Lote 64

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPÍRITO SANTO CENTRO DE ARTES

ALEXSANDER VIEIRA

LOTE 64

VITÓRIA 2010


ALEXSANDER VIEIRA

LOTE 64

Monografia apresentada à Comissão Examinadora do Centro de Artes da Universidade Federal do Espírito Santo, para efeitos de defesa de Trabalho de Graduação, requisito parcial para obtenção do Grau de Licenciado em Artes Visuais. Orientador: Lincoln Guimarães Dias

VITÓRIA 2010


ALEXSANDER VIEIRA

LOTE 64

Trabalho de Graduação apresentado ao Departamento de Artes Visuais do Centro de Artes da Universidade Federal do Espírito Santo, como requisito parcial para obtenção de grau de licenciado em Artes Visuais.

Aprovado em __ de _________ de 2011.

Comissão Examinadora

________________________________ Prof. Dr. Lincoln Guimarães Dias Universidade Federal do Espírito Santo Orientador

________________________________ Prof. Dr. Alexandre Emerick Neves Universidade Federal do Espírito Santo

________________________________ Prof. Julio Cesar da Silva Universidade Federal do Espírito Santo


Dedico esta pesquisa a todas as pessoas que contribuíram de alguma forma para a realização

do

trabalho

em

questão,

sobretudo aos meus pais pelo grande apoio e aos meus amigos, os quais proporcionaram inspiradoras.

diversas

conversas


“O túmulo é a maior colagem do mundo: integra um objeto não artístico, o corpo, a uma estrutura estética tradicional.” Harold Rosenberg


RESUMO O presente trabalho é um estudo analítico do conjunto de trabalhos realizados entre 2008 e 2010, intitulado Lote 64. Resgatando as idéias que embasam a produção derivada da aquisição de um lote de doze máquinas fotocopiadoras em um leilão na Universidade Federal do Espírito Santo (o lote nº 64), o trabalho concentra-se em apresentar o resultado das diversas colagens e recriações que foram feitas com a utilização de tais equipamentos. Com o uso de máquinas de reprodução gráfica, desenvolvi um conjunto de obras que inclui uma série de livros, painéis produzidos com colagem e pintura, além de uma instalação que ficou exposta na Galeria Homero Massena em janeiro de 2010. Esta pesquisa busca conceituar, com base da história da arte, na Literatura e nas questões concernentes à pós-modernidade, as principais referências ligadas à concepção da série Lote 64. Aí encontram-se questões como o colecionismo, a cópia, a difusão e a apropriação de imagens, as enciclopédias, a reutilização de material obsoleto e a ressignificação de todas essas ideias dentro do campo da arte.


LISTA DE FOTOGRAFIAS Figura 1 – Máquinas do Lote 64 ................................................................................................................................................... 12

Figura 2 – Infográfico Lote 64 ....................................................................................................................................................... 13

Figura 3 - Boxe, 136,5 x 90,5 cm, Collage e pintura sobre MDF. Alex Vieira 2009. Acervo do Artista ........................................ 17

Figura 4 - 3mula, Colagem e pintura sobre MDF, 45 x 45 cm, Alex Vieira 2009. Acervo do Artista ............................................ 19

Figura 5 - Cópia, Colagem e pintura sobre MDF, 45 x 45 cm, Alex Vieira 2009. Acervo do Artista ............................................ 19

Figura 6 - Cowboy, Colagem e pintura sobre MDF, 45 x 45 cm, Alex Vieira 2009. Coleção de Ivo Godoy ................................. 20

Figura 7 - Galinha, Colagem e pintura sobre MDF, 45 x 45 cm, Alex Vieira 2009. Acervo do Artista ......................................... 20

Figura 8 – Lagosta, Colagem e pintura sobre MDF, 45 x 45 cm, 2009. Coleção de Michely Suguy ........................................... 21

Figura 9 - Leitura, Colagem e pintura sobre MDF, 45 x 45 cm, Alex Vieira 2009. Acervo do Artista ........................................... 21

Figura 10 - Sobretudo, Colagem e pintura sobre MDF, 45 x 45 cm, Alex Vieira 2009. Acervo do Artista ................................... 22

Figura 11 - Boneca, Colagem e pintura sobre MDF, 45 x 45 cm, 2009. Coleção de Thai Angelo ............................................... 22

Figura 12 - Desciclopédia Híbrida e monocromática sobre assuntos aleatórios – de A a Z ........................................................ 23

Figura 13 - Visitante folheando o livro .......................................................................................................................................... 23

Figura 14 - Capa da Enciclopédia de Diderot ............................................................................................................................... 25

Figura 15 - Retroactive II – Robert Rauschenberg 1963. Óleo, serigrafia sobre tela. 203 x 152,5 cm ....................................... 30

Figura 16 - Der Ziegenwagen– Sigmar Polke 1992. Polímero Sintético em tecido estampado, 218.4 x 299.7 cm. .................... 31

Figura 17 - Paulo Bruscky, Cédula de identidade, c.1978, Cópia colorida, 28 x 21.5 cm ............................................................ 32

Figura 18 – Visitação da Exposição Lote 64 ................................................................................................................................ 35

Figura 19 - Boxe, 136,5 x 90,5 cm, Collage e pintura sobre MDF. Alex Vieira 2009. Acervo do Artista ...................................... 39

Figura 20 - Bulldog, 136,5 x 90,5 cm, Collage e pintura sobre MDF. Alex Vieira 2009. Coleção de Henrique Guimarães ......... 40 Figura 21 - Botox, 136,5 x 90,5 cm, Collage e pintura sobre MDF. Alex Vieira 2009. Acervo do Artista...................................... 41

Figura 22 - Susto, 136,5 x 90,5 cm, Collage e pintura sobre MDF. Alex Vieira 2009. Acervo do Artista ..................................... 42

Figura 23 - Pijama, 136,5 x 90,5 cm, Collage e pintura sobre MDF. Alex Vieira 2009. Acervo do Artista ................................... 43

Figura 24 - Empresário Nóia, 136,5 x 90,5 cm, Collage e pintura sobre MDF. Alex Vieira 2009. Acervo GHM .......................... 44


Figura 25 – Visitação da Exposição Embira ................................................................................................................................. 45

