Pulp feek #1- Dezembro 2017

Page 1

11

. PULP FEEK Contos nesta edição: - Boru, de Rafael Peregrino - Código-Homem, de Alan Porto Vieira

CIMITARRAS E NOITES DE LUA

Muito além das Mil e Uma Noites, as narrativas arábicas continuam a influenciar a fantasia até os dias de hoje.

- Madame Vargas e o emblema amarelo, de Camila Loricchio - A Lâmina Lunar, de Lucio Trajano


Que comece A viagem de Chihiro Coluna Literalmente Falando Bloqueio Criativo Crítica: Trilogia dos Espinhos Indicações de livros independentes Narrativas Árabes Boru

Código-Homem Madame Vargas e o Emblema Amarelo A Lâmina Lunar

Você tem em mãos a primeira Pulp Feek a ser lançada desde janeiro de 2014. Talvez nem saiba dessa história anterior da revista. Talvez não saiba que essa revista que você tem em mãos é um conceito que demorou anos a tomar forma. Talvez saiba. O que importa, de verdade, é que você pode mergulhar de cabeça em contos e artigos sobre literatura. Pode aproveitar nossas indicações de autores auto-publicados. Pode rir e se divertir com os personagens que desfilam nessas páginas. A Pulp Feek começa agora, mas continua em sua jornada. Convidamos você a seguir conosco nesse caminho de imaginação e experimentação. Rafael Guimarães Editor-Chefe

expediente Co-fundadores: João Lemes, Lucas Rueles da Cunha, Rafael Marx Editor-chefe: Rafael Marx Diagramação e arte: Rafael Marx Editorial: Rafael Marx Redação: Isabela Landim, Bruna Tastelli, Nathalia Cunha, Débora Brito, Egberto Nunes Colunistas e conselheiros editoriais: Pedro Fuscaldo, Alan Porto Vieira, Alaor Rocha, André Caniato, Rafael de Oliveria e Thaigo Sgobero Orietnador do TCC: Francisco Rolfsen Belda


Uma viagem espiritual por Bruna Tastelli Como uma singela obra de animação japonesa se deixou influenciar pela história do Japão e se tornou um ícone espiritual mundial.

R

econhecido por ser o primeiro longa-metragem de animação a ganhar o Urso de Ouro no Festival de Berlin em 2002 e posteriormente levar o Oscar de Melhor Animação, A Viagem de Chihiro é um filme japonês repleto de simbolismos, magia, espiritualidade e muitas críticas sociais (explícitas para os atentos). Deve ser um item obrigatório na lista de quem ainda não assistiu, pois é ideal para todas as idades, mas, algumas cenas podem ser um tanto impactantes para as crianças. Escrito e dirigido por Hayao Miyazaki, e produzido em 2001 por seu próprio estúdio, o renomado Studio Ghibli, o filme prende a atenção do expectador do início ao fim ao retratar as aventuras de Chihiro, uma garota de 10 anos, que prestes a mudar de cidade com os pais, acidentalmente, adentra em um universo paralelo regido por deuses, espíritos e criaturas curiosas, no qual humanos não são bem-vindos. De início, esse mundo desconhecido não é perceptível, tem aparência de um parque temático abandonado no qual os pais de Chihiro ficam fascinados, não dão ouvidos a ela, e sem saberem, acabam comendo freneticamente as refeições dos fantasmas que ali habitam, em consequência dis-

so se tornam porcos imensos. A menina assustada com a cena recebe ajuda de Haku, um espírito com forma humana, que mostra uma casa de banhos termais onde ela terá que trabalhar para poder tirar os pais daquela situação. A partir de uma análise semiótica desse primeiro momento, os pais da menina se transformam em porcos por conta de seus fardos espirituais e/ou pecados, como ganância, avareza e luxúria. Por outro lado, a cena também pode ser referência aos acontecimentos da década de 80 no Japão, onde o país vivia em uma “bolha econômica” e as pessoas se comportavam como porcos gananciosos. O desenrolar da trama se passa na casa de banho, onde Chihiro tem que seguir ordens da feiticeira Yubaba que comanda o local, e pega o nome dos funcionários para si, para que eles não se recordem de quem são e não possam ir embora. Yubaba é uma antagonista discreta, ela tem um filho mimado e o mantém preso em um quarto, entretido com brinquedos para que ele não se contamine com o mal do mundo afora. Isso é visto como crítica aos pais superprotetores, que na verdade não estão presentes na vida


dos filhos. Chihiro então passa a se chamar Sen, e vive seus afazeres sob a tutela de Lin, que se torna uma espécie de irmã mais velha para ela. Aos poucos ela desperta o lado humano dos seres com quem convive e constrói fortes laços com os personagens. A aparição do personagem chamado Sem Rosto, um espírito que reflete a personalidade daqueles que o cerca e que devora quem está imerso na ganância, causa um caos na casa de banhos, pois o local é luxuoso e o pecado capital está presente inclusive em seus funcionários. O espírito então devora alguns gananciosos, e tenta dar ouro a Chihiro para que ela permaneça com ele, já que todos ali fazem tudo por ouro, mas a menina não aceita e o faz vomitar tudo que lhe faz mal, assim, Sem Rosto volta a ser tímido e inofensivo quando está ao seu lado. De volta à análise, há uma teoria a cerca da história do filme. Em meados de 1600 no Japão, as casas de banhos termais eram predominantes nas cidades, no entanto, sua função social não era apenas promover banhos revigorantes aos clientes, mas sim, servir também como bordel. Curiosamente, a

pessoa responsável por gerir esses bordéis internos era chamada de Yubaba!!! E infelizmente, naquela época, a prostituição infantil era comum. Logo, presume-se que A Viagem de Chihiro é na verdade uma representação desse passado obscuro do país. Além das críticas acerca da sociedade, o filme também mostra a questão da poluição ambiental, quando o personagem Deus do Rio aparece na casa de banho soterrado por lixo e precisa urgentemente se livrar daquilo. O tema ecologia sempre é abordado nos filmes de Hayao Miyazaki, o que reforça a importância da preservação do meio ambiente. A Viagem de Chihiro, acima de tudo, é um filme sobre o ser humano, seus conflitos internos, amadurecimento, comportamento e o modo de viver em sociedade. Fazendo críticas a tudo isso a partir da inocência de uma menina de 10 anos, que ao vivenciar diversas situações inusitadas, consegue se sobressair e superar tais dificuldades, mantendo viva a esperança para atingir seus objetivos.


A Verdade Ficcional Coluna Literalmente Falando

por Pedro Fuscaldo

C

riar é complicado. Nenhum processo de criação é realizado de forma tranquila e passiva, sempre é um árduo trabalho de lapidação e elaboração que nem sempre resulta naquilo que uma vez foi imaginado. Como Augusto dos anjos diz no poema “A Ideia,” ela vem de não se sabe de onde, mas, quando é proferida, colocada em prática, já perdeu todo o brilho e intensidade que um dia teve. Criar mundos inteiros, então, é uma mistura de pesadelo e sonho: enquanto você tem, em teoria, toda a liberdade do mundo para poder colocar no papel o que quiser, você é também oprimido por essa folha em branco que te encara e devolve pra você todas as inseguranças projetadas das possibilidades que ainda não se concretizaram. Entretanto, você ainda se propõe a fazer. Vai, escreve, lapida, coloca, detalha, cria, lapida de novo, escreve mais um pouco, um, dois, três livros, seu universo fantástico tomou forma, fôlego, força. Aparentemente. Digo “aparentemente” porque uma das coisas mais complicadas de se acertar quando há a criação de um universo é a assombrosa verossimilhança interna e, infelizmente, você só percebe que há problemas nela quando é tarde demais. Quando trabalhamos com narrativas (seja de cinema, literatura, rádio, jogos), temos dois tipos de verossimilhanças: a externa e a interna. A verossimilhança externa é o quanto o mundo criado, a narrativa estabelecida, é parecido com a realidade em que vivemos. Isso, geralmente, serve de parâmetro (apesar de não ser o único, claro) pra identificar o nível de fantástico

da obra: se é muito fantástico, se é pouco fantástico e assim por diante. Independente do quão criativo você queira ou tenta ser, boa parte da sua criação será semelhante àquilo que você experimenta no mundo real: humanos, idioma, seres bípedes, poderes, sistemas religiosos... tudo isso é relacionado, de alguma forma, com aquilo que você já conhece. Então, no caso, a verossimilhança externa serve mais como referência do que como tecido pra narrativa. A coisa começa a ficar complicada quando começamos a falar de verossimilhança interna porque é ela que dá liga ao seu mundo, ela que faz o seu mundo fazer sentido e isso, geralmente, é o que pega o escritor de fantasia. Ao contrário dos deuses, nós não temos a sabedoria tão aguçada para não deixar escapar determinadas falhas. Entendam o problema e a concorrência desleal com o mundo real: aqui nós temos todas as leis da física, química e acontecimentos concomitantes uns aos outros que dão marcha independente daquilo que estivermos fazendo. Nós não temos que ter controle disso, nem temos como. Porém, no mundo de fantasia, além de cuidarmos dessas partes, ainda temos que dar um jeito de inventar um número infindável de leis próprias do nosso universo e, invariavelmente, falharemos em algum momento. Harry Potter nunca conseguiu estabelecer direito quais são as regras das suas magias, o que faz um mago ser melhor que o outro e coisas do tipo; Tolkien usa e abusa de Deux Ex Machina (como o célebre salvamento das águias) para garantir que a história prossiga do jeito que ele gostaria; a língua inglesa sendo de

