Revista Ragga #59

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#59 , MARÇO , 12 , ANO 6

NÃO TEM PREÇO

REVISTA

CRIOLO COM FOME DE “VIVER A ILUSÃO DE QUE SE ABRA O DIÁLOGO”

Ô DE CASA! EM CINCO CIDADES, PROCURAMOS OS MORADORES DE FACHADAS CHAMATIVAS

E MAIS: .APOSTAS DO MOUNTAIN BIKE E DO MOTOCROSS .RAGGA NIGHT RUN

JANELA EDIÇÃO

NOVOS BANDEIRANTES SETE JOVENS, 62 DIAS E AS 27 CAPITAIS BRASILEIRAS


REALIZAÇÃO DE FÓRUM TÉCNICO

para propor medidas de combate à violência nas escolas.

CRIAÇÃO DA BOLSA RECICLAGEM ANTECIPAÇÃO DA META DA ASSISTÊNCIA SOCIAL

No final de 2012, Minas será o primeiro Estado brasileiro a oferecer serviços básicos de assistência social em 93% dos municípios.

Incentivo ao trabalho dos catadores de lixo reciclável.

EXTINÇÃO DA PENSÃO VITALÍCIA

de ex-governadores e seus dependentes.

150 EVENTOS

com participação da população, principalmente a mais carente.

2011 chegou ao fim, mas a luta da Assembleia Legislativa contra as desigualdades sociais e regionais continua. Acesse o nosso Portal para saber muito mais.

www.almg.gov.br Assista à TV Assembleia. Agora em sinal aberto para BH e região. Sintonize o canal 35 UHF.


APROVAÇÃO DO FUNDO ESTADUAL DE ERRADICAÇÃO DA MISÉRIA

REALIZAÇÃO DO SEMINÁRIO LEGISLATIVO DE COMBATE À POBREZA E À DESIGUALDADE em BH e 12 cidades do interior.

sobre o feijão e material de construção e aumento sobre cigarros, bebidas alcoólicas e armas.

no valor de R$ 200 milhões por ano.

MONITORAMENTO E REVISÃO DO PPAG

402 AUDIÊNCIAS PÚBLICAS

em todo o Estado para tratar de assuntos de interesse dos cidadãos.

REDUÇÃO DE IMPOSTOS

Com a participação da sociedade, a Assembleia acompanha de perto a execução do Plano Plurianual de Ação Governamental.

INSTALAÇÃO DA COMISSÃO DE DEFESA DOS DIREITOS DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA.


5 10

KM O ESPÍRITO OLÍMPICO INVADE SUA NOITE. Está definido seu circuito de corrida de rua para 2012

14 DE ABRIL ETAPA ÁSIA

11 DE AGOSTO ETAPA AMÉRICA

RÁDIO OFICIAL

10 DE NOVEMBRO ETAPA EUROPA

REALIZAÇÃO


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Imagens meramente ilustrativas. Parafusos não incluídos.

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acréscimo para aquisição do porta medalhas*.

INSCRIÇÃO ETAPA OCEANIA


EDITORIAL

Pela janela Pela janela de cada um, o mundo passa. Da casa, do carro, do escritório, da alma. Um verdadeiro roteiro de um filme particular. E, de fora, também passamos pela janela de alguém. Invertendo a visão, podemos pensar: quem vive ali, naquela janela? Quais histórias tem para contar? O que viu se passar dali? Fizemos isso. Fomos bater na porta de quem vive em janelas curiosas ao redor do mundo para descobrir quem são esses personagens. Em Diamantina, interior de Minas, Caio Ferro Velho ficou famoso por passar a vida na janela de casa. Viu de tudo, mas ficou cego no fim da vida. Deixou de ver o mundo, mas não de ouvir. Fomos até lá falar com Dona Stael, que hoje ocupa seu lugar, observando a rua. Nosso Perfil ficou por conta do Criolo. Fomos a São Paulo para saber o que se passou pela janela do artista mais comentado e elogiado de 2011. Boa leitura. Lucas Fonda — Diretor Geral lucasfonda.mg@diariosassociados.com.br

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Corra Imagens da primeira Ragga Night Run do ano

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68

Bernardo Cruz, mountain biker, e Felipe Zanol, piloto de motocross

Em Diamantina, um homem lembrado por observar o movimento da rua

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Batemos em portas estranhas em BH, NY, Paris e mais

No Perfil, fica fácil entender porque Criolo foi o artista mais falado em 2011

Promessas cumpridas

Toc-toc

Da janela lateral

Nó na orelha


BRUNO SENNA

já é de casa DESTRINCHANDO

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ESTILO , Manu Romano

42 44

ON THE ROAD , Cabo Polônio QUEM É RAGGA

48

RAGGA GIRL , Sara Mendes

54 60

EU QUERO , Mês das mulheres


CAIXA DE ENTRADA CARTAS

EXPEDIENTE

Fabio Cascadura @fabiocascadura // via Twitter Legal essa @revistaragga! Vou ler com calma...

DIRETOR GERAL lucas fonda [lucasfonda.mg@diariosassociados.com.br] DIRETOR DE COMERCIALIZAÇÃO E MARKETING bruno dib [brunodib.mg@diariosassociados.com.br] ASSISTENTE FINANCEIRO nathalia wenchenck [nathaliawenchenk.mg@diariosassociados.com.br] GERENTE DE COMERCIALIZAÇÃO E MARKETING rodrigo fonseca [rodrigoalmeida.mg@diariosassociados.com.br] PROMOÇÃO E EVENTOS isabela daguer [isabeladaguer.mg@diariosassociados.com.br] EDITORA sabrina abreu [sabrinaabreu.mg@diariosassociados.com.br] SUBEDITOR bruno mateus [brunomateus.mg@diariosassociados.com.br] REPÓRTERES bernardo biagioni [bernardobiagioni.mg@diariosassociados.com.br] flávia denise de magalhães [flaviadenise.mg@diariosassociados.com.br] izabella figueiredo [izabellafigueiredo.mg@diariosassociados.com.br] JORNALISTA RESPONSÁVEL sabrina abreu – mg09852jp NÚCLEO WEB guilherme avila [guilhermeavila.mg@diariosassociados.com.br] lara dias [laradias.mg@diariosassociados.com.br] ESTAGIÁRIOS DE REDAÇÃO izabela linke [izabelalinke@diariosassociados.com.br] DESIGNERS anne pattrice [annepattrice.mg@diariosassociados.com.br] bruno teodoro [brunoteodoro.mg@diariosassociados.com.br] marina teixeira [marinateixeira.mg@diariosassociados.com.br] marcelo andrade [marcelotorres.mg@diariosassociados.com.br] FOTOGRAFIA ana slika bruno senna carlos hauck romerson araújo ILUSTRADOR CONVIDADO maurilio maia [mauriliomaia.com] ARTICULISTA lucas machado COLUNISTAS alex capella. cristiana guerra. kiko ferreira. lucas buzzati COLABORADORES ana carolina castilho. damy coelho. diego suriadakis. maíra vasconcelos. jorge vasconcelos. juliana dorna RAGGA GIRL MODELO sara mendes FOTOS carlos hauck MAQUIAGEM e produção juliana grandinetti CAPA bruno senna REVISÃO DE TEXTO vigilantes do texto IMPRESSÃO rona editora REVISTA DIGITAL [www.revistaragga.com.br] REDAÇÃO rua do ouro, 136/ 7º andar :: serra :: cep 30220-000 belo horizonte :: mg . [55 31 3225-4400] REVISÃO DE TEXTO vigilantes do texto IMPRESSÃO rona editora

Greyce Kelly @GreyceKelly_G // via Twitter Muito boa a coluna Destrinchando da @revistaragga. “Excluídos e Esquecidos” da última edição, show de bola! Verinha Damásio @verinhadamasio // via Twitter @revistaragga otima a edição desse mês!!! amei @agridoce Skank – Oficial @skankoficial // via Twitter Samuel Rosa cita Milton Nascimento ao agradecer declaração de @oserginho Groisman na @revistaragga skank.uol.com.br/ blog/valeu-serginho-groisman

PARA ANUNCIAR bruno dib [brunodib.mg@diariosassociados.com.br] rodrigo fonseca [rodrigoalmeida.mg@diariosassociados.com.br] SAIBA ONDE PEGAR A SUA www.revistaragga.com.br FALA COM A GENTE! @revistaragga redacaoragga.mg@diariosassociados.com.br janelinha

Giulia Medeiros dos Santos é nossa garota do índice. Sua prima, Sarah Pereira de Andrade, também posou para o fotógrafo Bruno Senna =]

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Janela de ideias Conversamos com Carlos Henrique Reinesch, um dos fotógrafos finalistas da Sony World Photography Awards migre.me/8aY4V

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Dê uma chance! Clarice Lispector e Caio Fernando Abreu são muito mais do que as citações que circulam na internet migre.me/8bNuE 9,


ARTIGO

Raios banidos “Quem não tem colírio usa óculos escuros”. Raul Seixas

POR LUCAS MACHADO ILUSTRAÇÃO MAURILIO MAIA

Beleza, estética, necessidade, vontade, desejo ou estilo. Qual seria a definição que você daria para os óculos? Hoje, com tanta tecnologia, muitas pessoas preferem usá-los a trocá-los por uma simples operação ou qualquer tipo de tratamento. Por volta de 1284, as experiências em óptica de Robert Grosseteste e seu companheiro de trabalho Roger Bacon levaram à invenção dos óculos. Em Veneza, as famosas guildas, associações de artesãos do mesmo ramo comuns na Europa da Idade Média, já introduziam o que seria os monóculos (que eram apenas uma lente oftálmica), ou sem armação. Mas, por volta de 1785, o político americano Benjamin Franklin, depois de várias experiências, inventou os primeiros óculos bifocais, aqueles com duas lentes à frente dos olhos — antes se usavam lentes sem as armações. Após a febre que se alastrou com a inovação, que, além da correção da visão, fazendo com que pessoas que quase não enxergavam direito passassem a ver de longe e de perto e terem acesso a uma boa leitura, aos poucos os óculos foram sendo conhecidos, permitindo que o acessório passasse a ser visto não só como uma forma de correção da visão, mas também como um acessório de moda das sociedades seguintes. Foi quando, nos anos 1920, após a Primeira Guerra Mundial, a industria de aviões americana estava preocupada cada vez mais com a construção de aeronaves mais modernas para o alcance de melhores performances. No entanto, quem sofria com a modernidade das aeronaves eram os pilotos, prejudicados pela claridade do sol. Muitos, por consequência disso, passaram a ter problemas de visão. Com a necessidade de acabar com esse impasse, os Estados Unidos, maiores fabricantes de aviões da época, começaram a procurar uma forma para não deixar com que o problema

se alastrasse. Foi quando contrataram a empresa mais antiga do país, a Bausch & Lomb, empresa óptica fundada em 1849, para criar uma solução para o problema. Após 10 anos de pesquisa, foi criado um modelo nomeado Anti-Glare Aviator, que passou a ser chamado de Ray-Ban (do inglês Ray-Banner, ou “raios banidos”). O design era baseado nas antigas máscaras dos pilotos de avião. Depois disso, ficou conhecido como Aviator, com lentes verdes de cristal especial, capazes de ofuscar o brilho dos raios solares. Foi a partir de 1937 que o Ray-Ban ganhou as ruas e o mundo da moda, tendo sido também usado por personalidades do cinema como Audrey Hepburn no filme Bonequinha de luxo, Sylvester Stallone em Stallone Cobra, além de Matthew McCoAPÓS 10 ANOS naughey, Penélope Cruz, Tom DE PESQUISA, Cruise, Alyssa Milano e o jogador FOI CRIADO David Beckham, que já foram UM MODELO clicados e flagrados com os moNOMEADO ANTIdelos mais excêntricos e famoGLARE AVIATOR, sos de Ray-Ban no rosto. QUE PASSOU A Depois de mais de 70 anos SER CHAMADO de sucesso absoluto no mercaDE RAY-BAN do, a empresa foi comprada pela italiana Luxottica Group. Além do modelo Aviator, o Wayfarers também atingiu grande sucesso, e hoje conta com diversos modelos para os mais variados gostos e rostos: Shooter, Small Metal, uma espécie de miniatura do precursor Aviator, Ambermatic, Wings e Street Neat. Com sede em Milão, a italiana Luxottica possui capital aberto, é comercializada em mais de 130 países e tem 55 mil funcionários. E a empresa não para. Na sua última campanha, lançou na Europa a coleção com o slogan: “Rare Prints, uma verdadeira explosão de cores que vai do preto ao rosa, transformando os novos modelos em verdadeiras pequenas obras de arte”. Você pode até encontrar os óculos em várias versões falsificadas, mas, depois que você coloca um Ray-Ban no rosto, com certeza, sempre será um Ray-Ban.

J.C. manifestações: articulista.mg@diariosassociados.com.br | Twitter: @lucasmachado1 | Comunidade Orkut: Destrinchando | facebook.com/lucastmachado

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COLABORADORES FOTOS: arquivo pessoal

Damiany Coelho passou a se apresentar como Damy quando percebeu que ninguém entendia seu nome de primeira. Nem de segunda. A paixão pela escrita a levou ao jornalismo e ao curso de letras. A frustração de nunca ter tido uma banda fez com que escolhesse escrever sobre música — assina a coluna Sobe o Som, no site da Ragga. Nesta edição, se aventurou a fazer o que todo mundo morre de vontade: conhecer o morador de uma janela um tanto quanto sombria e curiosa. @damycoelho

O mineiro Jorge Vasconcelos foi assistente do fotógrafo Tony Genérico, em Belo Horizonte, entre 1979 e 1982. Após a experiência, estudou e fotografou em Nova York, onde morou por quase 20 anos. Atualmente, vive em Diamantina (MG),levando adiante suas pesquisas e seus projetos com fotografia. j.vasconcelos@yahoo.com.br

Juliana Dorna nasceu em São José dos Campos interior de São Paulo. Educadora física por formação, se mudou para NY em 2004 para fazer um curso de Pilates. Acabou se apaixonando por fotografia e artes e resolveu ficar por lá. Curiosa e detalhista, não sai de casa sem sua câmera: fotografa os mínimos detalhes, como as sombras, cores, shows e, agora, todas as janelas interessantes da cidade jdorna@gmail.com

IMAGENS: DIVULGAÇÃO

POR ALEX CAPELLA

SCRAP SA

fale com ele: alexcapella.mg@diariosassociados.com.br *A coluna Scrap S/A foi fechada no dia 20 de janeiro. Sugestões e informações para a edição de março, entre em contato pelo e-mail da coluna.