Figura 26 - Sem título, 60 x 70 cm, técnica mista. Alex Vieira 2010. Acervo do Artista ............................................................... 45

Figura 27 - Sem título, 60 x 70 cm, técnica mista. Alex Vieira 2010. Acervo do Artista ............................................................... 46

Figura 28 - Sem título, 60 x 70 cm, técnica mista. Alex Vieira 2010. Acervo do Artista ............................................................... 46

Figura 29 - Sem título, 60 x 70 cm, técnica mista. Alex Vieira 2010. Acervo do Artista ............................................................... 47

Figura 30 - Sem título, 60 x 70 cm, técnica mista. Alex Vieira 2010. Acervo do Artista ............................................................... 47

Figura 31 – Flyer virtual da Exposição Lote 64 ............................................................................................................................ 52


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SUMÁRIO 1 ORIGENS DO LOTE 64 ........................................................................................ 11

2 PROCESSO DE CRIAÇÃO ................................................................................... 15

3 CONTEXTUALIZAÇÃO DA OBRA ........................................................................ 24 3.1 – História Geral e Ciências Humanas ................................................................ 24 3.2 – História da Arte ................................................................................................ 29

5 APROPRIAÇÃO DE IMAGENS E RECOMBINAÇÃO .......................................... 35

6 EXPOSIÇÃO LOTE 64 .......................................................................................... 37

7 CONSIDERAÇÕES FINAIS .................................................................................. 48

8 REFERÊNCIAS ..................................................................................................... 49


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1 ORIGENS DO LOTE 64

Construir uma coleção significa estilhaçar o continuum temporal dos objetos e, com isso, ajudar a abrir ângulos novos de conhecimento. Trata-se também da arte de uma nova montagem. Esta marcaria a diferença do colecionador do antiquário, que nada mais é do que um flâneur congelado, a morada de um morto em vida. Nas mãos de Benjamin, a ordem de uma coleção pode transformar-se em ordem de uma luta. No colecionador, Benjamin vê a criança e seu poder mágico de concentração, condensando elementos dispersos para criar, para lançar um olhar incomparável para formar uma enciclopédia mágica. Basta observar como pega um objeto em suas mãos, como parece receber dele uma inspiração, parece enxergar através dele, como um mago na sua dimensão longínqua. 1

Como qualquer universitário sem dinheiro, procurei alternativas para baratear o custo dos materiais durante o curso de artes visuais. Muitos dos suportes utilizados nos meus trabalhos eram objetos abandonados no campus ou encontrados em ambientes inóspitos. Em uma dessas buscas descobri o depósito de sucata da UFES por indicação de um amigo. Na primeira visita ao local, me surpreendi com a diversidade de materiais e a quantidade acumulada de lixo tecnológico: havia desde imensas maquinas offset a equipamentos médicos como incubadoras e rins artificiais.

Sempre que passava por lá me interessava por algo diferente, mas dificilmente conseguia adquirir qualquer objeto, pois todos portavam a plaquinha de patrimônio da Universidade. Um dia o funcionário do depósito me informou sobre o leilão que acontecia periodicamente para “desentulhar” o local e arrecadar fundos para as novas aquisições da Universidade. Durante a exposição dos lotes que compunham o material que iria a leilão, me interessei por vários equipamentos, mas como eram tralhas de grande porte ou sucatas muito antigas que dificilmente teriam conserto, resolvi me ater apenas a dois lotes: o lote de equipamentos de sonorização, que incluía mesas de som, caixas e alto falantes; e o Lote 64 que continha 12 máquinas para reprografia e materiais para escritório. 1

ENGELMAN, S & PERRONE, C. O Colecionador de Memórias. Revista Episteme. Grupo Interdisciplinar de Historia e Filosofia da Ciência/ILEA/UFRGS , número especial , agosto 2005


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O número de pessoas interessadas na sucata universitária era bem maior do que eu havia imaginado: o auditório da UFES estava lotado, em sua maioria por homens que gritavam números na disputa dos lotes. Primeiramente foram leiloados os carros, em seguida os aparelhos eletrônicos. Participei de algumas seções dando lance, mas perdi. Concentrei-me apenas no Lote 64, para o qual ninguém deu lance. Cheguei a pensar que estava fazendo um mau negócio, mas insisti até alcançar o lance mínimo estipulado pelo leiloeiro. Arrematei as máquinas pelo preço de 300 reais e saí feliz pela nova aquisição.

Fig. 1 – Máquinas do Lote 64, foto: Alex Vieira

Nenhuma das máquinas funcionava. Levei-as a vários técnicos, mas todos diziam ser material obsoleto e que eu deveria jogar tudo no lixo ou vender para um ferro velho. Por fim, tive que deixar as máquinas encostadas num espaço perto da minha casa, sem muita esperança de conserto. Foi necessário ainda passar por um processo burocrático para pagar e emitir notas fiscais para comprovar a compra dos


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equipamentos, caso contrário poderia ser acusado de roubo, como aconteceu na primeira vez que tentei consertar uma das máquinas.

Por sorte, e muita ajuda do meu pai, encontramos um técnico especializado em uma das marcas das máquinas. Enfim pudemos consertar uma, que se encontra dentro da minha casa, atualmente marcando 475.037 cópias executadas.

Utilizo a máquina constantemente, não só para produzir meus trabalhos artísticos, mas também para atividades ordinárias, como: cópias de documentos, textos e cartazes de divulgação.

Passo a chamar de Lote 64, toda a produção artística posterior a compra das máquinas no leilão, mais especificamente as colagens/pinturas e os objetos: que incluem as Desciclopédias (obras em formato de livro) e as próprias máquinas arrematadas. Este conjunto, juntamente com uma colagem mural e um aparelho toca discos, compuseram a exposição Lote 64, que ocorreu entre os dias 28 de janeiro e 5 de março de 2010.

Fig. 2

Meu interesse pelas máquinas copiadoras é anterior a minha entrada na universidade. Por vários anos me mantive envolvido com a cena musical Punk e nela tive contato com manifestações artísticas que me levaram a desenvolver meus


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primeiros experimentos no território das artes gráficas. Ao estudar a disciplina História da Arte percebi que as referências visuais dos “artistas punks” partiam principalmente das expressões contraculturais, do dadaísmo, do surrealismo, da arte pop e também da “cultura pop”, como as histórias quadrinhos. Acredito que meu repertório visual aumentou muito no momento em que passei a pesquisar quadrinhos, ilustração, arte de rua e outras manifestações fora da “cultura séria”.

