PROGRAMA SOLIDÁRIO ABEM LANÇADO EM 2016
PUBLICAÇÃO trimestral • 212 • outubro | novembro | dezembro • 2015
PARA ACABAR COM
A miséria
NO MEDICAMENTO
António Arnaut, embaixador da Associação Dignitude:
«Sou contra farmácias para pobres» O fundador do Serviço Nacional de Saúde revela os segredos políticos da criação do SNS. Numa entrevista de vida, recorda episódios de oposição ao regime vividos nas farmácias e de destruição da Democracia nos bastidores do poder.
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editorial
A UTOPIA DAS FARMÁCIAS
Maria da Luz Sequeira
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Como se pode ler na rubrica Farmácias Reais, muitas vezes é gente no limiar da pobreza quem faz um esfoço para ajudar os ainda mais pobres. Cada gesto de ajuda merece respeito e recato, que gostamos de guardar na Farmácia Portuguesa. Mas também devemos admirar a coragem do casal que dá a cara na capa desta edição, para com o seu exemplo mostrar como faz falta um programa como o ABEM, da Associação Dignitude. Quero daqui retribuir o agradecimento que dirigem aos farmacêuticos, por serem os primeiros a lembrar-se deles. Temos de ser ainda mais ambiciosos, como foi António Arnaut quando impôs o Serviço Nacional de Saúde, contra ventos e marés. Nós precisamos de um sistema que devolva a todos – e a cada um - a dignidade no acesso ao medicamento e à saúde. Como afirma o fundador do SNS, o medicamento não pode nunca tomar a forma de uma esmola. Não se aceita,
Como afirma o fundador do SNS, o medicamento não pode nunca tomar a forma de uma esmola neste tempo, a criação de farmácias para pobres, como se fossem mitras. O programa ABEM pode parecer incrível, de tão ambicioso. Mas as farmácias portuguesas sempre deram provas de serem capazes de transformar os sonhos em realidade. O pai do SNS inspira-nos, quando lembra que «a utopia comanda a vida». Os farmacêuticos de oficina sonham muito, em regra com os pés bem assentes na terra. O MONAF celebrou 30 anos! Ou seja, há 30 anos que os farmacêuticos perceberam que tinham
de acautelar eles próprios as suas reformas, que não podiam confiar ao Estado um assunto tão sensível. Infelizmente, estavam cheios de razão. Este número da revista é rico em viagens inspiradoras para o novo ano. Beja Santos, um dos melhores amigos das farmácias portuguesas, leva-nos às florestas de África. O autor da coluna Senhor Utente, da Revista Saúda, recorda com respeito os leais guerreiros que comandou. Nessas florestas, António Arnaut perdeu a fé religiosa, mas renovou a fé numa humanidade melhor. Já as irmãs Moreira Padrão levam-nos, de bicicleta, ao Minho profundo, onde combateram a morte e o sofrimento dos outros. Quase no fim desta edição, como se fosse o nosso presente de Natal aos leitores, visitamos Lisboa com José Cardoso Pires. O seu Livro de Bordo é desvendado por Carlos Enes de uma maneira surpreendente, como a vida.
FARMÁCIA PORTUGUESA
ntónio Arnaut, autor da lei que fundou o SNS, deu-nos a honra de aceitar tornar-se embaixador da Associação Dignitude. Esta IPSS começará, em 2016, a realizar a utopia das farmácias: garantir que os portugueses, mesmo nos momentos de maior dificuldade económica, levam para casa todos os medicamentos receitados pelos seus médicos. Muitos farmacêuticos de oficina, discretamente, fazem desta utopia realidade há dezenas de anos. Toca-nos o coração o exemplo da colega Maria Júlia, da Trofa. Ela e a irmã, na juventude, assistiam os aflitos de bicicleta, de dia e de noite, sem cobrar um tostão. Aos 92 anos conserva a lucidez dos 29. Só não vai tanto ao balcão porque as farmácias vivem com dificuldades terríveis e ela habituou-se a fiar tudo a toda a gente. Na sua farmácia há agora uma caixinha, onde quem pode deixa moedas para ajudar os pobres a aviar as receitas.
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prontuário
Propriedade
FARMÁCIAS REAIS: fAça-se LUZ
Directora Maria da Luz Sequeira
Histórias de portugueses que não conseguem aceder aos medicamentos todos por falta de dinheiro. A resposta das farmácias. O lado pobre e o lado solidário de Portugal.
conselho editorial Nuno Vasco Lopes Duarte Santos DIRECTOR EXECUTIVO Carlos Enes editora EXECUTIVa Carina Machado redação Ana Abrunhosa Filipe Mendonça Nuno Esteves Projecto Departamento de Comunicação da ANF Produção
Edifício Lisboa Oriente Av. Infante D. Henrique, 333 H, 44 1800-282 Lisboa T. 218 504 060 - Fax: 210 435 935 Coordenadora de publicidade Sónia Coutinho soniacoutinho@newsengage.pt T. 961 504 580
06 A menina da farmácia Nos anos 50, Maria Júlia Moreira Padrão pasmou a Trofa com serviços ao domicílio de bicicleta. Tem 92 anos e a lucidez de 29.
Assinaturas 1 Ano (4 edições) - 50,00 euros Estudantes de Farmácia - 27,50 euros Contactos T. 213 400 650 • Fax: 213 400 674 Email: anf@anf.pt Periodicidade: Trimestral Tiragem: 3 000 exemplares Distribuição gratuita aos associados da ANF Impressão e acabamento RPO - Produção Gráfica, Lda. Depósito Legal n.º 3278/83 Isento de registo na ERC ao abrigo do artigo 9.º da Lei de Imprensa n.º 2/99, de 13 de janeiro
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Distribuição
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FARMÁCIA PORTUGUESA é uma publicação da Associação Nacional das Farmácias Rua Marechal Saldanha, 1, 1249-069 Lisboa
www.anf.pt
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Esta revista segue a norma ortográfica anterior ao acordo.
as penas do tigre Um outro lado de Mário Beja Santos.
Gala solidária da ANF. As receitas vão subsidiar pessoas carenciadas na aquisição de medicamentos. António Arnaut e João Almiro receberam as insígnias da ANF. Entregámos os prémios João Cordeiro. Lançámos o livro Uma História das Farmácias. Maestro Rui Massena interpretou hino do programa solidário ABEM.
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A pedra original do sns António Arnaut em entrevista.
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42 errata Na anterior edição, no artigo de homelapso, que faleceu com 63 anos. Na verdade, tinha 53. Pelo facto, apresentamos as nossas desculpas.
Farmacêutico convida: Campo de Ourique João Pinto Basto é o anfitrião do bairro “cool” da capital.
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nagem a António Pais, escrevemos, por
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farmácias reais
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Reportagem de Filipe Mendonça | Fotografias de Júlio Silva e Carla Bessa
FAÇA-SE LUZ FARMÁCIA PORTUGUESA
Um em cada quatro medicamentos receitados pelos médicos não é levantado nas farmácias. Para combater esta realidade nasceu a Associação Dignitude. O objectivo é ajudar meio milhão de portugueses nos próximos três anos
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farmácias reais
Vidas na lama
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Elsa e Paulo vivem nos escombros de um balneário em Lisboa. Perderam o emprego e a casa alugada que tinham em Sintra, mas recusam abdicar da dignidade e do amor que os une. Sozinhos, entre hortas urbanas e betão abandonado, pedem que alguém olhe pela sua saúde.
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heira a lama. Terra molhada é outra coisa. Cheira a lama e erva encharcada no centro da cidade. Paulo serpenteia pelas hortas
urbanas a caminho de casa. «Vá lá que isto hoje está sol. Imaginem quando chove!». Não é difícil. O trilho escorregadio, sempre a subir, está entalado
entre mato e pedaços de rede. «Isto é o poço onde vimos buscar água», explica o anfitrião enquanto trepa a encosta, segundos antes de dobrar a última esquina. Chegámos. A primeira imagem é a de um cemitério de memórias felizes. Em tempos, jovens cheios de força ousaram imitar aqui o Maradona, serem do tamanho de Eusébio, rasgar o mundo ao jeito do Figo. Coisas que os rapazes sonham sempre que dão um pontapé na bola. Desse tempo, sobram ruínas, restos de betão armado. Vestígios de um campo de futebol, com balneários e tudo. Paulo e Elsa, a mulher, vivem naquilo que ficou da trincheira dos “visitantes”. É nada, ou quase. «Não temos nem luz, nem água. Não imagina o que é acordar de manhã, com frio, querer tomar um banho
quente e não poder. Tenho de ir tirar água do poço. Ninguém diz que vivo numa barraca. Pensam que vivo numa casa a sério», desabafa uma mulher de traço fino, arranjada, pintada, de lenço bonito impecavelmente aconchegado ao pescoço. 51 anos. Elsa arranjou emprego numa loja há duas semanas. Paulo continua desempregado e a viver de biscates. Almoçam e jantam na Associação Cais, em Xabregas. É descer o morro e atravessar a estrada. O pior é ao fim-de-semana. «Não temos frigorífico. A comida que trazemos, azeda. Não temos nem família, nem amigos para nos ajudar. Sabe uma coisa? Os senhores foram das poucas pessoas que quiseram saber onde moramos. Ninguém quer saber, ninguém», sussurra Paulo em direcção ao chão.
«Sabe uma coisa? Os senhores foram das poucas pessoas que quiseram saber onde moramos. Ninguém quer saber, ninguém»
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«Não tenho dinheiro para os medicamentos todos»
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Em cima da mesa da única assoalhada dos escombros do balneário, agora feitos casa, amontoam-se receitas por dispensar. Do outro lado, num parapeito, caixas e caixas de medicamentos. Umas cinco ou seis, diferentes. «Este mês não comprei os remédios todos para as varizes. Não tinha dinheiro. Na última compra que fiz na
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farmácia gastei 40 euros e tive de pedir emprestado», recorda Paulo enquanto mostra a perna roxa, negra, a pedir ajuda, medicação regular. Naquela meia-dúzia de metros quadrados, bem arrumados e limpos dentro do possível, Elsa e Paulo pedem dignidade. Cuidados. Estão cansados de que a sua saúde esteja sujeita
à lógica dos acasos, por mais que saibam que cada um ajuda como pode. «Às vezes recebemos medicamentos da AMI, quando há. Mas nem sempre há». Paulo acredita que o Programa Abem vai ser uma ajuda essencial, sobretudo para quem vive sujeito a condições de higiene e conforto tão precárias. Elsa sente isso literalmente
na pele: «Aqui já vi de tudo: cobras, ratos... Há dias fui mordida por um mosquito e estou a fazer alergia. Depois tenho o problema do colesterol, que devia ser controlado com mais atenção, o desgaste das minhas articulações e os ansiolíticos sem os quais não consigo viver». No olhar de Elsa não há vergonha, só mágoa. «Tire as fotografias que quiser. Não tenho problemas com isso», dispara como se estendesse a mão. No rosto de Paulo moram as marcas das armadinhas dos dias. Há quem lhe chame vida. «Tínhamos uma casa em Sintra. Perdemos o emprego e o dinheiro para pagar a renda. A assistente social disse que era melhor virmos para Lisboa». As palavras de Paulo falam de um tempo próximo. Foi há três anos que o seu mundo mudou, que o país da Troika mudou, que o céu, o mar e a cor da terra mudaram também. Mudou tudo, menos o amor que sentem um pelo outro. «Podíamos ter ido para um albergue, mas não queremos separar-nos. Estamos juntos e é juntos que vamos vencer esta fase mais difícil», prometem as 45 vidas deste pintor.
«Ninguém diz que vivo numa barraca. Pensam que vivo numa casa a sério». Não é vergonha que Elsa tem. «Tire as fotografias que quiser. Não tenho problemas com isso». É mágoa
estA caixinha tem um segredo:
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a receita, os medicamentos do costume: uns para a tensão, outros contra a diabetes. Na carteira, as dúvidas e as angústias de quem a vê cada vez mais curta, como os dias de Inverno. «São 23 euros», dispara Vanessa Silva. «Só tenho 20. Pago o que falta em Março», envergonha-se o homem, do outro lado do balcão. «Deixe estar. Paga a caixinha», resolve a farmacêutica. A estória passa-se a meio de Novembro e ajuda a explicar para que serve aquele cilindro de mental, feito mealheiro de criança, intimidado junto ao computador que cospe facturas. «Ninguém sai daqui nem com fome, nem com dores, isso lhe garanto». Joana Fonseca tem «farmacêutica» escrita no olhar. Podia ser só solidariedade. É paixão. Missão. Herança da senhora sua tia, matriarca
da Farmácia Moreira Padrão, na Trofa. «A ideia da caixinha nasceu há cinco anos. A minha tia sempre teve um coração enorme. Fiava a toda a gente. O que fizemos foi continuar a ajudar, mas de outra maneira. As pessoas contribuem com o que quiserem, normalmente é o troco. Deitam na caixa e depois esse dinheiro vai ajudar, por exemplo, alguém que não tem capacidade financeira para aviar tudo o que está na receita», explica a sobrinha de Maria Júlia Padrão. A tia está lá dentro. São mais de 90 anos de vida e de estórias. «Sabe, a gente ao balcão não sabe dizer que não. A mim “levam-me” facilmente, os meus colaboradores já evitam que seja eu a atender as pessoas», confessa a matriarca. As provas estão escondidas por baixo do balcão: livros e livrinhos de quem toda a vida vendeu fiado.