Na batalha

No topo da onda

A influência de design do calçado Oakley Battalion, vem da coleção de equipamentos militares da marca. Originalmente um calçado de aventura, ele teve seu desenvolvimento a partir de materiais nobres e processos de fabricação modernos, o que garante alta qualidade, conforto e durabilidade ao produto, mesmo em circunstâncias extremas.

Líder mundial em tecnologia na fabricação de roupas de borracha, a Rip Curl acaba de conquistar o Image Awards o principal prêmio do mercado surfwear no mundo. A marca venceu com a roupa de borracha “Flash Bomb”, que chegará ao mercado brasileiro neste mês. O produto Rip Curl tem tecnologia exclusiva que garante a secagem em 15 minutos, proporcionando ao usuário vestir a roupa seca em sua próxima sessão de surfe.

Fumaça no ar A mineira Virgulinas Comunicação, Cultura e Arte, com sede em Lagoa Santa, foi a empresa escolhida para trabalhar a imagem do Drift Show, mistura de competição e espetáculo originada nos Estados Unidos. Pouco conhecida no Brasil, a modalidade exige que o piloto deslize o carro nas curvas, deixando a traseira escapar em alta velocidade. Na prática, significa que o carro deve ficar de lado, atingindo um ângulo máximo, além de levantar bastante fumaça. Hoje, apenas São Paulo conta com um campeonato regular. A expectativa é de que o evento caia no gosto de quem acompanha o automobilismo pelo país. A próxima etapa rola em abril, em Araraquara. ,12


ILUSTRADOR CONVIDADO

MAURILIO MAIA

[mauriliomaia.com] Sou Maurilio Maia, designer freelancer associado ao Coletivo Contorno e cocriador e oficineiro do Outro Coletivo. Meu processo criativo é investigativo e experimental. Faço uso de apropriações da cultura impressa para produção de colagens. Gosto de explorar as relações entre imagem e significado, corpo e sexualidade, cultura e individualidade, memória e fabulação.

Quer rabiscar a Ragga? Mande seu portfólio para annepattrice.mg@diariosassociados.com.br


COLUNA ,tweets da @diimabr

DIVULGAÇÃO

BOLSA ESCOLA E LAMBAERÓBICA NA SEGUNDA

Revendedora Avon. Consultora Jequiti é a Marina Silva RT @ThiagoTG @ diimabr, verdade q Marcela Temer é consultora Jequiti? #perguntepradilma

MAURILIO MAIA

< Dilma Rousseff >

Sou linda, sou presidenta, sou Dilma. Sou uma sátira, se você não sabe o que é sátira, pega o número na fila do Bolsa Escola. Ouvidoria: dilmabolada@gmail.com

Boladíssima com a morte da Eliana Tranchesi. O Brasil acaba de perder 1/4 do PIB... Segunda-feira começo minhas aulas de lambaerÓbica. Hoje fui pro gabinete de rasteirinha. Pés cansados de tanto sambar e pular atrás dos blocos e trios no carnaval... Quem acha que eu sou mais gata que todas as candidatas a #GarotaDevassa juntas dá RT! Como que eu faço pra tirar esse tererê do cabelo que fiz em Salvador? Não sai por nada... O Mercadante falou que tô parecendo o Vagner Love. Só pra quem tem curso superior completo: facebook.com/DilmaBolada

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Tem uma faixa gigante escrita “SENTA LÁ, CLÁUDIA” em frente ao #CamaroteDaDilma aqui no circuito Barra-Ondina! Sobre o fim do mundo este ano: Não garanto que as obras ficarão prontas a tempo. O Min. da Saúde distribuirá iPods com a coletânea da Ivete + fones de ouvidos pra todos os foliões do bloco da Claudia Leitte! Derrepente 30 nos TTs???? BOLSA ESCOLA NELESSSSSS!!!! Ontem dormi na praia de óculos enquanto tomava sol e agora estou parecendo um urso Panda. Michel Teló tentou insistir com o segurança e quis subir a força. Levou uma coronhada e agora tá lá caído no meio da pipoca #CamaroteDaDilma


Š2012 Oakley, Inc. | All Rights Reserved | SAC 4003-8225 | Facebook.com/OakleyBrasil


COLUNA ,provador

< CRIS GUERRA >

41 anos, é redatora publicitária, ex-consumidora compulsiva, ex-viúva, mãe (parafrancisco. blogspot.com) e modelo do seu próprio blogue de moda (hojevouassim.com.br)

Da janela de casa, a ilusão de segurança entra em mim, encontrando abertas todas as portas. Pela fresta entra um resto de medo e escapam alguns sonhos

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MAURILIO MAIA

ELISA MENDES

JANELAS

Da janela do carro, vejo muitas vidas que passo a imaginar. Invento para elas profissões, nomes, filhos e acasos. Legendo as falas e crio novos diálogos. O aparelho de som do carro faz a trilha sonora dos filmes que crio, com cortes rápidos e uma profusão de personagens. Da janela de casa, a ilusão de segurança entra em mim, encontrando abertas todas as portas. Pela fresta entra um resto de medo e escapam alguns sonhos. Do alto do arranha-céus, minha janela é observatório de formigas. Da janelinha do avião, anseio pela aterrissagem enquanto atravesso o mar de algodão. Nos quadradinhos do trem, a velocidade pinta quadros cor de paisagem. Dos meus olhos, janela de mim, vejo um mundo que é só meu. Janelinhas mínimas para tudo ver. De vez em quando encontro outras janelas que só veem a mim. Uma janela contempla a outra e dali podem vir relatos, abraços e convites para um café. Curiosas sobre as outras janelas, as nossas estão sempre enganadas. Janela. Para o jardim da praça. Para a casa do vizinho. Para a alma do amigo. Para emol-

fale com ela: crisguerra.mg@diariosassociados.com.br

durar a vida, criando romances de bobos fatos. Janela de inventar histórias. Câmera que não enquadra: os objetos é que escolhem como se enquadrar. Janela de sonhar. Ou de jogar sonhos pela janela. A TV é janela tecnológica. Mudo a paisagem constantemente — e não me contento com nenhuma delas. No computador, abre-se a janela para um mundo sem fim. Um país de maravilhas que nos aprisiona pequenos, angustiados como coelhos sempre atrasados. Fechamos o notebook, exaustos, para finalmente enxergar a simples janela de abrir. Da janela pra fora, desejo de liberdade. Da janela pra dentro, a história do vizinho em quadrinhos. As ideias que me vêm são janelas floridas. No papel viram portas. Entro para ver o que há. Apaixonada, observo a janela do outro, que me dispara o coração e me atiça a curiosidade. Mas se sou eu a paixão do outro, do meu parapeito eu o assisto a me fazer serenata. A vida é uma sequência de janelas e portas, janelas e portas, sonho e realidade. Paixão é janela. Amor é porta. Decote e nudez. Namoro e casamento. Gravidez e filho. Preconceito e conceito. Janelas e portas, janelas e portas. O segredo é entrar e criar novas janelas, emoldurar outras cenas, fazer das verdades sonhos enjanelados. Para que a vida, parede branca, tenha sempre novos quadros para contemplar.


Proteja seus olhos. Exija o selo de qualidade ABNT.

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ANDES


Fabio Piva/Red Bull ContentPool

ESPORTE ,mountain bike / motocross

Bernardo Cruz, mountain biker, e Felipe Zanol, piloto de motocross, têm no currículo conquistas nacionais e internacionais. Dois mil e doze está só começando, mas eles já estão prontos para os desafios

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Marcelo Maragni/Red Bull Content Pool

POR BRUNO MATEUS

Ele começou mesmo andando de skate quando era moleque. Adolescente, trocou o baixo — “tocava em uma banda de garagem” — por uma bike de downhill. As ladeiras de Ouro Preto, onde nasceu e ainda mora, e o apoio do pai foram importantes, além da paixão pelo esporte, para que a carreira do mountain biker Bernardo Cruz, de 20 anos, decolasse. Ele disputou a primeira prova em novembro de 2005. Resultado: primeiro lugar na categoria Rígida. Naquele momento, parece que soube o que fazer durante toda sua vida.


Fabio Piva/Red Bull ContentPool

Em novembro de 2009, Bernardo sofreu um acidente nos treinamentos e perdeu um rim. Depois de uma semana no hospital, colocou na cabeça que não iria mais competir, só andaria de bike por diversão. Mas a paixão pelo esporte falou mais alto e, em julho de 2010, ele já figurava entre os competidores do Campeonato Brasileiro. E saiu como campeão da categoria Pro, com apenas 19 anos. No segundo semestre do ano passado, quando o downhill ganhou espaço definitivo em sua vida e a coisa ficou séria, Bernardo passou quatro meses treinando e competindo em Whistler, no Canadá, onde fica o maior ,20

bike park do mundo. De lá, ele trouxe o título do Whip off Worlds, competição que integra o festival Crankworx, que reúne várias modalidades de bike e é considerado as “Olimpíadas do freeride mundial”. “Ganhar o Whip off Worlds fez o meu nome”, diz. No mês passado, o mountain biker viajou para disputar uma competição de downhill urbano em Valparaíso, no Chile. E a agenda de 2012 promete desafios para o biker: em março ele disputa duas etapas da Copa do Mundo de downhill, uma na Itália e outra na Escócia. Em agosto, rola o Campeonato Mundial, em Leogang, na Áustria.


Marcelo Maragni/Red Bull Content Pool

,SEGUINDO A TRILHA

O ronco dos motores acompanha o piloto de motocross Felipe Zanol, de 30 anos, há mais de uma década. A turma de amigos de seu pai sempre se reunia, aos fins de semana, para fazer trilha e o levavam para acompanhar. “Surgiu a paixão”, conta. Destacando-se em competições regionais, em 2001 veio a profissionalização, a dedicação exclusiva ao motocross e as primeiras competições internacionais. No mesmo ano, Felipe foi o representante brasileiro no Six days, uma espécie de Copa do Mundo do enduro, na França. Logo na estreia fora do país, ele conseguiu a medalha de prata, mesmo resultado de 2002 e 2003, na República Tcheca e em Fortaleza, respectivamente. Felipe, que tem em seu currículo sete títulos nacionais no enduro, e outros cinco no cross country, morou em Portugal em 2008 e 2009, onde manteve a rotina de conquistas e foi campeão português de enduro nos dois anos. De volta ao Brasil, o belo-horizontino Felipe foi vice-campeão do Rally dos Sertões

em 2010 e no ano passado, quando o resultado lhe abriu portas para um novo desafio: o Rally Dakkar 2012. Na disputa, em janeiro deste ano, Felipe, estreante na competição, foi o melhor piloto das Américas e terminou em 10º lugar nas motos. Apesar de todas as dificuldades de percurso e mudanças climáticas repentinas, o resultado, segundo o piloto, foi satisfatório. Em 2012, além da temporada do Campeonato Brasileiro de Enduro, que rola entre março e novembro em diferentes estados do país, Felipe vai tentar beliscar o primeiro lugar no Rally dos Sertões, em agosto. E a rotina de treinos físicos diários, e duas vezes por semana com moto, já faz Felipe pensar num desafio que não lhe saiu da cabeça: o Rally Dakkar 2013. 21,


JANELA

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QUEM MORA ALI Cinco cidades e uma missão: descobrir quem é o morador por trás daquela cortina vermelha ou da fachada em madeira, rodeada por adesivos de protesto

Numa entrevista, Regina Casé contou um hábito que tinha quando criança: ao descer no elevador de seu prédio, parava um pouquinho em cada andar, na esperança de encontrar uma porta aberta e, por sua fresta, enxergar pistas da vida que se passava, de um jeito único, dentro de cada casa. Era fascinada pela casa das outras pessoas. E quem não se sente, às vezes, de volta à infância, tentando descobrir quem mora ali, naquela casa ou prédio, atrás da fachada do séc. 20 ou da janela teatral que mais parece a boca de um palco, ou da porta rodeada de adesivos de protesto, que revelam: um inconformado passou por aqui.

Seria um inconformado ou uma inconformada? Talvez viva ali ainda. E esteja disponível agora mesmo, para falar mais sobre si. Lançamos este convite a curiosos espalhados por diferentes cidades. Em Belo Horizonte, São Paulo, Paris, Buenos Aires e Nova York, eles deveriam ficar atentos às janelas em seus caminhos, até que uma chamasse especialmente a atenção. Então, iriam além, descobrindo e revelando o elemento humano atrás da arquitetura. O resultado foi parecido com a ideia de espionar a casa dos outros moradores do prédio. E um jeito de relembrar que, mesmo em cidades e países diferentes, somos, afinal, todos vizinhos. ,51


CENTRO, BH

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POR DAMY COELHO FOTOS BRUNO SENNA

Perto do monumento com os versos “A minha vida é esta/subir Bahia e descer Floresta”, de Rômulo Paes, bem no cruzamento da Bahia com Álvares Cabral, uma certa janela atrai o olhar de quem, como Paes, é capaz de não andar tão apressado e reparar nas belezas do caminho. Cercado de edifícios modernos e quase em frente à belíssima Basílica de Lourdes, está o prédio de arquitetura gótica da década de 1940. Ele mais parece uma caverna. Seria possível pensar que está abandonado há muitos anos, por conta da fachada maltratada pelo tempo e pelas janelas cerradas, que lembram filmes antigos. Porém, no alto da última varanda, pode-se ver vasos com plantas e um bebedouro de beija-flor, que dão um toque de aconchego ao cenário soturno.

