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UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE Antonio Claudio Lucas da Nóbrega
reitor
ESCOLA DE ARQUITETURA E URBANISMO Juarez Duayer decano
CURSO DE ARQUITETURA E URBANISMO Ana Carmen Jara coordenadora
Revista RODAPÉ Primeira Edição questionando o projetar _reflexão e crítica_ moradia e habitat _ cidade e gênero_
CORPO EDITORIAL Fábio Carneiro Velasco Kauê C. Romão de Carvalho Luiza Waldmann Brasil Matias edição
Ana Nieda dos Santos Melo Gabriella Bicalho Marques Kamila Saraiva Oliveira Dantas redação
Pedro Medina Bernardes Bastos Tadeu Asevedo Porto Maia projeto gráfico
Lívia Babo Teixeira Marcele Gualberto Gomes Sophia Francês Mouzinho comunicação
Adriana Mattos de Caúla e Silva
universidade federal fluminense
coordenação
Carolina Gomes Vergnano revisão textual
112 páginas Setembro / 2020 Bienal. editorial.revistaeau@gmail.com e-mail
@revistarodape instagram
AGRADECIMENTOS João Pedro Boechat, Helena Porto e Luiz Paulo de Carvalho; Carolina Vergnano; Valéria de Sá Silva; Marlice Azevedo; Rossana Tavares;
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escola de arquitetura e urbanismo
A solicitação para tecer a apresentação da Rodapé, Revista dos alunos do Escola de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal Fluminense, foi uma honra e também um desafio. Publicar uma revista sempre foi um projeto acalentado pelo corpo docente e discente da Escola, desde os remotos tempos em que se era apenas um Departamento de Arquitetura e Urbanismo – TAU, no Centro Tecnológico. O caminho foi longo para o desdobramento do Curso em dois Departamentos: TAR - Departamento de Arquitetura e TUR Departamento de Urbanismo. Esse processo de implantação representou conquistas institucionais e físicas. Inicialmente, as salas administrativas e de aulas foram instaladas no Casarão. Num segundo momento, conquistou-se o espaço do Chalé, após uma noite de ocupação e vigília. Passo a passo, com perseverança e empenho dessa comunidade acadêmica, chega-se ao reconhecimento do Curso de Arquitetura e Urbanismo da UFF, cerne da própria Escola. Por outro lado, essa longa construção deu possibilidades ao curso de ser pioneiro em alguns campos de estudo, com a introdução de alguns temas inovadores para a formação profissional na época, como a habitação popular, o paisagismo, dentre outros temas, que constituíram objeto de estudos emergentes para a formação do Arquiteto e Urbanista. O sonho da Revista da Escola remonta ao final da década de 1980. O nome para a Revista, acredita-se, não foi objeto de consenso, mas sua edição foi esboçada numa estrutura preliminar, que seria finalizada com uma entrevista de personalidades marcantes nesse campo de trabalho. Na ocasião, tinha-se a possibilidade de entrevistar uma figura emblemática na temática da História da Arquitetura e Urbanismo, a Professora Françoise Choay, um dos ícones nesse campo de estudo, autora de livros emblemáticos nas décadas de 1980/1990. Através do jornalista francês Alain Chaigneau, foi possível entrevistá-la em sua casa, numa tarde memorável do verão de 1985. A entrevista foi gravada e a fita foi perdida num trem Paris - La Rochelle, pelo mesmo jornalista, que faria a sua transcrição. Nem a entrevista e nem a revista foram publicadas.
Essa atual equipe de estudantes, sem saber, está retomando esse antigo projeto e se propõe publicar Rodapé, uma revista representativa da produção da Escola de Arquitetura e Urbanismo da UFF. A Rodapé merece o maior apoio, incentivo e respeito. Além de restaurar o antigo sonho de se contar com uma publicação para expressar ideias e inquietações dos diferentes membros dessa Escola, trata-se de um momento especial de medo e incertezas, vivenciadas também nesta comunidade acadêmica, e a Revista poderá propiciar e restabelecer a chama de esperança renovadora nesse cotidiano de vida universitária. O nome Rodapé é emblemático. Nada mais despretensioso e indispensável na construção arquitetônica que o rodapé, uma peça construtiva, entre a parede e o piso, com a finalidade de dar arremate e proteção a parede. Peça simples, mas indispensável. Certamente o título não foi por acaso, expressa um sentimento de necessidade e de acabamento, o desejo dessa comunidade acadêmica de se fortalecer e de se expor através desse novo meio de comunicação, de colocar toda a sua criatividade e capacidade de construção do conhecimento individual e coletivamente. Permitirá ao corpo discente e docente da Escola expressar a sua capacidade de refletir sobre o projetar e o construir em diferentes escalas, espaços resilientes, resistentes e acolhedores para abrigar com segurança o indivíduo, a missão principal do Arquiteto e Urbanista. A Revista Rodapé se propõe publicar as diferentes manifestações da produção arquitetônica e urbanística do corpo discente e docente da Escola, pretendendo dar visibilidade aos diferentes tipos de manifestações, individuais e coletivas, representativas das experiências didáticas e profissionais, vivenciadas neste espaço de desenvolvimento de estudos e práticas do Arquiteto e Urbanista.
revista rodapé
RODAPÉ, uma apresentação,
Longa vida para a Rodapé é o que se espera e deseja! Marlice Azevedo.
Profª. Titular da Universidade Federal Fluminense edição nº1
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Os ataques às políticas públicas, em especial as voltadas para a educação, inscrevem-se na história mais recente do nosso país sob toque de caixa - com licença à literalidade da expressão. O Movimento Estudantil tem se mostrado uma das mais importantes articulações resistindo à predação das conquistas cidadãs e a produção discente pode ser destacada como importante expressão desse esforço. A ideia de um meio para publicações estudantis emergiu diversas vezes na Escola de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal Fluminense (EAU/UFF). Durante as ocupações estudantis, no ano de 2018 em um contexto de mobilização nacional de estudantes em defesa da continuidade e garantia de investimentos públicos na área de educação, essa ideia se fortaleceu, tornando-se enfim, realidade.
universidade federal fluminense
Os estudantes da Escola de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal Fluminense (EAU/UFF) investem seus conhecimentos, suas diferentes visões de mundo e energias na criação, produção e interação com os mais variados projetos e espaços, sejam eles acadêmicos ou não. A Revista Rodapé apresenta-se como um canal, um meio de atuação discente da EAU e busca protagonismo e autonomia em sua composição destacando a produção acadêmica crítica e socialmente referenciada em consonância com o projeto político pedagógico da Escola.
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A Revista Rodapé representa a valorização da educação pública, estando comprometida com a difusão dos debates, pensamentos e expressões várias produzidos por aqueles que compõem a comunidade universitária. Objetiva-se com a Rodapé registrar, preservar e valorizar a memória de nosso curso. Acreditamos que a reunião da produção dos estudantes nas diversas disciplinas, pesquisas e atividades de extensão, fortalecerá o debate crítico e transdisciplinar, a visão crítica da arquitetura e do urbanismo como forma de afirmação de lutas. O projeto da Revista Rodapé procura se consolidar como parte da Escola de Arquitetura e Urbanismo. Paralelo ao compromisso de publicizar a produção da Escola, almejamos sua transformação em projeto de pesquisa universitária consolidando-se como plataforma de carácter público. Em suas bases, a Revista Rodapé assume a integração discente como diretiva fundamental, a observar o espaço de expressão dos estudantes, sendo um trabalho transparente, primando pela composição diversa e a constante renovação de seus membros. escola de arquitetura e urbanismo
A primeira edição costura diversos campos relacionados à Arquitetura e Urbanismo. Os debates sobre a produção do espaço urbano coagulam inerentemente ambos os campos. Portanto, o espaço urbano como espaço de conflito ilumina as diferenças, explicita as mais diversas territorialidades e se faz presente em muitos conteúdos desta primeira edição. Todavia, o espaço vivido pelo corpo se faz singular em cada experiência. Por um lado, as reflexões sobre a casa e o habitat podem ressaltar a arquitetura como condição da extensão do corpo à habitação. Por outro, a questão do gênero se apresentou como contraponto à uniformização das experiências na cidade. Nesta edição, a Revista Rodapé atravessada pelo exercício de pensar o futuro do solo urbano, apresenta críticas sobre o espaço construído e seus processos, projetos e estudos sobre moradia e habitat, assim como a temática de gênero. Essas discussões manifestam-se em diversos trabalhos submetidos. O ensino e a consolidação do campo de conhecimento em Arquitetura e Urbanismo são multimeios. O escopo da Revista Rodapé tem como premissa integrar diversas formas de expressão, assim como é feito na projetação, pesquisa e outras práticas do nosso curso e profissão. Estudos particulares, de livre iniciativa, frutos da vivência e experimentação, agrupam-se com estudos de perfil técnico, projetos em todas as suas etapas, com escalas, abordagens e expressões artísticas variadas. A Revista Rodapé apresenta-se como espaço aberto a abrigar trabalhos de conclusão de curso, projetos de monitoria, trabalhos e projetos de disciplinas curriculares, atividades e trabalhos realizados ao longo da participação em pesquisas e extensão, resenhas, traduções, trabalhos elaborados para concursos, trabalhos artísticos, utopias e outras criações. Todas as produções e criações são recebidos pela Revista Rodapé com muita satisfação e analisados para composição das edições a partir das possibilidades de debates entre os materiais recebidos. A Revista Rodapé, do mesmo modo que seu conteúdo, propõe-se à experimentar e investigar. O projeto gráfico acompanha o sabor dessa expressão junto aos “respiros” que expõem produções artísticas de autoria dos discentes, possibilitando a leitura da Revista como uma galeria coletiva. A composição desta primeira edição é resultado da alternância entre blocos temáticos e ilhas com criações de diversos autores. revista rodapé
O significado da palavra “rodapé” pode ser “acabamento banal”, “proteção discreta” ou “elemento textual” que conecta uma ideia a outra. Mas aqui, a ação de levar Rodapé ao título da revista é assumir um movimento de ascensão, de dar visibilidade às criações do curso de graduação. É proteção e valorização da produção discente da EAU. É a conexão entre campos, entre pessoas, entre mundos, é Arquitetura e Urbanismo. Assim, convidamos o leitor a participar dessa experiência piloto. Corpo Editorial
edição nº1
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sumário
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escola de arquitetura e urbanismo
edição nº 1
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revista rodapé
produção do espaço urbano
Guilherme Rodrigues, Marina Barcellos
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viagem de estudos II
2018.2
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fast city
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viagem de estudos II
produção do espaço urbano
fast city 2018.2
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Thiago Gonzalez
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Em Projeto de Urbanismo 3, trabalhamos o exercício projetual crítico inserido em ampla discussão sobre práticas, teorias e narrativas urbanas. A cada semestre elegemos três teóricos contemporâneos com reflexões consonantes com a problemática que envolve a área de trabalho. Através das três diferentes teorias os alunos exercitam a ação projetual. As discussões sobre os textos e suas contextualizações antecedem as ações projetuais. Essas ações são seguidas pela elaboração de resenha crítica, visando a reflexão individual sobre diferentes olhares e posturas frente às cidade, através da articulação das três teorias. Adriana Caúla
OU
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O
A dialética que permeia os processos de aproximação desencadeia limites de suficiências, contraditórias, complementares e perversas. Ou todo esse oposto e mais as infinitas variáveis. Tudo, nada. De todo modo, trata-se de uma própria ontologia do ser social, dentre toda sua prática, a sua própria capacidade humana.
produção do espaço urbano
Em ensaio, uma oportunidade de unir angústias alimentadas por discussões em - e de - classe, às perspectivas processuais de Colin Rowe, Rem Koolhaas e Jan Gehl. A seguir, leituras e vídeos colaboram, mas é sobretudo uma interpretação das inquietantes discussões latentes na disciplina de Projeto Urbanístico 3, no semestre 2018.2, na UFF, com as professoras Adriana Caúla e Rossana Tavares.
Arrepios aflorados, desejos saltitantes e miolos um tanto quanto confusos. Torna-se, assim, um grande alarde de confissão para um discreto No que tange os carismas e as proposições, uma busca por sussurro no coletivo. É uma compreender alternativas do pensar projetual, o urbano e contradição sem fim, numa sua própria aplicabilidade quando instrumento didáticotentativa de ser justo com di-reflexivo. ficuldade de traçar à grafite. Reverberações mais agudas no cérebro pensante que nos olhos mais atentos; em lugar de mérito, uma escusa para tornar o adiante mais fluido dentro do que cabe. Se o que se trata é pela discussão de modelos, me atenho a eles como filtro de perspectiva, ou quem sabe o conforto que se permite dentro do papel e seleção de pensamentos. Rowe, Koolhaas e Gehl, com acréscimo necessário de Jacobs, dentro de suas propostas apresentam estratégias diversas e consistentes à atividade projetual. De demandas nada simétricas para, pois, desafiar os conflitos de realidades nada compensatórias, se extrai uma complexa gama de possibilidades de capturas vistas nesses pensadores. Do pragmatismo humano à loucura extraterrestre, são administrados reflexos que se propõem a espacializar e fazer parte desse desafio que é o urbano. Que a intenção é para pessoas, pode ser óbvio como bom assegurar, pois, dentro
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projeto de urbanismo III
da fábrica de soluções, pode faltar tempo para quem vai mais depressa. Jacobs, em suas percepções a partir das experiências vividas em Manhattan, apresenta abordagem transescalar dos conflitos imanentes da sua atuação, como mulher e cidadã. Aqui, uma contribuição singular diante das contraditoriedades positivistas, onde a cotidianidade aparece de interface fundamental analítica-propositiva, garantida suas proporções locais.
Em ligeiro desvio, mas oportuno articular tais discursos ao fanatismo e grande comoção por ideias positivistas que, por ironia, criticam a pluralidade de oportunidade com reforços de privilégios. Ao garantir que seja necessário um tempo de compreensão de suas propostas, o urbanista torna seu ofício um para, ignorando as contradições de classe presentes numa aproximação ao o trabalhar com, lição fundamental de Jacobs que Gehl não pode absorver. Desta forma, o olhar pragmático mais atento ao que se pode enxergar e quantificar, se distancia do que se pode ver e qualificar por essência. Nas aparências mais viOs limites da proposição projetual não terminam aqui, pois suas revas, se desvirtua à uma flexões me tirariam os dedos dessa redação; é pela razão de questiocapacidade encorajada nar tais modelos no lugar dos modelos. Isso para dizer que medidas de reproduzir as estrujá delineadas e simplificadas, como as de Gehl, podem se apresentar turas do que convém, como um parâmetro analítico, mas não podem alcançar determiquando as contradições nações que os instrumentos mais qualificados pretendem justificar. pilares necessitaram de Contudo, e as demais? Portanto, torna-se de extrema importância um esforço maior para o encontro de outras possibilidades investigativas, enlaçadas com delinear outras intervenoutras cadências de execução. Rem Koolhaas e Colin Rowe apontam ções. para uma nova perspicácia evaluadora dessas aproximações, ainda que com características diversas - e não necessariamente isentas de contradições. E seria possível a incansável busca do consenso, de fato, assumir-se a si mesmo? Essa poderia ser uma grande argumentação de Rem Koolhaas, quando questiona-se a sua insuficiência projetual Desta forma, diante do diante dos escritos, no mínimo, mais tragáveis pelos seus questionamais humano possível, mentos dialéticos - lembrar da abstração que lhe permite reconhecer caberia então a esquizoa melancolia desejada dos moradores de Bijlmermeer, cujo o projeto frenia uma proposta de não parece demandar somente automóveis. (Ou talvez seja por semaior coerência? rem mesmo, além de moradores, artistas). Com certeza, melhor que lembrar de Euralille, cujas as formas desconcertadas dessa vez parecem prever certos constrangimentos. A genialidade aqui, longe de ser responsabilidade única do arquiteto, ou seria anular os diversos outros riscos latentes, remete às decisões arbitrárias e impositivas, nos quereres ante o viver. 2018.2
o vi ou vir
O mesmo falta a Gehl. Na qualidade de morador de Copenhagen e todos os privilégios urbanos a ela conferida, se atribui das críticas - coerentes - à espacialização modernista como insumo a reproduzir lógicas idílicas à contextos desprovido delas. Desta forma, não realiza como efeito particular, mas atômico, particularidade como totalidade, e reproduz essa mesma partícula como elemento estruturador a qualquer necessidade.
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Daqui, sugiro a extração encorajadora do texto, exigência do concurso como proposta projetual. Dentro dos limites e contrapostos do que a narrativa textual conversa com o desenho, tenho um outro compromisso a ser estabelecido, que me interessa por novo relacionamento consistente - ainda que saiba lá dessas personagens. Uma deixa proposital para articular o que vem de abstracionistas dessas conclusões alcançadas por esses dois autores e seus respectivos grupos - “rivais”. De um lado as faixas, do outro, as colagens. Em comum o espaço público, o vazio como questão, e o vazio como posição. Elemento nada revolucionário ao olhar maquinário, mas com capacidade de construir novos possíveis, que irei defender como uma prática abstracionista.
produção do espaço urbano
Como já dito anteriormente, a abstração não tem possibilidade de resolver quando o próprio questionamento ao ato de projetar necessita de uma investigação particular. Mas a partir desses novos parâmetros apresentados, se articula uma nova teia de relações, onde ouriço passa a ser raposa. Essa analogia é extraída de Schumacher, com quem Rowe dividiu seu escritório. O comparativo insere uma discussão sobre os limites da teoria urbana, na qual a centralidade do ouriço se contrapõe a iniciativa da raposa de se espraiar por campos de outras substâncias. A partir dessa introdução, a opção pelas colagens atribui a proposta de Rowe uma interpretatividade fundamental para discutir a pluralidade urbana. Se revela a partir de estímulos usuais, mas com dimensões ampliadas e contrapostas, onde a representação é senão a maior explanação desse argumento. Não por razões laterais, a proposta se baseia no bem-vindo às discussões gerais, compreendidas nas particularidades capacitadas de reunir as maiores divergências possíveis. Conciliar a tradição, dentro de toda sua conotação simbólica-histórica com os pensamentos mais retrógrados possíveis, ou o percurso utópico dentro de toda sua ansiosa genialidade emancipadora sem saber do que, é no mínimo sedutora. E mais: é a garantia de que o eu-urbanista, ao menos, se dissolve para além do escritório, e se dispõe ao diálogo metodológico estabelecido, alimentado pelo fomento das ideias conflituosas; pelas provocações direcionadas, mas sem controle de resposta, sem previsibilidade orientada. Descobre uma oportunidade, não livre de incoerências subsequentes possivelmente, para uma nova mediação.
A articulação dos teóricos efetuadas dessa maneira, portanto, concorda com uma organização reflexiva pelas respectivas capacidades comunicativas e efetivadas de propostas diante de cenário complexo, como as cidades. Desde um método positivista, até a entrada em níveis de maior abstração, mas com capacidades mediadoras-comunicativas divergentes, construo minha percepção de um caminho de distâncias assimétricas entre os autores. Desta forma, a previsibilidade de Gehl pouco contribui a me atentar aos conflitos urbanos e suas especificidades, onde paira materialidade de privilégios com os quais, ora me identifico, e constantemente pretendo fazer menos influente. Isto, enquanto que Koolhaas e Rowe identificam caminhos possíveis de interações renovadas - com ainda maior atenção à Rowe em seu ponto de partida investigativo e conflituoso, que aparece aqui diante de uma aposta na imagem uma saída à frustradas aproximações - não menos que seus produtos. Oportunidade, em sopro último, de convite ao próprio ser, entre o eu e coletivo, de sentidos inerentes e particulares, como cada - o - um.
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projeto de urbanismo III
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS NESBITT, Kate (Org.). Uma nova agenda para a arquitetura. São Paulo: Cosac Naify, 2006.
