#288 JULHO/AGOSTO
MIGRAÇÃO: A FORÇA DO DIVERSO
2016
A contribuição dos imigrantes para o desenvolvimento das nações que os acolhem é inegável, mas nem sempre é fácil o caminho da aceitação de culturas diversas no mesmo espaço.
EXPERTISE
ENTREVISTA
ARTIGO
O historiador Hugo Suppo, ao tentar entender sua vida, mergulhou na compreensão de diferentes culturas.
A porta-voz do Comitê dos Jogos Olímpicos Tóquio 2020 explica como modernizar uma cidade já funcional.
A cientista política Thais Aguiar decifra conceitos democráticos: o medo e o amor ao povo.
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SUMÁRIO
JULHO/AGOSTO 2016
#288
Esta edição está marcada por histórias de vida, seja dos imigrantes que precisam de um novo lar e dos expatriados que aprenderam a viver em outro lugar, ou ainda, dos desafios que a democracia nos
NESTA EDIÇÃO
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DESTAQUES
MEMÓRIA
O espírito de uma época Ruqel Leal
AO LEITOR
coloca, de aceitar o outro, na sua diversidade. Esse Brasil tem trabalhado para abrigar aqueles que, por inúmeros motivos, abandonam seus países e veem
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em terras nacionais um espaço para recuperar a dignidade, o sentido da vida. Mas, é também um
OPINIÃO
Antonio Delfim Netto
Tecnocracia sem restrições
momento de reflexão, de pensar como a democracia é algoz e vítima de seus próprios fundamentos, como mostra a cientista política Thais Florencio Aguiar, em seu artigo sobre demofobia. Antes, po-
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rém, temos a chance de conhecer a história de um imigrante, Hugo Rogelio Suppo, que retirou dos
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EXPERTISE | Hugo Rogelio
Suppo
Crise migratória e identidade cultural
ARTIGO
Marcos Falcão Gonçalves
A avaliação de políticas públicas
Divulgação/©Tóquio 2020
é o ponto de nossa reportagem de capa, ver como o
tormentos de sua vida a essência de sua busca, por outras culturas, pelo entendimento das ações humanas. São relatos fundamentais nesses momentos de guerras por terra, de agudização de fronteiras e
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de espaços abertos pela intolerância.
REPORTAGEM
A corrida do desenvolvimento
Se o movimento dos povos em fuga é grande, também é o momento de congraçamentos, e nesse ponto, os Jogos Olímpicos Rio 2016 são o exemplo máximo das infinitas possibilidades de encontros
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do diverso, do diferente, do inesperado, ainda que aconteça de forma competitiva. Se os atletas en-
ARTIGO
Ênio Meinen
A resiliência do cooperativismo
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ENTREVISTA | Hikariko Ono
Preparada para o futuro
frentam o desafio de vencer, as cidades e os países rotinas. Nesta edição, pensamos se é possível criar, no Brasil, um espaço fixo de promoção do espor-
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te, como uma ferramenta de desenvolvimento de longo prazo. Nos últimos dias, o Rio de Janeiro
ARTIGO
Thais Florencio Aguiar
Noel Joaquim Faiad
que sediam tais eventos precisam ir além de suas
A demofobia e a encruzilhada da democracia
deu provas de que isso é possível. Se é assim para um país em desenvolvimento, imagine o impacto de uma olímpiada para um país que já, idealmente, está no limiar do avanço. A porta-voz dos Jogos Olímpicos de 2020, no Japão, aceita esse desafio e mostra que outras fronteiras podem ser alcançadas, tendo o investimento com responsabilidade socioambiental como uma das premissas da próxima cidade sede, Tóquio. Boa leitura ! Thais Sena Schettino Editora
RUMOS
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REPORTAGEM
Potência energética
ARTIGO
Fernanda Feil Andrej Slivnik Beatriz Marcoje
O aprendizado da inflação
22 CAPA |
América Latina
Um lugar para chamar de seu SEÇÕES
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LIVROS
FOMENTO
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MEMÓRIA
O espírito de uma época Com este artigo, encerramos as seis edições que revisitaram o acervo de 40 anos da revista. Ao falar sobre a década de 2010, a que vivemos, o desafio é ter o distanciamento necessário para discorrer sobre o tempo presente, enquanto ainda estamos imersos nele. POR THAIS SENA SCHETTINO*
A última década a ser revistada nos arquivos Rumos é o tempo presente. Os anos de 2011 a 2016 revelam a retomada dos debates sobre o desenvolvimento e o fortalecimento das instituições financeiras de fomento. Das 33 edições publicadas, o ano de 2012 foi especial em saudar a trajetória de seis associadas da ABDE. Ao longo do ano, cada capa trazia a história de uma das instituições, como as seis décadas do BNDES (março/abril/2012), os 70 anos do Banco da Amazônia (maio/junho), os 60 anos do Banco do Nordeste ( julho/agosto), a meia década do Banco de Desenvolvimento de Minas Gerais (setembro/outubro) e, por fim, na última edição daquele ano, os 40 anos do Sebrae, cuja criação contou com o apoio da Associação. Logo, 2012 foi um ano de importante reflexão sobre a importância dessas instituições não só para o desenvolvimento do país como dos respectivos estados e regiões onde estavam inseridas. Esse ano dedicado às instituições deu o tom de um período, o tempo recente, no qual a revista esteve mais voltada para o Sistema Nacional de Fomento. E não era para menos, esse foi um momento de reorganização da ABDE e do próprio Sistema, principalmente depois da lição deixada pela crise de 2008-9, que reforçou a relevância dos agentes públicos financiadores como indutores do desenvolvimento. Esse olhar para as instituições, que sempre foram um dos caminhos pelos quais a publicação investiu no debate sobre o desenvolvimento, teve como ponto culminante a publicação da Carta ABDE, em março de 2013. Essa época foi de profunda discussão sobre os caminhos futuros que a Associação deveria seguir, com a consolidação de um documento que teve o objetivo de apresentar ao governo e à sociedade uma agenda que contemplava o aprimoramento dos processos e de normas que afetavam diretamente o desempenho do Sistema Nacional de Fomento. 4
O documento, fruto de discussões anteriores, serviu de base para os passos atuais do Sistema, com a construção, em 2015, do Planejamento Estratégico. Esse passo, a construção do documento, permitiu ampliar o diálogo com a sociedade e com os demais elos institucionais do Sistema Nacional de Fomento, como o Banco Central, capa da edição de setembro/outubro de 2013, que, na ocasião, promoveu uma série de medidas para a promoção de mais eficiência e ampliação do canal de diálogo com os agentes do mercado financeiro nacional; e as prefeituras, edição 268 (março/ abril de 2013), com as informações sobre as linhas de financiamento para os municípios. No ano seguinte, 2014, a Copa do Mundo abriu os debates sobre o desenvolvimento, sendo o tema da primeira capa do ano. E a última também foi diferente, pois inauguraram-se as edições especiais de final de ano, que passaram a trazer entrevistas e artigos de pesquisadores e intérpretes do Brasil. Já 2015 marcou a despedida do projeto gráfico da revista, que ganhou nova diagramação para comemorar os 40 anos ininterruptos de publicação. Enfim, todas as capas, todas as reportagens, todos os fatos, todas as pessoas que passaram pelas páginas da revista permitiram que o debate sobre o desenvolvimento brasileiro permanecesse vivo, atravessando crises econômicas e políticas, extinção e nascimento de instituições financeiras, estagnação e crescimento do país. O exercício de revisitar as edições, todo o acervo de mais de 280 números, não gerou nenhuma mensagem de moral da história, ou orientações no sentido do que deveríamos seguir, mas revelaram o espírito de uma época, como nos ensinaria o filósofo Hegel, o mote de toda uma geração: o desenvolvimento. Um zeitgeist que nunca se esgota, que se reinventa, que se supera, que urge acontecer, é o impulso de toda e qualquer época: mover uma nação para a frente. Que venham os outros 40!
* Editora da revista Rumos e Gerente de Comunicação Social da ABDE. Formada em Jornalismo, com mestrado e doutorado em Ciências Sociais pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
JULHO | AGOSTO 2016
O ano do Sistema Nacional de Fomento
O ano de 2012 foi especial para comemorar datas importantes para algumas das instituições financeiras de desenvolvimento. Nas páginas das revistas, o histórico da atuação de bancos e agências que foram fundamentais para impulsionar o crescimento e avanço econômicos de suas regiões e do país. Confira a capa de todas as edições desse ano.
Janeiro/Fevereiro
Março/Abril
Maio/Junho
Julho/Agosto
Setembro/Outubro
Novembro/Dezembro
RUMOS
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EXPERTISE
Raquel Leal
Crise migratória e identidade cultural
Desde a Segunda Guerra Mundial, a Europa não vivia uma onda migratória e consequente crise humanitária tão grande. É um contingente enorme de pessoas oriundas majoritariamente da África e do Oriente Médio, e em menor número da Ásia, solicitando asilo, fugindo de guerras, conflitos, fome, intolerância religiosa, mudanças climáticas intensas, violações de direitos humanos, entre outras realidades insuportáveis. A Inglaterra acaba de deixar a União Europeia, com um rastro de intolerância no ar. Será que esta é uma tendência mundial? Para conhecer melhor o assunto, Rumos conversou com Hugo Rogelio Suppo, doutor em História das Relações Internacionais pela Université de Paris III (1999). O professor coordena o Núcleo de Estudos Internacionais Brasil-Argentina (Neiba), na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) e, em busca de respostas para sua experiência pessoal, tornou-se um grande especialista no assunto. POR ANA REDIG
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JULHO JULHO || AGOSTO AGOSTO 2016 2016
Hugo Rogelio Suppo nasceu na Argentina, em uma família pequena: pai, mãe e a irmã, Silvia. Em 1977, a vida da família Suppo virou de ponta-cabeça. Silvia foi sequestrada e torturada por forças de segurança da província de Santa Fé, durante a ditadura militar argentina. Ela tinha apenas 17 anos e foi mantida em cativeiro e violentada por vários homens. Em consequência, engravidou e foi submetida a um aborto forçado. Só em 2010 seus algozes foram processados e condenados por crimes de lesa-humanidade a Silvia, em um processo em que ela foi uma das principais testemunhas. Em 29 de março do mesmo ano, ela foi assassinada em casa, em plena luz do dia. O caso, assim, passou às mãos da Corte Suprema de Justiça da Argentina. Em 31 de março, o Tribunal Oral Federal de Santa Fé condenou dois de seus torturadores, Rodolfo Cóceres e Rodrigo Sosa, à prisão perpétua. Quando Silvia foi presa, Hugo veio para o Brasil na condição de exilado político. Obteve rapidamente a proteção do Alto-Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados, o que o ajudou a conseguir, em 1979, uma bolsa de estudos para cursar um pré-vestibular e, em seguida, um curso universitário. “Eu tinha a necessidade de explicar o que tinha acontecido com o meu país, com a minha geração – o porquê de tanto massacre, e de tanta intolerância. Por isso escolhi estudar História”, relembra Suppo. Com a graduação concluída, foi trabalhar no Colégio Santo Agostinho como professor do atual Ensino Médio. Paralelamente, prestou exame para o Mestrado de História da Universidade Federal Fluminense. “Apesar de ter sido classificado em primeiro lugar, com nota dez, abandonei o curso por razões de ordem pessoal, entre elas, a morte súbita de meu pai, com apenas 56 anos”, admite. Além disso, a História Econômica tinha deixado de ser uma paixão para ele, como havia sido nos idos de 1982, quando foi monitor da Área de História Econômica. Alguns meses depois, o historiador decidiu morar na França, onde viveu por 12 anos. Durante esse período, Hugo Rogelio Suppo consolidou um currículo invejável na área de Relações Internacionais, focado nas políticas culturais. “Nesse período conheci o professor Guy Martinière, que teve uma grande influência sobre meu futuro como pesquisador, tendo sido meu orientador no mestrado e no doutorado”, conta Hugo. O especialista foi convidado a integrar uma equipe de estudos sobre História do Brasil e das Relações Internacionais da América Latina, que Martinière dirigia. Esse grupo de pesRUMOS
quisadores era uma das equi- “A chegada da nova pes mais dinâmicas do Centro onda migratória de Pesquisa e Documentação sobre a América Latina, e Su- tende a reforçar ppo participou dele até voltar as comunidades identitárias já ao Brasil, em 1997. Foi quando o professor existentes no interior iniciou uma nova história, dos Estados e, em agora na Uerj, voltada para o consequência, os desenvolvimento da área de embates internos.” Relações Internacionais na universidade, com ênfase em temas inovadores, tais como nacionalismo e relações internacionais, cultura e relações internacionais, esporte e relações internacionais, para citar alguns exemplos, e para onde está orientada sua pesquisa desde então. GLOBALIZAÇÃO E XENOFOBIA Avaliando o atual cenário envolvendo migrações, o especialista acredita que o pior momento da atual onda migratória tenha passado, a não ser que aconteça algum desastre natural ou alguma outra guerra de proporções importantes. Para Suppo, praticamente todos os Estados-nações da Europa estão se sentindo ameaçados por forças centrífugas internas e externas. O professor usa um quadro esquemático para mostrar o “jogo triangular” de tensão permanente entre o Estado-nação, as comunidades identitárias e os atores transnacionais (ver gráfico). “Para responder e resistir a essa dupla concorrência – das comunidades identitárias e dos atores transnacionais – esses Estados-nação desenvolveram diversas políticas”, explica o professor. As medidas mais comuns relacionadas aos atores transnacionais foram diferentes tipos de protecionismo. Já em relação às comunidades identitárias, o tema é mais delicado, pois também envolve problemas de crise do modelo republicano. Alguns governos (tanto de esquerda como de direita) tentaram mobilizar as comunidades identitárias (ações afirmativas, apoio na constru7
ção de mesquitas etc.), com o objetivo de obter legitimidade angariando o voto desses grupos. Dessa maneira, foram implementadas políticas públicas multiculturais destinadas a preservar a cultura e religião dessas comunidades. “Foi um jogo perigoso porque se formaram inúmeros guetos, onde nem sempre predominam os princípios republicanos. Não podemos nos esquecer de que são recrutados nessas comunidades a maioria dos terroristas europeus. E a chegada da nova onda migratória tende a reforçar essas comunidades identitárias já existentes no interior desses Estados e, em consequência, os embates internos”, opina Suppo. Para falar de xenofobia, o historiador mergulha na sua maior especialidade, que é a política cultural, para definir alguns termos. “Há duas concepções clássicas do que é identidade cultural”, explica Hugo Suppo. “A que considera que identidade cultural é hereditária e transmitida via DNA, que embasa as teorias racistas, e a que entende que ela é determinada pelo meio externo, ou seja, nascemos como uma ‘página em branco’ e o convívio cultural nos imprime os traços culturais. Ambas as abordagens, no entanto, consideram o indivíduo passivo, e, desse modo, ele não escolhe sua própria cultura, ela é predeterminada”. Já a concepção subjetiva considera que a cultura é também um ato de vontade individual, ou seja, o indivíduo escolhe o que ele quer ser. Ou, como os antropólogos afirmam hoje: a identidade cultural é na realidade relacional, ou seja, ela é resultado da interação do indivíduo com o meio e não tem nada de hereditário, apesar de que alguns traços fenóti-
pos possam levar a pensar, erro- “A história nos neamente, o contrário. “Hoje só ensina que os racistas defendem esse ponser próximo to de vista”, destaca. culturalmente não Ainda que a bibliografia sobre a formação dos Esta- leva necessariamente dos-nação europeus distinga a comportamentos dois tipos de nacionalismos tolerantes com o – o étnico/cultural (concep- outro.” ção objetiva da identidade) e o cívico (concepção subjetiva da identidade), na verdade a maioria dos Estados misturou e mistura até hoje esses critérios. “Por exemplo, ao conceder a nacionalidade, conjugam as duas concepções clássicas: hereditariedade (jus sanguinis) e meio (jus solis)”, explica. Hugo Suppo fala sobre isso com base na própria experiência. “Eu já fui refugiado e também imigrante e, em consequência, vivi na pele o choque identitário. Eu escolhi ser híbrido. Em outras palavras, em lugar de ‘exigir’ que no Brasil e na França minha cultura fosse ‘preservada’ (para mim e meus filhos), como uma coisa essencial e vital, eu escolhi viver segundo o famoso lema Cum Romae fueritis, Romano vivite more [Se vai a Roma, viva como um romano]”. Segundo ele, até muito recentemente a maioria dos imigrantes na Europa procuraram se integrar, enquanto outros foram “forçados” por políticas de assimilação. “Poderíamos alegar que, no meu caso, essa escolha foi fácil por causa da proximidade cultural entre Argentina e o Brasil e a França, mas isto não é verdadeiro, a história nos
Colocar o quadro/ tabela aqui
Fonte: Hugo Rogelio Suppo
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JULHO | AGOSTO 2016
ensina que ser próximo culturalmente não leva necessariamente a comportamentos tolerantes com o outro”, pondera. A globalização gerou um importante deslocamento de população ao mesmo tempo que os Estados-nações estavam em profunda crise. A diversidade cultural se transformou em um lema sagrado, e hoje a sociedade que recebe os imigrantes é que tem que se transformar para acomodar a diversidade. Há um verdadeiro culto à diversidade. Dessa forma, um dos problemas cruciais que a maioria dos Estados europeus enfrenta hoje é como conciliar essa diversidade cultural com a coesão cívica. POLÍTICAS MULTICULTURAIS Para Suppo, os modelos de políticas multiculturais que foram implementados para garantir a diversidade fracassaram, ou estão fracassando na maioria dos países, num contexto de profunda crise econômica e política. “Isso explica, em grande parte, o crescimento dos partidos de extrema direita nacionalista”, afirma. De forma esquemática, pode-se dizer que no século XIX o nacionalismo foi uma bandeira liberal. No final do século, no entanto, Estados já consolidados usaram o nacionalismo para justificar a colonização e o imperialismo. Já no século XX, este modelo se transformou na bandeira do fascismo e do nazismo. “A esquerda também se serviu do nacionalismo em seus movimentos de libertação nacional contra a ocupação nazista e depois no período da descolonização contra as metrópoles. Hoje, a esquerda perdeu essa bandeira para os grupos de direita”, completa. Entre os diferentes modelos de política multicultural – conservador, liberal, pluralista e cosmopolita –, os conservadores são radicalmente contra
Raquel Leal
Hugo Rogelio Suppo é doutor em História das Relações Internacionais pelo Université Sorbonne Nouvelle - Paris III, França(1999) e professor adjunto da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ).