Os materiais gráficos punks geralmente são produzidos em meios encontrados facilmente nas cidades, o que define uma identidade própria para o que se é criado. Máquinas fotocopiadoras, máquinas de escrever, letras transferíveis, tesoura e cola são alguns dos instrumentos mais utilizados para a confecção de panfletos, cartazes, fanzines 2 e encartes de discos. Trata-se de uma produção também chamada de “faça-você-mesmo”, onde o próprio autor (ou coletivo) é responsável por todo o processo de criação e divulgação dos materiais e eventos organizados. Este meu envolvimento passional com a cena Punk me levou a sonhar em um dia ter uma máquina fotocopiadora própria onde eu pudesse ter a liberdade de criar e experimentar os diferentes tipos de possibilidades reprodutivas deste equipamento sem ter que recorrer a lojas copiadoras em que seus atendentes sempre apresentavam dificuldades em entender meus pedidos.

Com o tempo, passei a desenvolver um gosto pessoal pela estética ruidosa proporcionada pelas máquinas fotocopiadoras fora de linha e comecei a perceber e pesquisar as especificidades geradas por estes equipamentos antigos (granulação, brilho, contraste e retícula) a fim de incorporá-las aos meus trabalhos. Paralelamente, iniciei uma intensa coleta de materiais gráficos. Assim, a partir das informações e imagens encontradas na minha coleção, monto novos elementos híbridos com diversos tipos de conteúdos sobrepostos.

2

Publicações independentes distribuídas em shows punks. Estas espécies de mini-revistas eram geralmente manufaturadas

em colagem, reproduzidas em máquinas fotocopiadoras e enviadas pelo correio.


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2 PROCESSO DE CRIAÇÃO DAS OBRAS Defini como Lote 64, não somente o presente trabalho, mas também um agrupamento de obras que inclui painéis, livros e uma instalação. Todos estes trabalhos que serão comentados abaixo foram expostos em uma exposição com o mesmo título, na Galeria Homero Massena.

É importante ressaltar que desenvolvi um conjunto de obras que se une por diversos aspectos específicos, como: conceitos, matéria prima, fontes, suportes, linguagens visuais e outros. Neste capítulo me proponho a definir alguns desses aspectos que guiam esta produção a fim de expor ao leitor maiores informações sobre o processo de criação da mesma.

No Lote 64 tudo precisa estar em preto e branco ou tons de cinza. Desta maneira mantenho os resultados do trabalho fortemente ligados ao seu meio de produção, que neste caso é uma máquina fotocopiadora que imprime em preto e branco. Depois de reproduzir as imagens, posso vir a alterá-las, porém sem intervenção de cores. Acredito que a utilização de outro pigmento (cor) descaracterizaria todo o conjunto de trabalhos.

As colagens/pinturas que integram o Lote 64 consistem em painéis de MDF, pintados com tinta preta e/ou branca, onde são colados papéis fotocopiados em diversas escalas. A pintura sobre a fotocópia possibilita evidenciar ou ocultar planos de imagens e textos. Escolher as imagens a serem utilizadas não é um processo aleatório, nem definido pelo acaso, é uma tentativa de articulação e resignificação de formas e imagens. A cada fotocópia obtida observo planos, áreas de contraste, luz, e sombra. Caso não esteja satisfeito com o resultado obtido, refaço a cópia. As fontes

de

materiais

gráficos

freqüentemente

utilizados

na

pesquisa

são:

enciclopédias, livros didáticos, propagandas, embalagens e utensílios artísticos.

Todo material fotocopiado torna-se um novo elemento no instante em que é submetido ao processo foto-estático.

Vejo o processo da fotocópia como uma


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espécie de antropofagia, O trabalho resultante compreende uma apropriação, transformação e reorganização das qualidades do material copiado.

Trabalho com uma máquina antiga e constantemente ela apresenta erros. Devido a estas falhas operacionais da máquina, descobri novas formas de transferir imagens para os suportes. Em alguns momentos a máquina trava antes do processo de fixação do toner no papel, ou seja, a imagem já foi transferida para o papel, mas o toner ainda está solto, podendo ser decalcado em qualquer superfície, como uma espécie de carimbo ou monotipia. Percebendo isto, passei a provocar esse travamento desligando a máquina durante o processo de cópia. Após isso, abro a máquina, capturo o papel e transfiro a imagem pressionando-a contra o suporte desejado. Por fim utilizo algum fixador para selar a imagem.

Com o tempo passei a agregar outros meios de reprodução ao meu processo de criação, como a serigrafia, a monotipia e o estêncil. Acredito que isto tem uma forte relação com meu envolvimento com a disciplina de gravura que cursei na Universidade. No trabalho “Boxe” (fig. 6) é possível perceber algumas das diferentes formas de intervenção técnica nos quais os trabalhos do Lote 64 são submetidos. Permito-me desfrutar da experimentação de diversas técnicas numa mesma superfície, de modo que elas passem a se fundir no mesmo plano e se confundam. Algumas partes são pintadas manualmente, porém todos os meios e técnicas utilizadas nos trabalhos desta série referem-se à cópia e reprodução de imagens. Minha intenção é me apropriar de um material imagético pré-existente, justapor diversos meios de reprodução e transposição de imagens na produção de um mesmo trabalho. Permito-me copiar e transferir tudo que eu ache interessante para os suportes. Produzo imagens novas, a partir da manipulação de um conjunto de imagens já existentes.


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Fig. 3 - Boxe, 136,5 x 90,5 cm, Collage e pintura sobre MDF. Alex Vieira 2009

Por mais que as pinturas demonstrem uma aparência caótica, prevalece o esquema de leitura ocidental: da esquerda para a direita e de cima para baixo. Passei a evitar elementos centrais e composições na diagonal.

Minha obra se insere na linguagem pictórica a fim de dar uma nova ordem para o universo imagético que está a minha volta. Como o artista Julio Tigre me disse, estou pintando com imagens, minhas “pinceladas” são camadas gráficas que se acumulam sobre a superfície, de maneira iconoclasta, desrespeitando toda a história, semântica ou hierarquia das impressões utilizadas.