A fotomontagem: Les Pions, Margot Nouaille
DEJTIAR, Fabian. “Gehl: O paradoxo de planejar a informalidade” [Gehl: la paradoja de planificar la informalidad] 13 Mar 2018. ArchDaily Brasil. (Trad. Pereira, Matheus) Acessado 03 Out 2018. <https://www.archdaily.com.br/ br/890237/gehl-o-paradoxo-de-planejar-a-informalidade> ISSN 0719-8906
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O Brasil passou por mais de 300 anos de colonização e utilização de mão de obra escrava. Tendo em vista esse passado obscuro e violento frente a como a história é registrada e disseminada, vem as seguintes indagações sobre o regime visual constituído: esse passado tem influência na produção visual? Quem a produz? O que tem mais exposição e circulação? O que se perdeu?... E muitas outras perguntas. Muitas dessas perguntas e inquietações já permeavam minha vida acadêmica e profissional, o descompasso entre a história oral, o discurso textual, e mais ainda com o regime visual hegemônico1 ficou para mim cada vez mais evidente. Na bibliografia principal, busco entender esse regime visual através dos textos de Joaquim Barriendas e Ulpiano de Meneses, que tratam de colonialidade na perspectiva visual e propostas cautelares no estudo de fontes visuais respectivamente. Na montagem dos grupos, utilizo como base a metodologia de antropologia visual desenvolvida por Aby, expondo tanto visualmente como espacialmente essa trama e minhas percepções e interpretações. Daniel Brandão Nunes da Silva Professora supervisora:
Anna Rachel Baracho Professora orientadora:
Adriana Caúla
Professora co-orientadora:
CristinaNacif
trabalho final de graduação
Ao tratar de regime visual, seria impossível me retirar como influenciador dapesquisa, já que as construções e cristalizações também estão no meu imaginário. Dessa forma, fui percorrer a produção visual sobre o Rio de Janeiro, indo do geral ao específico em busca das repetições, e vendo o que esse quebra-cabeça me dizia, o que se encaixava, o que faltava, o que repetia e onde isso dava.
Entendo por regime visual hegemônico a repetição na produção visual que é consonante com os interesses do processo de colonização e de dominação pós colonial, comumente produzido pelos próprios colonizadores, mas quando não, ainda sim centrado nos mesmos.
Pensando em uma cidade complexa e singular como o Rio de Janeiro não é diferente, ainda mais quando há a necessidade de pesquisar sobre suas representações visuais.
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CAMINHOS, PERSISTÊNCIAS E INCONSISTÊNCIAS DO REGIME VISUAL SOBRE O RIO DE JANEIRO
produção do espaço urbano
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Passamos a vida inteira adicionando imagens no nosso acervo mental. A mente humana, a partir da visão, generaliza, omite e distorce. O empilhamento das experiências visuais influenciam na leitura seguinte e assim por diante.
(Anne Cauquelin)
Quem inventou a nossa? De acordo com Meneses, em seu artigo “Fontes visuais, cultura visual, história visual”, não há uma história da imagem com ênfase nos seus usos e funções. Esta abordagem poderia trazer uma grande colaboração ao analisar o regime visual sobre o Rio de Janeiro e possibilitaria um grande avanço nas análises e discussões, que poderiam chegar a um patamar mais avançado. Apesar desta constatação, seguirei meus esforços não com a intenção de darsoluções ou grandes certezas, mas para principalmente chamar atenção para o tema e talvez, o que seria muito feliz, instigar novas pesquisas sobre a visualidade em trabalhos futuros na Arquitetura e Urbanismo. Meneses (2003) propõe que os documentos visuais tem três focos, transcritos abaixo, que merecem investimento e que não podem ser isolados uns dos outros:
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a) o visual,que engloba a “iconosfera” e os sistemas de comunicação visual, os ambientes visuais, a produção / circulação / consumo / ação dos recursos e produtos visuais, as instituições visuais, etc.; 2018.2
caminhos, persistencias e inconsistências do regime visual sobre o rio de janeiro
“A noção de paisagem e sua realidade percebida são invenções”.
E COLONIALIDADE
PROPOSTAS CAUTELARES
A descolonialidade é uma resposta a lógica da colonialidade, um dos lados da globalização, explicação trazida por MIGNOLO, Walter. Colonialidade o lado mais escuro da modernidade. Duke University: Durham, 2011.
Grande parte da produção do arquiteto e urbanista é dedicado a representação, seja ela textual ou visual. Dessa maneira, é de grande importância refletir sobre discursos e referências, os atores que produzem a história visual e textual que temos acesso, e o que vai sendo sedimentado e naturalizado no nosso imaginário, ressaltando o fato de que, como futuro arquiteto e urbanista, faço parte desta construção e lógica de produção.
Decolonial seria a recusa total a referências do colonizador, definição baseada em GONZATTO, Rodrigo. Como se escreve: Decolonial ou Descolonial.
As montagens de imagens criadas neste trabalho são investigações, servem para que as pistas apareçam e o trabalho e a pesquisa se desenvolvam.
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É necessário dizer que tendo em vista as perspectivas decoloniais²/ descoloniais³ e das ferramentas atuais e do passado que a parte visual do trabalho inicia. Chamo atenção para o fato de que eu parto de referências documentais de um regime visual hegemônico e, por isso, passo por um processo descolonial e não decolonial para desvelar questões, inconsistências, persistências…
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As culturas visuais etnocentradas, segundo Barriendas (2011), tem profundas conexões com a matriz lumínica do saber ocidental, e com o ocultar do sujeito que observa e seu lugar de observação. Demonstrando que a racionalização não torna o regime visual imparcial ou o observador inexistente, apenas reafirma uma estratégia colonial de naturalização e não questionamento da narrativa visual posta. “Por lo dicho hasta aquí, a ninguno le sorprenderá escuchar que la maquinaria racializante de las culturas visuales etnocentradas tiene profundas conexiones con la matriz lumínica del saber occidental, es decir, con el arrojar luz (conocimiento) sobre las tinieblas de lo desconocido, y con el ocultar no sólo al sujeto que observa, sino también su lugar de observación y enunciación del conocimiento.”
produção do espaço urbano
(BARRIENDAS, 2011, p. 22)
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Havia uma disputa de visões do mesmo território. A história mostra que em uma sociedade colonial há um controle quase total das narrativas pelo colonizador, o que praticamente interdita qualquer tipo de avanço do outro, muitas vezes impedidos pelo extermínio. Diversos artistas europeus percorreram o Brasil desde o início da colonização, especialmente no século XIX, no qual há uma grande produção de representações do cotidiano e paisagens locais. Essa produção retornava à Europa como mercadoria ou era vendida à classe dominante brasileira majoritariamente europeia ou seus descendentes. Destaco essa pintura de Frans Post, que não é de terras cariocas, e que em minha pesquisa encontrei uma breve análise sobre o trabalho do artista no blog do Instituto Moreira Salles (IMS)5 que exemplifica algumas questões tratadas aqui.
Vista sobre um vale, de Frans Post, 1667
trabalho final de graduação
https://ims.com.br/por-dentro-acervos/frans-post/
1. Controle das instituições; Sistemas de comunicação visual; 2. Ditadura do olho; 3. Papel do observador.
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Assim, passo a tratar do processo histórico que se mostra como grande influenciador do Regime visual sobre o Rio de Janeiro, processo este que é a colonização e posteriormente colonialidade4. Processo histórico que está inserido nos três focos tratados anteriormente, destaco aqui alguns pontos deles que seriam:
Colonialidade é o termo que se utiliza nessa dinâmica moderna de controle que opera até os dias de hoje centrada na Europa e EUA. Adoto definição de colonialidade baseado em MIGNOLO, Walter. Colonialidade o lado mais escuro da modernidade. Duke University: Durham, 2011.
c) a visão, os instrumentos e técnicas de observação,os papéis do observador, os modelos e modalidades do “olhar”.
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b) o visível, que diz respeito à esfera do poder, aos sistemas de controle, à “ditadura do olho”, ao ver/ser visto e ao dar-se/não–se-dar a ver, aos objetos de observação e às prescrições sociais e culturais de ostentação e invisibilidade, etc.;
É necessário dizer que a referência metodológica utilizada foi ao encontro da pesquisa. Warburg surge de forma a dar solidez a uma forma de trabalhar que já se havia iniciado quase que intuitivamente ao tratar os dados. As imagens e os textos não possuem uma fixação permanente: em cada nova montagem ocorrem novas associações, e a própria permanência delas não é garantida e, assim como há o acréscimo de imagens, também podem haver subtrações. Esse processo de adição, subtração e posicionamento pode ser infinito, não há uma conclusão do mapa, é apenas a última montagem congelada em meio a um processo contínuo.
E MONSTAGENS
METODOLOGIA
A noção de proximidade e vazio são essenciais para o entendimento da montagem do mapa, a separação dos grupos, escassez e correlações estão intimamente ligados a fixação no espaço e a produção no tempo. A pesquisa tem alguns filtros. O principal é o próprio pesquisador, que escolhe as informações e onde irá fixá-las, conduz a pesquisa, e assim como quem produziu cada item do regime visual tem seu lugar de observador, local de observação e visão de mundo. O mapa fala sobre caminhos, persistências e inconsistências, mas também fala de mim, inclusive como alguém que nasceu e vive no Rio de Janeiro.
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Aqui prossigo com as montagens, os grupos e análises, onde as imagens originais em maior qualidade e respectivas fontes estão em: danielbns.tumblr.com
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Nesse sentido, entende-se que por mais que esses trabalhos artísticos fossem as únicas fontes visuais do que era o Brasil da época, se tratava de uma mercadoria que deveria agradar esteticamente os anseios de uma cultura ocidental europeia. As obras produzidas comumente mostram os contrastes dos “selvagens”6 e do processo civilizatório de forma consonante com a visão positiva da modernidade e a ausência, ou minimização, da opressão e violência dos conflitos inerentes à sociedade escravagista retratada.
Os “selvagens” aqui são os “não brancos”, civilizações indígenas originárias da América ou Africanos trazidos via tráfico para serem escravizados no Brasil.
De acordo com Ernst Boogart, do Instituto Moreira Salles, o pintor Frans Post, em cerca de um quarto de sua produção, utilizava alguns elementos e interpretação própria para construir uma paisagem que não existia de fato. Os conflitos sociais e a violência, que sabidamente ocorriam no Brasil colonial, estavam ausentes em toda a obra do artista. O Brasil é retratado como um lugar aprazível e o artista tem uma visão positiva do processo civilizatório.
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É importante notar como as tensões inerentes ao descobrimento, escravidão, desigualdade social e segregação, praticamente não aparecem. A história violenta do Rio de Janeiro escravagista, o genocídio indígena, as lutas por moradia e outras demais manifestações populares são minimizadas ou ausentes e relegadas a segundo plano se compararmos com as representações de paisagem. Essa invisibilização dos conflitos históricos e da dimensão dos mesmos cria na visualidade um falso cotidiano pacífico agravado na modelagem virtual, ainda mais homogeneizadora, que contraria os dados históricos e relatos do passado do Rio de Janeiro e do Brasil. 2018.2
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COTIDIANO
O cotidiano é uma montagem que se volta a escala humana: a vivência no Rio de Janeiro. Nota-se que, em um âmbito geral, há um número reduzido de representações nesse tema e, no recorte temporal, uma maior produção no século XIX.
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A MIRADA
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O caminho do olhar hegemônico, o deslocamento do centro em direção a Zona Sul da cidade, lenta porém perceptível. O ponto de vista do Corcovado para Botafogo, que marca nosso imaginário do Rio de Janeiro até hoje, iniciou-se na virada do século XIX para o XX, mais de 100 anos de cristalização no imaginário nacional e internacional e é exatamente ela que marca o caminhar do olhar. A hipótese do caminho do olhar é reforçada pela dificuldade de se encontrar uma imagem do Corcovado que visualize a Zona Norte, uma área que repetidamente é invisibilizada. Porém, a Zona Norte não é a única invisibilizada. Na busca geral, a Zona Oeste também é deixada de lado, salvo os bairros litorâneos que na história recente começam a ganhar uma certa visibilidade dentro do regime visual hegemônico, a Barra da Tijuca tem se tornado um novo foco, mas ainda em uma perspectiva futura das modelagens. trabalho final de graduação
Há também um marco no início do século. XX, que é a valorização ideológica da moradia próxima ao mar como afirma Abreu (2010), o que seria um argumento para explicar a predileção do olhar hegemônico para a ocupação e movimentação da parcela mais rica da população pelos bairros litorâneos e não quando a mesma ocupa algumas áreas da zona norte, por exemplo. A questão da movimentação da elite também explica o porquê a Barra da Tijuca, apesar de inserida nas modelagens, ainda não aparece como um novo ponto no caminho do olhar, é ainda uma projeção. A elite ainda se encontra em peso na Zona Sul da cidade.
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É imprescindível dizer que o olhar hegemônico segue de alguma forma a área de ocupação das classes mais ricas do Rio de Janeiro: conforme ela se movimenta no território, o olhar a acompanha; por outro lado, se desvia de onde os mais pobres ocupam.
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CONSIDERAÇÕES FINAIS
Janine Vittori, em seu texto Le paysage, conclui a partir de A invenção da Paisagem, de Anne Cauquelin, que a paisagem tem uma origem artística, de que a maneira que vemos a paisagem não é natural e, dialogando com os autores decoloniais, esse acúmulo que forma a cultura visual tem um observador europeu, seu lugar de observação e sua visão de mundo. Como consequência, arrisco apontar que o caminho pela busca da identidade, aqui na América Latina, passa necessariamente por uma arqueologia da história visual, textual, oral e uma cuidadosa reflexão sobre ela. É necessária a busca por vozes que foram caladas, e as incoerências dentro do discurso hegemônico.
produção do espaço urbano
Por fim, a ideia neste trabalho foi de fazer esse breve retorno à História e reconhecer a heterogeneidade do que forma a nação, a cidade e a população, suas tensões e conflitos, muito além do que é massificado em nosso imaginário. Provocando o leitor a questionar suas fontes, o observador, as influências, a si próprio e buscar as peças que faltam nesse complicado quebra-cabeça.
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trabalho final de graduação
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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produção do espaço urbano
O projeto se desenvolve sob a ótica da transescalaridade, considerando desde os fluxos de bairro até os fluxos de escala global presentes no Rio de Janeiro, com especial atenção à dimensão local e à articulação de um território com múltiplas convergências. Busca-se o resgaste da memória social e histórica da região, abrindo espaços para as práticas locais, trazidas da ancestralidade à contemporaneidade, e valorizando o patrimônio menos evidente. São promovidas moradias no centro, integradas a equipamentos e a espaços públicos qualificados, tendo em vista a democratização do espaço urbano e a autonomia dos citadinos.
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concurso
POTENCIALIDADES E CONFLITOS
Professoras orientadoras:
Fernanda Sanches e Clarissa Moreira
RUPTURAS,
Amanda Bueno, Ana Luiza Mazalotti, Carolina Antonaccio, Ingrid Esteves, Isabella Valentim, Juliana Benévolo, Luana Cristina e Otávio Socachewsky
PORTUÁRIA:
O concurso universitário nacional de urbanismo produzido pela revista PROJETO chegou em sua 4ª versão em 2018 tendo como tema “O urbanismo (é) para todos”. Assim, um dos seus objetivos é incentivar os alunos ao desenho urbano evidenciando a relevância do urbanismo e das suas ações. Os requisitos do programa para o concurso eram o equilíbrio entre habitação e oferta de trabalho; o sistema de mobilidade de acordo com o contexto havendo mescla de diferentes modais; a preservação ambiental; utilização racional dos recursos naturais; infraestrutura compatível ou de implementação viável e demonstrar capacidade de diálogo entre setores público e privado. Desse modo, foram selecionados 5 trabalhos, dentre os quais esse recebeu menção honrosa. Corpo Editorial
À CENTRAL
ZONA
DA BAÍA
CRUZANDO ESCALAS
4
Recentemente, a região portuária passou por grandes transformações por conta da Operação Urbana do Porto Maravilha, a maior parceria público– privada da história do país, um projeto de requalificação urbana lançado em 2009, no contexto dos megaeventos esportivos que aconteceriam na cidade do Rio de Janeiro. Para atrair um público de alta renda, o projeto investe em infraestrutura e no estímulo de atividades imobiliárias e turísticas na região, através de megaempreendimentos, verticalização urbana, alterações na legislação de uso e ocupação do solo e substituição de atividades tradicionais por outras ligadas à economia global, mudaram radicalmente a paisagem urbana. Por outro lado, os moradores que habitam o Porto por gerações, pertencentes à classe trabalhadora, e em grande parte a comunidades afro-brasileiras, vêm sendo pressionados a sair da região, seja através de remoções forçadas ou por processos de gentrificação. A região portuária abriga um rico patrimônio e um histórico de lutas e resistências, além de uma parte importante da herança africana no Brasil que ao longo da história sofreu forte estigmatização socioespacial.
HABITAÇÃO Gamboa, Saúde e Santo Cristo são bairros que compõem a região portuária, vizinhos ao Centro e à beira da Baía de Guanabara. Historicamente, essa região recebe usos mais periféricos, ligados às atividades portuárias e se configura como uma zona periférica do Centro. A relação trabalho-moradia se mostra bastante sólida devido à proximidade com o centro financeiro e econômico da cidade e as consequentes oportunidades de geração de renda.
DIMENSÃO AMBIENTAL
MOBILIDADE TRANSESCALAR
O espaço físico da área central da cidade do Rio de Janeiro passou por radicais intervenções que alteraram sua paleogeomorfologia, que objetivavam adequar o território para urbanização, diretamente na perda de cobertura vegetal, impermeabilização do solo e nas dinâmicas de drenagem.
Importantes vias arteriais contornam a região portuária, interligando a região central com as várias zonas da cidade e outros municípios da região metropolitana. São nestas vias que se localizam indispensáveis estações de modais de transporte, como a rodoviária Novo Rio, Central do Brasil, Barcas Praça XV, Aeroporto Santos Dumont e Porto do Rio, pontos que estabelecem a conexão da cidade com outras escalas de fluxos e com outras cidades do país e do mundo.
As áreas planas à beira da Baía eram cobertas com vegetação de restinga e o cordão montanhoso, de Mata Atlântica. Já a porção plana do território próximo à Central do Brasil era alagadiça, com brejos e manguezais onde havia um braço de mar que adentrava o território.
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cruzando escalas: da baía à central
A questão da habitação na região portuária é marcada pela informalidade e resistência, considerando o passado, as formas de habitar ali comuns e o perfil socioeconômico de sua população. Apesar disso, atualmente verifica-se uma ausência de ações concretas no âmbito da produção habitacional social.
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PROPOSTA MACROESCALAR:
RECONECTAR O PORTO A organização dos espaços livres e construídos definem a forma de uma cidade. Mas a forma urbana é também fruto dos deslocamentos dos citadinos em suas atividades cotidianas, geralmente longos em tempo e distância. Para encurtar estes trajetos e diminuir o consumo energético, neste projeto, adotase o conceito de cidade compacta. Promover o direito à cidade implica em tornar o espaço inclusivo, dinâmico e atraente, com a promoção de habitação popular integrada a uma vida urbana diversa, além de incentivos para a economia local. Com o objetivo de desvelar as histórias apagadas do porto, propõe-se intervenções artísticas feitas por moradores locais de forma a valorizar suas trajetórias de vida e suas origens. Os Centros Sociais surgem como ações pontuais de melhoria das vizinhanças, impulsionando atividades culturais, de geração de renda e de produção autônoma de alimentos, entre outros. Trata-se de uma estratégia efetiva de produção e fornecimento de alimentos, enverdecimento das cidades, educação ambiental e coesão comunitária. Busca-se, para a implementação dos mesmos, áreas subutilizadas e próximas a habitação, para dinamizar e ampliar os usos do espaço, aumentando a segurança e a qualidade de vida dos citadinos. A habitação popular vai além de um imóvel entregue a uma família. A existência de políticas habitacionais é especialmente importante nas áreas centrais, de forma a tornar as cidades mais compactas. Minimizando assim os impactos ambientais que uma cidade espraiada produz, além de reforçar o vínculo casa-trabalho e a vitalidade urbana.
O recorte escolhido como área de intervenção concentra equipamentos que transpassam a escala metropolitana e possui uma dinâmica urbana muito ativa, ao mesmo tempo que apresenta problemas de fragmentação, grandes terrenos vazios e subutilizados – fator este de grande relevância para a demarcação da área de estudo. Outro fator preponderante foi a não execução de propostas de requalificação da área no contexto da Operação Urbana Consorciada (OUC). Constitui um trecho de desenho alongado, com potencialidade de conexão à Baía de Guanabara através de um eixo viário composto pelo Túnel João Ricardo, ligando a Gamboa ao Centro. Aparentemente possuindo características diferentes, os bairros apresentam semelhanças no que diz respeito ao uso e ocupação do solo além de necessidades a serem atendidas, o que configura um potente modelo de autonomia para a Região Portuária.
