feira, em 2020. A versão digital está disponível em: https://chaodafeira.com/catalogo/caderno111/
Esta formulação é de Deysi Ferreira, habitante do Assentamento Terra Vista e articuladora da Teia dos Povos. Sua reflexão pode ser lida na íntegra no livro “A árvore escola”, publicado pelos coletivos Campus in Camps e Contra-filé, em 2014: http://www.bienal.org.br/content/Arvore%20Escola_Livro%20DIGITAL.pdf
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Esta formulação é de Jorge Rasta, da Casa do Boneco de Itacaré e mestre da Teia dos Povos. Sua reflexão pode ser acessada na íntegra em: https://www.youtube.com/watch?v=ggFMisgzUE0&list=PLN_ ne18o_83DozvYmZo01vDw05PcEdBxX&index=10
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Seu Capixaba e Deysi Ferreira junto ao pé de baobá presenteado por Mestre TC, da Casa de Cultura Tainã (SP). Assentamento Terra Vista, Arataca (BA) 2016 | Foto: Mariana Lima
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Sempre que tem uma oportunidade, Dona Maria Mayá ensina, cantando, que a terra é mãe e bendiz seus frutos e sementes. A conversa que abriu esse texto começou assim e, ao apontar para a beleza do colorido das várias espigas de milho que trazia em suas mãos, comparou as sementes à própria Teia: eu comparo essa mistura com a nossa Teia hoje; nós temos assim uma grande mistura. É quilombola, indígena, não indígena, ribeirinhos, pesqueiros... um montão de pessoas juntas fazendo um trabalho e descobrindo que, sem união, sem estar junto, nós não vamos chegar lá. A nossa mistura de que fala Dona Maria é, portanto, um modo de luta que articula diferenças em defesa da vida – esta que é, ela própria, plural, diversa e múltipla. Ao contrário da miscigenação, cujo horizonte é o apagamento e o genocídio de pessoas afroindígenas, e em sentido oposto às formas de organização hegemônicas na esquerda brasileira, em que decisões fundamentais são tomadas à despeito dos povos, a mistura que constitui tanto o meio, quanto o horizonte da Teia é contracolonial e anticapitalista. Em cada semente que brota, em cada troca que se realiza está inscrita a capacidade de povos e territórios dialogarem e aprenderem entre si, protegendo seus territórios de vida, fortalecendo suas identidades e, finalmente, tecendo liberdades concretas.
Foto: Erahsto Felício Plantio de mudas organizado pela Reaja ou será mort@! junto a parentes dos chacinados no Cabula, Salvador (BA) 2020
O canto completo compõe o vídeo da III Jornada de Agroecologia: https://www.youtube.com/ watch?v=Cv2CAQBMowI&list=PLN_ne18o_83DozvYmZo01vDw05PcEdBxXindex=18 13
A noção de contra-colonial inspira-se no conceito de contra-colonização de Antônio Bispo, especialmente como está desenvolvida em “Colonização, quilombos: modos e significados”, publicado pelo INCTi, em 2015: http://cga.libertar.org/wp-content/uploads/2017/07/BISPO-Antonio.-Colonizacao_Quilombos.pdf
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Atua junto à Teia dos Povos na divisão de comunicação, a partir do Elo Cerrado, desde 2014. É professora na Secretaria de Educação do Distrito Federal e, atualmente, doutoranda pelo Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da Unicamp. 16
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Das tábuas do charuto ao reconhecimento como Patrimônio da Humanidade: O Samba de Roda da Doutora do Samba, Dalva Damiana por Any Manuela Freitas Dalva Damiana de Freitas é uma personalidade e autêntica representante da cultura na Bahia. Através da sua fé e criatividade, reuniu pessoas em função da preservação da cultura popular, tornandose uma ativista cultural que atua em defesa e valorização dos integrantes do Samba de Roda. Com 93 anos de idade, é uma artista com genialidade privilegiada. Integrante da Irmandade de Nossa Senhora da Boa Morte, cantora, compositora e sambadeira possui sua trajetória cultural traçada pela criação do Samba de Roda Suerdieck (também Samba de Roda de D. Dalva), Samba de Roda Mirim Flor do Dia, Terno de Reis Esperança da Paz, Terno das Baianas do Acarajé e Quadrilha junina da Terceira Idade – Quanto mais velho, melhor.
“Maria Tereza Toma lá teu pedaço Todo mundo tomou, tomou Mas não teve embaraço O embaraço que eu tive Foi não ter meu dinheiro Para comprar uma fita Para amarrar teus cabelos” Composição Dalva Damiana de Freitas
As suas referências culturais vêm das relações familiares, principalmente a partir da sua vivência com as avós Maria Tereza, com quem aprendeu cantigas de Samba de Roda, enquanto a acompanhava para “lavar roupas de ganho” no riacho do Caquende; e com Vicência Ribeiro da Costa, avó paterna que se dedicou à Irmandade da Boa Morte, passando o legado religioso para Dona Dalva. Dona Dalva é conhecedora de um vasto repertório cultural que permeia entre cantigas de Sambas de Roda, ternos, reisados, hinos, candomblé e outras. Em 1958, recriou o samba realizado nas rezas de santo, a exemplo do caruru de São Cosme e Damião, e organizou o Samba de Roda Suerdieck para participações em eventos públicos. Reuniu operárias e operários da Fábrica de Charutos Suerdieck, tocadores e baianas. As baianas do Samba de Dona Dalva trazem nas indumentárias as referências de Vicência Ribeiro, as músicas vêm das vivências do lavar roupas com Maria Tereza, as tabuinhas de madeiras utilizadas na percussão das palmas remetem às ferramentas de trabalho para abrir a folha do fumo e bolear durante a confecção de charutos. Em 1980, Dona Dalva reuniu familiares
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e organizou o Samba de Roda Mirim Flor do Dia com crianças e adolescentes do bairro do Rosarinho, filhos e netos do Samba Suerdieck. Nesta época, percebeu a redução de sambadores e sambadeiras, o que a fez organizar um grupo para ensinar toques, cantos, o “miudinho” e a história do Samba de Roda para os mais novos. Atualmente, em conjunto com a filha Ana Olga e Mestre Gilson, coordena o grupo mirim promovendo oficinas educativas e culturais com o objetivo de salvaguarda. Em 2003, Dona Dalva foi solicitante do registro do Samba de Roda do Recôncavo da Bahia ao Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – IPHAN. Toda a sua vida é dedicada ao Samba de Roda, à preservação das características do Samba do Recôncavo e à valorização das pessoas que dão vida e sonoridade ao Samba, que atualmente é considerado Patrimônio Imaterial da Humanidade. Em 22 de novembro de 2012, a Universidade Federal do Recôncavo da Bahia – UFRB – outorgou à Dalva Damiana de Freitas o título de Doutora Honoris Causa por sua contribuição no fortalecimento e preservação do patrimônio artísticocultural do Recôncavo da Bahia, valorizando a cultura da região, sobretudo em seu vasto, permanente e árduo trabalho dedicado ao Samba de Roda, tornando-o Obra Prima do Patrimônio Oral e Imaterial da Humanidade. A musicalidade do grupo de Dona Dalva pode ser ouvida nos CDs “Samba de Roda Suerdieck”, “Samba de Dalva” e “Samba Baiana – a vivência cantada de D. D alva”.
Foto: Any Manuela
“Venha cá como quiser ô jiló Jiló ô jiló Como quiser venha cá ô jiló Jiló ô jiló Plantei jiló Não pegou A chuva caiu Rebentou Cortei miudinho Botei na panela Pensei que é jiló Não é jiló é berinjela” Composição Dalva Damiana de Freitas
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Foto: Juliana Faria @julianaphotography
UM VENTO, O TEMPO E A FORÇA DO INFINITO
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por Mãe Edinha de Oxum Entrevista concedida à Eliany Cristina Ortiz Funari Edição: Fábio Ferreira da Silva
eu nome é Edna Maria Santana, tenho 65 anos e por desígnio espiritual sou Yalorixá do Ilê Axé Yá Omin e trago comigo o Caboclo Sete Flechas, que é herança de família e sempre me acompanha. Sou nascida em São Braz, distrito de Santo Amaro da Purificação, Recôncavo Baiano. Hoje, resido e tenho meu terreiro em Santo Amaro, na comunidade chamada Entrada da Pedra. Nasci numa família de yalorixás, conhecedores das folhas, das raízes, dos banhos de cura. A minha mãe, o meu pai, a minha avó, a minha tia, eram todos do axé. E eu, pequenininha, quando a minha tia ia arriar o presente do caboclo dela, ela me levava; quem levava o presente até a mata era eu. Foi nessa tradição, muito enraizada aqui no Recôncavo Baiano, que desenvolvi meus conhecimentos e saberes sobre o culto ao caboclo, que traz consigo seu samba, os toques de percussão (barravento, congo etc.), a comida servida ao povo nas festas do terreiro e a comida oferecida ao caboclo quando montamos sua cabana. Sem falar nos cantos e rezas pros caboclos, que hoje se vê também cantados nas rodas de capoeira, no maculelê tradicional aqui de Santo Amaro e também no samba de roda. Todas essas manifestações fazem parte da cultura negra do Recôncavo, por isso elas conversam entre si. O caboclo é presença forte na identidade dos meus ensinamentos aos meus mais novos, filhos e filhas de sangue, de santo e as pessoas da comunidade.
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O zelador do meu terreiro é o Caboclo Sete Flechas. Ele me pegou pela primeira vez quando eu tinha 17 anos de idade e fui iniciada na umbanda com 25 anos. Antes de ser iniciada no candomblé, eu atendia com o caboclo na umbanda no meu terreiro que se chamava “Terreiro
de Santa Luzia”. Depois de um tempo, a licença do terreiro venceu e eu consegui um novo registro, só que o nome mudou para “Centro do Caboclo Sete Flechas”. Algumas yalorixás e babalorixás aqui de Santo Amaro diziam que eu tinha que ser iniciada no candomblé e foi o que aconteceu. Fui raspada para minha mãe Oxum Opará, no candomblé de nação Ketu, mas no terreiro também cantamos o Xirê na nação angola para saudar os nkisis, por causa do Caboclo.
As atividades do Ilê Axé demandam minha presença no dia a dia, no cuidado com os filhos e filhas da casa e principalmente no cuidado com os assentamentos dos orixás que sou zeladora. Eu brinco que sou a “cumeeira” da casa, aquela que está na frente das responsabilidades da roça.
Foto: Juliana Faria @julianaphotography
Trago comigo uma herança de família que é o Caboclo Sete Flechas, que me acompanha e me ilumina. Essa herança não pode ficar guardada, ela precisa ser compartilhada. O Caboclo ajuda a quem vem pedir ajuda. Ele vem em terra para interagir com quem precisa e cabe a mim incorporar essa missão, que a gente não escolhe ter, a gente recebe e é muito bonito, só que tem que ter muita responsabilidade, porque a gente lida com a vida das pessoas. Tudo o que eu faço, todo esforço para construir meu Ilê Axé é pensando em manter viva essa ancestralidade da minha família, que vai passar para meus filhos de sangue e meus filhos de santo. E assim por diante.
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Foto: Juliana Faria @julianaphotography
Todo terreiro é também uma casa de cura onde as pessoas buscam uma palavra, um conforto. O candomblé traz alegria para a vida delas. Minha roça fica cheia nos dias de festa e eu vejo as pessoas se sentindo bem de estar aqui. Elas comem, cantam, dançam. Essa é minha missão, fazer as pessoas se sentirem bem. Faço comidas tradicionais baianas, já fiz muito azeite de dendê batido no pilão que aprendi com minha avó. Hoje é minha filha Roquinha quem faz azeite de dendê pra vender. Aprendeu comigo. Como eu sou Yalorixá também lido muito com comida de orixá. A comida de santo é conhecimento sagrado que carrega história. Cada ingrediente tem um porquê de estar ali. É a tradição do povo de santo e do povo negro. Nas festas do terreiro, também tem a comida que oferecemos para o povo. Quando tem festa de caboclo, montamos a cabana do Caboclo Sete Flechas com muitas frutas e comidas. Tem que ter conhecimento para saber o que pode e o que não pode ter na cabana e como se preparar as coisas. No candomblé, só tem como aprender participando, observando, estando junto na hora de preparar a comida do orixá, ajudando na hora de desfiar um mariô para colocar na porta do terreiro, indo junto comprar as coisas do ritual ou buscar folha na mata... é participando que se aprende. Pra gente toda prática é aprendizado. Não tem texto ou teoria. Tem observação e prática. Por mais simples que seja a atividade, porque nem todo mundo está preparado para fazer certas coisas, sempre é uma oportunidade de aprender. A preparação das festas é feita coletivamente e às vezes você pode estar apenas varrendo o chão, mas só de estar perto dos mais velhos ouvindo as histórias você já está aprendendo. E existe também aquilo que a gente ensina e aprende durante os rituais de iniciação, que são fechados, os segredos do candomblé, que só se aprende passando por eles.
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Foto: Soledad Hernández González
EU SOU PORQUE NÓS SOMOS A nossa dança é a história de muitas mulheres por Gleicy Ellen Oliveira Transcrito e editado por Luiz Carlos Silva dos Santos Junior
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u conheci o bloco Ilê Aiyê, ainda quando pequena, através de minha mãe. Ela cantava pra mim: “quem é que sobe a ladeira do Curuzu? E a coisa mais linda de se ver? É o Ilê Aiyê”. Além disso, sempre me dizia que tinha vontade de ser deusa do ébano deste bloco. No ano de 2016 fui para Salvador e me aproximei do Ilê Aiyê. Eu não queria conhecer só pela ideia do concurso de beleza, mas pela importância do que minha mãe me falava. Sabia que precisava disso. Para mim, participar desse movimento foi uma autoafirmação como mulher. Nesse ano de 2016, na cidade de Jaguaripe-Bahia – onde nasci no ano de
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1997 –, minha mãe colocou uma cabana de churrasquinho na festa da cidade, que ocorre no mês de janeiro, e por isso ela não pôde ir até Salvador. Foi assim que me deparei sozinha na saída do Ilê Aiyê. Eu sempre digo que a gente está no Ilê a gente pode até não conhecer ninguém, mas a gente conhece todo mundo. Eu me senti abraçada literalmente, no meu espaço, no meu lugar. Nessa época, eu não sabia dançar direito, mas a batida mexia comigo. Eu comecei a procurar saber o que era a deusa do ébano e percebi que era isso que eu queria para mim. Eu tinha muita vergonha do meu cabelo, de usar um batom. Eu não me
aceitava como mulher preta. Então, desde sempre, com oito anos de idade usava as tranças, mas eram um escudo, porque eu tinha vergonha do meu próprio cabelo. As tranças eram como se eu tivesse um cabelo liso. Infelizmente a gente não vê essa representatividade, de poder falar o quanto somos lindas, o quanto somos belas, de que nossos cabelos são bonitos, nossos lábios são bonitos. Então, sempre essa minha história e origem foi muito apagada e oculta para mim. Eu não tinha muito conhecimento, por exemplo, o pouco que eu sei sobre isso, não aprendi nada na escola. Eu lembro que uma vez minha mãe foi me levar ao colégio, na cidade de Jaguaripe e eu não queria entrar porque tinha vergonha do meu cabelo. Por causa disso, ela me bateu para que eu entrasse no colégio. Acontece que, eu não me via feia com meu black, mas sentia muita vergonha e muito medo do outro falar que eu era feia e que deveria alisar o meu cabelo. Outra lembrança, foi de uma certa vez que deixei o black. Meu pai sempre me dizia: “Gleyce, você tem que assumir suas origens, assumir seu black, não esqueça de onde você vem, das suas raízes”. Ele fez com que eu deixasse meu cabelo natural. Mas meus próprios amiguinhos negros me chamavam de cabelo de pixaim, cabelo de Bombril. Meu encontro com o bloco Ilê Aiyê continua sendo de muito aprendizado. Foi assim que comecei a estudar sobre o significado de ser deusa do ébano que o Ilê representa. Além disso, comecei a pensar que eu precisava me reafirmar como mulher preta, conhecer mais sobre a minha história e me exaltar e exaltar tantas outras mulheres, meninas e crianças que não se veem como belas nesses padrões que dizem que a gente não é bonita, que somos feias e não podemos estar ali. Por isso, penso que a deusa do ébano não é só um sonho para mim, mas muito mais que isso, foi uma autoafirmação, comecei a conhecer mais sobre a minha história, sobre a minha cultura.
Foi extremamente importante trazer esse título para o Curuzu, assim como para Jaguaripe também. Muitas crianças e meninas se veem através da minha fala. É muito importante levar esse conhecimento para esses territórios. No Ilê, nós temos o costume de falar: “Eu sou porque nós somos”. É extremamente importante a gente ter o respeito entre a gente, entre todos os componentes e entre os outros. Uma vez deusa, sempre deusa. A gente sabe a importância do cargo da deusa do ébano. Através da nossa dança a gente diz não a qualquer tipo de racismo e preconceito. A gente tem a beleza de Oxum, a gente tem o encanto de Oxum. Temos nosso encanto na dança de Oxum, nosso vendaval na dança de Iansã. A gente corta para Ogum, corta para meu pai Oxalá. A gente faz a reverência ate porque o Ilê foi criado na casa de terreiro. Então a dança de reis e rainhas foi originada na dança dos terreiros de candomblé, para mim foi muito mais fácil aprender a dança de reis e rainhas. Eu já sabia a dança dos orixás porque frequentei o terreiro de candomblé desde pequena. Eu tinha uma amiga de infância que era Ekedi e a convite dela sempre ia para o terreiro observar as danças, ainda na cidade de Jaguaripe. Por isso, já sabia dançar para Iansã, o porquê que ela dançava na ponta do pé. Eu já sabia dançar para Xangô e para minha mãe Oxum. Mas a dança de reis e rainhas é mais aberta, os braços são mais abertos. A gente se exalta. A nossa dança é a história de muitas mulheres. É a nossa ancestralidade. Através de nossa dança a gente empodera e exalta todas as mulheres pretas. A gente mostra que podemos chegar onde quisermos. A gente diz não a qualquer tipo de preconceito e a gente fala o quanto somos lindas e o quanto somos belas. É necessário muito esforço para se deixar levar pela música e pela emoção, mas a nossa dança está no nosso sangue. É ancestral. É só seguir os passos e o caminho, é essa batida te guiando…
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RETOMADAS TUPINAMBÁS:
Uma história de resistência por Cleonilson dos Santos Pereira e Jade Alcântara Lôbo
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scolhida em 1999, Cacica Valdelice, cacica geral do povo indígena Tupinambá de Olivença, é a segunda cacique mulher brasileira e a primeira cacica da Bahia e do povo Tupinambá. A história dos seus 21 anos de cacicado se entrelaçam com o processo de retomada da terra, o território sagrado Tupinambá. Esse processo se norteia em defesa de uma relação de harmonia: um viver em confluência, e biointeração com a terra, de onde vêm os seus alimentos e plantas medicinais. A terra é o sustentáculo primordial da vida dos Tupinambá, ela é sagrada, pois nela habitam seus antepassados, os encantados. Ou seja, não é apenas um pedaço de solo. Esta foi e vem sendo cruelmente interditada pelos colonialistas, desde o processo de colonização com a prática de aldeamento adotada pela administração portuguesa durante a colonização das terras Ameríndias. Este foi o marco inicial dos cruéis danos causados aos povos indígenas ao serem privados de habitar seus territórios originários. Habitar e preservar seu solo é o que sustenta os processos de retomadas em curso, como nos contou a Cacica Valdelice durante a conversa que realizamos para a construção desse texto. Embora longínqua, a história de resistência do Povo Tupinambá, a luta pelo seu território
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e por fazer valer os direitos, compõe um capítulo mais recente na História do povo tupinambá que são originários do Brasil. São inúmeras as famílias, e comunidades que vêm travando uma árdua batalha de retomada do território, pela saúde e educação escolar índiegna. A Cacica percebeu que seu povo precisava de ajuda, quando ensinava na escola chamada Serra Negra. Naquela época, muitos Tupinambás estavam trabalhando em condições de escravidão, sol a sol, recebendo dos fazendeiro poucos alimentos e cachaça. Esta é uma estratégia colonialista muito comum no Brasil. O álcool, por vezes, é utilizado para embriagar indígenas, um artifício recorrente por parte de quem tenta usurpar seus direitos, suas terras. Levando isto em consideração, toda e qualquer discussão que se faça do uso de álcool (embriaguez) nas aldeias, necessariamente, precisa pautar esse processo histórico de violação de direito, de privação de poder habitar seu território. Em algumas aldeias brasileiras o álcool é proibido. Vale ressaltar que o alcoolismo é um mal que também atinge o povo negro, muitas vezes utilizado como fuga de escape da situação de perda de direitos e precarização. Esta situação imposta pela colonialismo tem como efeito o alto índice de suicídio de negros/as e indígenas.
“Hoje temos enfermeiros indígenas, professores indígenas, técnico de enfermagem, mas o que é preciso de fato é o nosso território. Temos muita gente com depressão, muita gente perdendo os sentidos, não é apenas pela Covid, isso já tava escrito que muitos indígenas iam ter esse momento de depressão um momento difícil para todos nós.” (Cacica Valdelice)
O trabalho da Cacica Valdelice no colégio Serra Negra ministrando aulas na educação para Jovens e Adultos foi um marco fundamental em sua luta por direito dos Tupinambás de Olivença. No início, ela conta que buscou se informar sobre os direitos de seu povo, o que foi fortalecido com trabalhos junto à igreja. Sua mãe era muito católica, e dessa relação com o apoio do Conselho Indigenista Missionário (CIMI), o povo Tupinambá conseguiu um antropólogo para fazer o “reconhecimento” étnico do povo e território, ouvindo os anciões da comunidade (o laudo antropológico é utilizado para confirmar a presença/ ocupação de território reivindicado por determinados grupos ou etnias, sendo peça fundamental nos processos de demarcatórios).
“Nós nunca saímos daqui, de Olivença até a Serra do Padeiro. Nosso povo nunca saiu do território. Temos parentes tradicionalmente ocupados, eles continuam como eram os parentes deles, desde quando eram os antepassados deles, eles estão reafirmando a história."