«É melhor nem somar. É a nossa caixinha das desgraças», sorri a sobrinha. Maria Júlia finge que não percebe. Sabe tudo o que se passa, dentro e fora da farmácia. «Antigamente, havia mais pobreza, mas também mais dignidade. Podia-se fiar, que as pessoas apareciam para pagar», comenta a matriarca, que não é a única a sofrer do bem da solidariedade. A «caixinha», como lhe chamam na Trofa, nasceu para acalmar a alma de todos, sobretudo de quem trabalha na farmácia. Que o diga Ana Sá, outra das farmacêuticas. «Quando estava a estagiar e chegava cá alguém que não conseguia levar a receita toda, ou por exemplo não conseguia comprar o antibiótico, eu ia lá dentro, à minha carteira, e resolvia. Um dia, o meu colega Luís explicou-me uma coisa simples: “Se fizeres isso muitas vezes, o teu salário não chega”».
«Olha, a Dona Carolina. Boa tarde». O cumprimento interrompe o diálogo. Há um silêncio inteiro salpicado pelos passos curtos da «Dona Carolina». Pequenina, a utente do costume quase não apoia os cotovelos no balcão. Não é preciso. «São cinco euros e treze», anuncia Joana. Mais silêncio. Carolina dá trocado, mas continua a mexer na carteira. “Plim. PlimPlim-Plim. Plim”. A caixinha respira de alívio. «Deito sempre para ajudar as pessoínhas que precisam», justifica a utente antes de sair. Joana sorri: «A Dona Carolina ajuda sempre e é uma senhora necessitada. Sabe, as pessoas que menos têm são aquelas que mais ajudam. Dizem-me sempre: “Um dia posso vir a ser eu a precisar”».
paga as contas na farmรกcia!
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farmácias reais
dignitude
GUERRA À POBREZA NO MEDICAMENTO
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Texto de Filipe Mendonça | Fotografia de Carlos Jorge Monteiro
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Ajudar meio milhão de portugueses com dificuldades económicas, nos próximos três anos, a levar para casa todos os medicamentos de que precisam. É este o objectivo da Associação Dignitude. As experiências-piloto arrancam em 2016 e vão beneficiar, pelo menos, 10 mil pessoas.
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mil pessoas no primeiro ano. O ABEM será financiado através das contribuições de empresas e de todos os cidadãos que queiram participar. Os beneficiários serão referenciados pela Segurança Social, as misericórdias, outras IPSS ou mutualidades.
O sistema assegura o anonimato e a dignidade das pessoas. É o contrário de um modelo de farmácias para pobres e outras para quem pode pagar os medicamentos
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eio milhão de portugueses deverão vir a beneficiar do trabalho da Associação Dignitude, contituída em Coimbra no dia 4 de Novembro. «O nosso objectivo é combater, sem tréguas, qualquer discriminação dos portugueses no acesso ao medicamento, bem como a exibição de caridade no sector». Foi desta forma que o Presidente da ANF resumiu, na cerimónia de criação da Associação Dignitude em Coimbra, o novo desígnio de responsabilidade social das farmácias. Num país onde um em cada quatro medicamentos prescritos não é levantado e cerca de dois milhões de pessoas vivem no limiar da pobreza, nasce uma IPSS com a missão de gerir o programa ABEM, um fundo permanente e solidário, destinado a comparticipar a aquisição de medicamentos nas farmácias por parte dos cidadãos com necessidades económicas. Ao lado de Paulo Cleto Duarte, homens e mulheres que marcaram a sociedade portuguesa em geral e o sector da saúde em particular. António Ramalho Eanes respondeu ao convite para embaixador da Associação Dignitude com uma pergunta. «Como poderia eu, que tanto tenho escrito e defendido o papel da sociedade civil no diálogo exigente e significativo com o Estado, que tanto tenho apelado à responsabilidade social de todos, recusar a colaboração à Dignitude?» Ao antigo Presidente da República juntaram-se, como embaixadores, António Arnaut, Francisco Carvalho Guerra, Maria de Belém Roseira, Odette Ferreira, João Cordeiro e João Silveira. A Dignitude é uma IPSS promovida em parceria pela ANF, a Apifarma, a Cáritas e a Plataforma Saúde em Diálogo. As experiências-piloto arrancam em 2016 e objectivo passa por chegar, pelo menos, a 10
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entrevista
a primeira pedra do sns
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Entrevista de Carlos Enes | Fotografias de Carla Bessa
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entrevista
«QUANDO APARECEU A CORRUPÇÃO, VIM-ME EMBORA» Farmácia Portuguesa – O que o levou, em 1983, a abandonar a política? antónio arnaut – Foi quando a política deixou de ser um dever cívico e passou a ser uma carreira, ou um carreirismo, que é pior. Vieram os carreiristas, os medíocres.
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FP – Já havia a corrupção que por aí vai hoje? AA – Não, não era tanta, agora é uma coisa asfixiante. Quando apareceram os fumos de corrupção, mesmo dentro dos próprios partidos, pensei: «Devo ficar aqui a lutar contra o meu próprio partido, ou devo desertar da luta?». Ponderei isso, profunda e dolorosamente. Não tenho vocação para lutar contra o meu próprio partido. Gosto de lutar contra os meus adversários, que aliás respeito, gosto desse combate democrático. Mas eu não tinha capacidade de adaptação à intriga e a essas coisas. Um homem, realmente, não pode estar no meio das chamas sem se queimar. As chamas acabam por chamuscá-lo.
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Então, sacudi o pó dos sapatos e vim-me embora. Mas continuei a desenvolver a minha actividade política do ponto de vista ético e cívico, até criticando o Partido Socialista quando era caso disso. FP – Presumo que tenha sido uma decisão angustiante. AA – Eu trato isso no meu romance Rio de Sombras. Quando eu saí da política por essas razões, que me deixaram uma ferida profunda, ainda não cicatrizada, desabafei com o Miguel Torga. E ele disse que eu tinha de escrever sobre isso, que seria um relato importante para o país, uma coisa de proveito e indicação ética para o rumo que o país devia tomar. Eu resisti: «Não, eu não vou falar do que se passa no interior do meu próprio partido, como não falo do que se passa na minha família». Então, o Torga insistiu: «Se é assim, conte isso em ficção». E eu andei 20 anos para escrever o romance. Regressei à advocacia, tinha muito trabalho. Enquanto estive na política não advoguei, porque acho
que é moralmente incompatível. FP – Na sua biografia há um episódio que me intriga profundamente: 1 de Março de 1959, o senhor ainda não tinha sequer acabado o seu curso… AA – Acabei em Julho. FP – Precisamente. Tinha 23 anos e atreveu-se a subscrever a célebre Carta dos Católicos a Salazar, contra os métodos da PIDE. Diga-me, sinceramente, não temeu sofrer represálias, até físicas? AA – Claro que sim. Já tinha sido incomodado pela PIDE. Colaborava no República, já tinha tido avisos. Só não fui preso porque o presidente da câmara de Penela era meu amigo e intercedeu por mim. FP – Então, não pensou duas vezes antes de se meter naquilo? AA – Não! FP – Está bem que ainda devia ser um jovem, um homem solteiro… AA – Não. Eu casei em Abril.
«Eu vivo tranquilamente porque nunca quis fazer mal a ninguém, fiz sempre aos outros o bem que pude»
amnistia, porque aquilo ameaçava tornar-se num grande escândalo. Eu na altura era católico, deixei de o ser na Guerra Colonial.
FP – Foi arguido nesse processo... AA – Mas lá surgiu uma
FP – Era o Che Guevara da época, é isso? AA – Um Che Guevara, um
FP – Esse é outro ponto interessante. Como é isso de dizer que perdeu a fé, mas continua a ser um «cristão agnóstico»? AA – Porque Jesus Cristo foi um profeta dos valores da dignidade humana, da civilização. Foi um revolucionário, um revolucionário!
Mandela, um Luther King, mas noutro patamar, mais elevado. Porque, há dois mil anos, imagina o que terá sido dizer que é mais fácil um camelo passar no buraco de uma agulha do que um rico entrar no reino dos céus? Aquele Sermão da Montanha, o sermão das Bemaventuranças, é um sermão revolucionário. A minha admiração por Cristo não se esvaiu por ter perdido a fé. FP – O que perdeu foi a crença na reincarnação? AA – Isso não sei se existe, mas vivo tranquilamente, sem nenhum problema metafísico. E
vivo tranquilamente porque nunca fiz mal a ninguém, nunca quis fazer mal a ninguém, fiz sempre aos outros o bem que pude. Eu sinto-me muito tranquilo com isso. A doutrina social da igreja é muito próxima do socialismo e dos valores maçónicos. FP – Mas deixou de acreditar no espírito? AA – Não, não, o espírito é outra coisa. Nem deixei de acreditar no sagrado. Por exemplo, a poesia é sagrada. O amor é sagrado. A verdade é sagrada. Eu tenho é um conceito de sagrado diferente dos crentes em sentido estrito. O crente acredita que
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FP – Então, ia oferecer à sua mulher, como abertura de uma vida em comum, uma temporada na cadeia? AA – (Ri-se) Oiça, oiça: Já em 1958, a minha mulher e eu ganhámos as eleições na nossa freguesia, com o Humberto Delgado. Portanto, eu assumi o risco, que era um risco relativo. Aquela carta surgiu na sequência da carta do Bispo do Porto. Tivemos um processo por crime contra a segurança interna e externa do Estado.
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entrevista há um Deus que lhe vai pagar o bem que fez através da salvação. Eu, não. Muitos crentes às vezes procedem de certo modo com o objectivo de virem a obter mais tarde uma recompensa. FP – A mercadejar a fé. AA – Também há muitos crentes com outra postura. Sabe que a fé não exclui a razão. Mas a razão, escavada até ao fundo da nossa consciência, pode excluir
a fé nesse sentido mais corrente. Eu tenho fé, mas é fé no homem, fé numa sociedade melhor, fé no devir colectivo.
nenhuma incompatibilidade entre valores cristãos, socialistas e maçónicos. Mas a utopia é que move o Mundo.
para ir à missa. E como uma luz de uma vela que se apaga, mesmo sem haver brisa, concluí que não tinha razão nenhuma para ir.
FP – No momento em que conseguiremos ser uma fraternidade. AA – A utopia maçónica é justamente a criação da fraternidade universal. Tenho fé em que a sociedade marchará para patamares cada vez mais elevados de dignidade e igualdade. Não há
FP – O que aconteceu na Guerra Colonial de modo a provocar essa alteração em si? AA – Não sei precisar, mas até já escrevi sobre isso. Estive um ano em Ambrizete, sempre a ir à missa. Um dia, já em Nambuangongo, levantei-me
FP – Mas houve algum episódio de guerra traumático? AA – Não, nada. Simplesmente, perdi a fé. Talvez tenha havido circunstâncias, mas nenhuma que eu possa isolar. Sabe, nós somos movidos por águas interiores, de que às vezes não nos apercebemos, mas que explicam os movimentos à tona da água. E eu perdi a fé como uma vela que se apaga. Mas não tenho problema nenhum. Sou igual, sou o mesmo. Só não vou à missa.
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FP – Como entrou para a Maçonaria? AA – Foi por convite do Fernando Vale, médico e meu mestre, em 1972, que muito me honrou. Ele já me tinha levado, em 1965, para a Acção Socialista.
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FP – Pode explicar a um profano o que um homem precisa de fazer, o que muda na sua vida, qual é a construção, para chegar a Grau 33 e a Grão-Mestre do Grande Oriente Lusitano? AA – Acreditaram em mim, ter-me-ão reconhecido algum mérito. O mérito que eu tive foi o de acreditar no futuro, que podemos melhorar a vida das pessoas, acreditar que é possível reduzir as injustiças e as desigualdades, já não digo acabar com elas. Foi sempre esse o rumo da minha vida, tanto no Partido Socialista, como na Doutrina Social da Igreja, como na Maçonaria. Eu sou assim antes de qualquer coisa, talvez por ser poeta, o poeta tem uma certa sensibilidade. Eu acredito que é possível mudar o Mundo, acredito na dignidade intrínseca profunda da pessoa humana. É por isso que sou contra as injustiças, as prepotências, a exploração do homem pelo homem. FP – Portanto, o menino da Cumieira é anterior a essas
opções todas e explica o seu percurso. AA – Sim, sim. Precisamente. FP – Mas foi precoce, mesmo para a época. AA – Comecei a assinar o jornal República com 14 anos. Havia gente que ia para a escola descalça. E gente que morria sem dinheiro para chamar um médico. E eu pensava: Isto não está certo. E quando comecei a ver que as coisas não estavam certas, comecei a rebelar-me. Comecei a ler muito e a ser o que sempre fui: republicano, socialista. FP – E revolucionário, não é? AA – Sou revolucionário pela palavra. Aliás, quando apresentei o projecto do SNS na Assembleia da República, chamei-lhe revolucionário, porque ele queria transformar radicalmente o que existia.