comum uso entre seres intergalácticos em praticamente qualquer obra de ficção científica; exemplos não faltam em que você a sua suspensão de descrença (fundamental para o aproveitamento da obra) é ferida e comece os questionamentos sobre todos os problemas narrativos que aquele mundo tem. É possível evitar esse tipo de coisa? Dificilmente. Quando nos colocamos a escrever, sabemos que haverá um possível leitor para esse texto e é nele que mora a suspensão de descrença. As coincidências (ou Deus Ex Machina, que é o principal problema de verossimilhança interna) que fazem a história avançar não são incomuns ao nosso mundo real, mas costumamos prestar muito mais atenção nelas quando se trata de um universo ficcional. No mundo real, no nosso cotidiano, as coincidências não são abundantes, então, quando acontecem, fazem com que aquele momento seja mágico e digno de ser contado adiante. Porém, ao contarmos uma história de aventura ou fantasia, não temos tempo para o trivial, para o cotidiano. Temos que ir logo para os grandes acontecimentos e as coincidências e, por isso, a nossa suspensão de descrença é afetada. Mesmo em mundos cuidadosamente bem trabalhados, o nosso poder mortal de não conseguir considerar todas as possibilidades de um universo fere a nossa capacidade de nos assemelharmos a um deus e, eventualmente, ter total controle sobre esse universo. Na realidade, esse universo que nos controla e nós acabamos sendo apenas uma ferramenta de sua execução.


A Doença da Meia Noite por Isabela Landim

“A corrida implacável contra o tempo, o som da perseguição, da aproximação das forças do mal, o sussurro da floresta estalando, o ricochetear do vento¬¬¬. ¬Pânico! O cheiro do medo se espalhando. Uma centena de passos se aproximam, o som do metal em riste, as armas... Já é tarde demais...” e de repente nada. As palavras somem, o escritor perde o seu rumo, trava. A narrativa, antes fluída, torna-se maçante, difícil, excruciante “... Já é tarde demais...”. Você, caro escritor, acaba de ser vítima de um bloqueio criativo. Batizado carinhosamente por Edgar Allan Poe de “A Doença da Meia Noite”, o termo writter’s block, em português “bloqueio criativo”, foi utilizado pela primeira vez na década de 1940 pelo psiquiatra Edmund Bergler. O intuito era diagnosticar seus pacientes escritores cuja habilidade de criar pareciam comprometidas por questões psicológicas pessoais. No entanto, a teoria de Bergler sobre o assunto acabou por se mostrar apenas parcialmente correta. Sim, bloqueio criativo realmente é causado por questões psicológicas pessoais não resolvidas, mas não se limita a isso. “Eu entendo que bloqueio criativo como aquele momento que você está com a faca e o queijo na mão para escrever a história e, por algum motivo, ela não sai” diz Rafael de Oliveira, que escreve sob o pseudônimo de Rafael Peregrino, e acaba de lançar o livro O Jogo na Caixa de Sapato. Completa que sofria de bloqueio criativo “sempre quando eu insistia em “forçar” uma coisa que não encaixava na história”. Outras causas para o bloqueio criativo podem partir principalmente, do medo, seja ele de não ser capaz de atingir as altas expectativas criadas por si mesmo, seja de ser rejeitado, ou ainda não ter tempo o suficiente para escrever. Não saber por onde começar, até mesmo ter medo de começar ou retomar a narração podem ser diagnosticadas como causa, assim como perfeccionismo e autocrítica excessiva. Existem também casos de autoinferiorização por comparar a qualidade de novos projetos com trabalhos antigos ou de outros escritores. Para Oliveira, o cansaço influencia muito em casos de bloqueio, pois “A história quer sair, mas a cabeça tá embotada demais pra colocar ela pra fora do jeito certo”. Se as causas são muitas, e além das citadas, podendo variar de escritor para escritor, as soluções são ainda mais numerosas e, principalmente, criativas. Segundo estu-


dos, realizados pela Yale University, uma das melhores maneiras de superar bloqueios criativos é exatamente exercitando sua criatividade em outras atividades. Desenhar, pintar, fotografar, editar fotografias, fazer colagens e escrever poesias podem ser muito úteis. Assim como compor letras de músicas, montar lego, fazer escultura de massinha de modelar, e ainda começar outros projetos paralelos, escrevendo sobre outros assuntos. As possibilidades são infinitas. Mudar o ambiente também pode ajudar na hora de se inspirar, desde mudar o cômodo da casa até procurar outros locais como cafés ou parques. Viajar também é uma opção, assim como conhecer novas pessoas e perspectivas. Ler livros ou assistir filmes que te motivam a atingir os objetivos desejados podem ser grandes aliados. Assim como sair da zona de conforto, ingressando em novas atividades como esportes e culinária. Nesse sentido, qualquer coisa que vá agregar na formação de caráter pessoal do escritor é válida. Mesmo assim, se o tal bloqueio persistir, um método interessante — e que pode se tornar uma fonte de ideias para projetos futuros ¬— é manter um diário dos sonhos, que ninguém vai ler ou criticar. Procrastinar, criar desculpas, ou simplesmente não escrever enquanto não estiver inspirado novamente nunca vão ser maneiras para se “curar” da doença da meia noite. Mas escrever uma vírgula de cada vez, uma frase, um ponto de exclamação, com um pouquinho de insistência, e talvez um plot twist — uma reviravolta na trama para animar as coisas — podem ser maneiras poderosas de fazer o texto fluir novamente. Se existe um bloqueio criativo a ser superado, existe a criatividade dentro do escritor para superá-lo.

Como escapar do bloqueio em cinco passos

1

Vá dar uma volta, espaireça. A preocupação excessiva irá apenas atrapalhar.

Aproveita a pausa na produtividade e revisite as obras que inspiraram o seu projeto atual.

3

Ocupe sua mente com coisas mais simples da sua história. Faça uma lista de gostos dos persogens, por exemplo

Se nada mais estiver dando certo, troque o ambiente da escrit. Sempre escolha um local tranquilo para escrever.

5

2

4

Lembre-se: o bloqueio é um problema psicológico muitas vezes relacionado ao medo de não ser bom. Acredite em si mesmo.


O Príncipe Maldito alida u Q

Caso você não conheça ainda Jorg e seus feitos, pode se interessar em comprar um volume solto. Se já leu a primeira parte da história e gostaria de continuar, deveria cogitar comprar a edição de luxo. Vale a pena.

R

Pe

3/5

E por isso, a Edição de Colecionador lançada pela Darkside nesse ano é tão importante. Compilando os três livros em uma capa dura, com um belíssimo acabamento, o livro impressiona desde o primeiro momento. Trata-se de uma experiência sensorial absurda, completa com tato e olfato, que já é a marca registrada da editora.

â v nc e l e

ia

s en

n ag o s r

Claro que isso não durou. Após duas tentativas de retormar a história, eu cheguei a um ponto inspirador. Uma revelação: o mundo de Jorg Ancrath não era tão clichê quanto eu imaginara. Mais do que isso: era algo completamente inovador e incrível. Eu estava

A história, uma fantasia tão sombria e cruel que nos faz torcer pelo seu protagonista assassino e traidor, vai muito mais longe do que se espera. A sua real profundidade só é sentida quando se lê os três livros da saga.

5/5

ão

Seu ritmo era completamente estranho, com os capítulos saltando dias e meses sem aviso, intermináveis flashbacks que eu não podia suportar e um cenário que não parecia original. Para piorar tudo, o único personagem disponível e ao qual eu precisava aturar era um moleque mimado em busca de uma vingança que não me afetava.

4/5

ganho. Foi uma questão de tempo para que eu comprasse os e-books das edições seguintes.

d a e i d

p r es s

4/5

Q

uando eu primeiro li Prince of Thorns, livro introdutório do cenário fantástico de Mark Lawrence, minha primeira reação foi asco. Não um desgosto simples ou um ódio ponderado. Eu odiei o livro, pois tudo nele parecia inadequado e ultrapassado para um romance de fantasia publicado no Terceiro Milênio.

nário e C

m

ma a r T

5/5


Mundos independentes

A Última Dama do Fogo Marcelo Paschoalin

A

Pulp Feek acredita que o futuro da literatura brasileira está em dar espaço a escritores que ainda não estão estabelecidos no cenário nacional. Dessa forma, todos os meses traremos uma lista de indicações de obras publicadas independentemente em diversas plataformas e que estão disponíveis para compra. Ao comprar de um escritor independente, você está ajudando alguém a realizar seus sonhos. Clique nas capas para acessar a Amazon e comprar os livros.

