Revista Periscópio nº zero

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Periscóóopio Revista Periscópio  •  Ano 1  •  Edição 1  •  nº zero

O Leviatã Moderno e o Ethos Libertário Educação

Carta aos estudantes que ocupam Revista Periscópio | 1


Editorial

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No instante em que os homens se acham maduros para a verdade sobre si mesmos e sobre as condições sociais, os detentores do poder procuram desde sempre quebrar os espelhos, nos quais os homens poderiam reconhecer que são e o que lhes acontece.

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Peter Sloterdijk in Crítica da Razão Cínica

Educação para além da bolha. Com esse título e esse subtítulo apresentamos o número Zero da revista do Coletivo de Experimentações Libertárias em Educação, Arte e Tecnologia, o CELIBER. Um Periscópio é um instrumento ótico usado nos submarinos que objetiva visualizar, observar em todas as direções, por cima de qualquer obstáculo que se interponha ao olhar direto. Nossa revista também tem esse objetivo periscópico de olhar além; além dos muros reais e metafísicos que são construídos como obstáculos para impedir que o novo seja visto, que o inexistente se torne existente. Esses muros tanto são os obstáculos dos “pactos de silêncio” sobre o que não se quer ver, como são as “verdades”, as doutrinas, as ideologias, as crenças nas metafísicas que justificam o mundo como ele é e como os dominantes querem que seja. Queremos com essa revista dar nossa contribuição para romper com esses obstáculos, visualizar outros mundos, outras formas de vida, outras formas de fazer educação, outros ethos. Ethos Libertários que buscam construir, com suas práticas subversivas, rebeldes, indisciplinadas, descontroladas, “anárkicas" uma nova forma de 2 | Revista Periscópio

fazer Educação, Arte e Tecnologia. Misturando tudo isso num só processo de devir autocriativo, cuja perspectiva esteja naquilo que Nietzsche chamou de autocriação da vida como obra de arte. Prerrogativa dos Espíritos-Livres, ou seja, aqueles que o filósofo de Roken definiu como “aquele que pensa de forma diferente do que se espera dele... ele é a exceção, os espíritos submissos são a regra”. Queremos que a Revista Periscópio alcance com suas lentes de aumento – capazes de olhar longe (muitas vezes o que está perto não é visto) – esses espíritos-livres que seguem fazendo aquilo que a Escola, a Universidade, o Estado, a Moral, as religiões, os costumes, os preconceitos dizem que não se deve fazer. Dessa forma, a Periscópio não será uma revista para doutrinar, formatar, codificar, adestrar, mas ao contrário, será um instrumento para ver, um olhar sobre o “desformatar”, “desadestrar”, “descodificar”. Para divulgar o pensamento que vai além. Ou seja, não será um meio para divulgar o pensamento sedentário, moralista, ideológico, mas o pensamento nômade, “rizomático”, do fora, “transvalorador” de todos os valores. Eis o critério para sua utilização: Pensar para além...

Mas como isso será feito? A Revista abrirá períodos para receber contribuições que dialoguem com esses objetivos expostos. Neste número Zero destacamos a experiência libertária das ocupações de escolas realizada no ano passado no Estado de São Paulo, no qual mais de 200 foram ocupadas por estudantes em protesto contra às medidas de fechamento levadas a cabo pelo governo estadual. O ocorrido foi muito além de um protesto, mostrou uma nova prática de fazer educação para além da lógica estatal, hierarquizada e autoritária que caracteriza a escola estatal obrigatória. A Ocupa Escola foi uma primavera libertária na educação brasileira, um sinal das possibilidades, dos devires em potência que mostra sua força e que por isso merece ser vista, pensada, apoiada. Nada melhor do que começarmos colocando em funcionamento nosso Periscópio mirando em práticas libertárias como essa. Apresentamos a “Carta aos Estudantes” elaborada por Gui Sch que nos dá uma visão do significado e do alcance desta ação direta para uma perspectiva de Educação pós-escolarizada. Dentro desse mesmo debate apresentamos o ensaio “O Leviatã Moderno e a potência do ethos Libertário” de Paulo Marques, que problematiza a questão da função histórica do Estado e a potência daqueles que o combatem. Por fim, apresentamos as ideias e propostas do Coletivo CELIBER que dá seus primeiros passos com o lançamento da Periscópio como sua Carta de apresentação e convite.