Quem seria a pessoa que vive por trás daquela janela estranha e que cuida com dedicação das flores na varanda, mesmo sob o ar poluído da região central da cidade? O nome dela é Lucia da Costa, lojista, mãe de três filhos e casada há 31 anos com o marido que conheceu num carnaval do Clube Labareda. Foi o olhar curioso sob a fachada do prédio que a fez querer morar ali. “Foi meu filho quem viu o prédio pela primeira vez. Estávamos procurando um apartamento no centro para alugar e ele me falou sobre esse lugar, com umas janelas bem sombrias, que ele achou interessante. Vi e me apaixonei”, lembra. E se apaixonou mesmo, pois ela não mediu esforços para morar ali. “A proprietária não queria alugar o apartamento. Disse que ele estava fechado há mais de 20 anos, mas respondi que não tinha importância. Propus fazer uma reforma, com o meu dinheiro, e ela acabou concordando”, completa. Ao entrar no apartamento, Lúcia levou um susto: “Imagina chegar num lugar que está fechado há tanto tempo? Cheio de mofo, de sujeira, a pintura desgastada... Foi um belo trabalho para deixá-lo como está”. Hoje, a pintura está intacta e as plantas espalhadas pela varanda dão o aspecto de lar que só uma família é capaz de provir. Orgulhosa, ela gosta de lembrar que o prédio faz parte do cenário da R. Da Bahia há mais de 70 anos e é tombado pelo patrimônio histórico, por isso, deve ser mantido da forma original e qualquer mudança na sua estrutura deve passar por uma autorização do governo – que tentaram, mas não conseguiram obter. Para nossa surpresa, Lúcia revela que deverá se mudar em breve, depois que os filhos terminarem a faculdade. “Não dá para viver de aluguel o tempo todo, mas sei que vou sentir falta deste lugar”. Ana Paula, a filha mais velha, que se casou em novembro do ano passado, emenda: “Morro de vontade de voltar pra cá. Essa coisa meio gótica do prédio sempre me atraiu. Acho que ainda venho pra cá com o meu marido”. Lúcia finaliza: “Este prédio tem muita história e acaba agregando um pouco da nossa história também”. Agora, quem passar perto da esquina poética da Rua da Bahia poderá olhar por aquela janela e ter certeza de que, mais que um prédio que desperta curiosidade, há ali, também, um lar. Um doce lar, diga-se de passagem.

25,


ASTORIA, QUEENS, NYC

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TEXTO E FOTOS JULIANA DORNA

Passeando pelo Bairro de Astoria, no Queens, não há como não parar para ler os adesivos de protesto colados numa casa de madeira. O que me chamou a atenção e me encheu de curiosidade foi tentar saber quem fez, de uma fachada simples, uma casa que consegue gritar e expor suas ideias por todas as janelas e por cada pedaço da parede, falando até mesmo por meio da bandeira, que fica na janela do segundo andar – nela, no lugar das estrelas que representam os 50 estados americanos, existe um símbolo de “Paz e Amor”. Reparei que quase todos que passam pela Avenida Broadway, via bem movimentada por estar perto de uma estação de trem, param para pelo menos ler uma frase. Quem olha para essa casa amarela cheia de significados pode imaginar que ali vive um homem corajoso, sem medo de censura (eu sempre achei isso). Mas, pelo contrário, nela vive Dona Rita P. Barikas, de 68 anos, uma porto-riquenha nascida em Nova York e, como ela se define, “uma mulher ativista”. Professora aposentada, vaidosa, mãe e avó, que gosta de se cuidar, de fazer almoço para a família aos domingos, de levar a neta ao balé e também de se dedicar a ir quase todas as semanas na Occupy Wall Street, não apenas em Nova York, mas também em algumas outras cidades, como em Washington D.C..

Dona Rita é ateia, não tem nada contra as religiões, mas diz que fez essa opção por ter mais a ver com ela. Antes, se esforçou para entender vários credos. Sua última tentativa foi conhecer os mórmons, mas desistiu por não concordar com algumas ideias. Como sempre, vai às ruas defender diferentes causas, fez grandes amizades com outros ativistas e, no ano passado, foi apresentada a Michael Moore, de quem é uma grande admiradora. Dona Rita já perdeu as contas de quantos cartazes de protesto fez – um melhor e mais criativo do que o outro. Fotografou muitos movimentos sociais (??) e também foi presa em ação, em 2009, quando reinvidicava, junto a um grupo de 15 pessoas, pelo sistema de saúde público, o Medicare. Dona Rita ficou presa por 32 horas com outras 13 mulheres na mesma cela, dormiu no chão, sem coberta, passou frio, pois era inverno na cidade, saiu nos jornais e em alguns canais de televisão. “Situação difícil”, relembra, falando com tom de voz de uma pessoa sem arrependimento nenhum e nem medo de nada. O desejo e a luta dessa senhora é por um mundo melhor, com mais igualdade, educação, saúde e respeito. Enquanto esse dia não chega, ela diz que não vai se calar. Apesar de não ter votado no atual presidente americano, Dona Rita espera que Barack Obama seja reeleito. “Um republicano outra vez na presidência significaria mais guerra, o mundo precisa de paz.” Paz e amor, como na bandeira no segundo andar da casa amarela da Broadway.

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MONTMARTRE, PARIS

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TEXTO E FOTOS ANA CAROLINA CASTILHO

Sábado a tarde, enquanto caminhava pelo Bairro de Montmartre, perto da Basílica Sacre Coeur, em Paris, entre centenas de turistas, barraquinhas de crepes e vendedores ambulantes de réplicas de óculos e bolsas de grife, uma janela não passou despercebida — não pela janela em si, mas pela pintura ao seu redor, que simulava cortinas vermelhas como as de um palco, e incluía as máscaras da comédia e da tragédia, uma de cada lado. Abaixo da janela existe uma loja de roupas femininas, onde entrei para demonstrar minha curiosidade pelo morador do apartamento acima. A vendedora, bem parisiense, não me deu muita atenção e disse não poder me ajudar. Parti então para o caixa, onde outra moça, aparentemente menos antipática, estava sentada, olhando o movimento da loja. — Excuse-moi, você saberia me informar quem é o morador do apartamente acima? Sou jornalista e gostaria de fazer uma entrevista com ele, perguntei. Segundo ela, o apartamento é um pequeno stúdio, e normalmente abriga estudantes. Por sorte ela tinha o telefone da pessoa, que se chamava Miguel Gomez. Pelo nome, já deduzi que não se tratava de um francês. Brasileiro, será? Espanhól? Liguei. Expliquei. Ele não quis me receber dentro do studio, então marcamos em um bistrô, lá no bairro mesmo. Miguel é venezuelano. Mais precisamente de Caracas, a capital. Ele veio a Paris para estudar francês e depois de 1 ano e 5 meses na cidade, já está fluente na língua. Com 26 anos, Miguel já viveu muitas experiências fora de seu país e a última foi nada menos que um trabalho voluntário no Quênia. Ele ajudou na construção de um hospital público lá. Fui logo perguntando sobre a pintura na parede em volta da janela. — Não sei, já estava aí. Respondeu.

Não era a resposta que eu gostaria de ouvir, mas era a resposta que eu esperava. Difícil um estudante mandar fazer aquela pintura na parede de seu pequeno studio. Porém, Miguel explicou que a pintura foi um fator importante na escolha do apartamento. “Também sou ator, e logo que a vi, me apaixonei. Não pude alugar outro apartamento que não fosse esse”. Miguel foi parar em Paris por achar a cidade cheia de história e adorar a língua francesa. Aliás, ele gosta de idiomas e disse estar louco para aprender português, até se arrisou a cantar alguns trechos de músicas de Caetano Veloso e João Gilberto, de quem é muito fã. E cantou très bien, por sinal. Segundo ele, a vida em Paris não é fácil. “A cidade é cara, as pessoas são completamente diferentes dos latinoamericanos e mais difícil ainda é viver sem o pai e mãe, para nos ajudar quando precisamos. Mas já me acostumei e se depender de mim, continuo na Europa e não volto para meu país”. Por enquanto, ele vive do dinheiro dos pais, mas está à procura de seu primeiro emprego na França. “Quero alguma coisa ligada à economia, mas conseguir trabalho sendo estrangeiro é bem complicado.” Para Miguel, a janela chama a atenção, mas ele, ao contrário da pintura, é bem discreto e simples. Como resumiu: “Nos palcos eu sou outra pessoa. Na vida real, gosto de ser discreto.”

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CONSTITUCIÓN, BUENOS AIRES

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POR MAÍRA VASCONCELOS FOTOS RENZO DE PELLEGRIN

A janela do primeiro andar do edifício do século XIX, com vistas à Rua Santigo del Estero, no bairro portenho de Constitución, exibe delicadas gretas ao estilo francês, onde impera uma fortaleza de luta pelos diretos humanos. O visual da janela guardiã da militante e transexual argentina Valeria Ramirez, de 55 anos, muda segundo a disponibilidade de distribuição gratuita de preservativos. Se estiver pendurada a bandeira da Fundação Buenos Aires Sida (Síndrome de Imunodeficiência Adquirida — ou mais comum no Brasil, AIDS), a campainha não para de tocar. O código já é conhecido entre o público-alvo da instituição, os “transexuais e as mulheres em situação de prostituição”, ressaltou Ramirez, que mora na Fundação desde 2005. Com bravura, Valeria contou ter sido detida duas vezes, no período da ditadura militar argentina (1976-1983). Em seguida, foi sequestrada pelos milicos e levada ao centro clandestino de detenção e extermínio, o “Pozo de Banfield”. “Fui violada na prisão”, exclamou Ramirez, que reclamaria seus direitos 35 anos depois. “Coloquei silicone! Essa era nossa camisa quando saíamos ao espaço público. Fui detida por querer ser Valeria e não por me prostituir”, afirma. Em janeiro de 2011, por meio de uma declaração jurada, na Secretaria de Direitos Humanos, ela tornaria público o fato e denunciaria os abusos sofridos nos anos duros da ditadura militar argentina — uma das mais sangrentas da América Latina, que deixou mais de 30 mil mortos e desaparecidos. “Éramos mais reservados e mais discriminados. Há 35 anos, não poderia estar na rua, me expulsaram da minha própria casa”, lembra. O que encorajou Valeria foi o ambiente político vivido na Argentina, recém-saída da crise financeira e política de 2001. As leis para condenação dos crimes de lesa humanidade ocorridos durante a ditadura militar foram postas em vigência nos governos de Néstor Kirchner

(2003-2007), com continuidade no primeiro mandato da atual presidente Cristina Fernández (2008-2011). “Foi muito difícil. Não queria abrir o baú. Mas Néstor, Cristina e também a aprovação de leis, como a do Matrimônio Igualitário, me deram a segurança necessária”, declarou. Ela disse representar um enorme avanço o fato de seu testemunho ter sido registrado com o nome de gênero, Valeria Ramirez. Ela enfrentará, ainda, outra pedreira. O julgamento dos casos de tortura, violação e morte ocorridos no “Pozo de Banfield” está marcado para este ano. “Quero testemunhar e quero estar preparada”, afirmou Valeria, que destacou o tratamento psicológico recebido no Centro de Assistência às Vítimas de Violações dos Direitos Humanos. “Os gays eram expulsos dos cinemas pornôs, das estações de metrô (onde se prostituíam) e não se falava dessas detenções. Ninguém falava dos abusos sofridos pelos transexuais e homossexuais.” Seu espírito de militante social passou a ser algo consciente, após a participação na Fundação Buenos Aires Sida — que distribui cerca de 3,5 mil preservativos, por mês — a partir de 1999. “Nunca militei em nenhum partido. Mas na Fundação eu saberia: sou uma militante”, diz a orgulhosa Valeria Ramirez. 31,


Centro Velho, S達o Paulo

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POR Bruno Mateus FOTOS Bruno Senna

É da janela do sétimo andar de um prédio de 1926, do arquiteto Ramos de Azevedo, que o fotógrafo, músico e maquiador Cisco Vasques, de 31 anos, já viu muita coisa. “De tudo, suicídio da ponte, helicóptero parado bem em frente à minha janela, tempestade de raio, o que tu imaginar tem aqui”, diz o gaúcho, que vive em Sampa há três anos. Morando há dois nesse endereço, Cisco procurava um lugar — “Sempre tive megalugares, tipo a Factory do Andy Warhol” — para concentrar seu trabalho e ser um espaço de encontro entre artistas. E foi no Centro Velho da capital paulista que ele encontrou. “Já vim com o tesão de morar nessa arquitetura romântica.” No amplo apartamento, Cisco faz do espaço seu estúdio de fotografia, escritório, camarim, ateliê e estúdio de música, onde ensaia e grava com sua banda de rock, a Vaudeville. Ele, fotógrafo que é, se diz um “ratinho de locação”. “Adoro lugar decadente, estou sempre de olho nos muquifos, então o Centro Velho era uma mina”, diz. A cúpula do prédio lhe chamou a atenção e, depois de conversar com o dono, Cisco fechou negócio e foi o primeiro morador após o apartamento ficar cinco anos com as portas fechadas. O caos encanta o gaúcho. Ele acredita que isso é a vida real — a mistura de um espaço para sua criação artística, a realidade romântica da arquitetura e a cidade fervendo lá embaixo. “A gente está no fedor, aqui passa limusine e passa mendigo morrendo ensanguentado. É matéria-prima real. É uma realidade fantástica, linda, anos 1920.” A região só fica movimentada durante o dia — é lá que está o centro financeiro da América Latina, com a Bolsa de Valores de São Paulo. De madrugada, o sossego toma conta do Centro Velho. “É uma paz, ninguém mora aqui. Só tem mendigos e policiais, e agora tem a gente, artistas.” Cisco mora sozinho, e quem pensa que festas e loucuras noturnas invadem o apartamento constantemente está equivocado. O lugar é mesmo para produzir e servir de encontro entre artistas. “Às vezes tem 70 pessoas aqui, mas cada um produzindo alguma coisa. Aqui é outro tempo, outra luz. Lá fora é meio-dia, mas aqui ainda é 10h; lá tem o sol de rachar, mas aqui está ameno, com os filtros desses vitrais. Aqui eu produzo, moro, as pessoas me encontram aqui. É o meu refúgio, é o meu próprio mundo.”