Noites Negras de Natal e outras histórias Karen Alvares e Melissa de Sá

Conforme chega o final do ano, não dá pra pensar em muita coisa além do Natal. Esse livro faz o inexperado e associa as festas natalinas com Horror. Prepare-se para passar as Festas aterrorizado. Ho ho ho!

A obra independente de fantasia mais comprada do momento é a grande obra até o momento de Marcelo Paschoalin, um escritor que já experimenta com auto-publicação a alguns anos. Em uma obra pautada pela busca da indentidade própria, a protagonista amnésica parte à procura de suas memórias perdidas, mas não imagina o quão perigosa a jornada pode ser graças aos próprios poderes.

Luzes do Amanhã e outros contos Sandro G . Moura

Luzes do Amanhã e outros contos é a coltetânea de textos de Sandro G. Moura. Fluindo de um universo cyberpunk onde clones são explorados das mais horripilantes formas; um universo steampunk onde as maquinas que deveriam servir a humanidade se rebelam; além de um conto de alta fantasia.


Sob o céu do deserto por Rafael Guimarães

A

história de Sheherazad é bem conhecida no ocidente. A moça, escolhida para ser a nova esposa do Xá da Pérsia, tinha a certeza da morte: seu marido, após descobrir uma traição da primeira esposa, se casava regularmente e matava as esposas após a noite de núpcias, evitando nova traição. Sheherazad, entretanto, tinha um plano. Ao contar uma história para o Xá sem termina-la, ela deixou-o curioso sobre a continuidade. A moça prosseguiu com as histórias por mil noites e mais uma, por fim ficando sem narrativas para contar e aceitando sua morte. Com o tempo, entretanto, o marido havia aprendido a amar Sheherazad, que continuou sendo a rainha a seu lado. A história das Mil e Uma Noites é uma história com suas próprias histórias por dentro. É dessa sequência de narrativas que os ocidentais conheceram Aladim, Alibabá e seus quarenta ladrões e o marujo Simbá. Os contos de gênios e tapetes voadores, hoje, estão desde desenhos da Disney até na mistura que é o livro Deuses Americanos, de Neil Gaiman. Mas as histórias e temáticas árabes vão além desse conjunto de contos, influenciando com seus temas livros de fantasia ocidental e diversas histórias de grandes autores. A Disney e Neil Gaiman Entre as dezenas de animações de inspiração arábica, não há dúvidas que a mais relevante é Aladim. O filme da Disney, uma obra prima que atingiu um enorme sucesso comercial, é uma obra que apresenta um respeito à cultura árabe. A pe-

As narrativas árabes vão muito além d’As Mil e Uma Noites. As histórias de Sheherazad, entretanto, são a chave para entender a importância dessa cultura para a fantasia.

lícula teve a maior arrecadação cinematográfica do ano de 1992 e continua até hoje como uma grande referência. As temáticas trabalhadas, entretanto, continuaram sendo a clássica ideia de desejo e poder. O mesmo ocorreu na obras de Neil Gaiman, Deuses Americanos, em que o autor incluiu, entre deuses nórdicos, gregos e romanos, a figura de um Ifrit, um gênio da mitologia árabe demonizado pelo islamismo. Aqui, num interessante uso de elementos mitológicos em geral ignorados pelos ocidentais, o gênio é apresentado como um ser que vai além dos limites da sexualidade humana convencional, se relacionando com um homem que por ele se apaixona. Apesar de Gaiman ter a sensibilidade de estudar de maneira profunda a mitologia com que trabalha, ele ainda cai na armadilha dos clichês (ainda que de forma consciente) ao apresentar o gênio como um veículo para realização de desejos. A Roda do Tempo Considerada uma obra tão importante para a fantasia quanto O Senhor dos Anéis ou Crônicas de Nárnia, A Roda do Tempo (Wheel of Time, no original) é uma saga escrita por Robert Jordan que se baseia fortemente em elementos da cultura árabe, persa e do extremo oriente (Japão, China e Índia). Na história, os fatos que já aconteceram tornarão novamente a acontecer, pois o tempo não é apresentado como uma linha reta, e sim como uma roda sempre no mesmo eixo. Acompanhamos o eterno duelo do Dragão, um podero-

so mago que é o herói da Luz, contra Shai’tan, uma entidade sombria e deturpada. O nome do vilão provém da palavra árabe Shaytan, que dentro de determinados contextos é um dos nomes dado ao demônio no islamismo. A obra é fortemente inspirada pelo Mahabharata, o longo poema épico surgido na região da Índia, mas a fórmula narrativa escolhida pelo autor lembra em parte o hakawati, a tradição narrativa árabe praticada por Sheherazad em sua lenda. O Hakawati consiste no processo de contar oralmente histórias que se entrelaçam como rendas, começando uma história e a abandonando no meio do caminho para seguir contando os fatos ocorridos a um personagem secundário ao primeiro segmento. A oralidade dos contos, somados à capacidade dos seus trovadores de não perder os fios intercalados e sempre retornar para encerrar os contos anteriores, é a origem do mito das Mil e Uma Noites, e exerce uma forte influência sobre a fantasia ocidental moderna. Jordan e o escritor que completou sua saga após seu falecimento, Brandon Sanderson, são apenas dois dos narradores a compreender a profundidade técnica da tradição árabe, que influenciou também a Gaiman, Patrick Rothfuss, Ursula K. Le Guin e até mesmo Robert E. Howard, o criador de Conan, que nunca escondeu a forte veia arábica em sua narrativa.


Boru S

de Rafael Peregrino

eus pezinhos descalços ecoaram nas pedras frias.

Boru ficou admirado com o jeito que a luz laranja do pôr-do-sol iluminava o lado de dentro das ruínas. Esticava o pescoço magrelo na direção das pequeninas aberturas perto do teto que deixavam a luz entrar. Nas paredes esverdeadas pelo musgo, plantas cresciam à vontade e refletiam a luz, como milhares de minúsculas pedras preciosas. Boru nunca vira pedras preciosas na vida, mas até então tudo era exatamente como aquele bardo estranho disse, nos versos que o garoto viu junto de seus amigos, encolhidos no canto da taverna. A diferença é que, enquanto ele descrevia, Boru imaginara tudo escuro e opressivo, corredores apertados e coisas na escuridão. Talvez, se o garoto demorasse e a noite caísse, ele encontraria essa escuridão opressora. Com luz, ele via que o corredor era comprido, sem cantos sombrios. O medo inicial já desaparecido, ele pensava quão fundo nas ruínas estavam as tais “colunas dos passados”. Boru franziu o rosto, pensando. Era isso? Nessa parte as pessoas na taverna começaram a conversar entre si e o bardo saiu batendo os pés, sem terminar a história. O garoto deu de ombros e continuou caminhando, torcendo para encontrar logo o final do caminho. Não queria ficar fora de casa tempo demais, para não começar outra “noite ruim” com sua mãe. Às vezes essas noites vinham mesmo sem ele fazer nada e lembrar disso fez as paredes parecerem mais pálidas, fez a aventura parecer mais fria. Boru sacudiu a cabeça pra afastar esses pensamentos. Estava em uma aventura! Nenhum dos seus amigos teve coragem de acompanhá-lo, então não era um grupo de aventureiros, mas uma jornada solitária. Boru foi até uma parede e pegou um galho esverdeado que crescia colado às pedras. Puxou com força e o arrebentou mais fácil que esperava, tufos de musgo caíram em seu rosto. Ele se limpou, angustiado. Sua cabeça foi tomada pela imagem de insetos entrando pelo seu nariz e ele espirrou e estapeou o próprio rosto. Limpou-se com cada vez mais calma, até voltar a respirar devagar, tirou mais musgo do cabelo crespo e procurou pelo galho. Quando o recuperou, viu a sorte que teve: O galho era gigante! Ali mesmo, com uma mão na cintura e o galho erguido para o alto, Boru se autointitulou o Paladino do grupo. Apoiou a “espada longa” no ombro e voltou a caminhar mais para o fundo da masmorra. Ele percebeu algumas figuras gravadas nas paredes, conforme avançava. A maioria estava coberta de musgo e mais galhos, mas Boru conseguiu distinguir pássaros desenhados em relevo nas pedras. Pássaros grandes, pequenos, pousados, em voo.