São várias as lutas que se conectam, confluem com a luta principal de retomada do território, a educação escolar indígena é uma delas. A Cacica conta que duas realidades distintas marcam a luta pela educação para os Tupinambás: os indígenas que ficaram nas aldeias em Olivença tiveram condições de estudar e os que ficaram no interior não tiveram quase condições nenhuma de estudar e foram trabalhar nas fazendas. Em 2005, essa frente de luta obteve seu primeiro fruto com a construção do primeiro colégio na Comunidade Sapucaeira. Atualmente, dentro do território Tupinambá existem
cinco escolas, além das creches construídas pelo próprio povo. A narrativa expressa pela Cacica Valdelice apresenta uma marca forte de união do povo Tupinambá no objetivo de retomar seu território. Ela afirma que no início era difícil fazer o acompanhamento de todas as comunidades, mas ainda assim o fazia.
“O que nos sustenta, dá Força, é retomar uma terra para colocar aquela família que trabalhava como escravos para trabalhar para si mesmo." Com o passar do tempo, e o caminhar das lutas, outros caciques foram aparecendo, fortalecendo para dar início ao processo de retomada. Segundo a Cacica, hoje 80% do território do Tupinambá está com seu povo. A área total é de 47. 374 hectares. Todavia, ainda que no âmbito judicial, o STJ - Superior Tribunal de Justiça - tenha deliberado favoravelmente em favor do povo Tupinambá, a portaria declaratória que afirma para o Estados e os não índios (os brancos) que o território pertence aos Tupinambá, ainda não foi assinada pelo Presidente da República, nem pela FUNAI Fundação Nacional do Índio.
“O índio não precisa de muitas hectares, precisa de uma terra que ele possa plantar para sobreviver, plantar para os outros parentes, para vender um pouco, para o si e para buscar comprar outra coisa que não seja produzida na aldeia.”
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As retomadas são cosmopolíticas, elas trazem duas dimensões: a política pelo material para cultivar, para se nutrir; e a política espiritual, cosmológica, para manter viva a cultura, o modo de viver-fazer Tupinambá. Alterar isto, privá-los de manter essa relação como seu solo sagrado, com os cosmos se desdobra em vários processos de adoecimento, enfraquecimento cultural e desterritorialização. “Já tava escrito porque nosso povo era muito devotado, tanto ao divino espírito santo, tanto a puxada do mastro, e de repente deixaram essas coisas, a parte religiosa nossa, muitos viraram evangélicos, foi fazendo as igrejas e foi acontecendo, foi enfraquecendo a parte indígena, a parte cultural e a parte da luta. Não podia usar coca, não podia se pintar. Então, em nome de deus eles foram tirando muita coisa. Aqui na aldeia não tem igreja nenhuma, aqui é o Porancy e eu não deixo faltar toda sexta feira tem o porancy a noite, começa às 19h o mutirão. Nós fazemos no colégio mesmo com mutirão. Posto de saúde em mutirão, tirando a matéria prima da mata que a gente tem. Nós temos barro bom de barrear, temos força e união. E ainda convidamos eles no dia da inauguração, convidamos o governo, o secretário. Para eles verem que nós temos força e coragem para fazer!”
Viva as Retomadas Tupinambás!
“Guardiã Tupinambá” Artur Soares Xilogravura em papel
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Eu Sou Cabocla do Reinado de Angola
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por Mameto Ilza Mukalê1 Mameto Inkiceana do Terreiro de Matamba Tombenci Neto Entrevista concedida à Marinho Rodrigues , Tata Luandenkossi Edição por Jade Alcântara Lôbo
s caboclos vêm do tempo dos encantos, daquela época em que se trabalhava com os encantados. Da parte indígena, das florestas, vêm os caboclos Tupinambá, Tupiaçu, Tupiniquim, Pena Verde… E as caboclas Jupira, Indaiá, Jurema, Iracema. Os caboclos e as caboclas vêm das pessoas que desencarnaram e os caboclos voltaram retomando aqueles que ficaram, para dar continuidades aos trabalhos que eles faziam na época em que estavam do lado material. Nas casas de candomblé, principalmente da nação angola, mas também nas casas de umbanda, há caboclos que são recebidos como boiadeiros. Minha mãe tinha o caboclo André Caitumba. Na verdade, o nome dele era Inguê Caitumba, e ele era um boiadeiro. Quando a matéria dele ainda estava na vida material, ele trabalhava nos campos, boiando, pegando suas boiadas. Ele era um líder da sua aldeia e isso significava que ele ia voltar. Ele voltou e, quando ele trabalhava com a minha mãe na parte de boiadeiro, dava o nome de Inguê Caitumba (mas todo mundo conhecia como André Caitumba). E nas sessões espíritas de mesa branca ele respondia como André (em uma senhora que já desencarnou também). Então, ele trabalhava do lado do candomblé de angola e do lado do espiritismo.
Ilza Rodrigues nasceu no dia 13 de março de 1934. É filha de Izabel Rodrigues Pereira (conhecida como Dona Roxa) e de Valentim Afonso Pereira (Tata Candemburá). Aos 12 anos de idade, como filha de Matamba, Dona Ilza foi iniciada na religião do candomblé de nação angola por Marcelina Plácida Conceição (conhecida como Dona Massu), filha de santo de Maria Jenoveva do Bonfim (conhecida como Maria Neném, do Terreiro Tombenci, em Salvador, primeira mãe de santo angola do Brasil. Ilza Rodrigues recebeu, então, seu nome de santo: Mukalê. Em 1975, recebeu seu sacafunã, ou seja, o direito de iniciar seus próprios filhos de santo, e deu ao terreiro o nome que tem até hoje: Matamba Tombenci Neto. Desde então, Mãe Ilza Mukalê (como é conhecida) iniciou muitas dezenas de pessoas no candomblé. Além disso, criou seus 14 filhos de sangue, que lhe deram dezenas de netos, bisnetos e tataranetos. Em 2007, recebeu o troféu Zeferina, da UNEB/CEPAIA; em 2010, publicou o livro “Do lado do tempo. O Terreiro de Matamba Tombenci Neto (Ilhéus, Bahia)”; em 2014, recebeu a Comenda da Ordem das Entidades Afro-brasileiras (OEAB); em 2015, foi homenageada com a Comenda São Jorge dos Ilhéus em reconhecimento à sua contribuição ao desenvolvimento do município de Ilhéus e do seu povo; em 2016, recebeu o título de Doutora Honoris Causa pela Universidade Estadual de Santa Cruz, como reconhecimento por seu papel na grande tradição de luta e resistência do povo negro e de santo da cidade de Ilhéus, do Estado da Bahia e do Brasil
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Janeiro de 1983, acervo do Terreiro Matamba Tombenci Neto Foto: Tânia Stolze Lima
Mas tem muitos outros, tem muitos nomes de caboclos que voltam sendo Oxóssi caçador, o Oxóssi que fica em volta dos rios doces cortejando Dandalunda, Terecompenso, nos rios doces, nas horas em que elas estão se banhando. Tem o Oxóssi que vem como Pena Verde, Caçador. Os caboclos são os espíritos de pessoas que viveram na terra, tanto os índios quanto os boiadeiros. Eles morrem, vão embora, mas deixam aquela família. As pessoas às vezes acham que se morreu acabou; mas não é bem assim não: eles passam para o outro lado, mudam de plano, vão para o plano espiritual. Lá, vão passar por um processo que só Zambi, Deus, entende, um processo de purificação. A terra se encarrega de destruir a carne e o espírito vai andar e vai ser purificado dependendo do merecimento na terra, no lugar em que viveu materialmente. Deus vai purificar e eles vão ser agraciados para caminhar nos caminhos de luz e elevação. Aí eles voltam procurando aquele habitat daquela família que tinham deixado. No
meio daquela família tem alguém que trouxe um dom de nascimento de um desses índios ou boiadeiros. Eles próprios dão o caminho, protegem aquela pessoa, a livra dos inimigos espirituais e materiais. O caboclo tem o ilá dele, ou seja, a maneira como ele vai se identificar dentro do Candomblé no dia que recebeu a obrigação. Então, há aquela parte do boiadeiro, para agraciar eles com as criações, ele pega muito os gados, o boi… Boiadeiro é a parte dos Caboclos que conviviam nas matas virgens, vêm as caças: o coelho, capivara, tatu, todas essas. Se existe a condição de fazer isso, os bichos de pena também vêm, como o galo cocá, ganso, pato e pavão. Tudo isso são coisas que pertencem muito aos caboclos e se faz a vondá (corte dos animais para sacralizá-los), que é o oferecimento da menga (sangue dos animais sacralizados) para eles, então são feitas bebidas para servir ao povo. Tem o aluá, a jurema, o obiri que é feito com obi, muito vinho e mel. Essas coisas assim. Serve a eles e às visitas, às pessoas que
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vão participar daquele candomblé, naquele dia. Há as vestes deles, as roupas como eles se identificavam, de penas, também os capacetes, os cocares que levam na cabeça. Eles começam a passar por aquela pessoa… Caboclo tal, fulano tal e cada um tem o seu caminho. Os caboclos de pena usam muito os penachos, de preferência com essas aves que são mais difíceis hoje. Agora, o pessoal faz aquelas plumas, mas a maioria deles não gosta. Eles gostam da pena natural, a do pavão, do peru, do ganso, dos patos… Essas coisas assim que são usadas para fazer os cocares, mas hoje em dia já misturaram. Às vezes, os Caboclos aceitam, às vezes, outros não. E tem os Encantados, que vieram da época dos encantos. Eles trabalhavam como os pretos velhos, os curandeiros, os raizeiros… Na parte do encanto… Os pretos velhos, as pretas velhas, os curandeiros e curandeiras. Eles trabalhavam com as raízes, com as ervas. Os marujos têm uma diferença porque vêm do lado da marujada. As pessoas que eram comandantes de navios, os marinheiros, cada um tem sua posição… Quando aquela pessoa muda de plano, ou seja, sai do material para ir para o lado espiritual, esses espíritos vão realmente ter, como eu falei, a purificação e eles voltam naquela linha da marujada, como se estivessem no lado material. Geralmente eles vêm assim na parte da madrugada. Hoje em dia não dá mais para amanhecer com o Candomblé, mas na época da minha mãe, a gente pegava o sol com a mão, como se diz. É nessa hora que a Marujada chegava. Eles cantavam, dançavam, bebiam, brincavam e iam embora. Depois que eu fiz Santo criança, cresci, continuei dentro do Candomblé, sendo a segunda pessoa de minha mãe e recebi a minha Santa, que é Matamba. Com o andamento, casei, tive filhos e a minha mãe faleceu. Ela deixou o cargo para mim, então tinha que ter um Caboclo ou
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Cabocla para ser o puxa-folha da casa. Na época dela, era Seu André, Inguê Caitumba e ele não quis seguir, ir embora. Ele ficou. Se isso aconteceu, essa Cabocla tem uma finalidade com a aldeia dele, no que se refere a parte de boiadeiro e a indígena. Minha Mãe de Santo foi olhar e disse que ela viria. No tempo e hora certa, ela iria descer. Havia uma senhora que era a minha comadre, madrinha da minha filha, um dia ela chegou aqui e falou: “Comadre Ilza, eu sonhei com uma Cabocla e ela disse que é a da senhora”. E eu disse: “Como assim sonhou?” ao que respondeu: “Eu sonhei com ela dizendo que estava perto de vir e o nome dela.”. Era a Cabocla Jupira. Minha mãe de santo Massu estava para vir para dar a obrigação de Seu André, voltando a função dele de puxa-folha da casa. Eu não queria realmente me separar dele porque eu quem cuidava. Eu queria ele, então o mesmo ficou junto com ela. Ela veio no dia 22 de setembro, a data está no livro… Assim de cor eu não lembro. Quando ela chegou pela primeira vez, não falava direito. Ninguém entendia. Com a continuação, como eu falei, tem um processo que se faz. A Mãe de Santo o fez e ela foi soltando. Hoje, ela fala um pouquinho, dá para pessoa entender. A primeira vez, ela cantou [Canção de Jupira]. Essa zuela (cantiga) que Jupira cantou. Quer dizer, seu André mandou chamá-la nessa aldeia e ela atendeu a chamada dele para junto com ele responder dentro do meu jogo. Eu o tenho como uma pessoa mais velha. Eles dois comandam, são os ‘puxa-folha’ da casa. Ela continuou vindo e eu fiz algumas composições com a mesma. Jupira tem várias zuelas feitas por mim. As pessoas me perguntam: “Como a senhora faz essas composições?”. Eu não sei… Vem na minha cabeça assim, então vou botando ali, vou procurando a letra e fazendo. Tem várias. Vou ver se me lembro agora de alguma!
Eu sou Cabocla, as águas do morro desce Se tem é porque Deus dá, se dá é porque merece E tem outra assim: Eu sou Cabocla, eu sou guerreira Na minha aldeia sou raizeira Eu sou Cabocla (Eu sou Cabocla) E sou guerreira Na minha aldeia sou cabocla curandeira Há outras. Como aquela: Ô inauê (ô inauê), ô indaiá Eu sou Cabocla do reinado de Angola Ô inauê, ô indaiá
Quer dizer, a macamba é a casa dela. Uma casa de índio. Têm outras também. Não sei se me lembro agora. Mas são muitas Zuelas dela. Era uma chácara, uma mata, havia muitas por aqui. Havia no meio do Candomblé a hora dos Caboclos, depois que louvava, entendeu? Virava dos Orixás para Caboclo. Haviam aquelas zuelas e todo mundo virava. O xicarangomo, que é o responsável por tocar e cantar, cantava muitas coisas da época do Tata Gombé - meu tio Euzébio - , de mãe também. Se fazia, mas o tempo vai passando. Não se pode tocar até tantas horas. Hoje o povo estuda e trabalha, cada um tem sua função, então fica meio difícil conciliar. Mas a gente faz nas ocasiões, ‘arreia’ obrigação para eles, as frutas e tudo o que tem.
Mãe Ilza Foto do acervo do Terreiro Matamba Tombenci Neto de 2020
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Afroconfluenciando Mestre Nego Bispo
Obra da página anterior: Nego Azul (2015) | Técnica: aquarela | Artista: Maine Jesus Maine Jesus é artista multidisciplinar e pesquisadora de musicalidades africanas e afro-diaspóricas. Nasceu em santo amaro, recôncavo baiano, ela ilustra e também é musicista.
Quando nós falamos tagarelando! E escrevemos mal ortografado... Quando cantamos desafinando! E dançamos descompassado... Quando pintamos borrando! E desenhamos enviesado... Não é porque estamos errando! É porque não fomos colonizados! Uma parte do meu ser, que é a água... Resfriando uma outra parte, que é o fogo... Por essa outra parte que é o ar, evaporou... E transfluindo, pelo espaço cosmológico... Nessa outra parte, que é a terra, Incorpou! E confluindo com outras vidas, em outros corpos... Reexistindo e existindo aqui estou! Antônio Bispo, chamado carinhosamente pelos mais próximos de Nêgo Bispo, é morador do Quilombo do Saco-Curtume, no Piauí. Bispo é pensador ativo quilombola, formado como lavrador por mestras e mestres de ofício. Ele estudou o ensino fundamental por incentivo de sua comunidade, fazendo parte da primeira geração da família de sua mãe que teve acesso à alfabetização. Em 2018, Nêgo Bispo recebeu o Prêmio “Mestre das Periferias” ao lado de Marielle (em memória), Conceição Evaristo e Ailton Krenak. Seu pensamento tem sido bastante veiculado dentro das universidades brasileiras, principalmente após a publicação de seu livro “Colonização, quilombos: modos e significações” em 2015.
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“O homem da coroa do capim dourado” (2020) 1ª Edição XilogravuraRevista em papel |ODÙ Artista:-Artur Soares
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COSMOANGOLA E A GINGA NA LINHA DA KALUNGA: Uma reflexão a partir dum batepapo entre Mestre Cobra Mansa e Mestre Nego Bispo por Cicí Andrade “O povo quilombola inspira”. Essa foi uma das primeiras frases a ser proferida por Mestre Nego Bispo, parafraseando Ana Mumbuca, a fim de complementar uma linha de raciocínio de Mestre Cobra Mansa sobre o orientador ser aquele que desorienta. Esse foi o início de um diálogo entre dois amigos, mestres de trajetória, de saberes orgânicos, que seguem na contra-colonialidade, gingando na linha da Kalunga.
Cosmoangola
A
confluência entre Mestre Cobra Mansa e Mestre Nego Bispo ocorreu pela primeira vez em um evento que aconteceu em Sto. Antônio de Jesus (Bahia). Posteriormente, Mestre Nego Bispo, aceitando o convite de Cobra Mansa, fez uma visita no Kilombo Tenondé. Naquele momento os mestres chegaram a um entendimento sobre o Evento Permangola – evento organizado no Kilombo Tenondé que trabalha a junção de permacultura e Capoeira Angola. Segundo Nego Bispo, o nome Permangola não trazia a dimensão do trabalho que estava sendo feito no Kilombo, pois além de Capoeira Angola e Agroecologia, o espaço também estava trabalhando com a filosofia e cosmovisão dos povos africanos, afro-brasileiros e ameríndios. Cobra Mansa já vinha trabalhando com o Cosmograma Bakongo, no qual existe a linha da Kalunga que divide (e une) o mundo dos ancestrais do mundo dos vivos, daí a confluência com a proposição de Bispo. De acordo com essas percepções, é possível compreender que a linha da Kalunga é a mesma que separa os saberes orgânicos dos saberes sintéticos.
Cobra Mansa é Mestre de Capoeira Angola, sonhador, utópico. Amante da terra, desenvolve seu trabalho de agricultor no Kilombo Tenondé. Possui Doutorado em Educação.
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Para mais informações veja: O conceito Bakongo do Tempo, Bunseki Fu Ki-Au; A visão Bântu Kôngo da sacralidade do mundo natural, Bunseki Fu Ki-Au; O conceito de Kalunga entre os bakongos”, Bárbaro Martínez Rui; Kalunga: origens e significados, Martiniano J. Silva.
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“O que é importante nesse momento e que a gente tá vivendo é o seguinte: a cosmovisão dos povos ameríndios e dos povos africanos, como o Mestre (Bispo) fala, tem uma confluência muito grande. Esse momento que estamos vivendo agora, é o momento de olharmos para essas tradições ancestrais. A Cicí esteve aqui no nosso espaço e pôde acompanhar o nosso dia-a-dia, de como é viver no momento em que você toca na terra, no momento em que você vive em confluência com a natureza e é isso que os homens têm se afastado, e agora, nesse momento de pandemia, de uma certa forma têm tentado se reconectar. Então, quando eu e Nego Bispo estávamos falando sobre Cosmoangola, a gente estava querendo trazer essa visão ampla da questão da agricultura. Não é simplesmente você ir lá e colocar uma semente na terra e colher, é você conviver, ter uma confluência com a própria natureza. Entender como essa natureza funciona, que a partir da convivência você também vai entender como você funciona. Ou seja, descobrir que essa desassociação entre você e natureza não existe. Nós não somos simplesmente parte da natureza, nós somos a própria natureza. No momento que seu corpo deixar de fazer parte do mundo dos vivos, ele vai se transformar em terra. Vai alimentar raízes, insetos e bichos. Então, nós somos a própria natureza. A modernidade desassociou o homem da terra. A nossa visão do Cosmoangola é tentar reconectar essa convivência ancestral que foi perdida em algum tempo no espaço”. (Cobra Mansa)
Gingando na linha da Kalunga Gingar, de acordo com Mestre Cobra Mansa, é um equilíbrio dentro do desequilíbrio. Na capoeira, quanto mais estável se está, haverá mais possibilidade para o desequilíbrio. O equilíbrio vem quando se está alerta a todas possibilidades, ou seja, tentando se equilibrar.
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“Então, quando eu falo gingar na linha da Kalunga, não é ficar parado em cima do muro, mas estar atento sobre as possibilidades que existem, estar alerta. É de você saber gingar entre dois mundos. Tanto entre o mundo dos saberes orgânicos e dos saberes sintéticos, como saber gingar no mundo dos ancestrais e dos vivos. Saber gingar no mundo acadêmico e saber gingar também na rua. Como é que você aprende a se equilibrar nesses dois mundos? Só através da ginga podemos viver em dois mundos sem cair. Esse é o trabalho que tenho tentado desenvolver de uma certa forma dentro e fora da capoeira.” (Cobra Mansa) Dentro dessa linha de aprendizagem, Bispo nos elucida sobre a importância da existência de um equilíbrio entre o referencial teórico e o referencial histórico, pois, o referencial histórico é a nossa trajetória. “O quilombo é um referencial histórico que dialoga com os referenciais teóricos, mas sem ultrapassar as fronteiras. A linha da Kalunga, vista do quilombo, seria exatamente uma fronteira entre um mundo e o outro, não um limite, mas uma fronteira. Então, essa experiência que Cobrinha nos apresenta, ou melhor, essa inspiração que Cobrinha nos apresenta, é muito importante nesse momento. Porque, quando o pessoal vem com a permacultura, com a agroecologia, com o desenvolvimento sustentável, com essa variante de coisas que acabam se transformando imediatamente em mercadoria, ou mesmo que não se transforme, tem uma possibilidade muito grande de se transformar. Então, quando a trajetória de Cobrinha nos inspira a partir do Cosmoangola, aí a gente tem um referencial histórico, aí a gente tem um paralelo entre a teoria e a cosmologia. Sabendo que a teoria é um referencial para o debate e a cosmologia é um referencial para a ação.” (Nego Bispo) Para Bispo, o Cosmoangola transflui a questão da produção e da agricultura,
enquanto que conflui com as vidas. Ou seja, o Cosmoangola transflui o ter, para confluir o ser. Dentro do cosmograma Bakongo, de acordo com Cobra Mansa, existem quatro fases: a da gestação, do nascimento, do crescimento (fase auge, do sol vermelho) e a fase de preparação para cruzar a linha da Kalunga. Essa última, seria a fase de sair do mundo dos vivos para passar ao mundo dos ancestrais. Entretanto, essa passagem só se faz possível depois de deixado um legado para quem fica no mundo dos vivos. Por isso, existe um compromisso, um engajamento de luta e a importância de fazermos melhor do que nossos ancestrais conseguiram fazer. Esse fazer melhor que nossos ancestrais, seria uma forma de honrá-los.