RUMOS
o multiculturalismo. “Para eles, a ideia multiculturalista da ‘diversidade dentro da unidade’ é uma falácia, já que a fragmentação é inevitável”, explica Hugo Rogelio. Eles propõem a assimilação para que essas minorias étnicas sejam absorvidas pela comunidade “receptora”, criando assim um Estado-nação homogêneo. O modelo liberal consiste, basicamente, na defesa incondicional da tolerância e da autonomia individual num sistema de democracia liberal. Ou seja, a identidade cultural é dissociada da cidadania, é a chamada “nacionalidade hifenizada” (afro-americanos, ítalo-americanos, hispano-americanos etc.). “A tarefa prioritária do Estado é a inclusão e não a diversidade, o que explica as políticas chamadas de ‘ação afirmativa’”, avisa Suppo. Entretanto, nem todos os liberais concordam totalmente com o relativismo cultural que está implícito no multiculturalismo, por isso vivem no eterno paradoxo de ter que conciliar certas práticas comunitárias que vão contra os direitos humanos, que subordinam o indivíduo ao grupo e são contra o indivíduo (casamentos forçados, circuncisão feminina, uso do véu pelas mulheres etc.). Nesse sentido, o perigo maior seria a “guetização” da sociedade, em que cada grupo está essencialmente preocupado com suas tradições e pureza racial ou cultural. As pessoas se concentram mais no que as divide do que naquilo que as une. “Atualmente esse processo está acentuado pela revolução das comunicações, que permite que as diásporas mantenham, via internet, estreito contato entre elas e com o o grupo original”, destaca o historiador. Enquanto no modelo cosmopolita a palavra-chave é o hibridismo, pois celebra ao mesmo tempo a diversidade cultural e a política identitária, mas as consideram transitórias e instáveis, o pluralista privilegia a diversidade em detrimento da unidade. Isso quer dizer que procura, a qualquer custo, conservar a “pureza” cultural dos grupos considerados marginalizados. Ou seja, a sociedade é organizada num sistema predominantemente comunitarista. O multiculturalismo se transforma em uma ideologia, na qual a cultura nacional é apenas mais uma cultura comunitária e é acusada de ser dominada pelos estereótipos e preconceitos xenófobos. A cidadania seria composta de um mosaico de infinitas culturas. Para os reformadores sociais, o multiculturalismo é um elemento perturbador, uma vez que promove a competição entre grupos ou setores menos favorecidos identificados por valores étnicos ou culturais e não mais por meio da luta de classes ou pela procura da justiça social. “A esquerda, de modo geral, não soube como enfrentar esse problema. Segundo Laurent Bouvet, a esquerda europeia, por causa do ‘complexo colonial’, acabou aderindo ao chamado pós-colonialismo que triunfou a partir dos anos 1970, num quadro de profundas mudanças sociais e crise econômica. A narrativa pós-colonial substitui a narrativa clássica da emancipação operária e da luta de classes”. No entendimento de Hugo Rogelio Suppo, a esquerda personifica sua luta no que é diferente, no imigrante. Ou seja, quem deve ser emancipado e “indenizado” doravante é determinado pela cor da pele, a origem étnica ou até mesmo pela sua religião, e não mais pela posição social do indivíduo. De toda forma, Hugo Rogelio Suppo acredita que a União Europeia, apesar da recente saída da Inglaterra do grupo, permanece sendo um maravilhoso projeto. Seus problemas, garante Suppo, não estão ligados à economia, mas à cultura, à identidade. 9
OPINIÃO
Tecnocracia sem restrições
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que, dependendo das reações da economia, exageros na política de austeridade podem levar a um austericídio. Trata-se de um problema empírico e não teórico. Suponha que: 1) a variação do PIB real é proporcional (de fato um multiplicador positivo) à variação da despesa real do governo e 2) a receita real do governo é a carga tributária em percentagem do PIB. As duas hipóteses combinadas levam à conclusão de que, eventualmente, uma redução da despesa real pode levar ao aumento do endividamento (se o multiplicador, vezes a carga tributária, for menor do que um). A conclusão mais interessante é que, se ele for maior do que um, teremos um almoço “grátis”: quanto maior a expansão do gasto do governo, maior a redução do endividamento, o paraíso do pensamento mágico! É claro que o mundo real é muito mais complicado (veja, por exemplo, a conclusão nada reconfortante de Fatás, A. –; Summers, L.H. – The Permanent Effects of Fiscal Consolidations, junho, 2016): “os resultados sugerem, fortemente, que a consolidação fiscal que fizemos nos últimos anos foi autodestruidora. Aumentou a dívida em lugar de reduzi-la”... Nada disso fala contra o programa que o presidente interino Michel Temer propôs ao país. Fala, entretanto, contra afirmações apodíticas de economistas que se supõem portadores de uma “ciência” que ignora restrições, convencidos de que, no regime democrático, o que atrapalha a “racionalidade” e a “justiça” da sua “ciência” é a “irracionalidade” da política. A solução, portanto, é substituir o poder político pelo poder tecnocrático... ANTONIO DELFIM NETTO
Marcelo Correa
É da essência tanto do crédito privado quanto do público que deve existir um razoável grau de confiança entre quem empresta e quem toma emprestado. Crédito é, portanto, apenas o outro nome da confiança recíproca. A grande diferença entre o crédito privado e o público (o outro lado da dívida do governo) é que este exige muito maior confiança entre o credor (um agente privado) e o devedor (o Estado). No caso do crédito público não há garantia real e se o empréstimo é em moeda nacional, não há o risco de que não seja honrado, porque o próprio Estado é o monopolista criador da moeda que tem poder liberatório sobre todos os ativos, dois aspectos contraditórios que têm consequências. O efeito físico da dívida pública depende da disponibilidade de fatores de produção na proporção adequada. Se a economia está em pleno emprego, ela apenas substituirá a demanda privada redirecionando os recursos para investimentos em infraestrutura, aumentando, talvez, a produtividade geral da economia. Mas se a demanda privada for insuficiente para sustentar o pleno emprego, a dívida pública permitirá a mobilização da poupança para sustentá-lo. Ocorre que a acumulação quantitativa da dívida pública produz variações qualitativas no grau de confiança do credor, o que pressiona a taxa de juros real da economia com todos os seus efeitos sobre o investimento privado e sobre a taxa de câmbio. Isso exige atenção permanente sobre a Dívida Bruta, que deve manter-se em níveis adequados com relação ao Produto Interno Bruto (PIB). Uma das variáveis “inventadas” pelos economistas, difícil de ser estimada empiricamente, é o chamado “produto potencial” (maior valor do PIB que a economia pode produzir com os recursos de que dispõe), que se usa para distinguir o “déficit estrutural” (quando a economia está em plena carga), do “déficit cíclico”, gerado quando a economia está operando abaixo do seu “potencial”. O déficit fiscal é a soma dos dois. A distinção é importante: a política econômica pode mitigar o déficit “cíclico”, mas somente reformas profundas podem enfrentar o déficit “estrutural”. É inegável a necessidade de elevarmos a produtividade do gasto público ao mesmo tempo que devemos controlá-lo para obter uma relação Dívida Bruta/PIB com espaço para uma eventual política anticíclica. É preciso reconhecer
Professor emérito da Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade (FEA-USP), exministro da Fazenda, da Agricultura e do Planejamento.
JULHO | AGOSTO 2016
ARTIGO
A avaliação de políticas públicas O tema Avaliação de Políticas Públicas tem se apresentado com maior frequência e ganho cada vez mais importância na agenda política brasileira. Paulatinamente, percebemos o surgimento de estruturas voltadas ao monitoramento e à avaliação no arcabouço da burocracia estatal, em níveis diferentes de estruturação e direcionamento de ações. Exemplo dessa preocupação é o rápido crescimento da Rede Brasileira de Monitoramento e Avaliação (RBMA). Criada em 2008, como plataforma virtual para promover espaços de encontro com sinergia no tema do monitoramento e da avaliação, além de estimular a produção de conhecimento e a formação na área, bem como fortalecer a colaboração e o intercâmbio com organizações internacionais e influenciar o debate público sobre avaliação, reúne, atualmente, mais de 6.000 membros e passou a constituir uma associação formal. Diante desse quadro, a criação do Comitê de Monitoramento e Avaliação de Políticas Públicas Federais (CMAP), em abril de 2016, ilustra o interesse do governo federal brasileiro. Seu objetivo é aperfeiçoar políticas públicas, programas e ações do Poder Executivo federal para que alcancem melhores resultados, contribuindo para a eficiência na alocação de recursos e a melhoria da qualidade do gasto público. Com a preocupação de otimizar a alocação dos recursos públicos sob sua administração, permitir maior transparência na aplicação desses recursos e potencializar seus efeitos em prol do desenvolvimento regional, o Banco do 12
Nordeste criou, em 2003, a Célula Dada a histórica de Avaliação de Políticas e Progradesigualdade intermas (CAPP), vinculada ao Escritório regional brasileira, o Técnico de Estudos Econômicos do FNE busca contribuir Nordeste (Etene). Assim, o Banco do Nordeste tem para o desenvolvimento avaliado os resultados e impactos econômico e social da operacionalização das principais da região Nordeste, políticas públicas sob sua execução mediante a execução ou administração, em especial os de programas de programas do Fundo Constitucio- financiamento aos nal de Financiamento do Nordeste setores produtivos, (FNE). Trata-se de seu maior fun- com especial atenção ding, criado pela Constituição Fe- à porção semiárida deral de 1988, alimentado por 1,8% regional (para onde do valor correspondente ao recodeve ser destinado o lhimento dos impostos sobre renda mínimo de 50% dos e proventos de qualquer natureza recursos anuais) e sobre produtos industrializados. Dada a histórica desigualdade inter-regional brasileira, o FNE busca contribuir para o desenvolvimento econômico e social da região Nordeste, mediante a execução de programas de financiamento aos setores produtivos, com especial atenção à porção semiárida regional (para onde deve ser destinado o mínimo de 50% dos recursos anuais) e aos municípios definidos, pela Política Nacional de Desenvolvimento Regional (PNDR), como de baixa renda, de média renda estagnada e de média renda dinâmica. Nessa perspectiva, o Banco do Nordeste recentemente avaliou o impacto do FNE na geração de emprego, na massa salarial e no salário médio das empresas beneficiadas pelo Fundo. Com o uso da ferramenta econométrica de Propensity Score Matching foi possível comparar o desempenho das empresas que receberam financiamentos do FNE (grupo de tratamento) com aquelas que não receberam (grupo de controle), evidenciando que o Fundo produziu uma dinâmica diferenciada nas JULHO | AGOSTO 2016
RUMOS
de 10% no volume de Os resultados apontam recursos do FNE se que as empresas traduz num aumento médio de 0,78 p.p. na financiadas estão taxa de crescimento gerando emprego em do Produto Interno conformidade com o Bruto (PIB) nos mu- que o mercado espera: nicípios do primeiro em média, os empregos grupo e de 1,09 p.p. gerados pelas empresas nos integrantes do segundo grupo. Na- financiadas superou queles municípios que em 18,34% o montante apresentavam renda esperado. per capita muito alta (acima de R$ 7.406) ou muito baixa (inferior a R$ 2.143), os efeitos não foram estatisticamente significativos. Apesar dos avanços recentes, existe, ainda, um longo caminho a seguir, seja na formação de recursos humanos capacitados para a avaliação de políticas públicas, seja na internalização e na real utilização dos resultados pelos gestores governamentais. Diante da dicotomia econômica de escassez de recursos e crescente demanda, avaliar políticas públicas torna-se imprescindível para a eficácia, a efetividade e a eficiência do gasto público.
MARCOS FALCÃO GONÇALVES Arquivo pessoal
empresas financiadas em relação às demais, tanto no que se refere ao crescimento do emprego, como em relação à massa salarial. Tal impacto mostrou-se preponderante para os setores da Indústria e de Serviços, em empresas localizadas fora da região semiárida e nos municípios de alta renda e com economia estagnada, segundo a classificação da PNDR. Em relação à massa salarial, após um ano de financiamento do FNE, o impacto médio de crescimento na folha salarial foi de 4,44 pontos percentuais (p.p.). Em três anos após o financiamento, esse impacto foi de 14,77 p.p., e em cinco anos, 45,20 p.p., em comparação às empresas não financiadas. No que tange ao diferencial de emprego, foi verificado impacto de 3,65 p.p. (após um ano), aproximadamente 13,51 p.p. (após três anos), e 37,57 p.p. (após cinco anos), devidos ao FNE. Quanto ao salário médio, não se observou impacto refletido pelo crescimento proporcional da massa salarial e do emprego. Ademais, avaliou-se, também, a eficiência das empresas financiadas com recursos do FNE na geração de emprego. Para tanto, comparou-se a expectativa de geração de emprego, por meio do coeficiente técnico do trabalho (representado pelo multiplicador de emprego obtido pela Matriz de Insumo Produto Regional) com os empregos efetivamente gerados. Espera-se que devido ao diferencial das taxas de juros subsidiadas do FNE ao setor produtivo, as empresas consigam contratar além da média regional. Assim, as questões subjacentes norteadoras tentaram compreender se as empresas financiadas conseguem aproveitar o diferencial da taxa de juros para gerar mais empregos; e se o diferencial de desempenho dessas empresas compensa o custo de oportunidade dos seus financiamentos com taxas diferenciadas. Os resultados apontam que as empresas financiadas estão gerando emprego em conformidade com o que o mercado espera: em média, os empregos gerados pelas empresas financiadas superou em 18,34% o montante esperado. A eficiência foi relativamente maior para as empresas do semiárido, demonstrando que, embora estas empresas apresentem impacto relativamente menor, foi preciso um montante menor de recursos para realizá-lo, o que lhes conferiu uma maior eficiência. O mesmo aconteceu para municípios considerados de renda média estagnada pela PNDR, que, apesar do menor impacto em relação à geração de emprego, quando comparados aos municípios dinâmicos ou de alta renda, apresentaram maior eficiência nessa variável. Foi verificado, ainda, o impacto do FNE nos municípios de sua área de abrangência, por meio da formação de clubes de convergência. Os resultados mostraram a existência de quatro grupos de municípios que são afetados de forma diferente pelo Fundo, o que resulta num maior impacto naqueles grupos de média renda per capita (na faixa que varia de R$ 2.143 a R$ 3.866, e naquela entre R$ 3. 867 e R$ 7.406). Um aumento
Gerente de Avaliação de Políticas e Programas do Banco do Nordeste do Brasil e economista. É especialista em Economia Financeira e Análise de Investimentos, Especialista em Gestão de Arranjos Produtivos Locais, Mestre em Economia Rural e Doutorando em Economia Aplicada.