Os fachos de luz estavam um pouco mais alto agora. Boru ficou com medo de anoitecer antes de chegar ao final e começou a correr. Pensava em baús de tesouro e a lembrança de armadilhas cruzou sua cabeça, vibrando como um relâmpago. O garoto começou a diminuir o passo, mas estava rápido demais quando viu a teia de aranha. Boru tropeçou e se enrolou, tentando parar e desviar ao mesmo tempo. A teia, que cruzava o corredor, enrolou-se com firmeza ao redor do corpo de Boru. Ele se sacudiu em silêncio. Esfregou o rosto, sentindo a textura fina e grudenta dos fios por cima dos olhos, no canto da boca, atrás das orelhas. Pulando e se esfregando, conseguiu liberar os olhos. Viu fios prateados pelo tronco, enrolados nas canelas, grudando nos braços. Lembrou das aranhas gigantes das histórias. Lembrou de bolas de fogo, era como heróis venciam aranhas gigantes. Mas Boru não sabia nem ler, quanto mais fazer magias. Como sua mãe sempre o lembrava, Boru era burro e imprestável. O garoto pulava no mesmo lugar há algum tempo quando percebeu que se livrara da teia. Respirou fundo, engoliu em seco. Conferiu o corpo de novo e desgrudou um último fio do braço. Limpou as mãos nas coxas enquanto caminhava até onde sua “espada” tinha sido arremessada. Olhou pra luz na parede, não faltava muito pra anoitecer e Boru não queria mesmo estar ali quando tudo ficasse escuro. Deu um soco na coxa. Que espécie de aventureiro ele era, se esquecia até mesmo de uma coisa básica como tochas? Olhou para frente. Podia ser só impressão, mas parecia que o corredor se abriria em um grande salão logo mais adiante. Só mais alguns passos e... Devagar, os olhos de Boru se arregalaram. Sentia um leve comichão no braço. Ele fechou os olhos. A respiração acelerando e falhando, Boru fazia força pra não se sacudir. A coceirinha caminhou por seu braço, descendo para sua mão. O garoto fez força pra abrir os olhos. A aranha pareceu sentir o olhar e se virou para encarar Boru. Muitos pelos, muitos olhos, muitas pernas. Os dois ficaram se encarando até que Boru perdeu o controle e sacudiu o braço. A aranha não tentou se segurar, mas isso ele só percebeu depois de vários segundos de pânico. Boru olhou em volta, tremendo. Avistou-a mais adiante. Ela se afastava, mas parou assim que o garoto a olhou. Lentamente, a aranha se virou para encarar Boru. Ele ergueu sua espada improvisada e, com toda a força, deu um golpe de cima pra baixo.


Mas ele parou. O galho molenga balançou no ar, pra cima e pra baixo, cada vez mais devagar, até parar. A aranha continuou parada, olhando em seus olhos. Quando Boru olhava para uma aranha, não conseguia afastar da mente a aranha saltando em seu rosto. Naquele momento, naquelas ruínas, Boru sabia que ela não faria isso, mesmo que não soubesse de onde vinha essa certeza. Ela era pequena, menor que o pequenino punho de Boru. Longos pelos amarelados, oito olhos vermelhos. O garoto soltou uma das mãos do galho, coçou a nuca. Decidiu abaixar o galho. Nunca ouvira falar de uma aranha amarela, mas lembrou de uma coisa que sua mãe disse, antes de tudo ficar ruim. Boru, alguns anos mais novo, achou uma aranha em casa. Com medo, a matou com a vassoura de palha seca. Quando a mãe chegou em casa, ele a puxou pelo braço até o corpo esmagado. Ela pareceu triste. Explicou a Boru que aranhas não eram ruins. Elas comiam mosquitos, comiam até baratas. O garoto foi dormir impressionado. Aranhas comiam mosquitos! Os mesmos mosquitos que entravam pelos buracos das paredes de madeira podre da sua casa e ficavam zumbindo em seu ouvido! Aranhas comiam os mosquitos que viviam picando sua irmã antes de... bom, antes. Ainda olhando pra aranha e muito devagar, Boru passou por ela, na direção que caminhava antes. Cada passo confirmava que estava mesmo caminhando na direção de um grande salão. Conforme avançava, o medo passava e a curiosidade aumentava. Voltava a sensação de ser um aventureiro desbravando uma masmorra. Boru caminhou e se esqueceu do dia que se esvaía. # O salão era gigante. Nada sobrara do teto, há muito tempo caído, mas os quatro pilares que um dia o sustentaram estavam lá. Boru caminhou até os pilares, que também tinham imagens de aves em relevo, caminhou pelas paredes rachadas, parou pra observar a lua refletida em uma poça de água. Seguiu com o olhar uma árvore que crescia através do teto ausente, suas grossas raízes descendo pela parede. Havia algo ali que trazia paz para Boru. Ele deixou a sensação se espalhar de fora, das árvores, do ar e das ruínas, pra dentro de seu peito. A cada inspiração ele se sentia melhor, como se respirasse tran-


quilidade. Mas Boru era esperto, como disse a si mesmo em pensamento. Muitos aventureiros caíam vítimas de armadilhas misteriosas. Ele respirou mais um pouco, só porque a sensação era boa, e voltou à sua exploração. Do outro lado do salão havia uma passagem escura que levaria ainda mais fundo nas ruínas. Boru deu o primeiro passo naquela direção, mas parou. Coçou a cabeça, pensando. Estava escuro demais e o brilho da lua mal iluminava ali, onde estava aberto. Desanimado, ele se virou e voltou, dando golpes no ar com sua espada. Animou-se rápido, pois convenceria seus amigos a vir com ele amanhã. Agora sabia que havia algo ali, talvez Perilla aceitasse ser a ladra! O Trevor também queria ser um paladino, os dois teriam de duelar e... Boru parou de andar. Algo estava errado. Ele encarou a árvore. A sensação vinha de lá, como se ela falasse com Boru, o que era idiota já que... alguém segurou seu braço e o puxou pra trás da pilastra, tapando sua boca. Boru ficou gelado quando viu quem era. O garoto sentia a respiração do bardo na nuca em intervalos curtos e supôs que ele falava. O homem o atirou no chão e Boru ralou a palma de uma mão e um cotovelo. Com o fraco brilho da lua, ele não conseguia ler todas as palavras na boca do bardo, mas sua expressão cruel dispensava palavras. O bardo avançou e o prendeu no chão com o peso do corpo, segurou a cabeça de Boru e a bateu no chão. Pequenas luzes brancas estouraram na frente de seus olhos e o garoto não ficou consciente pra saber se ele bateu mais vezes. Quando acordou, achou que vários dias tinham passado, mas o bardo acabava de se levantar. Boru se virou com dificuldade, sua cabeça doía horrores, mais pesada que jamais esteve. O bardo estava de pé, com um sorrisso comprido no rosto, os olhos arregalados. Boru não conseguia nem tremer, mas quando o bardo parou de recuar e voltou a falar, o garoto conseguiu ler seus lábios. -- ... sempre funciona. Às vezes aventureiros caem no meu papo, hoje foi você. Até poderia deixá-lo vivo depois, mas aí você ia contar aos outros. Boru desejou do fundo do seu coração conseguir falar, só pra poder dizer ao bardo que nunca contaria nada pra ninguém. Será que o homem não percebia? Boru procurou em sua cabeça um jeito de contar pro bardo que era mudo, mas o medo calou sua mente quando o homem começou a desamarrar o cinto.


Enquanto Boru sentia o sangue escorrer quente pelo seu cotovelo, sem conseguir reagir, reparou que o homem ainda falava. -- ... quase desisti, porque achei que você estava falando com alguém aqui, mas era só você falando e brincando sozinho. -- O bardo abaixou a calça e se aproximou de Boru. -- Ah, se sempre fosse fácil assim, só entrar em um templo em ruínas e seguir a voz de um garotinho solitário. Boru sentiu o sangue gelado escorrendo pelo braço. Teve medo quando o homem disse que o mataria mas teve ainda mais ao ler em seus lábios que havia uma outra voz ali. O garoto colocou seu jovem cérebro pra trabalhar, procurando uma forma de contar ao homem que ele não tinha voz pra ser escutada.

ru re fu tor tu na ra r ed á e iç m ão um

O garoto coçou a nuca.

Bo

Com algumas patas, delicadamente, a aranha empurrou o rosto e o olhar de Boru pra longe do corpo que derretia. Quando teve certeza que Boru não olharia mais para o bardo, ela colocou todas as patas no chão e caminhou lentamente pelo salão. Boru tremia muito, mas conseguiu se levantar. Uma parte pequena do garoto fazia força pra olhar na direção do corpo, mas ele tinha todas as outras partes pra se impedir. Boru procurou pela aranha e a encontrou na passagem para a parte mais funda da masmorra. Ela estava lá, parada, olhando para Boru. Ele olhou por cima do ombro, para o caminho de volta, que o levaria de volta a sua mãe e seus amigos. Depois olhou para a aranha, que ainda o esperava na frente do caminho que seguia rumo à escuridão e ao desconhecido. Boru piscou os olhos várias vezes.

a

Ele parou de pensar nisso quando o homem deu um tapa no pescoço e recuou assustado, atrapalhado pelas calças abaixadas nos joelhos. Ele segurou uma coisa prateada e a jogou longe. Boru acompanhou a trajetória da coisa até o chão. Percebeu que a coisa não era prateada, que apenas refletia o brilho da lua em pelos amarelados. A aranha virou os olhos para Boru por um instante antes de dar um comprido e gracioso salto até o rosto do homem. Boru só pôde imaginar o tamanho do grito do bardo. A aranha já estava de volta ao solo quando o homem estapeou o próprio rosto. Ela caminhou daquele jeito bamboleante até o lado de Boru, ainda no chão. Três segundos depois, o homem desmontou no chão com fortes espasmos, sua pele encaroçando em alguns pontos.


