Suroeste | Número 7

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revista de literaturas ibĂŠricas

NĂšMERO

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Badajoz 2017

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revista de literaturas ibéricas N.º 7. BADAJOZ, 2017

suroesterevista@gmail.com C/ Virgen de Guadalupe, 7 06005 BADAJOZ Director ANTONIO SÁEZ DELGADO Consejo de Redacción ANTONIO FRANCO DOMÍNGUEZ LUIS MANUEL GASPAR GABRIEL MAGALHÃES JAVIER RODRÍGUEZ MARCOS Consejo Asesor ELOÍSA ALVAREZ FERNANDO PINTO DO AMARAL JUAN MANUEL BONET JORDI CERDÀ PERFECTO CUADRADO FERNÁNDEZ MARÍA JESÚS FERNÁNDEZ GARCÍA ANTÓNIO CÂNDIDO FRANCO MIGUEL ÁNGEL LAMA MARTÍN LÓPEZ-VEGA VÍCTOR MARTÍNEZ-GIL JOÃO DE MELO EDUARDO PITTA ÁLVARO VALVERDE Ilustraciones JORGE MARTINS FIREHN HATE MAITE CAJARAVILLE GISLE FRØYSLAND

Diseño LUIS COSTILLO Editan JUNTA DE EXTREMADURA SECRETARÍA GENERAL DE CULTURA EDITORA REGIONAL DE EXTREMADURA FUNDACIÓN GODOFREDO ORTEGA MUÑOZ Depósito Legal: BA-170/2017 I.S.B.N. 978-84-9852-502-1 Imprime TECNIGRAF SUROESTE CONSIDERARÁ LOS ORIGINALES RECIBIDOS, PERO NO MANTENDRÁ CORRESPONDENCIA SOBRE ELLOS NI SE COMPROMETE A SU PUBLICACIÓN.

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Índice POESÍA 5

N A R R AT I VA 12 3

MAR TA AGUDO 7

ANTÓNIO BAR ATA

A N A L U Í S A A M A R A L 13 VERÓNICA ARANDA La casa periférica 19 P A T R Í C I A B A L T A Z A R 25 M A R I C A C A M P O 31

O primeiro suicídio 125 EDUARDO BRITO

O Gelo Imperfeito 127 MERCEDES CEBRIÁN Comercio exterior 131 NUNO CORVACHO

ANTÓNIO CARLOS CORTEZ Horizonte e regresso 33

A angústia do comentador antes do comentário 133

J U A N K R U Z I G E R A B I D E 37

ANTÓN GARCÍA Hecatombe 139

S A N T O S D O M Í N G U E Z 43 M A R G A R I D A V A L E D E G A T O 51 A B R A H A M G R A G E R A 55 P A U J O A N H E R N Á N D E Z 57 MICHEL HUBERT LÉPICOUCHÉ

VALT ER HUGO MÃE Espanha 1977 143 FERNANDO CABRAL MARTINS Diário de Lisboa 145

Crónica de invierno en las llanuras del sur 63

MIGUEL FILIPE MOCHILA A separação 151

C É S A R I G L E S I A S 67

ABEL NEVES

M A R T Í N L Ó P E Z - V E G A 73

O ronhoso Sexo na banheira 155

M A R I O L O U R T A U 85 JORDI MAS

JORDI PUNTÍ Ronyó 157

Astres, aspres 93 L U Í S F I L I P E C A S T R O M E N D E S 99 E D U A R D O M O G A 101 N U N O M O U R A 105 PABLO JAVIER PÉREZ LÓPEZ Los países de piedra 107 J O S E P M . R O Q U E R 113 JAVIER PÉREZ WALIAS

Ciclo de las tres piedras 119

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EN SAYO 165

ESCAPARATE DE LIBROS 207

ÁLEX CHICO

ELOÍSA ÁLVARE Z

Gayga, muchos años después 167 SARA AFONSO FERREIRA

MARÍA JESÚS FERNÁNDEZ

Almada e Ramón Gómez de la Serna, Marginálias a quatro mãos 175

MIGUEL ÁNGEL LAMA

ANA LUÍSA VILELA

ANTONIO JIMÉNE Z MOR ATO

Teolinda Gersão, a menina e o areal 193

ANTONIO RIVERO MACHINA

MIGUEL FILIPE MOCHILA

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Poesía

PÁGI N A

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MARTA AGUDO ANA LUÍSA AMARAL VERÓNICA ARANDA PATRÍCIA BALTAZAR MARICA CAMPO ANTÓNIO CARLOS CORTEZ JUAN KRUZ IGERABIDE SANTOS DOMÍNGUEZ MARGARIDA VALE DE GATO ABRAHAM GRAGERA PAU JOAN HERNÁNDEZ MICHEL HUBERT LÉPICOUCHÉ CÉSAR IGLESIAS MARTÍN LÓPEZ-VEGA MARIO LOURTAU JORDI MAS LUÍS FILIPE CASTRO MENDES EDUARDO MOGA NUNO MOURA PABLO JAVIER PÉREZ LÓPEZ JOSEP M. ROQUER JAVIER PÉREZ WALIAS

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JORGE MARTINS Sem título, 2011 SW7(tecnigraf).indd 6

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MARTA AGUDO

¿Penetras o cubres, enfermedad? Con la persistencia de la cicatriz en el rostro ofreces una flecha, tu rumbo por recorrer: «expectativa», «peripecia», «euforia» incluso, porque sólo intuye la metralla quien cinceló su tiempo a base de cuchillos. Porque el ayer o simple referente… se rondarán nuevos centímetros cuadrados: las uñas como rocas, la densidad del pelo, las arrugas o cauces inexpugnables, las muelas en su cordillera maciza. ¿Penetras o cubres, enfermedad? ¿Qué paso sigues...?

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Así el melancólico, ¿eslabón perdido de qué cadena? Así la muerte asistida, para caer en el momento exacto. Así el enfermo, con su carne tanteando una demora. Dadme el punto exacto, las coordenadas de la felicidad, y construiré una casa grande donde aliviar derrumbes, cuerpos zurcidores de una cruz y su símbolo. Así, dadme las siglas de una ajustada duración porque en el signo «más» el germen de los significados, las raíces del árbol que se empeña...

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Imposible conjugar el ritmo de la carne. Espaldarazo brutal. Minotauro sin astas ni recursos. Cobre sin luz. ¿Cómo olvidarte, enfermedad, anfitriona de tantas cicatrices…?

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El perro ahogado en su abandono. No hay gesto de despedida suficiente para su lenta detonación. Sueña con ríos por los que huir o recuperar tal vez el ritmo del avance. Las margaritas no le dirán si alguien por las aceras lo busca todavía. Vivir o merodear por el hambre, el trastorno que supone caminar hacia ningún lado porque cualquier sitio es bueno para ofrecerse. No se verá más ceremonia que una correa tendida… y cuando lo recoja el operario creerá reconocer en esa dentadura la ansiedad de una valla en la noche con cuchillas con guardias con personas. Los desheredados constituyen cadenas invisibles, supersticiones para sobrevivir, crean el humus del pensamiento que soñó que el hombre o la empatía, que el desierto o erial habitable… …Y traficantes de miseria al unísono. Explosión de tanto acero…

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Llega el doctor, mirada en contrapicado, y pone a prueba que las estadísticas se ocupan de un noventa por ciento de casos porque «nadie lo esperaba. Con los conocimientos médicos actuales no se puede explicar su defunción». Vasto renglón aparte. Que nadie se sorprenda. Allí donde el volumen no da sombra, donde el germen se confirma y la boca, antes de su fin, retiene siglos de arena… Allí o el cero matemático que elevado a n voluntades persiste en su cintura de nada. Vasto renglón aparte...