E é da janela, de onde já viu tanta coisa, que ele está fitando um horizonte que desperta interesse em uns e receio em outros: “Daqui te aponto os prédios que estão sendo ocupados por artistas. E é um bairro abandonado, onde os paulistas têm medo de passar. Porque tem mendigo, eles acham que tem assalto. A gente [artistas] vê um romantismo aqui”. Cisco parece ter achado o lugar perfeito para seu estilo de vida. Pelo menos por ora, não tem planos, não sabe se fica por muito tempo. Mas, enquanto a coisa estiver borbulhando, é lá que ele estará. Produzindo, criando e olhando o mundo do sétimo andar. “É contemplativo: a janela aberta, o vento, a tempestade vindo. É a minha TV, é a vida ao vivo, fantástica. Não é sufocante como muita gente acha que é São Paulo.” 33,


BRUNO SENNA

RAGGA NIGHT RUN ,etapa oceania

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Com o conceito “espírito olímpico”, circuito Ragga Night Run terá quatro etapas este ano. A próxima rola em abril, no Belvedere

PERNAS PRA QUE TE QUERO FOTOS ANA SLIKA, BRUNO SENNA E CARLOS HAUCK

Dois mil e doze é ano de Jogos Olímpicos, que serão realizados em junho, em Londres. Tempo de celebrar a competição, de reunir os melhores atletas do mundo, que buscam a glória do lugar mais alto do pódio, e de reafirmar, na vitória ou na derrota, a importância de fazer parte do momento mais importante e nobre do esporte. Por isso, a Ragga Night Run chega com uma novidade neste ano: com o conceito “espírito olímpico”, o circuito traz quatro etapas, iniciadas em fevereiro, cada uma representando um continente — sendo que a África estará presente em todas, por meio de um pelotão de elite de corredores. A primeira, em fevereiro, teve a Oceania como bandeira e a Lagoa dos Ingleses e seu pôr do sol como cenário para os dois mil atletas que participaram da corrida. Por ali, além das pessoas concentradas em bater seu próprio tempo, outras estavam só pela festa, pela diversão. Saindo das pistas e entrando nas ondas do rádio, a Guarani FM preparou um set exclusivo que irá ao ar ao vivo na hora da corrida, com músicas dos continentes de cada etapa. O Clube A, clube dos assinantes do Estado de Minas, também preparou algumas surpresas para o circuito 2012 da Ragga Night Run. 35,


CARLOS HAUCK

FOTOS: BRUNO SENNA


CARLOS HAUCK


,38 Fotos: carlos hauck


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ANA SLIKA

ANA SLIKA ANA SLIKA

BRUNO SENNA


BRUNO SENNA Fotos: carlos hauck

ANA SLIKA

PRÓXIMA PROVA

BRUNO SENNA

Tendo como tema a Ásia, a próxima etapa será no sábado, 14 de abril, com largada na Praça Dr. Íris Valadares, no Belvedere. As opções de percurso são as mesmas — 5km e 10km nas categorias feminino e masculino. As inscrições já podem ser feitas pelo site ragganightrun.com.br. É melhor correr para não ficar para trás.

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ESTILO

MANU ROMANO POR LUCAS MACHADO FOTOS CARLOS HAUCK

Manu Romano entrou na faculdade de arquitetura aos 18 anos. Formou-se, fez duas pós-graduações, uma em moda e outra em história e cultura afro-brasileira. Em 2009, mudou-se para Barcelona, onde fez mestrado em moda, na Universitat Elisava Pompeu Fabra. “Desde cedo, meu pai nunca me deu muito dinheiro. Aos 12 anos ganhei da minha mãe um alicate e alguns fios. Passei a fazer acessórios e vender no colégio. Com 13, já ganhava cem reais por dia”, lembra. Do trabalho final de mestrado, surgiu a marca Sugar Rush: Kitsch and Bizarre, que ela administra com duas sócias: a catalã Laura Torroba e a costa-riquenha Caro Rivera. “‘Nascemos doces, a moda nos fez bizarras’ é o lema da marca. Já fizemos vários editoriais e capas de discos, como a da cantora de hip hop espanhola Mala Rodrigues”, diz. Manu adora Salvador, música cubana, já foi chef de cozinha — uma das coisas que mais gosta de fazer é chamar os amigos para um jantar regado a jogos bem divertidos. É trapezista, e o seu livro predileto é a Bíblia. Entre o Brasil e a Espanha, Manu fez duas coleções de quase 500 peças em quatro meses para a marca de acessórios Mary Design. Agora, encara mais dois desafios: fazer a coleção da grife Lita Raies e trabalhar na sua nova marca, a Otra Cosa Mariposa, que, na Costa Rica, é uma expressão que significa “deixa acontecer”. “Se acreditamos em anjos, é porque realmente eles existem”, finaliza. < Kit sobrevivência >

< Manu usa > vestido Marisa colar e Anel Otra Cosa Mariposa

Conjunto de óculos HM

Caixa de lápis Faber-Castell

Vaca Voadora Magic Key Toys

Coração de cerâmica Presente do amigo chef de cozinha Marco Paulo Peluso

Tênis Mad Rats

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ON THE ROAD ,cabo polônio

Civilização perdida. Nada de cidade. Cabo Polônio é uma utopia que tangencia o mar

CABO A RABO

Indícios e futuros resquícios da civilização desconectada que está surgindo no leste do Uruguai

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TEXTO E FOTOS BERNARDO BIAGIONI

Devagar, Seu Luiz! A carroceria do caminhão vai dançando trôpega na areia fofa do matagal e todo mundo está de olhos bem abertos, atentos, para ver o que é que pode acontecer naquele buraco que avistamos à frente. Luiz não perdoa os anseios das crianças e adultos, mas engrossa e alimenta a adrenalina fria que desce pelas espinhas das duas dúzias de jovens argentinos que surfam no teto da locomoção agora. “Veja lá o mar”, alguém grita. E parece mesmo o Atlântico apontando azulado no horizonte — seria a visão do paraíso não fossem aqueles milhões de leões famintos espalhados pelas ondas que quebram na ponta do oceano. Mas os leões são do bem, dizem os guias. Apesar da aparência selvagem e do olhar perigoso, não existem indícios de que eles já tenham entrado em confronto com os humanos que se arriscam nessa aventura. Luiz logo emparelha o caminhão com o mar e vamos seguindo tangenciado a linha do horizonte que some nas nuvens azuis do céu. Para onde estamos indo?, me pergunto. O sol queima, arde e fere, e entre os feixes de luz vai se formando a silhueta de uma cidade. Cabo Polônio à vista. Começa a parecer verdade a história da nova civilização que está surgindo na ponta leste do Uruguai. ,SONHO (SUL) AMERICANO

Antes de qualquer coisa, é preciso entender que existe todo um misticismo social, político e econômico sendo criado em torno da América Latina. Diante da atual crise internacional — da queda da Grécia à instabilidade norte-americana —, o Novo Mundo, lá do período colonial, voltou a ser tratado como tal pelos velhos exploradores que vivem para lá do Oceano Atlântico. Mas, no lugar de um pensamento exploratório e perverso, é dominante, agora, a promessa de um certo sonho (sul) americano de um enriquecimento emocional e financeiro baseado na convivência harmoniosa com os países em desenvolvimento da América. É mais ou menos o espírito que temos aqui, conosco, a Terra Prometida que pode salvar os velhos e engravatados do Velho Continente da onda alarmista que corre pelas ruas pou-

co iluminadas da Itália, Inglaterra e França. Os impérios estão caindo, um a um, e conforme sugeria a Bíblia, ou Albert Hoffman, só escaparão os homens que souberem se ater às condolências da natureza. Esse Hoffman, criador do LSD, disse que só acreditava na arte que busca retratar a natureza. O resto, computadorizado e mecanizado, mergulha o homem na eterna desventura de não ser feliz. Algumas pessoas estão correndo para as montanhas há algum tempo. Outras, contudo, começaram a carregar alguns tijolos nas costas para poder sentir no próprio corpo a essência que pode ser viver. Comunidades alternativas, aldeias hippies computadorizadas, redes cibernéticas interconectadas, acampamentos em praças, pontes, ocupações indeferidas espalhadas pelo globo, casas de tijolo e areia... Um emaranhado de caminhos e possibilidades que se espelham e se multiplicam como ideias de uma nova revolução. “Diga não ao pueblo”, está pichado na entrada de Cabo Polônio. E os gringos, de todos os cantos do mundo, não param de chegar nos caminhões pau de arara que apontam entre a vegetação primitiva. ,TOMANDO O CABO

Tão logo Luis desligou o motor, o pessoal começou a descer. O largo principal de Cabo Polônio não tem nem cimento ainda e é delimitado por poças de lama e cabaninhas hippies. Estão à venda penduricalhos e tecidos de todos os tipos; conchas, retalhos, bandeiras do Bob, sedas, mapas de terrenos que não existem mais, boinas, chapéus, óculos feitos de madeira e outros souvenirs suspeitos. Nenhum vendedor é chato, contudo. E também ninguém vem oferecer pousadas, hospedagens e quebradas para se passar a noite — até porque, passar uma noite em Cabo Polônio é uma regalia reservada para poucos. As opções são mínimas, e a maioria delas inclui habitações sem banheiro, chuveiro ou qualquer outra instalação para necessidades básicas. Os toaletes são compartilhados entre diferentes casas, hospedagens, restaurantes e acampamentos. Uma harmonia meio bizarra, mas que funciona sem nenhuma estranheza. Vamos nos enfiando pela ruela estreita que corta o largo – a avenida principal — e, no sentido contrário, vêm caminhando argentinas loiras e vermelhas, franceses de ressaca e ingleses desnorteados pelo sol. Poucos são hippies, na aparência. Todos são meio hippies, na visível desventura de colar aqui para viver algumas semanas de desprendimento total. Os dois restaurantes ao longo do caminho estão cheios de viajantes arrastados pelo calor dos dias. A comida é cara, mas dinheiro, aqui na Ter45,


ra Prometida, chove como a promessa de um novo paraíso. Ninguém sabe muito bem o que é que está acontecendo nesta ponta de cá do oceano. Porém, algumas dúzias de passantes não conseguiram ir embora nas últimas semanas. Tem aumentado o número de visitantes e, bem, quase que diariamente tem brotado novas habitações pela península. A terra não parece ter dono. Nem também o tempo, aqui tão entregue ao vento das estações. “Ficaremos enquanto for verão. No outono, partiremos”, dizem. ,TERRA PROMETIDA

É durante o verão que os sonhos costumam tomar formas. Cabo Polônio está situado numa área sujeita a grandes oscilações climáticas. O terreno é estreito e cortado pelo mar nas duas pontas. De manhã, o sol e a umidade queimam e ferem os gringos que se aventuram numa caminhada. À noite, o vento arrasta as fogueiras em centelhas desesperadas que cortam o céu como estrelas e cometas colidindo. Um sentimento de amor e medo, calor e sossego, que alimenta o recém-descoberto turismo local. Já faz alguns verões que Cabo Polônio começou a apontar no mapa, em todo caso. De uma reserva de leões marinhos, visitada, so-

bretudo, por biólogos e curiosos, o vilarejo foi se assumindo como capital de um roteiro certo para os loucos e alucinados do novo mundo. Gente em busca de fé e de tranquilidade. De silêncio e profundidade na busca espiritual por um conforto pleno. Luz. Mas uma luz que se apaga junto com o sol, às nove e pouco da noite, quando vêm os planetas e os cometas abraçarem o oceano sonolento. Na madrugada pouco se vê, mas muito se enxerga. Há aí na internet histórias de pessoas que nem conseguiram encontrar o caminho para suas hospedagens. Mas esse sentimento de estar perdido — e de não ter para onde ir — dura pouco. Porque das desconexões, acredita-se, teremos uma nova conexão no mundo. Das pessoas que se arriscam e insistem. Que exploram e se desafiam. Que vão. E que ficam. Seja em Cabo Polônio. Seja dentro de si mesmas.

Caminhos sinuosos escondem o vilarejo na ponta do Uruguai. Tem muita gente colando. E alguns loucos ficando

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O SOL QUEIMA E ENTRE OS FEIXES DE LUZ VAI SE FORMANDO A SILHUETA DE UMA CIDADE. CABO POLÔNIO À VISTA. COMEÇA A PARECER VERDADE A HISTÓRIA DA NOVA CIVILIZAÇÃO QUE ESTÁ SURGINDO NA PONTA LESTE DO URUGUAI

Os caminhões que fazem o percurso periculoso até o Cabo. O caminho é treta. Mas a chegada vale toda a treta


QUEM É RAGGA

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FOTOS ANA SLIKA e carlos hauck


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CULTURA

Mais um tijolo no muro Artista Rogério Fernandes participa de exposição da turnê The Wall, de Roger Waters, em Buenos Aires

POR Bruno Mateus

POR bruno mateus FOTOS bruno senna

The Wall, álbum do Pink Floyd lançado em novembro de 1979, invariavelmente aparece em listas de melhores discos da história do rock. Pensado e concebido por Roger Waters, o álbum torna-se épico, uma verdadeira hecatombe quando tocado em um estádio, como acontecerá na turnê de Waters que passa pela América do Sul este mês e no começo de abril. Antes de tocar no Brasil, Waters faz oito apresentações em Buenos Aires, entre os dias 7 e 18 deste mês, no estádio do River Plate, onde será montada no estacionamento

uma galeria com obras 13 artistas internacionais e Rogério Fernandes, piauiense radicado em Belo Horizonte, será um dos quatro brasileiros a participar da exposição. Para a turnê, Rogério criou um painel de 2m x 2,5m inspirado na música Mother, um dos maiores sucessos do disco. Segundo o artista, “esta música, além de ter uma melodia linda, representa o grande divisor de águas do álbum, mostrando a relação conflituosa, edipiana e dúbia com a personagem de sua mãe, o que o influenciou até a vida adulta.” Depois da capital argentina, Waters e cia. seguem com The Wall para Porto Alegre (25/3), Rio de Janeiro (29/3) e São Paulo, no dias 1º e 3 de abril.


WWW.TSHIT.COM.BR


POR AÍ

FOTOS: ANA SLIKA

POR AI

Lord Pub Aberto há seis anos, o Lord Pub faz sucesso com a fórmula tradicional: cerveja gelada e rock ‘n’ roll ao vivo (sinuca, também). A programação musical tem espaço para o repertório nacional e internacional, como o da banda Carne Nua, cover de Barão Vermelho, e a autoexplicativa AeroGuns. Rua Viçosa, 263 – São Pedro – Belo Horizonte 31 3281 4166 lordpub.com.br ,52


avaliação da casa Para encontrar os amigos

O que sai da cozinha

Quem frequenta

“O rock foi o primeiro chamariz. Depois fiz muitos amigos” quem. quando. porque Moradora do Santo Antônio, Heloisa Ribeiro, costuma ir ao Lord Pub há dois anos. “Mas parece muito mais, porque vou quase todas as noites e conheço todo mundo”, conta. Quando completou 18 anos e começou a procurar lugares bacanas para frequentar, ela não teve dúvidas quanto à casa: “O rock foi o primeiro chamariz. Depois fiz muitos amigos”. Para ela, “domingo é bom, porque abre mais cedo, e quinta tem rodada dupla”. Nesses dias, a rotina é ir à faculdade de letras da UFMG, à noite, ficar no Lord até quatro da manhã e, na manhã seguinte, ir cedo para outra faculdade, a de jornalismo, da Fumec.