Terrorismo verde e escola própria “Cultivar sua própria comida é como imprimir seu próprio dinheiro.” (Ron Finley) Uma das instigações presentes nos ensinamentos de Mestre Cobra Mansa é o da retomada de território, a autonomia de plantar em qualquer espaço abandonado, transformar espaços mal utilizados. Um exemplo que ele colocou foi o de um espaço que estava abandonado, onde pessoas jogavam lixo e houve uma parceria juntamente com Mestre Roxinho para a construção de uma horta comunitária. Outra proposição são as bombas de sementes: “Alguém já ouviu falar nas bombas de sementes? Bomba de semente é o terrorismo verde que o pessoal faz. Pega uma argila cinza e várias sementes de flores, girassol e outras coisas, vai em um estacionamento, quebra um buraco, enfia aquela bomba de semente e deixa lá. Daqui a pouco, quando vir a primeira chuva, vai nascer flor e um bocado de coisa no meio do estacionamento, da calçada... Então, é retomar território. Mas você
pode fazer outra coisa também: plantar. Nego Bispo sabe disso, você planta até dentro de casa. Você pode ter uma mini horta dentro da sua casa, dentro de um jarro. Você pode pegar ali e botar uma salsinha, um cheirinho verde, um hortelã. Quando se fala de Cosmoangola, a gente tá falando de usar tudo o que você tem e, o mais importante, você pode ensinar uma criança a fazer isso. A gente fez um trabalho ensinando as crianças a plantar e no final, cada um levou um jarrinho com uma plantinha e a obrigação era só cuidar dessa plantinha.” (Cobra Mansa). Mestre Cobra Mansa, assim como Mestre Nego Bispo são mestres de saberes orgânicos e que nos envolvem em seus saberes ancestrais. Saberes esses que só aprendemos em escolas próprias. Como Bispo ensina: “tudo o que é afroconfluenciado é escola própria e tudo o que é eurorepassado, é colonialismo.” Dessa forma, o Kilombo Tenondé, assim como os Terreiros de Candomblé, Quilombos e outros espaços de saberes orgânicos, são escolas próprias, onde mestres e mestras estão contra-colonizando e repassando seus saberes. Que estejamos atentos(as) e abertos(as) para ouvir e aprender esses saberes vividos por nossos mestres e mestras que seguem gingando entre os dois mundos, na linha da Kalunga.
http://www.acidulante.com.br/ecologia/cultivarsua-propria-comida-e-como-imprimir-seuproprio-dinheiro/ 2 https://www.anarquista.net/jardinagem-deguerrilha 1
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Aula com mestre Badu Programa de Formação Transversal em Saberes Tradicionais da UFMG www.saberestradicionais.org
A ARTE DE PREVENIR O MAL COM MESTRE BADU por Luana Gonçalves
Mestre Badu é quilombola e traz em si os conhecimentos dos africanos escravizados, homens e mulheres que deram origem ao Quilombo Mato do Tição, em Jaboticatubas/ MG. Neto de Liduvina Maria da Conceição; filho de Benjamin José de Siqueira e Josefa Basílio dos Santos; sobrinho de Constança Basílio dos Santos, a tia Tança; mestre do Candombe, da Folia de Reis e do Reinado; toca cavaquinho, caixa, violão, pandeiro e berimbau; praticante do ofício da medicina natural (cura através de recursos naturais); homeopata, radiestesista, raizeiro e benzedeiro; mestre dos conhecimentos da natureza, de suas fontes inesgotáveis de cura e abundância.
‘‘Eu sou um raizeiro, um simples raizeiro e um homeopata, que vivo assim, correndo atrás, pra ver se eu encontro aquele talento pra socorrer alguma pessoa, dar alívio a algumas pessoas, a mim e alguém que acredita, porque aquilo que Deus oferece pra gente, que foi bom pra mim, eu acho que deve ser bom para o meu semelhante. É por isso que eu vivo correndo atrás, nunca acho que eu fiz demais, eu sempre acho que eu tenho que aprender mais para oferecer mais para humanidade.”
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A primeira vez que vi Mestre Badu, ele estava olhando fixamente para uma flor e me disse: - Minha filha, se você se concentrar naquela flor você vai sentir a energia dela passando para você. O Mestre tem 84 anos e é um dos mais velhos do quilombo Mato do Tição. É irmão gêmeo de Dona Bina, quem lhe deu o apelido de Badu. Todo mundo o conhece como ‘Seu Badu’. Eu chamo ele de Mestre Badu, por que aprendi na capoeira a chamar de Mestre os mais velhos que me ensinam na escola própria da vida. Ele aprendeu com o pai a curar sua família. Mestre Badu teve 17 filhos e 47 netos e conta que não podia comprar remédio de farmácia, então ele aprendeu com o pai.
“Na minha família, eu vou te contar, meu pai era um raizeiro, um homeopata, meu pai era muito estudado, ele não foi estudado de colegiado, mas ele foi um homem estudado de uma maneira que ele... você falava até que ele era um médico, até a escrita dele parecia de um médico, lia qualquer trem. Você podia até passar uma barata no papel assim, que ele sabia ler. Meu pai nunca desenvolveu, ele nunca foi capaz de falar o tanto que eu falo. Porque meu pai era rezador, ele era tudo, era agricultor, ele entendia tudo. Ele pegava sua mão e quase que ele contava as tripas da sua barriga (risos). Mas acontece que ele não tinha esse desembaraço com a natureza que eu tenho.”
Luana: O senhor aprendeu com ele e desenvolveu mais, né? Badu: Se for pra falar da natureza e observar o que a natureza tem, ele não falava e eu já achei isso, a natureza me ofereceu isso. Luana: Mestre! Quem que foi o africano da sua família? Quem eram os africanos? Badu: Meu avô, meus tios, tudo, o que não era africano era índio. Porque eu sou de duas descendências: meu pai, a mãe dele era índia, ela foi pegada no mato. E o pai e mãe da minha mãe eram africanos. Veio da África. Não sei falar o lugar que vieram, mas sou dessa descendência. Por exemplo, eu acredito assim, que meu pai puxou muito para o lado de medicamento, raizeiro e cuidado com medicina por conta dos índios, do sangue dos índios e nisso eu acho que saiu uma garra pra mim. Luana: A parte dos índios as raízes, vieram com seu pai. E a parte africana, deixou qual saber para vocês? Badu: Cantar, a tradição, candombe, reza, passar na brasa, isso é dos africanos.
O mestre me inspira também, como a capoeira, porque ele trabalha
de forma estratégica, com a prevenção do mal. É igual quando aprendemos que a defesa é o melhor ataque? Pois é. O Mestre Badu ensina isso como forma de gerar da saúde e pesquisar as vibrações da natureza, trabalhar com a cura dos seres vivos: pessoas, criação, solo. Tudo que se desequilibra é possível o equilíbrio, basta pesquisar a natureza e ter fé. Porém, mais do que equilibrar o que está em desequilíbrio, ele nos inspira a busca por um estado de bem estar constante, através da PREVENÇÃO
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do mal, para termos qualidade de vida e bem estar. Se prevenirmos o mal (desequilíbrios), garantimos o bem estar (equilíbrio), mas também tem aquele momento que você deve atacar o mal.
Aprender com o Mestre Badu é saber que a flor, quando nasce para o mundo, está com a maior concentração de energia vital, e que, ao tomar o floral, você traz pra si a vitalidade daquela flor. Fé é energia. Você precisa acreditar para vibrar. Se você vibra, seu corpo pulsa energia e, assim, você pode acontecer no que quiser (vibração que comunica de dentro para fora). Somos natureza sagrada e, assim como a Mãe Natureza, estamos sempre nos desequilibrando e buscando o equilíbrio, o jogo da vida consiste na busca diária por equilíbrio, para isso, temos a Mãe Natureza e seus caminhos de conhecimento, vibração e mistério. Devemos ter ciência sobre a comunicação e o movimento constante de busca por equilíbrio, feito pelos nossos corpos (físico, mental e espiritual). A medicina natural trabalha com a prevenção do mal (desequilíbrios). Ele nos ensina que, para termos uma vida saudável, é preciso nos apropriar de procedimentos, técnicas, medicamentos e filosofias que garantam o bem estar com a natureza, evitando assim que o desequilíbrio aconteça. Estive no Mestre com a Rainha Belinha. Mestre fala muito de PROTEÇÃO e PREVENÇÃO. A Rainha Belinha sempre ensina que a gente não nasce sabendo ter FÉ, que é preciso aprender. Eu gosto do jeito que o Mestre ensina sobre fé.
“Ter fé é o seguinte: é você ver o milagre acontecer! Se você ver o milagre acontecer a fé vai só cada dia aumentando mais. Você faz isso dá certo, faz aquilo, dá certo. Primeira coisa que você fala, você vai pedir à Deus aquela força, aquela misericórdia. Porque aquilo vai bater no seu astral, você vai receber aquela graça e passar aquela graça para outra pessoa. Por exemplo, você aprendeu a benzer, você tem que benzer os outros. Você aprendeu a benzer você por quê? Só você? Porque Deus confia e dá a gente isso. Porque Deus está presente para trazer o milagre, nós não temos poder de ver ele em pessoa, então muita gente não sabe nem implorar a Deus. Mas ele já põe umas pessoas mais chegada.” Em tudo ele bota pesquisa, ciência, procedimento. Foi um encontro poderoso desses mais velhos. Conversamos sobre as plantas que aparecem em nosso quintal: Mestre Badu: Nós, a natureza... se você estudar a natureza e prestar bem atenção na natureza você não faz nada sofrido, nem você sofre. Porque tudo que tiver sofrendo, que você for culpado, você vai sofrer também. Rainha Belinha: E aquelas gameleira que nasce no canto das portas? Mestre Badu: Como que é? Rainha Belinha: Gameleira! Que nasce em trinca de parede, em cima do telhado. Lá
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em casa tem muitas dessa. Pelo amor de Deus....e elas são teimosas. Mestre Badu: Aquilo ali se você rancar ela do local você tem que plantar ela em outro lugar. Luana: Como assim, Mestre? Mestre Badu: Porque a planta, quando persegue a gente, ela tá trazendo felicidade pra gente, sabe? Ela não tá ali por acaso não... Então você tira ela de lá e dá um jeito dela sobreviver. Ela tá protegendo seu lar... Rainha Belinha: A gameleira lá de casa tem uma na entrada da casa, tem uma em cima do telhado, na laje do banheiro... Mestre Badu: Lá em casa nasceu um pé de pinhão na laje do meu banheiro lá... Eu fiquei curioso. Uai, gente...passava tempo, chegava tempo e o pinhão cada vez mais bonito, por cima da laje, Ai os meninos: ‘Badu, eu vou rancar aquele mato que tá lá em cima’ Eu falei: ‘vocês não põe a mão nele. Quando ele não puder ficar mais ele mesmo vai caçar o rumo dele’. Então ele ficou lá uns dez anos... lá em cima... deu galho. Ihh!! ele engaiou tudo lá. Eu não pus nada lá, não plantei nada ... foi natureza que veio, algum passarinho que colocou ele lá. Luana: O senhor fala aquele pinhão roxo? Mestre Badu: É! Luana: Aquilo é um axé total...que eles fala assim para quebrar inveja, olho gordo... Mestre Badu: Aquilo é descarrego pesado. Luana: Nossa! Crescer em cima da casa é só proteção! Mestre Badu: Ah! Ele quer me proteger, deixa ele ai! O que eu mais gosto de aprender com o Mestre é como ele cura. Ele é homem
muito sábio. É sem medida mesmo o conhecimento dele. É como a natureza! É tipo estar diante do mar... ou diante das Montanhas de Minas. Eu perguntei pra ele como eu deveria pensar o que ele me ensina. Aí ele me deu resposta tão profunda, que eu sempre me apego nela, quando as pessoas me perguntam dele:
“Porque o meu conhecimento... Não adianta falar que eu sou bom. Quem vai acreditar que eu sou bom? Ninguém me conhece. Quem fala eu sou bom é quem lida comigo, quem me conhece, que conhece meu traquejo, meu manejo, meu sistema, agora eu falar: ‘Ah,eu sou bom!’ Vai valer? Não vai. Quem põe a bondade nos outros é a outra pessoa que convive com ele, que conhece o sistema dele, conhece o trabalho, vai pesquisando até a natureza dele, então é isso que acontece entre nós.”
Luana Gonçalves: Neta de Judite Roberta de Lima, filha de Maria Albanita Roberta de Lima e Diógenes Gonçalves. Estudante de Medicina Natural. Aprendiz de Mestre Badu. Registrou os conhecimentos de Mestre Badu na UFRB, no Programa de Mestrado em História da África, da Diáspora e dos Povos Indígenas, com a pesquisa de nome: Arte de Curar e Guerrear: Mestre Badu, Medicina Natural e Tecnologias Ancestrais de Cura. Rainha Belinha: Neta de Maria Casimira Gasparino, a “Preta Véia do Concórdia”, mulher preta parteira e benzedeira que escolhida primeira Rainha do Congo do Estado Maior de Minas Gerais pela Federação dos Reinados e Congado de Nossa Senhora do Rosário do Estado de Minas Gerais. Após o falecimento se sua mãe, Dona Isabel Casimira, Belinha foi escolhida para assumir as funções de Rainha da Guarda de Moçambique Treze de Maio de Nossa Senhora do Rosário foi fundada em 1944 no bairro da Concórdia, em Belo Horizonte. É Rainha do Congo do Estado de Minas Gerais.
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Mulheres Pataxó: Histórias de luta e Resiliência por Rutian Pataxó Entrevista concedida à Juliana Pataxó Transcrita por Juliana e Rutian Pataxó
Foto: Arnã Pataxó (2021)
UHITWÉ PATAXÓ
M
orei em Barra Velha um longo período da minha vida. Saí de Barra Velha e fui morar na Ponta de Corumbau, por meio de facilidade, também pelo meu tio que era pescador, na época em que a IBDF, que era um órgão ambiental que pegou uma parte de Barra Velha para se tornar parque e foi justamente a região que a gente morava, várias famílias moravam. Firmo que também morava nessa parte, minha vó Benedita, tia Domingas, Claudio. Infelizmente, vários deles já se foram hoje. Nessa época, o meu tio optou para ir para essa área que já pescava e levou a família junto para lá e ficamos até o período em que eu vim para Coroa Vermelha. Tornar-me liderança foi como se fosse por acaso. Você já nasce com o seu espírito de liderança, é uma coisa que vai fluindo a cada dia e, quando você percebe você já é uma liderança na comunidade, que às vezes é uma coisa bem um pouco parada e que você não percebe, realmente é uma liderança e de repente você está participando de tudo: das discussões, das decisões da comunidade.
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A luta pela terra é algo que já são 520 anos. Pela luta da conquista da nossa terra, pela demarcação de nossas terras e muitos dos nossos antepassados perderam a vida, derramaram seu sangue para que hoje nós tivéssemos um pouco de terra demarcada e, mesmo assim, esse pouco ainda está sendo ameaçado de nos ser tirado ainda, e a gente vem, a cada dia, lutando né, para garantir esse nosso direito e a ampliação das nossas terra. Então, eu vejo que é uma luta constante, porque se nós pararmos, nós vamos perder ela, por isso é uma luta constante para que nós consigamos alcançar nosso objetivo que é mais terra para nosso povo. O que me motivou assim, a gente não percebe muito e começa participando juntos com as demais lideranças, diante das dificuldades, a cada dia de ter a terra para sobreviver, os nossos povos é a cada dia aumentando e os espaços a cada dia vem sendo diminuído, isso é uma das coisas que me motivou que a estar nessa luta é pela demarcação das nossas terras por que é um direito que queremos a cada dia conquistar para que nossos filhos e netos não venham sofrer mais tarde. Na atualidade... E o que eu venho acompanhando, já há mais de 20 anos junto às lideranças, diretamente viajando e participando dessa busca incansável pelos nossos direitos que é a demarcação da terra a cada viagem que fazemos até Brasília, o movimento que a gente precisa fazer lá, então a gente vem multiplicando o número de mulher participando nessas viagens, o qual é muito importante para nós pataxó estar inserido juntos aos homens da comunidade da demarcação das nossas terras. O nosso povo tem viajado muito, buscado muito, a demarcação da nossa terra. Coroa Vermelha foi demarcada depois de longas e longas datas e brigas e viagem. Em 2007 que coroa vermelha foi demarcada com muita luta. De lá para das
cá, a gente também vem continuando constantemente com as mesmas buscas que é a ampliação das demarcações de outras terras vizinhas, que a gente tem indo até Brasília, buscando junto ao congresso, indo até a FUNAI buscando esse apoio para que nossas terras sejam demarcadas.
ARNÃ PATAXÓ
Eu sou Arnã Pataxó, eu sou da comunidade indígena de Aldeia Velha. Minha história é uma história bacana de se contar, né? Eu nasci no território do Monte Pascoal, aldeia de águas belas. Meu pai trabalhou 28 anos na empresa Brasilândia, na qual explorava a mão de obra dos indígenas nessa época na questão das madeira, no desmatamento nessa região. Eu saí dela com 13 anos e vim morar em Coroa Vermelha, com isso fomos participando de algumas retomadas que hoje é o Carajá que era área de Martins, participei da retomada da Jaqueira, participei da retomada da Juerana, porque na mesma época que estava retomando a Jagueira estava acontecendo a Aroeira. Meu pai foi pra Aroeira e eu ficava na Juerana. Em 2004, eu saí de lá. Eu trabalhava com artesanato e viajava muito aqui na região e outros estados fazendo exposição de artesanato e praticando nossa cultura que é nosso diferencial. Em 2004, vim morar em Aldeia Velha, trabalhar na questão de reafirmação cultural aqui dentro. Trabalhamos e fizemos um trabalho de preservação ambiental dentro da reserva, viajamos para outros espaços, também para outros estados com o povo daqui, e a gente foi trabalhar a questão da autonomia, passamos fazer o ritual na praça, na frente da igreja, incomodava muito. Os turistas gostavam e achavam diferente. A gente começou a incomodar mesmo, porque o papel do nosso povo é incomodar mesmo, porque esse espaço é nosso, esse território é nosso, e eles que devem se sentir incomodados.
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Na minha concepção, não se faz liderança, nasce liderança. Às vezes eu pego meu filho aí, poxa, eu quero que meu filho seja um grande líder, talvez não esteja dentro dele, eu nunca vou consegui fazer dele um líder, porque estar dentro dele e as vezes, quando a gente é pequeno e as pessoas olham pra gente e fala que somos encrenqueiros e as vezes nem é isso, é o espírito de líder dentro de você despertando, concordando ou discordando de alguém, eu sempre tive isso dentro de mim de discutir, discordar e às vezes concordando ou elogiando e criticando também, até mesmos dentro de casa dos meus pais eu discordava deles desde pequena, e a gente vai crescendo, participando das retomadas, participando dos grupos de cultura, nas feira de artesanato e isso só vai te preparando. Eu falo que é uma preparação para você se tornar aquele líder mais pra frente, mas está dentro de você. Não importa qual a área que você vai exercer tem um que vai ser mais forte, que você vai identificar melhor, mais ao mesmo tempo tudo está dentro de você, a luta pelo território, pela cultura, luta pela saúde pela educação. Sempre estive presente, na retomada, sempre estive presente. Você tem esse espírito de liderança, está dentro de você, quando você vê o toque do maracá você levanta e vai. Eu cresci ouvindo falar em luta territorial. Sei que meus filhos vão dar continuidade, meus netos também, porque a história reverteu a história. Esse território era nosso, essa questão dos europeus veio fatiando nossa terra e aí quando a gente quer um pedacinho de terra estamos invadindo. Não é invasão: é retomando o que era nosso e cada dia que passa a situação fica mais difícil pra nós. Na época dos 500 anos, a catequização dos povos indígenas foi muito grande, e os jesuítas catequizando o nosso povo, matando a nossa cultura, começando pela língua e hoje nós somos livres pra
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falar nossa língua e muitos têm vergonha de falar e hoje somos livres para manter nossa cultura e muitos sentem vergonha de manter e eu falo na questão da religião. A religião eu vejo o seguinte: o que os jesuítas não conseguiram fazer lá atrás, se a gente brincar os pastores da igreja protestante vão fazer hoje com eles. Antes era impondo ao nosso povo e hoje e com autorização do nosso povo. Então você tem que ser o que quiser ser, ter a religião que quiser porque somos livres. Agora você tem que ser cristão, evangélica ou católica mais antes você tem que ser índio, acreditar nas suas crenças, praticar a sua cultura. Muitas pessoas nos criticam sem nem saber o que somos e o que estamos fazendo, então tudo isso faz parte da conquista territorial, porque nós temos direito a terra, desde que vivemos com as nossas culturas e com as nossas crenças e tradições, não é isso que fala no artigo fala 231 e 232 da Constituição? E se você perdesse essa tradição que eles estão falando? São nossas danças, crença e tradições. São um conjunto de tudo que nós temos, que é lindo é o que nos faz diferente do outro é a nossa cultura, e se deixarmos isso morrer, vai complicar para o nosso lado. Acho que a necessidade de permanecer com tudo que nós temos é a crença, quando você fala o que nos motiva a ter o território, a lutar pelo território. A terra para o nosso povo é tudo, sem a terra você não tem a saúde diferenciada, você não tem educação diferenciada, você não pode praticar seus ritos e crenças, sem a terra nós não somos absolutamente nada. A Terra é tudo. E tem muitas pessoas que não têm um olhar disso, acha que a terra é simplesmente é uma terra. A terra é além de tudo isso. Se nós pararmos para analisar que precisamos da terra para ter todas as outras conquistas, porque se nós não tivermos a terra, se você não tiver terra, você vai ter que comprar uma terra lá no meio de um bairro qualquer, vai ter que morar separadamente, sem a
prática do que é nosso. Aí você morre, vai morrer dentro de você, talvez vá viver nas suas lembranças, e você está envolvido em comunidade. Você precisa da terra e quando você vive em comunidade você faz o ritual periodicamente no seu dia a dia, você está com sua educação diferenciada, onde você tem a liberdade de levar os nossos ancião para dentro da sala de aula, de levar o aluno na casa do ancião, você pode promover os intercâmbios que a gente realiza aqui na escola. Então, você tem escolhas, você tem a possibilidade de fazer as licenciaturas na qual eu tenho um privilégio de estar fazendo, uma luta do nosso passado, onde nossos mais velhos não tiveram a oportunidade de estudar, mas eles sabiam que no futuro ia ser importante, porque no futuro nós não íamos brigar com a burduna, com os arcos e flechas, porque íamos brigar sim com os conhecimentos. Hoje conhecimento é poder, e nós temos que nos apropriarmos desse poder, sugar desses conhecimentos ditos científicos para buscar e voltar à para base para lutar pela conquista desse território. A retomada para o nosso povo é a conquista de um espaço territorial, é o fortalecimento da nossa cultura, da nossa identidade, a permanência, é a continuidade da nossa identidade. Quando nós vamos fazer uma retomada, nós pensamos na coletividade, e é um dos pontos fortes do povo Pataxó que é a questão coletiva, e que nós também não podemos deixar morrer. Porque, quando você deixa de pensar no coletivo para pensar individual, você deixa de pensar indígena, você começa a pensar como pensamento não indígena. Então quando você pensa em território, em terra, a terra é a mãe, e quando a gente fala que a terra é a mãe, por quê? Porque a terra é a mãe? Porque dela que retiramos, é dela que vem tudo, desde da semente que nós tiramos da floresta para confeccionar o nosso artesanato que é o meio de sobrevivência do nosso povo, os rios porque precisamos dele para o alimento, o peixe
que é uma culinária do nosso povo forte também, a medicina para a cura de várias doenças e várias outras coisas que nós tiramos, o nosso próprio alimento da terra. Então a terra é tudo, é a sustentabilidade, o fortalecimento espiritual. A terra para nós é tudo.