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Alivia saber la Antártida, más ahora en esta habitación que compartes con una mujer y su máquina de oxígeno. Camas en paralelo para no intimar. El hedor momentáneo ensaya un rictus de muerte y las neuronas aún no pueden escayolarse. El suicidio en un hospital o inversión del camino. El bilingüismo del estar y la nada. El cuerpo, ventrílocuo de la desaparición, encefalograma raído, escáner que bordea un epílogo sin sangre ni sutura. Estribillo último, anzuelo que aguardas…

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ANA LUÍSA AMARAL

BIFRONTE CONDIÇÃO Luxo de ter olhar, de ver desta janela, elegante e atento, aquele gato matizado a branco e a canela, luxo de um prato doce e confortante, luxo do tempo a desdobrar-se, e de sentir calor junto a janeiro, e a cada movimento Do outro lado, ao fundo da janela, o lixo examinado atentamente por homem rente ao frio, tudo a tornar-se frio dentro das coisas, os movimentos crispados e cinzentos, de como é curto o tempo, ou de como as palavras encurtam o dizer O luxo de estar quente: um luxo absurdo, mas luxo verdadeiro ao lado do janeiro: o mês bifronte, feito de duas faces, como nós, desatentos, fingidos, incultos habitantes deste planeta que, visto de um outro lado, se ele houver, por olhos outros, se eles existirem, há-de parecer assim: bifronte: de um lado, a mansidão de amar e proteger, na outra face, a outra condição de olhar sem ver, por isso sem indulto, nem cósmica razão que nos redima

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ABANDONOS Deixei um livro num banco de jardim: um despropósito Mas não foi por acaso que lá deixei o livro, embora o sol estivesse quase a pôr-se, e o mar que não se via do jardim brilhasse mais Porque a terra, de facto, era terra interior, e não havia mar, mas só planície, e à minha frente: um tempo de sorriso a desenhar-se em lume, e o mar que não se via (como dizia atrás) era um caso tão sério, e ao mesmo tempo de uma tal leveza, que o livro: só ideia Essa sim, por acaso, surgida num comboio e nem sequer foi minha, mas de alguém que muito gentilmente ma cedeu, e criticando os tempos, mais tornados que ventos, pouco livres E ela surgiu, gratuita, pura ideia, dizendo que estes tempos exigiam assim: um livro abandonado num banco de jardim E assim se fez, entre o comboio cruzando este papel impróprio para livro, e o tempo do sorriso (que aqui, nem de propósito, existe mesmo, juro, e o lume de que falo mais acima, o mar que não se vê, nem com mais nada rima, e o banco de jardim, onde desejo ter deixado o livro, mas só se avista no poema, e livre, horizontal daqui)

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PEQUENÍSSIMA REVISITAÇÃO A DESEJAR-SE Enquanto o peixe grelha descuidado: o aroma dourado do incenso a romper pela cozinha Vem da mesa na sala, onde igual a vulcão, um cone colorido sustenta a haste fina do incenso E eu fazendo de mago, de Menina, de Mãe e de pastor, tudo em mesma figura no fervor da cozinha Em fogo lento, cumpre-se a Palavra e uma batata só falta-me a mirra e o ouro Mas vede como, esquivo, o peixe se queimou, e o verso em combustão ficou desfeito! Ah saber acender um cenário perfeito: além de incenso, a outra especiaria, algum tesouro, a erupção dourada, o preclaro milagre de um novo peixe, aqui E não este puré sem cântico nem luzes nem noites estreladas – matéria em que a batata esquecida se tornou

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O ASTRÁGALO: IMPRESSÕES A impressão digital de uma estrela é mais que um fio de luz: fala de um cálcio igual ao que irá preservar a memória do astrágalo, esse pequeno osso com nome de universo vizinho ao calcanhar Comum ele também a espécies várias, a nossa, ou a de pássaro ou sapo que em terra e água imprimem os seus passos, um lentíssimo voo pelo espaço a ser sonhado – nosso Como a estrela que morre, agonizante, e é somente uma outra dimensão da dor, ângulo outro em perda, ignorante ela mesma do profundo dever de que outra estrela nasça: responsabilidade sem contrato, acordo tácito do fogo transportado Tal como o sapo, o pássaro, óvulo, ovo, ou larva, lançado ao rio num cesto de matéria, o vime feito trança, se pressente imortal, quando criança Mas a espreitá-lo o ponto frágil da fractura igual: desabrigado astrágalo, à mercê do futuro feito flecha, deixando digital nova impressão, grão de cálcio e de mundo, ali suspenso Além do fio de luz que nos condena, enquanto nos transporta além do tempo para outras guerras, outra paz quem sabe

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CARTA A LÍDIA SOBRE A POESIA QUE SE ACHOU PERDIDA Disse-te ontem à noite que a perdi E não se estava à beira-rio, nem eu te convidei a sentares-te comigo: era num restaurante, havia muita gente e algum rasto finíssimo de frio Tu disseste-me ‘escuta’, querendo dizer-me ‘sente’ Hoje tentei de novo ouvir tão hesitante como deve ser os assuntos escuros do teatro onde moramos todos mas onde tantos, nem sequer por instantes, recebem foco ínfimo de luz E o rio tornou-se nada, Lídia, pois ela veio: indócil, mergulhante, tímida de criança a puxar-me insistente pela dobra da blusa obra mais quente do que o meu café Em confidência, escuta: o que te disse ontem à noite, vejo agora, era um pouco mentira, uma provocação a ver se ela me achava, um exorcismo quase Obrigada por me lembrares, amiga, que não é sossegadamente que a vida passa –

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MEDITERRÂNEO

os mares de Homero deixaram de trazer, esbeltas, as suas naves em nome dos sem nome, continua. por desertos de areia, desertos sem sentido, continua. por rostos no deserto, os do sem nome ou rosto, continua. ao fundo do deserto, diz-se gotas de sangue e grãos de areia, a esfinge no deserto, continua. no verdadeiro nome do espesso fluido que se diz vital, em toneladas certas, continua.

os divinos moinhos moendo devagar fina farinha, inúteis mares de pó

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VERÓNICA ARANDA

La casa periférica

I Drena la posesión en las macetas y las grandes pasiones se viven a escondidas. El punto de equilibrio es timbre de contralto y canta, ausente. No hay asunción y solo la palabra secreto emerge entrecortada.

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II Detenerse ante un cuerpo que alguna vez fingió, pues fue la casa sobremesa y luz, pero también fue estigma. El deseo en sí mismo puso un racimo oscuro entre tus piernas, eliminó los posesivos y entró en la carne con mirada incrédula.

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III Hay escisión, tatuajes que atraviesan tu vientre y dividen en dos la cicatriz; lechuza que se posa en el alfeizar. Solo los celos pliegan este vínculo oscuro. Tampoco el aguacero es redentor en la hora punta del insomnio. Insomnio o hiedra por las sienes cóncavas.

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IV Atravesamos el envés de todas las palabras y comenzó el deseo mucho antes de llegar a los atrios, a una alcoba pequeña, hexagonal que habías vislumbrado en un poema, sin que un flujo de culpa rompiera los acuarios.

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V Qué sabes de esta contención. Qué sabes de esta casa y sus fisuras, de mi deseo de muerte cuando se multiplica en las terrazas o frente a una dalieda. Amor, las frases hechas llegan siempre a deshora. Hay intervalos de silencio-arcilla, posesión que comienza en la no identidad. Lo que sucede allí es solo de tu piel hacia el océano.

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VI Espero la palabra redentora, pero la transparencia solo habita en tu vientre extendido.

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PATRÍCIA BALTAZAR

Abrir as mãos ao lume graças a ter de pensar no Inferno. Guardar a distância. Manter a maré sempre baixa. Guardar o peito da temperatura de um outro corpo. Fechar os olhos aos olhares. — «Esos ojos detrás del cristal son dos negros cautivos cruzando el mar». Fechar tudo. Guardar as mãos do toque perigoso. Abrir mão de um amor e entregá-lo ao lupanar. — Perder a ilusão e a vida. Escudo em riste. Proteger o amor da morte, afinal. Pelo menos, com a certeza do fogo, ou dormimos ou pensamos. — E eu já não estou aqui.

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Eu tenho uma maravilha — flor na parede, erva no chão. Eterno ruído interior. Sempre extremo. Sempre companhia. Atinjo as cores pelos flancos para ser aceite por elas — sapatos alados. Nada me arranca o arco-íris. Nada me demove as ancas do Sul. No fim, a lucidez de tudo. (Ele morreu de coragem. Foi embora sabendo tudo. Sem lama. Sem lodo. Limpo. Cavaleiro.) Ah, eu tenho uma maravilha! Tenho a percepção difícil das nuvens, as tréguas. O parto. Vapor d’água. Líquidos. De beleza em beleza, eu voo. Eu sumo. Eu sobro. Desapareço. Porém, a casa.