Cola aí Participe da próxima cobertura fotográfica que vai rolar em abril no Circus Rock Bar! Consulte as próximas datas no revistaragga.com.br.

Uma dica para matar a fome da madrugada, segundo Heloisa, é o cone de pizza de calabresa. Para escutar, entre as bandas que se apresentam na casa, ela destaca a AeroGuns, a Nevermind e a Metallica Cover. “O rock que curto é mais pesado, tipo Pantera. Mas isso não toca na casa.” Fica a dica para um novo cover. 53,


Ragga MODELO SARA MENDES FOTOS CARLOS HAUCK TEXTO DIEGO SURIADAKIS

SARA Ainda na rua, um carro para, na porta uma fresta. O sol ardente, a pele, verão em pensamento. Desce uma moça em trajes de empresa. O expediente acabado mais cedo, a cor da tarde, e tanto vento, ansiosos em tê-la mais à vontade. Veio musicando o caminho, em tom baixinho, toda cidade, o mundo a passar, Sara a cantar. A música não vive sem ela. A menina entra em casa, a alguns passos, a janela. O ar do ambiente dança, a claridade da sala, lá fora é tão verde, bichos em seus passeios. Ela se aproxima da moldura na parede. O tom claríssimo dos olhos a mirar pequenos encantos, então estende a mão, e sonhos simples vêm pousar em seus dedos. Doce, doce é a brincadeira da luz a tocar, curvas, notas, planos, plenos contornos de Sara. Compasso da hora sobre seu corpo, como a provar de sua idade. ,54


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Em outro horizonte, dela distante, vertical, incontáveis janelas a espiar cá pra dentro, janelas de Centro. Repleto painel de tão distintas curiosidades, de sabe-se lá quais verdades. Certo é que têm agora uma outra direção. A ela voltados, incontáveis os olhares. Uns escancarados, outros encortinados, descobrindo em Sara visões perdidas há tempos. Exato é o momento, molduras se partem, cessa o som, todo é qualquer movimento. Num frame, o tempo suspenso, distâncias desfazem. Eu estou, tu estás, ela está tão perto. 57,


MODELO Sara Mendes — House Models FOTOS Carlos Hauck MAQUIAGEM E PRODUÇÃO Camila Grandinetti AGRADECIMENTOS Maria Pia Lingerie

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ChegOu O NIKeiD. O Nike que você faz. Misture. Combine.

Só na

Os modelos disponíveis para o iD são: Dunk Low e Dunk High.


CONSUMO

FOTOS: ANA SLIKA

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EU QUERO

MÊS DAS MULHERES “Uma mulher, duas mulher, três mulher, quatro mulher, cinco mulher, seis mulher, sete mulher, oito mulher...”, já cantou Neguinho da Beija-Flor. Cada uma é uma, um mundo único, com seus gostos e jeitos particulares. No mês das mulheres, queremos homenagear todas: as personagens, as divas, as lindas anônimas que passam à nossa frente e a vizinha do andar de baixo, que não sai da sua cabeça.

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ANA SLIKA

DIVULGAÇÃO

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3 1. < PERNAS AO ALTO >

DIVULGAÇÃO

Se temos fotos provocantes ao alcance de nossos olhos todos os dias — e quase o tempo todo —, devemos muito dessa beleza à desinibição das pin-ups. Desde 1940 fazendo os homens mais felizes. Os quadros são da Merci. R$ 19 (cada) lojamerci.blogspot.com (31) 3215 8090

MASCULINA

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2. < EM SÉRIE > Depois de serem reproduzidos em série por Andy Warhol, os rostos de Marilyn Monroe e Audrey Hepburn nunca mais deixaram de emprestar beleza a toda sorte de objetos, incluindo cinzeiros (R$ 22) e caixas de fósforo (R$ 5 cada). fabianovalente.com.br

3. < UMA PINTURA > “As mulheres passam batom e arrumam seus cabelos de uma certa forma, para chegar a um ideal”, o pop artista Roy Lichtenstein sabia das coisas. A bandeja da Laris é ilustrada com os traços dele. R$ 59 laris.com.br

4. < CINCO EM UMA > A Matrioshka é uma homenagem às matriarcas e um objeto que, acredita-se, traz boa sorte. Esta, do Empório Miranda, é roots: feita em madeira, pintada à mão e importada da Rússia. R$ 269 (cinco peças) (31) 3264 0788 FEMININA

5. < ME AMA NO CHÃO >

6. < SAVE THE QUEEN >

Como homenagear as mulheres sem se lembrar do grande Wando? A camiseta Meu Iaiá Meu Ioiô (nos modelos masculino e feminino), da Use Huck, celebra o maior hit do artista. E parte da renda obtida é revertida ao Retiro dos Artistas. R$ 69 usehuck.com.br

Uma placa solar permite que a miniatura da rainha Elizabeth II passe o dia inteiro dando tchauzinho de miss (a mão direita se movimenta) no local de sua preferência. Não é exatamente útil. Mas é divertido. R$ 135 Fridda (31) 3225 7510 61,


POLÍTICA

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Em Macapá, com o Rio Amazonas ao fundo: Ana Carolina Schiavon, Felipe Schuvartt, Jane Paula, Guilherme Castro (e, sentados:) Alberto Lage, Marcel Beghini e Guilhermina Abreu

A política cai na estrada Sete jovens, 25.822 quilômetros, 27 capitais brasileiras e um objetivo: inspirar a participação da faixa etária entre 18 e 24 anos na política do país 63,


POR SABRINA ABREU FOTOS Matheus machado

Era uma sexta-feira, 9 de dezembro, quando eles começaram a viagem com um voo em direção a Porto Alegre. No dia 21 do mesmo mês, entraram num ônibus, saindo de Cuiabá rumo à Chapada Diamantina e, 10 dias e quatro cidades mais tarde, quando se preparavam para ver os fogos de artifício colorirem o céu do Réveillon no Rio de Janeiro, já estavam começando a perder a noção dos dias da semana. Isso, de fato, ocorreu para a maioria deles, em algum ponto do Rio Amazonas, no qual navegaram entre Manaus e Belém por cerca de 84 horas, que deram a sensação de demorar quatro meses para passar — apesar da beleza que viram nas duas margens, ao longo de todo o trajeto. Durante 62 dias, sete jovens mineiros, com idades entre 18 e 23 anos, percorreram 25.822 quilômetros e visitaram as 27 capitais brasileiras, no projeto pioneiro Chapéu na Estrada, iniciativa do PSDB. Pelo caminho, produziram mais de 50 horas de gravação e cinco mil fotos, material que será transformado num documentário e num livro, com lançamento previsto para setembro. O objetivo é chamar a atenção para os pontos fortes e fracos do país — no que diz respeito, entre outros temas, à cultura, educação, saúde, infraestrutura, preparação das cidades-sede para a Copa do Mundo, políticas públicas para a juventude (PPJ) — e inspirar mudanças no cenário nacional catalisadas pelo engajamento dos jovens na política. “Sempre achei que os jovens não deveriam ficar alienados das questões que traçam o futuro do país. Depois de passar pelas diferentes regiões, tenho mais certeza de que nosso engajamento pode fazer a diferença”, afirma Guilhermina Abreu, de 18 anos, técnica em administração, que viajou ao lado de Alberto Lage e Ana Carolina Schiavon, também de 18, Marcel Beghini, Jane Paula e Guilherme Castro, de 20, e Felipe Souza, conhecido como Schuvartt, de 23, escolhidos num processo seletivo que começou com 512 inscritos e incluiu aulas e seminários sobre política e história do Brasil, prova e votação

pela internet. Embora tenham visitado os mais famosos cartões-postais do país, dos Lençóis Maranhenses ao Teatro Ópera de Arame, em Curitiba, não era em um e outro ponto turístico, mas no intervalo entre eles, que se constituiu o amálgama de experiências que esses jovens citam como as mais valiosas, conversando com a população local, observando a vida das cidades. “Mais do que passar tempo na praia, como a maioria dos viajantes faz, preferimos os mercados municipais de cada destino. Foi lá que encontrarmos a variedade de depoimentos que estávamos procurando”, lembra Jane Paula, estudante de letras. “Com a reação da população às nossas perguntas, fomos percebendo o sentimento delas em relação às capitais”, concorda o publicitário Schuvartt, que descobriu, ao longo da viagem, certa vocação de cronista. Nas 27 paradas, cada um dos participantes era responsável por um texto voltado para o mesmo tema. Por exemplo: Guilhermina abordava as PPJs, Jane, a cultura, e ele era o responsável por fazer o perfil de um cidadão de cada localidade. “Não foi um passeio, foi pesquisa”, sintetiza Alberto, estudante de direito, apelidado de “Pac man”, por investigar, na viagem, a quantas anda o Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) Brasil afora. Tanto para ele quanto para o estudante de administração pública Guilherme Castro, responsável por avaliar os preparativos para a Copa do Mundo de 2014, os canteiros de obras eram os mais esperados pontos de visitação.

Embora tenham visitado os mais famosos cartõespostais do país, não foi num e outro ponto turístico, mas no intervalo entre eles, que se constituiu o amálgama de experiências que eles citam como as mais valiosas ,64


Em Rio Branco, a constatação de que o Acre existe. Em São Luís, pausa para o refrigerante típico. E pose para foto, no farol da capital do Amapá

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A multiplicação dos chapeleiros em Brasília, Campo Grande e Goiânia

Sobre isso, ele reparou que as obras dos estádios em Porto Alegre e Curitiba estão atrasadas, enquanto na capital do Amazonas, a construção segue dentro do prazo. “Mas, em Manaus, que não tem tradição no futebol — ao contrário de Belém, que perdeu a chance de ser a sede da Região Norte —, a Arena Pantanal pode virar um elefante branco. É preciso planejamento para que a população seja beneficiada com a obra, inclusive, depois que o Mundial acabar.” É esse tipo de observação e comentário — aliados aos depoimentos da população local e entrevistas com políticos de diferentes legendas e de cada cidade — que devem fazer do vídeo e do livro em fase de produção “um documento importante para entender um pouco melhor o país”, acredita Gabriel Azevedo, subsecretário da Juventude do Governo de Minas e um dos criadores da Turma do Chapéu — grupo ligado ao PSDB. Apesar de idealizado e financiado pelos tucanos, ser formalmente ligado ao partido não era pré-requisito para fazer a inscrição. “A meta não é aumentar o número de filiações, mas despertar nas pessoas entre 18 e 24 anos o desejo de entender mais sobre política. E de interferir nela”, defende o subsecretário — ele mesmo apenas um ano acima dessa faixa etária. “Impossível não querer mudar a realidade quando vemos as pessoas vivendo em meio ao esgoto a céu aberto em cidades como Maceió e Macapá”, pontua Ana Carolina, também estudante de administração pública. “Mas, dentro do grupo, a forma como queremos interferir politicamente varia”, completa. O estudante de jornalismo Marcel — filiado ao PSDB —, ambiciona um cargo eletivo: “Possivelmente, no Legislativo, que desempenha funções importantes, infelizmente, desconhecidas de grande parte da população”. Alberto — o outro integrante filiado ao partido — e Jane também desejam se candidatar. Para ela, o processo seletivo e a viagem serviram para mudar a opinião em relação às legendas. “Sempre fui envolvida em questões políticas, especialmente nas relativas aos direitos das mulheres, mas percebi que um partido pode ser o instrumento de transformação mais rápida para a sociedade”, compara.


Até a relaxada conversa de fim de tarde, observando botos perto do casco do navio, conseguia escorregar e admitir algum assunto político — com opiniões pró ou contra as teorias de Hobbes ou o blog do jornalista Paulo Henrique Amorim

,Michel Teló e latino

Entrevistas com os moradores de cada cidade: mais importantes que visitar os pontos turísticos

SABRINA ABREU

Sérios demais? Nem tanto. A jornada incluiu, como se espera de um bando de jovens juntos ao longo de dois meses, alguma dose de romance — que preferiu privacidade a sair numa matéria de revista — e uma ou outra briga — “só sendo político para driblar as diferenças”, como afirma Guilherme. Incluiu também shows de Latino, no Rio, e Michel Teló, em São Luís: “A gente quase não se reconhece nessas situações”, conta, rindo, Marcel, que comemorou seu aniversário de 20 anos num videokê em Belém. Por falar em música, a playlist da viagem (disponível no site do projeto, assim como os textos feitos na estrada) dá uma pista do quão diversificado é o grupo, que ouviu uma mistura de Chico Buarque, The Strokes, Dire Straits, Los Hermanos e Calypso. O perfil heterogêneo dos participantes — Ana Carolina é evangélica e Marcel se declara agnóstico, ele conhece 19 países, enquanto Jane nunca viajou ao exterior — parece ter sido especialmente talhado para a missão de inspirar outros jovens a darem atenção à política. “Nossas semelhanças sobressaíram às diferenças”, esclarece Ana Carolina. “Gostar de política e encontrar outros jovens com os quais falar sobre isso foi a principal causa de participar da viagem. Até mesmo mais importante do que a chance de conhecer todas as capitais, que era um sonho.” Esta jornalista concorda. Ao acompanhar o grupo nas últimas paradas do caminho (Manaus, Belém e Macapá), impossível não perceber como até a relaxada conversa de fim de tarde, observando botos perto do casco do navio, conseguia escorregar e admitir algum assunto político — com opiniões pró ou contra as teorias de Hobbes ou o blog do jornalista Paulo Henrique Amorim. “Saímos de BH para conhecer o país, mas acabamos conhecendo a nós mesmos”, filosofa Guilhermina. E Jane completa: “Mas o Brasil ainda não se conhece. As regiões Norte e Nordeste são carentes de atenção. Se forem incluídas na pauta, têm muito a oferecer ao resto do país. Vamos tentar jogar alguma luz sobre essa questão. Se não fizermos isso, quem vai fazer?”