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A corrida do desenvolvimento Executivos debatem o Mercado dos Esportes, que movimenta mais de um trilhão de dólares por ano em todo o mundo, e pode modificar a trajetória de desenvolvimento de uma cidade. O Brasil, e o Rio especificamente, deveriam apostar nisso? POR JADER MORAES
Um setor que movimenta cerca de 1,2 trilhão de dólares por ano em todo o mundo. Mais do que apenas um fator de entretenimento, o esporte tem se transformado em um negócio altamente lucrativo, com impactos para outros setores, como turismo, infraestrutura e tecnologia. Pelo que foi feito e pelo que poderia ter sido ser feito e não foi, os Jogos Olímpicos do Rio de Janeiro são um exemplo do potencial dos eventos esportivos para alavancar economias locais. Nestes sete anos de preparação olímpica, com uma Copa do Mundo de futebol no meio do caminho, os feitos mais expressivos da cidade do Rio de Janeiro dizem respeito à sua consolidação como um dos principais destinos turísticos da América Latina – a capital fluminense dobrou sua capacidade hoteleira, ampliou a infraestrutura para receber as pessoas, revitalizou importantes regiões da cidade, especialmente na área central, porta de entrada para quem chega de navios e cruzeiros ao município. De outro lado, importantes obras de infraestrutura ficaram pelo cami14
nho ou foram entregues aquém do prometido – como a despoluição da Baía de Guanabara, que exigia o tratamento do esgoto sanitário de toda a região metropolitana; e a extensão do metrô, que só foi finalizada às véspera dos jogos e em um trajeto menor do que o inicialmente previsto. Exemplos acima explicitam que sediar um grande evento esportivo tem potencial para impactar o desenvolvimento das cidades, tanto no aspecto econômico quanto no social. Mas o que é preciso para que esse potencial de fato se reverta em ganhos para as regiões onde os eventos se instalam? A história olímpica tem sido uma verdadeira gangorra entre as cidades que utilizam os Jogos como impulso para seu desenvolvimento (como Barcelona e Sydney) e outras onde o evento deixa um saldo negativo no fim – e embora o exemplo mais clássico e mais contundente seja o de Atenas, na Grécia, as Olimpíadas de Atlanta, nos Estados Unidos, se notabilizaram por ser uma das mais desorganizadas da história, com poucos ganhos sociais. JULHO | AGOSTO 2016
Fernando Frazão/Agência Brasil
REPORTAGEM
O gestor para a América Latina de uma das principais empresas de promoção de esportes em todo o mundo, Pedro Navio, destaca que alguns fatores são importantes para transformar uma cidade em uma hub global de esportes, possibilitando ganhos em outros campos que também são beneficiados com o desenvolvimento de infraestrutura esportiva. É preciso construir projetos com visão de longo prazo e consistência, voltados para a vocação da cidade e desenvolver um ambiente de negócios favorável, com menos burocracia e incentivo fiscal e tributário. Navio cita cidades que, por meio do planejamento, se transformaram ou estão em vias de transformação econômica impulsionadas, em parte, pela economia do esporte. É o caso de Lausanne, na Suíça, que atraiu para si as sedes de alguns dos principais órgãos esportivos mundiais, como o Comitê Olímpico Internacional (COI) e o Tribunal Arbitral do Esporte, e fatura anualmente cerca de dois bilhões de dólares nesta área, apesar de sua população ser de apenas 140 mil habitantes. Outro exemplo é Doha, no Catar, que conta com o significativo apoio financeiro do Estado e aposta na alta qualidade da infraestrutura das instalações. A cidade construiu um plano para até 2050 se transformar no principal centro esportivo do planeta, atraindo eventos diversos como a Copa do Mundo de 2022 e o Grand Prix de Fórmula 1, com planos de uma candidatura olímpica. Com um modelo menos estatal e mais voltado para as parcerias com a iniciativa privada, Singapura construiu um imponente parque de esportes (o chamado Hub Singapura Sports, com 35 hectares de extensão, que inclui um estádio refrigerado para 55 mil pessoas) e também tem buscado se posicionar como importante centro para a atração de eventos esportivos. DESAFIOS E o Rio de Janeiro? “Há diversas fortalezas que fazem com que a cidade esteja bem posicionada e possa se transformar em um hub global de esportes, especialmente porque esta parece ser sua vocação, tanto a parte esportiva, como para receber grandes públicos”, explica Navio. Além disso, ele destaca que a cidade carioca possui mão de obra capacitada para eventos de grande porte, por sediar periodicamente atividades de complexidade elevada, como o Réveillon, o carnaval e festivais como o Rock in Rio. “Os trabalhadores no Rio estavam mais capacitados que os de Londres, por exemplo, por essa tradição dos grandes eventos aqui”, completa. Outros pontos favoráveis ao Rio, segundo o gestor, são a vocação natural da cidade para eventos outdoor (ao ar livre) e a infraestrutura de ponta montada recentemente, em função dos Jogos, para eventos indoor (fechados); o clima favorável na maior parte do ano; o interesse do público local, já que na cidade em geral são registradas boas vendas de bilheterias; e forte apelo global das locações cariocas – os campeonatos de surfe, motocross e de air force, por exemplo, tiveram sua maior audiência mundial nas edições que se realizaram na cidade, caso que se repete em muitos outros esportes. Este último ponto é enfatizado por Gary Zenkel, um dos principais executivos da NBC, emissora norte-americana líder no segmento de esportes e que investiu sete bilhões de dólares nos direitos de transmissão das Olimpíadas até 2032. Ele explica que provavelmente o conteúdo mais importante produzido pela TV nos Estados Unidos hoje, em termos de audiência e faturamento, são as transmissões esportivas ao vivo. Em 2012, em LonRUMOS
dres, a emissora obteve recorde histórico na transmissão das Olimpíadas, que se tornou o evento mais assistido da história. Sobre os jogos no Brasil, ele revelou que a expectativa era superar esse resultado. Responsável pelas medições do Ibope a respeito dos eventos esportivos, José Colagrossi acompanha há 30 anos pesquisas nessa área e avalia que é preciso pensar em um plano estratégico se o país, e a cidade do Rio especificamente, quiserem se tornar um centro global de esportes. Junto a outros especialistas, em um evento realizado no fim de julho no Museu do Amanhã, na capital fluminense, Colagrossi defendeu que é preciso, dentre outras ações, diminuir a burocracia e os custos legais para a realização de grandes eventos no Brasil. Atualmente, dos mais de um trilhão de dólares gerados anualmente pelo segmento, a América Latina corresponde a apenas 6% do total de faturamento, cabendo ao Brasil a metade dessa fatia. Quando se amplia para o grupo dos Brics (Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul), os cinco países correspondem a cerca de 10% do faturamento global, que se concentra, basicamente, em seis pontos: direitos de mídia, tíquetes, patrocínio, merchandising, vestuário e equipamentos e, majoritariamente, turismo (esta é a composição do chamado “mercado de esporte”). Executivo brasileiro com reconhecida carreira internacional, Ricardo Fort, atualmente vice-presidente de uma das companhias que patrocinam os Jogos Olímpicos, lembrou que, mais importante do que saber como se transformar em um centro global de esportes, é responder à pergunta: isso é importante? Ele nota que muitos governos e setores influentes da sociedade acreditam que os recursos investidos no mercado do esporte poderiam ser mais bem empregados em outras áreas entendidas como prioritárias. “Eu defendo que o investimento no esporte pode acelerar o crescimento econômico e o desenvolvimento social. Todas as principais companhias do mundo querem se relacionar com o esporte de alguma maneira, especialmente em patrocínios, e isso pode ser revertido para as cidades. O esporte traz inclusão social, impacta o turismo e atrai o investimento privado”, argumenta. Por isso, o diretor-executivo de Comunicação do Comitê Rio 2016, Mário Andrada, acredita, indicando o mês de agosto como um marco para o país, que “quando chegar em setembro, todos estarão mais orgulhosos e confiantes no futuro do que em julho”. O tempo dirá se ele tem razão. 15
ENTREVISTA
Passada a emoção dos Jogos Olímpicos do Rio de Janeiro, os primeiros realizados na América do Sul, o próximo país a receber os atletas será o Japão. Famoso por sua organização e tecnologia, o país se prepara para o desafio de promover competições com o menor custo possível e abrigar centenas de atletas em uma cidade, Tóquio, já conhecida por sua limitação de espaço. Em entrevista à Rumos, a porta-voz do Comitê Olímpico japonês, Hikariko Ono, explica como o conceito de sustentabilidade será vital para reduzir os investimentos e como a tecnologia e a já existente rede de transportes poderão facilitar o desenvolvimento dos jogos.
POR THAIS SENA E JADER MORAES
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Preparada para o futuro RUMOS – O Rio de Janeiro apostou no mote da transformação e do desenvolvimento urbano para sediar as Olimpíadas. Tóquio, ao contrário, já é uma cidade desenvolvida. Que transformações os Jogos podem trazer para a cidade? Poderia destacar as principais obras de infraestrutura a serem realizadas em função das competições? HIKARIKO ONO – Haverá uma herança tangível nos oito locais de competição, além da Vila Olímpica e Paralímpica, mas o legado não poderá ser medido em estruturas de tijolo e cimento. Como foi sinalizado, Tóquio é uma cidade totalmente desenvolvida e os jogos irão evidenciar todos os benefícios dessa modernidade. Entretanto, as alterações em infraestrutura não serão os únicos legados esperados dos jogos. Nós acreditamos que o esporte tem o poder de mudar o mundo e o nosso futuro. Queremos inspirar a juventude em Tóquio, uma cidade que tem capturado a imaginação dos jovens. NosJULHO | AGOSTO 2016
so objetivo é promover o esporte e seus valores para a nova geração, em um país que redescobriu o seu poder de ação e sua força para o bem após o terremoto de 2011 e o tsunami. Finalmente, queremos capitalizar a oportunidade de hospedar os jogos paralímpicos para mostrar a nossa visão, que é “união na diversidade”, em um mundo onde todos aceitem uns ao outros e em uma cidade acessível a todos por meio de um design universal. RUMOS – O apoio da população às competições é fundamental para o sucesso dos Jogos Olímpicos. A população de Tóquio já apoiava a candidatura, no sentido de que a realização dos Jogos seria importante para o desenvolvimento da cidade? HIKARIKO – Na época da eleição de Tóquio como a cidade dos jogos de 2020, o apoio do público chegou a 92%. Nós sempre tivemos um sólido apoio do público, o que confirma a profunda paixão dos nossos cidadãos por esporte, em particular pelos Jogos Olímpicos e Paralímpicos. E acho que também estamos aproveitando o benefício de acompanharmos os Jogos Rio 2016. A cidade está entendendo que é a próxima parada da jornada da Olímpiada. Por exemplo, nossos três espaços dedicados à torcida, em Tóquio e na região de Tohoku, atraíram mais de 80 mil pessoas em uma semana. Um outro sinal de que o público apoia é o sucesso do programa de licenciamento de produtos, lançado há um mês, que já tem itens esgotados. Estamos muito conscientes da importância do apoio do público para o sucesso dos Jogos, e vamos continuar a engajar os japoneses. O melhor ainda está para vir, como o programa cultural e de voluntariado, os Live Sites [espaços de transmissão ao vivo em áreas públicas], e a passagem da tocha olímpica. RUMOS – O projeto japonês é grandioso, com arenas futuristas. Como garantir que seja plenamente executado neste cenário de incertezas econômicas em todo o mundo? HIKARIKO – Os projetos e os planos que envolvem os Jogos 2020 são bem razoáveis em considerar a construção de apenas oito instalações e a Vila Olímpica. Quando revisamos o projeto, colocamos ênfase no uso de espaços já existentes, na questão da sustentabilidade e no custo de manutenção. Os patrocinadores, o licenciamento e as vendas de ingressos respondem por uma porcentagem alta das receitas do Comitê Organizador. O patrocínio e o licenciamento já alcançaram um enorme sucesso e recorde de RUMOS
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Hikariko Ono é a porta-voz do Comitê Organizador dos Jogos Olímpicos de Tóquio. Formada em Ciências Sociais pela Universidade de Hitotsubashi, ela já atuou como diretora de Estratégias de Diplomacia Pública do Ministério do Exterior japonês e até recentemente dirigia a Fundação Japão.