- PERISCÓPIO EDUCAÇÃO ALÉM DA BOLHA

olhando para além de todos os muros em busca de modos de vidas libertárias. "periscópio",s.f.: instrumento óptico, empregado principalmente nos submarinos, o qual permite observar em todas as direções por cima de um obstáculo que se interponha à visada direta. Revista Periscópio | 3


Conteúdo

Filosofia

A origem da anarquia antes do Anarquismo

por Ulisses Verbenas*

Capa

O Leviatã Moderno 08  |  e o Ethos Libertário Filosofia

05 | A origem da anarquia Educação

14  |  Carta aos estudantes que ocupam Ação Direta

18  |  Coletivo de Experimentações Libertárias

O velho ácrata Enrique Arenas fez a seguinte reflexão: “É possível ser rebelde e não anarquista; mas não se pode ser anarquista sem ser rebelde; a partir daí que afirmamos que a rebeldia não é anarquismo”. Um silogismo muito certo que se refere a uma característica essencial da Ideia anarquista e que, no momento de pensar naquelas figuras que antecederam a forma moderna do anarquismo, nos permite compreender as formas e princípios que impulsionaram quem, nos dias de hoje, poderíamos considerar como anarquistas antes do anarquismo. É, justamente, Max Nettlau quem faz essa reflexão acerca da relação que existe entre a rebelião e a Anarquia nos tempos pré-históricos, assinalando que na mitologia podemos encontrar a memória

das rebeliões: “São os Titãs que assaltam o Olimpo; Prometeu desafiando Zeus, as forças sombrias que na mitologia nórdica provocam o crepúsculo dos deuses, é o diabo que na mitologia cristã não cede nunca e luta a toda hora e em cada indivíduo contra o bom Deus, esse Lúcifer rebelde que Bakunin respeitava tanto, e muitos outros”. Nesse sentido, cabe perguntar: Qual era o conteúdo das rebeliões a que se refere Nettlau? Se trata de rebeliões originárias, mitológicas, que poderíamos situar nas antípodas da origem da humanidade e que, portanto, põe em dúvida sua própria condição e se enfrentam a criação como tal. Já o assinalou Albert Camus em sua obra “O Homem Revoltado”: “(…) não posso duvidar do meu grito e tenho que acreditar, ao menos,

no meu protesto”. Os caminhos que posteriormente tome a rebelião, enquanto movimento mesmo da vida, colocarão em tensão a possibilidade da destruição dos outros, ou bem sua capacidade de levantar um ser, como gesto de amor e fecundidade. Não obstante, como o homem é aquele ser que se nega a si mesmo, é capaz de esquecer suas generosas origens, e fazer da rebelião uma máquina mortífera em nome do poder e da história. Refletir sobre a Anarquia antes do anarquismo supõe, então, pensar na origem generosa da rebelião. Daí que nos interessa os argumentos de Max Nettlau e, particularmente, a história do titã Prometeu, memória de uma obstinada rebeldia, o relato de um desobediente amor pelos seres humanos. Revista Periscópio | 5


Prometeu era primo de Zeus: o primeiro era filho do titã Japeto, enquanto que o segundo foi de Cronos. Como todo mito, a história de Prometeu tem diversas versões. Por exemplo, conforme é apontada na Teogonia de Hesíodo, escrita entre os Séculos VII e VIII a.c., Prometeu nasceu de Japeto e Clímene, uma bela Oceanide. Enquanto que algumas versões relatam que Prometeu criou os homens moldando-os com argila, na versão de Hesíodo é, simplesmente, o bem-feitor da humanidade, o titã filantropo. Certamente, este último é sua característica principal e é o que podemos encontrar nas suas diversas histórias e versões, ademais de seu carácter manhoso e astuto. A história que nos referiremos na sequência é, sem dúvida, a mais conhecida de todas. Tem como referência variados autores gregos e latinos, como Ésquilo, Aristófanes, Luciano de Samosata, Virgilio e Ovidio, e outros mais modernos, como Percy Shelley e Nikos Kazantzakis. Tudo começa em Mecona, durante uma celebração que termina com a separação entre deuses e homens. Ali, Prometeu ofereceu um boi dividido em duas partes: em um lado coloca a carne coberta pelo 6 | Revista Periscópio