ACESSE turmadochapeu.com.br/chapeu-na-estrada Viagem feita por terra, céu e água: no trecho entre Manaus e Belém, foram 3 dias dentro de um navio


ARQUIVO PESSOAL

JANELA

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Perfil do diamantinense que, depois de trabalhar na mineração e no Ferro Velho, se dedicou a passar a vida olhando observando quem passava pela Rua do Amparo

POR LARA DIAS FOTOS JORGE VASCONCELOS ILUSTRAÇÃO MAURILIO MAIA

Escrevo de Diamantina, Minas Gerais. Vim à procura de um homem que só me vem à memória apoiado em uma janela de madeira gasta, de um verde escuro bonito. Nenhuma outra informação. Perguntei para um sujeito sentado na calçada, e ele se lembrou sem dificuldade: “Esse é o Caio Ferro Velho. Já faleceu. Agora quem fica na janela é a mulher dele”. A notícia me atingiu com força, atravessando a minha ansiedade, sem dó, depois de trezentos e poucos quilômetros de viagem. Mas eu sempre soube que ninguém retorna de um destino com as malas menos cheias do que quando partiu. Fui até a casa onde, de acordo com quem encontrei pelas ruas e becos, o homem havia morado. Bati na porta duas vezes e, antes da terceira, uma senhora abriu e me mandou entrar, com um sorriso largo no rosto. Ela não sabia quem eu era e nem de onde eu vinha. Mas acho que ter batido à sua porta já fazia de mim uma pessoa bem-vinda. Entramos por um corredor estreito e sentamos no mesmo sofá de onde eu vi o homem tantas vezes, apoiando os cotovelos no peitoral da janela. Dona Stael Paula Rego de Oliveira foi casada por 46 anos com Caio de Oliveira Rocha, o Caio Ferro Velho. Ou, o homem da janela. Hoje, senta-se ali e não esconde no olhar a saudade do marido: “Ele foi um homem muito ca-

rinhoso. E muito atento. Aquele era o retrato preferido dele” [e aponta para a parede, onde uma pintura a óleo exibe as feições elegantes de um Caio de trinta e poucos anos]. A Rua do Amparo, onde fica a casa, é tipicamente diamantinense: uma ladeira de pedras largas e mal dispostas, que entortam o andar de qualquer dama equilibrista. Qualquer um se lembra do homem sempre debruçado no parapeito, usando um chapéu na cabeça e quase sempre com um cigarro escorado entre os dedos. Caio passava uma tarde inteira fazendo social com os amigos que, religiosamente, paravam em frente à casa para ouvir alguma piada ou a última notícia (sempre bem-informado e atento ao rádio de pilha, ele sabia contar o que acontecia por cada canto do mundo). Já os jovens paravam ali em busca de algum conselho. Nessa história, porém, se engana quem pensa que Caio viveu assim: vendo a vida passar pelo vão de sua janela e observando a calmaria interiorana. Depois de trabalhar duro na mineração e viajar o país transportando ferro velho (por isso o apelido que o deixou popular na cidade), ele se aposentou. Mas “O 69,


Depois de 46 anos de casamento, a viúva Stael ocupou o lugar do marido

ZÉ CHICLETES

VIAJAMOS DEMAIS POR ESSAS ESTRADAS TRANSPORTANDO FERRO VELHO. E MUITAS VEZES DORMIMOS NO CAMINHÃO MESMO. QUANDO EU QUERIA FECHAR A JANELA DE NOITE, ELE FALAVA COMIGO: “PRA QUE ISSO, ZÉ? É SÓ FECHAR OS OLHINHOS QUE FICA TUDO ESCURO. DEIXA ESSA JANELA ABERTA AÍ.”

DONA NINA,

NO INTERIOR TEM DISSO MESMO. MAS COM ELE ERA UMA COISA MAIS FORTE. SE A GENTE NÃO PASSASSE ELE FICAVA SENTIDO. NO OUTRO DIA FALAVA BRAVO: “VOCÊ NÃO PASSOU AQUI ONTEM, NÉ, NINA?”

IOLANDA PIMENTA,

CAIO ERA SIMPLES, BRINCALHÃO, UMA PESSOA MARAVILHOSA. E TINHA AQUELA ROTINA DA ROÇA. ACORDAVA QUATRO DA MANHÃ, ALMOÇAVA ÀS ONZE E DORMIA CEDO. SE EU PASSASSE MAIS TARDE E JANELA ESTIVESSE FECHADA, SABIA QUE ELE JÁ TINHA IDO DORMIR.

LALÁ

ELE PERDEU A VISÃO, NA MESMA ÉPOCA EM QUE COMEÇARAM A USAR MUITO O CELULAR, ENTÃO ELE OUVIA AS PESSOAS PASSANDO E FALAVA ASSIM: “AGORA TODO MUNDO TEM QUE ESCUTAR A CONVERSA DOS OUTROS? AS MENINAS PASSAM AQUI GRITANDO: ‘OH MÃE, TÔ PRECISANDO DE DINHEIRO!’” — E ACHAVA A MAIOR GRAÇA DAQUILO.

(JOSÉ FERNANDES)

78 ANOS, MORADORA DA RUA DO AMPARO HÁ 44

QUEM FOI CAIO FERRO VELHO, VISTO DO OUTRO LADO DA JANELA Depoimentos de quem passava pela Rua do Amparo e nunca se esqueceu do retrato de um homem de sorrisos e notícias ,70

VIZINHA DE RUA

(GERALDA DA CONCEIÇÃO, FILHA)


CAIO PASSAVA UMA TARDE INTEIRA FAZENDO SOCIAL COM OS AMIGOS QUE PARAVAM, RELIGIOSAMENTE, EM FRENTE A CASA, PARA OUVIR ALGUMA PIADA, OU A ÚLTIMA NOTÍCIA

Rei da Sucata”, como também fora lembrado por um de seus grandes amigos, foi, na verdade, um homem alegre e muito festeiro. Infelizmente, o cigarro, seu ingrato companheiro, lhe trouxe problemas de saúde que se complicaram, obrigando-o a amputar uma perna. Ainda assim, ele seguiu distribuindo “bom dias” e sorrisos para quem passasse ali. Sua filha, Lalá, tem certeza: “A janela foi uma terapia pra ele. Foi isso o que não o levou a ter depressão. Ficar ali era uma forma de alívio, de ter contato com os amigos, de rir. Graças ao meu pai, janela significa, para mim, vida”, conta. Andando por algum beco da cidade, pensei nos ensinamentos deixados por [José] Saramago, sobre a janela da alma: os olhos. Pensei em como, por vezes, o mundo parece viver de uma cegueira generalizada, como se fôssemos tão cegos a ponto de também não sabermos ouvir. E a última informação que tive sobre Caio é de que ele viveu os últimos quatro ou cinco anos de sua vida sem enxergar quase nada. Muitos nem tinham conhecimento do fato. Outros até duvidam, alegando que ele

09 DE MARÇO NOS CINEMAS

sempre os cumprimentara pelo nome e que, por isso, não era possível ele estar cego. Pois bem, do mesmo sorriso, da mesma janela, viveu um homem capaz de observar o silêncio e de enxergar a beleza com ouvidos atentos.

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COLUNA

LIVRARADA

Diários de Andy Warhol (L&PM Pocket)

Publicado originalmente em 1989, Diários de Andy Warhol ganhou versão pocket e, desta vez, chega às livrarias em dois volumes — de 1976 a 1981 e de 1982 a 1987. Escritos no auge da fama e do sucesso, os relatos quase diários de Warhol, importantes para se entender as décadas finais do século 20, registram dias, noites, madrugadas e grandes eventos. Ali estão nomes da moda, do rock ‘n’ roll, do punk, da literatura, da imprensa, do teatro; drogados famosos, milionários e lindas modelos. Marcados pela sinceridade, Warhol narra encontros com Jim Morrison, John Lennon e Yoko, Calvin Klein, Martin Scorsese, Roy Lichtenstein e Tom Wolfe, entre outros grandes. Além de conhecer um pouco do glamour e das frivolidades do dia a dia de um artista que continua, mesmo 25 anos após sua morte, influenciando a produção cultural das novas gerações, Diários de Andy Warhol se torna referência para compreender a efervescência nova-iorquina daqueles tempos.

POR BRUNO MATEUS

O diário de Che na Bolívia (Editora Record)

Anne Frank – O outro lado do diário (Editora Best Seller)

As anotações durante 11 meses — desde que chegou à Bolívia, em novembro de 1966, a outubro de 1967, quando foi capturado e assassinado — dão o tom da rotina de Ernesto Che Guevara nas serras bolivianas e revelam o homem e o guerrilheiro por detrás do mito. Com introdução original de Fidel Castro, o livro é fundamental para entender o contexto político e histórico da América Latina e de um dos homens mais controversos do século 20.

A história de Anne Frank, adolescentesímbolo da resistência ao nazismo, ganha uma outra perspectiva com O outro lado do diário, visto do ponto de vista da holandesa Miep Gies, que ajudou a família Frank a se esconder dos nazistas no sótão de seu prédio, em Amsterdã, onde ficaram por dois anos. Descoberta pela jornalista Alison Leslie Gold, Miep dá um testemunho de coragem e solidariedade, mesmo em tempos tão cinzas da história.

divulgação

imagens: DIVULGAÇÃO

#diários_do_século_20

PRATA CASA

da

por Lucas Buzatti

CÂMERA Olha isto: cameracamera.net Saia da garagem! Convença-nos de que vale a pena gastar papel e tinta com sua banda. Envie um e-mail para redacaoragga.mg@diariosassociados.com.br com fotos, músicas em MP3 e a sua história.

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Se engana quem pensa que banda independente, para dar certo, tem que ter aquele aspecto de garagem. Grupos como o Câmera provam o contrário — é possível criar um som elaborado que não soe pretensioso. Formada em 2010, a banda faz um indie rock que transita, sem tropeços, entre a melodia e o experimentalismo. Para chegar à sonoridade desejada, foi trilhado um caminho curioso. “Compomos e gravamos o primeiro EP, Invisible houses, ainda sem a formação com-

pleta. Só depois fomos pensar em shows”, explica o baixista Bruno Faleiro. O Câmera conta, ainda, com André Travassos (vocal, guitarra e violão), Matheus Fleming (guitarra), Gustavo Simoni (bateria) e o guitarrista de apoio Henrique Cunha. Em 2011, veio o compacto Not tourist, iniciando uma intensa agenda de shows. Prova da efervescência cultural de BH, se depender do Câmera — que planeja um disco cheio para 2012 —, as lentes continuarão apontadas para a capital mineira por um bom tempo.


COLUNA

A MÚSICA E O TEMA ESPERANDO NA JANELA

POR KIKO FERREIRA

divulgação

zé paulo cardeal/tv globo

Roberto Carlos e Adriana Calcanhotto (abaixo): alguma coisa eles viram pela janela e transformaram em música

Não é por acaso que o sistema que abriu as portas do mundo para o resto do mundo se chama... Windows. Ícone de contato com o exterior, a janela tem um tanto de segurança, um tanto de risco. A tarde está tão fria, chove lá fora. E aqui, faz tanto frio. De Lobão a Tito Madi, de Adriana Calcanhotto a Beatles. A janela é um passaporte com salvo-conduto, com direito ao delírio, ao espanto, ao conforto e ao espírito da observação anônima que ganhou nome e endereço com Twitter, Facebook e as mídias que servem de baliza para uma sociedade virtual, mais que real. E o que é a TV, a tela do computador, além de janelas que transformam os outros em pessoas de interesse. E nós mesmos em tema de curiosidade e intriga. Nas próximas linhas, a janela pelas lentes da música popular. As lentes do Clube da Esquina, do rock de Brasília, do rei Roberto, da Beatlemania, do Cogumelo Plutão e de outros poéticos cronistas do misto de vidro e moldura. Sem esquecer de Chico Buarque, é claro, que tem janelas amplas para todos os temas e bandas. “Na janela lateral do quarto de dormir, vejo uma igreja, um sinal de glória. Vejo um muro branco e um voo pássaro. Vejo uma grade, um velho sinal.” “Estava à toa na vida, o meu amor me chamou, pra ver a banda passar, cantando coisas de amor.” “Toda gente homenageia Januária na janela. Até o mar faz maré cheia pra chegar mais perto dela. O pessoal desce na areia e batuca por aquela que, malvada, se penteia e não escuta quem apela. Quem madruga sempre encontra Januária na janela. Mesmo o sol quando desponta, logo aponta os lados dela. Ela faz que não dá conta de sua graça tão singela. O pessoal se desaponta vai pro mar, levanta vela.” “Eu ando pelo mundo divertindo gente, chorando ao telefone. E vendo doer a fome nos

meninos que têm fome. Pela janela do quarto, pela janela do carro, pela tela, pela janela. Quem é ela? Quem é ela? Eu vejo tudo enquadrado. Remoto controle.” “Quando o sol bater na janela do teu quarto, lembra e vê que o caminho é um só. Por que esperar, se podemos começar tudo de novo? Agora mesmo. A humanidade é desumana, mas ainda temos chance. O sol nasce pra todos, só não sabe quem não quer.” “Você é a escada da minha subida. Você é o amor da minha vida. É o meu abrir de olhos do amanhecer. Verdade que me leva a viver. Você é a espera na janela, a ave que vem de longe, tão bela. A esperança que arde em calor. Você é a tradução do que é o amor.” “O tempo todo eu fico feito tonto. Sempre procurando, mas ela não vem. E esse aperto no fundo do peito, desses que o sujeito não pode aguentar, ah! E esse aperto aumenta meu desejo, eu não vejo a hora de poder lhe falar. Por isso eu vou na casa dela, ai, ai. Falar do meu amor pra ela, vai. Tá me esperando na janela, ai, ai. Não sei se vou me segurar.” [“John Lennon: Por favor, apareça agora... He, he... Oh, cuidado! É a...] “Ela entrou pela janela do banheiro, protegida pela sua origem nobre. Mas agora ela chupa seu dedão e vagueia pelos bancos de sua lagoa particular.” E a viagem de trem de Los Hermanos: “Onde vai, onde vai. Onde vem, vem, vem. É o trem. E eu aqui. Nessa janela, nessa janela. Aqui vai o trem, aqui vem a curva. O sol a se pôr. Vai, vai, vai. Volta janela”. “Da janela, o horizonte. A liberdade de uma estrada, eu posso ver. O meu pensamento voa livre em sonhos pra longe de onde estou. Eu às vezes penso até onde essa estrada pode levar alguém. Tanta gente já se arrependeu e eu... Eu vou pensar, eu vou pensar. Quantas vezes eu pensei sair de casa, mas eu desisti, pois, eu sei, lá fora eu não teria o que eu tenho agora aqui. Meu pai me dá conselhos, minha mãe vive falando sem saber que eu tenho meus problemas. E que às vezes só eu posso resolver. Coisas da vida, choque de opiniões.”