Código-Homem É

de Alan Porto Vieira

meu terceiro dia de jejum, eu sinto menos fome do que antes, cada vez menos, a mente voa, há luz e pessoas na luz e anjos, e eu converso com elas e elas respondem tudo o que eu pergunto. Sonho, esse é o conceito do que os antigos chamavam de sonho, mas com o jejum é como se eu estivesse lentamente despertando de um sonho de viver ligado a máquina sem saber que outra vida era possível. As vezes minha mente me leva automaticamente a pensamentos como comando: parar fome, mas a fome não para porque não há mais máquinas ligadas na minha cabeça, mas pelo contrário a fome aumenta porque eu lembro que ela existe, e a fome me causa dor e alívio, porque a dor é uma bênção nos momentos de fome, a dor eu suporto como uma novidade ruim, mas ainda sim uma novidade, um presente onde só há a expectativa da visita que o irá entregar, um arquivo que nunca será aberto dentro de um programa onde reina a eterna paz. Também larguei a ração hiper verde, eu acho que meu corpo vai lentamente definhar e se dissolver em algum laboratório velho nesse planeta onde eu não nasci, mas em que minha espécie se originou, eu sonhei com meu fim algumas vezes assim que percebi onde fora meu começo, senti a queda, olho ao meu redor e há uma multidão me assistindo, minha família grava em suas máquinas o espetáculo da fome e da dor sem entender, mas eu os chamo para o martírio, eu sofro e minha mente diminui e diminuía a cada dia que passava, mas eu estava tão, mas tão melhor do que eles, eu estava vivo e eles eram engrenagens da máquina, com seus corpos modificados e consciências expandidas, então eu acordo por causa da fome, e a fome me lembra que não, isso ainda não é vida, a vida está por vir e será em breve. Faz tempo que larguei as drogas expansivas também e minha mente está diminuindo e eu a sinto como água se esvaindo da banheira, como um rio que seca, como se todo o oceano fosse algum dia desaparecer pra fazer surgir uma civilização submersa. Me explicaram alguma coisa, aquele homem chamado Marcelo, ele me disse que o que estava acontecendo era algo que costumava acontecer, um fenômeno tão orgânico como as colônias de bactérias e algas da ração hiper verde, esse fenômeno é chamado morte. Não é um conceito fácil de entender, eu mesmo não devo ter compreendido por inteiro, mas me parece algo desejável, e eu percebo que estive tendo sonhos com a morte, com passagens luminosas e meu reencontro com pessoas alegres e sem máquinas no corpo, e que mesmo sem as máquinas elas vivem com a consciência muito mais expandida do que qualquer droga pudesse nos induzir, podendo cobrir todo o universo, toda a criação, como o Código-Homem que eles seguem, cujo nome eu não lembro mais. Perdoem minha memória, sem minhas pílulas e minhas próteses cerebrais eu não consigo me ligar ao mundo, percebi isso, eu não sei qual é o outro mundo em espiral que Marcelo diz, mas é real e eu sinto


que estou me expandindo pra ele enquanto diminuo pra esse. Fui apresentado a um novo conceito de liberdade muito mais pura e abrangente, liberdade não de morar em outros planetas com colônias ou de voar até o sol e voltar a salvo, mas uma liberdade de espiral, era outro nome que ele chamava, não era espiral, era um conceito tão complicado quanto morte, era como se fosse nossa essência primordial que já existia e sempre existirá enquanto a Lógica Universal também existir. Espírito, não espiral, é espírito. O nosso espírito é a casa da verdadeira liberdade de se fazer e de não se fazer, não é mundo em espiral também, é mundo dos espíritos, essa é minha verdadeira morada, e é tudo bastante confuso e difícil de encontrar palavras porque estou sendo novamente alfabetizado, e do jeito mais terrível e rudimentar possível, sem que nada fosse implantado no meu cérebro, nem posso chamar isso de aprendizado, é um modo de aprender orgânico, primal, como acho que os animais aprendem coisas. Liberdade. Só tem liberdade pra ser alguém que tem liberdade pra não ser também. Só sou livre pra voar se eu puder não voar e também viver bem, só sou livre pras drogas de expansão se puder não usá-las e também estar bem, eu preciso das duas opções tranquilas convivendo na minha cabeça e só então as escolherei com liberdade e não forçado por outra palavra nova dessa minha gramática: o vício. Comando: eliminar vício eu tentei quando podia, eu expandi minha mente, havia vários arquivos com antigos documentos, com mais de mil anos de idade, falando sobre os vícios e como eliminá-los, mas ainda vivíamos num mundo primitivo, estranho, animalizado, havia música e as pessoas eram indecisas quanto a seus futuros. A consciência da humanidade se libertou depois disso, foi isso que eu aprendi, com os dados entrando no meu cérebro pela máquina, a consciência se libertou, mas eu não sei mais o que é liberdade porque um pássaro preso numa gaiola é livre pra continuar preso caso ele queira, mas não é livre pra voar. Eu era quem? Por que eu não tinha um nome engraçado como Marcelo? O vício não fora eliminado nem sequer encontrado no meu ser, nenhum programa com esse nome, nenhum vírus, nenhuma doença, e mesmo assim eu me sentia mal e me sentia portador do vício e queria expeli-lo como um câncer, uma chaga, uma peça avariada do meu organismo. Marcelo disse que não fora projetado num laboratório, e por isso seu nome era diferente, que aquela pequena comunidade ainda mantinha seus corpos sem muitas máquinas e que sua função era povoar o paraíso, e não viver pra sempre num paraíso terreno. Paraíso é um lugar no mundo dos espíritos onde as coisas são boas e as máquinas não nos atingem porque o Código-Homem vive ali, ele é uma pessoa e estará conosco, um ser orgânico que faz coisas de máquina sem nenhuma máquina no seu corpo, que viveu na época da era primitiva onde os restos biológicos das pessoas se amontoavam. Eu encontrei essas pessoas dessa comunidade quando tentei comando: escanear problemas e nada foi encontrado mas eu


sabia que havia algo errado, algo que não podia ser resolvido com mais máquinas e implantes e drogas, por mais que eu tenha tentado, eu viajei por vinte anos sozinho pra uma estrela próxima, me perdoem a falta de memória por não lembrar o nome, eu viajei por vários planetas, e lá estava a coisa, o vírus, as linhas de código eu as li uma por uma procurando algum defeito, algum caractere mal colocado, não havia nada de errado, então olhei pra um planeta, depois eu conto como o encontrei, mas eu achei essa comunidade e depois outras, quase escondidas dos radares porque na verdade ninguém se importa com elas e as máquinas não tinham muitas informações porque eles não alimentavam as lógicas com seus perfis e eu achei tudo bastante perigoso, terrível, apontei satélites pra lá e registrei eu mesmo vários daqueles homens primitivos, eu julgava os estar ajudando, estava ajudando? Eles sorriam como se estivessem drogados mas não estavam, respondiam tudo o que eu perguntava sem se importar e sem temer pela própria segurança e decomposição biológica, sorriam, apenas sorriam pra todos os que passavam, eu nunca levei minha família pra lá, deveria, eu acho que eles pelo menos poderiam conhecer Marcelo e seus irmãos. Irmãos, eles se chamavam de irmãos. O conceito que eu procurava nas palavras arcaicas era angústia, angústia de se estar vivo. Não foi uma máquina quem encontrou essa palavra, mas uma jovem da comunidade de Marcelo que a citou e era exatamente o que eu queria, a palavra que eu precisava dizer em voz alta pra todos até correrem as letras sem que eu consiga controlar, era essa a minha angústia, tudo o que eu via era nada, as coisas se diminuíam em importância, o que eu quero, de onde eu tinha vindo, em qual dos planetas havia começado a nossa colonização – e foi assim que cheguei nesse planeta das comunidades – o computador me enviou e não era um planeta diferente dos outros, na verdade era um lugar sujo e desarrumado, mas como me foi dito que ali era mais fácil viver sem máquinas ou drogas eu fiquei, eu me mudei pra Terra e vivi na comunidade do Marcelo, ali ele é chamado de pai, padre, um título muito bonito e eu passei a entender as coisas da natureza ao mesmo tempo que minhas unhas cresciam e eu tinha que cortá-las com rudimentares facas de lasers, eu me queimei da primeira vez mas conforme ia dominando os cuidados com meu corpo eu ia dominando minha mente, ia tomando posse de mim mesmo e abandonando o grande e metálico nada. Toda a vida fora da comunidade se revestiu de nada, de coisas fúteis e preguiçosas, como eu pude passar duzentos anos nesse estado sem perceber que aqueles que me entregaram pra cuidar não eram meus filhos, mas criaturas híbridas replicantes assim como eu era, perfeito nas formas, mas um verme moral, uma coisa disforme sem vida que, agora eu sabia o nome: pecado. Eu era cheio de pecado. E eu queria descansar dos pecados e então eu jejuei por vários dias, várias vezes, estou no meu terceiro dia e acho que finalmente entendi algumas coisas. Eu aprendi a falar palavras novas como fome, vício, angústia e pecado, e outras tantas que poderia criar vários arquivos, e eu os fui criando com minhas próprias mãos, com meus dedos caminhando entre teclas de luz numa terrivelmente velha lógica de telas coloridas e cabos condutores dos fótons super-