Estes textos são fruto de entrevistas com duas mulheres Pataxó, Uhitwé Pataxó da aldeia de Coroa Vermelha e Arnã Pataxó da aldeia Aldeia Velha, concedida à Juliana do Rosário Santos Pataxó, bacharela em direito pela UFBA. Nosso intuito é contribuir para a luta dos povos abordando suas vivências na comunidade, trajetória como lideranças, lutas pelo território e a presença da mulher indígena Pataxó neste processo de resiliência. O povo Pataxó está localizado originalmente no extremo Sul da Bahia, mas há também quatro aldeias no estado de Minas Gerais. Distribuídos em oito Territórios Indígenas (T.I) na Bahia. O Território de Barra Velha, onde está a aldeia mãe do povo Pataxó, os Territórios de Águas Bela, Imbiriba, Aldeia Velha, Coroa Vermelha, Ponta Grande, Mata Medonha, Comexatibá. Nas últimas décadas, a questão indígena nacional vem adquirindo uma grande visibilidade na sociedade brasileira, a partir do reconhecimento da cidadania indígena, garantida na Constituição de 1988, que influenciou diretamente na ampliação do movimento indígena em termos de organização efetiva na luta pelos direitos à terra, e, consequentemente, o direito a uma educação diferenciada e uma atenção específica à saúde. As duas lideranças mulheres indígenas estão ativamente envolvidas na luta dos povos indígenas principalmente do Povo Pataxó, Arnã e Uhitwé. Elas expressam em suas falas que se tornar liderança foi algo natural, e são exemplos de luta, motivadora para juventude e mestras dos saberes do povo Pataxó.
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“Seo Mateus Aleluia, o afro Barroco” Xilogravura em papel Artur Soares
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NÓS SOMOS AFROBARROCO
E
por Mateus Aleluia Entrevista concedida a Jade Alcântara Lôbo e Luiz Carlos Silva dos Santos Júnior Transcrita por Jade Alcântara Lôbo Editado por Mateus Aleluia
u nasci, cresci e, me fiz operário da sensibilidade artística cultural em Cachoeira. Quando fui para Angola; fui... estava indo... Eu não deixei a Cachoeira só porque fui - e, fiquei em Angola. Assim como agora eu estou aqui; não quer dizer que deixei Angola só porque eu estou aqui... A gente continua… A gente se mistura dentro do próprio tempo! Presente do universo que nos dá essa possibilidade. Talvez, a música seja esse elemento que possibilite essa mística... Esse andar nos universos...! Universo paralelo. A música nos põe no Cosmo. Tornamo-nos universal! Lupicínio Rodrigues já dizia: O pensamento parece uma coisa à toa. Mas como é que a gente voa, quando começa a pensar!? Sim... essa beleza transcendental da verdade existencial foi dita por Lupicínio Rodrigues. - A música é isso: Você, quando está realmente envolvido pela música, você não pensa, mas está pensando... É uma situação contraditória: como eu penso sem pensar? A música lhe possibilita isso. Ela lhe coloca realmente naquele estado em que você está. Você passa a ser o verbo Estar, o verbo Ser em sua forma mais explícita... Na sua forma mais real. Você não é uma caixa de ressonância de nada. No momento da música, você pode estar certo ou errado, porém, você está naquilo e naquele momento onde a música te colocou.
É comum ouvir: A música atravessou Eras... Continentes... A música não atravessou!... A música não atravessa nada!: atravessou o Atlântico, Pacífico, Índico, Mar Mediterranêo, seja o que for... Ela! A música - não atravessa. Ela está. É como pensamento: Parece uma coisa à toa. Mas como é que a gente pensa e de repente estamos no Japão? Tô no fundo do mar. Tô no fundo da terra. Tô dentro de um vulcão. É o pensamento. É a forma da gente realmente se teletransportar utilizando um mecanismo físico ainda de pouco entendimento de nossa parte… É telecinese a designação? Não tenho certeza quanto a designação correta a esse fenômeno; agora me foge a certeza da designação correta. Mas, você se transforma e depois você volta novamente para seu estado de enclausuramento acadêmico social. Volta para o enclausuramento intelectual. Na Faculdade? Sempre estive!... Sempre estivemos: Entrasse ou, entrássemos ou não, numa instituição de ensino superior neste plano de existência sempre estive; ou melhor, sempre estivemos e cursamos as faculdades; sempre fizemos partes das Academias. Você sempre foi, nas existências cósmicas que existem, aluno dos cursos, primários, secundários, médios, e superiores das instituições de ensino disponíveis nas diversas dimensões cósmicas. Depois lhe disseram que você entrou na Faculdade
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e posteriormente iria fazer parte de uma Academia. Mas sua vida sempre foi uma vida de estudante transitando do estar nas faculdades e posteriormente fazer parte das Academias... Quando você chegou nesse mundo transvestida de Jade, nascida em Ilhéus, ou como Lula cidadão da Liberdade – Curuzu; oriundos ou transferidos de uma instituição de ensino de uma civilização cósmica, que nem se recordam dela. Você(ês) quando ficou(caram) enclausurado(os), (que não era uma clausura), na barriga da mãe,certamente podemos considerar que este era um processo de curso de admissão...! Digamos assim: vestibular para ver se você ou vocês estavam aptos, para poder(em) ingressar nessa nova instituição de ensino neste plano de vida que se encontram agora. Mas você(s) saiu(ram) de uma outra escola e vieram para essa em que se encontram agora como Jade e Lula. Sim; para tornar mais claro nossa linha de raciocínio dentro do tempo, tentaremos criar paralelismo existencial focado aqui na Terra - e, Agora...! Como nós, aqui, consideremos que, saímos de nosso convívio, supostamente civilizado; quando vamos para outras terras ou países; quando a gente visita uma tribo asiática; ou, uma das etnias do continente africano ou uma aldeia de uma etnia indígena brasileira: Se, não estivermos devidamente equipados com os instrumentos da sabedoria humana, os quais nos qualifica a ver o ser humano não pertencente ao nosso grupo de empatia social, ideológica, religiosa, econômica, sexual ou de gênero. Contudo, vê-los como espécie humana como Nós - e, também com saberes, certezas e dúvidas como Nós; corremos o risco de trilhar a linha de pensamento dentro do velho axioma Narcisista pejorativo e preconceituoso: “agora vou entrar num mundo não civilizado”. Por mais que nós mesmos achemos que estamos pseudamente vacinados contra isso. A gente quando vai para esse
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mundo a gente carrega conosco esse preconceito cultural eurocentrista que nos impuseram. A gente tem de se vigiar constantemente, constante, para não cair nos erros de nossos algozes. E a gente não passar também a ser uma pessoa que olhe para outras inteligências como se fossem inteligências menores. Então, quando eu falo na outra academia que você estava, e depois como você tinha que vir para uma outra escola, que é aqui, agora, onde você está nessa vida, como Lula e como Jade, você passou num curso de admissão que foi a barriga da sua mãe. Como você nasceu aqui depois? Não sei porque em cada passo dado no tempo cósmico, você não se lembra de nada. Você não se lembra de nada. O que você veio fazer? Lhe colocaram uma pedagogia desde criança... E sua outra vida? Será que chama outra vida ou a continuidade da sua vida? - Continuamente continuada. É nesse princípio que eu penso que, hoje em dia, as nossas instituições de ensino, - digamos assim ortodoxas, as ditas mais evoluídas, ainda atentaram para poder pensar. Talvez num momento desse, em que a Pandemia se impôs, (se impõe) e, o mundo, o universo e natureza, nos forçou a todos ficarem dentro de um grande casulo. Todos nós tivemos que ficar recolhidos em casa; e, nossa casa tornou-se um grande roncó, - uma grande camarinha. Até quem não acredita em feitura está sendo feita a cabeça. Todo mundo tendo que ficar recolhido. Cada um com sua forma de recolher. Aquele que é católico se recolhe nos seus retiros espirituais católicos e pede que Jesus interceda por todos Nós junto a Jeová. Aqueles que são do Candomblé como nós, estamos aqui pensando na natureza e, pedimos que Oxalá, Lemba e Lissa interceda por Nós junto a Olorum, a NZambi< Mawu-Lissa. Aquele que segue
o Islamismo no seu retiro pede a Maomé que interceda por Nós junto de Alá! - na esperança que o ar nos traga alguma mensagem que nos oriente e sobretudo que nos dê a consciência que Vida é Vida nas suas mais variadas facetas. Medito e vejo o mar, mas nada me impede de também ver o rio. A natureza nos deu essa possibilidade da gente ter o que a gente quer. Basta que a gente sinta. Assim como a gente tem ódio, basta que a gente sinta o amor, que a gente passa a ter o amor também, e a gente fica completo nessa dualidade. Nós somos o afrobarroco, depois veio apenas a designação! Nós somos a mistura de tudo isso que existe. Somos a mistura. Insistimos em querer colocar cada coisa num determinado ponto sem saber em qual... Qual nossa linha de raciocínio para determinarmos com certeza de que temos certeza? Quantos elementos formam corpo humano? A Terra! O Homem!...
o
Podemos considerar com exatidão que o Homem veio da terra?... Tudo aquilo que forma a terra, nós temos na formação do nosso corpo? Quer dizer que nós todos somos afrobarroco!?
português a chegar ao Rio Congo ou Rio Zaire tomou conhecimento de um potente Reinado - O Reino do Congo, e desde a constatação dessa realidade definiu como sua missão diplomática mais importante catequizar os Congoleses. O Congo foi logo catequizado algumas poucas décadas antes do Brasil ser considerado descoberto pelos Portugueses em 1500, com a conversão do Rei do Congo na época ao Catolicismo. Nesta ótica nas primeiras levas de escravos Bantos trazidos à força para o Brasil, já aqui chegaram admoestados pelo catolicismo. Entretanto pelo fenômeno da convivência os congoleses e, posteriormente os angolanos e outros reinados africanos influenciaram culturalmente os portugueses; os quais quando adoeciam, não tinham toda aquela farmacopeia de Portugal, e, tinham que recorrer muito a farmacopeia nativa, aos quimbandas. E ali começou haver já uma junção cultural. E como o Congo nunca foi colonizado por Portugal, era apenas vassalo. Assim como nós somos vassalos
Detalhe da obra “Seo Mateus Aleluia, o afro Barroco” Xilogravura em papel Artur Soares
Afro porque até hoje dizem que esse mundo nosso, que hoje em dia, se diz civilizado, o princípio dele foi em África. Barroco, porque de uma forma ou de outra, para nós aqui, ele serviu para trazer a África para dentro do nosso entendimento... Veio o processo da escravidão do povo africano. Esta expansão humana d’África já chegou ao Brasil, - meio catolizados, meio cristianizados, mas sem deixar sua crença da terra, que os europeus chamavam “anímica”.
Diogo Cão, - primeiro navegador
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dos norte-americanos (risos), O Congo era vassalo de Portugal, engraçado esse processo! Então, daí é que vem essa coisa do afrobarroco. Puxa, mas me veio que ligação é essa de Congo com Portugal? E depois como é que entra Angola nesse barato? Depois como é que entra os outros lugares africanos? As outras etnias africanas, os outros reinados africanos? Como é que entra em tudo isso? E todos eles foram admoestados de uma certa forma. Eles vieram para cá trazendo a sua realidade de existência, - trazendo consigo aquilo que acreditavam ser seu culto ( Gêge/Keto/Nagô/Congo/Angola) e, aportado aqui esses distintos cultos provindo de vários pontos da África se transformou ou se recriou no Brasil como Kandomblé grande mantenedor da cultura trazida pelos africanos para o Brasil... O que significa o barroco? Vocábulo Barroco é de origem portuguesa. Designa uma concha de forma irregular. É uma concha que ainda não tá bem terminada; está em evolução... É como todo nosso processo. Uma concha ainda em formação. E o que me levou a esse tipo de análise disso tudo? Aí eu tenho que recorrer a minha época, como se eu realmente tivesse vivido as primeiras décadas do século passado.. Parece que eu tô falando com um colega meu… Qual é nome do espanhol? Que eu falo sempre? A música que eu fiz, Koumba Tam? Picasso. Aí me volto para Picasso - porque Picasso foi quem pegou todo o cubismo africano e transportou para o trabalho dele. E o que me chama atenção é porque Senghor, (Léopold Sédar Senghor) observou uma escultura de Picasso e fez uma poesia, Koumba Tam, a máscara negra. O que tocou Senghor, um dos gurus, junto com Aimé Césaire, do movimento africanista denominado “negritude”? Justamente esse traço que é o cubismo africano. E esse cubismo africano foi quem realmente deu a Picasso toda a importância que ele tem hoje em dia. E de uma certa forma ele não nega. Isso é o que é importante.
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Uma coisa não pode existir fora d’outra. O mundo tem de ser de inclusão, você não pode separar o que você não entende, entretanto existe e faz parte do Mundo. Daí é que vem o afrobarroco. O que é afrobarroco? Porque aqui o barroco no Brasil ele tem, digamos assim, uma coisa que é dele próprio. Você não confunde o barroco brasileiro com o barroco português. As obras de Aleijadinho não se parecem com nenhuma obra daquela rapaziada do outro lado. Mas não se parece mesmo. Se você for na Alemanha, lá tem o barroco alemão, que é diferente do barroco inglês, diferente do barroco francês, do barroco italiano, do barroco espanhol e por aí vai. Então o afrobarroco é isso que nós somos, a junção de duas culturas, acolhidas pela cultura indígena brasileira. O AfroBarroco assim poderia traduzir-se na Cultura CABOCLA. Barroco é como barro: como o significado da vida social, em toda essa terra saiu d’África, simbolicamente o barro é africano. Consideremos que a Pangéia foi generosa dividindo-se; então surgiram outros pontos denominados para o nosso entendimento hoje como Continentes; senão seria tudo África. E aqui no Brasil esse afrobarroco é sustentado na cultura de quem? Do autóctone, do dono da terra que é o índio. Mesmo nós... temos dificuldade em dizer isso também. O que Nós queremos fazer com o Brasil? Nós, expressão humana d’África que estamos no Brasil; Devemos nos questionar quanto a nossa proposta de inclusão real e considerando sobretudo o Índio... Teremos que lutar pela nosso reconhecimento de cidadania plena, irrestrita; pelos nossos direitos civis em conformidade como está explícito na Constituição Brasileira e, sem haver
necessidades de adendos ao que está na constituição: Todo cidadão brasileiro perante a Lei tem direitos e deveres iguais. Reivindiquemos nossos direitos civis como Brasileiros independentemente de Raça, Credo, Ideologia, Gênero etc... Cada vez que os poderes constituídos arranjam apêndices além do que está na constituição: TODO CIDADÃO BRASILEIRO PERANTE A LEI TEM DEVERES E DIREITOS IGUAIS; poderemos considerar que estão querendo distorcer o entendimento.! Eu sempre digo em Cachoeira todo mundo tinha e tem aquilo, que nós aparentemente, tivemos ou temos. Nós tivemos uma formação igual. Tem uns que percebeu que estava sendo formado, tem outros que não perceberam, mas o fato deles não perceberem isso, não se traduz que ele não tenha aquilo de quem percebeu. Ele tem de forma contornada e que um dia isso vai brotar. Não sabemos quando, não podemos determinar. E a formação artística-musical, cultural de Cachoeira, penso que é una. Não só de Cachoeira, daquele Vale do Paraguaçu, é uno. O Vale do Paraguaçu por si só é como uma grande abóbada, é como se fosse a parte do mundo de Oduduá, e a parte de cima é a parte de Obatalá, é uma grande cabaça, é um útero. Que coisa bonita aquilo. Aquilo é lindo, lindo, lindo. O rio Paraguaçu como se fosse líquido amniótico e nós estamos ali, estamos sendo gestados ali. Durante o dia todo a vida transcorre normal, aqueles casarios antigos que lembram realmente a presença portuguesa, a presença do colono; Com tudo de bom e de mal, com todo seu equilíbrio, bom e mau. O equilíbrio é isso, é o veneno da cobra. Mata e ele próprio é que cura a picada da cobra, é um soro antiofídico. Você vê aquilo tudo, a presença dos prédios os casarios portugueses. No andar do povo na rua, você vê que já não existe muito dos portugueses, aquela malemolência,
aquele calor, aquele calor úmido próprio do recôncavo. Como se estivéssemos até em Luanda. Luanda traduz bem sem ter nada de Cachoeira. Aquela umidade. Luanda tem isso aquela malemolência, o povo quase parado mas sem estar parado. Quase sem pensar, mas pensando, como se fossemos todos prontos, mortos-vivos e vivos-mortos. Então, Cachoeira no seu dia-a-dia, a tradução do movimento humano é esse. Aquele povo que olha meio desconfiado sem desconfiar de nada. Meio confiante, mas desconfiando de tudo. Uma mistura de tudo, uma mistura de emoções. Aquelas igrejas, aquelas feiras populares, a partir da noite já começa mudar. Quando chegava às nove da noite, na minha época, já começava os batuques. Nessa época, os terreiros de candomblé não ficavam na cidade, ficavam nos arredores porque o candomblé era perseguido. As casas que podiam exercer tinham que ter uma licença na delegacia de jogos e costumes, era uma contraversão bater candomblé. Então o candomblé era retirado, mas aquilo como é um vale, quando se tocava a noite, você só ouvia os tambores Rum, Rumpi, Lé e Gã. Não dava para distinguir nada, mas ouvia, o vento trazia. Não havia essa poluição de hoje, não havia carro. Uma coisa a dois, três quilômetros se ouvia bem. Como hoje aqui que estamos quarentenados a gente ouve tudo bem. É interessante né? A poluição saiu, chegou a natureza. Olha que coisa maravilhosa. Naquela época nós crescemos assim. Você fosse do candomblé ou não fosse no ponto de vista de culto - culturalmente você já era do candomblé, porque o culto do candomblé em si, tem como ponto fundamental, como pedra basilar: a música. Sem o canto, sem os toques, a entidade não desce. Tem que haver os cantos e os toques para cada orixá, para cada inquice, para cada vodun, para cada caboclo. Essa é uma religião por excelência artístico-musical. É como se a música fosse a primeira linguagem do indivíduo. A música é culto. Essa melodia
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entrava pelos canais na espontaneidade. Você não entrava em uma escola de música para aprender aquele ritmo. O ritmo entrava... é que entrava dentro de você. De manhã aquilo passava, todo mundo ia para suas casas. E o que lhe acordava? O sino da igreja católica. Você sai de uma influência do candomblé e entra outro canto que é o canto católico. Então você acordava e daqui a pouco era os órgãos da igreja tocando que entrava por todas as casas da cidade também. E você passava a ter aquela formação harmônica. Fosse você fanático e dizer que gostava daquilo ou não. Mas aquilo que você dizia não gostar entrava dentro de você. Você passava a ser um afrobarroco do ponto de vista cultural e artístico sem se dar conta. Então aquilo que nós, os Tincoãs, tínhamos naturalmente era mesmo natural de qualquer cidadão ou cidadã de Cachoeira, que também tinha e tem isso. Não punha para fora às vezes até por uma questão de existência, para não parecer mal. Às vezes ouvia-se de alguém que negava a sua formação cultural espontânea e perguntava? Então, você gosta de candomblé?
Como contrapartida nós dizíamos: Nós somos do dendê sim! somos da soberania do dendê. E assim, pelos canais da espontaneidade que entrou o afrobarroco. De uma forma natural. E os Tincoãs, - Nós quando começamos a fazer isso, - foi de uma forma espontânea sem nenhuma pretensão de mostrar nada. Essa é que é a parte interessante. Num tinha nada daquilo, “vou fazer isso porque eu sou negro”. Não! Começamos a fazer porque nós somos isso. Assim como eu começo a respirar porque preciso viver. Se eu me meter a gás com água eu danço! Ou eu fazia aquilo, ou Dadinho fazia aquilo, ou Heraldo fazia aquilo. Nós passávamos a fazer ou a gente estava nos condenando a um mundo de negação de si próprio. Não que tivéssemos essa consciência intelectualizada, ou politizada. Tínhamos de um ponto de vista intuitivo do que era sobreviver. Que sobrevivência você não aprende na escola. Ninguém nunca te ensinou a respirar e você respira. Sobrevivência na realidade você traz consigo, é a força da vida. Khalil Gibran diz bem: “a vida na ânsia de si mesma, a vida através dela própria, antropofagia, ela se come”.
Detalhe da obra “Seo Mateus Aleluia, o afro Barroco” Xilogravura em papel | Artur Soares
Dizíamos: Sim! Ouvíamos a resposta: “Negócio de dendê não é comigo não”.
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A mão negra na carne ausência Tiganá Santana Nossa companheira de viagem é, sim, a plumagem da abertura Ora, mais que vento difuso, quanta trança movida por dentro. Eu, fusão inteira envernizada por mutilações, que não acompanho ninguém. Não quero nem mesmo a ausência para me conformar diante das forças aplicadas ao modo das coisas. Eu mesmo só tenho querenças verbais e, como disse, incompletas, vigentes, maneiristas, desenvergadas. As minhas irmãs, os meus anti-irmãos, o meu desconhecimento e a doença como a coisa mais velha, a lupa do que atrapalha a mirada funcional da inteligência. A companheira vigiada na copa das árvores tortas, no cimo da ladeira, na cúpula do sonho que não cozinhou suficientemente a indignação, o interesse, o êxtase subnotificado pelas capturas do sobressalto. Mas os meus olhos foscos, não os deixo nunca de guardar, a cada minuto inclinado para baixo, num fosso de vidro necessariamente articulado com a minha memória.