ANÁLISE DA ÁREA
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concurso
DE INTERVENÇÃO
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Entende-se que, dada a transescalaridade da região, deve-se adotar o transporte de massa, público, assim como o individual sustentável. Criam-se hubs de transporte que articulam diversos modais de forma a tornar a área mais acessível e conectada.
MASTERPLAN
cruzando escalas: da baía à central
Propõe-se um sistemas de praças e pequenos parques integrados, conectando a Central do Brasil à orla da Baía de Guanabara, associados à implantação de equipamentos urbanos e de edifícios destinados a habitação de interesse social. Tais espaços públicos buscam estabelecer uma continuidade entre o ambiente construído e as áreas livres, integrando os novos edifícios ao tecido urbano existente por meio do uso de fachadas ativas e térreos comerciais. Esses projetos, programas e investimentos serão uma contrapartida necessária às parcelas mais desprotegidas da Operação Urbana Porto Maravilha. As correções do grande projeto urbano, ao eliminar barreiras e rupturas abruptas, irão gerar novas dinâmicas socioeconômicas e ambientais na área. 2017
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No plano da mobilidade, a conexão entre os diferentes modais propostos para a área e os meios de transporte de massa que atendem à metrópole do Rio de Janeiro marca o traçado do projeto. Esta conexão ressalta o caráter transescalar da proposta. A área trabalhada é beneficiária da proximidade à Central do Brasil e do seu grande fluxo de pessoas. O recém-implantado VLT, cujas linhas conectam a zona à estação intermunicipal de barcas e ao aeroporto Santos Dumont, facilita o deslocamento entre terminais. Propõe-se reativar o teleférico que liga o alto do Morro da Providência à Central, associando-o a outros modais para promover mobilidade sustentável e acessibilidade universal.
MOBILIDADE
Para estimular a caminhabilidade no tecido urbano, foram criadas praças internas e ruas para pedestres, que estão ligadas aos eixos locais de circulação. Um trecho do principal eixo de conexão, que franqueia o acesso aos principais equipamentos – Biblioteca, Hortomercado/Centro Gastronômico, Centro Social – será uma rua compartilhada entre automóveis, pedestres e ciclistas.
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A fim de incentivar o transporte coletivo e, assim, promover amplo acesso público aos equipamentos, foram criados dois hubs: um na parte próxima ao Centro do Rio e outro na parte próxima à orla portuária. Ambos conectam a Central do Brasil, o teleférico da Providência, o VLT, o terminal de ônibus Américo Fontenelle e a ciclovia aqui proposta.
concurso
Visando resgatar a relação dos moradores com o ambiente e a paisagem da Baía de Guanabara, é proposto um piscinão na orla. Em uma cidade banhada pelo mar, onde as temperaturas atingem mais de 40º C, dar um mergulho na praia ainda é um privilégio do qual boa parte da população da zona portuária não costuma desfrutar. O equipamento surge como alternativa de lazer na área, simbolizando o usufruto popular das águas da baía, articulado a uma esplanada que oferece a contemplação da vista do mar e, ao mesmo tempo, convida à relação com a trama urbana interior.
O mobiliário urbano foi projetado em módulos encaixáveis de plástico reciclado, visando permitir que os moradores realizem arranjos diversos para atender às suas várias demandas. A medida visa estimular novas formas de aproximação do espaço público, com participação ativa da população na produção do mesmo. Amalgamadas às práticas locais da ancestralidade à contemporaneidade, as possibilidades de arrumação do mobiliário contemplam atividades de caráter permanente ou temporário e que atendem a diferentes faixas etárias, podendo compor: hortas comunitárias, áreas de jogos, palcos para apresentações, parquinhos infantis, feiras, dentre outros usos. 2017
cruzando escalas: da baía à central
ESPAÇOS PÚBLICOS
Os espaços públicos foram pensados de forma a sugerir novas convergências, misturar fluxos locais com fluxos de visitantes dos bairros, e possibilitar mais trocas e interações. A intenção de cruzar olhares e atividades explora as dimensões transescalares do espaço, encarando-o sob diferentes perspectivas, locais, metropolitanas e extra-locais, estimulando a cidade como local da diversidade e da copresença.
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HABITAÇÃO
As soluções propostas para a promoção de habitação de interesse social envolvem: a criação de um novo tecido urbano em grandes áreas subutilizadas; a readequação de uso de edifícios desocupados; o restauro e reabilitação do casario antigo, que encontra-se em mau estado de conservação; e a regularização fundiária na região da Pedra Lisa.
As novas quadras projetadas seguem um modelo de ocupação de borda, com miolos livres e de uso coletivo, acessados por vias exclusivas a pedestres e ciclistas. Os novos edifícios seguem um modelo de fachadas contínuas e ativas, possuindo uso misto, com comércio e serviços acontecendo no térreo. Busca-se estimular uma relação mais próxima dos edifícios com a rua, evitando-se afastamentos frontais e permitindo-s um gabarito máximo de sete pavimentos, em que o morador do último andar ainda consiga interagir com os transeuntes. Os terraços dos novos edifícios são de uso coletivo e podem receber hortas comunitárias. Estima-se que, com as novas habitações propostas, a área poderia receber mais de 1.200 famílias.
produção do espaço urbano
O casario antigo é composto de pequenas unidades térreas, erguidas no início do século XX em lotes estreitos e compridos.
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A proposta de reforma dessas casas cria um tipo que inclui a possibilidade dos moradores oferecerem serviços de hospedagem, o que proporciona uma nova fonte de renda para os mesmos, e uma forma de viabilizar financeiramente essas obras e sua manutenção. Essa proposta atua na preservação do patrimônio local, ao mesmo tempo que incorpora práticas de moradia coletiva comuns na área e incentiva um turismo sustentável. A nova configuração das casas permite a construção de até quatro pavimentos adicionais (contando com o terraço), de forma escalonada, com recuos de fachada a partir do segundo pavimento. Devem ser utilizados materiais que conversem com a arquitetura original e, para fins de ventilação, é sugerido o emprego de elementos vazados (como cobogós) para permitir que o ar penetre pelas aberturas frontais e suba para o terraço através do prisma de circulação, provocando um efeito termossifão. concurso
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B litogravura: Podar-se, Ana Clara Lemos
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REFLEXÕES SOBRE A PRODUÇÃO DO ESPAÇO O trabalho de autoria da Mariana Pacheco é uma boa URBANO síntese do processo interdisciplinar que a Universidade SOB A LÓGICA CAPITALISTA pública deve cumprir. A discente, oriunda do curso de arquitetura, a partir de uma disciplina cursada no curso de Serviço Social, intitulada Questão Urbana e Favela no Rio de Janeiro, produz um trabalho que articula conhecimentos das distintas áreas. O trabalho, baseado na análise da construção das cidades como produto do Desenvolvimento Desigual e Combinado do Capitalismo, articula importantes categorias e conceitos para a compreensão da conformação dos distintos territórios da cidade do Rio de Janeiro, considerando o papel central do Estado e as diretrizes para a luta pelo direito à cidade. O trabalho aborda o debate sobre as remoções, os projetos de segurança pública pautados na busca de controle social, como foi expressão as Unidades de Polícia Pacificadora e a gentrificação, uma forma de remoção não clássica de trabalhadores pobres de territórios favelas das áreas mais valorizadas da cidade do Rio de Janeiro. Ao trabalhar o aspecto do medo, da estigmatização dos moradores das favelas, os processos de segregação e autosegregação, o trabalho explicita que o debate do direito à cidade para todos e todas, é uma condição para relações sociais humanizadas e que essa luta é tarefa dos próprios trabalhadores que hoje tem seus direitos alijados pela lógica capitalista de organização das relações sociais, do qual o espaço urbano é uma expressão. Eblin Farage
produção do espaço urbano
Mariana Pacheco A formação do espaço urbano moderno é produzido sob a lógica do Capital, processo que repercute e auxilia na manutenção de desigualdades e processos de segregação espacial, seja induzidos ou não (autossegregação). Tal lógica, evidenciada pela Teoria do Desenvolvimento Desigual e Combinado fundamentada por Leon Trotsky (1978, p. 24-25), elucida a estrutura da manutenção do capitalismo – sistema que engloba o mundo, com uma lógica de produção mercadológica visando o lucro por meio da absorção do excedente produzido pela personificação desse sistema, os capitalistas – de maneira que este necessita produzir desigualdade, em diferentes escalas, formando sempre ilhas de miséria em meio a áreas de grande riqueza. O espaço urbano em questão se traduz no produzido no Rio de Janeiro desde o século XX cuja formação muito deve à grande influência do modernismo no Brasil – estilo arquitetônico que buscava a solução do problema urbano por meio idealista e pregava a igualdade na
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questão urbana e favela no rio de janeiro
concepção de suas obras em busca de retratar a verdadeira imagem do país. Representada pela tentativa de se produzir uma arquitetura condizente com a realidade social, porém sem buscar de fato meios para isso. Tendo no fim, feito na prática, um alinhamento com a lógica de produção da cidade proporcionada pelo capitalismo. Mesmo que antes dele a produção arquitetônica e urbanística já convirja com esse sistema, tendo então assumido diversas maneiras de lidar com a questão da moradia e do pauperismo. Todas essas influências pré e pós modernismo formaram o que atualmente é a cidade do Rio de Janeiro. Tornou-se como é por conta da industrialização (mesmo que tardia, se comparada com os países da Europa) que propiciou a formação da cidade como ela é: moderna. Muito marcada pela intervenção urbana da Reforma de Pereira Passos, a mais notável da época, que resultou na remoção de milhares de famílias do centro da cidade e produziu uma nova configuração e maior densificação da ocupação da periferia e áreas não urbanizadas – de maneira vernacular e sem qualquer assistência técnica. Havia um discurso de melhora da organização espacial do centro, que mascarava a vontade de higienizar essas áreas de grande valor estratégico. Não foi a única forma de intervenção, a cidade teve inúmeros exemplos de remoções de populações pobres para áreas longínquas e com escassez de infraestrutura urbana consolidada em variadas épocas. Mesmo que em tempos mais recentes, em alguns
casos, sendo dada uma solução de reassentamento pelo Estado , com moradias sem conexão com a malha urbana da cidade, como é o caso do programa “Minha Casa, Minha Vida”, ainda é utilizado como um mecanismo de amenização de tensão social. Essas remoções podem ser caracterizadas pela adoção do Estado como um tipo de política pública para a resolução do problema de moradia e de ocupação indesejada em áreas de interesse à especulação imobiliária. Entretanto, somente irá dispor o problema em outro lugar sem realmente solucioná-lo, acarretando num ciclo infindável de remoção dessas populações. A produção urbana foi e vem sendo, então, feita pelo Estado influenciado pelo interesse da classe social dominante – burguesia –, representando a propriedade privada e, consequentemente, a própria lógica do Capital. Para propiciar sua manutenção e superação de suas crises cíclicas, o capitalismo se utiliza das possibilidades do espaço urbano em absorver seu excedente de produção – sempre visando o lucro como objetivo final – promovendo expansão e revitalização de áreas de interesse à especulação. Essas grandes obras, além de produzir circulação de dinheiro e absorção do excedente, provoca o aumento do valor do solo nessas regiões. Além de estar aliado às remoções de populações indesejadas.
Deste modo, a questão da expansão se dá por colocar infraestrutura urbana em áreas outrora rurais ou pouco urbanizadas, promovendo uma valorização no território e, consequentemente, a mudança na lógica do uso do solo da região, situação vista em diversos bairros do Rio de Janeiro, como a Barra da Tijuca, que sofreu nas últimas décadas um grande crescimento e urbanização – sendo rapidamente adensada já nos moldes modernos (construção de altos prédios), sem passar por etapas de ocupação do solo, tais quais outros bairros também valorizados, como Copacabana. Quanto a questão da revitalização, caracteriza-se por trazer melhorias ao local, reurbanizando-o ou somente inserindo algum projeto de valorização imediata do entorno, como uma obra arquitetônica ou artística. No Rio de Janeiro, foi implantado na região portuária do Centro da cidade, o projeto da prefeitura denominado Porto Maravilha, que promoveu com a ampliação de equipamentos urbanos, como o Museu do Amanhã, o Museu de Arte do Rio e a Praça Mauá, uma reurbanização total dessa parte da cidade, há muito “esquecida” pelo próprio Estado. Não sendo de fato esquecida e sim articulada junto à indústria imobiliária a reserva de lotes abandonados e vazios à espera da valorização da terra para ser mais lucrativa a venda ou construção de obras no local. A ação permitiu uma ampliação de variados usos destinados ao local, aumentando também a circulação de pessoas e agregando à cidade mais uma área de uso público. Contudo, esse processo também produz a já mencionada valorização do solo urbano, que age diretamente no valor dos imóveis na região e provoca um fenômeno chamado gentrificação, que é caracterizada pela permuta de tipos de moradores na região que têm condições financeiras de arcar com os custos do local (seja aluguéis, valor da água e do gás ou Imposto Predial e Territorial Urbano – IPTU) onde está sendo provocado esse fenômeno, de tal forma que muitas vezes as famílias mais pobres não têm condições ou meios de permanecer em locais recém revitalizados. 2017
reflexões sobre a produção do espaço urbano sob a lógica capitalista
Como é possível observar no exemplo da Vila Autódromo, quando a indústria imobiliária obteve interesse da região sob pretexto da organização dos Jogos Olímpicos de 2016, e procurou de todas as maneiras propiciar a remoção da comunidade que ali habitava, ainda que a legislação não estivesse a seu favor, uma vez que os moradores haviam conquistado a Concessão do Direito Real de Uso por 99 anos.
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Dentro da lógica do sistema capitalista, a gentrificação é promovida conjuntamente a revitalização – de forma que já de antemão o Estado age em prol desse processo a fim de produzir espaços agradáveis a uma determinada classe social com o bônus de resolver outro “problema”. A retirada de pessoas consideradas indesejadas de circulação do local, seja por conta do preconceito étnico, de classe social ou econômico.
produção do espaço urbano
Como se verifica regularmente nas favelas em que foram instauradas as Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs) – outra variável na questão da manifestação da gentrificação, ao produzir (mesmo que falsa) paz e segurança aos territórios, faz-se aumentar o valor dos imóveis e consequentemente a retirada de pessoas mais pobres desses territórios agora “pacificados” que sem alternativa migram para outros considerados mais perigosos –, ocorre uma reconfiguração do tipo de morador que habita essas áreas, ainda mais visível na Zona Sul da cidade como observado nas favelas da Rocinha e do Vidigal nos últimos anos. Tendo essas pessoas nenhuma outra alternativa que não migrar para regiões mais periféricas e debilitadas de infraestrutura urbana. Esse processo, denominado por Marcelo Lopes (2005), é identificado por segregação induzida em que não se obriga a retirada – remoções – das famílias de suas moradias, entretanto promove a impossibilidade de permanência frente ao aumento do custo de vida nessas áreas.
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Ao contrário disso, como também pontuou Lopes (2005), ocorre o fenômeno de autossegregação, que seria uma segregação desejada, ou seja, as classes sociais com poder econômico capazes de realizar essas ações decidem se afastar das pessoas consideradas por elas ruins e que produziriam algum mal – propagação dessa personificação do medo e estigmatização de um grupo de pessoas, predominantemente as faveladas. Assemelha-se a segregação induzida, tendo em seu fim a fragmentação da cidade em áreas específicas para cada classe social e/ou étnica. questão urbana e favela no rio de janeiro
Mesmo que no Rio de Janeiro, especificamente, essa segregação espacial não se faça tão eficaz quanto em outras cidades do país, é vista de uma maneira mais figurativa, com o apoio do próprio Estado, como por exemplo, a diminuição de transporte público, das zonas norte para a sul, numa tentativa de diminuir a presença de periféricos nas áreas direcionadas para turistas e para classes altas, como as praias.
A maneira como a sociedade lida com esse medo pode se manifestar de diversas formas: a eliminação – que se desdobra na já mencionada remoção, mas também pode ser no sentido da execução dessas pessoas; a repressão – por meio muitas vezes do controle armado, visto principalmente pela implantação das UPPs; e o encarceramento – desdobramento de táticas punitivistas que têm como objetivo a contenção de populações pobres, já que com a crise atual do capitalismo houve a diminuição do Estado de bem estar social aliado à políticas liberais que aumentam a desigualdade. Todas essas formas seriam a tentativa de retirar o que incomoda. Essa prática é apoiada por grande parte da população que, por medo, considera péssima a existência dessas pessoas nesses locais, não somente de se ver livre de “vetores de violência” – visto que, atualmente, a imagem da pobreza é diretamente relacionada com a presença da violência –, mas também por não as considerarem detentoras dos mesmos direitos que eles. A forma como essas atitudes voltadas ao pobre são constituídas na sociedade é diretamente perpetuada por decisões políticas da classe dominante que detêm a hegemonia da superestrutura – concepção proposta por Karl Marx (1986, p. 25-26) que é a junção das esferas política, jurídica e da consciência social de uma sociedade.
reflexões sobre a produção do espaço urbano sob a lógica capitalista
Outro aspecto presente na autossegregação seria o encapsulamento dessas famílias em condomínios fechados, formando um espaço urbano de caráter privado em detrimento do espaço público e, consequentemente, produzindo áreas mais violentas, causada pela ausência de pessoas nas ruas. Com isso, cria-se um ciclo de produção de espaços privados dentro das cidades – com o pretexto de obter segurança – que somente auxiliam a fragmentação da sociedade, formando cidadãos que não identificam no outro uma identidade social comum. Outro elemento que ajuda no fortalecimento da personificação do medo em pessoas marginalizadas, que conjuntamente com a mídia propaga essa imagem de medo para toda a sociedade.
Com isso, parte da população é estrategicamente posta numa situação de miséria e fora do quadro de inserção social , chamada por José Martins (2002)de inclusão anômala, sendo postas como mártires dessa lógica, servindo para a culpabilização dos problemas nas cidades, e também sendo artifícios necessários para a manutenção do capitalismo, frente às crises cíclicas, como com exércitos de reserva. 2017
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Essa maneira de conduzir as políticas públicas no que tange o tratamento dessa parte da população, em meio a crise que também atinge o espaço urbano, produz ainda mais assentamentos irregulares na cidade. A chamada favelização do espaço urbano, tal como denomina Maurílio Botelho, ocorre por conta do aumento da miséria e diminuição de soluções habitacionais, mesmo que paliativas, agregados ao esgotamento de áreas de expansão urbana – já que a indústria imobiliária detêm as que restam. Isso leva a chamada favelização do espaço urbano, tal como denomina Maurilio Botelho (2013, p. 205). O Estado não tem interesse em solucionar os problemas da precarização do viver e, além disso, considera a favela como uma solução do problema de moradia. De tal maneira que isenta-se de qualquer compromisso com a resolução da questão e delega aos indivíduos total responsabilidade social pela obtenção e garantia de moradia adequada. Houve também no Rio de Janeiro a implementação de integração dessas favelas sem realmente adequar as condições de moradias – intervenções urbanas mínimas – como foi o caso das políticas brizolistas e do programa Favela-Bairro. O direito à cidade, que é uma equivalência ao direito à humanidade, é posto em cheque quando se trata dessas populações. Com uma política segregativa no que tange o âmbito do espaço urbano, observa-se cada vez mais frequentemente este absorvido pela dominação abstrata do Capital, que fomenta a criação de todas essas desigualdades e malefícios a essas populações estrategicamente marginalizadas.
Somente quando a população passar a questionar o gerenciamento da produção do espaço e agir de maneira coletiva, – sendo eles próprios os agentes construtores em última instância – será realmente possível produzir o espaço urbano como o verdadeiro reflexo da realidade, tal como ambicionava os modernistas.