luminosos. Espalhei os arquivos conforme os ia escrevendo e contei minha história, a história de uma alma, como cheguei na origem da criação e meu trabalho por quase duzentos anos numa empresa onde eu precisava de mais e mais remédios e pílulas e implantes, eu com minha consciência expandida comandava uma enorme frota do sexto quadrante da Groombridge 34, aquelas naves faziam parte do meu corpo de uma forma tão nociva que na minha aposentadoria eu sentia como que amputado, e precisei de drogas e drogas pra me entorpecer e me manter no sono da máquina, na não vida em minha torre com minha mulher e meus filhos que pra mim eram todos desconhecidos, só havia vício em tudo o que eu enxergava. Eu contei minha história e agora dezoito bilhões de seres meio homem e meio máquinas a conhecem, mas não me importei com o baixo número, não quero que venham pra nossa comunidade, mas sim que construam eles mesmos seus pequenos reinos de resistência ao vício e ao pecado. Eu escrevo atormentado pela fome, mas desejo mais fome, tanto melhor que doa, que sofra, que arda, porque é essa a minha passagem pro mundo dos espíritos, eu converso com Marcelo mas ele diz que não precisa mais me contar nada, que eu estou num caminho maior do que ele próprio, que compreendi, que atingi as sétimas moradas da casa do Código-Homem, porque o espírito tem dentro de si uma nave interior de infinitas cabines, e Marcelo diz que eu já estou nas sétimas cabines, durante meu jejum alguns seres se aproximam e me confortam, me consolam, eles sim são os santos, os grandes homens, os que me ensinaram tudo o que podiam mas eu sei que era pouco, que minha mente limitada não podia apreender mais nada sem as drogas, mas sem drogas tanto melhor que não saiba, tanto melhor. Há uma multidão perto de mim que me segura as mãos, e eu pressinto os anjos feitos de puro Código, de puras Palavras, sobrevoando o povo, comando: faça-os entender que estou bem, é só mais um dia de jejum, três dias apenas, ou seis, ou nove, perdoem minha falta de memória. A multidão está a minha porta na comunidade, meus filhos, eis meus filhos, eis minha mulher e meus irmãos, eu choro de dor e quanto mais dor tanto melhor, tanto melhor, eu entendi que os meus arquivos espalhados por aí começaram um novo período e que vários vieram ao meu encontro, mas eles sabem, Marcelo sabe que não havia nenhuma palavra ali que eu pudesse ter escrito, foi o Código-Homem quem escrevera e todos diziam que era eu, não, tolos, o que fazem aqui? Está tudo dentro de vocês. A dor é insuportável, eu sou fraco, confesso que não acho que vá aguentar mais um dia de jejum e talvez deva voltar a minhas meditações e preces, perdão por minha fraqueza, pelos meus vícios e pelo meu pecado, entretanto eu não quero nem por um segundo perder de vista os anjos e os outros seres de luz que correm a minha volta. Abram todas as portas, eu preciso dessa luz por inteiro, preciso estar diante do Código-Homem e preciso que meu coração se configure a ele a ponto de se tornar um com o Código. Oh, eu O amo, como O amo...


Madame Vargas e o emblema amarelo

A

de Camila Loricchio

cabara de sair de uma peça de Artur Azevedo. Era a revista do ano de 1897, fora um ano interessa te, mais interessante ainda era a visão e a personificação dos não-humanos, cheios de alegorias, piadas internas, críticas loquazes e suas grandiloquentes apoteoses. Diziam que era perda de tempo assistir a um teatro tão “do povo”, que era momento de reformar o teatro brasileiro, elevar a qualidade das peças... mas que era o tal “povo”? Não éramos todos ele? Madame Vargas desviou de um casal que vinha descendo a rua. Sempre saía leve após assistir às r vistas de Artur, quando pequena havia assistido a uma peça de Martins Pena e desde então se apaixonara pelo teatro. Um desejo secreto que tinha era o de escrever uma um dia. Um desejo mais secreto ainda era o de encená-la. Mas nem atriz conseguira ser, quanto mais... Distraiu-se vendo um jovem descer a rua correndo, desesperado, tinha os olhos vidrados como se tivesse avistado um fantasma e suas roupas lhe eram estranhas. Ele esbarrava em todas as pessoas, indo na direção contrária ao fluxo. Acabou esbarrando nela e manchando seu vestido de amarelo. Ela gritou, inconformada. O garoto parou. —Mil desculpas, senhora. Eu... —ele parou novamente ao olhar a tinta amarela que manchara o ombro e tórax, sem nunca a olhar nos olhos. —Mil desculpas. Mas os retalhos ornamentados do Rei de Amarelo devem esconder Yhtill para sempre. Ela só teve tempo de olhar confusa para o jovem enquanto ele voltava a correr. *** Deixou o xale apoiado na mesa do quarto da pensão e parou para olhar o estrago feito. A tinta era espessa, quase da consistência do sangue – estremeceu ao pensar – e temeu ser impossível retirar as manchas. —Um vestido excelente perdido. Terei de passar na costureira amanhã. Sentiu uma leve tontura. Achou que poderia ser o cheiro da tinta. Decidiu se trocar antes que sua pressão baixasse mais. Sentou na cama. —O menino disse Rei de Amarelo. Rei de Amarelo é um nome excelente para uma personagem. Talvez eu possa... Pegou correndo um papel e sentou-se à pequena escrivaninha para escrever. *** Camilla: O senhor deveria tirar a máscara.


Estranho: É mesmo? Cassilda: É mesmo, está na hora. Todos tiramos nossos disfarces, menos o senhor. Estranho: Eu não estou de máscara. Camilla: (Horrorizada, em particular para Cassilda.) Não é máscara? Não é máscara! — Sim. E Camilla finalmente vê o rosto do forasteiro e então... Fantástico. Escrevia sem parar havia horas, tivera de pedir mais tinta emprestada à dona da pensão. Suava frio como se estivesse febril e as falas e cenas saíam como se estivesse expurgando uma ferrugem que a corroía. Veio-lhe no pensamento que se talvez já existisse um bebê de tarlatana rosa pudesse... sacudiu a cabeça. Que ideia, que palavras, não sabia de onde vinham. Devia estar tonta de tanto trabalhar, que horas seriam? Lá fora já estava escuro. Segurou as mais de vinte páginas escritas e alinhou as folhas. Quem diria que um encontro pouco fortuito com o garoto correndo tivesse lhe estragado um vestido, mas lhe dado uma inspiração magnífica? Parecia que o mundo realmente agia por equilíbrio. Considerou que a peça deveria ter dois atos. Não daria para encerrar toda a verdade contida naquilo em apenas um... não seria... certo. Ouviu batidas na porta. —Sim? —Madame? A senhora está bem? Já é de manhã e não desceu para o café. Quer que chame um médico? —Como assim já é de... —olhou para a janela, o sol já estava a pico. Levantou assustada. E foi abrir a porta. —Agradeço a preocupação, senhora, estou bem. Devo apenas ter perdido a hora, passei a noite escrevendo. —Entendo, bem, aqui está o jornal. Pegou o jornal e fechou a porta. Novas notícias do mesmo, nem sabia qual a utilidade de saber as coisas se nada mudava. Uma notícia sobre uma Rita Lobato ter se formado médica, protestos entre irlandeses e londrinos, Nova York recomeçara o cerco e havia uma nota sobre as Câmaras Letais e se era uma boa ideia trazer a proposta às terras brasileiras, e... perdera o interesse. Olhou novamente pela janela. Como poderia ser de manhã? Tinha certeza que vira a janela e estava escuro e de repente amanhecera? Calculou que já deviam ter passado das 11 horas. Sentou e organizou as folhas de seu primeiro ato rascunhado. Gostara. Decidiu descer para encontrar algo para comer e que voltaria para terminar de escrever o derradeiro segundo ato. Já imaginara sua