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Ouve-me: Estivemos muito perto do fogo para nos tornarmos ruínas agora. Soubemos exactamente onde deixar os pés, esses alucinados mestres, antes que aquela música nos deixasse ao abandono. Deixámos que o Oceano nos arrefecesse antes de nos tornarmos no sal do transtorno. Não foi nada. Já sabíamos. Sabíamos onde pousar o corpo, onde deixar o soro das lágrimas antes de partirmos. Havia em nós barbitúricos elementos nos olhares intermitentes. As antevisões. As premonições. As cartas. Já sabíamos. Ouve-me um pouco ainda: Cair. Não cair. Descer devagar. Descer agora os dedos pelas costas de quem amas. Já sabíamos. Ainda há o arrasto, o lastro. É necessário. Estivemos demasiado perto do fogo para ouvir de novo aquela música e deixarmos que nos transforme noutra vida.

I can forgive my injuries. E espero-te feliz.

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Vai acontecer. Precisava não ouvir a minha voz. Precisava não assistir ao que acontece à volta. Não posso sonhar todas as noites. Mas lá vem, Marinheiro que atormenta, que nem sei onde fica. São destroços. Podridão dentro. Raiva. Este mal-estar ou estar por um fino fio. Uma nota agudíssima numa partitura mal escrita e dentro do ouvido. Devia ter sido uma baleia maior. Vai acontecer, eu sei. Continuo a viver num castelo sem Dragão. Ou, perspectivando, deveria ser eu o Dragão, mas o castelo é de areia e o meu fogo não importa. Nunca será o castelo a ruir: serei eu. Sem fogo, sem pele, sem perdão. Pedir água para gritar. Um grito com afago. Raiva na popa. Culpa no arpão. Um pequeno ponto de mim em mim. Crisálida de merda. Porca. Feia. Nem sangue, nem plasma, nem soro. Deves matar-te. Ensaboa-te. — Ninguém a segurar. As horas. As ondas. A multidão. Mrs. Dalloway. Pai, vai mesmo acontecer. Estou encolhida. Água do mar mais sério. Ficar lá. O copo na frente, ainda. «Ah, é muito difícil! Muito difícil!» — Não tenho amanho. Sou da preguiça. Não quero a outra vida de novo. Olhar muito direita para o chão e ficar assim. Pensar que a borboleta que ainda sou pariu outra para sempre. — Difícil enquadrar. Pensar só que os padrões não constituem uma aflição. Olhar o chão direitíssima. Vai acontecer. Diz que sim. Diz que vai.

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Houve quem lhe dissesse que era tão bom para os dois, era ainda muito menina. Gostava de ver o Topo Giggio. E era bom. Não tem culpa. Nem o Tweetie, que deixou que as cuecas lhe descessem. Ficou tudo naquela ilha e na ilha que agora é. A luz do farol era pontual na janela. Nada errado. Não sabe se nunca mais cresceu ou se cresceu demais só num dia. Sabe que não doeu. Já adulta, bateram-lhe, insultaram-na, disseram coisas, odiaram-na, desejaram-na morta. Pragas. Traíram-na. Desiludiram-na. Ela não esteve à altura. Errou. Desiludiu também. Mas nunca fingiu ser deus. Matam-na as heras de mau corte, os maus instintos, os homens que brincam com a paz. Matam-na os minutos arrancados à vida por lesmas, idiotices ordinárias para quem ande atento em qualquer rua. Importa-lhe agora a relatividade da distância entre os que se amam, e a proximidade dos que têm mãos e olhos e nada para não amar. Ficou lavada dos outros. Falta lavar-se dela, que está porca.

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JORGE MARTINS O todo e as partes, 2011


MARICA CAMPO

Imposibilidade do poema Ti querías dicir sen dicir cousa coa linguaxe das pedras desde os muros á noite, a ollada doutros ollos fendendo as aparencias, para deixar intactas certezas e preguntas no ritual estraño de vivir sen vivirte. Mais teces, tecelá, a arañeira en que caes, lepidóptera cega de palabras, bébeda bolboreta esvaecida entre os dedos da morte que non mata se fere mortalmente e non acerta. Tolleitas tes as ás, coutado o voo, mil séculos de chumbo a levidade que soñaras outrora, todo pende dun fío tan sutil que só resiste para termar de ti, a prisioneira que fixo a súa cadea coas palabras.

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Non matarás Non matarás o lume antes de ser a cinsa testemuña do incendio, metáfora dos soños en que ardías outrora. Non matarás o orballo mentres que o sol non pinte arcos da vella en cada pinga nova, cando cae sobre os prados o coitelo da luz e nas fondas valgadas fai o seu tobo a néboa. Non matarás aquela que te ve desde o espello, hala mirar aos ollos e facerlle preguntas. Responderache o día sinalado no almanaque da estrela que fulgura no ceo máis lonxincuo das galaxias. Non matarás a bágoa a rodar rostro abaixo nin a que a segue e outras: deviñeches clepsidra. Déixaas medir o tempo no reloxo de auga, déixaas que fagan sucos e sementa. Non matarás a sombra, a túa sombra, permítelle que queira duplicarte como un daguerrotipo en gris, borroso, onde non é posíbel coñeceres a avoa. Quizais alguén que pase á túa beira poderá descifrala e dicir o teu nome, porque a traes e a padeces tan pesada coma o grillón dun condenado a alxube. Non matarás o amor nin morrerás de amores, que non alcanza a terra para inhumar os ósos do xigante terríbel, do cruel invasor, do mendigo finxido que era un rei exiliado, traído na maré dacabalo nas ondas, mesturado coas crebas de todos os naufraxios desde que o mundo é mundo.

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ANTÓNIO CARLOS CORTEZ

Horizonte e regresso L’expression de la Poèsie n’admet ni la règle ni la licence, et un poète n’est jamais libre que de la liberté de la Poèsie. René Menard

I É noite A cidade morre um pouco mais na carne que foi sua e regressam os delicados animais por entre as dúbias figuras rasgando a pele dos corpos que flutuam são um rio esquecido já por entre a espuma Destes dias finais que não são nossos havemos de dizer que são de guerra quanto nas palavras se esconde Noite imersa em bruma porque foge dos ossos a certeza que houve carne Já uma incerta mão desnuda traz à boca restos de rastos e de dúvidas (Eu estive algures aqui há dez mil anos e nos meus olhos havia uma outra luz não estes rápidos corcéis de luzes cegas Noite europeia e portuguesa é certo isto A cidade um pouco mais que morre e eu desisto de escrever qualquer poema ou rima ou solução ou mesmo nada (parece-me que a voz agora às vezes falha)

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II uma dor que tinge de tremor este silêncio É isso a poesia quando surge Emerge como quem me afunda ou me suspende (uma necessária dor que me escreve e escrevo nela o que me lembra talvez a luz mais livre a juventude) uma urgente forma de dizer Quero ficar aqui talvez p’ra sempre e ter de setembro o gosto que foi nosso e não trazer nas mãos esse abutre que num poema antigo (porque era dor) era perda ou solidão ou era uísque

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III Com Alfonso Costafreda, in memoriam

Era um poeta sรณ Era uma fala Li a sua obra (ficou-me na garganta um nรณ que nรฃo sei desatar) ... nenhuma palavra afinal me sobra... (como se pode escrever Como se pode matar?)

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JORGE MARTINS Sem título, 2011 SW7(tecnigraf).indd 36

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JUAN KRUZ IGERABIDE

Jaitsiera Hirurogeietatik behera nator eta gora begira hasia naiz, zeru-usman, nire oinak, helmugari begiratu nahi ez, eta bihotzaren zain daude, adorea hartzeko. Adiskideak ugaltzen ari dira han eta hemen, udazkeneko gaztaina-uholdea diruditela, arantza eta guzti, arantza eta guzti, eta halere hain emankor, hain emankor. Bajada Ya me deslizo por los sesenta y miro las alturas olisqueando el cielo; mis pies se desvían de la meta y esperan a que el corazón los enrumbe. Las amistades pululan por doquier como inundación de castañas otoñales, con sus erizos, con sus espinas, sin embargo generosas, dadivosas.