vendas, e temos expectativa positiva em relação ao sucesso na venda dos ingressos, o que nos dá bastante confiança. E mais, a economia japonesa é a terceira maior do mundo e o Produto Interno Bruto (PIB) de Tóquio é o maior para uma cidade. Além disso, esperamos que não só Tóquio, mas todo o Japão possa se beneficiar dos jogos. De acordo com o relatório “Impacto Econômico de Tóquio Jogos Olímpicos de 2020”, publicado em janeiro de 2016 pelo Banco do Japão, os jogos vão impulsionar a economia japonesa em mais de 30 trilhões de ienes (297 bilhões de dólares, aproximadamente 949 bilhões de reais ). RUMOS – Os investimentos para a realização dos Jogos serão majoritariamente públicos ou privados? Por que essa opção? HIKARIKO – Uma parte do investimento é do Comitê Organizador dos Jogos (OCOG), que será aplicado nos custos operacionais do evento. Esse orçamento é para realizar as competições, incluindo os custos relacionados com as instalações temporárias e estruturas de apoio em todos os locais dos Jogos. O lucro do Comitê vem em grande parte de rendimentos recebidos de fontes do setor privado, como parceiros e patrocinadores, da contribuição do Comitê Olímpico Internacional e das vendas de ingressos. A outra parte é fora do orçamento do OCOG, que inclui instalações esportivas, infraestrutura e, além disso, o que uma cidade, estado, região ou nação decide que quer construir usando os Jogos Olímpicos como catalisador. É o montante gasto em melhorias urbanas relacionadas com os Jogos, incluindo instalações desportivas, mas que não é necessário para organizá-los. 17
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Em 2020, Tóquio também terá o tema da sustentabilidade como uma de suas prioridades, e incluirá esse tema como um dos aspectos fundamentais dos Jogos Olímpicos e Paralímpicos. Ademais, incluímos vários valores japoneses em nosso plano para as competições, como o conceito de Mottainai, ou o sentimento de evitar o desperdício (ver boxe ao lado). Tóquio 2020 está adotando todo o conceito de sustentabilidade em sua preparação para os jogos, que abrange não só as questões ambientais, mas também considera os direitos humanos, condições e práticas de trabalho e gestão de cadeias de fornecimento. Estamos atualmente analisando a possibilidade de utilizar os veículos movidos a hidrogênio para dar uma contribuição significativa para a redução das emisÁrea da Marina de Tóquio que será o palco das competições de vela. A região já é um espaço utilizado sões de dióxido de carbono. pelos moradores da cidade e será modificado para os Jogos de 2020. Esse ano, o Comitê Organizador dos Jogos japoneses publicou um plano e os O orçamento “não-OCOG” irá fornecer os principais princípios fundamentais de sustentabilidade, confirmando o compromisso legados de longo prazo dos Jogos Olímpicos e é base- em promover o mínimo impacto possível com as competições e sensibilizar a população para a importância da sustentabilidade no mundo de hoje. ado na cidade e/ou nos gastos do governo. Os Jogos de Tóquio 2020 terão um impacto fantástico não só em Tóquio, mas em todo o país. Nós RUMOS – Mobilidade urbana foi um desafio para os Jogos Rio 2016. Como acreditamos fortemente que precisamos de apoio de o Japão, com sua referência em trens de alta velocidade, espera viabilizar o ambos os setores, público e privado. É por isso que deslocamento dos torcedores durante os Jogos? este evento único será entregue por um “time dos HIKARIKO – Vamos garantir um transporte seguro, rápido e confiámelhores” do Japão. A Comissão Organizadora se en- vel para todos. O conceito geral que adotamos em relação às instalações volveu com todas as partes interessadas – ou seja, o olímpicas é colocar os atletas física e inspiracionalmente no centro dos governo nacional local, o Comitê Olímpico Japonês, jogos, que acontecerão no coração de uma das maiores cidades do mundo. Comitê Paralímpico Japonês e entidades privadas – A grande maioria dos atletas ficará a menos de 30 minutos dos locais de para formar uma equipe unida em torno de um único suas competições. As próximas Olímpiadas poderão se beneficiar de um dos melhores sistemas de transporte de uma cidade, incluindo uma exobjetivo: o sucesso dos Jogos de 2020. tensa e confiável rede pública de transportes, que inclui 1.052 quilômetros RUMOS – Na abertura das Olimpíadas do Rio 2016, de trilhos, 760 estações de trem e ainda a maior rede urbana rodoviária, a questão ambiental esteve muito presente. Como com o total de 1.575 km. superar o desafio da sustentabilidade, já que essa foi RUMOS – Como no Rio de Janeiro, com a revitalização da região portuáuma preocupação durante a candidatura? HIKARIKO – Estou profundamente comovida e ins- ria, no Japão a proposta é investir na região da Baía de Tóquio, com morapirada pela paixão que vi na Cerimônia de Abertura dias de alto padrão. Como são esses projetos e qual o legado esperado para dos Jogos Olímpicos do Rio. Eu gostaria de homena- a população? gear a equipe do Comite Organizador pelos esforços HIKARIKO – A maioria das oito novas instalações permanentes e a vila empreendidos para que o Rio de Janeiro recebesse os dos atletas estão localizadas na área da Baía de Tóquio. Nós escolhemos construir nesse local porque ele fica perto da cidade. Depois dos jogos, primeiros jogos da América do Sul. 18
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eles estarão disponíveis para a comunidade, pois serão usados para grandes eventos esportivos, exposições e também para o lazer. A vila olímpica será um exemplo de espaço urbano sustentável por muitos anos à frente, com vistas deslumbrantes sobre a beira-mar de Tóquio. Os cidadãos da capital e do Japão vão se beneficiar de significativas melhorias, como espaços verdes e centro de divulgação de esportes e educação na área revitalizada da Baía de Tóquio, criando uma zona com forte apelo em relação ao futuro do desenvolvimento da cidade. RUMOS – Essa será a segunda vez que o Japão recebe os Jogos Olímpicos, podendo, inclusive, reutilizar alguns espaços já construídos naquela época. Quais as grandes transformações da cidade nesses 56 anos? HIKARIKO – As competições acontecerão em seis locais históricos dos Jogos de 1964, e todos serão modernizados e reformados para estender o seu legado para, pelo menos, os próximos 50 anos. Esses locais são o Ginásio Metropolitano de Tóquio, que hospedará as competições de tênis, o Estádio Nacional de Yoyogi, que receberá as partidas de handebol, o Nippon Budokanm, a casa do judô, o Parque Baji Koen Park, a ser usado para as competições de hipismo, a Asaka Área de Tiro, para as competições de tiro ao alvo, e a Marina Enoshima, para os eventos de vela. Esses espaços tiveram um papel importante na vida da cidade e, mais de 50 anos depois, são a evidência do compromisso de Tóquio e do Japão com o esporte e a sustentabilidade. A cidade em si também evoluiu ao longo dos últimos 50 anos, sem ser completamente transformada. A questão da sustentabilidade foi reforçada, a infraestrutura e os equipamentos foram modernizados, mas a sua identidade foi preservada. Tóquio é a cidade com uma combinação única de supermoderno modo de vida e respeito histórico aos valores humanos, e virou um espaço de inspiração para artistas influentes, empreendedores e inventores nos últimos anos.
Mottainai é um conceito japonês, de origem budista. Em tradução literal, poderia ser transcrito como “que desperdício!”, apontando para uma estratégia de não desperdício cultivada no país. Como explica o site Japão em Foco, “como é uma ilha densamente habitada, com recursos naturais limitados, com poucas terras produtivas para cultivo e por ter passado por provações terríveis, como pobreza extrema, fome, guerras, desastres naturais, os japoneses aprenderam a valorizar tudo que pode parecer insignificante, até mesmo um grão de arroz”. A filosofia Mottainai ajuda a compreender a forma com que os japoneses se relacionam com a natureza e a sociedade.
RUMOS – Para o Comitê Olímpico do Japão, qual a lição a ser aprendida para 2020 em relação aos Jogos do Rio? HIKARIKO – O Comitê Organizador enviou cerca de 170 membros para fazerem parte do programa de observadores e essa é uma oportundidade única para nós, para conhecermos e estudarmos em primeira mão o que acontece por trás das arenas dos jogos e incorporar esse conhecimento em nossa preparação. O time de Tóquio 2020 está olhando à frente do grande desafio que é. A experiência e os conhecimentos obtidos aqui irão nos ajudar a colocar no lugar certo os nossos planos para organizar fabulosos jogos daqui a quatro anos, que vão mostrar novamente a força do esporte. RUMOS
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O CAMINHO ATÉ O SONHO FUTURISTA Governo Metropolitano do Japão
Projeto da área das competições de canoagem, a Sea Forest Waterway.
A candidatura de Tóquio encantou os eleitores do Comitê Olímpico Internacional (COI) pela modernidade de suas instalações, em estilo futurista e arrojado. O caminho até o futuro, no entanto, não será livre de percalços, em certo ponto comuns para quem é escolhido para sediar eventos dessa magnitude. O acidente nuclear em Fukushima, em março de 2011, foi um duro golpe para a capital japonesa dos Jogos, antes mesmo de ser escolhida sede. A tragédia aconteceu meses antes da decisão do COI e o comitê local teve que se esforçar para demonstrar que Tóquio estava fora da área de riscos – e que novos acidentes, como esse, não aconteceriam. Na sequência, uma polêmica com a logomarca escolhida para representar os Jogos. Criticada inicialmente pelo seu formato, ela também conviveu com denúncias de plágio. Seja por um motivo ou por outro, a arte foi trocada e um novo desenho foi feito. Alguns meses depois, nova acusação de plágio, dessa vez com o projeto do estádio olímpico, desenvolvido pelo prestigiado arquiteto Kengo Kuma. O estádio, aliás, já tinha passado por outra controvérsia e teve seu desenho refeito – para tirar do papel o projeto originalmente aprovado seriam necessários ao menos 2,4 bilhões de dólares. O novo estádio custará “apenas” US$ 1,2 bilhão e tem a es-
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trutura mais integrada ao seu entorno. Contudo, a organização já informou que, devido aos contratempos, ele não estará finalizado em 2019, um ano antes dos Jogos, como prometido pela candidatura japonesa. Fora do campo esportivo, o Japão também enfrenta dificuldades econômicas – como, aliás, a maior parte dos países, ainda em decorrência da crise que afeta todo o mundo. Em 2015, o Produto Interno Bruto (PIB) japonês teve crescimento modesto de 0,4%, com quedas maiores do que o previsto nos três últimos trimestres do ano. Nos primeiros meses de 2016, nova decepção: a economia ficou estagnada no segundo trimestre, com crescimento de apenas 0,2%, abaixo dos 0,7% esperados pelos analistas. A alta dívida e o problema da deflação, que já dura duas décadas, preocupam. Esses desafios, contudo, não escondem as expectativas de que o Japão seja capaz de sediar um evento com alto nível de organização e segurança. Um dos principais trunfos da sua candidatura foi a criação de um fundo público de 4,5 bilhões de dólares para garantir a plena execução dos Jogos. Com experiência de ter sediado uma Olimpíada há pouco mais de cinquenta anos, o país conta com infraestrutura de ponta, planos avançados de mobilidade e alta tecnologia para não decepcionar visitantes e espectadores.
JULHO | AGOSTO 2016
ARTIGO
A resiliência do cooperativismo financeiro desempenho das carteiras no 1º semestre, o distanciamento em favor das cooperativas terá uma ordem de grandeza significativamente mais relevante. Mas o bom desempenho das cooperativas em períodos adversos não se limita à carteira de crédito. Com relação à evolução dos ativos, dos depósitos e do patrimônio líquido, constata-se um gap ainda mais expressivo. Entre 2008 e 2011, com efeito, observam-se as seguintes taxas de expansão comparativas: depósitos – cooperativas 100,86%, contra 31,96% dos bancos convencionais; ativos – cooperativas 94,26%, contra 36,94% dos bancos; e patrimônio líquido – cooperativas 69,48%, contra 42,59% dos bancos. Situações de escassez, por outro lado, pedem especial parcimônia com os gastos, quadro que recomenda a revisitação de estruturas, processos, contratos de prestação de serviço e outras variáveis no campo das despesas administrativo-operacionais. Um aproveitamento mais efetivo dos componentes organizacionais das entidades de segundo e terceiros níveis do respectivo sistema cooperativo é, sem dúvida, medida a ser considerada para a diluição de custos e investimentos locais. Aliás, calha bem, aqui, a lição de Benjamin Franklin: “cuidado com as despesas miúdas: pequenos vazamentos podem levar um grande navio a pique”. Em conclusão, à luz das evidências históricas, uma vez que se mantenha fiel aos seus valores e princípios, e explore adequadamente as oportunidades decorrentes de seu modelo de negócio, o cooperativismo financeiro reúne condições excepcionais para fazer a travessia e ainda prosperar em tempos hostis.
“Quando escrita em chinês a palavra crise compõe-se de dois caracteres: um representa perigo e o outro representa oportunidade.” (John Kennedy)
RUMOS
ÊNIO MEINEN
Divulgação
Nas instituições financeiras cooperativas, historicamente, os intervalos de crise têm-se transformado em oportunidades de crescimento e de ganho de mercado. Uma das áreas em que o avanço se mostra mais relevante, quando comparado ao mercado bancário tradicional, é a do crédito – componente essencial para a dinâmica da economia. As cooperativas conseguem preservar seu compromisso de assistir os cooperados em suas demandas, ao manterem estáveis as carteiras de empréstimos e os financiamentos. Isso é possível pelo fato de conhecerem melhor o seu público, em razão da confiança gerada pela especialidade e pela proximidade, bem como por operarem, fundamentalmente, com arranjos locais e categorias profissionais impactados em menor grau pela contração da atividade econômica. Para se ter uma ideia, no triênio 2008-2011, intervalo central da crise do subprime, o avanço da carteira de crédito das cooperativas no Brasil foi da ordem de 73,16%, para uma evolução de apenas 41,05% no sistema bancário tradicional – não computados os bancos oficiais, pois a sua atuação nesse particular foi totalmente atípica, como é de conhecimento público. Já em 2014, ano inicial de um novo período de forte retração da economia brasileira, o incremento do crédito no setor cooperativo foi de 17,65%, enquanto no sistema financeiro avançou apenas 11,69%. Em 2015, com os problemas econômicos se agravando, o quadro manteve-se: as cooperativas expandiram as suas operações em 12%, contra 7,97% do sistema bancário (incluídos os oficiais). Somando todo o interstício de 2008 a 2015, observa-se um crescimento médio anual de 19,62% na carteira de empréstimos e financiamentos das cooperativas, contra 15,6% na dos bancos. Quanto a 2016 – outro exercício com acentuada queda do Produto Interno Bruto (PIB) –, a julgar pelo
Advogado, pós-graduado em direito e em gestão estratégica de pessoas. É diretor de operações do Banco Cooperativo do Brasil (Bancoob).