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PERFIL

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UM CIDADÃO COMUM POR Bruno Mateus FOTOS Bruno Senna

A fala é serena, doce. O olhar, de um verde que salta às retinas, diz muito. As repostas são pausadas, bem pensadas, mas passam longe de serem previsíveis — carregam a sinceridade de quem viu muita injustiça e miséria, mas também enxergou poesia, arte e esperança no horizonte. E expõem, por inteiro, sem disfarces, um artista em busca de abrir o diálogo, de descortinar as contradições de um país como o Brasil e de fazer música por uma necessidade interna. Criolo canta por estar desesperado. Talvez, essa dor o acompanhe desde moleque. Junto aos seus quatro irmãos, o rapper sempre morou na periferia da capital paulista. Foi lá que ele teve o primeiro e definitivo encontro com o rap, expressão musical que lhe deu consciência, amor, voz para gritar e, de certa forma, aliviar suas angústias. Kleber Cavalcante Gomes já foi Criolo Doido, fundou a Rinha de MC’s, em São Paulo, e tem uma trajetória importante no hip hop. Engana-se quem pensa que só agora é que ele está mostrando a que veio. O sonho de Criolo nunca foi ser jogador de futebol, talvez por ser, como ele confessa, um zero à esquerda dentro das quatro linhas — apesar do amor que sente por esportes. Mas, sobretudo, seu caminho não deu nos gramados porque aquele moleque de 11 anos ficou maravilhado quando

descobriu na música uma maneira de se expressar. Dali para frente, nunca mais largaria o rap. Quer dizer, o rap é que não o abandonaria. Filho de cearenses, o rapper se emociona ao falar de seus pais, dos tempos em que ia à escola com o uniforme pintado à mão pela mãe, pois não tinham grana para comprar um novo na lojinha, de quando via Seu Cleon sofrer preconceito por ser negro e quando ia ao estádio com ele ver o Corinthians jogar. Com as lembranças, boas ou ruins, fica fácil perceber o orgulho que sente por ter sido criado num ambiente de arte, inspiração e de afirmação da beleza de suas raízes. Criolo foi o artista mais comentado de 2011 — o álbum Nó na orelha foi eleito o melhor do ano pela lista da revista Rolling Stone, e Não existe amor em SP, a melhor música. No VMB, premiação da MTV, ele levou para casa os troféus de melhor disco, música do ano e artista revelação. Impossível passar despercebido à sua poesia, que sangra, que chama à luta, que sabe que tem muita coisa errada por aí. E, para Criolo, impossível é cerrar os olhos para tudo isso. 75,


VOCÊ TEM UMA HISTÓRIA DE MAIS DE 20 ANOS NO HIP HOP. NA LISTA DOS MELHORES DE 2011, DA REVISTA ROLLING STONE, SEU ÁLBUM NÓ NA ORELHA FICOU EM PRIMEIRO LUGAR. NA ELEIÇÃO DE MELHOR MÚSICA, NÃO EXISTE AMOR EM SP TAMBÉM LEVOU. É ESTRANHO TER ESSE RECONHECIMENTO TODO AGORA, TUDO DE UMA VEZ? TALVEZ NESSE MOMENTO DA VIDA, eu tenha tido uma oportunidade de ter um grupo de pessoas que me deram força para que minha poesia aparecesse. Acredito que a força desse coletivo, desde o primeiro momento que a pessoa me estendeu a mão para eu ir a um estúdio, desaguou nisso, junto com toda uma história, mas em especial nesse recorte do tempo. Me sinto muito surpreso ainda com tudo o que está acontecendo, então nem sei mensurar e como lhe responder isso. Não posso lhe responder que causa estranheza, pois poderia soar como eu estar diminuindo meu trabalho ou a outra ponta — estar sendo um pouco arrogante. Quantos não estão aí há mais de 20, 30, 40 anos fazendo sua música com amor no coração? Mas é tudo muito inusitado, porque não só o meu jeito de enxergar a música, mas as pessoas que se cercaram de mim fazem música por necessidade, uma necessidade interior e não por questões outras. O que nos move são algumas coisas que ainda nos indignam, que fazem com que a gente queira minimamente dividir o que a gente está pensando. É uma grande surpresa tudo isso que está acontecendo. DE REPENTE, VOCÊ SE VÊ CANTANDO COM CAETANO, VÊ O CHICO BUARQUE CANTAR A SUA VERSÃO DE CÁLICE. ACREDITO QUE, sobretudo esses dois nomes que você citou, são pessoas de muita sensibilidade, mas também são pessoas que se posicionam enquanto cidadãos, pessoas simples. Lógico que foi um grande gesto de generosidade eles falarem um pouco de mim, me convidarem para alguma coisa, mas, sobretudo, enxergar que somos cidadãos comuns e que nossa poesia, de uma certa forma, fez com que nossos caminhos se cruzassem, então seria natural, nesse sentido. Mas, quando você diz Caetano Veloso e Chico Buarque, lógico que são pessoas que realmente têm uma contribuição com a literatura mundial, então agradeço esses gestos de generosidade e acredito que nesses meus 23 anos de caminhada talvez eu tenha iniciado um processo de construção de texto que valha pelo menos a troca. E POR QUE SÓ AGORA UM DISCO COM CANÇÕES? POIS SÓ AGORA tive essa oportunidade. Tenho a escrita em outros segmentos há mais de 10 anos, são coisas que ninguém sabia. Quando completei 20 anos de carreira e 15 junto com o DJ Dandan, conversando com ele eu disse: “A gente já viu algumas coisas nesses anos e acredito que podemos contribuir de outras formas, então vou começar a me preparar a não protagonizar os palcos” – não deixar de cantar, não deixar de escrever, mas enxergar que existem outros caminhos de contribuir. Então, alguns amigos, ao perceberem esse meu movimento, dentre eles um cara chamado Ricardo, que faz parte da Matinê Cultural, disse: “Olha, gostaria muito que você ,76

fosse ao estúdio registrar suas canções, seus raps, o que você quiser, mas, sobretudo, as coisas que pouquíssimas pessoas sabem que você faz”. O que ia ser um registro para a família, no meio do caminho acabou se transformando numa outra coisa. Há 15 anos componho com outras formas de me expressar musicalmente, mas pouquíssimas pessoas sabem. O ASSUNTO POLÍTICA É MUITO IMPORTANTE NO SEU DIA A DIA? VOCÊ LÊ SOBRE, ACOMPANHA? SOU IGNORANTE, não sou um estudioso. Quando uma pessoa me explica minimamente que se eu cortar uma árvore não vai ter troca de CO 2 , entendo que em algum momento você está contribuindo [ao não cortar uma árvore]. Se for esperar eu me formar, vou esperar seis anos. Essa fala minha como leigo pode vir a somar também com esse estudioso, porque ambos estamos querendo, em algum momento a gente se encontra, porque queremos o bem de algum forma, seja em qual segmento for. Sou um brasileiro nascido e criado em favela. Vejo, tenho um nervo óptico e tenho sentimentos. Então, sempre fico muito contente ao encontrar com amigos que estudam o assunto, que leem livros, que estão sempre pesquisando, porque me complemento, me encho de informação, mas também sei que, se andarmos um pouquinho em cada esquina, tem alguém pedindo um prato de comida. Desde colônia, essas questões sempre estiveram na porta de nossa casa, senão dentro de nossa sala. Volto a lhe dizer, sou um ignorante no assunto, mas sou um cidadão com um nervo óptico, já passei por algumas coisas na vida e a gente consegue enxergar fisiologicamente se sua barriga está doendo de fome. VOCÊ DISSE EM UMA ENTREVISTA QUE TODO MUNDO TEM FOME DE ALGUMA COISA, SEJA DE UM PRATO DE ARROZ E FEIJÃO, SEJA DE AMOR. ACREDITO QUE SIM, porque senão a gente não estaria nessa eterna busca de sei lá o que, indo para não sei onde. E VOCÊ TEM FOME DE QUÊ? DE PELO MENOS viver a ilusão de que se abra o diálogo. Cantar é um problema meu, se é que é problema. Cantar é uma necessidade minha de dividir o que passa pela minha cabeça, mas essa ação não significa que é abrir diálogo. E por muitas vezes existe esse diálogo, mas de mil outras formas, quando você começa a perceber o retorno de algumas situações. Estou engatinhando e, como eu lhe disse, sou um cidadão comum.


VOCÊ PASSOU A INFÂNCIA E A ADOLESCÊNCIA NO GRAJAÚ, ONDE VIVE ATÉ HOJE. NASCI na Santa Casa de Misericórdia, em Santo Amaro. Morei os primeiros anos da minha vida no Jardim Reimberg, num porão. Depois atravessamos a Avenida Teotônio Vilela e fomos morar na favela, e por lá fiquei seis anos da minha vida num barraco de madeira, até o teto era de madeira e o chão de barro batido, tem que socar bastante para que ele não se dissolva com água de chuva e a umidade do ambiente. Em 1982, fomos morar no Grajaú. E MESMO COM TODAS AS ADVERSIDADES, VOCÊ CRESCEU NUM MEIO DE MUITA EXPRESSÃO CULTURAL. DE QUE FORMA ISSO CONTRIBUIU PARA O SEU DESENVOLVIMENTO ARTÍSTICO? MINHA MÃE nunca mediu esforços para nos deixar em contato com poesia, com música. Meu pai, do jeito dele, também. Ele é metalúrgico, foi metalúrgico a vida toda. Minha mãe sempre foi dona de casa. Quando ela inteirou os 45 anos de idade, fomos estudar juntos o colegial, mas ela sempre foi uma amante das letras, é uma pessoa que ama ler. E por morar em favela, tinha em cada lado da minha casa uma pessoa de um lugar diferente do Brasil. Nos primeiros anos de minha

existência, escutei música do Brasil todo. O rap na minha vida foi uma expressão de arte tão maravilhosa, sem preconceitos, e eu escutava aquelas músicas, pessoas que moravam tão longe de mim, mas que cantavam aquela mesma realidade que eu vivia, então foi imediato. Não diria amor à primeira vista, mas foi uma expressão de arte que me deu muito amor no sentido de me dar voz, de me dar esse diálogo que eu tanto procurava. Você imagina ser favelado, ver seu pai sofrer preconceito porque é negro, ver sua mãe sofrer preconceito simplesmente porque é de outro lugar do país, ver todo mundo ir para a escola com uniforme comprado na lojinha e sua mãe fazendo o seu pintado à mão. Devo muito [ao rap], não sei se devo porque ele nunca me cobrou nada. O hip hop não te cobra nada, o hip hop é muito generoso, me ajudou na minha formação de cidadão, musical. SENDO MORADOR DA PERIFERIA, FILHO DE NORDESTINOS, FILHO DE NEGRO, VOCÊ JÁ DEVE TER SENTIDO O PRECONCEITO NA PELE. CLARO, mas estou acima dele. As riquezas vão do ponto de vista de cada um. Nunca me deixaram faltar o pão do conhecimento, do bom gosto, no sentido de valorizar o meu gosto. Não se deixe moldar por ninguém. MAS NÃO É TODO MUNDO QUE TEM ESSA SEGURANÇA QUE VOCÊ TEM. EU AGORA TENHO 36 ANOS, quem disse que já não chorei muito, que sofri muito? Até Genghis Khan [imperador mongol do século 12] sofreu derrotas, não vou me colocar na condição de quem eu não sou. Sou um cidadão comum em formação e repleto de defeitos, uma pessoa que tem muita coisa para aprender. COMO FOI SER COLEGA DE CLASSE DE SUA MÃE? FOI UMA COISA ESPETACULAR.

NÃO SOU UM BOM CANTOR, NÃO SEI NEM TOCAR UM INSTRUMENTO, MAS CANTO COM A MINHA VERDADE, COM A MINHA EMOÇÃO

É UMA HISTÓRIA BONITA. VOCÊ TINHA 14 ANOS, NÉ? É. Minha mãe já foi lavadeira, empregada doméstica... Cara, fez de tudo para não passar fome, criando os filhos. Aquele estereótipo, né? Daquela senhorinha que vai ser a vovó, aquele cabelinho, roupinha humilde. Fez os três anos de faculdade comigo e pude me apaixonar por mil mulheres, porque você não enxerga só o personagem mãe, e ela pôde me conhecer bastante também, as minhas outras faces. E depois ela não parou mais, foi fazer filosofia, depois fez história, psicologia, pós-graduada em língua, literatura e semiótica. Hoje ela tem o Café Filosófico, no Grajaú, que já está indo para o segundo ano. Ela sempre tratou com naturalidade, falou: “Pô, então dependendo do CEP a gente não pensa, não tem o gosto?”. Bom gosto é você ter o seu gosto, e a partir daí dialogar com o mundo, senão você está sendo preconceituoso de novo. O que é bom gosto? Eu gosto de bolacha salgada, você gosta de bolacha doce, e daí? VOCÊ NÃO TEM PRECONCEITO MUSICAL? PRECONCEITO, não, tenho o meu gosto. Porque o que não é bom para mim, não quero ouvir, pode ser que você curta 77,


pra caramba. Sobretudo eu, que faço minha música, tenho que respeitar o cara que está fazendo a música dele. O QUE VOCÊ QUER FAZER REFLETIR COM SUA MÚSICA, SUA ESCRITA, SUA ARTE? NÃO TENHO A PRETENSÃO de achar que vá fazer isso ou aquilo, só peço energia para uma força maior para continuar fazendo o que faço: minha música com o coração, com a minha verdade, que não é melhor que a verdade do outro. Tenho vontade de continuar fazendo o que faço há 23 anos. Só quero continuar sendo a pessoa que sou. Se alguém em algum momento tiver curiosidade, um pouquinho de tempo, se quiser se encontrar com alguma canção minha, vai entender qual é a minha. VOCÊ É RELIGIOSO? ACREDITO QUE EXISTA UMA FORÇA que rege essa natureza toda, acredito muito na energia das pessoas, um bom pensamento, que nós somos pessoas que têm uma energia, sim. DEUS? CADA UM chama de um nome, acredito numa força maior que nos rege, ou pode ser tudo isso uma grande ilusão, mas existe a necessidade de se criar nomes, sobretudo em que época isso foi pensado, a importância disso e qual o interesse de quem estava difundindo tudo isso. Mas, para mim, colocando todas essas coisas de lado, acredito que exista uma energia maior e cada um chama de um nome. VOCÊ CHEGOU A CURSAR PEDAGOGIA E TEVE UMA EXPERIÊNCIA COMO EDUCADOR. COMO FOI ISSO? FORAM 12 ANOS com crianças e adolescentes em escolas. Foi um momento de perceber aquilo que eu já acreditava, mas não enxergava a grandiosidade: a importância de cada pequeno ato para a melhoria de um ser humano. Seja com música, seja aquela pessoa que está no dia a dia com aquela criança, na situação que for. Foram 12 anos, e vi o quão há de gente na escola pública com vocação — uma coisa é ter talento, outra é ter vocação. E quando você tem uma mistura disso, acontece a mágica, e acontece todos os dias em salas de aula precárias, os professores são jogados em uma situação desumana, os outros funcionários também. ,78