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Elurretako lorea Jaioberrien begirada ahatetxo itsusiz eta ortzadarrez betea, eskutxo batean zooa, bestean oihan basa, aurpegian itsas hondoa, hatzak jolasean hortz zorrotzeko piztiekin; segundo geldiezinak, minutuak... galgarik gabeko orduak ahutzetara. Elurretako lorea: urtu zaitez berriro, bil zure soinekoaren izurrak, marraztu ongietorriaren aurreko adioa, ez geratu zain, sabaiari begira, soineko hori noiz uzkurtuko, ez baitzaitu babesten erauntsietatik ez eta egun baldresen hankapetik zeinak goizero galdera bera baitute, eta ilunabarrero harridura bera gaueko marrazo abisalen aurrean. Flor de la nieve La mirada de los recién nacidos llena de patitos feos y arco iris, el zoo en una manita, la selva virgen en la otra, el fondo del mar en la cara, los dedos jugueteando con las bestias de afilados dientes: inexorables segundos, minutos… horas sin freno hacia los fauces. Flor de la nieve: vuelve a derretirte, recoge los pliegues de tu vestido, dibuja un adiós anterior a la bienvenida, no esperes a retorcerte mirando al techo azul que no te protege de la intemperie ni de las pisadas de los días torpes que repiten siempre la misma pregunta por la mañana y el mismo asombro vespertino de los tiburones abisales de la noche.

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Zer egin ba, zer, inork ez baitu guztiaren ezereza ikusten? Jendetza kalean borborka irudirik gabeko ispiluetan barna; iragarki batek usoa aldarrikatzen du, estresaren gainetik hegan egin dezaten presaren babesgabeek, sufritzen ari baitira ez nozitzearren bidetik bazterrera geratzea eta autorik gabe igarotzea zer, eta botere eta aintzaren parte izan beharraren asperdura. Gozotegi irribarretsuen eta ke-hodi iheslarien usainak itsuen esnaera dakar, eta hor doaz lasterka joan-etorrian, in extremis salbatuko balira bezala. ¿Qué hacer, entonces, qué, si nadie ve la nada de todo? Crepita el gentío por las calles viciadas de espejos sin imágenes; un anuncio reclama una paloma para sobrevolar el estrés de los desamparados de la prisa o del sufrir para evitar otro sufrimiento, ese de verse tirados en el arcén sin vehículo para transitar por el tedio de sentirse parte de la gloria y del poder. El olor de las pastelerías sonrientes y de los tubos de escape fugitivos acompasa el despertar de los ciegos que echan a correr en medio del trasiego como una salvación in extremis.

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Hiru tulipan Hiru tulipan ubel parke publikora ongietorria emanez; emakume bat bere haurrari purea eskaintzen, haurrak koilarari uko eta eskua luzatzen du tximeleta batengana; ama berriro saiatzen da; tximeleta, inguruka. Zelatari suizida batek leihoko errezelak itxi eta etxe barrura jotzen du burumakur. Arratsaldeak ez du gehiagorako ematen. Aitona horren zizpurua ez da aintzat hartzekoa. Egunkarien lehen orrialdea Zinema Jaialdiari eskainia. Iraken bonba bat, zazpigarren orrialdean. Goseteko haurra ez da albiste. Garagardo mikatz samar bat hartzeko ordua da; tabernetan, adiskideak, zarata. Tres tulipanes Tres tulipanes morados dan la bienvenida a la entrada del parque público; una mujer ofrece puré a su niño que rechaza la cuchara y extiende la mano hacia una mariposa; la madre insiste, la mariposa revolotea. Un suicida mirón se retira cabizbajo y corre las cortinas de su ventana. La tarde no da para más. El suspiro de ese abuelo no cuenta. La primera plana de los periódicos destinada al Festival de Cine. Una bomba en Irak, en la séptima página. El niño-hambruna no es noticia. Es hora de tomarse una cerveza un poco amarga; hay amigos en los bares, ruido.

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Ezin jakin Entzun nahi zaitut, entzun, jende zoragarria zara, adeitasunaren biltegi, beherapenik eta merkealdirik gabea; atsegin ditut kaobazko silaba horiek, zure begiak aterki dira malkojariotik babesteko, begi-ninietan hezetasun arin bat baino ez. Mintza zakizkit, txalapartari leun, jo zura, jo burdina; adi nagokizu, zin dagit, baina ezin jakin zertaz mintzo zatzaizkidan. No sé de qué Quiero escucharte, quiero, eres gente encantadora almacén de buenas maneras sin rebajas ni saldos; me complacen tus sílabas de caoba, tus ojos son paraguas que te preservan de llantos copiosos, solo una ligera humedad en el iris. Háblame, suave percusionista, haz sonar triángulos y marimbas; te escucho, lo juro, pero no sé de qué me hablas.

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JORGE MARTINS TrĂŞs unhas negras, 2011 SW7(tecnigraf).indd 42

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SANTOS DOMÍNGUEZ

PENUMBRA DE LA MÚSICA Nació, como un conjuro, del miedo de las noches, de un ritmo sin palabras que era el del corazón y el del tiempo asustado de los astros. Siguen estando aquí, bajo las delicadas notas de algún piano o en el viento afinado de una orquesta, el que encauzó el aliento en un hueso sin tuétano para imitar la brisa o al animal furioso. Quien chocaba un guijarro contra la roca dura o golpeaba a compás un madero con otro como quien interpreta el corazón del mundo, el ritmo de los pasos o el latido constante de la alta luz del día. Aquí siguen estando, con sus piedras sonoras o los pies en el suelo, con su caña armoniosa o el tambor que era un tronco que convocaba al trueno. Aquel que una mañana sopló una caracola como si respirara el mar, como si duplicara el rítmico jadeo del combate o la cópula, la emoción de la caza, la angustia en la carrera, la vibración del viento o el canto de los pájaros. Nació, como un conjuro, del pánico ante todo lo que no tiene nombre, ni cuerpo, ni mirada.

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Del terror al sol negro y a una luna que se hunde para siempre en el mar. Y sigue estando aquí, como está en cada día la oscura sucesión de minutos y olvidos que completa la tarde, la tarea de penumbra que oscuramente somos.

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LA TARDE EN FUGA EN KOTHEN Das wohltemperierte Klavier. Bach BWV 846 (1720)

De plata y de cristal, en pie frente a las lágrimas, arde por los salones un juego de sonidos que brilla en los espejos y mueve los planetas al compás de las notas armónicas de un clave. Desde un papel pautado su músculo sonoro calmaba las tormentas, buceaba en el origen oceánico del mundo, prendía las hogueras orgánicas del tiempo. Por la desamparada cartografía del sueño bajaba incandescente su centella del silencio insondable de la noche al luminoso idioma de la fuga. Un rincón en penumbra de la tarde de Kothen coronaba de fiebre las órbitas del frío. Ya habitaba el futuro la conmoción serena de su música y encendía entre las sombras la brasa inagotable que brilla en las estrellas y en el recinto oscuro del poema.

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EN TI YA SOLO LLUEVE Las palabras del hombre que ya ha muerto se alteran en la entraña de los vivos. W. H. Auden

En ti ya solo llueve. Eras el que robaba el fuego transparente, el que cantaba en sueños con sílabas oscuras y en ti ya solo llueve. Hay tormenta en el sol, y aquí la tarde ruge sobre las tejas rotas y sobre los recuerdos con esta luz sin dueño, con esta obstinación de rueda rutinaria. Como quien lleva a cuestas un saco de cenizas, de sombras congeladas al borde de una herida y las deja esparcidas en un recinto oscuro de sangre impetuosa que no corre del corazón al centro sigiloso del tiempo, habías dejado escrita, como en un epitafio, la luz indescifrable de la desolación. Con la fragilidad del vértigo y la fiebre del viento desatado que ruge en los planetas o en la frente del lento animal de la tarde y el jadeo de su espanto cuando el sol se despeña, era un largo silencio lo que venía rodando desde el fondo insondable de la noche, del mar que llueve ahora sobre tu rostro solo.

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MEMORIA HERIDA Y COMPÁS DE MANOLITO DE MARÍA De la cueva profunda, del encalado fondo de la cueva se alza a compás su voz menesterosa como un torrente antiguo y subterráneo que brota de la roca del castillo del Águila. En la venta Platilla se afina humilde y llama al fondo de sí mismo y entona con un hondo compás atropellado la soleá cabal, la siguiriya grave, la bulería pausada y luminosa. En los tercios que canta -canta porque se acuerdarespiran las edades pesarosas del hombre y laten como laten los perros moribundos la historia desolada de la calamidad y un mestizaje extraño de dolor y alegría. Oscura como el fondo de la cueva, clara como su cante combustible, vibra allí la memoria herida de su raza -las fatiguitas negras, el desamparo, el hambrecon un compás herido de fiesta y amargura. De su voz desdentada brota una vieja luz inextinguible y en su hondo pellizco analfabeto hay un temblor de sangre antepasada, de memoria indigente de la especie. Llama negra en la noche inhóspita del mundo, rescoldo en la intemperie de las flores del fuego, herencia de palabras de los desheredados. No lo sabía y cantaba el tizón del estrago, la manera de ser de la desgracia con esa contención delgada y seria que no se aprende, que es el mapa doloroso de sus venas antiguas: Joaquín el de la Paula, Macandé, Juan Talega. Porque eso no se aprende, eso se nace -le decía a Mairenacon él, primo, en la sangre.