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Noel Joaquim Faiad
REPORTAGEM CAPA
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JULHO MAIO| AGOSTO | JUNHO 2016
Um lugar para chamar de seu Ondas migratórias fazem parte da história do mundo, só que, de tempos em tempos, esse fluxo de pessoas à procura de um novo lar aumenta de intensidade, tendo como causa guerras, preconceitos e alterações climáticas. Ainda que o Brasil não seja a rota principal dos imigrantes, temos recebido, nos últimos anos, cada vez mais refugiados à procura de abrigo. A trajetória brasileira mostra que recebê-los bem contribui para o desenvolvimento do país. POR CARMEN NERY Ao longo dos séculos, as migrações vêm se repetindo com variadas frequência e intensidade, provocadas por invasões, conquistas, êxodos, mudanças sazonais, fome, superpopulação. Da diáspora judaica aos fluxos migratórios dos últimos três séculos, chegamos às correntes migratórias dos tempos atuais. Elas ampliam as causas e as consequências para fenômenos como a globalização, a transição demográfica de países e regiões, a violação de direitos, o desemprego, as perseguições, a discriminação, a xenofobia, o tráfico de seres humanos, a desigualdade econômica entre os países e entre os hemisférios norte e sul. Desde sempre, os migrantes buscam trabalho, melhores condições de vida e de segurança, fugindo de ameaças como o aquecimento global, as catástrofes naturais, a violência, a intolerância. O portal do Instituto Migrações e Direitos Humanos (IMDH) define migrante como toda a pessoa que se transfere de seu lugar habitual, de sua residência comum, ou de seu local de nascimento, para outro lugar, região ou país. “Migrante” é o termo frequentemente usado para definir as migrações em geral, tanto de entrada quanto de saída de um país, região ou lugar. Há, contudo, termos específicos para a entrada de migrantes (imigração) e para a saída (emigração). O artigo do IMDH observa que é difícil saber quantas pessoas se deslocam a cada ano – seja dentro de um país ou para o exterior –, mas um relatório da Organização das Nações Unidas (ONU) refere que a cada ano mais de cinco milhões de pessoas cruzam fronteiras para viver em um país desenvolvido. O número de pessoas que se deslocam para um país em desenvolvimento ou dentro de seu próprio país é muito maior, embora seja difícil saber com precisão os números exatos. Atualmente, a despeito do crescimento do nacionalismo e da xenofobia, os organismos multilaterais têm procurado difundir o conceito de que a mudança demográfica provocada pela chegada à Europa de um número crescente de imigrantes e refugiados oriundos da África e do Oriente Médio pode contribuir para o desenvolvimento econômico. De acordo RUMOS
com o “Relatório de Monitoramento Global de 2015/2016: Objetivos de desenvolvimento numa era de mudanças demográficas”, produzido pelo Banco Mundial e pelo Fundo Monetário Internacional (FMI), a migração em larga escala de pessoas de países pobres para as regiões mais ricas do planeta irá remodelar o desenvolvimento econômico mundial ao longo das próximas décadas. O relatório analisa como profundas mudanças demográficas poderiam alterar o curso do desenvolvimento global. O mundo está passando por uma grande mudança da população, que vai remodelar o desenvolvimento econômico ao longo de décadas. A direção e o ritmo desta transição variam drasticamente de país para país, com diferentes implicações, a partir de onde um país se encontra no espectro de envelhecimento e desenvolvimento econômico, diz o relatório. “Com o conjunto certo de políticas, esta época de mudança demográfica pode ser transformada em um período de progresso do desenvolvimento sustentável”, defendeu o presidente do Banco Mundial Jim Yong Kim no lançamento do relatório. Para acelerar os ganhos, as políticas de desenvolvimento devem levar em conta as alterações por que passa o mundo globalizado. Dependendo das circunstâncias, isso significa que os países precisam estimular a sua transição demográfica, acelerar a criação de emprego, sustentar o crescimento da produtividade e se adaptar ao envelhecimento Países com altas taxas de fertilidade e baixa expectativa de vida tendem a ter populações relativamente jovens com o aumento das proporções de pessoas em idade ativa (entre 15 e 64 anos de idade). Contudo, esses países possuem altos ín23
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dices de pobreza e enfrentam o desafio de prover serviços para as suas populações em crescimento. Em países onde as taxas de fertilidade têm sido inferiores à reposição necessária, desde pelo menos a década de 1980, a expectativa de vida é tipicamente alta, e os idosos correspondem a proporções crescentes de suas populações. Estes países enfrentam o desafio da crescente demanda por pensões e serviços de saúde e assistência, enquanto o seu crescimento econômico pode estar diminuindo. De acordo com o relatório, mais de 90% da população pobre do mundo está concentrada em países de baixa renda, mas que possuem um crescimento da população jovem e em idade de trabalhar. Ao mesmo tempo, mais de três quartos do crescimento global é gerado por países ricos, com baixos índices de fertilidade, poucas pessoas economicamente ativas e com crescente número de idosos. O Relatório ressalta que, ao mesmo tempo que levantará desafios, essa reestruturação da economia global também oferecerá a oportunidade de acabar com a pobreza extrema, mas somente se políticas adequadas forem colocadas em prática, nacional e internacionalmente. “Se os países que possuem população mais envelhecida criassem um plano para que refugiados e imigrantes participassem da economia, todos seriam beneficiados. Mas as evidências sugerem que os imigrantes vão trabalhar duro e contribuir mais com os impostos do que no consumo de serviços sociais”, afirmou Kim. Ocorre que o desembarque de milhares de imigrantes na União Europeia assusta os governos de países menos desenvolvidos, que temem que os estrangeiros atrapalhem a lenta recuperação econômica no bloco. Os países que enfrentam as consequências do envelhecimento da população e têm uma legislação trabalhista mais flexível, como a Alemanha, seriam os maiores beneficiados pelos atuais fluxos migratórios. Muitos dos imigrantes são profissionais qualificados. Além disso, após estabelecerem-se poderão contribuir positivamente para as estatísticas de consumo e de arrecadação. Bárbara Barbosa, pesquisadora da Diretoria de Análise e Políticas Públicas da Fundação Getulio Vargas (FGV/Dapp), cita dados de estudos realizados pelo órgão sobre migração ao destacar três benefícios para países que recebem imigrantes e refugiados. Em primeiro lugar está a noção de aprendizado e a difusão do conhecimento das pessoas que chegam. Em segundo, a imigração pode resolver o problema da escassez de mão de obra especifica em áreas técnicas ou naquelas que sofrem com a falta de talentos. E, por fim, os imigrantes introduzem mudanças na estrutura demográfica. Geralmente, são pessoas mais jovens que poderão contribuir por um longo tempo para a aposentadoria. Bárbara alerta, porém, que é preciso criar políticas públicas de acolhimento. A crise na Europa se dá porque há muitos refugiados chegando ao mesmo tempo e de forma rápida. É necessária uma organização dessas pessoas no território. A Alemanha é o país mais preparado e tal como o Canadá conta com uma estratégia de atração. “O Canadá tem um sistema de pontuação de acordo com os aspectos que valoriza no candidato à imigração. Com isso, consegue selecionar perfis de acordo com as suas necessidades. Já a Austrália tem um sistema ligado à demanda do empregador e o imigrante com proposta de emprego recebe um visto de trabalho. O Brasil está passando por um aprimoramento para atrair o imigrante qualificado”, diz Bárbara. Vania Heredia, especialista em migração e professora titular da Universidade de Caxias do Sul, observa que os países ricos precisam de mão de obra para serviços precários que transferem para as periferias. Muitas vezes, quando os países desenvolvidos estimulam a imigração não há como garantir que seja o perfil desejado. A pesquisadora destaca que a mão de obra migrante é sempre mais barata e vai gerar mais-valia. JULHO | AGOSTO 2016
“Quando a pessoa migra, coloca-se numa situação de vulnerabilidade e aceita qualquer coisa. E é preciso lembrar que quem migra nem sempre é o mais pobre, e sim o que tem recursos para se deslocar. Os países europeus têm controle de fronteira, mas muitas vezes são obrigados a abrir para absorver mão de obra”, diz Vania. Ela explica que a reestruturação produtiva do capitalismo a partir do neoliberalismo dos anos 1980 – saindo do Fordismo (linha contínua de produção seriada) para o Taylorismo (mão de obra qualificada e trabalho em equipe) –, ampliou a desigualdade social entre os países. Com a globalização do sistema de produção, o capital migra para qualquer lugar do globo, mas não consegue migrar a mão de obra. “E assim os deslocamentos migratórios passaram a ser questão essencial de sobrevivência do capitalismo. As empresas que se deslocam ocupam a melhor mão de obra local, mas precisam de mais especialistas. Isso explica movimentos como o da Itália, que busca atrair trabalhadores com a dupla cidadania. Já o Brasil recebe muitos africanos e imigrantes da América Latina. E exporta mão de obra jovem e qualificada, em geral com nível superior”, analisa Vania.
Vladimir Platonow/Agência Brasil
BRASIL NA ROTA Joseph Handerson, professor haitiano especialista em migrações e coordenador do Programa de Apoio a Migrantes e Refugiados (Pamer) da Universidade Federal do Amapá (Unifap), observa que, além dos africanos e latino-americanos, o Brasil também tem recebido imigrantes europeus de países como França, Portugal e Espanha, o que rompe com a ideia de duas décadas atrás de que os fluxos migratórios resumiam-se ao movimento Sul-Norte, ou do país pobre para o país rico.
“Atualmente as pessoas estão saindo de países ricos em recessão para países em desenvolvimento, como Brasil, Peru e Equador. Por outro lado, as pessoas do Sul estão descobrindo outros circuitos. Antes, o principal destino dos haitianos eram os EUA, a França e os países caribenhos, como Cuba e Jamaica. Mas o Brasil entrou no circuito por conta de políticas restritivas dos países do Norte”, analisa Handerson. Ele destaca também um fluxo maior de migração qualificada. Quando os países de destino criam programas para atrair talentos, como o Canadá, esses migrantes encontram bons empregos. Mas nem sempre quem tem nível superior consegue trabalhar na sua área de formação em função de processos burocráticos de reconhecimento de diploma. O professor cita dados do Ministério da Justiça apontando que de 2010 a 2102 entraram 30 mil pessoas no país, dos quais 14% de nível superior, 59% com ensino médio e 27% com ensino fundamental. Mas, a partir de 2013, houve um crescimento de imigrantes classificados como analfabetos. “São as próprias empresas que entram em contato com eles, que quase sempre estão em situação de vulnerabilidade”, diz Handerson. Paulo Sérgio de Almeida, presidente do Conselho Nacional de Imigração (CNIg) – órgão do
Campo de Refugiados Diyarbakir, na Turquia.
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Ministério do Trabalho e instância de articulação da Política Migratória Brasileira, em especial da Política de Migração Laboral –, informa que, desde os anos 1990, convivemos com fluxos intrarregionais, oriundos de países sul-americanos, que chegam ao país pelas fronteiras terrestres. O fluxo é crescente devido ao processo de integração do Mercosul e da América do Sul, que implicam uma maior facilitação para a mobilidade de pessoas entre os países. Bolivianos, argentinos, paraguaios são nacionalidades que estão entre as dez principais que frequentam o Brasil. Convivemos ainda com uma migração histórica de países europeus, que estão na raiz da formação do povo brasileiro e que, mais recentemente, devido ao boom econômico brasileiro, aumentaram a presença no Brasil, a exemplo de portugueses e espanhóis. Ao lado desses fluxos surgiram outros oriundos de países com pouca ou nenhuma tradição migratória ao Brasil. O Haiti é um desses exemplos. Essa foi a maior imigração recente em termos numéricos, tanto assim que hoje os haitianos são a nacionalidade com maior presença no mercado formal de trabalho brasileiro. Há ainda migração de países africanos como Senegal, Gana, Nigéria e Angola, os dois primeiros com maior afluxo mais recentemente. Por fim, há migração de países asiáticos, como China e Bangladesh. “Por outro lado, é importante destacar o fluxo de brasileiros para o exterior que foi intenso nas décadas de 1980, 1990 e início dos anos 2000 e que com a crise econômica volta a ganhar corpo”, diz Almeida. Ainda não há elementos para afirmar que os fluxos migratórios no Brasil tenham, novamente, “invertido o sinal”, ou seja, tenham passado a ser predominantemente de saída do país. É certo afirmar que até o início dos anos 2000, os fluxos eram majoritariamente de saída, ou seja, mais brasileiros e imigrantes que aqui já residiam deixavam o país, do que chegavam novos imigrantes e brasileiros que residiam no exterior. Em meados dessa década o fenômeno inverteu e passaram a ingressar no país mais pessoas do que sair. “Já é possível verificar movimento de saída de imigrantes em busca das oportunidades perdidas por aqui. Entretanto, é preciso um pouco mais de tempo para avaliar a extensão desse processo”, destaca. Ele explica que os fluxos migratórios da atualidade são inteiramente diferente dos fluxos de fins do século XIX e início do século XX, já que estes eram basicamente de países europeus e do Japão, e eram estimulados pelo governo com o intuito de suprir a falta de trabalhadores em determinadas regiões do país, e de colonização de outras áreas. Atualmente, os fluxos são espontâneos, ou seja, não há estímulo do governo. Estão ligados ao fenômeno da globalização, no que se refere a rapidez das comunicações e maior acesso aos meios de transporte entre países. Estão também vinculados à pobreza, à falta de oportunidades de trabalho em países de origem e à JULHO | AGOSTO 2016
diferença de graus de desenvolvimento entre países. “Outros fatores também têm influenciado este fenômeno, como o envelhecimento populacional, gerando falta de trabalhadores em alguns países e a ocorrência de violência e conflitos que expulsam populações para outros países, além de problemas ambientais”, acrescenta Almeida. Ele destaca que o Brasil tem buscado a construção de políticas migratórias inclusivas que permitam uma acolhida digna aos migrantes. A imensa maioria dos imigrantes é na realidade composta por trabalhadores, que buscam oportunidades no mercado de trabalho brasileiro. “É preciso ressaltar que o Brasil assegura aos imigrantes residentes os mesmos direitos dos brasileiros no acesso a garantias e serviços disponíveis aos cidadãos. Uma questão relevante é o combate à xenofobia, que no caso brasileiro não é evidente, mas existe; e o combate ao racismo, que pode se apresentar mais agudo em relação aos estrangeiros do que em relação aos brasileiros”, adverte Almeida. ACESSO AO TRABALHO Mas ele destaca que os maiores desafios são referentes ao tema trabalho. Desde o acesso à documentação que lhes permita trabalhar, passando pela inclusão no Sistema Nacional de Emprego, para acesso às vagas de trabalho em igualdade de condições, e a fiscalização de suas condições laborais em virtude de sua maior vulnerabilidade, do desconhecimento do idioma, das normas e costumes brasileiros, para que não haja a sua exploração nos locais de trabalho. Outro aspecto relevante é a revalidação dos diplomas, que tem sido um obstáculo aos imigrantes, favorecendo a “perda de talentos”, pois acaba levando ao subaproveitamento do potencial e das habilidades do imigrante no emprego. Para o diretor do CNIg, houve um sensível avanço nos últimos anos em relação à política de imigração no Brasil. Saímos de uma visão autoritária, na qual a “segurança nacional” era o fator mais relevante no trato com os imigrantes, e passamos a uma visão focada no respeito aos direitos dos imigrantes e no favorecimento à sua contribuição econômica, social, cultural ao país. “Infelizmente essa nova visão política ainda não foi transformada em uma política de Estado, já que não foi aprovada como um documento oficial. Recentemente, entretanto, essa visão constituiu a base do projeto de lei que tramita na Câmara dos Deputados e que em breve se constituirá na nova Lei de Imigração”, acrescenta. Paolo Parise, diretor do Centro de Estudos Migratórios de São Paulo, informa que, da América Latina, continua o fluxo de bolivianos, paraguaios, peruanos e colombianos. Do Caribe o principal fluxo é de haitianos. Uma das novidades é o progressivo crescimento, nos últimos três anos, de africanos. Entre eles destacam-se os de Angola, República Democrática do Congo, Nigéria e Senegal, seguidos em proporção menor por imigrantes de Serra Leoa, Togo, Costa do Marfim, Guiné Bissau, Camarões. O fluxo de chineses continua, apesar de não ter grande visibilidade. Em geral, o estado de São Paulo acolhe mais da metade dos imigrantes que estão no Brasil. Mas há outras capitais interessadas, de maneira especial Rio de Janeiro, Brasília, Porto Alegre, Curitiba, Belo Horizonte. No caso da imigração haitiana e senegalesa há uma presença significativa e espalhada nos estados do Rio Grande do Sul, Santa Catarina, Paraná e São Paulo. RUMOS
“É preciso ressaltar que o Brasil assegura aos imigrantes residentes os mesmos direitos dos brasileiros no acesso a garantias e serviços disponíveis aos cidadãos. Uma questão relevante é o combate à xenofobia, que no caso brasileiro não é evidente, mas existe; e o combate ao racismo, que pode se apresentar mais agudo em relação aos estrangeiros do que em relação aos brasileiros.” Paulo Sérgio de Almeida (CNIg).
A irmã Rosita Milese, diretora do Instituto Migrações e Direitos Humanos (IMDH), destaca que o principal fluxo migratório para o Brasil nos últimos anos tem sido o de haitianos. Estimativas indicam que aproximadamente 80.000 haitianos chegaram ao Brasil depois de 2010, ano em que ocorreu o grande terremoto naquele país. A maioria deste contingente entrou por fronteiras terrestres na região norte do Brasil e, ao chegar ao solo brasileiro, solicitou refúgio. Outros obtiveram o visto por razões humanitárias e entraram regularmente, aqui se estabelecendo com residência permanente. Ela observa que, se nos detivermos apenas nos solicitantes de refúgio, as principais nacionalidades são: Haiti, Senegal, Síria, Bangladesh e Nigéria. Os dados mais recentes foram divulgados, em maio, pelo Comitê Nacional para os Refugiados (Conare), órgão ligado ao Ministério da Justiça. Nos últimos cinco anos, as solicitações de refúgio no Brasil cresceram 2.868%. Passaram de 966, em 2010, para 28.670, em 2015. Até 2010, haviam sido reconhecidos 3.904 refugiados. Em abril deste ano, o total chegou a 8.863, o que representa um aumento de 127% no acumulado de refugiados reconhecidos – incluindo reassentados. O relatório mostra que os sírios são a maior comunidade de refugiados reconhecidos no Brasil. Eles somam 2.298, seguidos dos angolanos 27
LEGISLAÇÃO Parise, do Centro de Estudos Migratórios de São Paulo, observa, porém, que são vários os problemas enfrentados pelos novos fluxos de imigrantes que chegam. Entre as dificuldades, ele aponta o documento provisório, pouco conhecido no mundo do trabalho, educação e saúde; os transtornos para validar diplomas e altos custos econômicos devido às taxas; os entraves para alugar uma casa ou apartamento; número insuficiente de cursos de português e cultura brasileira; carências de políticas de acolhida; falta de políticas de integração; racismo e preconceitos culturais e religiosos. “Na primeira acolhida geralmente os imigrantes são encaminhados para abrigos de pessoas em situação de rua enquanto não se enquadram nesse perfil. Além da oferta de trabalho informal. O Brasil deveria realizar importantes mudanças em nível de paradigma, articulações, perspectiva, gestão e horizonte”, defende Parise. Como mudança de paradigma, é urgente mudar o Estatuto do Estrangeiro (Lei nº 6.815, de 19 de agosto de 1980), herança da ditadura militar, que possui uma lógica de segurança nacional, para outra lei baseada na plataforma de direitos humanos. “O Estatuto do Estrangeiro ainda vigente é anacrônico e restritivo, baseado na doutrina de segurança nacional, contendo muitos dispositivos incompatíveis com os compromissos internacionais assumidos pelo Brasil e com a própria Constituição Federal. Frequentemente, as lacunas existentes na lei implicam em violações aos direitos humanos de migrantes, solicitantes de refúgio e refugiados”, considera a irmã Rosita, do IMDH. Marcello Casal/ ABr
(1.420), dos colombianos (1.100), dos congoleses (968) e dos palestinos (376). Ao todo são 79 nacionalidades. A guerra na Síria já provocou quase cinco milhões de refugiados e a pior crise humanitária em 70 anos. Com o aumento do fluxo no Brasil, o governo decidiu tomar medidas que facilitassem a entrada desses imigrantes no território e sua inserção na sociedade brasileira. Além disso, as autoridades reforçaram a política de assistência e acolhida em todas as áreas, para todas as nacionalidades. Beto Vasconcelos, secretário nacional de Justiça e presidente do Conare, afirma que o Brasil tem se colocado de forma protagonista no debate sobre imigração e refúgio, e tem recebido elogios da comunidade internacional por suas políticas públicas de acolhimento. Em setembro de 2013, o Brasil, por meio Conare, publicou a Resolução nº 17, que autorizou as missões diplomáticas brasileiras a emitir visto especial a pessoas afetadas pelo conflito na Síria, diante do quadro de graves violações de direitos humanos. Em 21 de setembro de 2015, a Resolução teve sua duração prorrogada por mais dois anos pela Plenária do Conare. Em outubro de 2015, o Conare e a Agência da ONU para Refugiados (ACNUR) firmaram um acordo de cooperação para garantir mais eficiência ao Brasil no processo de concessão de vistos especiais a pessoas afetadas pelo conflito na Síria. Os critérios de concessão do visto humanitário atendem à lógica de proteção por razões humanitárias, ao levar em consideração as dificuldades específicas vividas em zonas de conflito, mantendo-se os procedimentos de análise de situações vedadas para concessão de refúgio (art. 3º da Lei nº 9.474/1997).