FP – Já a comparou à peste negra. AA – Sim, escrevi isso sobre este neoliberalismo selvagem que nos ataca. Eu defendo a
«A liberdade desacompanhada da igualdade permite sempre o abuso do fraco por parte do forte. Só há liberdade entre iguais» que acham que cada um deve ter a liberdade de morrer sem tratamento médico, querem um sistema em que os fortes passem à frente dos fracos. FP – O senhor continua a ser dos maiores defensores de um serviço público de saúde. AA – Estarei sempre na primeira linha desse combate. A concepção dos neoliberais é a de que o Estado se deve afastar de todas as prestações sociais, deve deixar tudo ao mercado. Na saúde, por exemplo, admitem que o Estado tenha umas coisinhas mínimas para os muito pobres. Eu não aceito isso, nem me resigno, porque não defende a
dignidade das pessoas, que só pode ser garantida pela igualdade no acesso. Eles entendem que a saúde é um negócio, que é uma mercadoria, quem tem dinheiro que a pague. Essa concepção é aviltante para a dignidade humana. Só um Estado forte pode garantir igualdade de direitos fundamentais. Depois, a partir desse patamar, já é possível que o mérito e as capacidades de cada um ditem algumas diferenças, mas sem ferir a dignidade de ninguém, nem esse equilíbrio entre todos. Felizmente, há a direita social. Veja o Papa Francisco, que diz que esta economia mata. FP – E o senhor não se conforma. AA – Jamais. Hoje o que conta é o ter, não é o ser. Já os meus avós me diziam: «Filho, olha que vale mais o ser do que o ter». Procurei conduzir-me por esses valores. Eles não dão é o resultado material que muitos ambicionam. Nunca precisei disso. Sinto-me rico porque tenho
muitos amigos. Mas olhe que há muitas pessoas como eu, não são é conhecidas. Repare no caso do João Almiro, que fez aquela obra extraordinária e fora da terra dele quase ninguém sabia. FP – O que o marcou mais na vida pública? AA – Há dias pediram-me para fazer esse exercício, de escolher os três grandes momentos da minha vida. Pondo de parte os filhos e as coisas familiares, que reservo para a intimidade, os momentos luminosos da minha vida, por ordem, foram estes: a fundação do Partido Socialista. Chorei. A aprovação da Constituição. E a aprovação da Lei do Serviço Nacional de Saúde. FP – Mas o senhor teve grande protagonismo noutras coisas importantes, como por exemplo chegar a Grão-Mestre… AA – Tive e tenho grande honra nisso, mas não teve a mesma importância.
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FP – O problema é que a corrupção e o tráfico de influências são fenómenos que também atingiram a Maçonaria. AA – A Maçonaria devia ser o último reduto em que a fraternidade pudesse ser infiltrada por outras lógicas. Aconteceu depois do 25 de Abril o que já tinha acontecido após a proclamação da República. Para se aceder a um cargo político era importante ser da Maçonaria. Disso resultou a entrada na Ordem de pessoas que não tinham preparação. Houve menos cuidado na selecção das pessoas. Hoje há várias maçonarias e não podemos falar delas por igual, embora o que se passa em cada obediência afecte as outras. Mas isto é produto do tempo. Vivemos um tempo em que os valores da dignidade humana foram postos de parte por esta corrente negocista, egocêntrica.
igualdade de todos perante a lei e a comunidade, a igualdade no acesso aos direitos fundamentais, de acesso à educação, à saúde, à cultura. Por isso defendo um Estado social de direito, forte e interventivo. Porque a liberdade desacompanhada dessa igualdade permite sempre o abuso do fraco por parte do forte. Só há liberdade entre iguais. Não basta falar da liberdade dos mercados, de capitais. A liberdade do homem só se garante pelo respeito dos seus direitos fundamentais. Aqui é que se faz a clivagem entre direita e esquerda. Uma certa direita, do neoliberalismo, valoriza apenas a liberdade. Criticam o Obama por-
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entrevista
«O SNS FOI UMA TEIMOSIA MINHA»
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Entre 23 de Janeiro e 29 de Agosto de 1978, PS e CDS reuniam-se à mesa do Conselho de Ministros. A criação do Serviço Nacional de Saúde deu cabo do Governo.
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FP – Como é que o senhor inventou o Serviço Nacional de Saúde em sete meses como ministro? AA – É preciso conhecer a realidade do país e é preciso querer mudá-la. Na minha aldeia morriam pessoas porque não tinham dinheiro para procurar um médico. Conhecendo a realidade do país, através do espelho social que era a minha aldeia, tendo eu sensibilidade e desde sempre sido um rebelde contra as injustiças sociais, tinha de fazer o que pudesse. Mas não «inventei» o SNS. O SNS era uma grande e antiga aspiração do povo português. Podemos dizer, para não recuarmos mais, que começou em 1961, com o Movimento das Carreiras Médicas, pedra angular de um serviço público de saúde. Depois do 25 de Abril, ficou previsto no artigo 64º da Constituição. Eu fui deputado constituinte e tinha a sensibilidade social de querer ajudar a mudar o Mundo, porque sou um poeta.
FP – Teve de vencer muitas resistências? AA – Quando eles viram que o António Arnaut não era um político, no sentido corrente da palavra, era um rapaz que vinha de uma aldeia, conhecia o sofrimento do seu povo e estava apostado a atenuá-lo, então começaram a ter medo. E começaram, realmente, com intrigas. Dentro do meu próprio partido começou-se a recear que o António Arnaut fosse –como foi! – uma causa de perturbação da boa harmonia, da paz podre da coligação e do poder. FP – Imagino que houve muitas pressões… AA – Houve, de muitos sectores conservadores e, na altura, especialmente da Ordem dos Médicos, que era presidida pelo Gentil Martins. O CDS disse que não podia ser, que era uma reforma demasiado socialista, que não aguentava aquela reforma. FP – O senhor sentiu que tinha de se impor politicamente? AA – Não só senti como disse ao Mário Soares: «Isto é um ponto de honra do Programa do Governo». Ele, a certa altura, disse-me: «Arnaut, tem calma, vai com calma, porque poderá
haver problemas». E eu disse ao primeiro-ministro, isto é, disse ao meu amigo Mário Soares: «Mário, o SNS é um ponto de honra do programa do Governo e do Partido Socialista. E isso é contigo. Mas também meu, comigo próprio. A mim ensinaram-me a respeitar a palavra. A palavra dada é a palavra honrada. Eu não mudo uma linha. O programa do Governo ou é para cumprir ou eu vou-me embora». FP – Sentiu resistências no seu próprio partido? AA – O Partido Socialista nunca teve dúvidas. A pedido do Mário Soares, tive uma reunião com o Freitas do Amaral, aliás muito cordata. Nas suas memórias políticas, ele diz que ficou com muito boa impressão minha, mas que eu estava intransigente. Ele queria que eu pusesse o SNS na gaveta, mas eu não pus na gaveta. E por essa razão, em Julho, o CDS abriu uma crise e retirou do Governo os três ministros que lá tinha (Rui Pena, Sá Machado e Basílio Horta) e que, aliás, apoiavam o SNS. FP – Eles apoiavam? AA – Apoiavam, apoiavam! O Freitas do Amaral até me disse na altura: «Oh, Arnaut, eu concordo consigo, mas o CDS acha que é uma reforma muito socialista, tenho sectores que não a admitem». E eu respondi: «Também eu tenho, alguns sectores. Mas isto não é uma reforma socialista. Se você quer dar-lhe um nome, então ponha socialista-cristã». Eu disse isso com sinceridade. A doutrina social da Igreja não se afasta do socialismo democrático. FP – O anteprojecto subiu a Conselho de Ministros. AA – E foi aprovado, numa primeira leitura, com algumas sugestões que eles me fizeram. O ministro das Finanças, por exemplo, levantou o problema das despesas. Todos os ministros das Finanças são assim, preocupam-se com os números
e com estatísticas, não se preocupam com as pessoas. Eu tomei nota das sugestões de todos e o anteprojecto ficou de voltar a Conselho de Ministros para ser definitivamente aprovado. Mas antes dessa segunda reunião o CDS abriu a crise, precisamente para impedir a aprovação do SNS em Conselho de Ministros. FP – É quando o senhor faz um despacho. AA – Fiz um despacho, o Serviço Nacional de Saúde foi criado por despacho! E esteve em vigor muitos anos, enquanto a lei não foi regulamentada. O Governo caiu. Eu era deputado. Regressei à Assembleia da República e apresentei o mesmo diploma como projecto de lei do Partido Socialista, assinado pelo Mário Soares, pelo Salgado Zenha em nome do Grupo Parlamentar… FP – O Governo caiu em Agosto e a Lei do SNS é de 15 de Setembro. AA – Foi logo a seguir. Eu não desistia. Na conversa com o Freitas do Amaral usei isso como último argumento: «Eu levo isto à Assembleia da República e é aprovado porque o projecto tem maioria». Incrédulo, ele perguntou-me, «tem maioria, como?». «Porque o PCP vota a favor!». FP – Surpresa! AA – Nas suas memórias, o Freitas do Amaral diz qualquer coisa como: «Foi como se me tivessem lançado sobre a cabeça um balde água fria». FP – Mas ficaram amigos. AA – Ele faz-me as melhores referências nesse livro, tenho muita estima por ele, somos amigos. O SNS foi aprovado com os votos do PS, PCP e do deputado da UDP. O PSD, o CDS e os deputados independentes da ASDI votaram contra. O Sakellarides disse há tempos uma coisa muito bonita, que o SNS se deve a uma «teimosia» do António Arnaut. Foi graças a essa teimosia, ao respeito pela palavra dada, ao sentido do dever.
FARMÁCIA PORTUGUESA
FP – Sentiu que era tudo ou nada? AA – O Mário Soares convidou-me primeiro para ministro da Justiça, estive três dias a fazer o programa de Justiça, já tinha até gizado a criação de um Serviço Nacional de Justiça. Com a evolução do processo de formação do Governo, acabou por me convidar para uma pasta como aquela. Eu ainda lhe disse: «Saúde? Mas eu disso não sei». _ «Ora, tu resolves o problema, convidas um bom secretário de Estado», foi o único conselho que ele me deu. E eu convidei um bom secretário de Estado da Saúde, que foi o Dr. Mário Mendes, médico e professor aqui de Coimbra, meu amigo e camarada, que tinha estado no Movimento das Carreiras Médicas. Para me convencer, o Mário Soares até apelou à minha consciência e aos meus princípios socialistas. É evidente que, sendo nomeado para uma pasta que até se chamava Ministério dos Assuntos Sociais, inscrevi no programa do Governo o Serviço Nacional de Saúde.
FP – Mas os programas normalmente não se cumprem e há sempre uma desculpa. AA – De facto, em termos normais, essa promessa não teria sido cumprida. O CDS estava connosco no Governo e bateu palmas quando, no debate da apresentação do programa do Governo, eu falei na criação do SNS. Mas o CDS - e porventura outras pessoas - julgavam que aquilo era só para ornamentar o programa, que era uma coisa bonita. Quando, um mês depois, apresentei o anteprojecto numa conferência de imprensa, a promessa tornou-se uma coisa concreta. E aí foi o Carmo e a Trindade, tremeu o Palácio de S. Bento e tremeu a sede do CDS no Largo do Caldas.
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entrevista
«Sou contra farmácias para o laboratório, para conspirar. Naquela época, as farmácias eram locais de convívio e de tertúlia. Eu tive essa vivência. FP – Deixe-me agora entrar num tema que lhe é caro. Desde o ano 2000, fecharam 75% das escolas primárias, 70% das urgências básicas, metade das extensões dos centros de saúde e já um terço dos postos de correio. AA – E agora ponha aí os tribunais.
FARMÁCIA PORTUGUESA
FP – O facto de as farmácias ficarem lá, nas terras onde fecha tudo, não está a dar-lhes uma nova responsabilidade? AA – Sim – e muito importante, muito importante. A farmácia é a primeira linha de cuidados de saúde. Antigamente acontecia muito, mas ainda agora as pessoas vão ao farmacêutico aconselhar-se. Porque a farmácia vai a todo o lado, há aldeias que têm farmácia. Há quase três mil farmácias no país. A farmácia é a mão longa do SNS.
