3 minute read
D icas culturais
Histórias da luta contra a gripe espanhola e do legado que ela nos deixou A ssim como chegou, ela partiu. Se as estimativas mais elevadas estiverem corretas, a gripe espanhola teria aniquilado de 8 a 10% da população jovem adulta da época. Outro fato impressionante é que, embora ela tenha durado de 1918 a 1920, dois terços das mortes se deram em um período de 24 semanas, de meados de setembro a início de dezembro de 1918. E mesmo em um país desenvolvido como os Estados Unidos, a pandemia provocou cenas dantescas, como a de padres com carroças pelas ruas da Filadélfia pedindo às pessoas, aterrorizadas atrás das portas fechadas, que trouxessem seus mortos para fora para serem recolhidos.
A gripe espanhola nunca deixou de ser esporadicamente lembrada, mas rapidamente ganhou ares de lenda fantasmagórica no imaginário coletivo. Estranhamente, ela se tornou menos citada do que a peste bubônica da Idade Média, embora a pandemia de 1918 tenha matado mais do que aquela em um século. Mesmo a esmagadora maioria dos livros de história mundial acabou a ignorando – pulando da Primeira Guerra Mundial e dos rearranjos sociopolíticos subsequentes diretamente para a “agitação” da década de 1920. Essa estranha lacuna, no entanto, está sendo preenchida pelo historiador e pesquisador norte-americano John M. Barry, responsável pela obra A grande gripe (The great influenza, no original), lançado no Brasil no mês passado.
O livro foi publicado originalmente em 2004 e, no ano seguinte, conquistou o National Academies Comunication Award, prêmio anualmente concedido aos melhores trabalhos de divulgação de temas científicos e médicos ao grande público. Consta que o então presi
Lições de 1918
As máscaras não são novidade: datilógrafa em um escritório em Nova York em 1918 dente George W. Bush o leu enquanto estava de férias em seu rancho no Texas, tendo ficado, na época, estimulado a promover junto ao governo federal planos para potenciais pandemias.
Designada erroneamente de espanhola, uma das hipóteses mais fortes é que a gripe tenha surgido no Condado de Haskell, no Estado do Kansas, nos Estados Unidos. Dali o vírus teria sido levado à Europa por soldados norte-americanos que serviram no front francês no final da Primeira Guerra Mundial. Os governos envolvidos no conflito, porém, abafaram a mortandade pela doença a fim de manter o moral das tropas, enquanto a imprensa na Espanha, país neutro, pôs-se a denunciar os surtos.
Apontando o futuro
O livro de John M. Barry, que também é professor da destacada Escola de Saúde Pública e Medicina Tropical da Universidade de Tulane, em Nova Orleans, abre com um panorama dos grandes avanços das ciências médicas até 1918. O autor nos conta como os Estados Unidos, um país com um ensino sofrível em medicina até o final do século 19 (quem podia, ia se graduar na Alemanha ou na França), era, em 1918, vanguarda nas pesquisas científicas.
“A pandemia de gripe que eclodiu em 1918 foi o primeiro grande choque entre a natureza e a ciência moderna”, escreveu Barry. A obra ainda nos revela como o negacionismo e os interesses políticos fizeram com que várias cidades norte-americanas caíssem no pior cenário. “Muito rapidamente, a população se deu conta de que as autoridades estavam mentindo. Como resultado, os cidadãos sabiam que não podiam confiar em ninguém, que eram deixados por sua própria conta e risco, cada família tendo de cuidar de si mesma”, disse o autor em recente entrevista para Ubiratan Brasil, no Estado de S. Paulo.
Para o pesquisador, o conhecimento científico surgido da pandemia de 1918 “apontou e ainda aponta para muito do que está no futuro da medicina”. A grande gripe voltou a integrar a lista dos mais vendidos e está entre as dicas literárias de Bill Gates para este período de quarentena. Título: A grande gripe Autor: John M. Barry Ano: 2020 Editora: Intrínseca Páginas: 608