Foto: Ismael Silva
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A Colcha de Retalhos da Memória e a Comida Afetiva de Dona Angélica
Foto: Safira Moreira
por Jade Alcântara Lôbo
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oana Angélica Moreira, mulher de Oxum, criadora do Ajeum da Diáspora, nasceu em Itaquara, interior da Bahia, em 1959. Sua inspiração e força foram nutridas desde cedo no aprendizado com suas mais velhas a partir de suas tecnologias ancestrais que driblam os obstáculos impostos pelo colonialismo.
na Universidade do Estado da Bahia. Na época, ela viajava vendendo jóias da cultura negra, com simbologias de orixás e búzios, fabricada pelo seu ex-marido. Angélica circulava no universo religioso e universo negro acadêmico como os Congressos Nacionais de Pesquisadores/ as Negros/as.
Ainda pequena, em Itaquara, Angélica aprendeu a cozinhar com sua avó, que lhe pedia para colher os temperos em seu quintal. Com dez anos de idade, Angélica foi morar com sua mãe, Maria do Carmo Lisboa, e irmãos em uma casinha de sapê, construída por Maria do Carmo no bairro Pirajá, em Salvador. Sua mãe passou a trabalhar lavando as roupas na casa dos brancos no centro da cidade(CampoGrande,Graça,Barra)enquanto Angélica e seus irmãos eram encarregados de buscar as roupas e os lençóis. Ela conta que havia uma verdadeira tecnologia para lavar as roupas. Maria do Carmo as lavava na mão com sabão que confeccionava com sebo reaproveitado de uma fábrica. Depois botava para quarar, enxaguava, passava patchuli, anil e ferro de carvão.
Entre terminar o curso de pedagogia e a separação de seu ex-marido, em 2013 nasceu o Ajeum da Diáspora. Nesse período, Angélica, que estava pesquisando sobre o pertencimento na diáspora e os lugares em que as jóias circulavam, começou a estudar pratos da gastronomia africana e afrodiaspórica.
Maria do Carmo também trabalhava alisando o cabelo das mulheres do bairro. Ela se tornou uma grande referência de mulher empreendedora para Angélica, que lhe ensinou a ler. Em sua infância, Angélica também aprendeu a importância do convívio coletivo com a união de seus vizinhos para fazer o sabão ou para fazer o cozinhado no quintal, no qual cada um colaborava com um pouco de comida. Hoje, Angélica narra contente como suas três filhas se formaram em universidades públicas: Daza Ifá Moreira é jornalista, Inaê Moreira professora de dança e Safira Moreira cineasta. Angélica sempre quis fazer o nível superior, então com 49 anos, depois de 27 anos longe das salas de aula, começou a cursar pedagogia
O ano de 2014 foi uma efervescência para o Ajeum que iniciou com eventos culinários quinzenais na casa de Angélica, no bairro Tororó. Ela conta que o Ajeum “nasceu andando com suas próprias pernas”, agitando o cenário gastronômico de Salvador. Angélica, que não tinha estrutura para atender tantas pessoas em sua casa, passou a servir em gamelas, para compartilhar o alimento, praticando o conceito de comer junto, ajeum! Em sua casa, Angélica se dedicou a apresentar uma experiência gastronômica baseada na memória da diáspora. Rapidamente ela começou a aparecer em sites destinados à cultura negra não só do Brasil, mas também internacionais. Recebendo turistas de todo o mundo e figuras renomadas como o chef estadunidense Anthony Bourdain, a pensadora Angela Davis e a escritora Conceição Evaristo. A partir do reconhecimento do Ajeum da Diáspora, Angélica voltou a percorrer os lugares que trabalhava vendendo jóias. Ela chegou a conhecer o México e hoje dá aulas de culinária afrodiaspórica. Em 2020, Angélica estava com sua agenda cheia com diversos grupos de
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afro-americanos querendo conhecer sua cozinha, quando iniciou a pandemia do Covid-19. Neste novo cenário, ela recorreu à leitura de livros, o que sempre teve muito apreço: “Desde que comecei a cozinhar percebi que nos livros sempre tinham comidas e cheiros”. Então, Angélica criou com suas filhas o Saboreando Histórias, ensinando por conferências onlines os pratos presentes em livros de autores negros, começando por Carolina Maria de Jesus. Trabalhando com a ligação entre literatura e gastronomia negra, sua página do instagram começou a atrair diversos fãs e seguidores. Até os autores dos livros começaram a participar de suas aulas como Ana Maria Gonçalves, autora de um de seus livros favoritos, “Defeito de Cor” e o ator Lázaro Ramos.
Foto: Safira Moreira
Para nossa revista, Angélica escolheu nos ensinar o prato Arroz de Hauçá do livro “Um Defeito de Cor”. Segundo ela, por meio desse prato podemos aprender o papel importantíssimo das ganhadeiras durante as revoluções, levando os recados entre os grupos negros insurgentes.
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Arroz de Hauçá Ingredientes: Ingredientes: 500gr de arroz branco tipo 1 500gr de camarão fresco limpos 500gr de carne seca dessalgada cozida e desfiada 1 lt de leite de Coco 1 cebola grande picada 2 cebolas grandes em tiras 1 tomate picado 1 xícara de chá de coentro picado 1 limão 4 pimentas doces 1 xícara de chá de azeite de dendê 2 xícaras de chá de azeite de oliva 1 xícara de chá de açúcar Sal a gosto
Modo de preparo: Coloque o arroz para cozinhar, quando estiver quase cozido, acrescente 500ml do leite de coco e o açúcar. O arroz deve ficar empapado. Em uma frigideira acrescente um pouco do azeite de oliva, as cebolas e deixe fritar levemente. Retire da frigideira e reserve. Acrescente um pouco de azeite de oliva e frite a carne seca. Reserve. Em uma panela refogue a cebola picada, o tomate, acrescente o camarão e o sal a gosto. Coloque o suco do limão, o 200ml de leite de Coco, o coentro, a pimenta doce e por último o azeite de dendê. Deixe cozinhar por cinco minutos. Arrume colocando o arroz no centro do prato, a carne e as cebolas em volta do prato e os camarões no centro do arroz.
Rendimento: 4 pessoas
“Dô preferência à literatura de mulheres negras. Tem um pertencimento, como é o envolvimento: é uma grande colcha de retalho. Cada um dos autores e autoras traz um retalho para fazer nossa ligação com a nossa mãe África. É uma preciosidade tanto as nacionais quanto as internacionais, como Maya Angelou, a Toni Morrison. Você vê como tem um pedaço de cada uma de nós nesses livros, é uma riqueza maravilhosa. Pode ser cubana, pode ser nigeriana, pode ser americana, ali você vai ver um pedacinho de África nesses escritos. Tá emendando essa grande colcha, essa colcha atlântica, que vai daqui até o continente africano. A literatura faz isso, a literatura negra está fazendo isso, esse grande navio, mas o navio agora é de recordações , é de religare, de religação mesmo. E, fora isso, as religiões de matriz africanos que conseguiram manter. A comida só existe porque resistiu nos terreiros. Se não fosse os terreiros essas comidas já teriam sido tomadas. Mas não é resistência porque eu resisto, é porque elas resistiram. A comida é a ligação com nossos ancestrais, essa nova família que o candomblé criou no Brasil.”
“Eu não vivo sem ler, não durmo sem ler.” “Eu me identifico muito com Kehinde de um Defeito de Cor, por ser essa mulher que sempre tem esperança, me lembra muito as mulheres de minha família. Ela saiu da África quando era criança e aprendeu a ler e ali ela começou a fazer a revolução dela, ali ela começou a mudar o destino dela. Depois, ela vem pra Salvador, ela sobe e desce com o tabuleiro vendendo. Ela tem uma padaria. É aquela mulher que representa muito mulheres negras. Representa essas mulheres que estão em movimento, uma personagem forte nos papéis na diáspora, está sempre em movimento.” (Dona Angélica)
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Cozinha Anticolonial Pataxó Foto: Deborah Santos Martins
por Deborah Santos Martins
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e chamo Deborah Santos Martins, tenho 26 anos e sou cozinheira do Alecrim Baiano. O Alecrim foi aquele famoso “unindo o útil ao agradável’’. Eu tive a ideia em abril de 2020, para me ajudar a lidar com a quarentena e também para entender e conversar com as pessoas o tanto e como a relação delas com a alimentação estava mudando por conta desse cenário. Eu tenho prazer em cozinhar e em ensinar que não consigo expressar em palavras. A culinária na minha família parece algo genético, porque todos nós cozinhamos muito bem e nossas escolas foram e são os nossos ancestrais. Minha família é de pescadores. Eu lembro que, ainda criança, minha mãe me colocava ao lado dela enquanto tratava os peixes que meus tios e meu avô traziam do mar. Ela me ensinava sobre as épocas de cada peixe, qual era fêmea e qual era macho, me ensinava a diferença entre peixe de escama e peixe de couro, entre peixe de água salgada e peixe de água doce e, talvez até inconscientemente, eu aprendi tudo. Hoje meu avô se foi e nós continuamos tratando os peixes que meus tios e meus primos trazem do mar. Não deu tempo pra ele ver, em vida, sua neta se tornando bacharel em direito, a outra neta se tornando engenheira de pesca, o outro neto viajando por toda Europa, mas tenho certeza que ele nos vê e nos protege.
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A gastronomia, profissionalmente falando, nunca foi uma ideia que me ocorreu. Por minha família ser toda composta por excelentes cozinheiros, eu pensava ser só mais uma cumprindo o papel que é fazer parte dessa família, mas eu percebia também que para muitas pessoas de fora, comer bem é um desafio e eu quis trazer essas questões ao público com o Alecrim Baiano. Por que uma comida de qualidade é um luxo sendo que a alimentação adequada é um direito de todo mundo? E por que nossa comida, a comida indígena, a comida do interior, só é valorizada dentro de restaurantes de chefs brancos em grandes centros urbanos? A arte indígena não é só aquela que veem em museus. Não ficamos no passado, estamos no presente e resistimos. Meu avô, Antônio Bonfim dos Santos, era indígena. Ele faleceu ano retrasado. Um homem de pouca instrução e de muita inteligência. Saiu da aldeia jovem, mas nunca perdeu a cultura. Fez questão. Apesar de ter sido catequizado quando veio pra Alcobaça, na religião que ele expressava coexistem muitas influências. Ele não abria mão dos rezos
dos ancestrais, não abria mão da reza de folhas, dos óleos, dos banhos, da medicina da natureza. Inclusive me ensinou tudo que eu sei sobre a cura através das plantas e ele me pedia pra anotar e guardar pra eu não esquecer. Eu não esqueceria nem se quisesse! Meu avô criou todos os filhos com o sustento da pesca que, até hoje, é importante pra minha família porque meus tios e meus primos são pescadores e todos trazem consigo a cultura. Minha avó também é indígena, mas não sei muito sobre o povo dela e ela não se sente à vontade para falar da própria história. Meu avô era pataxó. Ainda é. O espírito dele me guia. Infelizmente, minha família tem muita vergonha e medo de dizer que é indígena. Eu e alguns primos estamos em processo de resgate ancestral para que ninguém mais, depois da gente, tenha que lidar com essa vergonha, para que se orgulhe. Apesar da sociedade fetichizar, hiperssexualizar, exotizar, animalizar, invisibilizar/apagar nossos corpos e nossas presenças, eu quero que as próximas gerações nadem contra essa maré.
Foto: Deborah Santos Martins
MOQUECA DE PEIXE NA FOLHA DE BANANEIRA Ingredientes 5 postas de um peixe bom pra assar (badejo, robalo, dourado, bijupirá, vermelho, por exemplo) 2 xícaras de aroeira (pimenta rosa) 1/2 xícara de azeite 2 dentes de alho 10 folhas de alecrim Sal a gosto 5 pedaços de folha de bananeira de tamanho que dê pra cobrir as postas
Modo de preparo 1. Bata todos os temperos no liquidificador até formar uma pasta; 2. Passe a pasta por toda a posta do peixe; 3. Passe as folhas de bananeira levemente sobre o fogo para amolecer, senão pode quebrar quando você for enrolar a posta; 4. Enrole a posta na folha de bananeira como se estivesse embalando um presente; 5. Use barbante ou cordas da própria bananeira pra amarrar o embrulho; 6. Leve ao forno ou coloque numa grelha em cima da lenha; 7. Deixe por, aproximadamente, 7 minutos de cada lado (se for na lenha) ou 14 minutos no forno preaquecido a 200°C.
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LUZ SOBRE FÁ por Aimé Akpinkou Maharaja AZÈBABA
Entrevista concedida à Clarice Lis Marcon no Benin em janeiro de 2017, tradução de Monica Aduni. Entre este mundo e o outro, nossos olhos veem muito pouco, mas sabemos, pelas poesias, que nossa alma foi forjada por mãos de outro mundo. Vidas que se cruzam sob a face da ancestralidade, sob os legados dos Voduns e dos Orixás que nos conduziram barco adentro, barco afora... somos corpos presentes, estados de espírito, matérias de água, matérias de terra, matérias de luz... Azèbaba é o Mestre que nos guia nessa jornada dos verbos de Fá, nos apresenta seus versos simbólicos, expostos como presentes, vivos, verdadeiros, emaranhados na terra vermelha africana, nas luzes do outro mundo e nas formas surreais e contemporâneas da existência humana. Fá, que esteve presente no começo da humanidade, guia as obras desse artista, participa cor a cor, face a face, verso a verso e Azèbaba interpreta seus signos e resgata a humanidade do mesmo, trazendo-nos um Fá nascível, histórico, um ancestral, um rei. O mito e a herança do colonialismo morrem face às realidades exploradas pelo mestre, que vê, através dos olhos de Fá-Orunmilá, tradição e modernidade alimentando-se sem conflitos, refletindo seres como nós, em camadas de realidade. Existentes, vivos, negros e vermelhos como sol que brilha na África, viva, contemporânea e real. O Benin do nosso mundo clama pela existência complexa de suas divindades, e Fá, aqui, nos mostra o caminho. Faces do invisível por Clarice Lis Marcon
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m tudo o que eu fiz, eu só pesquiso a nossa tradição, nossa cultura, que tem por base o Fá, porque toda nossa cultura, tudo que a gente vai falar da nossa tradição, se você não partir de Fá, não é verdade. Ele é o primeiro mensageiro enviado, então ele é o Verbo, ele pôde desenhar o primeiro, esculpir o primeiro, porque, como foi alguém que chegou para curar o mundo, os males que estão sobre a Terra, então ele toma as cores da terra para desenhar os sinais, as formas, e com isso, ele cura as pessoas. Ele faz milagres com isso, ele pega uma madeira e esculpe, um homem ou uma mulher, ele esculpe e ele diz: “Bom, esse que já quer morrer, ele vai transformar a morte em madeira esculpida e a pessoa vai sobreviver”, e ele o faz. Realmente, a pessoa sobrevive. Foi assim que ele esculpiu as primeiras esculturas e curou as pessoas. E a mesma coisa dentro dos versos, tem muitos versos que ele canta. E se ele canta, ele cura ou faz milagres, ele resolve os problemas com suas canções. Isso faz com que ele seja o primeiro
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Fá, no idioma Fongbe do Benin, é o equivalente, em yorubá, a Ifá, forma mais comum no culto afro-brasileiro.
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que cantou. Ele é o exemplo de todos os cantores também. Então na pintura, na escultura, na música, na comédia. Porque ele fez muitas, ele é Griot, então ele fez muitas comédias...Então ele é o primeiro, a base, a cumbuca de barro [marmite] de todas, digamos mesmo, as religiões, porque ele é o primeiro que é religião assim, o primeiro que instalou o culto vodun, e todo o mundo começou por aí.
Então, de algum modo, no mundo todo, digamos, a arte universal, o pai da arte universal é Fá. Porque ele é também o primeiro que tem a escrita e seu alfabeto contém duas letras: o um, digamos, um traço vertical, e o zero, pontilhado. E é com os dois que atualmente vem todas as línguas existentes na Terra, universalmente, é de lá que se escreve seu alfabeto. Não existe alfabeto que você veja escrito sem traço e sem forma curva ou zero. Assim, ele é o primeiro, a base, e é por isso que eu pesquisei muito dentro do Fá. Eu vejo que um negócio interessante que a gente deve muito folhear, consultar, todo artista deve pesquisar lá... é lá a cumbuca, a raiz da arte. E, sobretudo, eu dizia às pessoas, “é preciso que a gente pesquise muito lá porque a árvore que esquece suas raízes perde suas folhas...”. Então, para não perder nossas folhas, para ter sempre os conhecimentos, para sempre refletir, florescer, maravilhar, então a gente tem que sempre pesquisar no pote de Fá. Logo, é por isso que eu pinto muito no estilo surrealista, porque as primeiras pinturas, a vemos muitas vezes com muitos braços, pernas ou pernas um pouco mais grossas ou a cabeça em forma de máscara. Por isso que eu peguei o hábito de desenhar, pintar assim. E eu utilizo mais o ponto, porque o ser humano, a criatura, toda criatura começou por um ponto, como as duas letras: um traço e um zero pontilhado. É por isso que na nossa pele, em toda criatura há poros para respirar. Ora, lá estão os pontos. Então, toda coisa é um ponto, começa de um ponto. É por isso que eu amo toda pintura em pontos, me agrada utilizar o pontilhismo para pintar.
De alguma maneira, outros me chamam pontilhista, autores me chamam surrealista, eu aceito todos os nomes que me dão, porque eu estou no meu mundo de pesquisa e compreensão da minha cultura e da minha tradição. Às vezes o que eu vejo, as pessoas não veem. Porque, já no ano 2000, nas minhas pinturas, eu sou o primeiro que começou a falar do nascimento de Fá, senão antes as pessoas tomavam Fá como um mito. Eu que as disse: “Não, não é um mito, é um ser, ele nasceu”.
Detalhe da obra “Diimindji la naissance” , Benim, 2013 Artista: Azèbaba | Técnica: Pintura à óleo
Então, temos que respeitá-lo... E eles começaram a me perguntar: “Como ele nasceu de uma mulher?” E eu comecei a fazer conferências sobre isso, fazer exposições sobre isso, para explicar como Fá nasceu de uma mulher já idosa, que não havia conseguido ter filhos, e um dia, uma manhã na floresta, para ir procurar lenha, ela encontrou um espírito que a gente
Azèbaba, cujo nome significa “O Rei dos feiticeiros”, é artista plástico beninense, músico e Mestre Fá, ele transmite mensagens decifradas desta divindade que é representado pelo oráculo. Azèbaba nos conta essas histórias em toda sua complexidade e beleza. Seus quadros revelam essas mensagens, expõem a jornada desta e de outras entidades dos universos Fon e Yorubá, desvendando assim, passado, presente e futuro, sob a perspectiva da espiritualidade presente em cada detalhe do universo ao nosso redor e decifrada por ele. 2
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Então, a mãe de Fá foi a primeira mulher que foi escravizada, amarrada. A mãe dele chegou em casa e contou isso ao seu marido, o rei, que não acreditou. Mas ao 16º dia realmente, ao primeiro canto do galo isso começou: as pessoas chegaram, mataram o papai e pegaram mamãe. E indo, ela deixou seu filho Fá, que acabara de nascer, na cabaça. É por isso que até hoje, em todos os países, Fá fica numa cabaça. Então, ela o deixou na cabaça, coberto, com as anciãs que a ajudaram para cuidar dele. E, assim, ela foi embora escravizada. E agora, a mulher sábia ficou com o pequeno, o pequeno começou a crescer, o marido dela é caçador e levou o menino para a caça. O menino olhava as folhas e dizia: “Essa folha cura isso, essa folha faz aquilo”. Isso surpreendeu o caçador. Se alguém estivesse doente na tribo, o pequeno Fá curava a pessoa pelos sinais, desenhos, folhas, isso começou a surpreender as pessoas. O rei que chegou e declarou guerra e matou seu pai... sua única filha estava doente. Fizeram de tudo, a filha vai morrer. Alguém foi lá pegar o menino, levaram o pequeno Fá, ele diz que pode curá-la. O rei disse: “Se você curá-la, eu divido a vila em duas, você é rei de um lado, eu sou rei do outro lado”. E isso foi feito. Ele a curou, e a vila foi divida, ele se tornou rei. Agora, ele precisa de escravos. Partiram para comprar os escravos e sua mamãe estava no meio dos escravos que
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Diimindji la naissance (Benim, 2013) Artista: Azèbaba | Técnica: Pintura à óleo
chama Aziza. São espíritos que no tempo fazem as trocas das folhas de cura com as pessoas. E esse a disse: “Você pega tal folha lá, e você vai, prepare esse medicamento e o beba. E depois de bebê-lo, realmente, você vai ficar grávida”. E realmente a mulher fez isso, e engravidou, já idosa, com 80 anos. E agora, ela está grávida. Ela vai de novo à floresta para buscar lenha, ela escuta a voz de um bebê que está na sua barriga e que a diz: “Eu vou nascer dentro de 16 dias, e, neste dia, será ao primeiro grito do galo. E nesse momento, as outras comunidades virão declarar guerra à minha comunidade e vão matar meu pai. Você será a primeira mulher que partirá em escravidão”.
ele comprou. E quando ele reconheceu sua mamãe, ele a entronizou. E a chamamos de Minona. Hoje, muitas pessoas que escutam falar de Minona, creem que é a grande feiticeira. Não, Minona é a mãe de Fá. E Minona quer dizer “nossa mãe, a rainha”, é o significado direto: “nossa mãe, a rainha”, Minona. Então, fui eu que comecei a recitar essa história: o nascimento de Fá. Assim, e hoje, agradeço muito a Dada Segbo, nosso criador, que fez com que muita gente começasse a aceitá-lo. Eu o fiz em pintura, em exposição, eu cantei e agora eles começaram a engolir. Então, eu faço minha arte, muita gente chama minhas obras de “obras curativas”, porque, em realidade,
se as pessoas vêm e me dizem, eu tenho tal problema, eu digo “Pegue esse quadro aí, pinte-o”. E, se você realmente o pinta, isso resolve muitos problemas. Isso cura as pessoas, e assim resolve os problemas, porque os sinais que eu emprego, as formas que emprego, as cores que emprego, são coisas que tinham riquezas dentro e eu sei o que misturar e o quê não pode ir com o quê. Então eu não coloco os signos por nada, aleatoriamente, eu sei os seus valores antes de os unir, mesmo as cores. Em escultura ou instalação, eu não instalo qualquer madeira, eu sei qual madeira eu devo explorar. Se é o roko, porque utilizar [a madeira do] roko? Roko tem uma vida mais longa, mais longevidade do que muitas outras madeiras, pra não dizer do que todas
as madeiras. A parte roko, tem kakè. Então, eu tenho que saber qual madeira vou utilizar em qual circunstância e em qual obra. É por isso que as pessoas chamam minhas obras de “obras curativas”. É isso.