(Prometeu tinha a faculdade de ver o futuro), Prometeu se mantém obstinado: “não mudaria meu sofrimento por teu servilismo”, diz na tragédia de Esquilo, ou “sabes bem que aborreço os deuses todos”, segundo Aristófanes escreve em sua comedia “Os Pássaros”. Daí podemos vislumbrar a segunda conotação do mito: o valor de seu ato, e as razões pelas quais Prometeu crê nele, é que o fogo não só é um elemento transformador, o motor da sofisticação da O primeiro anarquista? Prometeu, o rebelde que rouba o fogo de Zeus para entregar aos seres humanos. ventre do boi, e noutro os ossos dissimulados sob brilhante gordura branca. Oferece a Zeus sua parte, para que o resto fique para os homens. Zeus escolhe a brilhante gordura, sem perceber que no fundo eram somente ossos. Encolerizado, castiga os homens, beneficiados da astucia prometeica, tirandolhes o fogo. É então quando, segundo a descrição de Esquilo em sua tragédia “Prometeu Acorrentado”, os homens, sem fogo, se assemelham a fantasmas de um sonho, com a vida entregue ao azar. Prometeu, em seu amor pela humanidade, rouba o fogo da “roda do Sol” dos deuses e corre para entregá-lo aos

homens, para que fizessem o uso do fogo em beneficio deles. A conotação deste fato é dupla: por um lado, o ato de rebeldia de Prometeu, e, por outro lado, o significado do fogo. No que diz respeito ao primeiro, ha que assinalar que Prometeu é duramente castigado por Zeus, quem o amarra a uma roca no alto do Cáucaso e o deixando abandonado, e lhe envia uma ave de amplas asas, que devora seu imortal fígado durante o dia, sendo que o mesmo cresce pelas noites nas mesmas proporções devoradas. Em que pese a tudo isso, e ainda quando se oferece sua libertação se diz como será a caída de Zeus

técnica, senão também é a arte. De fato, a palavra grega téchne se traduz como “arte”, “ciência” ou “profissão”, quer dizer, arte e técnica habitam juntas e, mais ainda, elas supõem a essência do homem: para deixar de viver como fantasmas de um sonho, necessitamos da arte. Dessa forma, a rebeldia de Prometeu lhe deu ao homem uma faculdade única: a criação artística. Se os deuses não sofrem, eles não podem conhecer a criação artística. A rebeldia frente os deuses,

portanto, é maior ainda: se encontrou aquilo que os deuses precisam. Uma tardia versão de Prometeu, de Luciano de Samosata (século II d.c.), versa: “Me parecia que algo lhe faltava à divindade, no entanto não havia nada que opor-se”. Uma mitologia em que podemos ver a luz fogosa das ideias anarquistas. Camus anotou em seu ensaio “Prometeu nos infernos”: “Os mitos não têm vida por si mesmos. Aguardam a que nós os encarnemos”. Este mito contém um saber intacto, pode ser uma possível ressurreição. Porque é certo, diz Camus, que se Prometeu voltasse a roubar o fogo seriam os mesmos homens quem o acorrentariam ao Cáucaso, pois eles não desejam mais a arte. Só necessitam a técnica. A nós restaria perguntar: Se encarnamos o mito, a quem devemos roubar o fogo? Desde onde devemos extraí-lo? Pode a técnica supor uma arte, e vice-versa? Reorganizar os ofícios, como diria Proudhon? Recordemos, ainda nessa avançada, mas contraditoriamente selvagem civilização: Ainda tudo está por ser feito, que será necessário voltar a pensar no fogo. *Tradução de Paulo Marques