grande estreia nos teatros, com uma companhia, viajando por cidades, encenando o já sucesso Rei de Amarelo e seu emblema. Emblema? Chacoalhou a cabeça e viu que estivera desenhando um olho no canto do jornal. — Bonito. Podemos utilizar para o cartaz. Desceu para encontrar alguma cafeteria. *** Parou encarando o papel em branco. Nada. Não conseguira escrever absolutamente nada. Foi abrir a janela para tomar um ar. Fazia várias noites que tentava escrever, antes tudo rendera tão bem e agora... empacara? Estava absurdada. Olhou para baixo e viu um homem de capuz encarando sua janela. Ele lhe parecia estranhamente familiar. Um cocheiro? Quem sabe guiava uma das carruagens que pegara... Não. Era o homem que guiara o carro fúnebre que vira passar semanas antes. Fechou a janela rapidamente. Precisava terminar de escrever. *** Largou a pena tremendo. Estava terminado. O segundo e derradeiro ato. Sentira uma catarse ao escrever fim na beirada da última folha. E logo em seguida verteu em lágrimas. — O que fiz? O que fiz? Convulsionou no chão. Sentiu a porta de seu quarto abrir, mas não tinha forças para levantar. Sentiu o diadema entregue horas antes por um entregador escorregar de sua cabeça e uma umidade amarela surgir no mesmo lugar em que o garoto derrubara tinta. Viu os passos lentos de um homem entrando no quarto, parando como se a estivesse encarando e se dirigindo para a mesa, na qual descansava sua obra agora terminada. Sua obra? Não tinha mais certeza. Viu a criatura, a mesma da janela, pegar com cuidado a peça, enfiá-la no casaco, e dar a volta para sair do quarto. No entanto, ela se virou, pareceu refletir e pegou o cobertor para cobrir o corpo já sem vida de Madame Vargas. Um corpo que já havia servido a seu propósito.


A Lâmina Lunar

Q

de Lucio Trajano

uando vi as linhas serpenteantes na areia dourada, soube que logo o caravaneiro saberia ter acertado na contratação de seu novo guarda. No caso, me contratado. Eu, claro, notei a elevação no solo circulando o comboio quase um minuto antes e já mantive a mão na espada, pronto para o que se seguiria. Quando os dois insetos metálicos saltaram da areia por sobre os vagões, com um guincho que parecia um pedaço pontudo de prata sendo arrastado por cima de uma chapa de ferro, o outro guarda da caravana, chamado Ifrin, virou a cabeça confuso, olhando para o lado errado do ataque. Ele teria morrido ali, seu sangue umidificando a areia, se eu não estivesse a uma distância que servisse para protegê-lo. Cortei as duas patas pontudas do primeiro inseto antes que elas perfurassem meu pobre colega, que caíra no chão assustado ao notar que morreria. Ao menos uma coisa havia servido em seus anos de experiência protegendo caravanas: ele havia caido puxando a própria espada, ainda que ela fosse inútil contra aquelas criaturas. “Guarde isso antes que você se machuque”, eu disse, rindo da minha própria piada. A coisinha metálica que quase tirara a vida de meu colega saltou, mostrando os dentes, na minha direção. Cortei ela pela metade ainda no ar, num movimento que me aproximou do outro inseto automotor. Ele me olhou à distância por um momento, com os sistemas matemáticos que compunham seu cérebro de engrenagens ponderando se valia a pena se colocar em risco contra mim. Antes que ele pudesse determinar, cortei suas perninhas. Os meus companheiros de viagem começaram a sair de onde estavam escondidos, entre os camelos, cavalos e vagões de carga, alguns poucos decepcionados com a anticlimática luta que se resolvera em instantes, mas todos aliviados por não terem se ferido. Notei que alguns me encaravam com mais desconfiança que outros. Era o caso do caravaneiro, Abin Uf Suldar, e sua filhinha de onze anos, Vanira. “É uma bela espada essa, Mamun.” Disse o caravaneiro. “Uma que consegue cortar essas criaturas metalóides.” “É sim, mestre Suldar.” Eu respondi, mordendo um sorriso amarelado. “É bom que ela seja, pois gas-


tei anos de economias nessa beleza. É prata verdadeira, feita pelos grandes Mestres Alquimistas de Cemiscira.” Aquilo era tanto verdade quanto era mentira. Eu não me esforcei em dizer que a espada era na verdade prata de chama pois o caravaneiro não saberia diferenciar os oito tipos de prata. Bastava a ele saber que era prata purificada por um alquimista, e ela já valia mais do que toda a caravana. Não havia uso, também, em mentir sobre o fato de ser prata. Se algum dos companheiro de viagem fosse querer me roubar a espada, tanto fazia se ela era feita de metais raros ou só aço damasceno. Naquela noite, na fogueira, Vanira se sentou próxima a mim e não conseguiu tirar os olhos da cimitarra. “Você gostou da minha arma, Vanira?” Ela acenou com a cabeça, olhando-do me de baixo para cima. Foi seu companheiro de brincadeiras e única outra criança da caravana, entretanto, quem continuou a conversa. “Sua arma é feita de prata?” Respondi que sim com um aceno. “Mas as moedas que meu pai ganha do mestre Abin também são. Se eu juntar moedas o suficiente poderei transformá-las em uma espada como a sua?” Resisti ao impulso de dizer que ele poderia trocar muitas e muitas moedas por uma espada como a minha se fosse ao mercado. Preferi ser mais didático. “Você poderia derreter a prata das moedas, escorre-lo através de areia da Praia Morta, misturar nela pó de cristais de orichalco e deixar descansar por nove luas cheias, e ainda assim não seria uma lâmina igual a essa. Mas já seria de prata verdadeira.” “Sua espada pode cortar um homem lobo?” A pergunta vinha de Vanira, sem o pudor das superstições que faziam os adultos da caravana não me perguntarem a mesma coisa. “Ela pode cortar tudo. Mas ela é bem mais forte contra homens lobo.” Ela soltou um risinho, animada, me fazendo mais uma vez lembrar de minha filha, Mabel, que a menos de 3 anos tivera a mesma idade. Me peguei então pensando no que ela estaria fazendo, mas eu já sabia a resposta. Ela estava aprendendo a matar, melhor do que eu jamais saberia. Fui me deitar cedo, fugindo do pensamento sobre Mabel. O pobre Ifrin já montara as cabanas de


guarda. Meu contrato não me exigia estar de prontidão durante a noite, apenas que eu lutasse, então ele teria essa responsabilidade durante toda a viagem. Para sua sorte, Abin designava ao menos um de seus outros funcionários para revezar com ele todas as noites, de modo que ele conseguia estar descansado. Nessa noite, particularmente, ele estava ressentido comigo e com a piada que eu fizera durante o ataque, é claro, mas preferi ignorar a questão. Ao me notar, Ifrin me enfiou entre as mãos um pote morno de cobre, do qual se levantou um odor fraco de canela, flores e macadâmias. Fiquei o encarando, sem entender nada. “Passe cinzas mornas ao redor da sua tenda, Mamun, se não quiser ser acordado por uma cobra sobre o seu rosto.” Eu podia chamar Ifrin do incompetente (e, para esclarecimentos, eu o chamava em todas as oportunidades que tinha), mas não de inexperiente. Comecei a traçar um círculo com as cinzas ao redor de minha tenda. Parei no meio do caminho, pensando que poderia ficar acordado para tentar capturar uma cobra ou outra para comer no dia seguinte. Seria um grande alívio ao sem fim de comidas secas que se seguia. Viajando na caravana, a carne que se comia era seca, as frutas eram secas e até a água dos cantis parecia ser mais seca do que a água dos oasis. Eu só completei o círculo de cinzas pois minha preguiça me impedia de continuar acordado. Fui me deitar. # Eu primeiro tivera contato com a caravana em uma parada em Golambash, à beira da entrada do grande deserto. A cidade era viva como só um entreposto comercial podia ser, com dinheiro trocando de mãos o tempo inteiro conforme alguns entram na rota que atravessa as areias, rezando por proteção enquanto outros saem da rota rezando como agradecimento por terem escapado vivos, ou perto disso. O futuro chega mais rápido em cidades com grandes fluxos de pessoas. Eu chegara vindo do leste, em uma caravana que trazia as últimas maravilhas dos irracenos para serem levados para o norte. Eu queria ir para o sul, atravessando o deserto. Para que meu plano desse certo, eu precisava encontrar um comboio do tamanho certo. Qualquer um grande demais espantaria o grupo que eu perseguia, enquanto as muito pequenas não valiam o esforço de salteadores cortarem algumas gargantas.