Meu trabalho se relaciona com o cotidiano das cidades, a relação trabalho x homem, o lixo publicitário, o consumo excessivo, a dependência humana causada pela tecnologia e o descarte de objetos e informações obsoletas.


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Uma série de objetos também compõe o Lote 64. Inicialmente chamados de “Desciclopédias”, estes livros são agrupamentos de conteúdos desconexos, coleções de memórias que não foram vividas, uma tentativa utópica da reconstrução de um universo imagético, como o jovem protagonista do conto de Jorge Luis Borges “a biblioteca de babel 3”, que peregrinou em busca do catálogo dos catálogos e se deparou com a natureza informe e caótica de quase todos os livros. “Não há na vasta biblioteca dois livros idênticos”. Trata-se de um baralhamento de letras e símbolos, até construir, mediante uma improvável dádiva, uma coleção de livros canônicos.

Totalizando apenas três volumes com tiragem única, estes objetos fazem referência às enciclopédias e livros didáticos, porém o conteúdo destes materiais está disposto de maneira confusa e incompreensivel. São centenas de fotocópias sobrepostas que ao final foram encadernadas em capa dura, intituladas como “Desciclopédias híbridas e monocromáticas sobre assuntos aleatórios - de A a Z”. Encaro a produção desses livros como trabalhos avulsos e também como estudo e registro de processo das colagens maiores. Ao folhear um dos volumes dos livros é possível perceber elementos que aparecem nos painéis.

A idéia é montar uma grande série, uma biblioteca. Por fim, as Desciclopédias se tornaram uma espécie de síntese da exposição, pois carregam consigo fragmentos da maior parte dos experimentos anteriores a criação dos painéis expostos.

Sinto que meus trabalhos estão caminhando para a busca do essencial, me refiro à questão essencial em que os trabalhos estão envolvidos, de maneira que essas obras possam ser pinturas, livros, esculturas ou desenhos, mas façam parte de um mesmo universo de expressão. Que questão essencial seria esta? Não sei precisar ao certo, mas é algo que oscila entre o desvio ideográfico, onde posso mudar o sentido funcional de certa coisa e a apropriação de meios.

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BORGES, Jorge Luis. Ficções (1944) – Editora Companhia das letras, São Paulo, 2007.


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Fig. 4 – 3mula, Colagem e pintura sobre MDF, 45 x 45 cm, Alex Vieira 2009. Coleção do Artista

Fig.5 - Cópia, Colagem e pintura sobre MDF, 45 x 45 cm, Alex Vieira 2009. Coleção do Artista


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Fig. 6 - Cowboy, Colagem e pintura sobre MDF, 45 x 45 cm, Alex Vieira 2009. Coleção de Ivo Godoy

Fig. 7 - Galinha, Colagem e pintura sobre MDF, 45 x 45 cm, Alex Vieira 2009. Coleção do Artista


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Fig. 8 - Lagosta, Colagem e pintura sobre MDF, 45 x 45 cm, 2009. Coleção de Michely Suguy.

Fig. 9 - Leitura, Colagem e pintura sobre MDF, 45 x 45 cm, Alex Vieira 2009. Coleção do Artista


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Fig. 10 - Sobretudo, Colagem e pintura sobre MDF, 45 x 45 cm, Alex Vieira 2009. Coleção do Artista

Fig. 11 - Boneca, Colagem e pintura sobre MDF, 45 x 45 cm, 2009. Coleção de Thai Angelo


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Fig. 12 – Desciclopédia Híbrida e monocromática sobre assuntos aleatórios – de A a Z

Fig. 13 – Visitante folheando o livro


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3 CONTEXTUALIZAÇÃO DA OBRA 3.1 HISTÓRIA GERAL E CIÊNCIAS HUMANAS “Encontrando-me numa cidade junto ao Reno, num dia chuvoso de 1918, as páginas de um catálogo-ilustrado em que se reproduziam objetos para demonstração antropológicas, microscópicas, psicológicas e paleontológicas, provocaram em mim uma surpreendente obsessão. Havia tantos elementos estranhos reunidos, que o absurdo do conjunto provocou um brusco aumento de minha capacidade visual desencadeando uma seqüência de imagens duplas, triplas e múltiplas, que se desvaneceram com a mesma velocidade das recordações amorosas ou das visões dos ‘entre sueños’. As imagens pediam uma reunião num novo plano desconhecido (o plano da inoportunidade)... Desta maneira obteria uma imagem objetiva de minhas alucinações... transformando o que haviam sido banais paginas de uma revista de propaganda em dramas que revelam os meus mais íntimos desejos”. Max Ernst – Trecho extraído do texto Inspiration to Order (1933)

A pesquisa intitulada Lote 64 está intimamente ligada à idéia de “enciclopédia”, modelo de publicação que se difundiu pelo mundo após o lançamento da obra suprema do iluminismo, a Enciclopédia de Diderot. Esta ligação se deve ao fato de que toda a produção gráfica / plástica do Lote 64 é gerada pela fotocópia de material enciclopédico e de diversas fontes de informação. Por este motivo faz-se necessário um breve esclarecimento sobre o conjunto de livros que mudou a história moderna e transformou as relações entre o homem e o conhecimento.O elemento radical da enciclopédia não residia em uma visão profética das distantes revoluções industrial e francesa, mas em uma tentativa de mapear o mundo do conhecimento, segundo novas fronteiras determinadas única e exclusivamente pela razão 4. A enciclopédia era um produto de seu tempo, da França de meados do século XVIII, época em que os autores não podiam discutir abertamente as questões sociais e políticas, em contraste com a era pré-revolucionária, quando um governo vacilante permitiu maior liberdade de expressão. A Enciclopédia foi considerada uma obra perigosa. Não se tratava apenas de uma coleção em ordem alfabética de informações sobre “tudo". Embora reconhecesse formalmente a autoridade da

4

DARNTON, Robert, 1939 – O Iluminismo como negócio: história da publicação da “Enciclopédia”, 1775-1800 – São Paulo, Companhia das Letras 1996, p. 18.