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INDECIBLE MUCHACHA Perséfone, la muchacha indecible Eurípides

Hija y madre que vuelves desde los negros muros de tu casa a la luz ancestral del confín de los tiempos, de los bosques oscuros al despertar del sueño. Madre, esposa indecible, objeto de plegarias con palabras opacas y rituales secretos que invocan la raíz de la serpiente en la tierra sin frutos en donde todo calla. Ven, ven desde la niebla, indecible muchacha, que en la raíz oscura donde germina el día hay una luz arcaica que sube desde el fondo de los ritos y se ve con los ojos cerrados y en silencio. Madre tú de la sombra, tejedora celeste, ven y vuelve fecunda la luz de cada día, toca con tus palabras la frente del misterio, invoca a los planetas, mira girar el tiempo en el espacio ardiente de la noche secreta. Haz presente tu lumbre en la noche de Eleusis, en el párpado abierto de las contemplaciones, en el lenguaje extraño y en las preces precarias. Oye la voz ajena de la noche del mundo y su velo secreto. Escucha a las madrastras, vengadoras de sangre, oye a las viejas niñas de los cabellos blancos. Desde el profundo sello de silencio, en la noche sagrada de los astros conviven el abismo sin luz de la semilla, los animales quietos y los dioses antiguos para llegar al centro donde arde el laberinto. Señora de la sombra, póstrate, y que la sombra se arrodille contigo

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sobre la lepra antigua del tiempo irremisible, sobre el retorno eterno del tiempo circular, muchacha renacida hacia la luz del mundo.

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SPIEGEL IM SPIEGEL (Con Arvo Part) E quindi uscimmo a riveder le stelle Dante

Ingrávido y oscuro sobrevive el acorde en el silencio azul de las bengalas y en el ritmo incansable que late en las mareas, con llama blanca que arde bajo el arco tensado que sostiene el planeta. Hacerse y deshacerse del presente en el mar, cifra del tiempo que nunca se consume en su espiral insomne. En lo oscuro, un remanso de plenitud sin peso y sin contorno. Y el tiempo se disuelve en el espejo del agua detenida, iluminada por una luz que viene del fondo del paisaje y de su propio fondo transparente. Surge del sueño igual que brota azul el agua y las estrellas negras y su oscuro oleaje. Pálido corazón sin garganta y sin sueño. donde despeña el tiempo sus sílabas de arena. Porque la lluvia anida su piedad y su música en el centro nublado del paisaje y el canto imperativo de los astros esparce sus indicios: rotaciones, fractales, laberintos y vórtices traslúcidos en la hondura sin fin de las huellas del tiempo sobre el hielo estelado.

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MARGARIDA VALE DE GATO

Caddy Pensei imaginar-te outra vez nua entre coisas brancas panos nuvens ovelhas e camarinhas frutos pequeninos que os teus dentes brancos ligeiramente inclinados para a frente para um beijo para mim trincam e tu tapas a boca com a mão e cospes caroços desenhas nos lábios um sorriso de vestal apanhada pelo sol e tu à procura os meus olhos rasos de assombro fundo rasos a sobrevoar-te dentro do teu corpo maculado de ternuras de ferida de raivas surdas de mínimos tumores de marcas ausentes de todos os amantes que tu não quiseste que te quiseram morder tu não deixaste até um dia te cansares de ser virgem chegares a mim a tremer tu à procura eu a detestar-te por alguém tinha de haver alguém a quem detestar no teu lugar em vez de ti se nem a mim ao fim de contas tu não deixaste eu não pude nunca tocar eu tenho os dedos brandos mas só o silêncio grande os teus olhos rituais mesmo assim mesmo quando coloquei a minha cabeça no teu colo e tu quase acreditaste e eu a querer-te vingando-te cheiro primavera perto das tuas costas

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dentes brancos frutos tu negaste nós a desejar que fosses talvez menos bela tu de desdém a beleza que te gastava tu sabias e sabias e resignavas-te e eras um adorno um risonho sacrifício de castidade passavas a fingir que eras mais alta do que eu eu consentia tu eras mais alta do que eu e todos os que consentimos nos lembramos de ti assim e fazem-se grandes rodas de choro por ti e eu fico só choro-te só a rasgar os retratos onde não apareces a saudade dos teus gestos rendados das tuas veias em teia à volta de dedos um rosário de fios de lustro é assim que eu me lembro de ti e os deuses olímpicos e os serafins melindrados e todos quantos se lembram de ti e ainda que se calhar nem sempre tivesses nas mãos a claridade das violetas eu recordo-te agora tinhas de certeza violetas nas mãos quando foste embora eu vi porque lá fora ainda havia dia.

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Obra Poética Completa Por demais requintado esse livro em que investimos: teus monstros, minhas rimas, teus senhores, minha esgrima em desmedida admiração. O crivo da sintaxe que transpõe: tuas penas longilíneas meus cerrados cílios teus leitos de dossel meus idílios teus zeppelins carregados de oferendas meus cinemascopes desejantes teus membros de volutas minhas garras de pavor tuas brumas mendigantes tua cósmica burguesa. Espanto de ambos: o que estoura não quebranta o resto entre nós foram só farras.

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JORGE MARTINS O sítio das coisas, 2011


ABRAHAM GRAGERA

II. LA GALLINA CIEGA Demasiado trajín. Incluso él, atento sólo a sus voracidades, su hienda, sus atrofias, sus picores, con la vista clavada en su nariz, y su nariz abierta al interior del mundo, se asomaba, sobre el portillo de la cochiquera, inquieto, poco antes de que el sol se levantara, y los hombres, tras colocar los cubos, barreños y cuchillos junto al tosco cadalso de madera, y ajustar, sobre la viga del galpón el fiel de la romana, lo sacasen, con una cuerda al cuello, y escapara. Las madres, de pie, junto a su hijos, murmuraban lacónicas, piadosas frases hechas para la ocasión: la réplica del coro a la simple soberbia de vivir, el eco del chillido, el aire rebotando en la garrucha, como una piedra que alguien arrojara sobre el esqueleto de un colchón oxidado en el pozo... Y el calor de la sangre removida, el olor de la grasa quemada, los primeros bocados compartidos, la perfecta, terrible simetría de su cuerpo, ya pesado, escaldado, dividido, mientras jugábamos a las persecuciones, a la gallina ciega, bajo el aséptico blancor del cielo.

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V. LA VOZ DE NUNCA Teme al silencio, pero cada tarde le pide ser su amigo, y se levanta, mientras los otros duermen, y camina por la penumbra fresca del pasillo hasta llegar al patio, donde espera. Pero el silencio no aparece nunca, porque hasta nunca tiene también voz, y ojos que miran a través del ámbar que lo ha enjoyado todo con él dentro: el caudal de las grietas que ahora siente latir sobre las líneas de su mano, bajo la nueva capa de pintura; la sombra del jilguero que aletea en la jaula vacía; los crujidos del mimbre destrenzado en la butaca; los planetas de moscas y de avispas flotando alrededor de los limones... Y así hasta el infinito, que se abría, igual que los limones, en el zumo amargo que su abuela le ofrecía cada tarde, para que no temiese más la voz de nunca: luz de beber que alumbraba los cuerpos por dentro.

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PAU JOAN HERNÁNDEZ

CONJUNT DE MANDELBROT Mira la duna i observa el perfil de cada gra de sorra, i calcula els efectes de cada fregament.

Podràs estar-ne cartografiant una almosta fins que el mico teclegi les obres de Shakespeare.

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BATEIG D’UN NEN PARALÍTIC Qui et rescabalarà del menyspreu i la llàstima que has vist pintats als ulls dels convidats? Digues al teu padrí que et regali un fusell quan facis la primera comunió.

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HAVENT TRADUÏT MARINA MAYORAL Aquesta agulla calda tintada d’obsidiana que ara et trepana els polsos és un coltell finíssim mortal com una llengua que et castra l’alba roja. Esmicolats en grànuls per un xoc ultrasònic de guitarres d’argila, els miralls de l’escuma naveguen per les venes com riuades fangoses. Els déus de l’extermini per bancs i per despatxos calculen percentatges mentre l’anyell s’ofega ebri de la sang morta, perfecte en l’holocaust.