Haitianos no Acre em abrigos provisórios à espera de documentação para permanecerem no Brasil.
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Vigente até hoje no país, esse estatuto parte do pressuposto de que as migrações representam um risco à segurança nacional e ao trabalhador brasileiro. Já a nova Lei de Migração (PL 2.516/2015), em tramitação na Câmara dos Deputados, apesar de apresentar algumas questões pontuais que ainda merecem ajustes por parte do Poder Legislativo, trará avanços no sentido de que os princípios norteadores da política migratória passarão a ser pautados pelos direitos humanos, tendo o repúdio à xenofobia, ao racismo e a quaisquer formas de discriminação, além da não criminalização da imigração. “O projeto de lei ainda não conseguiu avançar na direção da substituição da Polícia Federal por uma Agência Nacional de Migração para atender os estrangeiros no Brasil. A nossa instituição, Missão Paz, está trabalhando de maneira muita intensa para melhorar ainda mais este projeto”, diz Parise. Em relação à mudança nas articulações, vale lembrar que a alteração do marco legal não gera automaticamente uma política migratória planejada e articulada. “Desde já é importante planejar, pois depois de aprovar a lei precisam ser criadas políticas coerentes de acolhida e respeito dos direitos humanos”, recomenda. Para Almeida do CNIg, o Projeto de Lei 2.516/2015, quando aprovado, trará enorme avanço às políticas migratórias brasileiras. Primeiro porque estabelece com clareza os direitos dos imigrantes, além dos princípios e das diretrizes das políticas públicas acessíveis a essas pessoas. Depois, cria um sistema de imigração muito mais claro, simples e abrangente, viabilizando sem burocracia excessiva a concessão de vistos e residências a imigrantes; assegura ainda direitos a brasileiros no exterior, possibilitando um maior suporte do Estado aos seus nacionais, inclusive quando do retorno dos mesmos ao país. “Por fim, estabelece comandos claros para os órgãos envolvidos na governança das migrações, incluindo o CNIg”, diz Almeida. Parise também defende a mudança na gestão e na política, que classifica como essencialmente reativa. Na sua visão, é preciso mudar a gestão, pois hoje a temática migratória é quase sempre pauta de três ministérios – Justiça, Relações Exteriores e Trabalho –, quando na verdade deveria ser uma realidade transversal, interministerial. Ele destaca que a imigração é um processo complexo. Não pode ser vista somente em nível local ou nacional, mas também regional e internacional. Um exemplo é a rota terrestre internacional que trazia os haitianos até o Brasil na qual grupos de coiotes agiam entre Equador, Peru e Brasil. Por muito tempo os respectivos governos não se encontraram para enfrentar o tema de maneira conjunta. “Com certeza, a imigração pode contribuir para o desenvolvimento do Brasil. A história da humanidade nos ensina isso. A história das migrações para o Brasil também. Um desafio atual é ver a migração não somente como um problema, mas como uma riqueza, uma oportunidade. São outros seres humanos com suas riquezas culturais e biográficas que trazem novidade, inovação, outras perspectivas”, diz Parise. Almeida, do CNIg, destaca que os imigrantes contribuem com o desenvolvimento econômico do país por meio da oferta de sua força de trabalho no mercado de trabalho brasileiro. Em geral ocupam espaços não preenchidos pelos trabalhadores brasileiros, seja pelo desinteresse por determinadas ocupações, seja pela inexistência de profissionais brasiRUMOS
“Vale destacar que, mesmo com o aumento dos fluxos de chegada nos últimos anos, o índice de imigrantes no Brasil representa menos de 1% da população brasileira. Este índice é bem inferior à proporção mundial (3,3%) e quase inexpressivo, se comparado a outras regiões ou países, como a América do Norte (mais de 15%) ou a Europa (superior a 10%).” Irmã Rosita Milese (IMDH)
leiros com determinado perfil. Com isso, suprem carências no mercado de trabalho, viabilizando atividades produtivas. Além disso, agregam conhecimentos técnicos e vivências por meio de trocas com os trabalhadores brasileiros. “Vale destacar que, mesmo com o aumento dos fluxos de chegada nos últimos anos, o índice de imigrantes no Brasil representa menos de 1% da população brasileira. Este índice é bem inferior à proporção mundial (3,3%) e quase inexpressivo, se comparado a outras regiões ou países, como a América do Norte (mais de 15%) ou a Europa (superior a 10%). Ou seja, os países mais desenvolvidos têm uma parcela muito maior de imigrantes em suas populações”, conclui Rosita. Para ela, os fluxos imigratórios para o país contribuem para a formação de uma sociedade multicultural, na qual as diferenças devem ser valorizadas e respeitadas. Além disso, os imigrantes também contribuem para a economia local, trazendo os conhecimentos e as experiências adquiridos em seus países, bem como seu espírito empreendedor. Diversos estudos realizados pela Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) em países europeus mostram que os imigrantes contribuem mais com pagamentos de impostos do que o valor que recebem em benefícios sociais, tendo um impacto orçamental positivo para os países que os recebem. 29
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ARTIGO
A demofobia e a encruzilhada da democracia Ainda que considerada a melhor forma de governo, a democracia moderna envolve, ao longo de sua breve história, um misto de consenso e desencanto. Aos olhos de teóricos como Fukuyama, a queda do muro de Berlim consolidou a democracia liberal, orientada pela economia de mercado capitalista, como o melhor dos mundos possível. Mas, com a crise de 2008, não somente o regime capitalista foi posto em questão, como também o modelo político. Os limites da democracia foram evidenciados. Deve-se perguntar, porém, se a atual insatisfação não tem raízes mais profundas associadas a uma característica fundamental da democracia moderna, que de tempos em tempos é intensificada: a demofobia. O que esse neologismo, que parece soar autoexplicativo, pode querer dizer como paixão e ideia política? Povo ou massas apresentam-se como objeto de inquietude e mesmo como problema inextricável quando revisitado o pensamento que forjou noções importantes para engendrar as bases teóricas da democracia aos fins do século XVIII e ao longo do XIX. Como ideia política, o medo ganha contornos singulares nesse período de protagonismo das massas na política, das jornadas revolucionárias, do avanço de um movimento de democratização que ocorre principalmente no cenário europeu e norte-americano. Sendo suscitado pela real ameaça tanto à integridade física quanto à propriedade privada, o medo impregna as relações sociais e exerce influência direta 32
na elaboração de fórmulas políticas que tendem a domesticar a população, a reprimir as paixões em nome de uma razão, a tutelar os de baixo, a regular o demos, a represar a potência de composição das forças da multidão e a racionalizar a gestão do “grande número”. Importante notar que a visada de Deve-se perguntar, teóricos de linhagem liberal resulta porém, se a atual essencialmente de ângulos totalmente insatisfação não externos às massas ou à multidão. Desse modo, vemos, por exemplo, Benjamin tem raízes mais Constant afirmar que a mais absoluta profundas associadas democracia deve excluir estrangeiros, a uma característica jovens e crianças, bem como homens fundamental da que, mesmo nascidos no território e democracia moderna, em maturidade, não seriam dotados de que de tempos em qualidades de “esclarecimento” adqui- tempos é intensificada: ridas necessariamente pelo ócio decor- a demofobia rente da condição de proprietário. Essa premissa não fica restrita aos tempos de sufrágio censitário, mas sobrevive de um modo ou de outro até nossos dias, excluindo imigrantes e depreciando parcela enorme de pobres e trabalhadores considerados em condição de embrutecimento e dependência. Outro exemplo é Tocqueville, que se assume um “aristocrata por instinto” que despreza e teme a massa. O medo ocupa o cerne de seu trabalho intelectual destinado a disputar o significado da democracia, despindo-a de sua natureza revolucionária. Já na psicologia das massas de Le Bon, abundam adjetivos que depreciam a multidão, representada a todo momento como acéfala, plena de paixões destrutivas e desprovida de organização. Mas o limite do pensamento acerca da natureza democrática se manifesta com Stuart Mill, teórico que opera a subsunção do dēmos na fórmula da democracia como “governo de todos”, deixando para trás a fórmula clássica “governo do dēmos”, isto é, governo dos pobres enquanto JULHO | AGOSTO 2016
RUMOS
de sua natureza demofóbica implica renovar seu conteúdo formal-racional (mudar mecanismos eleitorais, institucionais etc.) e, sobretudo, (re) elaborar seu conteúdo ético-político. Há efetivamente uma disputa em torno de princípios considerados democráticos, bem como em torno do próprio significado da democracia. A proposta de extrair princípios ético-políticos de uma demofilia (demos + philia = amizade) surge a partir desse contexto. Negativo da demofobia, a demofilia compreende que: 1) a amizade supõe a igualdade. Para Aristóteles e Cícero, o amigo é outro igual. Logo, quanto menos houver desigualdade, mais demofilia; 2) a amizade supõe a comunhão. Em termos pitagóricos, tudo é comum entre amigos, por isso a amizade é, com efeito, uma comunidade. Logo, quanto mais houver vida em comum, mais demofilia; 3) a amizade supõe a autonomia. Para Aristóteles, viver em comum implica ter consciência de si próprio por meio da consciência de comum existência. Entre homens, cooperar é o próprio significado de conviver, e não, “como no caso do gado, pastar juntos no mesmo lugar”. Logo, onde há consciência da existência em comum, há autonomia e mais demofilia. Se toda forma de comunidade corresponde a uma forma de amizade, a democracia figura como forma de governo em que a amizade apresenta maior intensidade, porquanto é suposto haver verdadeira igualdade entre concidadãos. Com base nessas premissas, a demofilia apresenta-se como proposição ético-política para a premente necessidade de julgar e reinventar a democracia existente.
Arquivo Pessoal
maioria (porque sendo os pobres tão numerosos, eles formam a maioria), como bem define Aristóteles. De maneira mais tênue, até mesmo a teoria socialista, apesar de dedicar-se à liberação das massas de toda dominação, elabora conteúdos que resvalam a natureza demofóbica do pensamento político de seu tempo. Como conceito político, a demofobia não é a simples depreciação dos de baixo, do pobre, do povo e demais correlatos. Esse conceito, que encontra subsídios na filosofia de Spinoza, diz respeito conceitualmente ao medo em relação ao movimento das massas e, principalmente, à potência dessa maioria (às vezes, degradada em brutalidade). Enquanto pensadores como Hobbes se ocupam do Estado como aparato institucional de governo, Spinoza situa a multidão no centro do pensamento político, reabilitando o uso do nome ao dotá-la de uma potência e, principalmente, mostrando que essa potência multitudinária excede totalmente o aparato jurídico-político, ou seja, a lei e o Estado. A evidência dessa potência constitui o núcleo fundamental da demofobia. Não à toa, o medo, que na verdade é duplo – o medo que a multidão inspira nos governantes e o que a multidão experimenta ela mesma –, pode se tornar arma de conquista de direitos ou de garantia de liberdade e a violência inorganizada e elementar das massas irrompe, muitas vezes, afirma Engels, como a parteira de toda velha sociedade gestante de uma nova ordem. Isso faz da demofobia o caráter constituinte da experiência política moderna, presente nos interstícios da teoria política. Por essa razão, a democracia demofóbica não consiste, ao contrário do que se pode pensar, na contrafação da democracia. A demofobia não nega o caráter violento e ignorante das massas ou da multidão; elas são de fato, e com frequência, perigosas, aterradoras e temerárias. A questão está em perceber que a teoria política torna-se, assim, presa de um obstáculo epistemológico que determina uma orientação cognitiva e baliza os limites para a imaginação política, delimitando parâmetros para o avanço do conhecimento acerca da potência da multidão e do processo de democratização em si. O estudo dos conteúdos democráticos mostra que estamos à beira de uma encruzilhada, em que a via alternativa à demofobia ainda está por ser desbravada em nome da radicalização ou democratização da democracia. Afastar a democracia
THAIS FLORENCIO AGUIAR É doutora em ciência política pelo Instituto de Estudos Sociais e Políticos da UERJ e pós-doutora pelo Departamento de Ciência Política da USP. Ganhou o prêmio Capes de Tese 2014, com a melhor tese de ciência política.