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questão urbana e favela no rio de janeiro
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C colagem: Análise socioeconômica do Santo Cristo, Tadeu Asevedo
produção do espaço urbano
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RESUMO
UM RIO “SABOTADO”
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Mattheus Henrique Santos Bento Professora orientadora:
Clarissa da Costa Moreira
A crise global do capitalismo, econômica-política, e principalmente urbana, desnudam e colocam em pauta um modelo que se alimenta dessas mesmas crises. Mostra os megaeventos como uma possível solução de problemas estruturais do espaço urbano, de desigualdade, mas resulta num aprofundamento de diferenças, num estado caótico que pretendemos discutir a partir de três temas principais que estruturam os capítulos do trabalho. Reestruturações urbanas marcam a história da cidade e, concomitantemente, a ampliação da desigualdade no acesso à mesma. Na definição de um núcleo a ser melhor estruturado e embelezado, surgem mais claramente outras faces como a favela e os subúrbios de hoje. A sociedade, enraizada ao território urbano, se torna alvo dos mais diversos e perversos jogos políticos que se repetem e ganham novas proporções, rechaçando o direito de uma massa e destinando novas áreas à acumulação de capital através da máquina imobiliária. A dinâmica da organização social do território resulta de inúmeros conflitos, pois colocam tanto o território como a vida em disputa. A construção desigual se confirma nas relações subjetivas e materiais que podem ser observadas mais claramente nos padrões de qualidade de vida, de acesso à educação, ao trabalho, entre outros. No qual, sobretudo hoje, as condições precárias da metrópole pós-moderna fazem com que uma multidão vá às ruas, em busca de novas redes e ações. O que nos leva às jornadas de 2013, às consequentes ocupações, e observação de táticas cotidianas. O capitalismo cognitivo-informacional produz subjetividades e possui grande força nas imagens, nas representações e discursos oficiais e hegemônicos. E consequentemente, é o que nos leva a esse campo de disputa de outras representações possíveis, de ações, movimento, entre outros. Nos apoiamos, então, em cartografias que tensionam e afirmam esse estado de coisas, em novas subjetividades produzidas no contexto dos megaeventos, buscando no agenciamento dessas potências, novos caminhos, alternativas, experiências.
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INTRODUÇÃO
Este trabalho surge da percepção da persistência da profunda crise urbana que parece tomar proporções cada dia maiores em sua materialização na cidade que há pouco foi a “cidade-olímpica”, o Rio de Janeiro. O impacto frustrante do momento pós-olímpico e seus relatos, acompanhado por uma crise mais ampla e sistêmica, seja na mídia, na produção acadêmica e até mesmo nos momentos do dia-a-dia no transporte público, no comércio de bairro ou numa praça, motivaram a realizaçãodeste trabalho. O Rio é hoje uma cidade-emblema de todo o mecanismo atual de exploração financeira do espaço urbano e dos bens comuns, que constitui um fenômeno de alcance mundial. O objeto de nossas reflexões é a cidade pós-olímpica com foco nos bairros afastados do centro, a chamada periferia, ou “subúrbio”, o termo preferencial carioca, e a verdadeira relação de vida e morte que esta estabelece hoje com seus habitantes. “Um Rio Sabotado” é o nome que damos a essa situação trágica, homenageando e aprendendo com as falas de estudantes que participaram da ocupação de escolas no bairro Campo Grande, na Zona Oeste - RJ, e que, junto a outros sujeitos locais, nos auxiliam a pensar a vida cotidiana e os novos significados da metrópole a partir de seus lugares menos explorados pelas luzes às vezes excessivas dos holofotes da mídia, do turismo e até mesmo da vida cultural dominante. Em sua origem epistemológica, sabotar vem da palavra francesa saboter que, a partir do século XIX, ganha o sentido de executar propositalmente mal um trabalho a fim de causar danos e prejuízos aos equipamentos e patrões. Era compreendida como uma forma de resistência passiva dos trabalhadores insatisfeitos com as condições de trabalho, e empregado pelos estudantes hoje, no sentido de sermos nós os sabotados, por um modelo político-econômico-cultural que nos ilude e não nos dá o direito à cidadania. Olhar para toda cidade dando uma atenção especial ao chamado subúrbio é um modo de perceber se de fato houve alguma melhoria pós grandes eventos, não nos bairros que historicamente recebem investimentos, mas naqueles que desde sempre estiveram fora do eixo principal da riqueza, do turismo, da cultura “oficial” e dos serviços urbanos. Significa buscar elementos para compreender como esse processo afetou a vida cotidiana e a imagem que os moradores do subúrbio têm hoje do Rio de Janeiro e de sua região. Situaremos de maneira breve esta problemática no contexto político-econômico, urbanístico e simbólico atual e nos deteremos sobre alguns dos principais movimentos populares que ocorrem paralelamente ao processo oficial de construção do sonho olímpico, buscando assim rastros do que vem a ser esse período pós-olímpico para a parte mais “sabotada” da cidade. 2017
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Jornada junho de 2013, ALERJ campo de concentração pós-olímpico, e o irônico “RIO EU TE AMO” no marco principal da cidade olímpica. Centro (acervo pessoal)
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Nosso objetivo é relatar resumidamente o processo que nos traz hoje a uma situação de crise e incerteza urbana com poucos precedentes na história recente da cidade e do país, observando especificamente como este projeto de “desenvolvimento” urbano baseado nos mega eventos e grandes obras trouxe pouca positividade no jogo de forças dominante no Rio de Janeiro, definido pela explícita desigualdade da distribuição da infraestrutura, serviços urbanos e acesso aos atrativos da grande cidade.
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De fato, a partir de um modelo político-econômico público-privado de gestão urbana, com rebatimentos que vão da escala local à global assistimos a uma notável alta de violações de direitos, parcialidade nos gastos e isenções, além de desvios de importantes recursos que hoje faltam ao Estado. A sociedade civil tem se organizado para combater este modelo e estas práticas, o que é bastante positivo quanto à continuidade do enfrentamento, no entanto, acontece em inúmeras frentes diferentes e muitas vezes divergentes, e até o momento parece não ter havido mudanças de fundo no quadro geral, a não ser por uma provável piora das condições gerais de vida em todo o país.
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“A coalizão de forças políticas somada aos interesses de grandes empreiteiras acelerou a ‘limpeza social’ de áreas valorizadas da cidade, e de áreas periféricas, convertidas em novas frentes lucrativas para empreendimentos de classe média e alta renda. [...] Trata-se de uma política de relocalização dos pobres na cidade a serviço de interesses imobiliários e oportunidades de negócios, acompanhado de ações violentas e ilegais.” (DOSSIÊ DO COMITÊ POPULAR DA COPA E OLIMPÍADAS DO RIO DE JANEIRO, 2015:19) Podemos, aqui, exemplificar as principais linhas discursivas e temas abordados por poderes hegemônicos e contra-hegemônicos nos dois últimos anos, que atuaram sobre a criação do consenso do símbolo da cidade-olímpica e seu questionamento, respectivamente. Partiu-se da idéia de que os megaeventos seriam a grande solução para a cidade e que não impactariam e mesmo, fortaleceriam a economia local e o país no plano geral. trabalho final de graduação
“A Olimpíada sempre foi para nós uma forma de integrar a cidade, de tornar a cidade mais igual, mais justa.”, diz Eduardo Paes, então prefeito da cidade do Rio de Janeiro em entrevista ao G1, em 5 de agosto de 2015. “[...] não faltarão recursos para a conclusão das obras voltadas para à Olimpíada de 2016. [...] Já paguei 50%do décimo terceiro dos servidores e estou lutando para pagar o restante, tomara ainda esse ano. [...] Estamos tirando coelhos da cartola todos os dias... mas posso dizer que segurança, saúde, educação e Olimpíadas são nossas prioridades” Governador do Estado do Rio de Janeiro Luiz Fernando Pezão em entrevista ao Jornal Extra, 20 de novembro de 2015. Em 2016, logo antes do início das Olimpíadas, a crise local e nacional já estava deflagrada e se inicia a derrocada das contas públicas do Estado do Rio de Janeiro:
“No Rio olímpico de ingressos caros, transporte débil, estrutura desigual e tiroteios constantes, quanto mais longe uma pessoa mora ou mais pobre ela é, mais obstáculos tem para aproveitar os Jogos. Se é que ela pode se permitir este luxo.” (BETIM, 2016) A esperança que poderia ter motivado a população no anúncio dos megaeventos esportivos foi substituída por um sentimento de decepção cada vez mais expressivo e perceptível nas eleições municipais de 2016, com a derrota do governo municipal responsável pela condução do processo na cidade, e em âmbito nacional, na deposição da presidenta Dilma Rousseff. 2017
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“[O decreto de calamidade pública] tem o objetivo de obter mais recursos e direcioná-los para obras que não são prioritárias para a cidade. Enquanto isso, centenas de milhares de pessoas estão passando por necessidades básicas, tanto servidores e terceirizados que não recebem seus salários, como a população em geral que sofre com a precarização dos serviços públicos”, diz Renato Cosentino, pesquisador do IPPUR/ UFRJ e membro do Comitê Popular de Copa e Olimpíadas em entrevista à BBC, 18 de junho de 2016.
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Vários setores da sociedade alinhados ou não à mídia, conforme o interesse do momento, desmoralizaram, quando não criminalizaram a força social comum expressa: “nas ruas de junho, nos rolezinhos e fluxos, na emergência evangélica, no movimento anticorrupção de 2015, nos panelaços” (CAVA e MENDES, 2015), e por fim, nas ocupações escolares de 2015 e 2016, que também sofreram com a desmoralização e violência do Estado e da mídia. Bruno Cava e Alexandre Mendes (2016), observam como as manifestações de 2013 já refletiam a insatisfação com a “Política” e seu modelo:
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“Já em junho de 2013 estava bastante presente, aliás como no mundo todo, a tendência antipolítica que antagoniza com os partidos e sindicatos. Uma antipolítica que, na realidade, se contrapõe à Política com maiúscula, essa que aparece no noticiário da Lava Jato, nas máfias e milícias que mandam nos negócios da cidade, nas megaobras que tratoram os cidadãos.”
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“O resultado do embate, hoje, se tornou evidente. A primeira via se consolidou ao longo do segundo governo Lula, quando se firmou o arranjo de governabilidade entre os ditos campeões nacionais oligopolistas, bancos públicos/privados, operadores financeiros, burocracia de esquerda e velhas oligarquias da cidade e do campo. O Rio de Janeiro, nesse sentido, foi o laboratório perfeito para a nova tecnologia de governabilidade em que o lulismo afundaria como uma estratégia desenvolvimentista, turbinada por obras do PAC (Programa de Aceleração do Crescimento), megaeventos, favorecimento de grandes empreiteiras, pacificação militar de territórios e choque de ordem contra os não-enquadrados, associação mafiosa e miliciana de interesses.”
Esses interesses convergem para a criação de uma realidade criada que buscava excluir e calar toda polifonia da cidade. Ao analisar essas disputas simbólicas na cidade maravilhosa, Sánchez e Guterman (016) afirmam que as grandes operações de reestruturação urbana e megaeventos esportivos ou culturais, “são acionados para soldar as forças sociais das cidades e trazidos pela mão de coalizões de protrabalho final de graduação
motores urbanos que apresentam projetos de cidade ditos consensuais e competitivos”. Bem como a “Cidade Maravilhosa” foi uma imagem produzida para ser vendida, houve a produção da imagem de marca da cidade associada aos Jogos Olímpicos de 2016, inspirando-se em modelos internacionais e utilizando estratégias de branding e city marketing (SANCHEZ e GUTERMAN, 2016). Como afirma Rodrigo Ribeiro (2016), buscou meios de se inscrever na rota das cidades globais, conforme o discurso reinante durante o processo de preparação da cidade para ser sede dos eventos. Segundo o autor: “(...) numa conjuntura marcada pela desindustrialização, degradação dos centros urbanos, crescente terceirização e precarização da força de trabalho e aumento do trabalho informal, as estratégias de planificação são orientadas para conter a desordem urbana, porém com a nova roupagem do “empreendedorismo urbano”, que pretende alterar as engrenagens da máquina cultural e estética e dar uma nova imagem à cidade” (RIBEIRO apud MENDES, R. 2016, p.12)
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O que se traduz numa forma de governo e organização da cidade destinada à atração de investidores privados, o que pode ser observado, de maneira geral, nos investimentos em grandes equipamentos mais centralizados em áreas de grande interesse imobiliário e no abandono quase absoluto das áreas periféricas, não se traduzindo, necessariamente, em ganhos ou melhoras mesmo indiretas, na qualidade de vida na cidade (KAZAN et. al., 2016, p.118). Esses câmbios vividos orientados ao empreendedorismo urbano na cidade olímpica do Rio de Janeiro foram norteados por inúmeros projetos urbanísticos, requalificação urbana, infraestrutura e programas governamentais de moradia, marcados pela remoção forçada de milhares de moradores (KAZAN et. al., 2016, p.118). A partir de Harvey, se pode entender as remoções como um processo de “acumulação via espoliação dos ativos dos mais pobres”, pois a captura de terras “transformou-se em mecanismo essencial para expansão do proces2017
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so de financeirização do capitalismo”, e nos megaprojetos torna-se possível identificar a ligação entre a mulação por espoliação com a construção da hegemonia do capital financeiro, como sempre com o apoio dos poderes do Estado” (apud ROLNIK, 2015, p.243). Assim, os megaprojetos se colocam, segundo Rolnik (2015), como: “estratégias mais visíveis e centrais levadas a cabo pelas elites da cidade na busca de crescimento econômico e competitividade, marcando esse novo tipo de política urbana que ativamente produz, ordena, incorpora e define os novos regimes políticos e econômicos que operam nas escalas local, regional, nacional e global.”
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Nestes projetos, a autora também denuncia a “lógica de desenvolvimento que vê o marketing do lugar como meio de gerar crescimento e como forma de empreender uma disputa competitiva para atrair investimentos. Projetos urbanos desse tipo são, portanto, não apenas o mero resultado, a mera resposta ou conseqüência de mudanças políticas e econômicas coreografadas em outro lugar. Pelo contrário, afirmamos que esses grandes projetos urbanos, não são sentidos apenas localmente, mas também nos âmbitos regional, nacional e internacional.” (SWYNGEDOUW et. all. apud ROLNIK, 2015, p. 243)
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Essa lógica implantada na cidade do Rio de Janeiro reafirmou o processo de polarização urbana, reavivando o movimento de periferização da habitação popular. Assistimos, novamente, a condução de famílias que perderam suas casas em processos de desapropriação, em locais valorizados ou alvos de especulação imobiliária ou de grandes obras rodoviárias, em sua grande maioria, sendo levadas para a zona oeste da cidade, em regiões ainda não totalmente urbanizadas, distantes dos próprios centros urbanos da região. Segundo Lucas Faulhaber e Lena Azevedo (2015), além da função política, a marginalização territorial dessas famílias “serve também como forma de espraiamento urbano e valorização das demais áreas de planejamento da cidade” (p.69), contrariando a lógica do adensamento urbano que, por sua vez, é trabalho final de graduação
mais econômica e viável no longo prazo por exigir menos gastos com infraestrutura e podendo gerar melhor qualidade de vida, menos tempo de deslocamento de um lugar à outro e, sobretudo, dar função à uma série de imóveis e terrenos ociosos nas áreas mais centrais da cidade. Entretanto, há o interesse em incentivar novas áreas de acumulação de capital por parte do mercado imobiliário apoiado pelo Estado.
Rio Heterogêneo: estratégias e táticas. (acervo pessoal)
O que muda atualmente, no capitalismo pós-industrial, de modelo político econômico neoliberal, é que toda a cidade se torna mercadoria e as decisões de planejamento são mais do que nunca norteadas pelo retorno financeiro rápido. Nesse âmbito, esta nova fase do capitalismo explora ainda questões vitais ligadas à própria vida cotidiana e aos fluxos criativos da cidade como criadores de valor (COCCO e SASSO, 2015). Ana Clara Torres Ribeiro (2011) também analisa este novo capitalismo – informacional e cognitivo, cujo modelo aflora com maior nitidez na “reestruturação sócio-espacial esculpida pela reestruturação produtiva”, fazendo com que as contradições adquiram conotações e escalas de maior abrangência e que os mais pobres paguem os custos da especulação financeira. Esse acúmulo de capital torna o uso da imagem imprescindível para “representações dominantes da vida coletiva que alimentam o senso comum”. (Ana Clara Torres Ribeiro, 2011). Se o território é alvo de políticas públicas traçadas em função do mesmo, sendo compreendido como uma “tradução operacional das estruturas e desigualdades sociais” cuja construção buscaremos relatar na primeira parte deste trabalho, nos colocamos a pen2017
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Nesse sentido, R. Ribeiro (2016), ao analisar o mapeamento dos lançamentos imobiliários entre 2010 e 2015, observa que apesar de Barra da Tijuca, Recreio e Jacarepaguá concentrarem números significativos, diversos bairros reconhecidos como suburbanos estão na lista dos 10 bairros com maiores investimentos em unidades habitacionais construídas na cidade. Desta maneira, podemos perceber que há o interesse na construção de unidades habitacionais em bairros descentralizados, de solo mais barato, menos infraestrutura e serviços, mas sem investimentos em oferta de trabalho, comércio e serviços. Considerando o tempo gasto no transporte, a máquina imobiliária parece visar apenas a viabilidade de seus empreendimentos, sem preocupações com a qualidade de vida desta população e os impactos na infraestrutura existente já amplamente desigual e insuficiente.
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sar, numa segunda parte do trabalho, a cidade/território apoiados no conceito de “cartografia da ação” de Ana Clara Torres Ribeiro, a partir do qual trabalhamos uma complexa rede de subjetividades/materialidade na cidade, a fim de contribuir com a construção de uma leitura contra-hegemônica da cidade olímpica e seus esquecimentos. Trabalharemos, por um lado, na contextualização geral desta questão e por fim, na parte três, na criação de imagens e cartografias que possam contribuir com o registro dessa(s) outra(s) cidade(s), subúrbio ou periferia, o que aqui chamamos de “Um Rio Sabotado”. Trabalharemos, assim, na linha do que expõe A. Ribeiro, abaixo, no sentido da própria luta e resistência da cidade que, apesar de sabotada, vive, produz e cria, muitas vezes até mais do que a cidade dos holofotes.
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“O conceito de território usado, assim como o de espaço banal, confronta alisamentos do espaço produzidos pelo Estado moderno (Guattari, 1985). Alisamentos e abstrações normativas, facilitadoras da incessante ampliação das escalas de realização do lucro, apagam memórias, aprendizados, projetos e sentidos da ação. Mas, os contextos criados pela vida de relações trazem à tona a experiência social. A cidade viva e experimental, e plena de rugosidades, não morreu. Apesar dos impactos da crise societária, esta cidade permanece ativa na tessitura do cotidiano. Daí a importância do reconhecimento da ação possível ao sujeito social. É este o sujeito da cartografia da ação, que habita (e produz) território usado. Sem esta cartografia, viabiliza-se a afirmação de leituras da experiência urbana que, em vez da negociação, propõem idealmente a rendição (ou eliminação física) do opositor.” (RIBEIRO, A. 2011, p.10)
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Potências, táticas, espaço opaco, espaço banal, território usado, rugosidade, homem lento... O subúrbio por outras lentes suburbanas. / Herança. Bangu (André Costa) / Domingo de feira pra trocar umas paradas. Campo Grande / Crianças na calçada. Realengo. (Leandro Novaes).
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Potências, táticas, espaço opaco, espaço banal, território usado, rugosidade, homem lento... Ambulante próximo à Estação Mato-Alto do BRT. Guaratiba / Sai do BRT direto na Lapinha, espaço pós-olímpico. Santa Cruz / Estação de trem e Lapinha. Santa Cruz / Passarela da Rodoviária de Campo Grande e as luzes dos vendedores. (acervo pessoal)
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SEMBLANTES DA ÁGUA PÚTRIDA
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Pâmela Lack Casut
A disciplina de Análise e Expressão em Urbanismo incentiva, por um lado, o discente a apreender e ver as escalas da cidade e de seus bairros através de abordagens e olhares diversos. Para isso, se vale do aprimoramento dos sentidos: uma abertura à percepção das cores, dos cheiros, dos ruídos, das sensações várias do bem-estar ao desprazer na busca do entendimento da essência, do conteúdo expresso nas aparências, com apoio de textos de autores cuja produção é marcada pelo pensamento crítico. Por outro lado, a disciplina trabalha com possibilidades de expressão gráfica do conteúdo, das percepções, informações e dados pesquisados e apreendidos. O bairro é o objeto explorado pelos alunos. O primeiro contato com o bairro é feito através de um exercício de deriva, através de errâncias dos alunos pelo espaço. Camadas de conhecimentos vão sendo gradualmente associadas gênese do bairro, dados socioeconômicos, condicionantes naturais, conflitos sociais, infraestrutura, equipamentos urbanos, elementos marcantes da cultura local, entre outros - e as possibilidades de expressão dessas informações vão sendo, concomitantemente, exploradas: mapas, fotos, vídeos, textos, desenhos, gráficos, instalações… o trabalho de Pâmela Lack mostra-se como um ótimo exemplo de expressão da experiência da deriva pelo bairro. Cristina Nacif
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DE PETER WEIR E O TEXTO “CONSTRUIR,
A disciplina Paisagem e Lugar, optativa para os cursos de Arquitetura e Urbanismo e Geografia, tem como objetivo refletir sobre a integração entre as ciências, em especial a Arquitetura e Urbanismo e a Geografia, com as humanidades, em uma abordagem transdisciplinar, orientada pela fenomenologia, repensando as relações entre o homem e o ambiente, em especial, a partir das essências de “paisagem” e de “lugar”. A abordagem é da crítica ao afastamento da ciência com o mundo da vida e das possibilidades de reatarmos nossos laços com a Terra a partir de nossas ações cotidianas que implicam em habitarmos o que cuidamos. A disciplina se desenvolve a partir da exibição de filmes associados à leitura de textos específicos que são discutidos e geram trabalhos abertos a todo o tipo de manifestação artística, seja através de textos, da produção de imagens – a partir dos mais variados recursos, e de outras expressões artísticas que envolvam a nossa corporeidade. Werther Holzer
Renato Rampini
Neste trabalho é analisado o conceito de lugar por meio de um paralelo entre o filme “O Show de Truman”, de 1998, dirigido por Peter Weir, e o texto “Construir, Habitar, Pensar”, do filósofo alemão Martin Heidegger (1889-1976), originalmente publicado em 1954.