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FP – No discurso que fez, quando lhe foram atribuídas as Insígnias da ANF, contou que foi um farmacêutico a ensinar-lhe a palavra Democracia. Contenos lá essa história. AA – O farmacêutico de Avelar, o senhor Medeiros. Eu era puto e ia de bicicleta da minha aldeia, a Cumieira, comprar o jornal ao Avelar. Comecei a estudar lá, porque um sobrinho do senhor Medeiros, que era médico, tinha lá um colégio. Se tivesse de ir para Coimbra não teria tido essa possibilidade. Depois, já com uns 14 anos, ia à farmácia comprar álcool perfumado, que ele fazia, para fazer a barbicha. Aviava muitas receitas para
gente da minha aldeia. Eu aprendi muito cedo a dar injecções, porque o médico receitava muitas, e não havia ninguém que as desse. O senhor Medeiros puxava muito por mim, gostava de mim. Falava e via que o rapaz estava interessado em saber coisas, até em saber o que era a Democracia. E mais tarde, nos fundos da farmácia, onde ele tinha o laboratório, fizemos muitas reuniões da oposição. FP – Também recordou que ouvia as emissões da BBC numa farmácia. AA – Sim, na Farmácia Carmo, do Espinhal. Antes do 25 de Abril, a malta entrava lá para trás,
FP – Acha que valerá a pena aproveitar a rede de farmácias para fazerem mais serviços, designadamente aos doentes crónicos? AA – Não tenho uma opinião formada. Os centros de saúde também estão acessíveis hoje, embora em certos casos não haja médico de família. As farmácias já têm serviços. A farmácia do meu bairro, em Santa Clara, tem lá o aparelho de medir a tensão, faz o controlo da diabetes, dá muitas injecções. No ano passado até fiz lá a vacina da gripe. Por outro lado, sei que há negociações para alguns medicamentos das farmácias hospitalares poderem ser distribuídos nas farmácias de oficina.
FP – Choca-o que os farmacêuticos participem activamente em programas de saúde pública e campanhas de vacinação? AA – Não. Acho importante que participem. Eu valorizo o acto farmacêutico. O acto médico é o acto médico, mas há o acto farmacêutico. FP – O que o levou a aceitar ser embaixador da Associação Dignitude? AA – Não foi nada difícil, quando conheci os objectivos. Até disse logo que é uma palavra muito bem achada, porque conjuga a dignidade com a virtude cívica da solidariedade. Tem a ver com todos os meus valores, contribuir para o respeito da dignidade humana. As pessoas que não
Anteprojecto de Lei de Bases do SNS, doado por António Arnaut ao Museu da Farmácia. A documentação inclui as anotações manuscritas feitas pelo autor da opinião de vários ministros. Essa informação, de grande relevância para a História do SNS, só poderá ser consultada a partir de 2020.
para pobres» têm acesso ao medicamento por carências económicas vão passar a ter esse acesso, mas de uma forma digna, porque esse acesso é feito sem que o utente seja humilhado, sem que o medicamento tome o aspecto de uma esmola. A pessoa vai à farmácia e ninguém sabe se é beneficiária ou não. FP – Para o senhor não faz sentido haver uns balcões de farmácia para os pobres e outros para as outras pessoas? AA – Não, não! Toda a filosofia do SNS é contrária a isso.
«Sempre houve homens que não se bandearam nem perverteram, conservando, intactos, a alma e o carácter». O advogado Ademar Lopes deve ter pesado cada uma das palavras como se fossem pedras firmes. «O que importa são esses e não os outros. A democracia vive dessa minoria, dessa elite», argumentou ainda. Não estava em alegações no tribunal, mas a tentar a causa mais difícil: convencer o amigo Afonso Mendonça a regressar à política. O apelo foi dramático e a resposta negativa, mas sentida. «Ficar fora da política não significa renunciar aos nossos valores. Pelo contrário, significa que os quero aplicar aqui, no concreto, em contacto com o povo. Aqui sei que sou útil», declara o jovem clínico-geral. Para o médico de província, que havia sido deputado pelo PS na Assembleia Constituinte, tratar os doentes e «intervir civicamente» pela palavra seriam as suas novas formas de fazer política. Animava-o o exemplo do director do centro de saúde. «Só pelo SNS valeu a pena o 25 de Abril», costumava dizer o doutor Américo. E este “só” era quase tudo. «E pela liberdade» - respondia Afonso - «foi o que ficou, por enquanto». Afonso e Américo, antes da Revolução, já atendiam de borla a maioria dos doentes, gente pobre do campo. Com o SNS, passaram a poder fazê-lo «sem a humilhação de dar uma esmola aos que não podem pagar». Os dois exercem em dedicação exclusiva e não têm mãos a medir. O romance Rio de Sombras
(Coimbra Editora, 2007) é o testamento político de António Arnaut. Está escrito com o sangue de muitas feridas desse capítulo de vida. O carreirismo, a corrupção, o tráfico de influências, a intriga, a funcionalização dos deputados, a traição pura e dura, fenómenos com os quais Afonso Mendonça se recusa a conviver. Para regressar, «teria de transigir com muita porcaria». O deputado que comprou o lugar por uma centena de contos, os discursos plagiados e vazios, o empreiteiro feito com o presidente da câmara e o líder da oposição, o concurso de encomenda para o financiador do partido, jornalistas a soldo e ciladas montadas com prostitutas entre camaradas. «Toda a baixeza moral me repugna», grita o médico, na cara de um militante do PCP que lhe quis revistar o carro nos tempos do PREC.
Mal sabia ele que tornaria muitas vezes a sentir esse nojo. António Arnaut já publicou três dezenas de livros de ficção, poesia, ensaio e intervenção cívica. Também se sente no Rio de Sombras a força, impressionante, dos valores que lhe aquecem a alma como a luz do Sol. A defesa da dignidade de todos os cidadãos e do próprio carácter iluminam-no, na obra como na vida. «Não contavam com a minha firmeza», diz Afonso Mendonça no livro. Sente-se que é António Arnaut a responder a quem ousou tentar desviá-lo do caminho. O SNS, por exemplo, esteve quase para ir parar à gaveta, mas estava lá ele. «Foi um acto de irrazoável teimosia», escreveu Constantino Sakellarides. Mas António Arnaut «soube entender o país que nos estava sonhando». CE
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FP – Para terminar, tenho uma notícia para si. Esta entrevista vai ser transcrita na norma ortográfica anterior ao acordo, como os seus livros. AA – Eu escrevo pela antiga ortografia, ou seja, pela verdadeira ortografia. Não sou um fundamentalista, mas acho que a língua portuguesa ficou desfigurada pelo novo acordo. Acho que o acordo devia ser revisto e assinei a petição para isso. A língua é um património, não há mal nenhum que haja divergências ortográficas, é próprio da riqueza da língua. Podemos ler Jorge Amado e José Saramago sem acordo ortográfico. Há coisas absurdas. Poderia dar mil exemplos, fico-me por um: recepção. Agora, caiu o “p”, mas o paradoxo disto é que os brasileiros dizem rece-p-ção. Vá lá, tivemos sorte. Ainda não caiu o “h” de homem.
UM HOMEM INTACTO
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aniversário
40 anos A história contada nas capas da revista Farmácia Portuguesa
A ANF celebrou 40 anos a primeira gala solidária As receitas do jantar serão apoio concreto à aquisição de com carências económicas. Beato, António Arnaut e João da ANF. Foram entregues apresentado o livro “Uma
Rede Humana, instalação vídeo de Cristina Massena
Texto de Nuno Esteves Fotografias de David Oitavém, Júlio Silva e Paulo Neto
Apresentação do livro “Uma História das Farmácias”
de serviço no dia 15 de Outubro, com anual do Programa ABEM. integralmente aplicadas no medicamentos por cidadãos Na cerimónia, no Convento do Almiro receberam as insígnias os Prémios João Cordeiro e História das Farmácias”.
Leitura da acta de atribuição das Insígnias da ANF a João Almiro e António Arnaut
aniversário
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Entrega dos Prémios João Cordeiro – Inovação em Farmácia
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No dia 15 de Outubro, a ANF completou 40 anos desde que foi formalizada. Mais de 500 pessoas marcaram presença no Convento do Beato, em Lisboa, para celebrar a data. O ambiente vivido foi de «discrição, ambição, realização e orgulho no passado», mas também de «compromisso com o presente e uma visão para o futuro», como referiu o presidente no discurso de encerramento da Gala Solidária. A relação de confiança e cumplicidade entre as farmácias e os utentes foi evocada pela instalação vídeo da responsabilidade de Cristina Massena, ao passo que a evolução do sector era representada pela exposição que reunia as capas da revista Farmácia Portuguesa. A atribuição das Insígnias da ANF ao colega João Almiro e a António Arnaut, exemplos de humanismo e solidariedade, marcou o final da tarde. Seguiu-se o lançamento do livro “Uma História das Farmácias”, pela voz de João Cordeiro, em que os autores Carina Machado e Paulo Martins colocam o passado em palavra escrita. Já de noite, no decurso do jantar, projectou-se o futuro,
com a entrega dos Prémios João Cordeiro – Inovação em Farmácia. Uma iniciativa que «premeia projectos ainda por realizar», destacou o presidente do júri, Diogo de Lucena. O grande vencedor foi o projecto que visa permitir a realização de dermatoscopias nas farmácias, de João Júlio Cerqueira e David Monteiro. Também foram distinguidas a iniciativa “Cura+”, de Joana Carvalho e Sara Baptista, na categoria de Responsabilidade Social, e a reportagem “Até Voares”, da jornalista Ana Leal, na categoria de Comunicação Social. Após o concerto do maestro Rui Massena, Paulo Cleto Duarte recordou todos os que deram seguimento à «obra colectiva» iniciada pelos fundadores e sublinhou «a força da união», bem como a ambição de «fazer das farmácias a rede de cuidados primários mais valorizada pelos portugueses». E porque muitos portugueses têm dificuldades no acesso ao medicamento, o presidente da ANF anunciou que a receita da Gala é a primeira do fundo solidário ABEM, da Associação Dignitude.
O maestro Rui Massena compôs um tema para o fundo solidário Abem, da associação Dignitude, a favor do qual reverteram as receitas da gala
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A MENINA D
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Texto de Carlos Enes | Fotografias de Carla Bessa
Farmacêutica, enfermeira, católica e monárquica. Maria Júlia Moreira Padrão nasceu numa família de profissionais de saúde habituados a assistir os outros sem pedir nada em troca. Nos anos 50, ela e a irmã pasmaram a Trofa com serviços ao domicílio de bicicleta.