O RAP ESTÁ PRESENTE EM TUDO O QUE EU VÁ FAZER NA MINHA VIDA. ELE ESTÁ LÁ, ESTÁ VIVO E PULSANDO. ELE ME FEZ CHEGAR ONDE ESTOU

O CURRÍCULO DAS ESCOLAS, em MINHA OPINIÃO, ESTÁ ERRADO. É, e talvez exista um porquê de ser dessa forma. Nós sabemos que a escola se tornou pública com o advento da Revolução Industrial, quando precisávamos de uma mão de obra um pouquinho melhorada para apertar o botão. Quando você tem esse pensamento, se a escola pública nasce com esse pensamento, nasce completamente errada. Mas enxergo pessoas com atos de amor, e esses são os verdadeiros heróis, os verdadeiros artistas. E eu pude enxergar, estar ali na situação. NO NÓ NA ORELHA VOCÊ PASSEIA POR OUTROS RITMOS QUE NÃO O RAP. PODE-SE DIZER QUE É E NÃO É UM DISCO DE RAP? NUNCA em minha história o rap foi tão exaltado, tão presente. Consegui imprimir a atitude rap num leque de cinco, 10, mil formas de se cantar. Não digo nem que é tentativa, porque foi natural. Mas, nesse momento, mostrar para as pessoas qual é a do rap, esse querer de mudança, de valorização, essa vontade louca de contribuir, de abrir diálogo e de fazer o que é possível. O rap está presente em tudo o que eu vá fazer na minha vida. Ele está lá, está vivo e pulsando. Ele me fez chegar onde estou chegando. Ele ajudou na minha construção de cidadão. Cresci escutando rap que dizia: “Cara,



Criolo (da direita), aos 4 anos, na Vila Reimberg, onde morou até os 6

FOTOS: ARQUIVO PESSOAL

VOCÊ NUNCA LARGOU O RAP. A VERDADE É A SEGUINTE: ele nunca me largou. Quem sou eu para segurar o rap? Eu não fiz o rap, ele que me fez. SENDO FILHO DE METALÚRGICO, QUANDO O LULA, UM EX-METALÚRGICO, FOI ELEITO, ISSO TEVE ALGUM SIGNIFICADO ESPECIAL? SOU FILHO DE NORDESTINO, filho de metalúrgico, alguma sensação a gente sente, pelo menos a simbologia do que chega, o emblema de determinada situação. Mas aí você vai se desdobrando e vê que são, no mínimo, 500 pessoas que definem tudo, e no máximo cinco que mandam no mundo. E você já encaminha o assunto para outras coisas, mas é lógico que foi emblemático, um momento histórico. Outro dia estava falando com o pessoal da ESPN sobre Copa do Mundo e Olimpíadas. Eu disse a ele [ao repórter] que, inegavelmente, enxergo a importância de eventos tão grandiosos como esses em qualquer lugar do mundo. O esporte é tão importante para a criança, a criança já nasce nadando. Esporte é arte, vida, cultura. Mas as outras coisas que vêm ao redor, o que cerca isso, é um outro papo. Copa do Mundo e Olimpíadas são [eventos] muito bonitos, mas o Brasil precisa de um prato de comida.

SOU UM CIDADÃO COM UM NERVO ÓPTICO, JÁ PASSEI POR ALGUMAS COISAS NA VIDA E A GENTE CONSEGUE ENXERGAR FISIOLOGICAMENTE SE SUA BARRIGA ESTÁ DOENDO DE FOME

ESSES EVENTOS VÃO GERAR AVANÇOS PARA O PAÍS? SE VOCÊ ACHAR que construir ponte, hotéis e prédios é avanço, é sim avanço, para determinada situação. Agora, é impossível imaginar e não questionar outra coisa que é: como [os governantes] não conseguem enxergar que o país vai economizar tanto dinheiro se todo mundo tiver saneamento básico, porque não vão gastar com remédio? Mas aí já esbarra no dono da fábrica de remédio. Se o cara está bem alimentado, se a comida dele é forte, não precisa fazer uma montanha de comida. Se você for pensar em livros, livros gostosos de se ler e acessíveis, você esbarra, você está tirando o olhar do jovem para determinado canal de televisão em determinado horário.

Com a mãe e companheira de classe, Dona Vilani

,80

tem um monte de coisa errada acontecendo, as pessoas estão morrendo. Cara, você é bonito, não importa se você é índio, negro, amarelo, se você tem dinheiro ou não”. Posso fazer um xaxado, um bolero, um forró... O rap me deu a condição de me enxergar um homem com possibilidades.

NO ANO PASSADO VOCÊ FEZ UM SHOW EM BELO HORIZONTE, NA PRAÇA DO PAPA, E SUA POSTURA NO PALCO FOI MUITO COMENTADA. MUITA GENTE FALOU QUE FOI UM SHOW FORTE, QUE VOCÊ PARECIA UM PROFETA NUM CULTO, UMA COISA MÍSTICA, UMA EXPERIÊNCIA FORTE E ESTRANHA. VOCÊ TEM CONSCIÊNCIA DISSO? NÃO, às vezes me questiono se posso melhorar ou se tenho que me podar, mas quando dá aquele minuto antes de subir no palco, cara, subo no palco com muito respeito a quem está para ver, é o povo que faz o show, a mágica. Subo no palco com muito respeito a todos os músicos que tocam comigo, cada um deles tem uma história maravilhosa e tocam com tanto carinho. Já subo sabendo que sou uma pecinha. Sinto vontade de fazer o meu melhor possível naquele momento. Não sou um


VOCÊ SE ENTREGA. É O MÍNIMO que posso fazer. Subo no palco muito emocionado, mesmo. Cada dia é de um jeito, tem dia que entro pulando, tem dia que estou mais quieto; tem dia que converso mais entre uma música e outra, tem dia que não falo nada. Sou um cidadão comum, não tenho roteirinho. DIVULGAÇÃO/MTV

ESTE ANO O CORINTHIANS BELISCA A TÃO SONHADA LIBERTADORES? ISSO É IMPORTANTE, VOCÊ TEM UMA RELAÇÃO COM FUTEBOL? MINHA FAMÍLIA TODA É CORINTIANA, sempre que possível vamos ao estádio. Tenho boas recordações de meu pai me levando quando criança, eu e meu irmão. Falam que é o ópio do povo, que não sei o que, mas tenho recordações de meu pai, que trabalhava 14 horas por dia, e quando tinha um tempinho me levava, então tenho essa recordação de carinho paterno. Pô, que legal, tem esse outro lado também.

Em Belo Horizonte, na turnê de Chico, em novembro do ano passado. Na ocasião, o cantor homenageou Criolo cantando sua versão de Cálice

REPRODUÇÃO DA INTERNET

bom cantor, não sei nem tocar um instrumento, mas canto com a minha verdade, com a minha emoção. Quando vou, vou de verdade, estou lá mesmo, não estou a passeio. Não sou aquele cara “tenho que fazer show rapidinho porque quero passear”.

O OSCAR WILDE DIZIA QUE TODA ARTE É INÚTIL. É POR AÍ? A QUESTÃO É: quem criou utilidade para ela? Se você enxergar que respirar, amanhecer o dia e seus braços estão atendendo às suas sinapses, isso é a maior arte que pode existir na sua vida. De que arte ele estava falando? Às vezes até querendo proteger uma expressão maior de uma banalização . PERCEBO NO SEU JEITO DE CANTAR UMA CERTA MELANCOLIA, UMA COISA DE QUEM DIZ: “O CAMINHO É ESCURO MESMO E NÃO SEI SE TEM UMA SOLUÇÃO”. É MAIS OU MENOS ISSO OU ESTOU FICANDO LOUCO? OLHA, deixa eu te falar... É muito difícil falar de dor sorrindo e mesmo assim nosso povo consegue. Isso é traduzido em poesia. Como falar de um duplo assassinato sem apontar o dedo na cara de ninguém, sem apontar culpado, mas querer exaltar que pelo menos alguém do seu bairro que é mais velho pode te dar um conselho que pode te tirar de uma furada. Porque, quando a coisa melhorar, o que nós todos queremos é cantar para celebrar.

Criolo em BH DEPOIS DE PASSAR PELA CAPITAL MINEIRA EM SETEMBRO DO ANO PASSADO, FAZENDO UM SHOW MARCANTE NA PRAÇA DO PAPA, O RAPPER VOLTA A SE APRESENTAR EM SOLO BELO-HORIZONTINO. ELE TOCA, DIA 23 DESTE MÊS, NO MUSIC HALL (AV. CONTORNO, 3239 – SANTA EFIGÊNIA), MOSTRANDO AS MÚSICAS DO ELOGIADO ÁLBUM NÓ NA ORELHA. INFORMAÇÕES: (31) 9344 5472 (31) 9690 4977

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CRÔNICO

Fábio Corrêa

Fábio Corrêa é tradutor, jornalista e mestrando eterno em Antropologia, nascido, crescido e provavelmente morrido em Belo Horizonte. Se interessa por universos paralelos, controles remotos e barbeadores elétricos, mas sempre usa o gilete da irmã. Escreve no blog www.minideias.com, @minideias.

O universo paralelo das quase-histórias duilísticas Tarde da noite, quando me sento à máquina para redigir coisas, vem Duílio contar suas quase-histórias. Peço descrição, que nada adianta. Fala sobre os tempos de adolescente e das garotas que povoavam a soleira de sua porta, reivindicando amor. Dou umas bicadas no chá verde, milenar sabedoria oriental, e ouço, semiatento, remoendo a parte interna de minha bochecha. Do lado da antiga casa de sua mãe, moravam vizinhos. Um casal de vizinhos. Assim, brigavam. Tocavam o terror a noite inteira. O pai cheirava drogas, a mãe dava a sua dignidade a outrem. Duílio ouvia tudo. De madrugada, uma baixaria só. Era vadia para lá, corno para cá. Mas tinham uma filha. Adolescente. A filha queria o charme de Duílio. Os hormônios entravam em polvorosa. Mas era terreno perigoso. Perigoso e delicioso. Algo como um campo minado cheio de bombons de cereja. Mas uma boa educação tradicional e uma ética católica mantiveram o jovem Duílio na linha. Fingiu de bobo e saiu pela tangente. Mas havia outras garotas. E outras quase-histórias. Como, por exemplo, quando Duílio era um homem de negócios na ponte aérea Rio-São Paulo. E pegava aviões com sua pasta preta com trava de códigos, cheia de papéis picados. Duílio era um homem de papo manso. Papo manso e encantador. Havia uma beldade do seu lado. Uma beldade de joelhos de fora. Conversavam sobre Marx e o fim do bloco soviético. Resolveram ir ao banheiro, juntinhos. Pois a maior demonstração de amor possível só é alcançada quando dois seres humanos compartilham suas necessidades fisiológicas. Pois bem, dentro do banheiro, percebeu-se uma vertiginosa mudança de gravidade. De uma vez, subiam pelas paredes, literalmente. Conseguiram abrir a portinhola e sair. Viram pela janela como o avião se embicava e rumava para o chão, incontinenti. Gritarias e últimas

palavras, um advogado recolhia testamentos. De uma vez, tudo se normalizou. O avião se endireitou. Procedimento normal, a aeromoça explicou. Penso que é o fim, mas não. Duílio continua com suas quase-histórias. Como no dia em que, após cultivar uma pomposa barba, de quatro meses de idade, resolveu mostrar novamente ao mundo sua cara limpa. Iria conhecer o pai de, digamos, Lóri, um militar aposentado. Lóri era um estouro e valia o sacrifício. O jantar era às sete, já eram quase seis, e lembrou-se do barbeador elétrico. Foi correndo ao banheiro e começou, primeiro a direita, as costeletas, depois o queixo, a bochecha, o bigode. E, de uma vez, a bateria acabou. Era um homem com meia-barba na cara. E se chegasse assim, o que diria o coronel? Pior, e se houvesse uma tragédia no prédio, como um incêndio no apartamento de cima, Duílio teria de sair correndo, chegar à rua com meia-barba, dar entrevistas para a televisão. Seria o homemtosco famoso por dois dias, um milhão de hits na internet. Mas nada disso aconteceu, e Duílio foi salvo pela gilete íntima e cor de rosa de sua irmã. Depois de ouvir tudo isso, fico a fitar Duílio, do outro lado da mesa, arrancando cutículas com os dentes. Mas, não me deixo sucumbir frente a tanta inutilidade. Vejo uma ilha deserta, destroços de avião e um homem parado no meio dela. Uma equipe de reportagem internacional entrevistando Duílio, o náufrago com meia-barba, enviando desesperadamente notícias para sua esposa, seus três filhos, seu sogro drogado e sua sogra vadia. E nesse universo paralelo das quase-histórias, eu sou o Rei Sol, tenho duzentas esposas, uma máquina de dinheiro e um controle remoto com a tecla mudo. Quase igual ao Duílio, que no mundo real tem é uma tecla play. E só.

DUÍLIO ERA UM HOMEM DE PAPO MANSO. PAPO MANSO E ENCANTADOR. HAVIA UMA BELDADE DO SEU LADO. UMA BELDADE DE JOELHOS DE FORA ,82



R I P C U R L .C O M


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