REFERÊNCIAS
ANÁLISE COMPARATIVA ENTRE O FILME “O SHOW DE TRUMAN”
moradia e habitat
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Heidegger apresenta, a partir de uma análise morfológica, sua reflexão acerca do conceito de morar. Para tanto, é feito um estudo da origem dos termos “construir” e “habitar”, bem como de seus antigos radicais, para que, assim, fosse possível demonstrar o processo de construção da língua e, consequentemente, do indivíduo. Para o filósofo, é atribuído à linguagem a determinação do nosso pensar e o fundamento do próprio ser. O autor não segue o entendimento de que é no espaço onde se desenvolvem todos os elementos do lugar, pois, para ele, é o lugar que individualiza o espaço. Isto é, o espaço teria sua função e característica diferenciada dos demais quando passasse a ter ali um lugar, definido, por sua vez, a partir de uma construção. Como aponta Heidegger: “os espaços que percorremos diariamente são ‘arrumados’ pelos lugares, cuja essência se fundamenta nesse tipo de coisa que chamamos de coisas construídas”, e seriam esses os espaços admitidos no habitar do homem. Entra-se, aqui, num paradoxo espaçotempo, em que o lugar constrói o ser enquanto ele mesmo é construído pelo ser. É nesse ponto que há uma aproximação do texto com o filme em análise.
HEIDEGGER, Martin. Construir, Habitar, Pensar. In: Ensaios e conferências. (trad.) Márcia Sá Cavalcante Schuback. Petrópolis: Vozes, 2ª ed. 2002.
paisagem e lugar
No filme “O Show de Truman”, é contada a história de um homem comum, Truman, que, sem ter conhecimento, tem toda a sua vida documentada num reality show de proporções descomunais. Para sustentar essa fantasia, é construída toda uma cidade onde diversos atores mantêm uma vida fictícia em torno do personagem principal, que, na sua concepção, vive uma verdade. Assim, é forjado um universo onde se permite que Truman possa viver “normalmente” a sua vida, sendo, entretanto, criadas situações ao longo da sua vida que causamlhe traumas a ponto de lhe desestimular a saída dessa cidade. Há, portanto, a criação de um lugar e a formação desse lugar num espaço habitável, ao mesmo tempo que a própria experiência da vida de Truman ajuda a moldar esse lugar, visto que toda a cidade fictícia se desenha de acordo com o desenvolvimento desse grande personagem principal. Seria, de certa maneira, a materialização do paradoxo expresso por Heidegger.
Outro ponto de encontro das duas obras se apoia na construção do conceito habitar e da sua relação com a ideia de abrigo. Isso se dá, pois, embora toda a cidade não passe de um enorme cenário voltado unicamente para a transmissão do reality show da vida de Truman, para o próprio Truman aquilo é a verdade; isto é, para ele, toda as habitações construídas poderiam se tornar um abrigo. Não obstante, ainda que aquelas construções transmitam a ideia de habitações, elas não deixam de ser um palco para a atuação dos demais “moradores” da cidade fictícia e, mesmo que os atores transcendam a questão de aquele universo ser um trabalho e passem a viver aquela mentira, não se sustenta a ideia de que sejam abrigos.
“...in case I don’t see ya, good afternoon, good evening, and good night!” O SHOW de Truman: o show da vida. Direção de Peter Weir. Produção: Edward S. Feldman et al. [S.I.]: Paramount Pictures, 2001. 1 DVD (103 min), color.
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BIBLIOGRÁFICAS
Cumpre chamar atenção para uma frase ao final do filme, em que Truman pergunta “Nada foi real?“, sendo respondido pelo criador do programa: “Você era real”. Embora fosse ele a única “verdade” do programa de TV, todas as outras coisas lá construídas acabam por também receber uma roupagem de realidade, visto que, para pelo menos uma pessoa, tudo era inteiramente verdadeiro.
análise comparativa entre o filme “o show de truman” de peter weir e o texto “construir, habitar, pensar” de martin heidegger
HABITAR, PENSAR” DE MARTIN HEIDEGGER
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9 MORAR NO CENTRO Guilherme Rodrigues, Jéssica Cortes e Sara del Castillo
O projeto Morar no Centro surge a partir de um debate sobre carências das cidades brasileiras e uma crítica à inacessibilidade das centralidades para parte significativa da população. Considerando tais questões, a equipe de alunos da Universidade Federal Fluminense formada por Guilherme Rodrigues, Jéssica Cortes e Sara del Castillo, orientada pelo professor Pedro da Luz Moreira, desenvolveu um trabalho com a proposta de promover a reocupação do centro da cidade do Rio de Janeiro, que assim como tantos municípios do país, sofre com um grave descaso relegado a seus centros históricos.
moradia e habitat
Partindo do pressuposto que as cidades brasileiras são construídas de forma segregatista e fragmentada, o projeto tem a premissa de um desenvolvimento mais inclusivo, que comprove a habitabilidade dos centros e a sustentabilidade a partir da união de diferentes usos e extratos sociais. Excluir parte da população dos centros urbanos, onde se concentram oportunidades educacionais, culturais e empregatícias, tem como consequência, dentre tantas outras, a sobrecarga dos transportes de massa. Propomos que os territórios centrais, servidos abundantemente por serviços de transporte já infraestruturados e ainda subutilizados, sejam utilizados para promoção do uso habitacional, impactando de forma expressiva diversas vidas, em especial as que são hoje marginalizadas.
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A cidade do Rio de Janeiro se constituiu historicamente no entorno da Baía de Guanabara e possui um notável patrimônio construído. A Zona Portuária, área de estudo do presente projeto, está inserida no Macro Centro da megacidade Rio de Janeiro. Dentro desta zona, a equipe estabeleceu um eixo de intervenções urbanísticas e arquitetônicas na Rua Sacadura Cabral, que engloba do Edifício A Noite, localizado na Praça Mauá, até a Praça da Harmonia. Nesta rua, se evidenciam dois tempos de cidade - o antes e o depois dos aterros da reforma Pereira Passos, com parcelamentos de pequenas testadas de um lado e grandes glebas do outro. O aspecto histórico da área, composta pelos Morros da Conceição e Providência, além do Cais da Imperatriz e Pedra do Sal, teve total importância nas intervenções propostas, tendo sido base para o projeto o respeito a essa morfologia histórica, enfatizando o relato morar no centro_projeto inclusivo
O desenvolvimento do projeto foi marcado pelo diálogo com pessoas que teriam suas vidas impactadas por essas propostas, em especial as mulheres da ocupação Bar das Meninas, um dos pontos escolhidos para intervenção arquitetônica. Consideramos que plano, projeto, desenho e desejo são fundamentais para a promoção da transparência e debate na promoção da cidade para todos. A mobilização dos usuários desse espaço é importante, pois a participação da população fomenta, acima de tudo, a autoestima dessas parcelas populacionais tradicionalmente marginalizadas.
morar no centro_projeto inclusivo
e a narrativa desses dois momentos da cidade. Refletindo as potencialidades da área, o projeto Morar no Centro aborda pontos emblemáticos, como estruturas de importância histórica abandonadas, ocupações e a conexão entre morro e baixada. As propostas tiveram não só o caráter de preservação do patrimônio, mas também de renovação, recuperação e retrofit. O estratégico recorte escolhido neste projeto tem condições análogas a tantas outras situações urbanas para além do município do Rio de Janeiro. Por isso, acreditamos que o projeto possui um teor demonstrativo da cidade inclusiva que propomos, dentro de um parâmetro de baixo custo.
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A premissa do projeto foi combater o rodoviarismo e privilegiar o pedestre através de um novo traçado com calçadas mais largas. Foi pensada uma arborização generosa, produtora de sombra e conforto térmico, além de uma iluminação pública que garantisse maior segurança. No trecho final, já próximo ao Bar das Meninas, o projeto propõe uma rua compartilhada que fomente a existência de estabelecimentos comerciais e a ocupação das calçadas por mobiliários desses comércios. Assim, o caráter da proposta valoriza as interações da cidade de mais baixa velocidade.
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Entre as ruas Camerino e Livramento, próximo ao Hospital dos Servidores, num terreno onde hoje existe um posto de gasolina fora de funcionamento, foi pensado um plano inclinado a fim de articular a baixada até as cotas mais altas do morro do Livramento, localizado nos fundos do sítio. Além da função de conectar, o plano tem o potencial de gerar fluxos e assim atrair pequenos comércios. Em suas laterais foram situados caminhos de escadas pontuados por áreas de estar, que articuladas com a arborização representam pontos de convívio e permanência para os usuários da região.
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Localizado na Praça Mauá, o Edifício a Noite é emblemático por sua importância histórica, tendo sido o primeiro arranha céu do Brasil e abrigado a Rádio Nacional. A proposta de intervenção para a construção art déco, que se encontra hoje inutilizada, consiste em transformar seu térreo em uma ampla galeria comercial, com lojas que se abrem também para as calçadas externas. Além do térreo, outros dois pavimentos foram dedicados ao comércio em forma de mezaninos que promovem conexão e movimento ao prédio. Acima dos mezaninos, o projeto propõe cinco pavimentos que comportam vinte de duas salas de serviço. Do nono ao vigésimo primeiro pavimentos foram pensados nove apartamentos residenciais que oferecem conforto e praticidade, contendo dois quartos. Por fim, o vigésimo segundo pavimento foi dedicado a uma ampla área de eventos que conta com uma cobertura que cumpre função de mirante para a vista de toda cidade do Rio de Janeiro.
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No Largo da Prainha, hoje, entre sobrados de estilo eclético, se destacam dois que tiveram suas fachadas arrasadas com um sinistro sofrido durante as obras de um túnel. O projeto propõe a ressemantização das construções com uma linguagem contemporânea, sem recalcar a ocorrência do sinistro, mas mantendo-o na narrativa da reocupação desse espaço. Marcado por uma parede grossa autoportante que restou no centro da construção e uma pequena parte da fachada, o edifício conta seu próprio processo evolutivo através de seus fragmentos que foram mantidos integralmente. Em contraste com suas características originais, a fachada com grandes panos de vidro e brise soleil da contemporaneidade assinala os dois tempos na gênese da construção. Na sua funcionalidade, a proposta repete o ordenamento da cidade colonial e eclética, onde o térreo é oferecido ao comércio e o pavimento superior comporta o uso habitacional, dividido em duas unidades de um quarto que dividem uma área comum nos fundos do terreno. morar no centro_projeto inclusivo
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Localizado entre as Ruas Sacadura Cabral e Coelho e Castro, um grande lote murado dedicado hoje a um estacionamento recebe a proposta de um novo edifício visando o uso habitacional. A intervenção prevê a união de diversos extratos sociais, além de um térreo permeável voltado ao comércio, no qual um contínuo de lojas se abre para a rua com o objetivo de gerar mais vida para a região. O desenho da planta replica algo comum na cidade, a implantação periférica configurando um pátio de miolo de quadra. Nele está inserido o acesso da parte residencial, estruturado em uma área aberta voltada aos residentes do condomínio. O espaço é dividido pelos seus usos, estando a piscina no sudoeste e no nordeste uma área de descanso. A partir desta plataforma acontece o acesso a todos os blocos. Os dois paralelos abrigam três entradas que se conectam, cada uma, a dois apartamentos por andar. Já o terceiro bloco possui uma unidade por pavimento. O gabarito, que se relaciona com os edifícios existentes no entorno, cresce nos dois blocos paralelos com a inserção de apartamentos duplex nos últimos pavimentos, tendo como objetivo diversificar a população do prédio. O crescimento da altura total da construção acompanha a altura crescente que encontramos no lote localizado à direita do terreno. Propor um novo edifício com as premissas do projeto Morar no Centro visa exemplificar que é possível pensarmos um novo modo de produzir cidades, tornando-as mais inclusivas e sustentáveis.
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O Bar das Meninas, na esquina da Praça da Harmonia, abriga uma ocupação de mulheres em seu segundo pavimento, que sinaliza o direito de todos a desfrutar de uma nova urbanidade mais inclusiva. No projeto, o empreendimento recebe a área equivalente ao recuo da construção vizinha para um espaço onde o bar se conecta com a rua. Agregando os dois lotes anteriores ao bar, a proposta consiste em dedicar todo o térreo a diferentes tipos de comércio, levando vitalidade à região. A construção central passa a funcionar, também, como galeria que liga a rua a uma área comum privativa dos apartamentos alocados no pavimento superior. Neste pátio uma escada e uma passarela fazem a conexão até as entradas das quatro residências, sendo dois de dois quartos, um loft e um de três quartos, atendendo às diversas necessidades das famílias que ocupam este espaço. A legitimidade da ocupação é reconhecida, assegurando seu direito a centralidade. Aqui, mais uma vez, os fragmentos históricos são revalorizados em contraste com a contemporaneidade da cobertura de vidro e estrutura metálica, além de um pavimento construído com fachadas de cobogó.
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MORADA JACARANDÁ A Escola de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal Fluminense é uma das poucas instituições de ensino superior em nosso país que tem como uma disciplina obrigatória do curso de graduação a abordagem do tema da Habitação de Interesse Social – algo particularmente relevante, considerando a gravidade das questões sociais no Brasil. Desde a criação de nossa Escola, a disciplina “Projeto de Habitação Popular”, ministrada ao longo dos anos por diferentes professores, representa um dos traços fundamentais da identidade acadêmica da nossa instituição. O curso foca diferentes temas da moradia popular: as propostas de intervenções urbanísticas em assentamentos informais; a adaptação de imóveis subutilizados para fins habitacionais; e a proposição de conjuntos de habitação social em vazios urbanos de áreas centrais, em diferentes cidades da Região Metropolitana do Rio de Janeiro. Em vários momentos, a disciplina proporcionou às alunas e aos alunos a possibilidade de diálogo com representantes de associações de moradores e técnicos de órgãos públicos, o que conferiu à experiência de projeto um caráter ainda mais instigante. E muitas vezes ao longo destes anos foi possível contribuir também com projetos de boa qualidade que subsidiaram iniciativas do movimento social organizado, na sua luta por moradia digna – porque a arquitetura não pode ser (e muitas vezes não é...) um privilégio de classe. Gerônimo Leitão
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Jordhanna Furtado, Rachel Merlino
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Ana Luiza Mazalotti, Filipe Louzada,
Os jacarandás são árvores típicas da América do Sul, conhecidos por suas diversas colorações. Algumas de suas espécies estão em risco de extinção, como é o caso do jacarandá-mimoso. Apesar de trazer vida, dinâmica e cor à cidade, assim como os jacarandás, as habitações populares se tornam cada vez menos presentes em regiões centrais.
projeto de habitação popular
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O terreno localizado entre a Rua do Livramento e a Rua João Álvares, é um conjunto de antigos lotes em ruínas, sendo utilizado atualmente como estacionamento. Os edifícios são formados a partir de módulos habitacionais de 1, 2 e 3 quartos, que foram dispostos de modo alternado, com predominância da tipologia de dois quartos. O arranjo dos blocos foi desenvolvido a fim de evitar empenas cegas, sendo todas as fachadas voltadas para o centro do terreno. No total são 58 unidades.
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Para resolver questões de ventilação, foram criados prismas no interior dos blocos, que permitem aberturas para as áreas molhadas dos apartamentos.
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No centro do terreno a proposta é criar áreas livres, ora sombreadas, para circulação e usos diversos. Durante o dia seriam abertas para uso público, e fechadas de noite apenas para uso dos moradores. Pontos comerciais se localizam no térreo com aberturas para as ruas do Livramento e João Álvares. Nessas fachadas também há portões no térreo com acesso para possível passagem de veículos. projeto de habitação popular
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Bruno Neto Caroline Amorim Marcos Natan Teixeira Marina Pires Mateus Benevenuti
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11 “A orientação adotada na disciplina Teoria da Habitação seguiu o conteúdo programático então vigente, em especial, o aprofundamento da importância da teoria na formação do arquiteto e o incentivo dos alunos à reflexão sobre a produção e a apropriação do espaço habitado pelos estratos mais baixos da classe trabalhadora. A ideia era ir além da aparência fenomênica imediata a qual, no caso do ensino da Arquitetura, confere forte centralidade às formas físicas sem, no entanto, compreender alguns dos principais determinantes histórico-concretos da emergência e da contínua e desafiadora crise da habitação ao longo da história das sociedades industriais. Após a leitura crítica sobre alguns dos fundamentos históricos e teóricos do problema, a reflexão se voltava à apresentação e à compreensão das ordens de justificação que têm consubstanciado as políticas, as propostas e as intervenções governamentais vinculadas à questão habitacional, fornecendo ferramental crítico, analítico e propositivo aos alunos. Nessa linha de raciocínio, o curso buscava problematizar a questão da habitação nas suas dimensões social, econômica, urbanística e arquitetônica, contrariamente aos modos de ensino cujos sentidos têm, de um lado, priorizado uma arquitetura e um urbanismo fashion ou de mercado, e de outro, promovido a desarticulação das categorias fundantes da constituição do espaço artificial habitável, a saber, forma, estrutura, processo e função.” Glauco Bienestein
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teoria da habitação
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casa vila matilde
De cima é corrupto, por baixo pobreza, do lado é droga ,no outro bandido.
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No meio sou eu, muito confuso nem sei para onde vou.
Geração perdida, mas quem criou?
É sempre críticas e jogo de culpa
Entra na comunidade é sempre tiroteio
Na mão do jovem tem arma de fogo
Cabeça quebrada, criança ferida, um negro morto, mataram um tio.
É tão perigoso mas quem o deixou? Feijão no fogão mas o nego morreu
É bala perdida mas quem atirou?
Culpas após culpas mas quem realmente é culpado? Culpa o governo porque deixou entrar
Seu vício em crack culpa seus problemas Joga os vícios em cima da depressão
cidade e gênero
Não estou tentando te ofender, Isso é terapia de meditação Posto de saúde está sem medicação Se controla e se cuida é o novo reabilitação. Só se cuida É uma sociedade falhada
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sociedade falhada
Trevor Georges
Universitário está se formando em pó culpa o sistema
Mulher primeira, cadê as damas? Cadê as rainhas e os direitos iguais? Então trazem a lista mas A sociedade falhada perdeu o papel.
Homem usa azul, Mulher usa rosa Mas essas regrinhas quem criou? Ninguém tem escolha e nem liberdade Mulher também usa Azul pois isso é verdade Porque azul é paz e tranquilidade O que o mundo precisa é igualdade
Mulher na fé Porque no canto é estupro No trabalho é assédio
D colagem: Resistência, Mariana Portugal
Em casa Violência, em aspas DOMÉSTICA A sociedade machista Ô! pervertido guarda sua banana ninguém quer comer De short ou de Saia mulher quer andar De noite ou de dia só quer ser feliz As ruas são lindas deixa ela em paz resistência
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SUBVERSÃO
Sophia Francês Lívia Teixeira
2. perversão moral. “assistem passivos à s. dos costumes” 3. MEDICINA perturbação digestiva. 4. revolta, insubordinação contra a autoridade, as instituições, as leis, as regras aceitas pela maioria. 5. transformação ou destruição da ordem estabelecida. 6. ato ou efeito de transtornar o funcionamento normal ou o considerado bom de (alguma coisa); tumulto, perturbação. 7. POLÍTICA (CIÊNCIA POLÍTICA•IDEOLOGIA) conjunto de ações sistemáticas, efetuadas por elementos internos, que visam minar e derrubar um sistema político, econômico ou social.