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aria Júlia Dias Moreira Padrão queria ser médica. A vocação foi desviada à nascença, por quase não ouvir do lado esquerdo. «Não podes ser médica se ouves mal. Escolhe outra profissão», disse o pai à sua primogénita. Avelino Moreira Padrão, monárquico amargurado com o regicídio e os desmandos da República, punha tanta ciência na ética como nos diagnósticos, em regra infalíveis. Na Trofa, o médico dos pobres foi ele. Subia a toda a hora ao carro de cavalos para acudir aflitos em qualquer lado. Generoso de coração, céptico do mercadejar de
talentos e vocações, não levava dinheiro a quase ninguém. Avelino casou feliz com Isabel Aldegundes Moreira Padrão, filha de um médico da Batalha que reconhecia o estilo do genro de anos de prática. À elegância e educação sem falhas, a rapariga juntava uma saúde de ferro. Viveu 100 anos. Para desespero do cardiologista, «tomou até ao fim três cafés por dia», recorda Maria Júlia. A nossa Farmacêutica Com Vida ainda hoje não prescinde do seu café diário, nem do exemplo da mãe. Isabel tinha um talento invulgar para a música, era a melhor pianista de Leiria. Maria Júlia
aprendeu com ela. Foi orfeonista no Orfeão Universitário. «Talento verdadeiro era o da mãe». O seu descreve-o como de dose amadora. Acabou por praticar mais a pintura. É a mais velha de cinco irmãos, dois rapazes, um médico e outro engenheiro agrónomo, e três raparigas, todas Maria de primeiro nome. A casa de família ficava em Santiago de Bougado. A aldeia tinha uns 2 mil habitantes, era uma grande família. A porta principal abria-se aos pobres um dia por semana. Serviam-se de batatas, milho, hortaliças. Havia umas moedas quando era preciso. Em boa verdade,
Pão, batatas e hortaliças. Era assim que pagava, quem podia, os serviços farmacêuticos e de enfermagem domiciliários de Maria Júlia e a irmã
Maria Júlia foi o braço direito do pai. Para montar farmácia, esperou pela formatura da segunda farmacêutica da família: a irmã Maria José, dois anos e dois meses mais nova. «E mais bonita», recorda-a, com saudade. Abriram as portas da Farmácia Moreira Padrão em 1951, um ano após a morte do pai. O doutor Avelino aprovou o projecto em vida, com uma condição. «Já havia uma farmácia na Trofa. O meu pai disse-nos para não entrarmos em guer-
vanguardista. Montadas em bicicletas, dispensavam medicamentos e serviços de enfermagem ao domicílio. «Foi muito importante porque não havia enfermagem na Trofa, as pessoas não tinham quem as assistisse», relata. Faziam de tudo. Curativos, ligaduras. Lancetavam feridas e administravam injectáveis por via endovenosa. Quando apareceu a penicilina, puderam salvar muitas vidas. «Foi uma descoberta miraculosa. Eu própria tive uma in-
Maria Júlia, com um sorriso. Na verdade não saltou para um burro, mas para uma bicicleta. Mas essa corrida não começou logo. Nos primeiros cinco anos, a farmacêutica e enfermeira
ras comerciais, que deveríamos ser simpáticas e colaborantes». E assim foi, como estava escrito. As duas irmãs criaram um serviço farmacêutico, na Trofa dos anos 50, que ainda hoje seria
fecção no ouvido que rebentou por dentro e tratei-me com ela», relembra. Maria Júlia e Maria José saíam pelas aldeias de bicicleta, muitas vezes revezavam-se nas
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naquele tempo a economia de subsistência triunfava sobre a pobreza. Estávamos no auge do minifúndio do Minho religioso: a cada homem um pedaço de terra, a todos a virtude da caridade e o dever da partilha. «Toda a gente tinha o seu quintal e plantava as suas coisas», relata Maria Júlia. Havia vacas e bois à solta pelos caminhos e para beber água as manadas sabiam ir dar ao rio. Seguindo a vontade do pai, Maria Júlia graduou-se em 1945 na Faculdade de Farmácia do Porto. Aos 22 anos, servir os outros já era uma vocação irreprimível. O pai, um exemplo diário
disso. Quis ajudá-lo na administração de vacinas e injectáveis. E ele, sempre rigoroso em assuntos profissionais, «fez questão que tirasse Enfermagem». No último ano da licenciatura, inscreveu-se na Faculdade de Medicina do Porto e tirou simultaneamente o curso de enfermeira visitadora. Na Faculdade de Farmácia, o Professor Borges nem queria acreditar no que via. «Dizia que uma farmacêutica ir fazer de enfermeira era como saltar de cavalo para burro», cita
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corridas. «Nesse tempo, não havia horário de trabalho. Aplicávamos injecções de penicilina de quatro em quatro horas. Enquanto uma descansava, a outra ia». Durante a noite, preparavam medicamentos manipulados, sem interromper os domicílios. «Não havia medo. Nunca tivemos um mau encontro, de dia ou de noite». Belos tempos. «Éramos as meninas da farmácia, as pessoas respeitavam-nos muito». Hoje parece impossível, mas não cobravam um centavo pelos serviços ao domicílio. Quem podia oferecia géneros, como batatas, pão e hortaliças, que às meninas da farmácia não sobrava tempo para semeaduras. Maria Júlia, 92 anos festejados em 3 de Dezembro, vive por cima da farmácia e trabalha todos os dias. Acompanha a gestão financeira e faz ela própria os pagamentos a fornecedores. «Enquanto eu puder, é melhor assim. A gente sente-se melhor a gerir o que é seu, sobretudo em tempos tão difíceis como estes». Um cancro maldito roubou-lhe a irmã há dez anos. Mas a família deu-lhe outra parceira. Tem uma sobrinha neta licenciada em Ciências Farmacêuticas ao balcão. Maria Júlia cumprimenta todos os clientes, mas a equipa evita que se dedique ao atendimento. Não é que não desse conta do recado com o profissionalismo de sempre, nada disso. O problema é que todos os dias dispensava a fiado. As pessoas abusam e os tempos não estão para isso. Maria Júlia seguiu as pisadas do pai e defendeu a Monarquia nas listas do Partido Popular Monárquico. «Tenho o bichinho da política, não consigo ficar alheada dos problemas do país». Vota sempre, até nas presidenciais. «Voto no melhor para Portugal, embora preferisse um Rei, educado para isso». É amiga de D. Duarte Pio, que a ajudou a instalar a Caixa de Crédito Agrícola na Trofa. Católica, participou sempre nas obras da Igreja.
Ajudou a fundar um lar de idosos e a instalar o quartel dos bombeiros. Era viciada nos congressos da Federação Internacional dos Farmacêuticos, onde conheceu João Almiro. Maria Júlia é uma excepcional conversadora. Com ela, não se dá pelo tempo a passar. Fala de
tudo com exactidão e um sorriso, sem nunca exagerar na dose. Goza de boa saúde, até nisso sai à mãe. Come de tudo, até um bom sarrabulho, com o seu copo de vinho. É mais regrada com a televisão. Fica-se pelos noticiários e um ou outro programa de política. Vai ao café, gosta de
caminhar um pouco todos os dias. Quando lhe perguntámos o segredo de uma longevidade tão lúcida, responde sem hesitar que o trabalho é o melhor dos remédios que conhece nesta vida. «A mãe dizia muitas vezes: “Não parar! Parar é morrer!”. E é verdade».
monaf
Actual e necessário No dia 20 de Novembro completaram-se 30 anos desde a criação do Monaf - Montepio Nacional das Farmácias, nascido com o duplo objectivo de apoiar os farmacêuticos e as suas famílias tanto ao nível previdenciário como de financiamento da sua actividade profissional.
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Texto de Carina Machado | Fotografias de Paulo Neto
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O fecho destas três décadas e o arranque
mais novas sabem que o sistema de pen-
de um novo ciclo, que se pretende de outras
sões não irá cumprir no futuro as promes-
tantas, foram assinalados com uma pales-
sas feitas no presente».
tra proferida pelo banqueiro António Horta
O presidente deixou também uma alfineta-
Osório, considerado um dos mais brilhan-
da no «desajustado tratamento fiscal em
tes economistas e gestores do mundo, a
sede de IRS das quotizações do Plano de
que se seguiu um jantar convívio com os
Previdência do Monaf, praticamente inexis-
associados, no Palácio da Foz, em Lisboa.
tentes quando confrontadas com as dedu-
João Silveira, que preside à instituição, re-
ções para a segurança social do Estado, ou
lembrou neste aniversário o espírito solidá-
com alguns planos de poupança privados».
rio que inspirou a fundação do Monaf e de-
A terminar o balanço dos 30 anos de ac-
fendeu que hoje, mais do que nunca, se jus-
tividade do Monaf, João Silveira destacou
tifica a sua existência e o seu objecto, pe-
a forma sustentada como este cresceu.
rante a insustentabilidade da Segurança
Aos cerca de 3 mil associados, agradeceu
Social tal qual está actualmente desenha-
a confiança e enalteceu o trabalho com-
da. No seu entender, e dada a demografia
petente de colaboradores, técnicos e con-
do país que mostra um envelhecimento po-
sultores. Um último sublinhado à colabo-
pulacional acentuado, «temos que avançar
ração institucional da ANF e da Ordem dos
rapidamente para um modelo que obrigato-
Farmacêuticos e ao apoio das instituições
riamente garanta uma base digna de valor
bancárias e financeiras. «Vivemos tempos
de pensão, deixando liberdade a cada um
de mudança, recheados de incógnitas e in-
de investir em planos complementares».
certezas. Mas há uma certeza que temos: é
Caso contrário, estará posta em causa a
que o futuro depende muito mais de nós do
«coesão intergeracional, pois as gerações
que dos outros», concluiu.
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efeitos esentes, eremos alentes jetivo a ira fase
her em da metamenopausa am esta vas que mentos antideoutros. querem onaram secunzes diulheres aturais) motores diovasa comà nossa ogénios a E, A e dados e
PublirePortagem
PublirePortagem
MÁrIO SOUSA
ESPECIALIStA EM GINECOLOGIA E OBStEtríCIA
Bem-estar e qualidade de vida na menopausa O impacto da menopausa na mulher portuguesa não é em nada diferente ao das mulheres ocidentais, assim se a menopausa é sintomática a presença destes sintomas pode alterar o seu comportamento no dia-a-dia, pois o aparecimento de calores, suores, irritabilidade, ansiedade, dificuldade de concentração e de memória, alterações do sono, astenia, adulterações da sua imagem corporal e a secura vaginal que se instala alterando a sua vida sexual, têm quando presentes um impacto negativo na vida da mulher diminuindo a sua qualidade de vida. Quando a mulher entra nesta fase da sua vida deve recorrer ao seu médico e referir os seus sintomas, expor as suas dúvidas e angústias e perguntar quais os tratamentos e modificações do seu estilo de vida a seguir. Sem dúvida que este a vai aconselhar, medicar se esse for o caso, para além de aconselhar a prática de exercício físico regular, uma dieta equilibrada, redução do consumo de álcool, abstinência de nicotina e se for sintomática, estiver entre os 50 e os 60 anos de idade (menopausa recente) e não apresentar contraindicações, tem indicação para a prescrição de uma terapêutica hormonal na dose mais baixa eficaz adaptada ao seu caso pessoal (terapêutica hormonal personalizada). temos claramente a noção do baixo número de mulheres tratadas, mas de um elevado número de mulheres mal informadas e também sem tratamento e mesmo até sem aconselhamento, o que nos causa preocupação pois esta fase da vida da mulher inicia o aumento de fatores de risco para uma série de patologias graves, tais como doença cardiovascular, sem dúvida a maior causa de morte da mulher neste grupo etário, assim como o aumento de risco para a osteoporose com risco elevado para a fratura do colo do fémur e outras.
Quer a mulher seja sintomática ou não, os efeitos da carência estrogénica estão sempre presentes, podendo causar sintomas, pelo que deveremos prevenir e tratar as doenças mais prevalentes neste grupo etário, procurando ter como objetivo a melhoria de qualidade de vida nesta terceira fase da vida das mulheres. temos hoje à disposição para tratar a mulher em menopausa desde a terapêutica hormonal da menopausa, sem dúvida o gold standard do tratamento para as mulheres sintomáticas em menopausa recente, sem contraindicação e que aceitam esta medicação, temos ainda várias alternativas que atuam como efeito secundário de medicamentos para outras patologias tais como alguns antidepressivos, analgésicos, anti-hipertensores e outros. Nas mulheres que não podem e/ou não querem fazer terapêutica hormonal ou abandonaram esta, para as que não toleram os efeitos secundários da medicação alternativa e por vezes difíceis de suportar, existe para estas mulheres o recurso aos fitoestrogénios (SErM`s naturais) que para além de aliviar os sintomas vasomotores atuam favoravelmente a nível ósseo e cardiovascular, contudo deveremos ter atenção à sua composição e dosagem eficaz, também temos à nossa disposição e em associação aos fitoestrogénios produtos que contêm ómega 3 e 6, vitamina E, A e D3 cujos efeitos benéficos estão bem estudados e demonstrados e ainda associados a probióticos e a luteína, complementando e melhorando a absorção e aumentando assim os efeitos benéficos dos fitoestrogénios, estas características permitem a sua prescrição também para as mesmas mulheres em fase de perimenopausa já com sintomatologia, será sempre o nosso objetivo primordial o de melhorar a qualidade de vida das mulheres em menopausa.
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o outro lado
As penas do tigre
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Uma conversa informal com Mรกrio Beja Santos sobre o seu lado menos conhecido.
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Texto de Carina Machado | Fotografias de Pedro Mensurado
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o outro lado
Tigre é nome de guerra, de uma guerra que se enjaulou dentro de si e aí se fez prisioneira e por isso o acompanha, sempre. Duma guerra que se tornou, estupidamente, amiga querida, por lhe trazer nas suas muitas dores estranho alívio de uma dor maior. Tigre é divisa de um guerreiro que, apaixonado pela vida, vibrante de entusiasmo, se recusa a sucumbir ao peso das suas muitas penas. Mário Beja Santos é o tigre.