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Igreja, o conteúdo da enciclopédia derivava dos sentidos e das faculdades mentais, ou seja, do empirismo de Bacon e do racionalismo de Descartes, em oposição ao conhecimento do tipo fornecido pela Igreja e o estado. Portanto sob a massa dos 28 volumes in-folio e da enorme variedade de seus 71818 verbetes e 28885 pranchas residia uma mudança epistemológica que transformava a topologia de tudo que o homem conhecia 5. A enciclopédia foi incluída no Index em cinco de março de 1759 e em três de setembro o Papa Clemente XII ordenou que todos os católicos que a possuíam mandassem queimá-la sob a pena de excomunhão. Era a condenação máxima de uma obra.

Fig. 14 - Capa da Enciclopédia de Diderot

Ainda é comum encontrar famílias que ostentam enormes coleções de livros encadernadas em capa dura. Mas esse tipo de acervo material passou a se tornar inconveniente e desvalorizado com a popularização do computador pessoal e da internet. O formato hierárquico e sua natureza em permanente evolução tornam obras enciclopédicas alvos perfeitos para publicação em formato digital e praticamente todas as grandes enciclopédias tiveram uma versão em CD-ROM no 5 DARNTON, Robert, 1939 – O Iluminismo como negócio: história da publicação da “Enciclopédia”, 1775-1800 – São Paulo, Companhia das Letras 1996, p. 18.


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final do século XX. A versão em CD-ROM conta com a vantagem de ser portátil e de produção extremamente econômica. Além disso, uma enciclopédia em formato digital pode ter conteúdos como animações e áudio, impossíveis de serem inseridos numa tradicional publicação escrita. A inclusão de hyperlinks ligando artigos relacionados também é uma enorme vantagem do formato digital.

Por fim, o advento da internet possibilitou a criação de enciclopédias, sendo atualmente as mais conhecidas: a Everything2, a Encarta, a h2g2 e Wikipédia. Nestas, pela primeira vez na história da humanidade, qualquer pessoa pode fazer contribuições e corrigir e/ou ampliar as entradas já existentes, o que resulta num gigantesco banco de dados, que é continuamente aperfeiçoado. Este tipo de enciclopédia permite ainda que o significado de um determinado verbete seja consultado em vários idiomas, expandindo os resultados da pesquisa. “Imagine um mundo em que qualquer ser humano possa compartilhar a soma de todo o conhecimento” 6, diz a organização Wikimedia, criadora da enciclopédia online, a Wikipedia. Atualmente presenciamos um novo conceito enciclopédico, desta vez modelável por qualquer pessoa interessada em difundir seus conhecimentos para leitores ao redor do globo, por meio da internet. Os assuntos estão dispersos e cabe ao leitor filtrar as informações. É a partir deste ponto que surge a discussão: quanto mais fontes, mais conhecimento?

Conceitualmente, o Lote 64 se relaciona com a minha própria frustração em não poder obter o conhecimento global sobre todos os assuntos: ciências, artes, história, matemática e etc. Tenho acesso a todo tipo de informação, mas na maioria das vezes me vejo destinado a me tornar um especialista.

Apesar da presença de textos, não considero as obras do Lote 64 como trabalhos literários, mesmo que muitas vezes se assemelhem com alguns tipos de poesias visuais produzidas na década de 60, no concretismo e letrismo.

6

Texto sem assinatura, disponível em: <http://wikimediafoundation.org/wiki/Home>. Acesso em 2 de julho de 2009.


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Alguns dos materiais utilizados nas colagens e nos livros foram guardados durante anos para serem empregados em alguma obra. Dar finalidade a essas imagens também é um exercício de desapego contra um ato de colecionador quase obsessivo. É importante ressaltar, que a maioria das imagens e textos presentes no conjunto do Lote 64 (exceto algumas anotações e desenhos de minha autoria) foi apropriada de outros artistas e estudiosos, o que denota uma ação contemporânea causada pelo excesso de informação acumulada. Essa diversidade de conteúdos abordados num mesmo plano assemelha-se ao conceito de identidade pósmoderna, pesquisada por alguns estudiosos como Stuart Hal.

Esta percepção contemporânea que comparece na temática do Lote 64 dialoga com a compreensão do mundo mediada pelas imagens. No pós-modernismo, o sujeito passa a ter uma percepção fragmentária, desta maneira se diferencia do sujeito iluminista, baseado numa concepção da pessoa humana como um indivíduo totalmente centrado, unificado, dotado de capacidades de razão, de consciência e ação. O conceito pós-modernista é associado à deposição das idéias de progresso do iluminismo. As enciclopédias faziam parte deste plano ideológico iluminista. “O sujeito pós moderno é conceptualizado como não tendo uma identidade fixa essencial ou permanente. A identidade torna-se uma celebração móvel formada e transformada continuamente em relação às formas pelas quais somos representados ou interpelados nos sistemas culturais que nos rodeiam.

O sujeito assume identidades diferentes em diferentes momentos, identidades que não são unificadas ao redor de um “eu” coerente. Dentro de nós há identidades contraditórias empurrando em diferentes direções de tal modo que nossas identificações estão sendo continuamente deslocadas”

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Vivemos a cultura dos excessos e do acúmulo de informação, o que gera um rápido descarte para o que se é produzido, tanto nos meios de comunicação quanto tecnológicos. A diversidade é tanta que a seleção torna-se um desafio contemporâneo.

7

HALL, Stuart – A Identidade Cultural na Pós-Modernidade – Rio de Janeiro, 7ª Edição, Editora DP&A, 2003. p. 12


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Um dos paradoxos do Lote 64 comparece neste momento que proponho esta discuss찾o sobre a crise de identidade sujeito contempor창neo, utilizando meios obsoletos e ultrapassados tecnologicamente.


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3.2 HISTÓRIA DA ARTE

O Lote 64 também carrega características abordadas em algumas correntes artísticas passadas, como o Dadaísmo, Pop Art e movimentos contraculturais, como a Mail-art (Arte-Postal) e o Punk.

O Dada, com sua revolta, marginalidade e espírito anti-artístico, se utilizava da colagem como um dos principais meios de expressão. Artistas como Max Ernst, Raoul Hausmann e Kurt Schwitters são de extrema importância no que diz respeito ao desenvolvimento desta linguagem no campo das artes visuais. Além disso, conceitualmente o Dada procurava quebrar todos os sentidos intrínsecos à história da arte até o momento e se utilizou de experimentos aleatórios na poesia e nas artes plásticas. As pinturas e colagens do Lote 64 fazem referência à anti-estética de alguns trabalhos dadaístas, tanto na diversidade de tipografias utilizadas num mesmo plano, quanto no aspecto “nonsense” das obras.