Revista Revista Periscópio | 7 Periscópio | 7


Capa

O Leviatã Moderno e a potência do Ethos Libertário por Paulo Marques

8 | Revista Periscópio

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“Leviatã” é um monstro da mitologia da Idade Média que será utilizado como avatar do Estado absolutista pelo filósofo Thomas Hobbes para justificar seu conceito de poder centralizado e absoluto. Em sua obra “Leviatã”, Hobbes afirmava que a "guerra de todos contra todos" que caracterizaria um "estado de natureza" só poderia ser superada por um governo central e autoritário. O governo central seria uma espécie de monstro – o Leviatã – que concentraria todo o poder em torno de si, e ordenando todas as decisões da sociedade. Essa ideologia de justificação só será confrontada com o pensamento iluminista da Revolução Francesa, de onde emerge um novo conceito de Estado, que supõe-se baseado na “soberania popular” expressa no “voto” que escolhe os “representantes” que ocupam o Estado como espaço por excelência da centralização do poder político. Este Estado será denominado "Estado Democrático de Direito". Todavia, hoje, passados mais de duzentos anos dessa “ideia”, percebemos de forma inequívoca que o “Estado 10 | Revista Periscópio

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Os homens livres disputam a preferência em lutar pelo bem comum, porque associam a ele seu interesse particular: todos esperam ter sua parte no mal da derrota ou no bem da vitória. Mas os homens submissos, desprovidos de coragem guerreira, perdem também a vivacidade em todas as outras coisas, têm coração tão fraco e mole que não são capazes de qualquer grande ação. Os tiranos sabem muito bem disso. Por isso, fazem o possível para torná-los ainda mais fracos e covardes.

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Étienne de La Boétie Democrático de Direito” nada mais é do que o eufemismo que o velho Leviatã recebeu na modernidade. Isto porque, sua função permanece a mesma que foi fundamentada teoricamente por Thomas Hobbes, ou seja, controlar, determinar, decidir, o que os “súditos” podem e devem fazer. Só que a partir de uma outra lógica expressa de forma muito clara por La Boétie em seu clássico “Discurso sobre a Servidão Voluntária”, ou seja, se existe autoridade e dominação é porque alguém permite essa dominação. Deixe de obedecer e a autoridade se desfaz, disse La Boétie. Por isso o Estado criou instrumentos que tentam impedir essa desobediência

à autoridade: A moral, as normas, as Leis, a religião, a polícia e a Escola são esses instrumentos. A Escola atual, que se baseia no modelo Prussiano, nascida na segunda metade do século XIX, cumpre essa função da forma mais eficaz do que qualquer outro dos mecanismos de dominação. Portanto, podemos denominá-la sem eufemismos de “A Escola do Leviatã Moderno”. Não é necessário nos aprofundarmos teoricamente nessa questão se analisarmos o que acontece hoje ao nosso redor. Que tipo de sociedade é consequência desse aprendizado centralizado e monopolizado pelo Estado. Não precisamos ir muito longe, apenas

acompanhar os fatos atuais como por exemplo o que acontece nas escolas do Estado de São Paulo ocupadas por estudantes, pais e professores em protesto pelas medidas de “reorganização” do sistema de educação proposto pelo governo estadual. Ali na experiência de resistência ao poder do Leviatã, vemos como máscara cai muito rapidamente. A Escola que nos discursos políticos aparece como “pública”, quando é ocupada pelo público é logo criminalizada e o Leviatã moderno declara: "A escola é do Estado". Mais explícito que isso impossível. O Estado ameaça os “ocupantes” com o uso da força. Os estudantes, em sua maioria adolescentes reagem com mais ocupações e com protestos de rua. Todavia, a resposta é direta: o Leviatã não discute, exige o cumprimento da sua "Lei". O problema é que a "Lei" do Leviatã não tem sentido quando enfrenta a insubordinação, a subversão. Por isso o Estado "criminaliza" todos que atentam contra a ordem do "Estado Democrático de Direito". Ameaça com Conselho Tutelar e com prisão, os "desordeiros" que