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REPORTAGEM
Com quase dois bilhões de reais contratados em dez anos, o BRDE se transforma em uma das principais fontes para o aumento das matrizes renováveis no sul do país. POR DANILE REBOUÇAS
Com a implantação do Programa BRDE Energia consolidada, a equipe do Banco Regional de Desenvolvimento do Extremo Sul (BRDE) constata os resultados positivos já alcançados para o setor. Lançado em maio de 2015, o programa de fomento a fontes de energia renováveis e eficiência energética atua em sintonia com os programas de energia dos estados do Rio Grande do Sul (RS), Santa Catarina (SC) e Paraná (PR). O BRDE Energia veio para agregar e amparar todos os projetos de pequeno e médio porte de geração, transmissão e distribuição de energia por fonte hídrica, Centrais Geradoras Hidrelétricas (CGHs) e Pequenas Centrais Hidrelétricas (PCHs), apoiados pelo banco. A avaliação considera o apoio a projetos e a ampliação da inserção do banco no tema geração de energia. Levando em conta os investimentos nessa área, do ano de 2005 até 30 de junho deste ano, por exemplo, o BRDE já contratou projetos no valor total de quase dois bilhões de reais (R$ 1.975.622). “Com essa atuação, o banco estimula a geração de emprego e renda 34
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Potência energética na implantação e na operação dos projetos. Concorremos para a geração de recursos públicos, de impostos, para a atuação dos estados em benefício dos cidadãos numa projeção que se estende ao futuro”, ressalta o diretor-presidente do BRDE, Odacir Klein. O gestor destaca que “a instituição financia a produção da energia necessária, mas como banco de desenvolvimento pensa a longo prazo e objetiva aumentar a competitividade da economia mediante o financiamento à inovação e eficiência energética”. O principal desafio no momento, para Odacir Klein, é ampliar a atuação, mesmo em período de redução da atividade econômica e de investimentos produtivos. A carteira atual de projetos em avaliação no banco para geração, transmissão e distribuição de energia totaliza R$ 718,6 milhões, sendo R$ 496 milhões no RS; R$ 69,2 milhões em SC; e R$ 153,4 milhões no PR. Em cada estado, o programa JULHO | AGOSTO 2016
valoriza o potencial da região. No Rio Grande do Sul o destaque é para os projetos de geração eólica, e em Santa Catarina e no Paraná, para os de geração hídrica. O assessor da diretoria, Carlos Ponzoni, lembra que o BRDE, ao longo de sua história, de forma isolada ou consorciada com outras instituições financeiras, tem financiado diferentes projetos de geração, transmissão e distribuição de energia. De modo diferenciado, o programa promove a diversificação da matriz energética nos estados; aloca as melhores condições dos financiamento disponíveis; busca novas fontes de financiamento nacionais e internacionais; e fomenta uma maior participação de recursos de empreendedores e de fundos do Brasil e de outros países. DIFERENTES MATRIZES Quando se trata do Rio Grande do Sul, o estado tem despontado no cenário nacional como um dos que mais contribuem com o crescimento da energia eólica na matriz elétrica brasileira. O diretor-presidente Odacir Klein relata que a energia da força dos ventos no estado já participa com geração superior a 1,5 gigawatt (GW) de um total de geração instalada de 9,3 GW. Nesse segmento, o banco tem apoiado projetos em montante superior a R$ 590 milhões. O BRDE apoia, junto com o BNDES e outras instituições financeiras, a implantação dos parques compreendidos no Complexo Eólico Campos Neutrais, que é o maior sistema de geração de energia do vento da América Latina e um dos maiores do mundo. Foram investidos, no total, cerca de R$ 3,5 bilhões, incluindo as linhas de transmissão. “O complexo reúne três grandes parques: Geribatu, Chuí e Hermenegildo, que somam 583 megawatts (MW) de capacidade instalada – suficiente para atender o consumo de 3,3 milhões de habitantes”, acrescenta o gerente de Operações, Paulo Raffin. O Parque Eólico Geribatu, com 258 MW divididos em dez usinas, é o maior dos três parques. O do Chuí conta com 144 MW de potência instalada em seis usinas. Já o de Hermenegildo tem doze usinas e 181 MW de capacidade. Carlos Ponzoni comenta que o “BRDE Energia tem destacado o banco não só como financiador de projetos, mas também como um ator importante na discussão de problemas e busca de soluções para o setor. Participa, inclusive, de diversos grupos de trabalho e comitês para discussão e formulação de proposições com essa finalidade”. Em Santa Catarina, pelas próprias características regionais, as fontes hídricas representam quase a totalidade dos projetos de geração de energia renovável apoiados pela instituição. Mas já houve apoio também a projetos pontuais relevantes a partir de biomassa e fonte eólica. Na avaliação do superintendente da Agência de Santa Catarina, Nelson Ronnie, o BRDE Energia ajudou a consolidar no estado a atuação do banco em toda a cadeia produtiva ligada ao setor de geração de energias renováveis. Nos últimos dez anos, conforme Ronnie salienta, foram 40 projetos apoiados pelo banco na área de energia, representando uma potência instalada em torno de 300 MW. “Praticamente todos os projetos analisados foram aprovados, pois agimos de forma proativa, orientando muito bem o empreendedor antes deste encaminhar o pedido de financiamento”, complementa. RUMOS
O banco também é parceiro do SC+Energia, um programa estadual criado em julho de 2015, que envolve diversos órgãos de governo e entidades, para fomentar a autossustentabilidade em geração de energia renovável. Para os projetos habilitados, o BRDE oferece equipe técnica especializada, tramitação prioritária e maior flexibilidade na estruturação do financiamento, permitindo viabilizar projetos que dificilmente seriam apoiados por outras instituições financeiras. O superintendente destaca que as perspectivas para novos financiamentos são otimistas, pois existe um grande número de projetos cadastrados no SC+Energia, muitos ainda em estágio inicial. São 73 projetos, que representam um potencial de 3 GW. “O BRDE se estruturou para ser o principal agente financeiro do programa e está pronto para atender a demanda crescente prevista para os próximos anos”, afirma. No Paraná, na área de energia limpa, o banco tem apoiado, principalmente, CGHs e PCHs. Já recebeu também diversas consultas sobre energia solar. A gerente adjunta de Planejamento do banco, Lisiane Astarita, comemora a boa recepção do BRDE Energia no estado. Ela explica que há um número muito grande de projetos “encarteirados” no Paraná. Isto porque a política estadual, entre 2002 e 2010, não autorizou nenhum licenciamento para projetos de energia como CGHs e PCHs. “Com o retorno do licenciamento por parte do estado, o programa permitiu que vários projetos saíssem do papel”, relata. Desde a criação BRDE Energia em 2015, por exemplo, a Agência Paraná já financiou seis projetos, no valor total de R$ 84 milhões. Além disso, há mais nove CGHs em análise e três PCHs em enquadramento. “Consideramos um número expressivo, ainda mais em um momento de crise econômica. São projetos de infraestrutura, que geram emprego e renda e trazem sustentabilidade”, afirma Lisiane Astarita. Para ela, o grande desafio quando se trata de energia hidráulica é fazer com que as licenças ambientais continuem saindo e que a Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) mantenha os leilões para energias renováveis de fontes incentivadas. Já no caso dos projetos de energia solar, em que também há uma procura, o desafio é que parte dos equipamentos seja fabricado no Brasil para permitir financiamento com recursos do BNDES. 35
ARTIGO
O aprendizado da inflação A convivência com elevadas taxas de inflação foi um problema crônico da história econômica brasileira recente. De fato, entre as décadas de 1980 e 1990, o índice de preços chegou a ultrapassar a marca dos três dígitos, registrando variação de 6.000% ao ano (a.a.), em meados de 1990, segundo o Índice Geral de Preços (IGP). A busca por uma solução para o desafio da inflação colocou-se, inclusive, como tarefa essencial para equacionar outros entraves, como a estagnação e a incidência do imposto inflacionário, mobilizando economistas dos mais variados campos políticos e teóricos, na elaboração de uma sucessão de planos de estabilização que, mesmo fracassados, foram fundamentais no processo de aprendizado do controle inflacionário. No período entre 1986 e 1994, o Brasil conviveu com seis planos e quatro moedas diferentes, suscitando importantes debates acerca da natureza do processo inflacionário e das políticas que deveriam ser implementadas para a estabilização dos preços. Naturalmente, Rumos abriu espaço para este debate. Edmar Bacha, então presidente do IBGE, em entrevista à revista, na edição de Janeiro/Fevereiro de 1986, notava que, a despeito das controvérsias quanto à inflação inercial, o combate à indexação representava importante ponto de convergência: “Acho que há um consenso generalizado hoje em dia, que só encontra reação nos monetaristas mais ortodoxos, de que é necessário ter, paralelamente a uma política monetária fiscal restritiva, uma atuação específica na frente da indexação, para assegurar que essa con36
tração fiscal e monetária resulte, de fato, em queda dos preços, em queda da inflação, não O aprendizado em queda da produção”(p. 8). De fato, os pla- do combate à nos de estabilização consideravam a inércia inflação, afinal, o principal fator a contribuir para o caráter crônico da inflação e contaram com a ferra- não era apenas de economistas menta do congelamento de preços. Bacha, no entanto, advertia quanto aos e do governo, desafios de medidas desta natureza: “[...] mas também Fazer com que, de fato, os preços nas pra- da sociedade teleiras dos supermercados baixem é uma brasileira. questão mais complicada, porque envolve toda a estrutura de canais de comercialização interna e toda a lógica de um sistema privado, cuja atuação vai estar jogando contra o governo. Na medida em que os estoques oficiais sejam desovados simplesmente, o que pode acontecer é a mera transferência para o setor privado, que poderá manter tudo estocado, a partir da hipótese de que esse esforço governamental tem fôlego curto”(p. 8). Esta avaliação mostrar-se-ia premonitória, uma vez que a opção pelo controle de preços para combate à indexação revelou-se inadequada, sendo capaz de estabilizar as taxas de inflação apenas momentaneamente. Bacha parece ter ido ao cerne do conflito que levou esta tentativa ao fracasso: a própria descrença da população e do mercado na capacidade do governo em controlar os preços. Se o congelamento fracassou, a necessidade de desindexação para o combate à inflação continuou premente, entre os Planos Cruzado e Collor II, resultando em importante aprendizado que culminou na elaboração do Plano Real. Ademais, o diagnóstico do desajuste das finanças públicas, como o cerne da inflação e a prévia comunicação à população dos estágios do Plano, o difere de seus precursores. João Paulo dos Reis Velloso, ex-ministro do Planejamento, examina a questão, na edição de Setembro/Outubro de 1994: “Nós estamos verificando que, para a sociedade brasileira, a estabilizaJULHO | AGOSTO 2016
RUMOS
volvimento econômico, uma contenda recorrente entre os economistas brasileiros. Enquanto alguns identificavam a premência das políticas de combate à inflação, acreditando que o crescimento viria em seguida da estabilidade, Coutinho argumentava por outro caminho: “Desde o primeiro momento, a estabilização deveria associar-se, de maneira deliberada, a um plano de desenvolvimento. E entendo que essa é a maior deficiência da equipe econômica anterior: a obsessão em sustentar a estabilização, sem pensar no desenvolvimento. Essa obsessão em sustentar a estabilização, a qualquer custo, pode levar a caminhos que fraudam, inviabilizam, o desenvolvimento” (p. 19). Entre os custos das políticas macroeconômicas adotadas visando assegurar a manutenção da estabilidade, as altas taxas de juros figuram como um dos mais elevados. Com efeito, após o rápido crescimento da economia, nos primeiros meses subsequentes ao Plano Real, estimulado, principalmente, pelo efeito do desaparecimento do imposto inflacionário e pela entrada de capital estrangeiro, as taxas de crescimento recuaram. Desde então, a economia brasileira jamais retomou, de forma sustentada, o desempenho do PIB que verificava antes do início dos planos de estabilização. Se cumprirmos com sucesso a longa trajetória de aprendizado rumo ao controle da inflação, resta agora resgatarmos as lições do desenvolvimento.
Noel Joaquim Faiad
FERNANDA FEIL É graduada em Business & Commerce pela Monash University/Australia e em economia pela USP. Possui mestrado em economia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Atualmente, é gerente de Estudos Econômicos (Gesec) da ABDE
Noel Joaquim Faiad
ANDREJ SLIVNIK É economista, formado pela Universidade de Campinas, e mestrando pela mesma instituição. Atua como técnico na Gesec.
BEATRIZ MARCOJE É graduanda de economia na Universidade Federal Fluminense e estagiária da Gesec. Acervo Pessoal
ção – talvez pela primeira vez, nos últimos 60 anos, ou seja, desde que começou o Brasil moderno – é, hoje, um valor universal tal como é o desenvolvimento, a democracia e a distribuição de renda [...] Então, eu acho que é um grande mérito do governo ter entendido que já havia clima na sociedade para, a despeito de todas as circunstâncias desfavoráveis, traçar um plano de estabilização deste tipo” (p. 11). O aprendizado do combate à inflação, afinal, não era apenas de economistas e do governo, mas também da sociedade brasileira. O Plano Real foi concebido em três fases: ajuste fiscal, criação de um padrão estável de valor e estabelecimento de regras de emissão da nova moeda. O ajuste fiscal começou a ser implantado ainda em junho de 1993, com o lançamento do Programa de Ação Imediata, que visava reorganizar as finanças do setor público. A segunda etapa, criação de um padrão estável de valor, foi implantada por meio da Unidade Real de Valor (URV), uma moeda paralela, “virtual”, que serviu como referência de conta e medida de valor. Sua implantação possibilitou a transição gradual de um regime monetário para o outro, dispensando o congelamento, a prefixação ou a adoção de qualquer choque ou intervenção do governo, eliminando gradativamente o componente inercial da inflação. Quanto à terceira etapa, o Plano estabeleceu metas para a expansão monetária que serviram para restringir a liquidez do mercado, atuando como contrapeso ao aumento do poder aquisitivo proveniente do fim da inflação. As altas taxas de juros da política monetária, além de servir para controlar o aumento da demanda agregada, atraíam capital internacional, aspecto importante para o funcionamento da âncora cambial estabelecida pelo plano, que previa um sistema de bandas assimétricas, oscilando abaixo do teto de R$1,00/US$. A despeito do sucesso do Plano Real em combater a inflação, as medidas adotadas não deixaram de receber críticas. Nesse sentido, o economista Luciano Coutinho, em entrevista à edição de Janeiro/ Fevereiro de 1995, chamava atenção para os efeitos colaterais das políticas adotadas até então: “[...] Uma estabilização sustentada, permanentemente, numa taxa de câmbio sobrevalorizada, distorce por completo o crescimento, mata a possibilidade de investimentos competitivos em áreas de eficiência, estimula de modo desmensurado as importações e fragiliza o balanço de pagamentos” (p. 19). No pano de fundo da crítica de Coutinho, encontra-se a preocupação em aliar estabilidade e desen-
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LIVROS
INTERPRETAR O BRASIL E A PRÓPRIA VIDA Não são muitos os nomes dos intelectuais considerados intérpretes do Brasil. A eles recai a intenção, por meio diverso, econômico, político ou social, de explicar o porquê de o país ser o que é, de mostrar o caminho que nos levou a sermos o que conseguimos ser: plurais, pacíficos e dependentes. Mas, para alguns “explicadores” do Brasil, o trabalho de entender o que somos se imiscui com a trajetória de sua própria vida, esse é o caso de Caio Prado Júnior. Na biografia escrita pelo pós-doutor e professor de história contemporânea na Universidade de São Paulo (USP) Luiz Bernardo Pericás, fica claro o inevitável entrelaçamento entre o intelectual, o militante e o herdeiro de uma das mais abastadas famílias paulistanas de sua época. As ideias, manifestações políticas, escritas são a síntese da influência de Caio Prado Júnior ser o que era. Em um extenso trabalho de pesquisa, com especial atenção a materiais não convencionais como cartas, anotações e demais documentos, Pericás traz à tona, nas 487 páginas da obra, um incansável pesquisador da teoria marxista, que buscava por meio de seus estudos e viagens trazer tais ensinamentos para entender o Brasil de sua época. Como ressalta o autor nos primeiros capítulos, “A teoria e a prática andavam juntas e se completavam. Se por um lado ele se mobilizava como ativista e organizador político, por outro, não deixava de se interessar pelos estudos e pela teoria econômica marxista, ambos elementos que dariam o suporte intelectual necessário a suas atividades.” Assim, com esse tom de escrever uma biografia política, as páginas mostram um Caio Prado Júnior por toda a vida filiado ao Partido Comu38
nista do Brasil (PCB), ainda que, em vários momentos dessa participação, ele não tenha sido compreendido nem entre seus pares de partido, que, por vezes, só o viam como fonte de recursos financeiros, e nem por sua própria família de elite, que o enxergava como um rebelde. A presença nesses dois ambientes marcou sua vida, com episódios de inadequação de ambos os lados: “Apesar da confortável situação econômica e familiar de Caio Prado Júnior, é bom recordar aqui que sua decisão de ingressar no PCB não seria fácil em termos pessoais, e ele teria de arcar com todas as consequências dessa verdadeira ruptura ideológica de classe. Nos almoços e reuniões de família na casa de sua mãe, muitos parentes se recusavam a comparecer ou deixavam de ir à mansão se soubessem que ele estaria presente, isolando-o socialmente. Até mesmo cruzes em chamas eram jogadas nos jardins de sua casa!”, cita Pericás. É uma contribuição notável o livro do historiador, em um momento que o Brasil reluta em aceitar o debate, o contraditório, o embate de ideias, a vida de Caio Prado Júnior, o Caíto, evidencia a existência de um homem coerente ao longo de sua história, fiel ao seu pensamento político e prático de vida, convicto de suas escolhas e incompreendido nas esferas que escolheu transitar, sendo mesmo preso e exilado, criticado por pares e ameaçado por detratores. Em suas próprias palavras recuperadas por Pericás: “Livremente escolhi meu caminho de vida, e só tenho motivos para regozijar-me com a escolha, que me tem dado uma consciência que não encontraria em outra parte. E com este lastro positivo, estou pronto, como sempre estive, para suportar o ônus da vida que preferi.” Caio Prado Júnior é a lição de que a vida não se passa no vazio, ela é preenchida de relações, de encontros, de desacertos, de contexto, e de coragem, tão ausente hoje em dia.