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VIATGE DE TORNADA Tips de viure darrere les línies enemigues, vam decidir passar-les. Emparats en la nit, vam travessar els camps batuts per la metralla i els bassals d’aigua negra on moria la Lluna ens donaven refugi. Tot era quiet. Semblava que tot fos un miratge mentre nosaltres, nus, coberts de fang, sense armes, saltàvem els filats i creuàvem trinxeres. Vam tenir la certesa de la nostra victòria i vam esperar l’alba segurs que ens trobaria al nostre territori. Però érem darrere les línies enemigues tot i haver-les creuades. Vam veure que les línies tenien moltes cares i totes disparaven. Que, de fet, no hi havia ni banderes, ni front, ni bàndols, ni batalla. I tot i la tristor, ens vam sentir més savis.

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LA NIT DEL TRADUCTOR Cau la nit lentament i la ràdio murmura melodies de jazz. El monitor blaveja al cor d’un núvol de paper mentre faig meus uns mots vinguts de lluny. A noite, polas pólas dos carballos, achega un arrecendo de silveiras; a lúa escoita lonxe, na negrura o bisbar de alvariza do tecleo. Nire ume txiki sehastan dago, lasaitasunekin lotan, gozoan. Ene indarra da, ene esperantza, bide bakoitz, etorkizun bakarra. Abandono els meus mots i signo al marge, a poc a poc oblido tantes coses que he de cercar la força, la paraula, en sons que no són meus i em donen vida. Il restera toujours cette demarche sur les rues de la nuit, chasse silente de quelques mots lontains, de quelques livres, de ce qui reste à faire, à écrire, à vivre. Potser no importa ja, potser m’esborro a les columnes lleus dels diccionaris i oblido el meu oblit si no escandeixo la aguzada cifra justa del poema.

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PLAÇA RIUS I TAULET Els vells amors ja no tenen quinze anys i el barri s’ha tornat una altra cosa i l’avi que ara ve per la vorera passeja una nena que potser té els teus ulls. Els carrers ressonen buits amb les absències dels qui no tornaran i els que no hi són i ni saps si són morts. Els vells amics no viuen aventures improbables per les places i els parcs. Ens hem fet grans o, millor, hem envellit. La pols del temps ens griseja els cabells i la mirada. El teu amor té el regust de les coses que mai no han existit, i et desdibuixes com l’avi que ara ve per la vorera i passeja una néta amb els teus ulls.

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MICHEL HUBERT LÉPICOUCHÉ

Crónica de invierno en las llanuras del sur Ese corazón contempla en el cielo Su propia imagen pintada – Nada menos que el invierno, El invierno salvaje y grís. Wilhelm Müller El Viaje de invierno

I Se eternizó en exceso el invierno en secar los caminos encharcados, y ninguna alberca recordaba haber estado rebosando tanto. Con el agua vertida los olivos de las tierras bajas parecían sauces postrados bajo el peso de sus ramas en un paisaje de lagunas. Andar por los caminos empapados me obligaba a rectificar su trazado a cada paso según los caprichos del relieve que me forzaba a hacer eses más allá de sus cunetas. Caminaba con los pies llenos de barro, bajo un cielo gris que hilaba inexorablemente el capullo de sus hojas de este a oeste, hasta mi total transformación en crisálida atrapada en el espesor de noches sin luna. Dormía allí donde lo decidía el crepúsculo y el alba volvía a encontrarme con todo el cuerpo metido en ese arte de andar que sólo se despliega verdaderamente en el espacio interior del mundo que nos atraviesa. Al seguir así los pasos de Rilke, me sentía atravesado como él por el vuelo silencioso de las aves y, cuando miraba a lo lejos el frente frondoso de un olivar, era dentro de mí donde las raíces venían a sacar la savia que daba vida a sus ramas. II Se trataba de ir allí – pero allí hubiera podido ser cualquier otro lugar, siempre que la experiencia de la poesía me hubiese permitido solicitar su esencia. Hacia el sur, allí estaba el camino del sur al final del cual el último retroceso del horizonte significaba la promesa de tocar con los ojos esa franja del infinito que, llegado el verano, vibra unida a la luz cegadora. Aunque el cielo seguía jugando a ser el cielo en las charcas del camino, que se resistían a cambiar tan deprisa su condición de espejos por los de nidos de polvo, poco a poco el viento se desentendió de su rebaño de nubes, para solo dejar a unos claros la tarea de adornar el azul del cielo con la elegancia natural de los molinos eólicos. El paisaje cambiaba. Se trataba sin embargo del mismo territorio plantado de viñas y olivos que conjugaban su estricta alternancia con la monotonía de los caminos que siempre van discurriendo con la misma voz por los llanos. Pero, con la mejora del tiempo, de las lejanías había surgido, cada vez con más nitidez, la silueta de unas montañas bajas que se estiraban de norte a sur como el festón de un mantel en los límites de la llanura, hábil ilusión pictórica nacida de la superposición de finas partículas de laca en suspensión en la luz frágil del invierno. Aunque seguía fresco, me parecía que el aire se estaba preparando a traer los gérmenes precoces de una alegría de vivir que ya olía a

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primavera. Con el saneamiento de los suelos, el campo volvía a poblarse con actividades repartidas entre la poda de las viñas y la de los olivos y, filtrados por el ruido de fondo creado por las herramientas de labranza, de las hondonadas disimuladas entre los cerros o de la frondosidad plateada de los olivos me llegaban al oído cantares graves que contaban la alegría o la pena de los hombres según la apetencia de las mujeres en dejarse amar. De vez en cuando los almendros crecidos en el borde del camino me recordaban, con la blanca elocuencia de sus flores caídas, el origen legendario de su introducción en la Iberia de los moros: con la contemplación de esa nieve vegetal había sido curada de su nostalgia una princesa nórdica, favorita con ojos azules de un emir del reino del Algarve que, para complacerla, había mandado traer de Damasco ese árbol bajo el cual una chica dormida siempre se despertará embarazada después de soñar con su enamorado. III Casi siempre elegía descansar bajo un olivo a la hora de partir en dos mi caminata. ¿Acaso a ese género de árbol se refería Rilke cuando, adosado a un tronco y con los ojos cerrados, se sentía transportado hacia el otro lado de la naturaleza? Ojos del todo abiertos y atravesados por el azul del cielo filtrado por la vidriera plateada de sus hojas, el olivo era una catedral de luz en la que uno se siente obligado a invocar el ángel de Rilke. Con los ojos cerrados y la espalda apoyada a su tronco igual de verrugoso que una piel de dragón, es el pasadizo entre el mundo del espíritu y las fuerzas primarias que gobiernan el deseo en los humanos. Al no buscar ni querer nada en mi progresión hacia el sur, mi caminata no era más que el asunto de una elemental soledad en la que las incidencias de los demás mortales ya no contaban para mí y, con la sola compañía de mi sombra, caminaba. Pero, ¿qué es una sombra arrastrada en el polvo de los caminos por quien los sigue, sino el aliento de esa otra voz de la naturaleza que oía Rilke pegado a su árbol, y que se espesa a medida que va alargándose con la luz declinante de la tarde? No hay nada que se deje tanto provocar por la trascendencia como los detalles más fútiles de la realidad: un neumático de tractor casi sumergido en el fango de una cuneta, indecencia de su alma reventada que exhibe su armazón de hierro con la inocencia de los bodegones en los que están tratados con la misma indiferencia los conejos entumecidos por la muerte, un manojo de espárragos o las provocativas caderas de una mandolina descansando sobre la seda de un sofá; a lo lejos, las señales de los indios, que suben de la quema de los sarmientos echando chispas en las mismísimas narices de enero; allí y allá, bidones de gasóleo abandonados entre las hierbas, para recordarnos que el orden de la naturaleza nunca olvida excederse con la sobreabundancia de plásticos y metales siempre que le es posible. IV En el escenario de poniente, los claros facilitaban al sol una vuelta apoteósica de sus rayos que se alargaban lánguidamente con estelas de sangre en las franjas de las nubes. Jamás pensé sacar fotos. ¿Artista yo? Me era totalmente ajena la mismísima idea de que un paso dado en el barro o el polvo del camino fuera un ejemplo de escultura del tiempo, parecida a la talla en madera de un tótem, un buda o una madona. Ni siquiera tenía el pretexto de recuperarme de una fractura de tobillo, como fue el caso de Hamish Fulton en 1984. Que esa caminata fuera un viaje para mí como para él, de acuerdo. Pero,