E
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ncontramo-nos em sua casa para uma conversa informal e que tem como única pretensão conhecer um outro lado de alguém há muito conhecido das farmácias. Mário Beja Santos, 70 anos, reformado da Direcção-Geral do Consumidor, escritor, colabora com o sector, através da ANF, há praticamente um quarto de século. Mal passamos a soleira, entramos num hall de pé alto e somos imediatamente acometidos pela sensação de que a nossa atenção está a ser disputada por um milhão de pontos de
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interesse diferentes. Livros, pinturas, desenhos, leques, azulejos, esculturas, fotografias, muitos papéis… Somos notados. «Garanto-lhe que a aparência ilude. Tenho tudo muito organizado. Estou a pesquisar para o meu próximo livro. Gostam da minha casa?». Sim, aquela é, de facto, a sua casa, não poderia ser a de mais ninguém. Ao lado de peças assinadas por Sá Nogueira, Cruzeiro Seixas, Figueiredo Sobral, Gargaleiro ou Carlos Botelho, objectos resgatados às muitas “feiras da ladra” que visita. «Gosto. Permitem-nos um contacto diferente com
«Gostaria que as coisas que amei fossem vistas, quem sabe amadas por outros. Deixo parte à ANF»
os objectos, alguns que não encontraríamos em nenhum outro local. Cartas antigas, fotografias de casamento… Em Luanda, na feira de Benfica, dei por mim a olhar para um marfim. Comprei-o. Faz parte de mim. Tenho peças muito mais valiosas, mas aquela faz parte de mim». «Sabe? Alguns destes objectos irei doá-los à ANF. Alguns quadros, algumas aguarelas… Podia doar a museus, como o de Arte Contemporânea, mas temo que nunca fossem mostrados. Eu gostaria que as coisas que amei fossem vistas, quem sabe
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amadas por outros. A ANF tem tantos gabinetes e eu tenho com a Associação uma relação tão cordial, merece-me tanta consideração, que lhes vou deixar parte das minhas coisas. É a única afinidade que tenho com os americanos: a ideia de devolução à sociedade de parte do que ganhámos». Sentamo-nos para conversar. Estamos a poucos dias do lançamento do seu livro mais recente, O fedelho exuberante, curiosamente sobre o local onde nos encontramos. «Eu vi nascer a Avenida de Roma. Vim morar para a Rua António Patrício em 1952, que tinha por limite a quinta do Visconde de Alvalade, onde brincávamos. Fazíamos baloiços nas oliveiras. Atravessávamos um estradão e víamos os caterpílares a aparecer primeiro, a abrir a Avenida dos EUA depois, os primeiros prédios a surgir… Era algo maravilhoso! Tudo isto era novo! Agora, tudo isto é velho». A esta crónica de costumes, autobiográfica, juntam-se livros sobre as temáticas da saúde, do consumo responsável e sustentável, do marketing… e do Ultramar. «Estávamos em 2006 quando decidi escrever o diário da Guiné. Arrependi-me: teria que ler os meus aerogramas, teria que pegar em foto e, fundamentalmente, teria de sentir
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o outro lado
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o que senti. Não desisti. Mas foi uma viagem muitíssimo dura. Recordar é difícil». Conta que, num dado episódio, «entro numa floresta fechada e deixo de ouvir os pássaros, só ouço os meus passos. Tenho dois homens à frente. De repente oiço um grito, os homens afastam-se, eu fico frente a outro. Disparo. O senhor faz um gesto - como a fotografia do Robert Kapa, há uma cena de ataque e ouço um estoiro medonho. Um dos meus cabos usou mal a arma. Não morreu, ficou atroz, um cristo. Vamos retirar, chamo o homem mais forte para agarrar o cabo e ele responde-me: “não pego em cabo-verdianos”. É a primeira vez que sinto a questão racial. Agarro no desgraçado e ando com ele às costas, a desfazer-se, durante nove quilómetros. A todo o instante, pede: “dá-me um tiro, dá-me um tiro”… Tenho de reviver isto. Tenho de descrever, de voltar aos locais, de ouvir os barulhos, cheirar os cheiros… Tudo aquilo tem de me impactar… Estou a ditar isto ao meu assistente e desato a chorar. O rapaz diz-me “acalme-se, isso já lhe passa”. Mas não passa. Não pode
Chamavam-lhe N’bake: o guerreiro que não tem medo das balas. «Como ter medo? Dizia, com muito orgulho, que comando os melhores soldados do mundo. Eram pessoas corajosas e sobretudo leais. Ainda hoje recordo as expressões deles» passar, porque isto está dentro de mim, esta e todas as situações de dor que a guerra provoca e que nunca se apagam». Importante foi a correspondência
com a ex-mulher, com a qual namorava havia quatro meses quando partiu. «Foi um grande arrimo na minha vida. Vocês não sabem o que é a solidão!
Mantenho, por isso, com ela, uma correspondência diária. Contava-lhe tudo. Tudo. A PIDE não viu as minhas cartas, de certeza». Esteve na Guiné 26 meses, valeram por 26 vidas. Comandou dois destacamentos da tropa africana, 143 homens, sete deles brancos. «Foi cruel e brutal». Chamavam-lhe “O tigre” porque tinha uma saúde física excepcional, e N’bake, o guerreiro que não tem medo das balas. Era destemido. «Como ter medo? Dizia, com muito orgulho, que comando os melhores soldados do mundo. Eram pessoas corajosas e sobretudo leais. Ainda hoje recordo as expressões deles». Agarra uma moldura, aponta-nos um homem, apresenta-o por nome, idade, conta-nos a sua história. Volta a recostar-se. Cai sobre nós um silêncio breve. «Tenho neste recanto as pessoas que mais amo. Estão todas aqui. Tenho aqui coisas que adoro, coisas que me pesam muito na vida. Os meus soldados guineenses. A minha neta. As minhas filhas». O ambiente muda. «Estou a escrever o livro e a 2 de Julho de 2009 morre esta menina que aqui está [aponta para nova moldura, num gesto feito carícia], a minha filha Glória, com 32 anos. Era bipolar. Recebi um telefonema da minha ex-mulher e não acreditei. Estamos separados desde 1994, mas ia todos os dias a casa ver a Glórinha. Ajudava-a a estudar. Na véspera, tinha-me feito um telefonema lindo. A minha filha morreu com uma embolia pulmonar, porque, naquela vida de excessos que praticava, alguém lhe deu metadona e ela em vez de tomar o não sei quantos tomou o não sei quê. Para mim deixou de ter importância. A minha filha morreu». «Os filhos são o futuro. Não há uma perda, há uma quebra com o futuro. Cria-se um nevoeiro, uma não presença. Depois assume-se a ausência, e há uma dor que estala e de todos os lados surgem recordações, frases súbitas, e então o que é que uma
pessoa faz? Se fosse músico, era capaz de me ter dado para compor um requiem ou sonatas duríssimas. Deu-me para escrever. Foi a resistência que encontrei. Disse para mim mesmo: não vou endoidecer. Vou-me meter num trabalho tipo trabalho da Penélope, simplesmente não coso e descoso, coso apenas. Uma manta de dez mil quilómetros. E então comecei a fazer o levantamento de toda a literatura da Guiné, e quando estou a fazer o Adeus, até ao meu regresso, escrevo um outro livro que é A mulher grande. Depois resolvi fazer com um amigo meu, o embaixador Henriques da Silva, Da Guiné portuguesa à Guiné-Bissau, e vai ser publicado Histórias da Guiné portuguesa. Estou a terminar Histórias da Guiné-Bissau e já tenho mais dois na calha». Confessa-se crente. «Acredito,
«Não sou nem solitário nem só, ocupo-me, preencho-me. Não me sei dar mal com as pessoas, sou muito bem tratado. Enquanto estiver bem, quero sentir este entusiasmo e a muita companhia que tudo isto me dá» sensorial. Gosto de comer uma empada de caça, uma boa sardinhada, da boa convivência, de ópera, adoro teatro e bailado, até de ir ao Jardim Zoológico, onde estou ansioso por levar a minha neta, a Benedita, de quatro anos, filha da minha outra menina, a Joana». Olhamos novamente para as paredes e perguntamos se tem medo do vazio. «Nenhum! Tenho a vida toda preenchida!
Não sou nem solitário nem só, ocupo-me, preencho-me. Não me sei dar mal com as pessoas, sou muito bem tratado. Há-de haver um dia em que não saberei o meu PIN ou me sinta desfalecido. Mas enquanto estiver bem quero sentir este entusiasmo e a muita companhia que tudo isto me dá. Eu vibro com as minhas coisas, os meus projectos, e quando as pessoas vibram, tudo aumenta».
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«A minha filha morreu. Estala uma dor… E eu disse para mim mesmo: não vou endoidecer. Vou-me meter num trabalho tipo trabalho da Penélope, simplesmente não coso e descoso, coso apenas. Uma manta de dez mil quilómetros»
mesmo, que a Glória está num lugar onde contempla Deus e vive melhor do que eu. Essa serenidade ninguém ma tira. Mas há uma outra intranquilidade que fica para toda a vida: o que é que eu poderia ter feito? O que é que um pai deve fazer no seu relacionamento com os filhos e nas situações penosas de eles serem doentes? Devo dizer que é esta experiência que me faz, hoje, acompanhar com muita atenção a doença e todos aqueles que vivem com ela e que estão na Plataforma Saúde em Diálogo». Mário Beja Santos diz que a morte da filha o «filtrou». «Sou um homem apaixonado. Tenho curiosidade pelos livros, pelas pessoas. Mas não sou alguém de muitos amigos. Perco pouco tempo em tertúlias, vou aos sítios, converso com as pessoas, pedem-me colaborações, eu dou, mas a paixão que tenho é
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consultoria jurídica
Operação de fecho anual e Por J. A. Campos Cruz Consultor da ANF
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A ANF recomenda novamente aos seus associados que antecipem a realização do “fecho anual” de 2015 para o final do mês de Dezembro desse mesmo ano, medida que determina a emissão das facturas ao SNS (facturas respeitantes às comparticipações relativas às dispensas de medicamentos feitas em Dezembro) ainda dentro do respectivo exercício económico. Conhecendo-se agora, um pouco melhor, as rotinas de controlo que a AT desencadeia no final de cada ano fiscal, estamos hoje mais habilitados a entender o sentido dessa recomendação, quer do ponto de vista dos objectivos que a auditoria tributária tem subjacentes quer no que respeita à compreensão das regras que nos permitem definir e atribuir a “data-valor” das facturas que emitimos. Passados dois anos sobre a entrada em vigor do novo regime de facturação, compreende-se agora que só com a emissão das facturas relativas às comparticipações de Dezembro ainda dentro do respectivo ano
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fiscal (normalmente, em 31 de Dezembro), se poderá conseguir o alinhamento, que todos os anos se procura, entre os valores que: • são contabilizados como rendimento (proveito) e levados à declaração anual de informação contabilística e fiscal (IES), no respectivo período de tributação; • formam a base tributável anual IVA e justificam o valor do respectivo IVA liquidado (agregação dos valores inscritos nas 12 declarações periódicas do IVA1); • são comunicados todos os meses à AT, através do ficheiro SAFT, este enquanto veículo de comunicação da informação das facturas emitidas2. Diga-se, desde já, que se as facturas das comparticipações respeitantes às comparticipações de Dezembro forem emitidas nos primeiros cinco dias úteis de Janeiro – e, nesse caso, obrigatoriamente incluídas na DPIVA de Janeiro3 - não se comete nenhuma ilegalidade, embora possamos ter de explicar, mais
tarde, à AT, quais as razões que justificam o desvio encontrado entre o total dos rendimentos declarados para efeitos de tributação do rendimento e o valor da base anual agregada de IVA que, neste caso, não incluiria a factura de Janeiro4. Tendo presente, por um lado, a regra de exigibilidade prevista no artigo 8º, CIVA, e, por outro, a salvaguarda do princípio de especialização de exercícios5, poderão antecipar-se os efeitos produzidos pela adopção de cada uma dessas soluções (factura aos organismos em Dezembro ou em Janeiro do ano seguinte) e saber-se qual a melhor forma de encontrar, entre os diversos indicadores relevantes para a auditoria tributária, o necessário alinhamento – ver Tabela 1. Ao longo do ano (de Janeiro a Novembro), a antecipação da emissão das facturas ao SNS para o último dia do mês a que as dispensas dizem respeito, já não nos parece tão pertinente, não se justificando a permanência de um funcionário da
coerência entre indicadores fiscais farmácia até altas horas da noite para proceder à sua emissão. Isto, porque, relativamente a esses 11 meses, poderá tirar-se aproveitamento do prazo estabelecido no n.º2, do artigo 36.º, CIVA, para a emissão de uma factura global (até ao 5.º dia útil do mês seguinte) – ver Tabela 2.