não se entregam. A auto-organização de professores, pais e alunos não se intimida com as ameaças do Leviatã: "A escola é nossa" bradam. Para o Leviatã isso é inaceitável, inconcebível. A Escola foi criada pelo Leviatã e lhe pertence. Os estudantes, os pais e professores, afinal, foram criadas pelo Leviatã e, portanto, lhe pertencem. Essa é a compreensão do Leviatã. Para ele a sociedade é composta de servos, serviçais, eufemisticamente chamados "cidadãos" e "cidadãs" e como tal devem se comportar. É para isso que as Escolas foram criadas, para formatar essa "cidadania" de cumpridores de Leis e Ordens; para aprender a obediência, a disciplina, o bom comportamento e a subserviência ao próprio Leviatã. E quando ela perde essa função? Quando os súditos se rebelam? O Leviatã usa o que tem de mais eficaz: a força policial. Escola deve ser retomada, eis a palavra de ordem do Estado. A educação saiu do controle, isso não será permitido jamais. Para isso o Estado tem tribunais, juízes, oficiais, advogados, exército, tem "Leis". Para que servem se não for para "manter a

ordem"? Para que serviriam as Escolas se não fosse para adestrar cumpridores de "Leis"? "A Escola é nossa!!!", o grito de estudantes, pais e professores ecoa no interior das escolas, cobertas com cartazes, faixas de indignação, de protesto, contra o "Estado de coisas". O grito é coletivo e acusa a contradição entre a promessa de um espaço público de educação que não é. Pais, estudantes e professores que ocupam as escolas começam a dar outro sentido ao espaço. Educação como construção comum, pública, auto-organizada, auto-gestionada, sob controle da comunidade. Uma afronta ao Leviatã. A ação do Estado, se expressa no que é a Educação Estatal. É a voz do Leviatã reproduzida por seus mais fiéis súditos. É essa fala e essa prática que está sendo derrotada por outra fala e outra prática, aquela que diz: "Não preciso de nenhuma autoridade que me ensine como eu devo viver a minha vida, como nós, coletivamente podemos organizá-la". Essa é a maior contribuição que esses estudantes estão dando com seu ethos libertário.. Revista Periscópio | 11


E é esse ethos libertário que constitui a premissa fundamental do que denominamos Educação Libertária. Portanto, quando falamos ou realizamos uma educação em liberdade e para a liberdade e a autonomia, como autocriação estamos falando desse ethos, como comportamento, como uma relação, sobretudo, baseada em uma ideia de ser humano como devir, como “único” na acepção de Stirner; como experimentador, cujas possibilidades requerem e exigem uma educação capaz de possibilitar a cada um tornarse, como disse Nietzsche, aquilo que se é, e não aquilo que outro quer que seja. Para isso Educação Libertária não começa nem

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termina em um espaço fechado e exclusivo como é a Escola, não aceita o conhecimento como monopólio do Estado, da família, da religião, nem de educadores ou ideólogos. Educação na perspectiva libertária é compartilhamento de múltiplos saberes encontrados na própria dinâmica da vida de cada um, seja individualmente, seja coletivamente. Saberes em transformação como o ser em devir permanente como ensinava Heráclito. Parafraseando o filósofo do devir, podemos dizer que o conhecimento nunca será o mesmo assim como quem conhece também não será o mesmo. Mas para isso a reafirmação da diferença numa perspectiva deleuziana é fundamental. A diferença

não aceita padronização, monopólios, centralização, grades curriculares, “celas” de aula, comando e obediência. Requer generalização de saberes, liberdade em e para a criação. Educação Libertária, portanto, precisa ser generalizada, como ação direta, sem intermediários, sem autoridades que determinem conteúdos, fins, objetivos, metas. Educação Libertária como autocriação de únicos autocriadores de conhecimentos; da própria vida como exercício de autoeducação. A Educação Libertária nasceu como ideia dos pensadores iluministas que levaram às últimas consequências o pressuposto kantiano do sapere aude, tenha coragem de saber. Ao contrário dos "libertadores" jacobinos e seus herdeiros marxistas que pregam a necessidade de alguém que "liberte" o oprimido; os libertários como Willian Godwin, Max Stirner, Proudhon, Bakunin, os libertários por excelência, pioneiros na filosofia antiautoritária que adotaria a denominação "maldita" de “ANARQUISTAS", advogam pela liberdade sem "Libertadores", a liberdade de cada um é obra de cada um, ou seja, não é necessária nenhuma autoridade que “garanta” a