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1. ato ou efeito de derrubar, destruir; ruína, destruição, queda.
introdução à fotografia
Procuramos por meio desse ensaio fazer uma crítica ao sexismo e enaltecer a igualdade de gênero através de fotografias usando modelos com características físicas semelhantes, invertendo o papel imposto para o homem e para mulher, abusando de objetos de distinção de gênero de forma abstrata e natural.
subversão
As cores desempenham um papel importante na nossa percepção visual, uma vez que influencia nossas reações sobre o mundo que nos rodeia. Partindo desse princípio, a cor vermelha foi escolhida como elo visual entre as fotografias por ser uma cor forte e marcante, que chama atenção e é associada a urgência. A cor vermelha tem a capacidade de emocionar e estimular nosso corpo. Ela vai criar uma comunicação visual entre nossas fotos, agregando valor estético e prendendo a atenção do espectador.
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INTRODUÇÃO
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JUSTIFICATIVA
Iara Pioneli, Jéssica Cortes, Laryssa Rangel, Natália Godinho
O presente estudo foi desenvolvido por alunas do quinto período do curso de Arquitetura e Urbanismo da UFF em resposta à proposta de trabalho apresentada na disciplina de Métodos de Pesquisa. O tema abordado, que tem como objetivo analisar a apropriação do espaço da cidade de Niterói a partir da perspectiva de gênero, surgiu devido inúmeros casos de violência relatados no espaço urbano estudado. Nesse contexto, percebemos que as mulheres parecem ser as que tem sua experiência na cidade mais prejudicada. Também percebemos, com base na nossa vivência na região, que os casos de violência são frequentes em áreas que tiveram grande planejamento urbano e arquitetônico. É o caso do Caminho Niemeyer e, em especial, a Praça Juscelino Kubitschek – que faz parte do trajeto de inúmeras moradoras, trabalhadoras, estudantes e também visitantes de Niterói, muitas vezes atraídas pelas obras do arquiteto Oscar Niemeyer. Por estes motivos, o foco desta pesquisa consiste em analisar o Caminho Niemeyer e, especificamente, a Praça Juscelino Kubitschek – local onde mais conhecemos casos de violência e que liga vários campi da UFF ao Centro – para percebermos como as obras do mais renomado arquiteto brasileiro impacta o cotidiano das mulheres de Niterói. métodos de pesquisa
Segunda cidade do mundo com a maior quantidade de obras projetadas por Oscar Niemeyer – superada apenas por Brasília –, Niterói sofre grande impacto em seu espaço urbano devido à presença de diversos campi da Universidade Federal Fluminense. O fluxo de pessoas recebe influência direta da vida universitária presente, sendo possível reconhecer alguns percursos como os mais utilizados diariamente para locomoção tanto dos estudantes quanto de todos os habitantes da região para o centro, local de principal acesso ao transporte público. Entre esses trajetos, podemos identificar o Caminho Niemeyer, que dá visibilidade e identidade à Niterói perante o Brasil e o mundo. Composto de sete obras, o projeto de Niemeyer recebe consagração por combinar a arquitetura com a paisagem da orla na região central da cidade, mas a questão urbanística não se mostra tão eficiente, especialmente quando se tem em vista o nome recebido, que sugere integração entre as obras constituintes. Como Caminho, espera-se que soluções que previnam os pedestres e ciclistas da violência e do medo cotidianos e os proporcione lazer e bem-estar sejam presentes no projeto. Porém, sendo o gênero feminino o maior prejudicado e vulnerabilizado pelo mau planejamento do espaço urbano, casos de violência contra mulheres ao longo do Caminho
DA CIDADE AOS PROJETOS INSPIRADOS EM NOSSAS CURVAS
14 A SEGURANÇA DA MULHER EM NITERÓI:
Nós, como estudantes de Arquitetura e Urbanismo, que vemos as obras de Oscar Niemeyer ao longo de toda nossa trajetória acadêmica e o temos como maior referência na área de projetos no Brasil, acreditamos que haja uma relação direta entre a disposição dos projetos e a sensação de insegurança sentida
pelas mulheres usuárias deste espaço. Além disso, o fato das obras do arquiteto serem inspiradas nas “curvas da mulher brasileira” nos traz o questionamento se houve a preocupação com o gênero feminino em questões de planejamento urbano ou se as mulheres foram utilizadas apenas como conceito estético. Por esses motivos, nossa pesquisa se propõe a analisar quais expectativas o Caminho Niemeyer atende, por meio de uma observação focada na Praça Juscelino Kubistchek, e o seu impacto na vida das mulheres. Isto é, faremos um estudo sobre os fenômenos socioespaciais que ocorrem nesta localidade a partir de uma análise de gênero para entender melhor as influências do projeto através de seus resultados.
E litogravura: Derretendo, Ana Clara Lemos
Niemeyer são constantemente noticiados, o que aumenta o receio das mesmas em ocupar a região. Como consequência, reclamações são ouvidas a todo tempo: por parte de trabalhadoras, moradoras de Niterói e, especialmente, por estudantes – que muitas vezes criam movimentos dentro da universidade como resposta a esta questão. A Praça Juscelino Kubistchek, escolhida como principal foco da avaliação que este trabalho se propõe a fazer, tem sido objeto dessas contestações e reivindicações justamente por ser palco de muitos desses casos de violência no centro da cidade.
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PROBLEMATIZAÇÃO
Inseridos em uma sociedade sexista, pode-se afirmar que a segregação de gênero no espaço urbano é uma problemática antiga, sendo possível enxergar a clara diferença na apropriação dos ambientes públicos por parte de homens e mulheres ao longo do tempo. Esta assimetria é, muitas vezes, evidenciada por campanhas e medidas necessárias para assegurar uma maior proteção ao sexo feminino; e também pelos discursos machistas que procuram fundamentar a falta de pertencimento Nós, como mulheres, vivemos e entendemos os inúmeros obstáe culpar as vítimas – culos existentes entre o gênero feminino e o direito à cidade. Sen“O que ela estava timentos como o medo e o estado de alerta estão, provavelmente, fazendo sozinha a essa presentes no cotidiano de todos que vivem em uma cidade mal hora na rua?”. planejada. Entretanto, é necessário pontuar que quem se priva de suas preferências – seja de trajeto, de horário ou de transporte – ou até da própria ocupação das ruas, são as mulheres. Mudamos trajetos mais rápidos pelos que passam maior segurança. Evitamos sair em certos horários, calculamos o lugar que sentamos no transporte público e compartilhamos nossa localização quando a opção decidida é o transporte privado remunerado. O medo Como estudantes de Arquitetura e Urbanismo, nós sabemos se insere no dia a dia de forma que o planejamento urbano influencia diretamente a experiêna moldar nossas vidas e a nos cia dos usuários de um espaço, seja para deveres ou usufruto questionar se nossas cidades de direitos à cultura, arte, turismo, dentre outros. A impornos asseguram o direito de, tância dos debates de gênero – resultantes da crescente conscicomo cidadãs, realmente esência contemporânea em relação ao mundo machista já citado tarmos onde quisermos. – é cada vez mais evidenciada, inclusive dentro das pesquisas da área do urbanismo. Este debate nos alerta para a vulnerabilidade da mulher num espaço projetado massivamente por homens e para homens. Nesse contexto, e sendo também habitantes de Niterói, enxergamos o Caminho Niemeyer – obra de um arquiteto mundialmente renomado – como um dos projetos que contribuem para reforçar a fragilidade feminina no ambiente público, apesar das inspirações do autor “nas curvas femininas”. As mulheres são exaltadas em um aspecto – sexual e estético –, mas desvalorizadas em tantos outros. Por isso, direcionamos o presente estudo a este local da cidade, com a finalidade de compreender onde estão e quais são as ineficiências e falhas projetuais que favorecem a apropriação tão desiHIPÓTESE gual da cidade.
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Acreditamos que o resultado desta pesquisa irá demonstrar a ineficiência do Caminho Niemeyer quanto à segurança das moradoras, usuárias e visitantes da cidade de Niterói, identificando na monumentalidade das obras os pontos falhos de implementação e projeto que acarretam na questão destacada. Acreditamos, também, que será possível apontar problemáticas urbanísticas do espaço em sua totalidade, como a falta de integração entre as construções e o entorno monótono em que se inserem. métodos de pesquisa
Para a realização da pesquisa, começamos a análise por meio de uma aproximação ao tema através da procura por embasamento encontrado em pesquisas, teses já existentes e debates teóricos acerca da apropriação e da segurança da mulher no espaço público. Após esta primeira etapa, buscamos por dados oficiais com parâmetros quantitativos a respeito da experiência da mulher no meio urbano, a fim de levantar a gravidade dessa realidade em forma de números – tendo como foco a cidade de Niterói e mais especificamente a região central a ser estudada. Para a realização da pesquisa, começamos a análise por meio de uma aproximação ao tema através da procura por embasamento encontrado em pesquisas, teses já existentes e debates teóricos acerca da apropriação e da segurança da mulher no espaço público. Após esta primeira etapa, buscamos por dados oficiais com parâmetros quantitativos a respeito da experiência da mulher no meio urbano, a fim de levantar a gravidade dessa realidade em forma de números – tendo como foco a cidade de Niterói e mais especificamente a região central a ser estudada. Além disso, colhemos nossos próprios dados quantitativos por meio de aplicação de questionários online e em campo, de modo a direcionar o foco dos dados coletados à área em questão. Foram obtidas com o questionário 43 respostas, e as informações recolhidas se mostraram próximas à hipótese inicial da pesquisa, demonstrando assim a sensação de insegurança e os perigos sofridos por quem usa a praça estudada – seja como local de passagem ou de permanência.
Na tentativa de aplicação do questionário em campo, nos deparamos com problemas assim que chegamos ao local. Era perceptível que as pessoas que por ali transitavam possuíam pressa e demonstravam medo, evitando parar para responder às questões do grupo. Fato este que teve, ainda, caráter elucidativo para a problematização aqui apresentada, apesar de tornar os dados recolhidos insuficientes. Como consequência deste contratempo, identificamos como opção entrevistar pessoas que conhecemos e que tínhamos informação prévia de que percorriam o trajeto, conferindo à pesquisa parâmetros qualitativos e aprofundados. Foram escolhidos tanto mulheres quanto homens, que, mesmo não estando presentes na Praça Juscelino Kubistchek no momento da entrevista, têm o lugar como parte de sua rota ao longo da semana, usando ou evitando-a por medo.
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PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS
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NUNES, Ana Carolina F R. A invisibilidade da mulher no espaço urbano. Viçosa: Universidade Federal de Viçosa, jun. 2016. Disponível em:<https://issuu. com/anacarolinaf.rabelo/docs/monografia_impressa_final>. Acesso em: 06 jun. 2018. GALETTI, Camila Carolina Hildebrand. Direito à cidade e as experiências das mulheres no espaço urbano. Caxambu, 2017. Disponível em:<https://www. anpocs.com/index.php/papers-40-encontro-2/gt-30/gt34-8/10916-direito-a-cidade-e-as-experiencias-das-mulheres-no-espaco-urbano/file>. Acesso em: 06 jun. 2018. GOMES, Holga Cristina da Rocha. COSTA, Nazaré. Violência contra a mulher: uma pesquisa empírica sobre regras descritivas comuns na sociedade ocidental. Maranhão: Universidade Federal do Maranhão, 2014. Disponível em: <http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0188-81452014000100007>. Acesso em: 06 jun. 2018. Conheça 13 obras incríveis de Oscar Niemeyer, no Rio e em Niterói. Disponível em: <http://visit.rio/editorial/roteiros-niemeyer/7>. Acesso em: 30 abr. 2018. PASKO, Priscila. A mulher no espaço urbano: e se a rua também fosse delas? Disponível em: <http://lounge.obviousmag.org/por_uma_linha_que_caiba/2015/08/a-mulher-no-espaco-urbano-e-se-a-rua-tambem-fosse-delas.html>. Acesso em: 30 abr. 2018. Movimento “Vamos Juntas?” pretende driblar a insegurança das mulheres nas ruas. Disponível em: <http://www.mulheresseguras.org.br/movimento-vamos-juntas-pretende-driblar-a-inseguranca-das-mulheres-nas-ruas/>. Acesso em: 30 abr. 2018. Violência contra a mulher: no Brasil e no mundo, dados são assustadores. Disponível em: <https://revistaglamour.globo.com/Lifestyle/Must-Share/noticia/2017/11/violencia-contra-mulher-no-brasil-e-no-mundo-dados-sao-assustadores.html>. Acesso em: 30 abr. 2018. Mulher, você se sente segura em São Paulo? Disponível em: <https://www. pragmatismopolitico.com.br/2016/10/mulher-segura-sao-paulo.html>. Acesso em: 30 abr. 2018.
Cidades Seguras para as Mulheres. Disponível em: <http://www.cidadesseguras.org.br/>. Acesso em: 30 abr. 2018. Cidades Seguras para as Mulheres. Disponível em: <http://diplomatique.org. br/cidades-seguras-para-as-mulheres/>. Acesso em: 30 abr. 2018.
REFERÊNCIAS
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métodos de pesquisa
BIBLIOGRÁFICAS
cidade e gênero
Dossiê Mulher 2016: Por que precisamos de cidades seguras para mulheres. Disponível em: <http://actionaid.org.br/noticia/dossie-mulher-2016-por-que-precisamos-de-cidades-seguras-para-mulheres/>. Acesso em: 30 abr. 2018.
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F litogravura: sem título, Ana Clara Lemos
15 MONUMENTO À MEMÓRIA FEMININA Bruna Bastos, Gabriella Bicalho, Helena Porto, Heloisa Marques, Isabella Valentim
Este projeto foi realizado para o concurso 028 do Portal Projetar.org, que promove regularmente concursos de ideias para estudantes de arquitetura e recém-formados, buscando o aperfeiçoamento da prática de projetar a partir de propostas hipotéticas. Nesta edição, a proposta consistiu na criação de um monumento dedicado à memória das mulheres, em que insere o debate da luta feminista por igualdade de gênero. O terreno proposto pelo concurso localiza-se na cidade de Brasília, entre o Eixo Monumental e o Eixo Residencial - situado antes da Esplanada dos Ministérios, ao lado do Teatro Nacional Cláudio Santoro e em frente ao Complexo Cultural da República, que abriga a Biblioteca e o Museu Nacional. O terreno permite fácil acesso tanto por transporte público quanto privado, tendo em sua proximidade importantes vias, ponto de ônibus e estação central. O projeto do Monumento à Memória Feminina busca acolher as memórias das lutas femininas ao mesmo tempo em que visa a conexão com o que já foi conquistado e com o desenvolvimento de novas iniciativas que possibilitem narrativas de igualdade de gênero. O projeto homenageia a história passada e futura das mulheres, a preserva e compartilha, buscando promover encontros, exposições e outras atividades. Como um contraponto à paisagem de Brasília, o monumento foi projetado de modo a priorizar a escala humana e as dimensões sensoriais do espaço. A praça-parque procura trazer sensações de força, liberdade, diversidade, respeito, igualdade e acolhimento - sensações que remetem à memória feminina.
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Foi levado em consideração que o Eixo Monumental é um dos lugares mais simbólicos do país, bem como a proximidade do local com importantes edifícios culturais da administração pública. O monumento tem a visibilidade da mulher como elemento estruturador - permite que se seja Brasília de cima, com um outro olhar, ao mesmo tempo que oferece às mulheres a possibilidade de serem também vistas, a partir do eixo monumental. A praça-parque, junto ao monumento, possibilita o caminhar e desfrutar de espaços sombreados que propõem acolhimento e respiro. O monumento se desenvolve em rampas de forma orgânica, sempre em ascensão, promovendo diversos caminhos associados à multiplicidade da luta feminista. O percurso a ser realizado pelos visitantes tem cerca de 400 metros, e à medida que se sobe o monumento, alguns patamares se abrem como “praças suspensas”, que representam alguns importantes marcos e conquistas presentes nas memórias femininas, e que consideramos essenciais para a compreensão da nossa atual posição enquanto mulheres na sociedade.
FORÇA
COLETIVIDADE
DIVERSIDADE
ACOLHIMENTO CAMINHOS QUE SE CRUZAM
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concurso
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monumento à memória feminina
ACESSOS
CAMINHOS E FLUXOS
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AMBIENTES
VISTAS E ENTORNO
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O material escolhido para o monumento foi o aço patinável, cuja tonalidade terrosa se contrapõe aos materiais predominantes na paisagem construída da capital, ao mesmo tempo que dialoga com o tom avermelhado característico do solo de Brasília e remete à ancestralidade da memória feminina. Essas praças suspensas são equipadas com mobiliários que possibilitam a permanência e contemplação - as vistas obtidas nas praças foram levadas em consideração para a escolha dos marcos representativos. Além disso, enquanto espaço público, podem abrigar e acolher intervenções temporárias de caráter artístico e político. O ponto mais alto do percurso é um grande mirante circular, possibilitando panorama para a inserção da monumento na paisagem de Brasília. Na área de nível mais baixo do terreno, projetamos um anfiteatro fazendo uso do desnível existente. Tal espaço tem como foco possibilitar trocas e atividades de e para mulheres. O prédio circular ao lado (706,85m²) possui área administrativa e de serviços. O anfiteatro e o prédio estão interligados por um caminho coberto com ambientes destinados a exposições. Este caminho sinuoso ora é fechado por paredes de tijolo, ora é aberto, possibilitando tanto passagens e atravessamentos quanto espaços para permanência e exposições.
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SANITÁRIOS + 0.11
SANITÁRIOS + 0.11
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A presente entrevista, concedida aos alunos Ana Nieda, Gabriella Bicalho e João Pedro Boechat - membros da Redação do Corpo Editorial da Revista Rodapé - pela professora Rossana Tavares (UFF), se integra com a temática desta primeira edição, uma vez que sua trajetória como estudante, arquiteta e pesquisadora simboliza o anseio do corpo discente em discutir questões de gênero e do direito à cidade refletido nas produções acadêmicas aqui publicadas. Além disso, como ex-aluna da Escola de Arquitetura e Urbanismo (EAU) e participante ativa da construção do EMPAZ, Rossana contribui com o resgate da memória de nossa Escola.
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ENTREVISTA
Para a realização da entrevista foi elaborado um roteiro pelos membros da Redação, a partir do qual a professora elaborou sua própria narrativa, seguindo a cronologia que mais se adequou para elucidar as questões levantadas pelos entrevistadores, além de novos questionamentos surgidos a partir das respostas.
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COM
entrevista
A entrevista inicia com uma volta a sua vivência como estudante e membro da Federação Nacional de Estudantes de Arquitetura e Urbanismo do Brasil (FeNEA), e descrevendo sua participação na criação do EMPAZ, Escritório Modelo de nossa Escola. Em seguida, passa por suas experiências como recém-formada ao relatar seu trabalho na ONG FASE (Federação de Órgãos para Assistência Social e Educacional) e sua participação no EMPAZ, desta vez como professora.
A professora Rossana relembra o início de sua relação com Marielle Franco, como a conheceu quando esta era ainda assessora, e sua participação no mandato de Marielle como vereadora. A professora finaliza o relato da experiência na Câmara refletindo seu significado político, sobretudo afetivo, e como a alimenta no debate teórico e no debate do próprio ensino de arquitetura.
A entrevista é finalizada com a avaliação da professora sobre a participação feminina no modernismo, explicando como os princípios modernistas consideram um modelo - que é o modulor - o homem europeu, que exclui o que não se encaixa, por mais que os princípios e o discurso digam o contrário.
ROSSANA TAVARES Em seguida, estimulada por questionamentos dos entrevistadores, a entrevistada se aprofunda um pouco mais em sua pesquisa sobre gênero, relacionando sua experiência na ONG FASE e de assessoria parlamentar como qualificadoras no debate feminista. Comenta também sobre a sua experiência com as questões urbanas e de gênero de regiões diferentes, e explica sobre espaços generificados de resistência. Citando sua tese, aborda o processo de opressão feminina nas cidades e como seu estudo pode dar suporte aos urbanistas para unir a técnica com o debate de gênero.