DP-IVA
CONTABILIDADE SAFT
IRS/ IRC
Inclusão da factura no SAFT
Contabilidade - Imputação
Tributação do rendimento (IRS/IRC)
DP-IVA6
Se a factura for emitida no início de Janeiro de 2016 (até ao 5º dia útil)7
Janeiro 16
Dezembro 15
Dezembro 15
Janeiro 16
Se a factura for emitida em 31 de Dezembro 2015 (recomendação da ANF)
Dezembro 15
Dezembro 15
Dezembro 15
Dezembro 158
Tabela 1. Mês da dispensa dos Mês da emissão medicamentos9 da factura ao SNS Mês “N”
Mês “N+1”10
Inclusão da factura no SAFT
Contabilidade - Imputação
Tributação do rendimento (IRS/ IRC)
DP-IVA
Mês “N+1”
Mês “N”
Mês “N”
Mês “N+1”
Tabela 2. (1) Ou as quatro, se se tratar de sujeito passivo de periodicidade trimestral. (2) Decreto-Lei n.º 198/2012 de 24 de Agosto (artigo 3.º). (3) Neste caso, os valores do IVA liquidado e da respectiva base tributável terão de ser inscritos na DP-IVA de Janeiro de 2016 porque as facturas que justificam os valores da base e do imposto são comunicadas à AT, através do SAFT-PT, desse mesmo mês. (4) Ainda não é feito pela AT cruzamento automático entre o total das vendas e serviços declarados na declaração IES e o valor da base tributável anual agregada para efeitos de IVA. Até agora, apenas tem sido feito, automaticamente, o cruzamento entre os valores da DP-IVA (base e imposto) e o da facturas comunicadas através do SAFT. (5) Para os impostos sobre o rendimento (IRS / IRC), o período de tributação é, em regra, o ano civil (artigo 18.º, CIRC). (6) Mês em que o IVA liquidado e a respectiva base tributável devem ser inscritos na DP-IVA, tendo em conta a regra de exigibilidade prevista no artigo 8.º, CIVA, (7) Tratando-se de uma “factura global” no conceito definido no nº6 do artigo 29, CIVA, a factura terá de ser emitida até ao 5.º dia útil contado sobre o termo do período a que respeitam as operações (nº2 do artigo 36.º) (8) Se for esta a opção seguida, irão duas facturas no SAFT de Dezembro de 2015 (a de Dezembro e a de Novembro, esta última se emitida no início de Dezembro), sendo imperativa a inclusão dessas duas facturas na DP-IVA de Dezembro de 2015. (9) Coincide com o mês em que os medicamentos são facturados aos respectivos utentes. (10) A não ser que a factura pudesse ser emitida no dia 31 do mês “N”. Desde que a factura de Dezembro seja emitida a 31 desse mesmo mês, não é necessário.
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Texto de Maria F. Nico | Fotografia de Júlio Silva
Campode Ourique Viagem guiada à vida quotidiana de um bairro clássico de Lisboa
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J
oão Alberto de Freitas Ferreira Pinto Basto tem 32 anos e é farmacêutico há oito. É jovem, mas não é um novato nas andanças da Farmácia: desde cedo que a trata por tu, ou não fosse ele
filho, sobrinho e neto de farmacêuticos. Hoje é a ele que cabe a gerência da Farmácia Lobel, em Campo de Ourique, que detém em sociedade com a mãe e a tia. Nascido em Lisboa, na mítica
Maternidade Alfredo da Costa, onde nasce, na realidade, a maioria dos lisboetas, João não se sente, contudo, um alfacinha de gema. Conta que foi «orgulhosamente» registado em Cascais, onde sempre viveu com
a família, até há cinco anos, quando as idas e vindas diárias para a farmácia, os problemas de trânsito e a A5 acabaram por ditar o regresso ao “berço”, na escolha da capital para local de residência. Mas Cascais é aqui ao lado, num pulo mais largo se põe lá, junto da família e dos amigos. Não há propriamente paralelo à “santa terrinha” de muitos dos que habitam em Lisboa, ou às viagens que empreendem para fora da cidade em alturas festivas e períodos de férias. Por isso, João diz de si mesmo, em tom de brincadeira, «sou um sem terra!». É de três irmãos o mais novo e o único que seguiu as pisadas profissionais da família materna. A irmã, que já foi assistente dentária, dedica-se agora à restauração; o irmão é engenheiro. A ele coube-lhe, por herança, ser «mordido pelo bichinho alquimista». Vive a Farmácia com paixão e não lhe passa pela cabeça mudar o rumo da sua vida profissional. Gosta de ser farmacêutico, gosta de estar ao balcão e de ajudar quem ali se desloca em busca de conselhos para as diversas “maleitas”, físicas e da alma. Gosta de gerir a farmácia, que é dele e da família, e que conhece desde sempre. Porém, outras áreas o atraem. Em breve, por exemplo, irá estar na rede, com uma loja online dedicada ao vestuário. Gosta também de coisas ligadas ao marketing e às artes gráficas, e a ambas se dedica sempre que pode e lhe surge a oportunidade. Mas o seu grande desafio actual, e certamente um dos maiores da sua vida, passa pela preparação do casamento com a pessoa que escolheu para companheira e que, curiosamente ou talvez não, está ligada, profissionalmente, ao marketing. João Pinto Basto é, como ficou atrás escrito, um farmacêutico de gostos múltiplos, e é com ele que vamos conhecer um pouco da história do bairro lisboeta de Campo de Ourique.
O bairro que é uma aldeia Aqui vive-se como numa aldeia. Assim o sente quem aqui mora ou chega de visita, e assim o certifica a “Monocle Magazine”, revista de cultura mundial, que do bairro fez um artigo, onde o classifica como “best inner-city” - qualquer coisa parecida com “o melhor bairro da cidade fora do centro”. Mas Campo de Ourique é muito mais que de um bairro fixe ou na moda - na tradução à letra do anglicismo. É um livro aberto de momentos históricos de Portugal, e de Lisboa em particular, escrito em cada esquina, em cada rua. São dele indissociáveis, desde o terramoto de 1755, ideias políticas, culturais e artísticas, e a sua memória constrói-se em cima de momentos como o motim do Regimento da Infantaria 4 em 1803, a participação na resistência às invasões francesas em 1809, ou os fuzilamentos de 21 de Agosto de 1831, meros exemplos do muito que Campo de Ourique tem para contar. Em finais de 1879, e por iniciativa do engenheiro Ressano Garcia, começaram as expropriações, promovidas pela Câmara, da então Quinta do Dourado, que deu
lugar ao bairro onde hoje centramos a nossa atenção. As primeiras casas foram construídas em 1886. No final do século XIX, já Campo de Ourique tinha uma animada vida associativa, por ali se conspirava, e muito, para derrube da monarquia. São conhecidas reuniões da Carbonária nas pedreiras do bairro, desde 1890. Em 1897 coube a honra à Academia Filarmónica Verdi – banda filarmónica do bairro encabeçar o desfile do 1.º de Maio, onde participaram 150 representações. Outro acontecimento importante para a história do movimento associativo em Campo de Ourique foi a fundação da sociedade cooperativa “A Padaria do Povo”, em 1903, para fornecimento regular de pão aos seus habitantes e aos vizinhos de Campolide, e que esteve ligada ao nascimento da Universidade Popular. Hoje, “A Padaria do Povo” mantém o nome, mas de pão nada tem. Transformou-se numa espécie de centro cultural, um espaço onde se realiza reuniões e acções culturais ou afins dos moradores do bairro, em regra promovidas pela junta de freguesia.
Campo de Ourique – como referido - teve papel preponderante no fim da Monarquia e na implantação da República. Por aqui se consolidaram fortemente as tradições republicanas e reivindicativas. Ao longo dos anos, foram diversas as greves, protestos e outras manifestações populares que deixaram marcas, como a conhecida “Revolta da batata”, em 1914, contra o elevado custo de vida. São muitas as estórias que fizeram História e, talvez por elas ou por causa delas, muitos tenham sido os escritores e artistas que escolheram este bairro para morada. Fernando Pessoa é disso exemplo máximo. Nos últimos anos da sua vida, o poeta residiu na Rua Coelho da Rocha, onde também viveu o matemático e grande democrata Bento de Jesus Caraça, assim como muitos outros. Os escritores Fernando Assis Pacheco e Luís Sttau Monteiro eram apaixonados por Campo de Ourique e muito nele se inspiraram. Hoje, o bairro mantém intacta a sua história e estórias, e dele se diz “como é boa a vida no campo”. A verdade é que aqui existe um pouco de tudo, incluindo um
Sabia que encontra aqui a maior percentagem de cães Golden Retriever per capita do país? comércio vibrante, alguns dos melhores restaurantes de Lisboa e até - imagine-se! - a maior percentagem de cães Golden Retriever per capita do país.
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D. Nuno mora aqui
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Acompanhados por João Pinto Basto, começamos o percurso por um marco de fé. Projectada pelo arquitecto Vasco Regaleira, a igreja do Santo Condestável, de estilo neogótico, esteve em construção entre 1946 e 1951, e foi inaugurada a 14 de Agosto desse ano, em pleno Estado Novo, pelo cardeal António Cerejeira. Nesse dia, um aparatoso cortejo saiu do Convento do Carmo com as relíquias do condestável D. Nuno Álvares Pereira, beatificado em 1918 e que o Estado Novo fez questão em promover. Mas já lá vamos. Para já, a primeira imagem que retemos é o contraste entre a brancura do reboco da fachada da igreja e o granito cinzento, trazido de Sintra. Depois, centramos o olhar nos pormenores e não se consegue ignorar o portal encimado pelas armas reais de Portugal da segunda dinastia. Sobre o pórtico da entrada está um grupo de esculturas, de Leopoldo Almeida e Soares Branco, que retratam o Santo Condestável ladeado pelo Anjo de Portugal e pelo Arcanjo São Miguel. As duas torres – a torre do baptistério e a torre sineira – completam o edifício, que tem também a cruz do brasão
dos Pereira no topo da fachada. Entramos e salta à vista o imponente fresco da autoria dos pintores Portela Júnior e Joaquim Rebocho, onde surge impressa a glorificação de D. Nuno Álvares Pereira, também conhecido como Nuno de Santa Maria. Por baixo do Altar-mor, um túmulo do escultor Soares Branco, onde se encontram depositadas as relíquias do Santo Condestável, para aqui transladadas aquando
da inauguração do templo em meio do cortejo já mencionado, saído do Convento do Carmo. Notáveis são os quatro vitrais coloridos nas grandes janelas ogivais sobre os altares, da autoria do pintor modernista Almada Negreiros, um dos mais importantes artistas portugueses do século XX. Não faltam, sem dúvida, motivos para uma visita, aos quais acrescentamos mais um: a fuga
momentânea ao bulício quotidiano e o recolhimento na tranquilidade do ambiente introspectivo que aqui se respira.
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O mercado da moda
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João Pinto Basto é viciado no Mercado de Campo de Ourique, que está mesmo na moda. Nasceu fruto de um abaixo-assinado, nos idos anos vinte, onde se pedia a construção de um novo espaço comercial, iniciativa do empresário José Dionísio Nobre, detentor de muitos terrenos em Campo de Ourique, incluindo aqueles onde o mercado seria construído e talvez por isso lhe tenha sido atribuída a concessão do espaço comercial por 40 anos. O projecto, assinado pelo arquitecto Costa Martins, viu a luz do dia em 1934 e passou para as mãos da Câmara Municipal de Lisboa em 1973, depois da morte de Dionísio Nobre e da venda, em hasta pública, de todas as suas propriedades e restantes bens. O mercado manteve-se aberto ao público, tal como a Câmara o tinha adquirido, até 1980. Porém, a parca freguesia, dada
a deslocação dos consumidores para os centros comerciais, não justificava os custos com as obras que eram necessárias, e a Câmara viu-se obrigada a repensar o negócio. Só em 2009 se lançam mãos à obra, depois de encontrada a solução em Madrid, no mercado de S. Miguel. O espaço foi remodelado e ampliado, e reabriu em 2013, com uma zona central de tasquinhas e petiscarias gourmet convivendo alegremente com as tradicionais bancas de peixe, frutas e legumes. É hoje, em definitivo, um dos novos polos gastronómicos da cidade de Lisboa. Entre uma amêndoa caramelizada e um café, João Pinto Basto confessa-se frequentador assíduo do mercado, seja para comprar produtos nas mais variadas bancas, seja para fazer uma refeição. Mas o seu restaurante de eleição está fora destas paredes.
STOP é mesmo para parar acrescenta em lista de louvor o polvo à açoriana, guisado à mistura com muita malagueta, o mesmo polvo mas assado no forno e o caril de gambas. O STOP tem 42 anos e há 32 que a maestrina dos pratos é uma angolana de mão cheia para a cozinha. O seu reconhecimento é tal entre os comensais,
que quando a avistam na sala, prontamente pousam talheres para dar às mãos a nobre tarefa de aplaudir a sua arte. Deixe-se tentar pela gula e passe por cá, avalie por si a veracidade da descrição, mas quando o fizer lembre-se disto: não se deixe enganar pelo bule de chá! E mais não dizemos.