liberdade. Foram os anarquistas que no século XIX e XX colocaram em prática essas ideias de Educação Libertária pela primeira vez na Europa e depois no resto do mundo. Paul Robin, Sebastién Faure, Francisco Ferrer, foram pioneiros. Demonstraram com suas experiências de Educação Libertária que ensino, conhecimento, saberes poderiam ser realizados sem prêmios e castigos, de forma livre, autogestionária, integral. Que a liberdade não era um conceito abstrato mais um atributo da ação, e do ethos. As ideias libertárias aportaram no Brasil nas primeiras décadas do século XX, trazidas pelos milhares de operários imigrantes da Itália, Espanha, Polônia, que vieram servir de mão de obra para o nascente capitalismo tardio. Tratados como animais de cargas em fábricas no qual trabalhavam mulheres e crianças por mais de 14 horas sem nenhum direito, auto organizaram-se e criaram suas próprias Escolas Libertárias para os operários e seus filhos. Foram pioneiros no que viria a ser chamado no Brasil de Educação Popular. Cem anos depois a ideia de Educação Libertária, que ao contrário do que a história oficial sustenta, nunca morreu, ressurge com força em cada movimento libertário que

avança. Revive sempre e em cada ação no qual a prática seja da ação direta, do apoio mútuo e da autogestão. É encontrada hoje em salas de aulas de Escolas e Universidades, nas Okupas, nas Escolas ocupadas por estudantes na bela "revolução dos secundas" de São Paulo, na ação de cada Grupo de Estudo ou coletivo libertário, cada Biblioteca libertária. Ao contrário dos saberes legitimados pelo Estado que Leviatã que como uma árvore emerge de uma única raiz centralizada, a Educação Libertária é rizomática, pois se espalha, sem um centro propulsor, ou organizador, no qual sua energia passa sem a mediação de tronco até as folhas. Na Educação Libertária não há, portanto nem centralização (do Estado), nem mediação (da Escola). Daí a dificuldade de compreendê-la, pois escapa das narrativas e lógicas baseadas na hetero-normatividade, no qual há de um lado a necessidade de um centro controlador e soberano com autoridade para o comando e de outro um sujeito controlado, submisso e obediente. Por isso podemos dizer que, se a Educação Estatal Escolarizada é um dos mais eficazes instrumentos de poder do Leviatã moderno, o seu contrário, a potência do ethos libertário, constitui-se como seu maior inimigo. Revista Periscópio | 13


Educação

Carta aos estudantes que ocupam SP por Gui Sch

Não era por 20 centavos e não é por 94 escolas. E antes de tudo, não deixem fazer deste potente movimento pedagógico uma guerra. O que vocês estão fazendo é infinitamente maior do que simplesmente tencionar uma tentativa de reorganização escolar estadual.

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O que vocês estão fazendo é muito maior do que simplesmente lutar contra o fechamento de 94 escolas. Vocês estão ousando revolucionar as formas com que se entende a educação. A organização pedagógica que vocês estão experimentando é incrivelmente potente e questiona profundamente os modos com que a educação escolarizada vem sendo aplicada. Claro que suas ocupações têm pautas específicas, mas deixe vasculhar um pouco além dos objetivos, olhando para o dia a dia, olhando para o imediato da prática que vocês estão vivenciando. Os muros são os mesmos, são as mesmas grades, as mesmas salas, os mesmos prédios e as mesmas pessoas, mas alguma coisa mudou com a organização para a ocupação. O que foi? Quais os sentimentos da organização escolar burocrática anterior não existem mais? Quais os novos sentimentos que vieram à tona? No funcionamento