A Arte Pop tornou-se um movimento artístico que zombou do mau gosto e do nível dos veículos da comunicação de massas. A introdução de temas ordinários na arte transforma-se num “antigesto”, como uma provocação contra a “elevada” cultura das belas artes, mais do que como uma crítica à “baixa” cultura de Hollywood e de supermercado 8. Mesmo assim, a intenção dos artistas pop foi assimilada pelas instituições e absorvida pelo mercado. Independente disso, esta forma de apropriação de imagens abriu portas para diversos artistas que vieram na seqüência.

A Arte Pop e o Dadaísmo estão intimamente ligados, tanto que alguns autores chamam o primeiro movimento como Neodada, pois o mesmo retoma diversos aspectos da linguagem dadaísta. Andy Warhol, Richard Hamilton e Robert Rauschenberg são alguns dos artistas da pop mais conhecidos pela apropriação de imagens em obras de arte. Como pintura, pode-se dizer que a “combine-painting” de 8

BATTCOCK, Gregory. A nova Arte (1973) – Editora Perspectiva, São Paulo 1975. P. 48


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Rauschenberg já era experimentada anteriormente por Juan Miró, André Masson e , de certo modo também por Paul Klee, tendo desenvolvimentos diversos com Jean Debuffet, Antonio Tapiés, Alberto Burri, James Rosenquist, Richard Hamilton, etc. Rauschenberg e Warhol começaram a trabalhar com serigrafia no mesmo ano. Entre 1962 e 1964 Rauschenberg trabalhou com aproximadamente 100 imagens reutilizáveis em silk-screen, entre elas estavam pinturas de Rubens e Velásquez, cadeiras, diagramas, paisagens urbanas, fotografias de astronautas e do Presidente John Fitzgerald Kennedy. Os experimentos de transferência imagética utilizados por Robert Rauschenberg e as pinturas do alemão Sigmar Polke são algumas das minhas maiores influências visuais para a realização destes trabalhos. Além da experimentação técnica, busco a resignificação dos refugos gráficos produzidos e descartados diariamente pelos centros urbanos.

Fig.15: Retroactive II – Robert Rauschenberg 1963. Óleo, serigrafia sobre tela. 203 x 152,5 cm. Coleção Museu de Arte Contemporânea de Chicago


31

O artista alemão Sigmar Polke também é uma referência importante na minha pesquisa. “A obra de Polke enfraquece a idéia de coerência artística. Ele mistura múltiplos estilos e modos de representação em cada obra para criar uma espécie de estática visual, na qual os significados potenciais invalidam um ao outro. As conexões conceituais entre imagens parcialmente visíveis na obra de Polke também são obscuras. Extraídas de fontes produzidas em massa, como anúncios, fotos, ilustrações de livros infantis e gravuras do século XIX, elas se chocam de uma maneira que estimulam e enfraquecem, ao mesmo tempo, os esforços do observador para criar associações significativas.” 9

Fig. 16 - Der Ziegenwagen (O vagão de cabra) – Sigmar Polke 1992. Polímero Sintético em tecido estampado, 218.4 x 299.7 cm. Coleção de Werner e Elaine Dannheisser

Utilizar máquinas copiadoras no processo artístico foi uma alternativa escolhida por artistas das décadas de 70 e 80 como crítica ao mercado de arte da época. Diversos grupos pelo mundo utilizaram a máquina copiadora como instrumento artístico, brasileiros como Paulo Bruscky, Hudnilson Junior e Eduardo Kac são alguns dos representantes desse “movimento”. As fotocópias circulavam entre os próprios artistas, sem valor comercial, na base da troca de cartas enviadas pelo correio, daí a 9

HEARTNEY, Eleanor: Pós-Modernismo, São Paulo: Cosac&Naify, 2002. P. 29


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arte-correio (mail-art). Esta utilização da Low-Tech indicava uma celebração da reprodução mecânica e da democratização técnica para a produção e distribuição dos trabalhos. 10

Fig. 17 - Paulo Bruscky, Cédula de identidade, c.1978, Cópia colorida, 28 x 21.5 cm

A “copy art”, desenvolveu-se inicialmente nos EUA pelo grupo FLUXUS e outras vanguardas que visavam o questionamento da aura do objeto artístico e do próprio artista. A fotocópia se torna uma alternativa para uma discussão sobre reprodutibilidade, apropriação de imagens e desvio ideográfico. A partir das interferências

visuais

geradas

pelas

máquinas

fotocopiadoras

é

possível

experimentar diferentes efeitos: texturas, planos, ruído, contraste, falhas e etc.

10

FRANCIS, Mark / FOSTER, Hal – Themes and Movements: Pop – EUA, Phaidon, 2005. P. 132


33

Quando se fala de “copy art”, refere-se especialmente à utilização da fotocópia em preto e branco.

A partir desta apropriação de imagens que artistas passam a manipular diversos instrumentos

de

reprodução

em

série,

como:

máquinas

fotocopiadoras,

equipamentos de serigrafia, transfers e impressoras que anteriormente estavam predestinadas apenas à publicidade ou meios comerciais.

De certa forma, as obras do Lote 64 dialogam com estes trabalhos, porém não de forma contestadora ao mercado de arte e sim para discutir o paradoxo da difusão do conhecimento e dos direitos autorais. Depois de algumas décadas as fotocópias destes artistas passaram a ter certo valor comercial, inclusive qualquer registro do Grupo Fluxus é peça de valiosa importância para os museus e galerias de arte, o que me impediria de tentar ser revolucionário utilizando esta mesma estratégia.

Percebo que um dos pontos que diferencia meu trabalho dos demais é o fato de me utilizar de um instrumento destinado para a reprodução em série para criar obras únicas. É justamente o contrário do que se propõe “copy art”.