Ouvi falar do grupo de Abin a partir de Iflazar, o guia da caravana, enquanto ele se embriagava em um bar. Paguei-lhe algumas bebidas, ri de suas piadas sem graça e o convenci a me levar até seu chefe. A decepção que tive quanto o chefe do empreendimento me disse já haver contratado Ifrin foi grande. Entretanto, para minha sorte, naquele mesmo instante um amigo de Abin lhe ofereceu o contrato para levar quatro vagões a mais, aumentando a verba de viagem do ambicioso caravaneiro. Fui contratado no ato. Não é vantajoso lidar sempre com a sorte e depender dela para realizar seus objetivos, mas ninguém nunca reclamou de ganhar na loteria. Aproveitei a situação com um sorriso do rosto e comprei um cavalo acostumado com as dunas com o adiantamento da viagem. Não demorou para que eu me mostrasse um guarda melhor do que Ifrin. Ele estava constantemente reclamando do calor, cochilava em cima do camelo que o transportava e duas vezes quase nos levou para locais de onde poderíamos ter sido emboscados. Reclamava de ter que andar um pouco mais no começo das noites, como eu pedia e o caravaneiro concordava. Dessa forma eu garantia que se estivessemos sempre à frente do que os batedores que os grupos de assaltantes enviavam para nos rastrear esperavam. Ifrin estava obviamente trabalhando para pessoas mais interessantes do que o caravaneiro Abin. Era melhor nessa profissão do que na de guarda de caravana, tão melhor que mal conseguia disfarçar suas qualidades. Não demorou muito para que o dono do empreendimento me procurasse no princípio de uma noite, preocupado. “Fique de olho naquele Ifrin”, disse Abin. “Ele está com algo em mente.” Tranquilizei o caravaneiro, dizendo que nada iria acontecer. Na verdade, eu gostaria de que algo acontecesse, mas era algo específico. O tempo ia me dizer. # Eu acordei a tempo. Mas um sinal da minha maldita sorte. Havia passado as últimas oito noites acordado graças a diversas drogas alquímicas, apesar de fazer todo o ritual de me deixar em minha tenda e fingir que havia caido no sono. Dessa vez, o ritual talvez tenha acabado sendo realista demais e eu realmente estava adormecido. Por sorte, a criatura circulando minha tenda era mais incompetente do que


eu e tropeçou em uma das panelas que eu havia “acidentalmente” deixado no chão, me acordando com o barulho. Abri os olhos com dificuldade. Havia algo errado comigo. Tentei me levantar mas a força me falhou nos braços. Meu cérebro entorpecido levou um longo instante para perceber que eu havia sido drogado, mas a lógica me faltou na hora de entender como. Consegui me jogar para fora da cama, tossindo, na direção de minha sacola de viagem. Olhei de canto de olho para a sombra que do invasor que a lua projetava sobre mim. Ele ainda circundava a tenda sem pressa, portanto meus movimentos, por mais bruscos que tivesse sido, não haviam sido vistos através do plano. Eu tinha um breve momento para traçar um plano, mesmo com meu cérebro turvo. Consegui bater na sacola com as costas da mão até que uma parte de seu conteúdo se esparramou no chão, e uma pequena bolota cinzenta rolou para fora. Era meu último bezoar cáprico, que eu abocanhei sem pensar duas vezes, torcendo para que aquele antídoto universal funcionasse para qualquer que fosse a droga me afetando. Me aproveitei do fato de que minha perna havia ficado no catre que me servia improvisadamente de cama e consegui puxar o lençol. O bezoar fazia efeito, ainda que não rápido o suficiente, mas consegui com alguma dificuldade pegar minha espada, algumas das minhas outras traquitanas químicas e me cobrir com o lençol. Por mais infantil que parecesse, eu só pretendia usar aquilo para contar com o elemento surpresa. De fato, quando a criatura finalmente invadiu a tenda, se deparou com o catre vazio e uma pilha coberta por um lençol. Eu era bom em reduzir minha movimentação e respiração, e o fato da droga estar me deixando lento facilitou o processo. O invasor, entretanto, não se deu por convencido e veio em direção a mim. Quando uma enorme mão se colocou sobre o cobertor, me preparei. A criatura puxou o cobertor tão rápido que eu por pouco não tive tempo para pegá-la de surpresa. Por sorte, o susto daquela coisa em ter me descoberto ali foi maior do que o meu em ver a enorme figura lu-


pina e humanóide. Fechei com força os olhos e apertei uma das minhas capsulas de fósforo, que explodiu em pura luz me queimando um pouco a mão esquerda. Fiz um único movimento cego com a espada que eu segurava na direita, na esperança de atingir o invasor. Deu certo. O lobisomem caiu para trás, levando a cobertura da tenda com ele e nos expondo à luz da lua. Por ter fechado os olhos, eu recuperei a visão um instante antes e consegui divisar um plano. Finquei a espada através dos panos e no catre, fazendo uma rede improvisada que não duraria muito tempo, mas prendendo o adversário por um precioso segundo. Saltei então para minha sacola, revirando-a com velocidade. Não velocidade o suficiente, pois logos as garras lupinas encontraram um caminho através do pano leve da tenda e uma cabeça saiu desajeitadamente da prisão improvisada. O desespero me abateu quando meus dedos me falharam momentaneamente. A criatura conseguiu colocar ambos os braços para fora do pano da tenda, mas por sorte suas garras dos pés se enroscaram no tecido e ele caiu de frente no chão. Encontrei o que eu procurava no mesmo instante em que o monstro se levantava, ofegante pelo esforço de se libertar. Ele me procurou, olhando em volta, e então fixou os olhos sobre mim. Ele deu o primeiro passo, e eu fiz a primeira tentativa de arrancar a pequena rolha que tampava o vidrinho. Meus dedos ainda estavam muito entorpecidos para um trabalho de força e precisão como aquele. Ele deu mais alguns passos, ganhando velocidade. Meus dedos escorregaram mais uma vez da cortiça da rolha e eu notei que só havia uma alternativa. Com um gesto amplo como um mágico de araque esmagando um chapéu onde supostamente há um coelho, eu bati uma mão na outra. O pó prateado dentro do vidrinho se espalhou pelo ar, em uma estranha nuvem, mas um restinho restou sobre a minha mão cortada pelos cacos. Soprei o sal de prata sobre o lobisomem. Em um primeiro instante, a criatura pareceu confusa. Ficou em pé, travado em meio ao movimento,


estudando as próprias reações corporais. Então cedeu, caindo sobre os joelhos e as palmas das mãos e vomitando muito. Em questão de segundos, o que antes era uma enorme criatura meio-homem, meio lobo, se tornou Ifrin, o outro guarda da caravana. Ele ainda teve tempo de me olhar, a cara já inchando da alergia à prata, antes de desmaiar. Me apoiei ofegante nos joelhos, mas o movimento de abaixar foi o suficiente para que eu acabasse caindo com a bunda no chão. Ri da minha própria sorte e loucura. Meu cérebro, recuperado, fez a ligação que faltava para entender que Ifrin havia me drogado com alguma coisa no meio das cinzas que ele havia me feito segurar. Devia ser algum tipo de droga respirável. “Pela força abençoada de todos os deuses, o que…” Disse uma voz bem atrás de mim. Só então notei que eu tinha tido uma platéia, ao menos nos momentos finais do meu esforço de sobrevivência. Abin já havia se aproximado, enquanto outros viajantes da caravana não tinham certeza se deveriam ficar tão próximas assim após ver a transformação de um monstro no guarda que deveria os proteger. “Mamun. Você…” Eu pense que ele fosse me perguntar se eu estava ferido ou algo do tipo. “Você é um mago?”

Do ut or na Mu pr n ed óx re iç im tor ão a na r O

“Senhor Abin Uf Suldar, deixe que eu me apresente corretamente,” eu disse, usando o mesmo tempo que usava ao dar aulas. “Meu nome não é Mamun, verdadeiramente. Eu sou o doutor Estarque Mun, professor de demonologia na Academia. Creio que vou precisar da sua ajuda quando os outros lobisomens chegarem.”

á

A pergunta me pegou de surpresa. Sendo um estudioso das artes arcanas, você se acostuma com as ciências a ponto de esquecer todo o misticismo com o qual o povo fora dos circuitos intelectuais tratam a magia e a alquimia. Me levantei, empertiguei-me o máximo que pude e segurei a lapela de um casaco imaginário.


Na próxima edição A continuação da história do Doutor Mun contra os Lobisomens Stranger Things Dicas para se organizar na hora de imaginar o cenário da sua história O poder do RPG para ajudar os escritores E muito mais...

Como participar A Pulp Feek é um revista 100% gratuita e sem fins lucrativos que depende de trabalho voluntário, textos e arte doados para funcionar. Caso você se interesse por ajudar:

Se você é um designer e quer contribuir com arte, envie um e-mail para revistapulpfeek@gmail.com com o assunto “Design” Se você quer nos enviar um conto para ser incluído numa edição futura, envie um e-mail para revistapulfeek@gmail.com com o assunto “Conto” Se você quer nos ajudar com diagramação, revisão ou com textos não-literários, nos envie um e-mail com o assunto “Voluntário”.


Turn static files into dynamic content formats.

Create a flipbook
Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.