Rossana Tavares
Questionada sobre sua atuação política, a professora a contextualiza com o momento da obtenção de seu doutorado. Dessa forma, explica o motivo de iniciar sua pesquisa sobre gênero, para então relatar o começo de seu trabalho, e quais eram suas atribuições como assessora parlamentar do deputado Marcelo Freixo (PSOL) e, mais tarde, da vereadora Marielle Franco (PSOL).
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Equipe Rodapé: Gostaríamos
de iniciar a entrevista falando um pouco sobre a sua trajetória acadêmica para entendermos como foi a sua experiência aqui na EAU.
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Rossana Tavares: Bem, foi uma experiência, eu acho que para todos os estudantes de arquitetura bastante, vamos dizer assim, controversa. Eu entrei com 17 anos, entrei novinha, nem tinha expectativa na época de passar no vestibular. Eu fiz 18 anos aqui, entrei no primeiro período e meio "sem noção" do que esperar do curso de arquitetura, né? Eu era bem aquela pessoa que tinha uma ideia do senso comum da arquitetura, que era trabalhar só projetando edifícios e tal, e que fui descobrindo [o que é] o curso ao longo dele.
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Tive um início mais de "baixos" do que de "altos", sobretudo um desconforto a respeito à lógica de que “a vida é dura, eu faço arquitetura”. As viradas de noite, somada à perspectiva que temos, ao mesmo tempo, uma sociedade com uma visão super reducionista do campo da arquitetura. Quando chegamos na faculdade, nos deparamos com uma dedicação semelhante ao curso de medicina, mas que não tem a mesma percepção da sociedade em termos de importância. Apesar de outros lugares, outros países reconhecerem a importância [do arquiteto] tanto quanto de um médico, engenheiro, advogado. entrevista
Mas no início, eu era uma aluna comum até vivenciar uma situação em uma disciplina em que grande parte dos alunos tinham sido reprovados. Comecei a me questionar mesmo. Foi o momento em que, comigo mesma, eu tentei começar a discutir o currículo e a tentar fazer isso com pessoas que estavam ao meu redor. Eu ainda não tinha muita proximidade com o diretório acadêmico. Era um pessoal bem mais velho do que eu e que tinha outro perfil estudantil. Mas aí nessa experiência com essa disciplina, eu resolvi fazer uma carta para o coordenador da época para ser lida no colegiado e nenhum dos meus colegas da turma quiseram assinar essa carta. Então foi um primeiro momento de exposição e questionamento que eu fiz sobre não só a própria relação professores e alunos, mas como isso também era desconectado no debate curricular na época.
Por conta desse momento, eu comecei a ver a importância de me engajar e foi quando eu fui para meu o primeiro encontro em Alfenas, Minas Gerais, em 2001. A minha intenção inicial nem era participar do encontro como um momento de fazer um debate. Na verdade, eu ouvi falar assim “vai lá no encontro, você vai se divertir, vai festar muito, vai ser muito legal!”, mas eu não tinha ideia do que era ainda esse universo da militância estudantil. E aí, ao invés de festar, eu fui a "chata" do encontro de Alfenas. Indagava as pessoas “gente, ‘tá’ rolando debate sobre ensino e as pessoas estão fazendo máscara de gesso”. E aí, isso começou na verdade a mobilizar, e algumas pessoas da própria FeNEA começaram a me convidar para participar de espaços e tal... Até ser eleita, no ENEA [Encontro Nacional de Estudantes de Arquitetura e Urbanismo] João Pessoa, no mesmo ano se eu não me engano, diretora da DiEPE [Direção de Ensino, Pesquisa e Extensão]. E essa minha passagem pela FeNEA é superimportante, porque a gente tinha os meninos que eram do diretório. A maioria homens. Eu era umas das poucas mulheres ou a única que estava nessa relação FeNEA/diretório. A
gente estava organizando o encontro, que era o de Paraty, e a gente começou a conseguir movimentar mais os estudantes dentro da Escola e a fazer um diálogo com os professores. Inclusive, alguns professores atualmente falam que esse foi um momento importante para EAU, da militância estudantil. A gente esteve em momentos de muitas greves: de alunos, professores. Foi o período de FHC. Fazíamos grandes assembleias. Participei de mesas com professores de Educação daqui, com professores da UFRJ, etc. Então, a gente fazia realmente grandes eventos de discussão política dentro da EAU, conseguindo mobilizar bastante gente até conseguir, por exemplo, boicotar o Provão [avaliação institucional no período FHC] na época. Fomos a primeira turma a fazer Provão e boicotar, foi um boicote da Arquitetura, da Comunicação e da Medicina da UFF.
Primeira geração do EMPAZ em 2003. Foto: Arquivo pessoal
Reunião da FeNEA na EAU em 2002. Foto: Arquivo pessoal
Posteriormente, quase me formando, participei também de eventos sobre escritórios modelos, tendo contato com colegas de fora do Rio de Janeiro que estavam formando escritórios modelos pelo Brasil, sobretudo depois do Fórum Social Mundial. Começamos a fazer essa discussão aqui. E foi no SeNEMAU [Seminário Nacional de Escritórios Modelo de Arquitetura e Urbanismo] de Florianópolis que ficamos sem graça por estar ali participando e não ter um escritório modelo. Foi em uma reunião numa praia... essa história é boa! Eu, Bruno, Léo, Renato Tupinambá, decidimos que precisávamos formar um EMAU [Escritório Modelo de Arquitetura e Urbanismo]. Tínhamos implicância com as siglas EMA, EMAU, e resolvemos propor um nome mais criativo. E aí o Bruno, falou assim “olha, a gente ‘tá’
aqui em Florianópolis, bronzeado… Vai ser Escritório Modelo Paulo Zulu!”. E na brincadeira, aceitamos a sigla EMPAZ. E depois quando a gente voltou a gente pensou “a gente tem que dar um significado para esse EMPAZ e, de fato começar a movimentar o Escritório Modelo”. Então é assim que surge a história do Escritório Modelo. 2019
Rossana Tavares
Manifestação dos estudantes pelo boicote ao Provão. Foto: Arquivo pessoal
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Equipe Rodapé: Engraçado, porque chegou uma outra versão para mim. Eu sempre escutei que era amor “Por Amor ao Zumbido”, não sei se você já ouviu isso.
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Rossana Tavares: Então, essa é a versão oficial. A gente chegou aqui e falou “olha, a gente vai falar no colegiado”. A gente achou legal o “PAZ”, porque era o que a gente queria. Era um outro momento da EAU. Também, era em uma outra conjuntura política, eram outras formas também de lidar com os debates. A gente era muito afinado com o pessoal do DCE [Diretório Central dos Estudantes], não com os partidos políticos, mas com o próprio diretório acadêmico. Enfim, realmente tínhamos uma perspectiva crítica grande. Mas, chegamos aqui e o significado para o PAZ foi definido: “Por Amor ao Zumbido”.
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entrevista
Como eu era da DiEPE, eu conhecia muito bem a carta de princípios, era uma parte das discussões que a gente fazia dentro da diretoria. Fizemos as discussões no colegiado e a partir dos avanços convidamos um dos professores do TAR [Departamento de Arquitetura] para nos orientar [prof. Gerônimo Leitão], e a partir do meu TFG [Trabalho Final de Graduação], em Duque de Caxias, nos trabalhos de campo, parte dos estudantes que estavam interessados em compor o EMPAZ começaram a ir em algumas reuniões que eu fazia para poder trabalhar com uma perspectiva participativa de projeto. Mas a gente ficou inicialmente, até eu me formar, muito mais no debate da formação do EMPAZ do que de fato tendo experiências para poder fomentar o escritório. É importante dizer que sempre houve interpretações diferentes do corpo docente sobre o que era um Escritório Modelo e do que poderia ser o nosso Escritório Modelo. Havia um receio de se tornar uma Empresa Júnior e/ou um receio de ser um espaço de competição profissional.
Naquele momento tinha um projeto, o PAP, Programa de Aperfeiçoamento Profissional do Instituto de Arquitetos do Brasil [IAB/RJ]. Uma ideia que surge, eu não sei muito os detalhes, mas o que eu sei é que era uma ideia de formação a partir da ideia de um arquiteto residente em favelas, oferecendo assistência técnica. E aí isso era visto como um contraponto que poderia até, em alguma medida, esvaziar esse programa do IAB, era considerado superinteressante, só que já na perspectiva profissional. O Escritório Modelo é, na verdade, um projeto extensionista. Mas, aos trancos e barrancos, conseguimos ser reconhecidos. Houve essa geração mais jovem que colou na gente, Ticiane Ribeiro, Felipe Nin, Isabela Muller, Tainá de Paula, que eram calouros na época em que eu me formei.
Vivíamos um momento urgente do debate sobre a questão urbana, porque o Estatuto da Cidade tinha acabado de ser aprovado em 2001, e era tudo fruto dessa mobilização desse Fórum Nacional, que juntava a própria ABEA [Associação Brasileira de Ensino de Arquitetura e Urbanismo], o IAB tinha sido parte, mas nessa época já não fazia mais, a FeNEA fazia parte, a FASE, o Polis de São Paulo, quando tinha a Raquel Rolnik, Paula Santoro, Renato Cymbalista, na FASE tinha Grazia di Grazia, a FNA [Fundação Nacional de Arquitetos], e outras instituições como a CMP [Central de Movimentos Populares], a UNMP [União Nacional
MNLM [Movimento Nacional de Luta pela Moradia], CONAM [Confederação Nacional das Associações de Moradores]. Era bem grande, um fórum superamplo. Imagina a capilaridade dos movimentos, então eu tinha contato com gente do Oiapoque ao Chuí. Mas nessa época, além de atuar na secretaria do Fórum, que foi, digamos assim, a lotação inicial, eu comecei também a colaborar no projeto da equipe Rio da FASE, que era a elaboração do plano diretor de um município da Baixada, Mesquita. Convidei o EMPAZ para participar, não para cumprir uma função de estágio, mas para colaborar metodologicamente no levantamento de campo, participar das reuniões. Então na época foi a Tainá, o Nin, Gabriel Botelho e Renato Tupinambá. Vocês conhecem o Felipe Nin?
Equipe Rodapé: Sim. Inclusive o Felipe Nin chegou junto com o EMPAZ recentemente lá com a Ocupação Vito Giannotti.
Rossana Tavares: Ele era calouro no meu último período, além do Gabriel Botelho, o Renato que já era veterano na Escola... então era esse o núcleo mais duro. E aí, depois eu parei de acompanhar o que aconteceu com EMPAZ. Eu só fui saber depois, quando eu tomei posse aqui, mas também, um pouquinho antes, eu tinha participado de um debate lá na Casa de Estudos Urbanos, no antigo espaço do escritório do Toledo e tinha um aluno lá, que se identificou como do EMPAZ. Aí eu fui falar com ele "ah! Tô emocionada! Não sabia que ainda existia o EMPAZ" e ele falou que existia ainda, mas de fato, que já tinha ficado meio capenga.
Rossana Tavares
E aí, logo depois de me formar, em 2003, trabalhei na [ONG] FASE, na Secretaria Executiva do Fórum Nacional de Reforma Urbana, que a FASE era a sede. Eu não sei se vocês já estudaram isso em PUR [Planejamento Urbano e Regional], o que é o Fórum Nacional de Reforma Urbana, que, na verdade, é um movimento que começa lá na época das reformas de base junto com uma série de organizações, sindicatos, movimentos sociais urbanos na discussão sobre o direito à cidade e reforma urbana. E aí, determinadas ONGs e instituições começaram, sobretudo, depois do processo de democratização, a sediar as secretarias executivas com o apoio de financiamento internacional.
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Então, na verdade, a minha atuação no EMPAZ foi nessa formação e nesse momento também de tentar, já depois de formada, dar esse pontapé inicial. E aí, o que muda como professora… Primeiro, é superemocionante para mim ver um projeto que realmente foi uma conquista no diálogo com o corpo docente da faculdade, de ver o quanto que o projeto da FeNEA, de fato, pode dialogar e fazer diferença. O EMPAZ está acontecendo junto com uma proposta que vem dos próprios estudantes. Isso é uma coisa legal, essa proposta que fizemos de uma disciplina optativa, que chamamos de "Estudos e vivências em pesquisa e extensão na arquitetura e urbanismo" como uma forma de fazer debate teórico e metodológico sobre extensão e ir alimentando o grupo. A demanda surgiu no final do semestre passado [2019.1]. Então, o desenrolar da disciplina, deixo muito a cargo dos alunos, da sua condução no sentido da dinâmica em sala. Mas como eu tenho essa experiência no EMPAZ, é uma linha muito tênue, então eu falo "não, gente, acho que é mais por aqui". Então, na verdade, não pautar tanto e também deixar esse momento da experiência dos alunos dizer mais alto para também ter erros e acertos, que também é importante nesse processo.
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Ou seja, cada realidade do processo de formação e de Escritório Modelo, tem seu tempo, cada grupo também pode arranjar sua forma de ser um Escritório Modelo, apesar de ter princípios que norteiam basicamente a forma dele existir. Entretanto, como ele vai de fato se conformar depende de uma série de fatores. Então, é esse para mim o desafio de ser uma orientadora, mas também é muito interessante estar nesse papel de ponta, vamos dizer assim, de ponta no início e agora vivenciando uma outra ponta, que é a de retomada de uma experiência que ficou um pouco descontinuada por um tempo. E, ao mesmo tempo, também de perceber que se retoma a discussão de, justamente, o que é o Escritório Modelo e com esse diálogo, que é assim "meu Deus, revival!", a gente chega, quase 20 anos depois, ainda com dificuldades de entendimento.
Equipe Rodapé: Como iniciou sua atuação como assessora parlamentar?
Rossana Tavares: Na verdade, claro que eu não aterrizo nessa experiência de assessoria parlamentar, claro que tem toda uma relação com a experiência anterior na própria FASE. Eu trabalhei quase 9 anos na FASE com movimentos sociais, discussão urbana. A minha experiência acadêmica também tem a ver com isso, mas também tem coisas que tem a ver com relações, de fato, pessoais.
A nossa atuação na FASE, sobretudo a minha também, foi muito na Baixada. Só nos últimos dois, três anos que estive na FASE, que fui deslocada para participar do comitê da copa, do fórum comunitário da providência na área portuária, atuando mais no Rio de Janeiro, e aí outros colegas ficavam mais na Baixada. Então eu fiquei muito nessa linha de frente no Rio, e aí cruzei com Fernanda Sanchez, Regina Bienenstein, Vila Autódromo, a própria Providência, então cruzei com muitos colegas aqui do curso nesse período. Mas eu já estava em função dessa vivência de conflitos internos e conflitos da vida urbana. Entrei no doutorado e me aventurei num tema que não era fácil - gênero no urbanismo -, era um tema considerado inédito e pouca gente estava trazendo essa discussão. Era totalmente marginal para o nosso campo, apesar de já ter essa experiência de debate e articulação política.
Eu entrei no doutorado com o tema “Justiça ambiental e direito à cidade” para trabalhar na Baixada. E aí, depois da entrevista da própria seleção, a partir da provocação de uma professora que viu meu currículo e viu que eu tinha experiências sobre gênero quando trabalhei na FASE, disse: “por que você não faz uma pesquisa sobre gênero?”, “ah, porque não tem nem professor/professora que possa me orientar”, porque você tinha que ter uma indicação. Então eu entrei e fiquei trabalhando um ano, fazendo doutorado e aí consegui uma bolsa do CNPQ. Saí da FASE por opção e depois consegui uma bolsa da CAPES, que contribuiu com o meu voo para o doutorado sanduíche.
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Então eu tinha voltado do meu doutorado sanduíche em 2013, eu fiquei 1 ano em Paris. E aí, quando eu volto, só com uma bolsa de doutorado, tinha a preocupação do meu sustento e da minha família. Comecei a procurar emprego em universidades. Queria dar uma parada no trabalho em ONGs. Mas os últimos trabalhos foram coincidentes ao início dos conflitos em função dos megaeventos esportivos. Então eu já estava vivenciando situações de conflito institucional e conflito externo, sobretudo na dinâmica da baixada fluminense e de favela, de ver como que estava acontecendo aqui na região metropolitana e, psicologicamente, isso estava me afetando muito. O quanto que a gente percebe o limite da nossa própria atuação quando a gente tenta atuar diretamente no conflito, né? Não só fazendo uma pesquisa ou fazendo um planejamento, mas quando você está ali, vamos dizer assim, no campo de batalha mesmo, onde eu tive que vivenciar, com outros colegas, o processo cotidiano de violação do direito à moradia. São situações que te afetam e vão te afetando, tem uma hora que você não aguenta.
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Então eu vivenciei o 2013 lá da França, foi uma das situações mais interessantes da minha vida. E eu voltei sendo bolsista e precisando de trabalho, então comecei a buscar trabalho na universidade. Tornei-me professora substituta na FAU/UFRJ (Faculdade de Arquitetura e Urbanismo) e na Unigranrio. E aí, um colega meu que trabalhou na FASE comigo, foi estagiário no setor do programa associado à discussão dos direitos humanos com a juventude, se tornou o braço direito do Marcelo Freixo. E eles estavam querendo uma pessoa que tivesse uma discussão urbana, tivesse relação com movimentos sociais. E aí ele me convidou e eu nessa maluquice da vida voltando do doutorado. Eu fui trabalhar lá no mandato, ainda no contexto dos megaeventos acontecendo. Eu organizei algumas audiências públicas sobre isso, que foram superinteressantes no sentido de mostrar o quanto que em um ano pouca coisa se modificou, apesar das resistências da Providência. A Providência já estava num outro patamar de resistência. E isso se deu porque tinha, em alguma medida, uma assessoria técnica qualificada, tanto em termos jurídicos quanto técnicos, para poder questionar o projeto e para conseguir fazer algum tipo de pressão para descontinuar as remoções. Mas a gente conseguiu articular audiências públicas na comissão de direitos humanos a partir do mandato sobre moradia.
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A gente conseguiu fazer o que a gente chamava de Ocupa DH, que era o Ocupa Direitos Humanos, então eu, como arquiteta, além de ajudar no levantamento de informações, nas entrevistas, na aproximação com as lideranças para trazer as questões urbanas à luz, para ver até que produtos, que ações que a gente poderia pensar dentro do mandato e até como comissão, a gente tinha no dia que a gente chamava “o dia do ocupa”, que normalmente era um final de semana. Fizemos isso no Caju, Vila Autódromo e no Borel. No Borel, eu estava chegando, na verdade, o do Borel foi a Marielle que ficou mais de frente, foi um momento inclusive que a gente ficou mais próxima da Mônica Francisco, que virou deputada estadual e se torna uma parceira nossa.
E aí eu ficava ali meio disponível, com o foco numa temática dialogadas com os moradores. Então, no Borel tinha uma questão de acesso à água importante. Então, o que é o Ocupa DH: chegavam as pessoas, colocávamos uma mesinha, e fazíamos atendimento, como se estivesse fazendo a atuação da Comissão de Direitos Humanos fora dos muros da ALERJ, na rua. Então, é claro que a gente fazia isso articulado com lideranças comunitária; a gente até chamava instituições que atuavam lá, ONGs ou até o próprio Estado. Então no Borel fizemos isso, em Vila Autódromo a gente tentou chamar a prefeitura, mas a prefeitura obviamente não quis. Passamos o dia todo lá recolhendo denúncias. No Caju, tinha uma questão da água também, de poluição ambiental significativa, tem as indústrias ali próximo, atividades offshore, muito trânsito de caminhão, além das questões patrimoniais, que estão sucumbindo ali. Tem a Casa de Banho do Dom João VI, não sei se vocês sabem que existe ali. Então ali era um paraíso, a praia batia ali no Caju. A atividade pesqueira está sendo afetada pela poluição da Baía de Guanabara. Então a minha atuação era nesse sentido técnico e político, contribuindo para traduzir essas denúncias e tentar propor formas de atuação legislativa.