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Pecado capital seria, na opinião do nosso anfitrião, vir a Campo de Ourique e não parar para comer no STOP. E, diga-se, certamente que não damos por perdido o tempo que ali estivemos. Segundo João, este é um restaurante a que nunca resiste, do mesmo modo que não resiste à sua cabidela, que, para ele, é a melhor do país. Aliás, no STOP tudo é bom, defende com a convicção de quem diz já ter provado quase todos os pratos da ementa. Por isso, destaca com igual fulgor o arroz de pato à antiga portuguesa, a carne de porco à alentejana, o ossobuco e o cozido à portuguesa, servido às quartas-feiras. Mas se o pendor do apetite for mais no sentido do peixe, há mais de vinte receitas por onde escolher. E saiba que também neste capítulo os méritos não se deixam por mãos alheias, pois asseguram os conhecedores do espaço que foi no STOP que foi inventado o famoso arroz de tamboril, criação do proprietário Miguel Sabino, o qual nos confirma a história. João Pinto Basto
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A casa do poeta
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A Casa-Museu Fernando Pessoa foi inaugurada em 1993. É aqui que está guardada a biblioteca particular do poeta - profusamente anotada e catalogada pelo próprio, como se de um tesouro nacional se tratasse. Num dos três pisos da casa encontra-se o seu quarto, com a cómoda onde terá escrito, em 1914, três dos maiores poemas – “ O Guardador de Rebanhos”, de Alberto Caeiro; “A Chuva Oblíqua”, que assinou como Pessoa; e “Ode Triunfal”, de Álvaro de Campos. No piso térreo está instalada a biblioteca especializada em poesia e que é única no país. Para além dos objectos e documentos pessoais, ali podemos encontrar a primeira edição do livro “A Mensagem”, o único publicado em vida. É nesta sala que está também exposto o famoso quadro de Fernando Pessoa, pintado pelo mestre Almada Negreiros, em 1954. Fernando António Nogueira Pessoa, de seu nome completo,
viveu em Campo de Ourique, desde Abril de 1920, data em que alugou o primeiro andar direito do número 16 da rua Coelho da Rocha ao proprietário do edifício, o Coronel Chichorro da Costa. Aqui viveu ininterruptamente até 1935, ano da sua morte. Mais dado à ironia do que ao sorriso, Pessoa era um homem tímido, de passo rápido e irregular, usava óculos redondos, com lentes grossas, muitas vezes embaciadas. Detestava fotografias, gostava de música clássica. Usava gabardina e tombava o chapéu amachucado para a direita. Sobre o bairro de Campo de Ourique escreveu um dia: «Gostava de estar no campo para gostar de estar na cidade». A sua última frase foi escrita em inglês na cama do hospital, na véspera da sua morte: «I know not what tomorrow will bring» (Não sei o que o amanhã trará). Trouxe-lhe a morte, mas ficou a obra.
O jardim da sueca Depois de um banho de cultura, nada melhor do que um pouco de ar livre e João Pinto Basto leva-nos ao Jardim da Parada, cuja imagem de marca é o jogo da sueca com que muitos idosos se entretêm. O jardim é assim chamado por ter sido aí a parada do quartel, mas o seu nome verdadeiro é outro e homenageia Teófilo Braga, o professor e escritor republicano que chegou a Presidente da República. Ali encontramos uma esplana-
da e o quiosque Hamburgueria da Parada, aberto em 2012 e que rapidamente se tornou numa referência do bairro, de tal modo que há quem se atreva a afirmar que arranjar mesa na esplanada é o segundo desporto oficial de Campo de Ourique. O primeiro - saiba - é arranjar local onde estacionar o carro. A assistir a toda esta movida está Maria da Fonte, imortalizada em estátua que não pode passar despercebida.
bula A PADARIA DO POVO Rua Luís Derouet, IGREJA DO SANTO CONDESTÁVEL Rua Francisco Metrass MERCADO MUNICIPAL DE CAMPO DE OURIQUE Rua Coelho da Rocha e Rua Francisco Metrass MONUMENTO A MARIA DA FONTE Jardim Teófilo Braga (ou da Parada) ACADEMIA FILARMÓNICA VERDI Rua do Arco de Carvalhão, 158 - 1 www.facebook.com/academia.f.verdi CASA MUSEU FERNANDO PESSOA Rua Coelho da Rocha, 16 http://casafernandopessoa.cm-lisboa.pt STOP DO BAIRRO Rua Tenente Ferreira Durão, 55-A www.facebook.com/stopdobairro 213 888 858
O que é doce nunca amargou A cortar o amargo da despedida, a doce e obrigatória experiência da prova de O Melhor Bolo de Chocolate do Mundo.
A receita, elaborada há mais de vinte anos, deixou tão orgulhoso Carlos Braz da Costa, que este a registou como marca.
O MELHOR BOLO DE CHOCOLATE DO MUNDO Rua Tenente Ferreira Durão, 62 A 213 965 372 FARMÁCIA LOBEL Rua da Infantaria 16, 98
livro convida
Por acaso, Lisboa Texto de Carlos Enes José Cardoso Pires (1925-1998) publicou dois livros no último ano de vida. De Profundis, Valsa Lenta e Lisboa Livro de Bordo. Talvez facilitasse, sem ser completamente errado, chamar-lhes autobiográficos e arrumar o assunto. Mas não seria verdade, por defeito. Os livros são existencialistas. Pousam em episódios do quotidiano, mas também sobrevoam a condição humana como os corvos de Lisboa devem ter feito ao cadáver de S. Vicente.
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De Profundis, Valsa Lenta é sobre a experiência de sobreviver ao acidente vascular cerebral que o escritor sofreu em 1995 e cuja repetição o mataria três anos mais tarde. Já Lisboa Livro de Bordo é sobre 70 anos de estar vivo. Sim, porque se nasceu na aldeia de São João do Peso, praticamente no centro geodésico de Portugal, o autor chegou ainda criança ao alvo capital da maioria da população. Prova-o a memória de infância de um «anjo cintilante» a despenhar-se do alto da igreja de Arroios sobre a «multidão de boca aberta». Nessa noite, houve número de trapezistas na verbena do bairro e o menino na cama ouviu ao longe o som do carrocel.
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O Livro de Bordo é um manifesto contra os roteiros. Destila ironia para cima dos «eruditos em trânsito que praticam as vias-sacras dos monumentos», ainda mais do que sobre os turistas que se perdem de mapa na mão em Alfama ou na Mouraria. Aliás, essa coisa de um homem se perder na cidade é que é o assunto do livro. Logo no início, Cardoso Pires adverte para o facto de «ninguém poder conhecer uma cidade se não a souber interrogar, interrogando-se a si mesmo».
Lisboa Livro de Bordo Expo’98, Dom Quixote, 1.ª Edição, Outubro de 1997 A verdadeira cartografia está no coração de cada lísbia e pode dar-se o caso de ser mais clara à noite. José Cardoso Pires partilha o seu mapa de bares: British Bar e O Americano, no Cais do Sodré, o Procópio, que «respeitava a intimidade do Jardim das Amoreiras», A Paródia, forrado a desenhos de Bordalo, Pavilhão Chinês, ao Príncipe Real e, quando há lua no miradouro da Graça, o Botequim de Natália Correia. Ainda de copo na mão, torna a avisar que «a conjugação dos bares é pessoalíssima porque cada bebedor tem o seu mapa e cada mapa os seus portos». O livro acaba no desconcertante Café Atinel, de regresso ao Cais do Sodré. José levanta os olhos para a vidraça e vê «uma dança de gaivotas em turbilhão». Recebe então notícia de que o Tejo «desapareceu por trás de uma desordem de asas e já não é prenúncio de oceano».
O fim do rio é uma declaração de amor à vida boa de Lisboa, de quem vai morrer sem medo nem ponta de arrependimento: «Então, ternamente, confiadamente, reconhecemo-nos ainda mais ancorados à cidade que nos viu partir». Correu de boca em boca que o Livro de Bordo, editado pela Expo’98, foi originalmente encomendado pela Capital da Cultura - 94. Se for verdade, faz sentido. Cardoso Pires tinha de viver a cidade até ao fim para contá-la. Por outro lado, o ofício levou-o a percorrer de volta quilómetros de calçada portuguesa - o livro é fértil em pormenores que a maioria pisa sem se dar conta. Finalmente, na vida do escritor Lisboa existiu tanto na realidade como na literatura, o que não pode deixar de ser encarado como uma inevitabilidade feliz.
No Livro de Bordo, os escritores sentam-se nas esplanadas a discutir com as personagens uns dos outros. As estátuas ganham vida e figuras históricas ressuscitam muito mais engraçadas. Álvaro de Campos torna a subir a Rua do Ouro «pensando em tudo o que não é a Rua do Ouro». Mas desta vez não chama por Walt Whitman, vai de braço dado com o próprio Fernando Pessoa. No bairro do autor, Camilo ainda faz amor com Ana Plácido e o primo Basílio «abelha entre lençóis a despassarada Luizinha». Em Lisboa, o amor é livre e a realidade pode trocar a ordem às coisas com a facilidade e a felicidade da literatura. O doutor Sousa Martins, «herege confesso», começou a fazer milagres ao ar livre, mesmo à frente da faculdade onde ensinou Medicina. A estátua de um imperador mexicano pode «fingir» de Rei D. Pedro IV, porque «assim como assim, o país fica na mesma e o Rossio ainda ganha mais um caso para entreter». Cardoso Pires bem sabia que «ler» Lisboa «pela voz dos outros» nos faz sentir ainda «mais errantes, mais incertos». É pois natural que tenha demorado anos na escrita, porque falou com muita gente sobre o assunto. Por exemplo, com a Daisy de Fenando Pessoa, a quem confia a sua explicação para as coisas: «Porque sim». Podemos ler o livro, mas a grande interpelação do lísbia José é para a vida. Só pode conhecer Lisboa quem «tentar por conta própria os acasos que a tornam imprevisível e lhe dão o mistério da unidade mais dela». Os eruditos que trocam a cidade pelo Livro de Bordo fariam melhor em atirá-lo ao rio.
entre nós
2016 com os Portugueses
O
FARMÁCIA PORTUGUESA
nosso 40.º aniversário, como sempre dissemos, não foi uma festa. Não que o serviço permanente das farmácias a Portugal, ao longo de quatro décadas, não merecesse ser abertamente festejado. Só que o momento, infelizmente, é dramático. A rede de farmácias foi vítima durante anos de ataques
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desmedidos, sem sentido nem critério. Resistiu mais do que seria imaginável em sectores sem o nosso nível de organização e sentido de união. Mas sofreu e ainda exibe as feridas de uma guerra injusta. Entramos em 2016 em luta diária pela sobrevivência. Os processos de falência e penhora continuam a aumentar. Todos conhecemos histórias de farmacêuticos em dificuldade, a serem expulsos da nossa débil economia depois de uma vida dedicada às populações. Não nos resignamos e não deixaremos de procurar, permanentemente, soluções. O nosso 40.º aniversário, como também dissemos, foi um grande momento de renovação das duas
Paulo Cleto Duarte
grandes alianças estratégicas das farmácias portuguesas: com os portugueses e o futuro. Em Junho, um estudo da DECO mostrou que os índices de satisfação com o serviço farmacêutico não foram abalados pela crise. Mais de 90% dos consumidores declararam confiança na competência dos farmacêuticos e apreço pela nossa disponibilidade e simpatia. E agora, o jornal Expresso publicou o grande inquérito sobre Um Novo Modelo de Farmácia, realizado pela Universidade Católica, a pedido da ANF. Os resultados são ainda mais relevantes. A farmácia é o primeiro serviço que os portugueses procuram, não só para obter aconselhamento sobre medicamentos, mas também para resolver os problemas menores de saúde de todos os dias. Os portugueses, mais uma vez, mostram como confiam, mesmo, em nós. Tanto, que querem as farmácias a prestar cuidados de saúde mais alargados. Entre outros, testes rápidos e de triagem (93%), renovação automática de receitas (89%) e apoio no controlo de doenças crónicas (92%). Estes resultados são o nosso maior activo estratégico. Como sempre dissemos, só ainda mais unidos aos portugueses encontraremos o nosso futuro. Sempre dissemos que o caminho seria longo, pedregoso,
às vezes desesperante. A verdade é que os representantes eleitos pelos portugueses, da direita e da esquerda, já mudaram de discurso em relação a nós. A crise da rede de farmácias é hoje reconhecida. A necessidade de encontrar soluções começa a tornar-se urgente. E é a população a apontar o caminho, com manifestações claras da sua vontade. Estes resultados responsabilizam-nos. Não nos deixam optimistas, porque sempre preferimos a prudência e a razão a estados de alma. Mas garantem que podemos encarar o relacionamento com o novo Governo, em 2016, com trabalho feito e seguros dos nossos argumentos.
Estes resultados são o nosso maior activo estratégico. Como sempre dissemos, só ainda mais unidos aos portugueses encontraremos o nosso futuro
Todos nesta farmácia têm um plano Mas nem todos têm um Plano Reforma MONAF
Junte-se a uma das mais importantes Associações Mutualistas de Portugal e comece a planear o seu futuro. Agora todos os colaboradores efetivos de farmácia também podem ser novos Associados do MONAF. Há mais vantagens em fazer parte desta família.
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