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si los viajes suyos fueron una transformación pedestre de unas ideas, de unas ideas de viaje a su vez transformadas en una realidad vivida y fotografiable, no recuerdo haberme echado a andar por esos caminos del sur cargado con la más mínima idea preconcebida, además de mi mochila. Mi viaje podía acabar en el primer cruce de caminos encontrado, o prolongarse indefinidamente con el aburrimiento que procura la sucesión de viñas hacia el infinito. Como se habla de una bomba de agua necesitada de ser cebada cuando está aspirando solo el vacío, ¿qué pasos previos hubieran podido cebar el juego de mis piernas funcionando con el vacío de mi caminata hacia el agotamiento? En mis pasos no había nada - la nada, como en la almendra del poeta. ¿Existe acaso una sola idea detrás de la gimnasia del diafragma que sirve de piernas a mi respiración? Caminaba como respiraba, sin preocuparme lo más mínimo de que el camino podía ser entendido según su función metafórica de movilidad del lenguaje. Solo me afectaban sensaciones cenestésicas como el frío, el cansancio, y más de una vez padecí calambres. Andaba con la mirada tensa hacia adelante, con piernas de caminante que intenta ahorrar fuerzas, pues sabe demasiado bien lo que cuestan los últimos pasos cuando se llega al final de la etapa. ¡Así sucedía cada día! Se trataba de llegar allá, hacia esa vaguedad de la lejanía que siempre iba retrocediendo con mis pasos a lo largo de la jornada. ¿Acaso era esto andar, esa tentativa de lograr un imposible ajuste entre la proximidad exacta abarcable con una sola mirada, y esa vaguedad de las lejanías que se negaba a insertarse en lo esencial de mi percepción? ¿Y el límite que debía alcanzar con mi último paso? El agotamiento, esto es, el agotamiento en el conocimiento de la profundidad, ese mítico punto de mira que permanece invulnerable, a pesar de las anamorfosis ligadas a la perennidad de lo borroso.

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JORGE MARTINS A raiz da sombra, 2011 SW7(tecnigraf).indd 66

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CÉSAR IGLESIAS

Notas de ornitología Estos pájaros negros nos anuncian marzo y abril; blackbird dicen al norte; aquí para nosotros mirlo, o tordu y ñerbatu en la lengua desterrada. Los oímos cantar en la espesura de Lluveces, en parques con tristeza de orfandades y juegos detenidos, en urbanizaciones con farolas que alumbran la miseria a campo abierto. Wallace nos enseñó a mirar de trece maneras muy distintas su perfil. Keats prefería oir al ruiseñor para calmar la niebla de las almas. Leopardi habló del passero solitario, camuflado en su abismo sin más rezos. Saba lo persiguió entre la Bora huyendo de su culpa con ancestros. Hughes lo buscó en los campos de la turba más negra por la bruma sometidos. Zagajewski lo vio oculto del miedo de un país construido con las ruinas y la vergüenza de hombres derribados. ¿Qué nos queda a nosotros? La plegaria tal vez, algún poema o escuchar en la bruma la agonía de este pájaro negro sin silencios.

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Cartografía de la desolación El hacedor de mapas está solo, no necesita guía. Caminar lento por la comarca de la nada es un oficio sin más letanías para los que no saben de la espera ni de las escrituras del olvido; para aquellos que viven y se buscan con las topografías del espanto; para los que los páramos son trazos dibujados con hiel y sacrificios; para aquellos que observan el abismo con el aliento que otorga el vivir. El hacedor de mapas sólo tiene un mandato: marcar líneas de ocaso.

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Rastreos del consuelo Buscamos la luz más difícil, luz que muestra oscuridad a campo abierto, que descubre la niebla de los cuervos y de las aguas negras sigue el cauce. Rastreamos la zona gris del miedo que esconde los talleres del terror, que preserva las cánulas dolientes y camufla las sombras del acecho. Buscamos lo indecible porque allí descansa esa otra oscuridad que silencia la pena sin más nombre, que crucifica pérdidas sin brazos y extiende las verdad de las sábanas. Perseguimos consuelos imposibles porque ni fe tenemos, ni esperanza nos queda para ser más que osamentas.

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La otra calma Afán de moribundos somos, tercos en nuestra vocación de pobladores de tumbas: nuestro anhelo es reposar donde insiste el espanto y la tiniebla.. Las apariencias sobran, verdad pura sin velo*, no más sombras ni más llamas que oculten la intemperie que nos lleva a buscar el aliento de Dios nuestro. Estas madres que acunan las mortajas de sus hijos huidos en el aire piden los atributos del martirio. Ni ternuras ni hierros, solo el credo, sola la luz que alumbra los finales para alcanzar la calma más oscura.

* Fray Luis de León.

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En otra vida Ya no quedan monedas para tantos ojos, ni mĂĄs lamentos que decir. Llegado es el momento de buscar otras formas de hablar con los raitanes, que con sus cantos rojos nos alertan de los temores dulces de los bosques, de los ĂĄngeles negros sin caricias, de los aullidos sordos de la noche, de las habitaciones con lamentos, de los rezos inĂştiles del viernes, de las mentiras dichas de rodillas. Es nuestra oscuridad quien prende fuegos a aquellas malas luces de osamentas sin tumbas ni siquiera en sus ocasos.

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La senda oculta Los que nada buscamos, algún día podremos encontrar la senda oculta, la misma que nos lleva al lugar donde el bosque ulula el miedo de la infancia; donde un viento feroz trae sus aullidos para ocultar el llanto del consuelo; donde el tronco del roble no es guarida a los ojos sanguíneos de los lobos; donde la podredumbre es alimento para una tierra infértil y voraz; donde la oscuridad alumbra hogueras con fósforos y astillas de rencor; donde los topos velan la memoria de los que ocupan tumbas en secreto; donde el gusano horada en esta tierra las raíces y el cráneo de los padres suicidas; donde el trueno sordo y ciego enmudece las noches de la infamia. Nada buscamos, nada, tal vez el espanto de nuestras elegías y plegarias que calma la fatiga en la senda que nos lleva al asombro.

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MARTÍN LÓPEZ-VEGA

Gótico

cantábrico

1, “¿Quién es ese hombre?”, preguntó mi abuelo al ver la fotografía. “Es tu madre”, respondió la mía —para él la memoria ya no era más que una sucesión de espejismos sin sintaxis. Aquel hombre era su madre: la pobreza no tiene sexo. Ella, Concha; él, Esmael, pronunciado así, a la manera de los pasiegos. Él, asturiano de Poo de Llanes; ella, vasca, rubia y de ojos azules, aunque en la fotografía pueda parecer un hombre más; mujer no se nace, se hace una, decía Simone. Tuvieron doce hijos; el mayor, Ismael, el favorito, murió en la mili; comió macarrones crudos; por una apuesta. No hubo manera de que se pusiera en pie; Te compraré el reloj, dijo Esmael; nada. Los hermanos iban al colegio de monjas en Cabezón de la Sal, un mes cada uno. “Para lo que alcanzaba”, dicen los anales. Uno de sus hermanos se acercó a saludar a mi abuelo en el entierro de mi abuela; mi abuelo le dijo:

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“Si no te digo que no, será verdad que eres mi hermano; pero yo no te conozco”. Años antes, mi abuelo había ido a ver a su padre y su padre le había dicho: “Si no te digo que no, será verdad que eres mi hijo; pero yo no te conozco”. “¿Quién es ese hombre?”.

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2, Debieron de decirles que miraran hacia un lado; los dos tienen el rostro vuelto hacia su izquierda; pero Esmael, mi bisabuelo, mira de frente a la cámara. Mi bisabuela Concha, ella sí obedece. No se sabe cómo irían vestidos aquel día; la ropa está pintada en la fotografía; camisa de cuadros para él; blusa con estampado borrascoso para ella. Borrascosa la mirada de ella también; como si acabara de perder algo o a alguien o llevara toda la vida perdiéndolo. La de él alerta, desconfiada, un poco desafiante; “Que quede bien”: la fotografía; la vida. Ella tiene más arrugas que él; ella tiene más vello que él; ella tiene la boca más cerrada que él; ella obedece, al fotógrafo, también. Nada más en la imagen; ni una casa; ni un almiar; ni vacas; ni guadaña; nada. Desde aquel raro día en que se fotografiaron él me mira; ella no se atreve a mirarme. Ella me descarta, piensa: “No es de los nuestros”. Él me inquiere: “¿Qué has venido a preguntar, qué quieres de nosotros? ¿Quién eres, hombre?”.