Nos momentos finais da campanha para prefeitura em 2016, e logo depois da minha licença maternidade na ALERJ, a Mari [Marielle Franco] me procurou, ela já estava eleita, eu até fiquei surpreendida. Ela acabou me convidando para assessoria e entrei desde o início do mandato, em 2017, e parece que isso foi há um século atrás. Como que eu resumo isso sem me emocionar? Foi muito engraçado porque quando ela me chamou ela chegou falando "olha, fica tranquila, a gente vai conversar com o Marcelo [Freixo]”, porque eu estava superinsegura pelas relações de afeto que eu tinha dentro do próprio mandato e não queria que isso também afetasse as minhas relações pessoais, não só de possibilidades profissionais que poderiam ser interferidas por essa minha saída porque sempre tem. Apesar disso, eu estava muito empolgada pela possibilidade de estar trabalhando com uma mulher, que era negra, que é de favela. Isso atravessa várias discussões, pesquisas e militâncias que eu tive desde a época de estudante. Meu TCC [Trabalho de Conclusão de Curso] foi na baixada, numa favela, então assim, tudo, né? A Mari era um pouco a síntese.
Eu na verdade conheci duas Marielles. E agora tem uma terceira que é uma terceira que eu ainda não sei quem é, que é a pós morte. Eu conheci a Mari assessora que era uma relação de igual para igual, mas ela vivenciando todas as suas angústias também como mulher, negra, tentando ser reconhecida dentro do seu trabalho e sendo uma pessoa superinfluente na política de esquerda no Rio de Janeiro, fazendo um trabalho de formiguinha. Ela fazia um trabalho muito de formiguinha. Essa é uma experiência que a gente bate muito a cabeça, mas mesmo assim estamos lá: "vamos lá, vamos propor o que fazer, vamos pensar projeto de lei, vamos pensar propostas”. E tentando fazer uma leitura amadurecida também dos limites que tínhamos, sobretudo porque trabalhar na ALERJ é uma coisa, trabalhar na Câmara Municipal do Rio de Janeiro é outra, é um outro universo e, sobretudo, quando se fala sobre a questão urbana, porque aí tem uma atuação da milícia muito mais direta na questão urbana.
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E aí a gente chegou a fazer alguns relatórios, que eram relatórios anuais da comissão e toda essa parte do urbano eu que ficava responsável. E as denúncias que a gente fazia, né? Então todas aquelas denúncias sobre Maracanã, sobre a questão do metrô, dos BRT's. Na verdade, muita coisa atravessava mais as questões do executivo do que o legislativo. Então eu acabei atuando mais como uma apoiadora, uma assessora que dava um apoio na forma de fiscalizar o executivo do que, de fato, sair fazendo um monte de lei, que não ia de fato fazer nenhuma contribuição mais pragmática.
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Então, por exemplo, as situações recentes que tiveram ali na região de Rio das Pedras mostram como que essa questão da câmara de vereadores e o debate urbano estão muito associados. Por causa disso, a gente se distanciava e em alguma medida era um pouco frustrante para mim porque eu queria "agora que eu posso atuar nos índices urbanísticos, discutir o plano diretor!" e a Mari falava assim "não, calma, Rossana, calma”. Mas hoje, olhando, eu percebo o quanto que a gente foi de fato uma potência. Foi só um ano e três meses de mandato, mas o quanto que a gente conseguiu atingir, inclusive botando o pé no freio nesse tempo. Se a gente não tivesse botado o pé no freio, o quanto que a gente não teria conseguido realizar, né? Éramos um corpo totalmente estranho ali [na Câmara Municipal]. Eu, mesmo branca, mas estando dentro daquele grupo ali, a gente se sentia totalmente estranhas. O corpo da Marielle era um corpo totalmente estranho. A gente até brincava que ela chegava com as roupas dela coloridas, às vezes com uma saia curta, o quanto que isso afetava, vamos dizer assim, a temperatura da reunião entre os vereadores. Isso inclusive me coloca como acadêmica depois, que eu estava lá na tese de doutorado falando muito mais de espaço, como que hoje para mim é importante o debate sobre o corpo, sobretudo a partir dessa experiência na câmara dos vereadores.
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Mas eu vivenciei situações de estar ali, vendo como que foi a Audiência do Código de Obra. Eu estive nesses momentos de debate do IPTU na cidade, e aí como é que é ser uma arquiteta nesse espaço de incidência propositiva política, onde a gente tem que lidar para além das questões técnicas. Como é lidar com questões de gênero, porque não é qualquer corpo que está manifestando uma opinião, uma questão dentro de um plenário, onde majoritariamente são homens brancos com suas percepções de mundo atravessadas pelas machismo e a heteronormatividade, além dos currais eleitorais com interesses diversos e diferentes... Até o exercício profissional de assessora parlamentar como arquiteta e urbanista, que essa é hoje a minha intenção de problematizar também dentro da Academia, como que ela não está neutra não só dessa espacialidade, mas dentro dessa corporeidade que se generifica o tempo inteiro, que também se racializa o tempo inteiro.
Essa experiência da Câmara tem um significado político importante, afetivo sobretudo, porque foi um espaço de muito afeto. Enquanto todas as salas da câmara eram vazias, tristes, a nossa explodia de gente, alegria, comida e flores. As próprias faxineiras diziam “é tão divertido vir aqui!”. Foi também muito aprendizado e um aprendizado que eu acho que só é permitido quando a gente, infelizmente, tem esse ceifamento da vida da Mari. E que aí as pessoas vão nos provocando às reflexões e que vão afetando diversas dimensões da nossa vida. Essas reflexões eu só consigo fazer hoje, talvez se eu estivesse ainda no mandato, eu estaria lá no calor das questões, e não estaria fazendo o debate que hoje realizo e problematizo. Essa experiência hoje também me alimenta no debate teórico, no debate do próprio ensino de arquitetura e urbanismo e como que eu vejo a importância da gente realmente pensar em outros paradigmas para nossa profissão, considerando o que é a realidade brasileira.
Rossana Tavares: Também, só fortalece o que estava fazendo. Na verdade, o debate de gênero surge para mim em 2004. Eu já me entendia como feminista, mas me qualificar no debate, foi a FASE que me proporcionou isso. Eu participei de atividades de formação, e foi no Fórum Nacional de Reforma Urbana que começa, também em 2004/2005, a surgirem espaços dentro do fórum dos encontros nacionais com lideranças femininas, sendo arquitetas lideranças no movimento, de trazer esse tema de gênero. Daí, isso vai aparecer em propostas de titularidade, projetos de regularização fundiária, a participação em conselhos..., mas muito reduzido a isso. Eu participei de uma série de formações que aconteceram com militantes do âmbito do FNRU [Fórum Nacional de Reforma Urbana]. Fomos para Fortaleza, era a Oxfam que financiava as mulheres nas lideranças dos movimentos para que pudessem chegar com mais facilidade. Foi aí que eu vivenciei as diferenças regionais do que é a discussão urbana, o que é em Teresina a questão urbana e o que é em São Paulo e Rio de Janeiro.
O que é uma associação de moradores que se confunde com um grupo de mulheres, porque a maioria são mulheres, não são homens. E como que essas mulheres para reivindicar seu direito à moradia, uma melhor qualidade, a própria posse da moradia ou a construção de conjuntos habitacionais para elas, isso vira uma resistência nos seus espaços de reprodução, no seu espaço doméstico. E aí algumas relatando como que suas colegas já foram violentadas por participar de espaços políticos associativos. Então na hora do almoço o homem chega em casa, não tem almoço, a mulher está na associação de moradores em reunião discutindo o estatuto da cidade, e ele pega a mulher e esfrega a cara dela no asfalto… Da gente ouvir esses relatos e você ver a escala do que é a questão urbana ali. Até do que o asfalto representa, inclusive de possibilidade de violência contra o corpo da mulher, e sendo o asfalto aqui no Rio de Janeiro um elemento simbólico de progresso para um bairro… Parece uma análise comparativa exagerada, mas não é...
A FASE teve esse papel importante na minha vida e resolvi levar isso para a Academia quando eu entro no doutorado e nas assessorias. E aí, já explicando o que é espaço generificado de resistência: as pesquisas que tem um olhar a partir da sociologia no campo da arquitetura estão falando sobre relações sociais, mas aí eu acabo lendo uma autora francesa que é da sociologia do trabalho. Eu a conheci no doutorado sanduíche, ela se chama Danielle Kergoat. Ela é muito lida e é considerada super controversa dentro do debate feminista negro, sobretudo muitas enxergam a discussão que a Danielle Kergoat faz a partir da coexistência e da consubstancialidade como muito controverso ao olhar da interseccionalidade. Para mim, uma coisa não exclui a outra, de forma geral um se centra nas relações sociais (olhar interseccional) e outro nas práticas sociais (um olhar da coexistência). 2019
Rossana Tavares
Equipe Rodapé: A sua atuação com a Marielle já traz a discussão sobre gênero, né?
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cidade e gênero
Equipe Rodapé: O que você poderia dizer sobre os processos de opressão feminina nas cidades? Como eles se dão?
Rossana Tavares: É estrutural. É estrutural e acontece em diversas escalas, da forma inclusive como é introduzida. Essa forma de produção do espaço urbano, onde o planejamento e urbanismo participam, parte de uma concepção hegemônica que é uma concepção patriarcal, machista, sexista. Na hora de, por exemplo, contratar um escritório para fazer o projeto de uma praça ou o projeto urbano de um bairro, não há uma preocupação com pessoa que necessariamente está trazendo essa discussão, porque normalmente essas pessoas, homens, ou até mulheres não tão sensíveis ao debate feminista, não vão querer dar foco nas questões do cotidiano das mulheres. A gente pode falar, por exemplo, da iluminação pública, de gerar espaços de esconderijo, que na verdade não são temas novos, pois a Jane Jacobs já trazia isso, mas como que isso tem uma outra importância quando a gente generifica isso.
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entrevista
Para além do projeto em si, quando pensamos estruturalmente, não é só pensar em projeto como forma de adaptação das formas de dominação que a cidade nos impõe, a própria forma como a gente organiza a nossa disciplina pode perpetuar formas de opressão. A gente não tem uma disciplina sobre gênero, enquanto nos outros campos das ciências sociais isso é um tema já na graduação. A gente se forma sem ter esse olhar como um olhar significativo para pensar a cidade, então isso acaba sendo estrutural até na forma de concepção utópica ou de soluções de uma espacialidade, e aí quem está produzindo essa cidade, quem domina a lógica de produção dessa cidade está na verdade numa posição de poder que é heteronormativa, patriarcal e não quer nem saber sobre as mulheres. Mesmo que elas estejam num espaço público, elas estão invisibilizadas, a gente vê as mulheres, mas a gente não enxerga as mulheres e não as enxerga como dotadas de direito. Então o direito à cidade para as mulheres é o tempo inteiro desafiado. Por isso que os espaços de resistência se generificam o tempo inteiro, porque o direito à cidade é um direito ainda patriarcal, sexista, e isso vai se revelando nessas micro e macro escalas.
Equipe Rodapé: Então acho que a gente entra um pouco na questão de como seria um urbanismo pensado para as mulheres. O que você acha?
Rossana Tavares: Eu não sei se seria um urbanismo pensado para as mulheres. Eu acho que é um urbanismo pensando com as mulheres e que considera as mulheres. Uma perspectiva feminista. Como a própria pergunta coloca, mulheres são plurais. O urbanismo para as mulheres cariocas na Zona Norte seria um urbanismo muito diferente de um urbanismo para mulheres na Zona Sul, considerando inclusive a Zona Sul com suas contradições, favelas e áreas elitizadas. Na Baixada, no Nordeste, como eu falei, Teresina, no sertão. Essa pergunta às vezes me remete a uma tentativa de que a gente precisaria construir um modelo de urbanismo para mulheres e é justamente o que eu sou contra. É por isso que eu proponho um conceito que ilumine essas questões, ao invés de propor um modelo de urbanismo para as mulheres, porque aí depende de um monte de fatores: social, cultural, político, espacial, paisagístico. É um debate paradoxal.
Rossana Tavares: É pensar que a gente pode desenvolver metodologias, não só de desenho, mas de escuta, de interesses práticos do cotidiano, em interesses estratégicos, ou seja, para o futuro. Um exemplo é que as feministas estão o tempo inteiro pensando para o futuro, e muitas delas, e isso é um tensionamento, são contra os vagões rosa. Mas as mulheres, no plural, que não necessariamente se reconhecem como feministas, muitas vivem nas periferias urbanas e vão falar “não, tem é que botar mais, porque pelo menos não vou ser violentada por um homem!”
Eu preciso criar condições para que pelo menos as mulheres consigam participar do que seria uma reunião equivalente a uma reunião de condomínio. Quando eu falo isso é mais provocativo mesmo, para elas conseguirem resistir e pensar em questões maiores. Pensar numa campanha feminista, se mobilizar pelo feminismo e perceber que o feminismo na verdade é para todo mundo, não é só para 1% das feministas neoliberais que dizem que todas as mulheres têm que ocupar espaços de poder, como se isso bastasse para a emancipação feminina. 2019
Rossana Tavares
Equipe Rodapé: E de que forma o seu estudo dá suporte aos urbanistas para unir a técnica com o debate de gênero?
Eu já vivenciei isso várias vezes. Eu tenho um relato de pesquisas que fiz em Mesquita na época do mestrado de senhoras que quando trabalhavam tinham uma caixinha de alfinete na bolsa para espetar os homens, e isso ainda é uma prática até hoje. Depois disso, eu fiquei usando alfinete um tempo. O cara já ficava constrangido, mas tem caras que são super violentos e quando está muito cheio nem todas as mulheres têm um perfil de reação, de empurrar, de falar “qual é a sua?”. Não se sentem ainda fortalecidas com esse tipo de prática de resistência. A prática de resistência delas é o silêncio muitas das vezes, até para não morrerem, não levarem um soco. Cada uma vai tendo práticas de resistência conforme as suas experiências também. Então eu acredito muito que o urbanismo precisa associar esses interesses do cotidiano, que são da vida prática, e o que eu preciso para sobreviver, para conseguir ter forças para pensar numa estratégia, porque senão não consigo nem pensar numa estratégia, não consigo nem participar da reunião do condomínio. Então se a gente não pode nem participar da reunião do condomínio, como que vai participar da reunião do plano diretor?
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cidade e gênero
Equipe Rodapé: Na sua tese, você faz uma crítica aos preceitos modernistas por excluírem as mulheres do debate em questão. Poderia comentar mais sobre essa crítica?
Rossana Tavares: Existem arquitetas modernistas, como a Margarete Schütte-Lihotzky, que pensa a questão da cozinha, por exemplo. Então tem arquitetas que, em alguma medida, estão tentando pensar a arquitetura a partir desse lugar que a mulher ocupa no espaço da reprodução, e aí isso vai aparecer no pedregulho, no projeto do Reidy, por exemplo, de fazer lavanderias comunitárias. Mas como é que na verdade o debate do Marx, e o próprio debate feminista mais crítico, se revela na experiência do pedregulho. Não adianta eu só dar as condições materiais, não adianta só construir uma cidade utópica, se a estrutura da sociedade não se modifica. O Marx era contra perspectivas utópicas dos humanistas do século XIX, por causa disso, a Choay fala no livro dela, O urbanismo: utopias e realidades, uma antologia [1965],
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entrevista
que o Marx e o Engels, para ela, são utópicos sem modelo, porque eles acham que não adianta você fazer uma cidade se essa cidade não é adequada a forma como a sociedade se estrutura. Então não adianta botar lavanderia coletiva se as mulheres não topam usar essa lavanderia coletiva, ter sua prática espacial de forma coletivizada. Ao mesmo tempo, os princípios modernistas consideram um modelo, que é o modelo europeu, o modulor: um homem forte europeu de 1,83m. E aí, pensando em termos latino americanos, a roupa não cabe. O P do europeu não é o P que é vendido aqui. E como que tudo isso desconsidera completamente as questões de gênero, né? É um “universal” que reproduz as próprias contradições da Declaração dos Direitos Humanos lá na
época da Revolução Francesa, em que teve uma senhora francesa do codinome de Olympe de Gouges, que propôs uma Declaração de Direitos das Mulheres e foi guilhotinada. Ela apontou aos revolucionários franceses que aquela declaração não considerava as mulheres. Então essa perspectiva “universal” do século XIX pauta a partir de um discurso técnico, positivista, para todos, mas que não é para todos. Existem aí diferenças que acontecem e que deixam grande parte de fora desse modelo de arquitetura e urbanismo modernista, por mais que os princípios e o discurso digam o contrário.
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Rossana Tavares
Marielle, Rossana e sua filha na campanha eleitoral do Marcelo Freixo, candidato à prefeitura do Rio de Janeiro em 2016. Foto: Arquivo pessoal
O primeiro número da revista discente Rodapé surgiu da confluência de dois movimentos e um mesmo desejo. As origens desses movimentos partiram de um grupo de alunos em busca de canais de expressão capazes de abrigar a produção discente, ideia embrionária nas ocupações de 2016; e de ação proposta em meu Plano de Trabalho Docente, apresentado na finalização de meu estágio probatório em 2016, à qual integrava a criação de Revista Discente da Escola de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal Fluminense. Uma revista discente, ideia presente e entrelaçada à própria história da Escola de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal Fluminense, materializa-se neste ano de 2020.
universidade federal fluminense
A Rodapé figura como uma vitalidade, uma pulsão da própria escola em meio a período crítico, pandêmico e urgente por reflexões e proposições. Surge ativa, tanto pelo processo de construção lapidado por alunos que foram tornando-se corpo editorial, quanto pela amplitude de escopo capaz de abrigar um conjunto representativo de trabalhos múltiplos. E o mais importante, Rodapé reúne ensino, pesquisa e extensão - tripé indissociável da nossa Universidade demonstrando as capacidades de articulação e contextualização do nosso corpo discente através de reflexões críticas, entrecruzamento dos vários saberes, engajamento e responsabilidade social, emancipação teórica e prática. Rodapé abre-se à riqueza da interlocução.
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escola de arquitetura e urbanismo
Rodapé dá a ver um instantâneo, carregado de gestos, intenções, proposições e interações. Se formará e transformará a cada número, condensando em cada momento a complexidade do que nos atravessa, nos circunda, nos move, registrando assim nosso movimento como Escola de Arquitetura e Urbanismo. Este número inaugural é resultado do esforço e dedicação de um grupo de alunos - os quais tive o privilégio de acompanhar e orientar - comprometidos e movidos por um desejo comum e pela intenção de iniciar justamente um movimento gerador de um fluxo. Fluxo esse ao qual desejo que se mantenha criativo, potente e capaz de trazer à comunidade da EAU, da UFF e além, os trabalhos, ensaios, criações, reflexões... enfim, a riqueza da nossa Escola. Adriana Caúla
Profª. Adjunta da Universidade Federal Fluminense
coordenadora da Revista Rodapé
Adriana Mattos de Caúla e Silva . Amanda Bueno . Ana Clara Lemos . Ana Luiza Mazalotti . Ana Nieda dos Santos Melo . Bruna Bastos . Bruno Neto . Carolina Antonaccio . Carolina Gomes Vergnano . Caroline Amorim . Cristina Nacif . Daniel Brandão . Eblin Farage . Fábio Carneiro Velasco . Filipe Louzada . Gabriella Bicalho Marques . Gerônimo Leitão . Glauco Bienenstein . Guilherme Rodrigues . Helena Porto . Heloisa Marques . Iara Pioneli . Ingrid Esteves . Isabella Valentim . Jéssica Cortes . João Pedro Boechat . Jordhanna Furtado . Juliana Benévolo . Kamila Saraiva Oliveira Dantas . Kauê C. Romão de Carvalho . Laryssa Rangel . Lívia Babo Teixeira . Luana Cristina . Luiza Waldmann Brasil Matias . Luiz Paulo de Carvalho . Marcele Gualberto Gomes . Marcos Natan Teixeira . Margot Nouaille . Marlice Nazareth Azevedo . Mariana Pacheco de Araujo . Mariana Portugal . Marina Barcellos . Marina Pires . Mateus Benevenuti . Mattheus Henrique Santos Bento . Natália Godinho . Otávio Socachewsky . Pâmela Lack . Pedro Medina Bernardes Bastos . Rachel Merlino . Renato Rampini Lopes . Rossana Tavares . Sara del Castillo . Sophia Francês Mouzinho . Tadeu Asevedo Porto Maia . Thiago Gonzalez . Trevor Georges . Valéria de Sá Silva . Werther Holzer . BAU - UFF . DACA - UFF . Direção da EAU - UFF . SAU - UFF . e à todos os colegas e professores da EAU - UFF pelo apoio. edição nº1
revista rodapé
A Revista Rodapé agradece à todos e todas que de alguma
forma participaram na construção da sua Primeira Edição:
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