Por Thais Sena Schettino, jornalista e doutora em Sociologia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
Caio Prado Júnior: uma biografia política Luiz Bernardo Pericás Boitempo, 487 p., 2016. JULHO | AGOSTO 2016
O CONTADOR DE HISTÓRIAS
Storytelling: as narrativas da memória na estratégia da comunicação Rodrigo Cogo Aberje, 174p., 2016.
O storytelling chegou ao mundo corporativo nos anos 1990 por meio de consultores motivacionais, líderes e gestores. Eles viram na prática uma eficiente ferramenta de gestão. Nesta obra, o especialista em gestão estratégica Rodrigo Cogo reúne seus mais de oito anos de experiência teórica e prática em uma obra leve com 174 páginas e organizado em três capítulos. No livro, Cogo relaciona uma das formas mais antigas de comunicação entre os humanos, o de contar história com o discurso utilizado atualmente nas empresas como uma estratégia de repassar as mensagens corporativas, mas que possuem a mesma finalidade, o de ensinar algo. Sua eficácia justifica-se pelo fato de que contar uma história ficcional ou narrar um relato de vida tem
o poder de mobilizar as emoções. Essas, por sua vez, despertam os sentidos nos colocando inteiros na escuta. Cogo trabalhou por 10 anos com planejamento e marketing cultural para diversas empresas e tem larga experiência em diagnósticos de comunicação. Atualmente, é responsável pela área de Inteligência de Mercado da Aberje, entidade onde ainda atua como professor no MBA em Gestão da Comunicação Empresarial. No texto, o autor parte da premissa que é importante compreender as novas demandas sociais para dar espaço a diversas vozes, sem a centralidade da organização, conseguindo ultrapassar as barreiras em uma época com tanta informação circulando e de diversidade de mídias operantes.
UMA SÍNTESE DAS CRISES
Nova história das grandes crises financeiras Carlos Marichal Editora FGV, 348p., 2016. RUMOS
Escrita pelo historiador mexicano Carlos Marichal e traduzida agora pela editora da Fundação Getulio Vargas, a obra apresenta o estudo de seis épocas consecutivas da história econômico-financeira do último século e meio, com base em uma ampla literatura de economistas e historiadores. O objetivo é apresentar uma síntese histórica das grandes crises financeiras no contexto internacional e seu impacto global. O livro inicia com uma revisão das crises financeiras em um contexto de uma globalização econômica preliminar, que se situa entre a derrocada de 1873 e a deflagração da Primeira Guerra Mundial em 1914. Em seguida, passa à análise do período de entreguerras e ao debate sobre as causas da Grande Depressão dos anos 1930, fazendo re-
ferência à ampla polêmica que os especialistas sustentam sobre o tema e que prossegue até os dias atuais. Professor do Centro de Estudos Históricos de El Colegio de México e doutor em História pela Universidade de Harvard, nos Estados Unidos, Marichal pretende provocar no leitor sensação de familiaridade com os antecedentes históricos e com os principais fatores de deflagração da tormenta financeira que eclodiu em 2008. Segundo o livro, uma das facetas mais singulares do colapso financeiro contemporâneo do biênio 2008-2009 é que um bom número dos principais responsáveis pelas finanças dos Estados Unidos, da Europa e de muitos outros países atuou com plena consciência histórica dos perigos de uma nova Grande Depressão. 39
AgeRio/Ascom
FOMENTO
AGERIO ATENDE EMPRESÁRIOS EM RODADA DE NEGÓCIOS A Agência de Fomento do Estado do Rio de Janeiro (AgeRio) levou atendimento à rodada de negócios que teve como âncoras a indústria e o comércio de lingerie Demillus e o Laboratório Duprat. O evento, realizado na Firjan de Nova Iguaçu, recebeu mais de 80 micro, pequenas e médias empresas, que apresentaram produtos e serviços necessários às âncoras, como manutenção de ar-condicionado, gráfica de cartonagem, embalagem, segurança e conservação predial. De acordo com Everton Marques, gerente de contas da empresa que hoje trabalha com mais de 300 fornecedores por mês, a partir do ano que vem a unidade em crescimento deve dobrar a produção, o número de funcionários e, consequentemente, aumentar o quadro de fornecedores.
ODACIR KLEIN ASSUME PRESIDÊNCIA DO BRDE O Banco Regional de Desenvolvimento do Extremo Sul (BRDE) tem novos presidente e vice-presidente. A cerimônia de transmissão do cargo aconteceu na sede do BRDE em Porto Alegre. A posse também reuniu políticos, entre eles o governador do Rio Grande do Sul José Ivo Sartori; o vice-governador José Paulo Dornelles Cairoli; a primeira-dama e secretária de Políticas Sociais Maria Helena Sartori; sete secretários de Estado; o prefeito de Porto Alegre José Fortunati e o vice-prefeito Sebastião Melo, além de representantes das casas legislativas. Em seu discurso, Odacir Klein manifestou sua gratidão pela oportunidade de atuar no setor público. “É gratificante fazer parte de uma instituição de fomento ao desenvolvimento com potencial para contribuir no processo de recuperação da economia e na geração de empregos”, afirmou Klein. O governador do Rio Grande do Sul, por sua vez, ressaltou as características que valoriza no novo presidente do BRDE: “Um homem de espírito público reconhecido, com visão técnica e humana, liderando o BRDE, um agente de transformação. Temos que fazer um intercâmbio de aprendizagens e integração”. 40
FIP DA DESENVOLVE SP JÁ INVESTIU EM 12 EMPRESAS O Fundo de Investimento em Participações (FIP) “Inovação Paulista”, idealizado pela Desenvolve SP (Agência de Desenvolvimento Paulista), já investiu em 12 empresas cerca de R$ 39 milhões, valor equivalente a 37% dos R$ 105 milhões que ainda serão aportados em negócios de alto impacto no estado de São Paulo. Os números são referentes ao primeiro balanço do fundo que tem buscado startups e pequenas e médias empresas paulistas ligadas aos segmentos de nanotecnologia, ciências da vida, tecnologias agropecuárias, tecnologias da informação e comunicação com foco corporativo, setores considerados propulsores da inovação. Além de contar com o apoio e recursos da Desenvolve SP, o fundo também tem como investidores a Finep, Fapesp, Sebrae-SP, Banco Desenvolvimento da América Latina e Jive Investments. “Estamos confiantes nos aportes já realizados pelo Fundo Inovação Paulista. São empresas essencialmente inovadoras que, em pouquíssimo tempo, já começaram a conquistar novos mercados, impulsionando a competitividade e a economia do estado de São Paulo”, diz Milton Luiz de Melo Santos, presidente da Desenvolve SP. JULHO | AGOSTO 2016
Finep/Comunicação
FINEP E BNDES DESTINAM R$ 3,58 BILHÕES PARA INOVAÇÃO A Finep e o BNDES destinam até R$ 3,58 bilhões para dois programas voltados para inovação, nos setores de química e de mineração por meio de dois planos: Apoio ao Desenvolvimento e Inovação da Indústria Química (PADIQ) e oDesenvolvimento, Sustentabilidade e Inovação no Setor de Mineração e Transformação Mineral (Inova Mineral). As duas instituições anunciaram os 27 planos de negócios já selecionados para o PADIQ, que totalizam investimentos de R$ 2,4 bilhões, e lançam o edital para seleção de planos de negócios que serão apoiados pelo Inova Mineral, programa que apoiará o setor com R$ 1,18 bilhão. Os dois programas financiarão investimentos em inovação voltados para projetos sustentáveis, que incluem, por exemplo, redução de emissão de poluentes, eficiência energética e recuperação e conversão de resíduos agrícolas.
O novo diretor-presidente do Banco de Desenvolvimento do Espírito Santo (Bandes), Aroldo Natal Silva Filho, tomou posse, em julho, em solenidade na sede da instituição. O evento reuniu colaboradores da instituição, convidados e autoridades. O governador Paulo Hartung ressaltou que o Bandes é uma importante instituição financeira que auxilia diretamente no fomento da economia capixaba. “Nossa política de desenvolvimento é robusta, transparente e permitiu ao Espírito Santo atrair importantes investimentos privados. Infelizmente, nosso estado tem o desenvolvimento tardio, mas nos últimos anos estamos produzindo avanços importantes na diversificação e crescimento de nossa economia”, disse. Em sua primeira função na gestão pública, Aroldo Natal destacou que está muito motivado com a nova função e consciente da atual conjuntura econômica. RUMOS
MT FOMENTO FINANCIOU R$ 2,6 MI EM OPERAÇÕES DE MICROCRÉDITO Prestes a completar 12 anos de atividade, a Agência de Fomento de Mato Grosso (MT Fomento) liberou, do ano passado até junho deste ano, R$ 2,6 milhões em financiamentos para micro e pequenos empreendedores atendendo 190 operações de crédito e gerando 665 empregos. “Com o maciço apoio que temos recebido da Secretaria de Desenvolvimento Econômico e do Governo do Estado, a instituição se torna cada vez mais forte e amplia o seu alcance com o surgimento de novas linhas de crédito para diversos setores que antes não eram atingidos”, explica o presidente da MT Fomento, Mário Milton. Para fortalecer ainda mais a atividade da agência, novas linhas de crédito estão sendo criadas de forma a contemplar outros segmentos do setor produtivo e de serviços que vêm demandando investimentos. “Para continuar atendendo aos nossos clientes de forma eficiente, anunciamos algumas novidades como o programa Desenvolve Turismo, que poderá conceder recursos de até R$ 600 mil”, detalha Milton. 41
Divulgação
AROLDO NATAL TOMA POSSE NO BANDES
EXPEDIENTE
CARTAS DO LEITOR Projeto gráfico Já tive a oportunidade de agradecer à equipe da Rumos as importantes inspirações e esclarecimentos que em muito contribuíram no período de elaboração da minha tese de doutorado (PPED/UFRJ) sobre as agências de fomento. Desejo agora parabenizá-los pelo novo projeto gráfico da revista, que espelha o cuidado constante em mantê-la atualizada e sintonizada com os desafios da economia e do desenvolvimento no país. Eduardo Duprat F. de Mello, Rio de Janeiro (RJ)
Sede: SCN – Qd. 2 - Lote D, Torre A Salas 431 a 434 Centro Empresarial Liberty Mall | Brasília | DF | CEP 70712-903 Telefone: (61) 2109.6500 E-mail: abde@abde.org.br Escritório: Avenida Nilo Peçanha, 50 – 11º andar Grupo 1109 - Rio de Janeiro - RJ - CEP 20020-906 Telefone: (21) 2109.6000 E-mail: gecom@abde.org.br CONSELHO DOS ASSOCIADOS Presidente: Maria Silva Bastos Marques DIRETORIA Presidente: Milton Luiz de Melo Santos 1º Vice-Presidente: Marco Aurélio Crocco Afonso 2º Vice-Presidente: Ilton Luis Schwaab Diretores: Francisco Soares, Marivaldo Gonçalves de Melo, Otto Alencar Filho, Rogério Tavares e Susana Kakuta. Secretário-Executivo: Marco Antonio A. de Araujo Lima
INSTITUIÇÕES ASSOCIADAS À ABDE
AFAP – Agência de Fomento do Estado do Amapá S.A. AFEAM – Agência de Fomento do Estado do Amazonas S.A. AFERR – Agência de Fomento do Estado de Roraima S.A. AGÊNCIA DE FOMENTO TOCANTINS – Agência de Fomento do Estado de Tocantins AGEFEPE – Agência de Fomento do Estado de Pernambuco S.A. AGN – Agência de Fomento do Rio Grande do Norte S.A. AGERIO – Agência Estadual de Fomento BADESC – Agência de Fomento do Estado de Santa Catarina S.A. BADESUL – Badesul Desenvolvimento S.A. – Agência de Fomento BANCO DA AMAZÔNIA – Banco da Amazônia S.A. BANCO SICREDI – Banco Cooperativo Sicredi S.A. BANCOOB – Banco Cooperativo do Brasil S.A. BANDES – Banco de Desenvolvimento do Espírito Santo S.A. BANPARÁ – Banco do Estado do Pará S.A. BB – Banco do Brasil S.A. BDMG – Banco de Desenvolvimento de Minas Gerais S.A. BNB – Banco do Nordeste S.A. BNDES – Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social BRDE – Banco Regional de Desenvolvimento do Extremo Sul BRB – Banco de Brasília CAIXA – Caixa Econômica Federal DESENBAHIA – Agência de Fomento do Estado da Bahia S.A. DESENVOLVE – Agência de Fomento de Alagoas S.A. DESENVOLVE SP – Agência de Desenvolvimento Paulista FINEP – Inovação e Pesquisa FOMENTO PARANÁ – Agência de Fomento do Paraná S.A. GOIÁSFOMENTO – Agência de Fomento de Goiás S.A. MT FOMENTO – Agência de Fomento do Estado de Mato Grosso S.A. PIAUÍ FOMENTO – Agência de Fomento e Desenvolvimento do Estado do Piauí S.A. SEBRAE – Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas
Redação e Administração Avenida Nilo Peçanha, 50, 11º andar Grupo 1109 Rio de Janeiro RJ CEP: 20020-906 Telefone: (21) 2109.6041 E-mail: rumos@abde.org.br
Gerente de Comunicação & Editora Thais Sena Schettino Equipe Jader Moraes, Livia Marques Pimentel, Noel Joaquim Faiad Revisão Renato R. Carvalho
Pedido Gostaria de saber a possibilidade de receber exemplar da revista Rumos, quando da sua publicação. Pablo da Costa Saavedra, Banco Central do Brasil, Salvador (BA) Mudança Prezados senhores, tenho recebido mensalmente dois exemplares de sua excelente revista. Ocorre que a empresa foi extinta há mais de 10 anos, razão pela qual solicito alterarem o destinatário para a nova empresa de minha propriedade. Marcelo Perrupato, Magna Planejamento Estratégico Sustentável, Brasília (DF)
Agradecimento Recebemos e agradecemos o envio da revista Rumos, n.286, março/abril, 2016, pois veio enriquecer o acervo de nossa biblioteca. Marli de Oliveira Felipe, Associação Educacional Toledo/Biblioteca “Visconde de São Leopoldo”, Presidente Prudente (SP)
Capa Arte Noel Joaquim Faiad Impressão e CTP J. Sholna Reproduções Gráficas Distribuição Powerlog Serviços e Manipulação
Conselho Editorial Milton Luiz de Melo Santos, João Paulo dos Reis Velloso e Thais Sena Schettino. Publicação bimestral ISSN 1415-4722 Ano 40 - nº 288 - Julho/Agosto 2016 Tiragem: 9.000 exemplares
As matérias assinadas são de responsabilidade de seus autores, não refletindo, necessariamente, a opinião da ABDE. Sua reprodução é livre em qualquer outro veículo de comunicação, desde que citada a fonte. 42
JULHO | AGOSTO 2016
A ABDE nasceu para fazer ecoar o ideal dos agentes que representa. Unir esforços, conhecimentos e recursos. Potencializar o desenvolvimento de um país com dimensões continentais. Agora, tem novos desafios: a partir de uma nova visão estratégica, se prepara para se tornar mais forte. Conciliando diferentes saberes, realidades e experiências. www.abde.org.br