As composições das obras do Lote 64 também se assemelham visualmente com poemas experimentais letristas 11, dadaístas, situacionistas e beatniks. Um exemplo próximo a linguagem que utilizo é o processo denominado “Cut-up”, do escritor William S. Burroughs: “Um colaborador de Burroughs, Brion Gysin, acidentalmente descobriu a técnica de Cut-Up, uma releitura do dadaísmo. Ele recortou alguns jornais para fazer um suporte para desenhar e descobriu que, ao juntar páginas diferentes, eles faziam sentido, criando frases surreais. A técnica ajudou no ataque de Burroughs às histórias e aos processos mentais lineares”.

11

12

Poemas realizados com letras recortadas do período dos anos ’10 em particular as impressões ligadas ao “dada” e ao “futurismo”. 12

PEKAR, Harvey – Os Beats: graphic novel. P. 89. São Paulo, Editora Saraiva, 2010.


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PorÊm, diferentemente de Burroughs, não busco sentido ao aglutinar textos e imagens distintas, por mais que elas possam fazer sentido, muitas vezes busco o esvaziamento semântico por meio do excesso.


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4 APROPRIAÇÃO DE IMAGENS E RECOMBINAÇÃO

O termo apropriação designa o ato ou efeito de tomar para si, apoderar-se integralmente ou de partes de uma obra, para construir outra. É fazer com que uma obra, anterior, seja citada dentro de uma nova. Se seguirmos esse raciocínio, a apropriação já existe na arte há séculos, embora o uso do termo seja recente, e foi praticada por artistas tão diversos quanto Poussin, Manet ou Picasso. Mas não se trata apenas de uma apropriação das imagens geradas por registros impressos, as obras do Lote 64 partem da noção de recombinação ou “détournement” 13, termo utilizado com frequência por Guy Debord e outros situacionistas franceses. “Détournement”, derivado do Francês, foi originado pela Internacional Situacionista, é similar a paródia. O artista reutiliza elementos de mídias bem conhecidas para criar um novo trabalho com uma mensagem diferente, frequentemente o oposto do original. Fragmentando a interpretação de símbolos visuais comuns à cultura de massa atual e desviando-os em direção a um novo sentido. “Pode-se usar qualquer elemento, não importa donde eles são tirados, para fazer novas combinações. As descobertas de poesia moderna relativas à estrutura analógica das imagens demonstram que quando são reunidos dois objetos, não importa quão distantes possam estar de seus contextos originais, sempre é formada uma relação. Restringir-se a um arranjo pessoal de palavras é mera convenção. A interferência mútua de dois mundos de 134 sensações, ou a reunião de duas expressões independentes, substitui os elementos originais e produz uma organização sintética de maior eficácia. Pode-se usar qualquer coisa.”14

A produção do conjunto de obras integrantes ao Lote 64 é um desvio ideográfico por si só, pois transporta linguagens e elementos de origens diversas para um suporte e um plano único. O visual preto e branco assemelha-se com a linguagem dos fanzines (publicações independentes de pequena tiragem sobre assuntos variados que circulam nas mãos de pessoas envolvidas com idéias contraculturais).

13

A palavra francesa détournement significa desvio, diversão, reencaminhamento, distorção, abuso, malversação, seqüestro, ou virar ao contrário do curso ou propósito normal. Às vezes é traduzida como “diversão”, mas esta palavra gera confusão por causa de seu significado mais comum como entretenimento inativo. 14

DEBORD, Guy – “UM GUIA PARA USUÁRIOS DO DETURNAMENT” - Artigo publicado no jornal surrealista belga Les Lèvres Nues #8 (maio de 1956)


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Uma das formas mais comuns de apropriação de imagens se dá através da recombinação de meios distintos, daí surge o termo “Collage”, que foi inicialmente empregado por Max Ernst em 1918 para indicar um processo de linguagem que se utiliza de imagens já existentes, em geral impressas.

A instauração do surreal

marcou a entrada da collage nas artes plásticas. As collages realizam o acoplamento de duas realidades de aparências não acopláveis, num plano que aparentemente não lhes convém. Como exemplo, podemos citar a combinação de uma bicicleta com uma geladeira. Porém o termo Collage no qual relaciono as obras do Lote 64 não tem a ver somente com os “papiers-collés” do cubismo. Na collage está explícita uma operação de “re-codage”, ou seja, há uma resignificação do conteúdo apropriado, enquanto na colagem cubista o que está explícito é a aglomeração de material.

Assim como Max Ernst, em certo momento da minha vida senti vontade de alterar a ordem dos materiais que eu acumulei ao meu redor, em especial livros e revistas. Porém esta alteração se daria de outra maneira: através de uma espécie de filtro que transformaria todo este conteúdo em preto e branco, no caso, a fotocópia. Isso se deve ao fato da minha relação anterior com os fanzines.


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6 A EXPOSIÇÃO

Fig. 18 – Visitação da Exposição Lote 64

Anteriormente à exposição, participei do projeto de residência artística do ateliê de pintura da Galeria Homero Massena, Vitória-ES, onde pude produzir grande parte das obras que foram expostas. O projeto de residência consistia num grupo de artistas: Raphael Araújo, Vinícius Guimarães e eu, orientados pelo professor Julio Tigre. Intitulamos este grupo de produção como Coletivo Embira. Nós quatro estávamos em vivência diária voltados exclusivamente para nossas pesquisas nas artes visuais. “O ateliê define-se com um lugar ideal para a criação, e arrisco-me a afirmar que acaba por se transformar num sítio específico onde se desenrolam os processos. Sítio específico, numa definição de que o local, depois de imantado pela presença do artista que o reorganiza conforme seus interesses, propicia a interação entre o agora-lugar constituído e a criação por vir.”

15

15

TIGRE, Julio. 1º Relatório da Bolsa Ateliê de Pintura da GHM, 2009.