Detalhe da obra “Diimindji la naissance” , Benim, 2013 Artista: Azèbaba | Técnica: Pintura à óleo
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O Quilombo e os Deuses: Cânticos, Patuás e lutas da comunidade quilombola de Custanera por Arnaldo de Lima Transcrito e editado por Luiz Carlos Silva dos Santos Junior
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Com 13 anos de idade, adentrei na Religião de Umbanda, da qual permaneço até hoje como Zelador de Santo da Casa de Guerreiro Caboclos de Oxóssi e realizo dentro da minha missão a ajuda ao próximo através da espiritualidade, movimento no qual milito em prol da valorização da ancestralidade e raízes negras. Há 04 meses fui iniciado no Candomblé e foi fundada na comunidade a primeira casa de candomblé dentro de um quilombo do Piauí, o Ilê Asé Odé Igbo Ajegbe. Os encontros de terreiros aqui, nesse quilombo de mais de 40 famílias é de uma grandeza. Sou da nação Ketu no Candomblé e a necessidade se faz para não perder as origens e nos manter sempre conectados com nosso berço que é a mãe África.
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Foto: Maria Rita de Souza Lima
ou Arnaldo de Lima, conhecido como Naldinho, nascido aos 11 dias do mês de dezembro de 1977, na Comunidade Quilombola de Custaneira, em Paquetá no Piauí. Desde os meus 8 anos de idade, participo de rodas onde nossos griots - mais velhos e mais velhas - promoviam ações de formação dentro da comunidade diariamente. Esse movimento constante de aprender e deixar-se aprender, herdamos delas e deles. São potencialidades, um tesouro de ensinamentos, de resistência e de luta do nosso povo.
Sou bisneto de africanos que foram escravizados e tenho 13 tios paternos. Entre todos esses, seis são mulheres. Todas são parteiras, e, até hoje, guardo o patuá delas. Eles são centenários. Também guardo os de minha vó, que também foi parteira. Elas passaram para mim, para guardar e elas continuam exercendo o ofício, mas eu fiquei guardando os patuás. Esses objetos seriam o instrumento, a arma da medicina que elas usavam para fazer um parto saudável e tranquilo.
esse é o poder dos cantos para nós. Em todas as nossas manifestações culturais ou religiosas, os cantos estão presentes, até mesmo na hora da partida onde cantamos as excelências.
São dois patuás que as nossas parteiras usavam. Um era usado pela própria parteira na hora do acompanhamento, na hora do trabalho do parto. E o outro patuá era usado no pescoço da mulher que estava parindo. A última tia que eu tenho hoje viva está com 90 anos e ela passou para mim. Importante mencionar que, quando a gente fala da nossa cultura, isso está no sangue, é a vida do nosso povo. Toda essa riqueza deixada pelos nossos ancestrais é passada aos nossos herdeiros de forma oral. Desde pequenos, eles estão inseridos por vontade própria dentro das manifestações culturais e com o passar do tempo vão aprendendo. Os cânticos têm toda uma potencialidade na vida da resistência do nosso povo. São eles que nos dão força, ânimo e coragem. Nos dão e nos fazem tomar posições de lutar, resistir, porque cantamos, ouvimos o cântico e não desistimos. Cada cântico nos dá a força de superação. Mas também representam para nós todos os momentos de nossas vidas desde o nascimento até o momento da despedida. Desde pequeno, quando a gente ia trabalhar nas coisas do dia a dia, nossa mãe e vó faziam cantado e assim eu aprendi, desde o raiar do dia até a hora de dormir elas cantavam e a gente aprendia. Ao entoar os cantos traz a memória de pessoas que já estiveram no nosso convívio, nos mantemos próximos aos nossos ancestrais, porque foram eles que nos ensinaram, então nunca cantamos só,
Na foto: Ana Maria da Conceição e Arnaldo de Lima, Adailton José de Lima (fundo) Foto: Maria Rita de Souza Lima
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O acordar de manhã dentro da comunidade já era escutar alguém cantando. Estar trabalhando dentro da comunidade nas atividades do dia a dia na roça era escutar o povo cantar. Trabalhava cantando, você acordava cantando, você vivia cantando dentro da comunidade, pois ela herdou todas essas manifestações e pra ela esse é o bem mais precioso que a comunidade tem. São as cantigas do batuque, do samba de cumbuca, as lezeiras, as muvucas com seus lundu, os benditos das novenas, as penitencias no período de chuva, as rodas de São Gonçalo, as danças para São Benedito, o Reisado. Atividades que estão entranhadas o ano todo dentro na comunidade. Cada música traz a presença dos nossos mais velhos. Nós cantamos com toda força, porque nós cantamos a vida do nosso povo. Nas festividades com a devoção dos santos populares católicos - que a gente tem como guardião - festejamos o coração de Jesus que já comemoramos há 123 anos. Na primeira noite de noventa, nós levantamos a bandeira com os cânticos centenários e em seguida, fazemos a roda de São Gonçalo. Por ser mestre de São Gonçalo, como são meu pai e meus avôs, a gente percorre toda a região pagando a promessa das pessoas feitas entre elas e o santo. Quem faz a promessa com o santo é chamado de dono da promessa, sendo comum em todas as regiões, estar responsável em preparar um jantar. Nesse dia, convidam-se os mestres, puxadores, as dançadeiras, guias e contraguias para fazer a dança de São Gonçalo. Depois da dança, tem o café para finalizar. Além disso, usamos um refrigerante natural feito no quilombo que é chamado Aluá. Ele é feito a base de milho, farinha, tamarindo e os temperos usados são: cravo, canela e gengibre. Isso é feito três dias com três noites no sol. Torra o milho e faz o Aluá. Trabalho com o manuseio das ervas medicinais, que uso para o preparo de garrafadas, lambedores, banhos, etc.
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Fundei a Associação de Desenvolvimento Rural Quilombola de Custaneira no ano de 1999, atuo junto a Coordenação Estadual de Comunidades Negras Rurais Quilombolas e Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas, também faço parte do Observatório Quilombola do Estado do Piauí. Em parceria com algumas instituições, fundamos o Encontro de Casas de Terreiros de Comunidades Quilombolas no ano de 2016, estamos na V edição, esse é um espaço em que reúne o povo de terreiro com visitantes, em geral, acadêmicos de todo Brasil para que tenham uma proximidade maior com nossa cultura e nossa história. Dessa forma, começamos a trabalhar com outra comunidades quilombolas do Estado do Piauí que têm terreiros, com o intuito de participarmos juntos dos encontros de formação e levarmos para todos os terreiros essa importância de nos unir para fortalecer e enfrentar a questão do preconceito, discriminação, intolerância religiosa e preparar os jovens dentro dos terreiros para esse enfrentamento. O encontro de terreiros trouxe muitos jovens para dentro da espiritualidade. Trabalhamos a questão do artesanato, a importância das ervas medicinas, cada uma delas com seu poder de cura e usada para cada situação. Para mim isso é uma confluência que precisa sempre ter contato para fortalecer a resistência do nosso povo.
Foto: Maria Rita de Souza Lima
Mateus de Souza Lima, Luamita, Francisco de Assis (servindo a bebida) e Arnaldo de Lima
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Foto: Clarice Lis Marcon
Chegança dos Marujos Fragata Brasileira um barco feito de canto
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por Rosildo do Rosário1
grupo “Chegança dos Marujos Fragata Brasileira”, segundo relatos dos mais antigos, tem por volta de 80 anos. Porém, acreditamos que tem mais de 100. Mesmo tendo sido um dos mais importantes movimentos culturais da cidade de Saubara, ficou durante muito tempo desativado, mas existe uma série de narrativas que apontam essa retomada entre 24 e 27 anos.
Rosildo Moreira do Rosário é mestre do grupo Chegança dos Marujos Fragata Brasileira da cidade de Saubara. Também é professor, pedagogo, Mestre em História da África da Diáspora e dos Povos indígenas pela UFRB, atua na rede municipal de ensino das cidades de Saubara e Santo Amaro/BA. Foi coordenador da Associação dos Sambadores e Sambadeiras do Estado da Bahia. É o atual Coordenador da Rede de Cheganças, Marujadas e Lutas entre Mouros e Cristãos da Bahia.
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Pirajá é o local onde aconteceu a última batalha que resultou na expulsão definitiva de holandeses e portugueses de terras brasileiras. Há quem diga que aqui na Bahia de fato aconteceu a Independência do Brasil. E, no imaginário dessas pessoas, foi possível reproduzir este momento histórico ludicamente através da Marujada. Em outro trecho de outra canção, é possível compreender as razões da localização da igreja de São Domingos em Saubara:
Glorioso São Domingos/ Traz a frente para o mar/ Pra socorrer todo aquele/ Que por seu nome chamar
Dizem que a Igreja de São Domingos foi erguida lá no “alto da freguesia” de onde era possível ver toda a movimentação dos inimigos que possivelmente atacariam cidades importantes naquela época. Saubara era uma das portas de entrada para o Recôncavo e, portanto, sua localização era muito estratégica, protegendo a Baía de Todos os Santos, contra os invasores. Há cantigas que relatam também acontecimentos que se passam dentro das embarcações, que diferem as Cheganças de Marujos de algumas Chegança de Mouros. A
Foto: Carol Garcia
Algumas cantigas da Chegança contam a história de uma marinha de guerra genuinamente brasileira que participa da guerra de independência da Bahia. Isso pode ser verificado em algumas canções “Vamos companheiros / Vamos lá chegar /Leva essa bandeira /Lá em Pirajá”.
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inexistência de qualquer episódio que trata das lutas entre Mouros e Cristãos nas Cheganças de Marujos é evidência de que, para mim, esta manifestação é reelaborada no Brasil a partir de experiências vividas nas travessias marítimas e fluviais. Toda a história é contada através de canções que são acompanhadas por uma orquestra de pandeiros tradicionais, feitos com aro de madeira de jenipapo, chocalho feito com lata de alumínio e encourados com couro de bode. São cerca de 35 cantigas entoadas em sete ritmos diferentes. As cantigas desse grupo são as mesmas cantadas ao longo dos anos, não são criadas novas canções. Temos um repertório de identidade contínua que sofre modificações devido à forma de transmissão, sendo ela realizada através da oralidade, algo que é muito comum em manifestações tradicionais. O corpo e a dança são elementos fundamentais para a sintonia e execução das encenações. Todo movimento corpóreo lembra o movimento das ondas do mar, por causa do movimento que é feito pela embarcação. É impossível dissociar canto, dança e música. É assim que viajamos por um mar horas revolto, hora em calmaria que nos leva e traz depois de uma travessia também imaginária. Desde então, são 42 anos de atividades ininterruptas, em que pelo menos houve uma apresentação no dia 04 de agosto. Esse novo momento vivido pela Chegança Fragata Brasileira vem sendo marcado por vários episódios, desde a proibição de entrar na igreja a inusitados convites para participar de atividades festivas em terreiros de candomblé. A retomada do grupo aconteceu a partir do momento em que as crianças e jovens do passado se reuniram para rememorar a Chegança. Eles decidiram se juntar para colher informações acerca do grupo e proporcionar
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o seu ressurgimento. Nesse momento, entra em ação a mulher, as esposas, filhas, mães, que tiveram um importante papel de ajudar a lembrar das canções e dos ritmos. Elas resolveram ajudar a decidir como seria a roupa, cada detalhe das roupas, pois queriam fazer uma distinção do outro grupo que existia em outro bairro. Foi um longo ano de trabalho e de muito esforço para colocar o grupo na rua. Enfim, chega agosto de 1978 e o grupo Chegança dos Marujos Fragata Brasileira ressurge e faz a sua primeira aparição. É através da oralidade que acontece a transmissão dos saberes e fazeres desse grupo, pois essa é uma forma ancestral que comunidades tradicionais mantêm suas atividades
feita sobre as vidas de Zelita e da Chegança Fragata Brasileira. Primeiro, a ressalva de que o grupo, desde a década de 80, já havia externado e publicado a importância de D. Zelita para omesmo, dando desde então para ela o título de madrinha. Posso assegurar que não houve uma sequer apresentação que Zelita não estivesse sempre ali vestida de branco e orientando que mares seguir. O que seria da Marujada de Saubara se não fosse a participação de Jelita, como Exu abriu os caminhos, dando ao grupo a visibilidade que hoje desfruta?
Uma das lideranças importante de destacar deste grupo foi a minha tia Joselita Moreira da Cruz Silva – Tia Zelita/ Jelita. Faleceu no dia 24 de março de 2016, ano que completaria 80 anos e boa parte dele dedicado ao grupo Chegança Fragata Brasileira. Uma observação é necessária a ser
A Chegança é a profundidade encontrada no interior de cada indivíduo que dela participa; é a pureza do marujo que, incorporado em seu corpo físico, transcende toda e qualquer possibilidade de querer, simplesmente, encontrar uma definição.
Foto: Clarice Lis Marcon
culturais. O mais jovem participante é Juão Miguel Ribeiro do Rosário, meu filho que tem 14 anos de idade, desde os seus 3 anos repeti com ele o que meu pai fez comigo, levei-o para frequentar o espaço, participar dos ensaios, ensinando-o a tocar e a cantar. O mais velho é Mateus Ribeiro da Silva, com 81 anos de idade, fundador do grupo, sendo ele, hoje, uma das personalidades que contribuem para o processo de transmissão dos saberes e fazeres da Marujada.
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RETRATOS DO COTIDIANO QUILOMBOLA por Luana Cardoso Fonseca, mulher preta e quilombola, graduanda em Licenciatura em História pela Universidade Estadual de Feira de Santana. Moradora do Quilombo Candeal II pertencente ao Distrito de Matinha em Feira de Santana.
Bata do feijão comunidade quilombola Candeal II (2018) Foto: Jaqueline Alves Fonseca
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o cenário da Bahia, mais precisamente no sertão, nós cruzamos com imagens de pessoas que possuem ligações diretas com o campo, que caracterizam a vida sertaneja e quilombola de homens e mulheres com trajetórias, experiências de vidas matizadas por labutas, costumes, tradições e memórias. A partir das histórias desses sujeitos, se encontram experiências acumuladas que atravessam suas vidas no meio individual e coletivo. Assim, podemos observar as existências de comunidades quilombolas no meio rural baiano que possuem uma conexão direta com a terra, água, com a natureza de uma maneira muito forte, além desses fatores serem instrumentos de construção identitária e pertencimento em que desenha o lugar. As memórias são tidas como um instrumento que nos permite revisitar o passado, e esse acesso às memórias oportuniza ressignificações do passado, essas, por sua vez, constroem e reconstroem narrativas cotidianas daquilo que foi vivido. As memórias refletem historicidades dos sujeitos acerca do lugar de suas origens, recuperando cenas do narrado e do vivido, através das oralidades e representações de práticas, ritos e manifestações. Dessa forma, a construção da comunidade às memórias dos moradores expressam, através das suas oralidades, que essas terras foram por muito tempo povoadas por homens e mulheres que construíram raízes e ramificações que se proliferam na construção da comunidade chamada fazenda Candeal II. As memórias das gentes do Candeal têm muito a nos dizer a partir das vivências tida no tempo e espaço que expressam os percursos das experiências e trajetórias de lutas dos trabalhadores rurais em seu cotidiano. A história desse lugar é constituída a partir das labutas cotidianas que atravessam a memória coletiva da comunidade rural e negra quilombola Candeal II.
Portanto, falar dessas pessoas é traçar um espaço, comportamentos, costumes e direcionar aos nossos olhares, ao fazer da vida em seu cotidiano e as especificidades dos sujeitos que compõem essa história significando e ressignificando o caminhar de suas lutas e histórias. É nesse trajeto que o Município de Feira de Santana na Bahia tem sua história movida por gentes e comunidades quilombolas que simbolizam patrimônio cultural imaterial de representações e significados que emergem da memória e da história deste Município. Por outro lado, há tentativas de apagamento dos costumes, tradições e comportamentos. Havendo também apropriação e desterritorialização desses costumes e práticas. Esse é um cotidiano vivenciado pelos trabalhadores rurais na comunidade Quilombola Candeal II pertencente ao município Feirense que retrata histórias, memórias, tradições vivas em relações sociais comunitárias que representam a história e a cultura sertaneja do homem e da mulher do campo e as suas experiências de vida dos sujeitos que produzem lugares que retratam as interrelações em seu fazer cotidiano. As vidas dessas gentes são movidas pelo cultivo da terra e do que ela produz representando formas e maneiras de organização da vida social que reconstrói seu dia-a-dia a partir das experiências de vida ligadas ao trabalho e ao habitar neste lugar nas construções de sociabilidades desse sujeito ligado a lavoura/ campo fomentando uma rede de apoio e coletividades gerando uma teia de relações que permeiam as vivências desses sujeitos. Na colheita do feijão e no manuseio da mandioca que semeia sementes de esperanças, sementes essas que demarcam a luta pela sobrevivência por garantias de direitos e por viver com dignidade. Dessa forma, no fazer da prática a solidariedade entrelaça um conjunto de forças em que o trabalho na roça representa uma produção
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noção de “eu sou porque nós somos” e na lida coletiva lidamos com o sabor da labuta e bravura na manutenção dos nossos costumes. No gingar da capoeira entoamos os ecos das resistências das nossas práticas que nos conecta a nossa história criando estratégias para nos manter vivos com as manifestações da nossa cultura e existência dentro da sociedade. Aos nossos o direito de existir é uma ameaça constante que fere. Nos matam e desterritorializam. Reconhecendo os sujeitos através de esforços coletivo, de poder e mobilização, articulação de um povo em comunidades, resultam numa organização coletiva de lutas que buscam estratégias de reivindicação em defesa de seus direitos, denunciando narrativas marcadas por justiça de homens e mulheres que passeiam no espaço e tempo de suas lembranças da vida vivida e das labutas sempre revisitadas. Em cada palavra anunciada, desenham seus mundos inseridos no meio social das coletividades e suas próprias impressões das vivências nos retratos do cotidiano.
Raspação da Mandioca na casa de farinha do poçoca na comunidade Candeal II Foto cedida por Francisca das Virgens Fonseca
em prol da sobrevivência. A manutenção desses costumes tenciona as esferas de poder elaborando disputas e conflitos. Por um lado, temos um sistema cosmopolitismo contra hegemônicos (quilombos). A cultura quilombola da comunidade Candeal II é atravessada por tradições, costumes que fazem parte da composição da história das gentes da comunidade, um povo marcado pela luta e o direito do bem viver coletivo. Com os saberes ancestrais das ervas tradicionais, costura-se a sabedoria popular dos mais velhos em torno dos produtos do campo, construindo, de maneira autônoma, o ensinar do conceber humanidade, igualdade e fraternidade. No versar da roda, a ciranda dos modos de fazer e ser cantando em rimas trajetórias de vidas nas trocas das experiências e, nessa roda, com as crianças, jovens e idosos guardamos e passamos nossa tradição dos saberes que são passados para que possam ser ressignificados, valorizados e possível manter essa história viva. No raspar da mandioca que demonstra a verdadeira
NEGRA ÍNDIA
Independente de cor, somos todos iguais Em um mundo que nos aponta até pelo que não se faz Hoje venho cantar, a luta dos meus pais Sofrer sofreram até demais, mas tudo ficou para trás
reintegração de posse na Aldeia Kaí aos 16 de janeiro
Eu canto sou negra, sou índia Minha identidade nunca vou negar Eu canto sou negra, sou índia Enquanto eu estiver aqui vou protestar Eu canto sou negra, sou índia Pela igualdade eu vou lutar Olho pro céu peço a niamisu, que me dê forças para continuar Todos nos criticam, só por achar Que índia pra ser índia nos padrões tem que se encaixar Eu sou a voz mas forte, estou aqui para falar Sociedade é um pretexto para presos ficar Sou negra índia Isso de mim ninguém vai tirar Sou negra índia Sangues foram derramados para eu hoje aqui estar Sou negra índia Enquanto eu puder vou protestar pela igualdade de cor, saber ter amor até com quem não mereça
Ilustração
das
gigantes
pataxó,
onde
retrata o momento exato de uma retomada liderada por mulheres indígenas, logo após uma violenta de 2016.
O nome “Gigantes Pataxó” veio logo após
um depoimento de um dos indivíduos que estavam no local (pistoleiros) onde todos se encontravam fortemente armados no momento da retomada. Segundo ele, no momento em que avistaram as mulheres, eles não as viram em seus tamanhos normais, mais sim em forma de grandes gigantes, e nesse momento eles ficaram paralisados, assim dando tempo de desarma-los e os guerreiros pataxó avançarem. Artista: Rita De Oliveira Santos (Luá Pataxó) Técnica: pintura manual, com lápis de cor Música: Negra Índia Cantoras: Ester Oliveira (Poá), Carla Oliveira (Tsayrá), Christine Oliveira (Kãdara), Roberta Faria (Aponãhi)
Ouça agora. Acesse com seu celular no QR Code abaixo:
Composição: Jovens indígenas Grupo: Mipây’ré’pâx suniatá’xó (Meninas Sentir no Canto)
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Obra “Abla Obara” do artista Azèbaba
OBARA-MÊJI
O
por Vovó Cici Itãn no formato de depoimento oral, recolhido e transcrito por Clarice Lis Marcon
xalá resolveu fazer uma grande festa em seu palácio e mandou Aguemon - o camaleão convidar todos os 16 Odùs, pois ele ia dar uma festa e eles estavam todos convidados e suas famílias. Então, chegou o dia da festa e todos os Odùs chegaram com suas famílias. E começou a passar o tempo e nada da festa começar e as pessoas começaram a olhar umas para as outras e para os lados se questionando. De repente, Aguemon chegou. Todos se botaram em posição e Aguemon deu a seguinte notícia:
1
— Eu vim para dizer a vocês que Oxalá não vai poder vir e que vocês terão tudo que quiserem. Poderão usar tudo o que tiver na festa e também levar quando forem embora. A festa correu, e finalmente, terminou quando os Odùs acharam que já estavam satisfeitos, que tudo já estava terminado e quando todos já tinham se divertido muito. Obará era o mais pobre de todos. Então, depois de muito satisfeitos, Aguemon disse:
— O que vocês quiserem levar, levem.