normal da escola existe uma certa desconfiança, os estudantes são tidos como incapazes, como inferiores não dotados de discernimento para decidir e executar o caminho da educação. Tanto é que sempre são outros que pensam o que é bom para ser ensinado em currículos nacionais, e sempre outros elaborar planejamentos pedagógicos e de aulas, os estudantes nunca são chamados para participar destas decisões, e isto mostra apenas a falta de confiança ou a descrença nas capacidades dos jovens e das crianças. Como poderíamos imaginar que vocês seriam chamados para dialogar sobre a reorganização. Estudantes não são ouvidos nem sobre o que desejam estudar, quanto menos seriam chamados para ser escutados sobre mudanças deste gênero. O que vocês estão fazendo nestas ocupações é mostrarem suas imensas capacidades de auto-organização, suas capacidades de decisão coletiva e autônoma,

estão mostrando a maturidade que germina quando é permitido brotar criatividade. Estão mostrando a capacidade de executar tarefas que lhes eram negadas por receio de suas incapacidades. Estão cozinhando sua própria comida, limpando o chão, capinando o pátio, e mais, estão organizando por si o currículo vivo proveniente de suas vontades, vocês são os planejadores, gestores, diretores e professores organizados coletivamente. E se mostram plenamente capazes. Em alguns relatos percebi que a vontade e de ir para a escola, agora ocupada, era maior que anteriormente. Será que antes também não existia a vontade de fazer as atividades que agora estão fazendo? E será que não faziam estas atividades por que a burocracia disciplinar das aulas e mais aulas não os dava oportunidade de criar? Aulas e mais aulas pensadas e impostas por outras pessoas que faziam com que vocês não pudessem decidir o que Revista Periscópio | 15


gostariam de fazer por suas próprias vontades. Na escola burocrática hierárquica não é possível ser responsável. Responsabilidade é apenas um conteúdo esperado, mas sem espaço para acontecer na realidade, pois posso sujar o banheiro, jogar lixo no chão e quando chegar meio dia a comida está pronta. E o pior, não há interesse por organizar os próprios estudos, pois tem alguém que pensa isso para mim, retirando a possibilidade de ser responsável por isso. Quanto envolvimento é privado pela estrutura de funcionamento escolarizada da educação? E quanto envolvimento se faz possível e está acontecendo agora nas ocupações? Capacidades, c u r i o s i d a d e s , responsabilidade e envolvimento são alguns dos aprendizados que talvez estejam sendo percebidos neste movimento, e isto vai muito além da simples luta contra a reorganização, isso 16 | Revista Periscópio

mostra que a educação pode ser muito mais divertida e satisfatória quando é “cocriada”. As escolas ocupadas estão vivas, cheias de vontades vibrantes, antes poderiam parecer mais mortas em seu funcionamento padrão. E agora estão querendo fazer uma guerra contra esta mobilização autônoma, responsável e alegre. Não se deixem abafar, não se deixem ser miserabilizados novamente, não se deixem ser tratados como subalternos, inferiores ou incapazes. Este movimento de ocupação conseguiu mobilizar uma valiosa meta da educação, a participação dos pais e da

comunidade nas escolas, conseguiu rapidamente mobilizar agricultores e advogados para apoiar ativamente a causa. Estão conseguindo realizar e aplicar os sonhos mais lindos contidos nos planejamentos p e d a g ó g i c o s de autonomia, protagonismo, liberdade, alegria, responsabilidade, todas estas palavras que ficavam mortas num papel sem valor agora são vivas em suas atividades. Isto demonstra uma imensa conquista em termos de aplicação pedagógica. A produção de conteúdos feita nestas três semanas de ocupações, em formato de vídeos, reportagens e atividades diversas tem sido

infinitamente maior que nos tempos escolares normais, isto mostra como os conteúdos escolares são tijolos e as aulas são muros que acabam represando as potências dos estudantes. Com todas estas mobilizações vocês estão mostrando que precisam ser escutados e que são legítimos agentes políticos construtores ativos da educação. Caso existam agentes partidários instrumentalizando seus movimentos, resistam e recusem se mantendo autônomos. Não deixem que as políticas públicas nem os currículos sejam despejados em vocês de cima para baixo. Não deixem este alegre movimento se transformar mesmo em uma guerra. Os gestores e governantes estão decepcionados porque gostariam que vocês permanecessem por toda vida dóceis e domesticados, mantidos sob o controle e a ordem deles, agora tipos construtores da educação estão sendo vistos como inimigos. Quem deseja guerra é

rancoroso, ressentido, são pessoas tristes que sentem perdendo poder de manipulação. Sigam firmes e sigam mobilizados em qualquer cenário que se desenrolar, sigam mobilizando a comunidade para participar ativamente

da educação, sigam se perguntando porque a escola se organiza em cima da pressuposição de que vocês são incapazes. E acima de tudo, sigam dançando e cantando a alegria de vida em luta sem se deixar impregnar pela ideia da guerra.