38

O mês de janeiro de 2010 foi todo voltado para a montagem da Exposição Lote 64, que teve sua abertura no dia 28 do mesmo mês. Dividi meu tempo na finalização do projeto

gráfico,

aquisição

de

materiais,

preparação

dos

suportes,

limpeza/restauração das obras e montagem da exposição. Durante todo o processo de montagem contei com o auxílio dos outros membros do coletivo. Surgiram diversas dúvidas ao longo desta atividade, pois ao levar os trabalhos finalizados para a galeria, deparei-me com o desafio de dispor estas obras no espaço vazio. A curadoria também ficou por conta do Coletivo Embira, que ajudou a solucionar as principais questões no que diz respeito à disposição e organização dos trabalhos na galeria. No final, além das obras, acrescentamos ao projeto um aparelho toca-discos e duas caixas de som, localizados próximos à máquina fotocopiadora, os quais foram utilizados para a construção do grande painel ao fundo da galeria. Este painel consistiu em um trabalho em processo, pois foi alterado durante a exposição. No dia da abertura também pude expor minhas idéias num bate-papo dentro da Galeria Homero Massena, onde falei sobre o processo de criação das obras e outros assuntos que influenciaram a exposição. Estive muito envolvido com a exposição a fim de colher todos os frutos possíveis, mas após isso volto a olhar para minha produção e procuro novos caminhos. A pergunta do momento é: “O que fazer depois disso?”. Tentei solucionar esta questão utilizando

meios

diferentes

de

criação/reprodução

de

imagens

(além

de

interferências manuais de desenho e pintura), não só a máquina fotocopiadora, porém o preto e branco ainda predomina. Desmontamos a exposição entre os dias 8 e 10 de março de 2010. A partir daí voltei a pensar numa exposição coletiva do ateliê, prevista para o mês de maio, que seria a mostra dos resultados do período de residência do Coletivo Embira. Mesmo após o encerramento da exposição acreditei que as questões referentes à pesquisa Lote 64 não se esgotaram, por isso continuei buscando novas possibilidades para a criação dos trabalhos.


39

Fig; 19 - “Boxe”, 136,5 x 90,5 cm, Collage e pintura sobre MDF. Alex Vieira 2009. Acervo do Artista


40

Fig. 20 - “Bulldog”, 136,5 x 90,5 cm, Collage e pintura sobre MDF. Alex Vieira 2009. Coleção de Henrique Guimarães


41

Fig. 21 - “Botox”, 136,5 x 90,5 cm, Collage e pintura sobre MDF. Alex Vieira 2009. Acervo do Artista


42

Fig. 22 - “Susto”, 136,5 x 90,5 cm, Collage e pintura sobre MDF. Alex Vieira 2009. Acervo do Artista


43

Figura 23 - “Pijama”, 136,5 x 90,5 cm, Collage e pintura sobre MDF. Alex Vieira 2009. Acervo do Artista


44

Fig. 24 - “Empresário Nóia”, 136,5 x 90,5 cm, Collage e pintura sobre MDF. Alex Vieira 2009. Acervo GHM.


45

Fig. 25 – Visitação da Exposição Embira

Fig. 26 – Sem título, 60 x 70 cm, técnica mista. Alex Vieira 2010


46

Fig. 27 – Sem título, 60 x 70 cm, técnica mista. Alex Vieira 2010

Fig. 28 – Sem título, 60 x 70 cm, técnica mista. Alex Vieira 2010


47

Fig. 29 – Sem título, 60 x 70 cm, técnica mista. Alex Vieira 2010

Fig.30 – Sem título, 60 x 70 cm, técnica mista. Alex Vieira 2010


48

7 CONSIDERAÇÔES FINAIS

É importante salientar que estou lidando com um trabalho em andamento. Neste texto procurei teorizar algumas questões que foram identificadas no processo de criação, porém esta pesquisa está sujeita a mutações futuras e é importante que elas aconteçam. O exercício de escrever sobre um trabalho essencialmente visual suscitou questões que me fizeram guiar a pesquisa para outros campos que não somente a pintura. A imersão no ateliê de pintura da Galeria Homero Massena e minha vivência universitária também são alguns fatores responsáveis por estes desvios. Nestes momentos as máquinas do Lote 64 estão espalhadas e não pertencem mais a um conjunto, mas mesmo assim existem resquícios dessa produção que ainda sobrevivem. Após a exposição comecei a produzir uma série de seis trabalhos que já manifestam elementos plásticos presentes no último trabalho realizado para a exposição na Galeria Homero Massena. Comecei a colar elementos de sinalização (comercial ou não) muito comuns nos centros urbanos, como letras de metal que compõem letreiros de edifícios e placas indicando a presença de animais ferozes em residências. Acredito que estes itens também fazem parte de um imaginário coletivo e ao serem retirados de seus contextos passam a transmitir novos conceitos.


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9 REFERÊNCIAS 1 - LIMA, Sérgio Claudio de Franceschi - Collage: textos sobre a re-utilização dos resíduos (impressos) do registro fotográfico em nova superfície. São Paulo: Massao Ohno, 1984.

2 - BATTCOCK, Gregory. A nova Arte (1973) – São Paulo: Editora Perspectiva, 1975.

3 - BORGES, Jorge Luis. Ficções. 2ª Edição. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.

4 - DANTO, Arthur – A transfiguração do lugar comum: uma filosofia da arte. São Paulo: Cosac Naify, 2005.

5 - DARNTON, Robert – O Iluminismo como negócio: história da publicação da “Enciclopédia” – São Paulo: Companhia das Letras, 1996

6 - ENGELMAN, S & PERRONE, C. O Colecionador de Memórias. Revista Episteme. Grupo Interdisciplinar de Historia e Filosofia da Ciência/ILEA/UFRGS , número especial, Rio Grande do Sul: agosto, 2005

7 - FREIRE, Cristina – Paulo Bruscky: arte, arquivo e utopia / Cristina Freire. 1ª Edição. São Paulo: Companhia Editora de Pernambuco, 12. 2006

8 – FRANCIS, Mark – Themes and Movements: Pop – EUA, Phaidon, 2005

9 – HALL, Stuart – A Identidade Cultural na Pós-Modernidade – 7ª Edição. Rio de Janeiro: Editora DP&A, 2003.


50

10 – HEARTNEY, Eleanor. Pós-Modernismo. 1ª Edição. São Paulo: Cosac&Naify, 2002. 11 – HOME, Stewart – Assalto à Cultura: utopia subversão guerrilha na (anti) arte do século XX. 2ª Edição. São Paulo: Conrad Editora do Brasil, 2004.

12 – KAC, Eduardo. Luz e Letra: ensaios de arte, literatura e comunicação, Rio de janeiro: Contra Capa Livraria, 2004.

14 – PEAKAR, Harvey – Os Beats: graphic novel. 2ª Edição. São Paulo: Saraiva, 2010.

15 – ROSENBERG, Harold – Objeto Ancioso. São Paulo: Cosac & Naify, 2004.


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