Optou-se por utilizar a grafia já incorporada ao português de termos em yorubá.
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Obará, que tinha muitos filhos, pegou tudo o que podia para seus filhos. Os outros olhavam para Obará e davam com os ombros… E Aguemon continuou:
terceira, também. Então, ele tornou-se o mais rico de todos os Odùs, porque outras nove morangas, todas tinham riquezas dentro.
— Agora tenho uma surpresa final. Oxalá manda para cada um uma fruta.
Por isso quando a gente quer fazer oferenda a Obará escolhe-se uma moranga de doze ou seis gomos, abrimos ela, enchemos de queimado, bombom, moedas e fitas de todas as cores no dia 24 ou 31 de dezembro para deixar na floresta junto com uma bebida fina e pedimos prosperidade para o ano que vem.
Aquela fruta que não dizemos o nome. A moranga. Cada um ganhou uma moranga. Ele agradeceu e desapareceu. Todos os 16 Odùs com as morangas nas mãos se perguntaram porque depois de uma festa tão grande e tão boa tinham recebido essa fruta e recusaram o presente. Então, ofereceram para Obará que tinha muitos filhos. Ele pegou um balaio. Ele aceitou e todos os 15 Odùs botaram suas morangas lá: leve, leve leve! Ele agradeceu, mandou chamar os filhos e saiu carregando as moranguinhas e as coisas que tinha na festa que ele podia levar. Daí quando chegou em casa, estava todo feliz porque tinha ganhado tanta coisa na festa que ninguém queria, ele estava feliz pois aquela semana ele passaria bem, pois Oxalá tinha dado aquilo de presente a ele. Pelo menos aqueles dias ele não se preocuparia com comida. Aí colocaram as moranguinhas no canto, e comeram as outras coisas. E quando terminou toda aquela coisa da festa, Obará disse: — Bote água no fogo que eu vou cozinhar uma dessas morangas para comer. Seus filhos pegaram lenha, botaram a panela no fogo e acenderam. Obará veio com seu facão e quando abriu a primeira moranga só tinha dinheiro, moedas de ouro dentro. Ele sacudiu, ficou olhando e só tinha moedas de ouro mesmo. Ele não acreditou no que viu. Botou a moranga dentro da água e exclamou: “pegue outra! Não é possível!” E quando a abriu, só tinha pedras preciosas. E quando ele abriu a
Foto: Ismael Silva
Egbomi Cici, Nancy de Souza e Silva, mulher negra, brasileira, carioca, de 81 anos, Egbomi do Terreiro Ilê Axé Opô Aganjú iniciada para Oxalá em 1972, Apetebi Ifá, mulher sábia, mestra, que conhece a magia dos cantos que despertam as propriedades das folhas; herbolária, grande conhecedora das propriedades medicinais das plantas; contadora de histórias dos Orixás e histórias da Bahia; que conta as histórias que leu, que ouviu, mas principalmente, as histórias que aprendeu com Pierre Verger, Carybé, Jorge Amado, Mestre Caiçara, Mãe Senhora, Pai Balbino, Mãe Olga do Alaketo, Joãozinho da Goméia e tantas outras pessoas das artes e das sabedorias ancestrais desta terra. Ela foi assistente de Pierre Verger durante três anos, trabalhou com ele legendando mais de onze mil fotografias. Ela trabalha no Espaço Cultural Pierre Verger com pesquisadores e como contadora de histórias dos Orixás, na Oficina “Cozinhando Histórias”, junto a mestra de culinária baiana Marlene da Costa.
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OXE-MÊJI por Vovó Cici Itãn no formato de depoimento oral, recolhido e transcrito por Clarice Lis Marcon
O
xalá dá uma grande festa e convida a todos. E convida a todos os Odùs. E todos vão, pois todos sabiam que ganhariam algo no final da festa. Novamente Oxalá não compareceu. Então Aguemon chega e diz:
— Estão satisfeitos?
Todos estão satisfeitos. E dão a festa por terminada. Ele continua: — Oxalá pede desculpas por não ter vindo. Mas espera que todos tenham se divertido. Todos agradecem e vão embora. Com três dias, Oxalá convoca todos os 16 Odùs, todos então, se apresentam de novo, aí ele pergunta:
— Como foi a festa?
Cada um diz uma coisa: “a festa teve isso!”, “a festa teve aquilo!”, cada um vai contando suas bravatas. Aí, quando todo mundo conta o que viu, o que fez, o que dançou, o que comeu, o que cantou, Oxalá diz assim: — E como vocês podem provar que essa festa foi tão boa? Então Oxe, muito jovem, o mais jovem dos Odùs disse:
— Eu posso, meu pai!
E todos olham pra ele e o indagam:
— Ora, como é que você pode provar que essa festa foi tão boa assim?
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E ele responde:
pai.
— Porque na festa eu lembrei de meu
Aí, ele vai pega uma bolsinha que as pessoas de Oxalá usam, e diz: — Meu pai, não repare não, mas durante a festa eu me lembrei do senhor, eu trouxe as asas, a cabeça, o pescoço e os pés do frango e os inchézinhos de dentro. Ele foi e mostrou tudo sequinho a Oxalá, que se quisesse poderia hidratar e comer. Os outros ficaram olhando e Oxalá disse: — E vocês, lembraram do seu pai? — Todos abaixaram a cabeça, envergonhados e Oxalá disse a Oxe: — Como você foi o único que se lembrou de seu pai, você será mais próspero do que você é e terá o dobro do que você tem. E todos os outros abaixaram-se. E Oxalá disse: — Aquele que em suas festas se lembrar de separar esses axés, nunca em suas casas faltará comida e terão sempre prosperidade. Então, o que aconteceu é que, quando ele disse isso, a partir daquele dia, todas as pessoas dentro da roça do candomblé, quando se faz qualquer obrigação para Orixá, vão juntar essas peças, amarrar, passar cinza e botar ou no dendê ou em uma árvore sagrada no fundo do terreiro. Por isso nós vemos essas peças penduradas, em memória de Oxe, simbolizando que nem que seja um grão, você terá sempre para oferecer a seu Orixá, porque você se lembrou de Oxalá, ele não foi, mas ele estava lá. Isso representa o carinho, o respeito a seus ancestrais, a seus pais.
Obra “Tche/Oxe” do artista Azèbaba
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A ORALITURA DAS MANIFESTAÇÕES
CONTRACOLONIAIS por Fábio Alex Ferreira da Silva e Jade Alcântara Lôbo Neste movimento da revista, trazemos uma pequena reflexão sobre o sentido e usos do termo “oralitura” na orientação desta proposta e também uma pequena homenagem a sua criadora, materializada na forma do infográfico - criado por Zelinda Barros, que traz alguns aspectos da trajetória e da formação de Leda Maria Martins. Na lógica da Oralitura, Leda Martins nos traz o que chama de tapeçaria discursiva, em que “a dicção da oralidade e a letra da escritura se entrelaçam, trançando o texto da história e da narrativa mitopoética, fundadores do logos (...)” (MARTINS, 1997, p.18). Assim, o registro oral e as práticas e fazeres são inscritos por meio de uma rasura da linguagem, litura, marcando uma alteração do significante “constituinte da diferença e da alteridade dos sujeitos, da cultura e das suas representações simbólicas” (idem, p.21). Como aponta Leda Maria Martins, o tempo para povos afrodiaspóricos não é apenas circular, ele caminha, por isso se movimenta em espirais. Em confluência, Silva e Rosa (2017, p.257258) compreendem que a “ancestralidade não é assim uma volta ao passado, ao contrário disso, trata-se de uma atualização da tradição na experiência do corpo. No corpo se inscreve um processo de transformação da tradição a partir de trocas com o ambiente.” Esse processo, para
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Leda Maria Martins
estas autoras, é marcado pela resistência e (re)invenção na encruzilhada, na qual se encontra a subjetividade, o passado ancestral e a performance. A Encruzilhada como operador conceitual, mais do que apenas uma imagem, já aparece nos trabalhos de Leda e nesta revista surge como ponto basilar da comunicação e articulação das diferentes maneiras de anunciação das formas de vida levadas pelas pessoas, coletivos e comunidades contracoloniais. Sendo assim, um elemento chave para a compreensão da diversidade de saberes vividos trazidos aqui. O cruzamento de
Leda Maria Martins A nobreza do Congado nas Artes Cênicas Negras
tradições e memórias orais africanas, afrodiaspóricas e indígenas está na encruzilhada. Aí se encontram teceres e trançares, de manto e capim dourado, gravuras e grafias, cantares e contares, memórias e repertórios, saberes e sabores, vibrações e virações que inscrevem os autores e autoras em um “território narratário e enunciativo” (MARTINS, 1997, p.21). A diversidade de experiências inscritas neste propósito abrange gerações avó, mãe/pai e filhas/os, além disso, trazem a presença do mundo espiritual, conformando o cruzamento triádico “ser-
sendo” da vida, composta pelos ancestrais, as entidades e o grupo social. A relação de composição é rizomática e expressa na textualidade a complexa oralitura dos atos de fala e modos de vida contracoloniais e das manifestações confluentes de palavras germinantes.
MARTINS, Leda Maria. Afrografias da memória: o Reinado do Rosário no Jatobá. Mazza Edições, 1997. SILVA, Renata de Lima e ROSA, Eloisa Marques. 2017. “Performance negra e dramaturgia do corpo no batuque.” Revista Brasileira de Estudos da Presença 7(2):249-273.
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MEMÓRIA-VIVA DO NOSSO POVO PATAXÓ HÃ-HÃ-HÃE
E
por Itocovouty Galache Melo Etnia: Kariri-sapuy-á Povo: Pataxó Hã-Hã-Hãe
gidia Trajano da Silva, era minha avó, ela nasceu em 28 de agosto de 1921 e teve um papel fundamental no processo de retomada em nossa Aldeia Caramuru Catarina Paraguaçu. Egdia precisou sair do território originário onde vivia com o seu marido e os seus 5 filhos, para se refugiar na Comunidade Pedra Branca (Munícipio de Santa Teresinha/BA). Tiveram expropriações, deslocamentos forçados. A terra que nos foi reservada pelo Estado em 1926 foi invadida e em grande parte convertida em fazendas particulares. Apenas a partir da década de 1980 teve início um lento e tortuoso processo de retomada das nossas terras, cujo desfecho parecia ainda longe, permanecendo a Reserva sub-judice. Iniciamos a luta do nosso Povo Pataxó Hã-hã-hãe pela retomada da terra demarcada em 1937. Em 04 de Maio de 2012 foi anunciado que o STF julgaria as ações de anulação dos títulos incidentes sobre a TI.Caramuru. De acordo com Renato Santana, a votação da ação começou dois dias antes da data prevista e pegou todos os indígenas de surpresa. Ao final do julgamento, a demanda indígena sagrouse vitoriosa, com sete votos dos ministros a favor e um contra (do ministro Marco Aurélio Mello).
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Egidia Trajano possuía um forte e rico conhecimento das plantas medicinais, era a benzedeira do nosso povo PataxóHã-Hã-Hãe. Quando as crianças ficavam doentes, as mães procuravam a minha avó para poder rezar e também ensinar a preparar os banhos de folhas medicinais. Nossa benzedeira é portadora de um poder especial, capaz de controlar as forças desencadeadoras de desequilíbrios físicos, emocionais e espirituais. Por meio de benzimentos, garantem o funcionamento da normalidade desejada, rompendose com o desequilíbrio ameaçador da existência. Apesar de estar à margem do processo da religião institucionalizada, a minha avó ocupa um papel de destaque e desfrutava de certa autoridade em nossas comunidades. O nosso povo tem uma forte admiração e grande respeito com a minha avó, pelo seu conhecimento, suas rezas e principalmente pela sua grande força e coragem de lutar pelos nossos direitos. A minha avó só era pequena, mas tinha uma personalidade forte e também era muito brincalhona com todos. Quando ela falava todos baixavam as suas cabeças, para ouvir atentamente o que ela queria dizer. Para nós, povos indígenas, os nossos Anciões são como uma biblioteca viva, cheios de conhecimentos e sabedoria ancestral. Na
“Grande alma da floresta” Xilogravura em papel Artur Soares
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aldeia, aprendemos desde pequenos, com os nossos Anciões e as nossas Anciãs, a ouvir e respeitar todas as histórias que eles passam para nós. A minha avó sempre costumava dizer “Presta atenção minha filha nessa história, porque quando eu morrer é você que vai falar para os demais essa história que estou lhe dizendo”. A minha avó costumava contar sobre muitas HISTÓRIAS, principalmente sobre um casaquinho que ela tinha feito na mão para mim com muito amor e carinho, para quando eu saísse recém-nascida do hospital. Ela dizia: “você era tão miudinha que todos tinham medo de pegar você, era eu que lhe dava banho, porque a sua mãe tinha medo de machucar você”. Nasci prematura de 07 mês e todos pensavam que não iria sobreviver. Lembro-me, quando era pequena e ficava doente, que era a minha avó que fazia os banhos de folhas e remédios naturais para eu tomar. A minha EGIDINHA sempre era assim, tinha um cuidado muito forte com o próximo de grande a pequeno, gostava de rezar para mau-olhado e para todos os outros males, destemida e muito guerreira. Falar da minha avó me deixa com lágrimas nos olhos, pela resistência de luta e toda a sua sabedoria que carregava e não escondia, Por onde passava, recebia “BENÇA DONA EGIDIA, OU BENÇA TIA EGIDIA”. Nós, jovens, desde pequenos, fomos ensinados a cumprimentar com a bênção todos os mais velhos da ALDEIA. Se você passasse em um local onde tivesse somente os Anciões e não cumprimentasse, todos eles mandavam você voltar e cumprimentar todos de igual para igual. Os nossos Anciões representam e são a nossa MEMÓRIA-VIVA DO NOSSO POVO, principalmente no fortalecimento da nossa língua, da nossa cultura, das nossas histórias ancestrais, sabedoria das plantas medicinais, sabedoria das nossas parteiras e de tantas outras, por isso são considerados bibliotecas vivas de grandes conhecimentos. Todos os nossos Anciões que se foram e deixaram o
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seu legado e principalmente todas as suas HISTÓRIAS de luta e de RESISTÊNCIA para o nosso povo, nós, enquanto juventude, temos o dever e a obrigação de está dando a continuidade nessa luta e nós iremos permanecer nessa caminhada. Precisamos lembrar que em nossa caminhada nunca estamos sozinhos, sempre estamos com os nossos encantados, nossos espíritos de luz e todos os nossos ancestrais ao nosso lado, nos guiando e nos fortalecendo espiritualmente em nossa caminhada. Egidia teve um papel muito importante e fundamental em nossa comunidade. Todos reconhecem o seu grande legado que deixou para o nosso povo. Encantou-se com 98 anos de idade no dia 27 de dezembro de 2019. Guardamos as melhores histórias e as histórias de luta do nosso território Caramuru Catarina Paraguaçu. Seus saberes tradicionais e a sua força permanecem perpetuando por todas as gerações do Povo Pataxó Hã-Hã-Hãe. Egidia está presente nos nossos corações e memórias. Acreditamos que, onde quer que ela esteja, ela vai estar cuidando do seu povo com as suas fortes rezas de proteção.
"MORRE O CORPO, FICA O ESPÍRITO QUE SEMENTEIA E SE MISTURA NA CIÊNCIA DA TERRA.” EGIDIA PRESENTE!! MÃPÃ! MÃPÃ! ÁNÊRÊ!
Acervo do Ilé Ibirìn Omi Àsẹ Ayira, 2018
UNIÃO, UMA PALAVRA FORTE por Iyalorixá Marlene de Nanã2, Ilé Ibirín Omi Àsẹ Ayira Ago. Vou pedindo licença a minha ancestralidade para a gente poder conversar neste momento. Agradeço a Baba Ogum, que é o dono das tecnologias, aquele que nos permite falar nesta mesa maravilhosa através da tecnologia. A tecnologia da internet, nesse momento de pandemia, é o que nos aproxima muito. Então, vamos agradecer. Agradeço também aos organizadores do evento por terem me convidado a participar dessa mesa, na pessoa da profa Dra Marize Santana. Também tomo a bença a todas as pessoas presentes nessa mesa, ao Tata Kajiongongo, ao Baba Ajalá Deré, a Iyá Rosa d’Oxum, a Marcos Lopes, a Iyá Antonieta, como coordenadora da mesa. Também tomo a minha benção a todas as pessoas que não estão na mesa, nesse momento, e que foram indicadas para estarem aqui e não puderam estar, tomo minha benção. Pensando no que o Tata Kajiongongo falou e também no que eu havia planejado falar, retomo a pergunta da Iyá Antonieta: como a gente vai contribuir, com palavras, para esta linda palavra “união”? União, uma palavra forte. É também o que temos pedido sempre: a nossa união. E ao falar de união, vem sempre também uma questão: e por que a falta de união? Como Povo de Santo, falamos de intolerância, apontamos a existência do racismo
Este texto foi transcrito de uma fala da Iyalorixá Marlene de Nanã, por Cynthia Cy Barra, iaô do Ilé Obìnrín Omi Ànẹ Ayra. A fala da Iyá Marlene foi originalmente pronunciada na mesa redonda intitulada “Diálogos entre religiões de Matrizes Africanas”, em 20 de novembro de 2020, durante a programação da XVI Semana de Educação da Pertença Afro-Brasileira, do II Colóquio Internacional de Educação das Relações Étnicas e o III Encontro de Religiões de Matriz Africana, com organização do ODEERE, Órgão de Educação e Relações Étnicas, da Universidade do Sudoeste da Bahia, campus Jequié. Acessível em: < https://www.youtube.com/ watch?v=YPWFTEMsj4g&feature=youtu.be> Acessado em: 09 de janeiro de 2021.
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Fundadora do Ilé Ibirìn Omi Ànẹ Ayra, também conhecido por Terreiro Vintém de Prata (Salvador – BA), Mãe Marlene de Nanã desenvolve trabalhos com ervas medicinais, com base no legado da ancestralidade NagôVodum e em diálogo com pesquisas científicas. É pesquisadora convidada do Grupo Literaterras (CNPq – UFMG), participou de estudos de farmacologia, na PUC de Goiânia, e integrou, como mestre de práticas e saberes, o projeto “Encontro de Saberes”, na UFSB. Foi iniciada pela Iyalorixá Nilzete Encarnação da Mata de Yemanjá, na Casa de Oxumarê. Na história do Terreiro Vintém de Prata, além da realização das vivências religiosas, há realização de atividades econômicas, ambientais e sociais, atendimento para práticas de bem viver, cursos de artesanato, reforço escolar, eventos artísticos, atividades de comercialização de produtos e serviços, vestibular social, biblioteca comunitária e mediação de ações assistenciais como a distribuição de cestas básicas.
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religioso, mas esquecemos muitas vezes de falar da nossa intolerância com nós mesmos. O que eu entendo é que, por falarmos pouco sobre isso, isso faz a nossa desunião. Mesmo nesse momento político em que nós estamos, no qual as medidas legislativas são só para destruir os nossos, não estamos suficientemente unidos?
"Nós, como resistência, porque os terreiros sempre foram resistência, precisamos mostrar como nossos antepassados eram unidos e devemos procurar estar unidos de novo para guardar os nossos legados."
Uma das coisas que eu entendo que contribui bastante para nossa desunião é o imediatismo. Então, hoje, é uma das coisas com as quais eu lido no cotidiano, lido com esse imediatismo. As pessoas não têm tempo para uma convivência no terreiro, não têm tempo para ouvir e aprender os ensinamentos, não têm tempo para estar presente. E aí vem junto a isso a contribuição desse conjunto de informações que nós temos hoje. Por quê? Cada um de nós, dentro de nossa Casa, temos as nossas diferenças, e são diferenças marcantes. Mas, que, às vezes, não é uma diferença no ritual, e sim somente na palavra. E, na hora que todos nós pegamos um mundo de palavras que estão disponíveis por toda parte, na internet, ou nos livros, por exemplo, nem sempre percebemos que estas palavras podem estar apartadas de uma prática específica de convivência nos terreiros. Então, na hora que todos nós pegamos um mundo de palavras, todas essas palavras soltas e que temos tão disponíveis hoje, e queremos modificar as coisas internas de nosso terreiro, como dito pelo Tata Kajiongongo, estamos cometendo interesses, agindo por interesses individuais
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que não fazem bem aos rituais e aos legados de nossas comunidades. Vou falar um pouco mais sobre tudo isso que estou falando, a partir de referências de minha nação, a matriz Nagô Vodum. Farei isso para a gente perceber a união dos povos africanos que foram trazidos de África e tentar, por esse caminho, identificar argumentos necessários para que saibamos reaver a força de nossa união como religiões de matrizes africanas. A nação Nagô Vodum é uma nação que cuida, que cultua deuses do Daomé, que são os Voduns, e os deuses iorubanos, que são os Orixás. Os povos do Daomé falam predominantemente o fon e os povos iorubanos, para eu falar de onde eles vieram, é muito difícil falar de todos os lugares, porque é uma quantidade muito grande de lugares na África, então, a gente pode colocar assim: os povos iorubanos são todos os povos que falam a língua iorubana. Há uma bonita história de um casal que, tendo se encontrado na Bahia, no recôncavo, cada um vindo de nações africanas diferentes, cultuava, em uma mesma Casa, simultaneamente, os deuses Nagô e Vodum, deuses na sua maioria, na sua totalidade, com diferenças. A nação Nagô-Vodum, originada da união desse casal, é uma religião que nasceu como religião no Brasil. Então, quando alguém chega em uma Casa Nagô-Vodum, encontra palavras que na realidade não são da língua iorubá, são da língua fon. E, aí, sem o conhecimento necessário, algumas pessoas podem querer modificar isso. Mas, numa Casa Nagô-Vodum, não se pode modificar isso. Porque na tradição de nossa Casa, cultuamos Voduns e Orixás e a união das palavras iorubás e fon são importantes para nossos ritos. Cultuamos Voduns e Orixás e as palavras fon e iorubanas que usamos são importantes para isso. E também, além disso, não podemos esquecer o legado dos povos Bantu, pois, em uma Casa Nagô-Vodum, também usamos palavras dos povos Bantu em nossas formas tradicionais de fazer.