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Ação Direta

Coletivo de Experimentações Libertárias educação, ar te e tecnologia A cidade de Pelotas é considerada pela historiografia como o berço do movimento operário gaúcho em função de ter sido o local onde se iniciou o processo de desenvolvimento industrial do Estado, desde meados do século XIX, da mesma forma é, também, o berço do movimento libertário do sul do Brasil, a partir da chegada, neste período, de um significativo contingente de operários imigrantes, que trazem as novas ideias de transformação social e política nascidas na Europa como o anarquismo. A emergência de uma cultura libertária anarquista na cidade marcou o movimento operário, 18 | Revista Periscópio

principalmente entre os anos de 1914 e 1919 através das diversas iniciativas no campo da cultura e da Educação popular. Foram os anarquistas os pioneiros na construção de espaços de educação para os trabalhadores e seus filhos com os Ateneus Sindicalistas e as Escolas Modernas do modelo criado pelo educador libertário Francisco Ferrer e Paul Robin, sob inspiração de Proudhon e Bakunin. Cem anos depois, a cidade de Pelotas mantém essa cultura libertária anarquista, agora através dos grupos e coletivos que vivem uma vida e ações libertárias nas “okupas”, espaços autogestionários

de vivência libertária que ao mesmo tempo são espaços do exercício e experimentações de educação libertária com as mais diversas atividades como oficinas, debates, cursos, bibliotecas populares; nos Grupos de Estudos e coletivos libertários que buscam em suas ações diretas fortalecer essa cultura. Para isso apresentamos o CELIBER – Coletivo de Experimentações Libertárias em Educação, Arte e Tecnologia, como parte desse processo, cuja primeira iniciativa está a criação da revista Periscópio como canal de divulgação das ideias e ações do grupo.

A proposta A partir das premissas de educação libertária como experimentação livre e exercício de autonomia intelectual e criativa, propomos um conjunto de atividades autogestionadas para compor a programação inicial do CELIBER. Nenhuma dessas atividades terá qualquer avaliação, certificado, bem como controle de presenças. O único objetivo é o compartilhamento de saberes para a autocriação de cada envolvido no processo.

A ideia Somos um grupo de educadores/aprendizes, animadores da construção de espaços autogestionários de experimentações libertárias em educação, artes e tecnologia na cidade de Pelotas. Este coletivo, que estamos denominando de CELIBER (Coletivo de Experimentações Libertárias) propõe-se a desenvolver práticas de criação, compartilhamento e construção de saberes através do exercício da autogestão. Na perspectiva de construir uma Universidade Libertária buscamos efetivar uma educação como experimentação e autocriação individual e coletiva, baseada nas vontades e desejos de cada um, como agenciadores do que Nietzsche denominou de Gaia Ciência, ou seja, uma “ciência alegre”. Educação para além da Escola, dos currículos, dos programas e disciplinas prédeterminados, para além dos disciplinamentos, dos prêmios e castigos, das certificações. O saber e o conhecimento como Arte, fim em si mesmo e não como meio; como criação e autocriação, ensaio e experiências. Tecnologia como ferramenta para invenções libertárias.

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O QUE NÓS QUEREMOS É QUE AS IDEIAS VOLTEM A SER PERIGOSAS !!!

A REVISTA PERISCÓPIO É A PRIMEIRA INICIATIVA DO LABORATÓRIO DE MÍDIAS DO CENTRO DE EXPERIMENTAÇÕES LIBERTÁRIAS. ORGANIZADO DE FORMA AUTOGESTIONÁRIA E FEITA PARA LIVRE DISTRIBUIÇÃO. nos envie seu feedback através do email periscoptico@gmail.com

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