Saindo do campo dessa relação do que a gente tem de diferente e do precisamos conservar, vou contar uma das histórias mais bonitas que acontece dentro de minha Casa-raiz. Eu sou filha, sou iniciada pela Iyalorixá Nilzete de Encarnação da Mata, de Yemanjá, da Casa de Òsùmàré. Então, Iyá Nilzete é filha consanguínea de Mãe Simplícia de Ogum. Na década de 1960, Iyá dá à luz a Silvanildo, Baba Peçe, que hoje é responsável por aquela Casa, a Casa de Òsùmàré. Já à época de seu nascimento, ele foi colocado como um dos pais de santo do terreiro. A minha mãe, nessa época, ainda não era iniciada e a Iyá Simplícia, na sua preocupação, foi conversar com Mãe Menininha do Gantois, da nação Ketu, porque elas eram muito amigas, estavam sempre juntas, trabalhando juntas, cuidando de pessoas juntas. E, nessa conversa, foi indicado, aconselhado, um Babalorixá que é exatamente da família que fundou a Casa de Oxumarê, o povo do Terreiro de Muritiba. A história do Terreiro de Muritiba é uma história bastante longa, pois esse terreiro foi fundado por pessoas, filhos de lá de Cachoeira. E veio o Baba Nézinho, de Ogum, Sr. Manoel, que foi quem iniciou minha mãe Nilzete e Baba Peçe. Conta tia Nilza que esse foi um dos mais lindos barcos. Tia Nilza é a minha Abá, de Ogum, a minha mais velha. Eu falo isso para mostrar para a gente como esses mulheres eram unidas. Mãe Simplícia e Mãe Meninha do Gantois, uma passa para a outra a responsabilidade de ser aconselhada para iniciar a sua filha e o seu neto, sabendo que o seu neto seria um dos Babalorixás da Casa. Um outro exemplo da união dessas mulheres, é o que acontece na década de 1950. Mãe Simplícia, da Casa de Òsùmàré, e Mãe Aninha, do Ilé Axé Opó Ofonjá, tiveram um encontro com o Presidente Getúlio Vargas. Nesse encontro, foi pedido que a nossa religião, o nosso culto, como era chamado na época a nossa religião, diante de toda a perseguição que sofria,
fosse considerado religião. E que isso fosse colocado em um documento, para que, então, parasse ou diminuísse a perseguição a nosso povo. Então, são essas mulheres, de nações diferente, que se uniram nas décadas de 1950 e 1960, que se uniam, e que continuam unidas para defender o nosso povo, onde quer que elas estejam, nós sabemos disso. Então, é necessário que hoje a gente coloque aos que estão chegando o exemplo dessas mulheres. O exemplo dessas mulheres precisa ser seguido para que tenhamos essa união que precisamos hoje. E, nesse momento, com essa sensibilidade tão grande, quando a cada dia estamos sendo mais oprimidos, perseguidos, maltratados, nós estamos ainda buscando essa união. E o que mais também observo neste momento? É que, dentro desta busca, no imediatismo, as pessoas entram numa Casa e vão comparando com uma outra, e começam a ter acesso a uma gama imensa de informações, sem o tempo necessário para maturar cada uma dessas informações, e vão concluindo que um Axé é diferente do outro e, pior, que o Axé de uma Casa está errado. O que precisamos conseguir passar para os que chegam é que não é que esteja errado, quando se compara formas de ritos de nações distintas, são apenas diferentes. Vou encerrando minha fala dizendo que é um prazer imenso estar nessa mesa, que tenhamos sempre cabeças bem preparadas, equilibradas, com harmonia, com sabedoria, com bastante paciência. Vou encerrando minha fala pedindo também que a nossa fala seja entendida por quem está nos ouvindo, porque é importante que a gente fale e que as pessoas entendam o que vamos falando. Então, vou encerrando minha fala pedindo a bença a todos.
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Migrantes por Tianalva Silva1
Quando o carteiro anunciava sua visita pelas ruas de Cachoeira, todos corriam à casa de minha vó, mas só eu, com meus nove anos, lia, gaguejando, tentando adivinhar as palavras, que também não eram bem escritas. Naquele dia, todos me atrapalhavam com seus gritos de alegria. A carta, poucas palavras dizia:
Rio de Janeiro, 02 de novembro de 1964
Querida mãe e irmãos, é com muita saudade e ansiedade que os faço cientes de que em dezembro estarei aí com vocês pelo período de um mês.
Abraços e beijos a todos! A ‘bença’, minha mãe!
Estevão F. Silva
Foi o maior burburinho dentro de casa. Todos já organizavam as coisas para a chegada do meu tio Têvo. Eu não o conhecia, mas tinha um imenso amor e admiração por ele quando minha avó contava sua história entre lágrimas e correções de minha mãe com beliscões:
— Cala a boca, menina! Não se desmente os mais velhos!
Meu tio Têvo nasceu numa cidade vizinha, aqui na Bahia, em Santo Estevão, origem de seu nome. Vindo, no ventre, de altos sertões. Minha vó era migrante e neste dia não deu para seguir viagem: as dores do parto aumentaram. Armaram uma cabana de varas e plásticos. Ali Estevão nasceu para dar outro curso a esta família. Com os dias, foram melhorando a cabana e até fizeram uma choupana de barro coberta de palha. Plantaram em volta feijão, batata e até aipim, que quando colhiam, trocavam por farinha ou carne de sertão. Tio Têvo contava quatro anos quando minha mãe nasceu. Já ia no riacho pescar surica1 ou até um peixinho chamado amoreia. O tempo passou e cresceram assim, lutando pela sobrevivência. Minha vó contava que nas noites de lua cheia, faziam fogueira, assavam milho e contavam histórias – Têvo ausente de tudo, com olhar distante, sempre sonhando. Mas quando cobravam uma história de sua boca, o tema era o mesmo: o menino pobre que ficou rico. Quando estava só com os irmãos, falava-lhes de seus planos de ir embora. Minha mãe conta que uma vez, os dois sozinhos sentados numa pedra, ele lhe disse:
— Tá vendo aquela estrela lá? Um dia ela vem me buscar e levar pra bem longe.
Conto originalmente publicado em Migrantes, de Tianalva Silva (Cartonera das iaiá, 2019, contos). A obra agora vertida para audiolivro será lançada pelo selo Orin, o selo de audiolivros da Cartonera das iaiá, em março de 2021.
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Pois bem, minha vó resolveu vir pra Cachoeira fazer uma visita à sua irmã Zefa. As visitas duravam no mínimo uma semana, muitas trouxas para arrumar. Bom, foram bem acolhidas, muita prosa muita risada. À noite, minha tia-avó deu um pedaço de cana a cada um dos pequenos para se divertirem sentados na porta. Eram cinco crianças, duas de minha tia-a vó, Florzinha e Paulo Cézar. De repente, começou a discussão: minha mãe chorava insistentemente, dizendo que Têvo tinha trocado os pedaços de cana e o dela ficou menor. Os adultos intervieram, falavam que estava tudo igual, que parasse com a choradeira. Isso nada adiantou. Então, minha vó tomou a cana de meu tio e trocou pela de minha mãe. Aí foi aquele rebuliço: meu tio puxava de minha mãe, que puxava também e gritava. Acabou que vó mandou tio Têvo ir dormir de castigo num quartinho nos fundos da casa, longe de todos. Antes de dormirem, ouviram os soluços de meu tio lá no quintal. Bença, mãe! Estou vivo. Lutando pra viver, mas estou bem. Obrigado pelo castigo, não foi um quarto escuro, foi uma escada.
Ass. seu filho que lhe ama,
Estevão.
Beijos em todos. Em especial, minha irmã Lurdinha. Abraços deste filho que te ama, Estevão. O tempo passando, meu tio mais velho, Valdomiro, também foi-se embora para Salvador e entrou na escola de música da Polícia Militar. Lá estudou e seguiu carreira. Durante anos, ficaram sem notícias. Eu nasci num 23 de julho e, nesta data, a família recebeu uma carta: Querida mãe, Desta vez estou mais perto. Casei-me. Estou em lua de mel no Rio de Janeiro. Mas as férias estão terminando. Receio que ainda não nos veremos. Quem sabe na próxima. Abraços em todos Beijos
Uma dor, um alívio, um arrependimento, uma saudade, uma culpa. O segundo bilhete chegou alguns anos depois e dizia:
Bença, mãe! Que Deus esteja com vocês! Estou aqui na França estudando. Já sou quase um marinheiro. Sou auxiliar de cozinha e me sinto feliz. Tenho muita vontade de ver vocês, mas no momento não dá. Vou juntar um dinheirinho e quando tiver oportunidade, eu vou.
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Aqui em Cachoeira, pouca coisa mudou. Minha tia-avó comprou um casebre em São Félix e deu para minha vó. Eu fiquei com a tia, pois fui batizada por sua filha Florzinha, que me adotou. Minha mãe e os demais foram para São Félix, mas era tão perto que nos víamos toda hora. Além do casebre, minha tia-a vó comprou uma barraca na feira e, com a ajuda do marido, surtiu em compras e deu para minha mãe, para ajudar a defender uns trocados. Nessa época, chegaram ainda duas cartas do tio Têvo. A primeira e a segunda contando do nascimento das filhas, Eliza e Eloá. A que veio a seguir foi a que li, contando de sua chegada. Nesta ocasião, minha vó, já doente, morava na casa de minha tia, enquanto mãe tentava a sorte em Salvador. Bem, minha tia já havia avisado à minha mãe que estava nos planos de Natal fazer os comes e bebes. Contávamos os dias e minutos e eu não cansava de olhar a foto dele que tinha vindo dentro da carta. Eu nunca tinha visto um preto tão lindo como aquele. A expectativa era grande. Quando entrou de zembro, a cada som do vapor Paraguassú, botávamos o olho na porta, até que no dia quatro de dezembro estávamos almoçando quando batidas na porta nos surpreenderam.
— Quem é? — gritou minha tia.
— É de paz!
Corri para abrir a porta sem ouvir os berros de minha tia mandando esperar. Minha intuição estava certa: era ele. Por cinco segundos permaneci hipnotizada. Alto, forte, roupas brancas, aquela boina branca com detalhe azul, aquele rosto angelical… só podia ser ele. Sem saber o que dizer, falei:
— Não vi o navio apitar.
Ele, sorrindo, respondia:
— Eu vim de ônibus!
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Não contive a emoção. Abracei-me às pernas dele, chorando. Daí já estavam todos ao redor: muitos abraços e chororô. Foram os dias mais felizes da minha vida de criança. No dia 06, minha mãe chegou quando minha vó não mais aguentava de ansiedade e, naquela noite, descobri porque tio Têvo era meu herói. Como de costume, depois do jantar, íamos todos para o quintal contar causos e histórias. Quando a conversa não era para criança, vó mandava brincar na porta, sob o olhar atento de minha tia no corredor comprido. Nesta noite, porém, ninguém nos mandou sair – estendemos as esteiras e todos se sentaram. Uma prosa daqui, outra dali, até que minha vó fez a pergunta que consumia a todos. Com a voz trêmula e os olhos marejados, perguntou: — Estevão, meu filho, como tu foi embora naquele dia? - Ele respondeu: — Minha mãe, eu naquele dia não dormi. Apesar da escuridão no quintal, eu procurava e não encontrava a estrela que escolhi pra mim e fiquei muito aborrecido. Sentia-me injustiçado por causa da história da cana. Então, riu-se com seus dentes alvos, a boca bem desenhada. Eu não conseguia piscar meus olhos. Ele continuou: — Pensei em tudo que sofri nos meus doze anos de vida, pensava e chorava e entre o som dos soluços ouvi o apito do navio. Daí não pensei duas vezes, pulei o muro, passei pelo beco da casa do vizinho e lá na Baiana me ofereci para ajudar uma família com as malas. Ali, na embarcação, fiquei escondido e assim cheguei a Salvador. Quando cheguei nas Docas, encantei-me de tudo o que via. Minha avó interrompeu, com os olhos rasos de lágrimas:
— E comia o quê? E roupa pra dormir?
Foi aí que vi a cena mais linda. Meu tio se levantou, pegou minha vó no colo – que
estava sentada em um banquinho – e sentouse numa cadeira segurando-a como fosse um bebê. Continuou já com as palavras cortadas pela emoção: — Passei muita fome, muito frio e descaso. Sofri muito preconceito. Qualquer objeto que sumia por ali apontavam pra mim: foi aquele negrinho! Uma vez até me bateram. Mas também tinha seu Josué, que trabalhava ali no comércio, num prédio bonito. Antigo atracadouro de navios pertencente à Companhia Baiana de Navegação. Quando não tinha navio no porto, eu dormia ali em baixo da marquise. Seu Josué, um dia, ao entrar para trabalhar, me vendo acordar, me convidou para um café e fizemos amizade. Dias depois, ele me deu material para engraxar sapatos. E detalhe: foi o meu primeiro cliente!
— Pra dar sorte — disse ele ao pagar.
Mas minha paixão pelo mar e os navios só aumentava. Um dia chegou um navio como nunca vi. Eram três andares de pessoas estranhas, muitas brancas, outras muito negras, falando embolado… Fiquei fascinado. Observei o dia e a hora da partida e, antes do previsto, adentrei o navio e me escondi na cozinha. Não foi difícil. Auxiliei os cozinheiros e ajudantes a carregarem as caixas de mantimentos. Fiquei ali escondido por muito tempo, não tenho precisão. Foram meses de viagem para me descobrirem. O cozinheiro, de olhos arregalados, deu um berro quando me viu entre um armário e outro, atrás das caixas. Os dois ajudantes correram para perto e um deles me reconheceu. Aí foi um vendaval de pergun tas, infinitas, intermináveis. No final do interrogató rio, fui convidado para ajudálos no trabalho. O que para mim foi a glória. Fazia as refeições nas horas certas, sem precisar roubar ou pegar os restos no lixo. Tive colchão e ganhei até roupas e sapatos. E o melhor: aprendi a cozinhar. No dia que resolveram legalizar minha situação, o cozinheiro deu-me instruções:
— Você tem que dizer que não tem família, que não queria mais viver nas ruas de Salvador e por isso veio parar aqui. Eu serei responsável por você até que possa fazer seus documentos para assinar sua carteira de trabalho. Você já pode ser um de nosso ajudantes. Já é, né? Ensaiamos bastante antes de colocar em prática nossos planos. Uma noite, sentado na proa, olhei para o céu e vi minha estrela tão perto que pensei tocá-la, mas preferi conversar com ela, pedir que tudo desse certo. Deu. Mas não foi tão fácil. Depois de várias reuniões, as coisas foram se acertando. Quando fomos para o Rio, em outro navio, eu e Luiz, chefe de cozinha, ficamos juntos numa mesma pensão, sob olhares curiosos e maldosos. No dia seguinte, ele tomou todas as providências para que eu tirasse os documentos. Assim, minha carteira de trabalho, ainda quentinha, teve sua primeira assinatura: ajudante de cozinha. Dois anos depois, cozinheiro, e três anos mais, Chefe de Cozinha da Marinha Brasileira.” Ninguém percebeu, mas quase morro de chorar durante o relato do meu tio. Ninguém percebeu também porque todos choravam muito, até ele, que enxugava as lágrimas de minha vó, sentada em seu colo. Concluiu: — A melhor escola é a vida. Aprendi a ler no navio, conheci minha esposa no navio — nisso, já sabíamos que ela não estava conosco porque esperava outro filho, era questão de dias para nascer — Tudo que sei da vida aprendi num navio. Meus professores foram os melhores do mundo. Por alguns minutos, ficamos todos calados. Quebrou-se o silêncio quando minha mãe falou:
— Vou buscar um cafezinho pra gente.
Enquanto esperava o café, olhei para o céu e vi, sobre a cabeça de tio Têvo, uma grande estrela de brilho esverdeado. Pensei: é a estrela dele! Imediatamente, corri os olhos por todo aquele céu, buscando uma para ser a minha estrela também.
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QUERO SER OUVIDA Fernanda Nascimento
Dias de luta, dias de glória. Glória pra quem? Chega perto e segue o desabafo. Histórias, nossas histórias, Dias de luta, dias de glória. Durante anos marcados por um olhar colonizador, Meu povo preto sofreu nas mãos da burguesia, Enquanto pra nós, dias de glória nunca existia. Durante 300 anos, sofreram com a injustiça e tanta violência. Lutaram e resistiram. Resistência. Dias de Glória pra quem? Século XXI e nós povo preto, periférico, Continuamos sofrendo, sendo assassinados, Estupradas, violentadas E ninguém faz NADA. Aliás, faz. Postam nas redes socias e esquece Quando já não é mais manchete. A narrativa na mídia é sempre Que ele estava no lugar errado e Na hora errada, fachada. Crianças sendo assassinadas Dentro da sua própria casa. E qual é a desculpa da vez? Tudo culpa desse sistema doentio, genocida Que tira o nosso direito de vida. Sistema que faz a gente descobrir As cores que a fome tem Com sua falta de oportunidade E seu projeto de extermínio do povo Preto.
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Nos protestos pareciam não nos ouvir Por mais que gritássemos era inalcançável. O que nos restou foi pegar na mão da nossa dor E acalmá-la. Lembrar das conversas gravadas em nossos olhos. Olhares gritantes, resistentes e cansados. Cansados de dormir, Com medo de não acordar. Cansados de acordar todo santo dia Pra lavar a sua sujeira. Cansados de morrer, De ver os nossos sendo assassinados E difamados para cobrir seus crimes. Cansei de não fazer NADA. Quero gritar nem que seja em silêncio, Quero que você entenda
Entendam que somos seres humanos que nem vocês. Cansei de escrever só no papel, Agora quero ser ouvida, Que nem o EMICIDA. Quero ter esperança de que Quem sabe um dia vocês paguem suas dívidas e parem de nos tirar a chance de ser feliz. Histórias, nossas histórias, Dias de luta, dias de Glória.
Biografia Me chamo Fernanda Nascimento, tenho 23 anos, negra, periférica, lésbica. Neta de curandeira, filha de mãe solteira. Cria do Recôncavo da Bahia, filha do Paraguaçu. Estudante de História pela UFRB. Minha relação com a poesia ficou mais gritante depois que perdi meus primos MARCOS SOARES e FELIPE SOARES para o sistema. Sentia uma necessidade muito grande de lutar contra essa dor e desaguando no papel foi onde me encontrei. Participei do Lendo mulheres negras na Bahia em 2018, Integrante do Cinema em Vizinhança 2017 (cachoeira Doc).
Foto: Ismael Silva
O quanto dói não ter esperança, O quanto dói perder sua criança, Depois de tudo que fomos forçados a passar.
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AGRADECIMENTOS Nós, do Conselho editorial da Revista, Odú: Contracolonialidade e Oralitura, externamos nossa profunda gratidão a todos/todas e todes que aceitaram o desafio de colaborar com nosso projeto, mais do que agradecer, é celebrar, comemorar, a realização desse projeto concebido nas coletividades e confluências inspiradoras dos nossos Quilombos, Aldeias, Terreiros de Candomblés, Favelas. Sintam -se co-autores, dessa grande teia que começamos a tecer, que nos orientar/desorientado nos olhares formados e formatados pelas cosmovisão colonialista eurocêntrica. Registrar nossos agradecimentos ao Atelier Libélula, na pessoa de Amanda Nascimento pelo trabalho de criação gráfica e diagramação, ao Artur Soares que a assina nossa capa. A nós, foi uma satisfação sem medida receber cada texto, poesias, contos, as entrevistas, e sentir as múltiplas confluências que se tecem a partir daí, e por nos creditar a confiança de sermos esse meio, esse caleidoscópio no qual se confluem múltiplas cosmovisões, sistemas cosmos políticos, de onde emergem Histórias de resistências, por tudo isso fica registrado nossa imensa gratidão a todos vocês confluentes, a nossos/as mais velhos/as, mestres/as de saberes, um agradecimento em especial por conservarem consigo esse universo de conhecimentos que nos permite nos conectarmos com nossa raízes, nossa ancestralidade.
Aldeia Caramuru Catarina Paraguaçu Aldeia Itapuã do Povo Tupinambá de Olivença Aldeia Pataxó de Aldeia Velha Aldeia Pataxó de Coroa Vermelha Aldeia Serra do Padeiro Any Manuela Freitas Arnã Pataxó Artur Soares Azèbaba Cacica Valdelice Tupinambá Carla oliveira( Tsayrá) Carol Garcia Célia Tupinambá Cynthia Cy Barra Christine Oliveira (Kãdara) Daniela Alarcon Deborah Santos Martins Dona Dalva Damiana de Freitas Dona Joana Angélica Edna Maria Santana Eliany Cristina Ortiz Funari Erahsto Felício de Sousa Fernanda Nascimento
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Gleicy Ellen Oliveira Grupo de Estudos Confluências Afroindígenas Ilê Axé Yá Omin Ismael Silva Itocovouty Galache Melo Jaqueline Alves Fonseca Juliana Faria Juliana Pataxó Kilombo Tenondé Leda Maria Martins Luana Cardoso Fonseca Luana Roberta Gonçalves Maine Jesus Mameto Ilza Mukalê Marcio Goldman Mariana Cruz A. Lima Marina Guimarães Vieira Marinho Rodrigues Mateus Aleluia Max Fonseca Mestre Badu Mestre Cobra Mansa Mestre Naldinho Mestre Nego Bispo
Projeto Um Outro Céu Quilombo Custaneira Quilombo Fazenda Candeal II Quilombo Mato do Tição Quilombo Mumbuca Rainha Belinha Roberta Faria (Aponãhi) Rogério Modesto Rosildo do Rosário Rutian Pataxó Soledad Hernández González Tata Nazazi Tânia Stolze Lima Teia dos povos Tenille Bezerra Terreiro Matamba Tombenci Neto Tianalva Silva Tiganá Santana Uhitwé Pataxó Vovó Cicí Yalorixá Marlene de Nanã Zelinda Barros
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