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Poema

de género

Mi padre me lo enseñó todo acerca de cómo no debe ser un hombre. Mi abuelo me lo enseñó todo acerca de cómo eran antes los hombres. De modo que me fui haciendo hombre sin saber cómo ser. Sobre el asunto, los libros decían poco. Lo que dejaban entrever las canciones tampoco me convencía. El arte decía: las mujeres, mejor desnudas, mejor mudas, mejor incluso tullidas. Pregunté a mujeres que me enseñaban una teoría y me respondían con una práctica distinta. Si fuera cierto que errar es el mejor modo de aprender habría llegado a algún entendimiento. Y sigo sin saber coser un botón ni hacer una maleta, pero del mismo modo que lo hacía mi abuela (mi abuela desdentada no por el hambre, sino por la ignorancia) (mi abuela analfabeta que componía poemas con rima) separo lentejas de piedras, guiso las lentejas y con las piedras hago caminos por los que nunca volver.

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Jardines

de

M arzo Sobre un tema de Mogol/Battisti

Buscaba entre partituras en clave de no la horma de mis pensamientos futuros. En clase, nuestras miradas se cruzaban y una sensación de infinito me invadía y vaciaba. Era mirarte y de mí huían las permutaciones, Egipto, dos trenes que salían de diferentes ciudades a velocidades distintas, la razón pura, el genitivo y el yo. Al salir del instituto todos se iban al bar y yo les miraba como si sólo por hacerlo fuera a nacer en mí el coraje de imitarlos. Pero después de un rato volvía a buscar la salida de emergencia de mi edad. El tránsito de la aparente dualidad se me hacía un poco largo. Ya me iba hacia casa y tú me llamabas, pidiéndome que te esperase. Me preguntabas: ¿por qué estás tan callado? Desde que tengo dieciocho años estoy preparado para morir. Aprendí de maestros como Milarepa que caminaban sobre las aguas, volaban y atravesaban rocas la no sustancialidad de la naturaleza originaria de las cosas. Hoy en el mismo instituto se agrupan los jóvenes que sienten la llamada de las viejas trampas de la especie. Un muchacho pasa junto a ellos que se me parece, repite cada gesto mío creyéndose el primero. Tú caminabas a mi lado y nunca fui capaz de decirte las mismas palabras que insistían en mi cabeza hasta doler. Al llegar a la plaza de la Escandalera nos separábamos y tú te ibas hacia casa desapareciendo como la actriz de una película cualquiera. ¿Cuántos años han pasado? ¿En días, cuánto tiempo es? ¿Cuántas horas? Mi voz, como ves, ya no tiembla al hablarte. Traigo en mí cielos infinitos y amores eternos y acabados, y uno presente; ríos taoístas y praderas budistas por las que mansa fluye mi melancolía.

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El universo se acomoda dentro de mí pero la valentía de vivir es sólo un gesto por la mañana, frente al espejo, cuando me digo hoy sí.

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Un Chernóbil

de la mente

Sobre un tema de Lars Gustafsson

También hay Chernóbiles de la mente, zonas que evacuamos hace tanto que ya ni siquiera sabemos de su existencia. ¿Cómo eran, quién las habitaba? ¿Qué podría haber medrado en ellas? Hoy son pasto de los lobos, hogar del pez de tres cabezas. A veces vagabundeando sin destino sentimos de pronto un tipo especial de vacío gris que no es dolor ni rabia, tristeza ni melancolía, sino algo distinto y topamos con rastros, presagios, pistas que no sabemos descifrar ni seguir. Iríamos, si supiéramos cómo. Ignoraríamos las señales de peligro y nos adentraríamos cámara en mano en busca de habitaciones vacías con el papel de pared arrancado, o de columpios mecidos por el viento en los que se balancea una sombra que ya no reconocemos. Entraríamos en un portal familiar y descubriríamos un buzón abierto y herrumbroso con nuestro nombre en una tarjeta y sobres dirigidos a nosotros abiertos y sin contenido. Subiríamos las escaleras sin apoyarnos en la barandilla un poco suelta con cuidado de no meter el pie sin querer en uno de los agujeros que hay en los escalones como si hubiera habido una guerra no declarada. Abriríamos la puerta guiñada y una vez dentro en un cuarto gélido ya sin cristal en las ventanas con el gesto que sólo usamos rotos y a solas nos encontraríamos.

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Cereza

sola en el plato

una sola cilieglia sul piatto Dacia M araini

No está en el orden del universo que ciertas cosas vengan solas (algunas crean su hermandad a posteriori, por ejemplo: el número cero, la mano izquierda, la letra h y el arroz blanco). Pero las cerezas ya vienen del árbol como muy solas, de dos en dos haciendo pendientes como los que Tatiana jugaba a ponerse —teníamos cinco años— bajo el emparrado de su casa. Y sin embargo, ahí está, cereza sola en el plato. Y tal vez sea más feliz así, como las cantatas de Nicola Porpora cuando no prestas atención a la letra. Pero es también un espejo, un punto de interrogación y no sé qué decirle, yo que sí soy del orden de las cosas del mundo habituadas a darse solas, sólo sé en un acto de amor llevármela a la boca con esta felicidad de encontrar sólo lo que no busco y convertirme en ello.

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O

comboio dos cépticos otimistas

Mi amigo João Camilo dice que sólo no duda quien no ha vivido lo suficiente o no ha pensado lo bastante, y quiere organizar un tren al que nos subamos todos los escépticos optimistas, los que dudamos y aun así creemos. ¿Creemos en qué? No en un destino ni en un sentido; creemos en lo que vemos, ¡y vemos tanto! Y también creemos en que queda siempre algo por descubrir, algo o alguien por amar, una inagotable molécula de intensidad esperándonos aun después de todas las desilusiones y todos los fracasos. Luis Cernuda era de los nuestros: “No eches de menos un destino más fácil”, escribió él, y por supuesto que no: este —que no es destino, sino generoso azar— es el nuestro, y en interpretar su dialecto extraño perderemos la vida si es preciso. A veces nos duele la cabeza de tanto recordar: recortamos cada instante y lo guardamos como un trozo de vasija encontrado al azar en una excavación a partir del cual ya es imposible reconstruir nada. Y sin embargo… ¿No hubo una vez que sentados en el alero de una ventana con la ciudad a nuestros pies —el Pantheon, la cúpula de Miguel Ángel—, fuimos Onegin y Lemsky, recitamos: “Ola y piedra, poema y prosa, hielo y fuego no son, quizás, tan opuestos?”. Los lugares a los que quisimos ir y no fuimos se borran de nuestra mirada dejando en ella puntos negros como islas en las que ya sólo existe una larga noche sin amor ni canciones, fría como un rincón de universo por el que nunca pasa un cometa ni el perdido satélite de una civilización melancólica e ingenua. Las marcas que dejamos en el tiempo para reconocernos cuando ya fuéramos otros las entiende sólo el adolescente

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que llevamos encerrado dentro, le hacen daño y no se atreve a contarnos nada. Las alas que llevamos a la espalda y nunca usamos se atrofian y duelen como si fueran algo ajeno haciendo que nos encorvemos hacia la tierra cuando deberíamos estar buscando nuestro lugar en el cielo. Pero somos quienes recolectamos las hierbas que crecen en los pocos días felices, y las prensamos —sólo una vez que el día ha pasado— para guardarlas en bolsitas que infusionar después en los días corrientes, para que así sepan también a verano y a Roma, a pasiflora y salitre, a alegría y ocle. Levántate y anda no es un milagro: es el oficio de toda nuestra estirpe.

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Restauración

del

Calvario

de

Van

der

Weyden

I Etimología Calvario: en griego, latín y arameo, “lugar de la calavera”. Para los judíos, lugar donde está enterrado el cráneo de Adán. II Asunto Llegó a las afueras de Jerusalén arrastrando una cruz porque la voz que hablaba en aforismos le dijo: los salvarás a todos, y él respondió, pues amén. III Pigmentos Todo cuadro es una lectura de la luz. La púrpura de Tiro antes de ser pigmento es el líquido con que un caracol se ha defendido de un ataque. Arshile Gorki usaba zumo de manzana. ¿Cómo restaurar lo que de vida dejase el pintor? Fácil: el negro que sea siempre negro de humo, el resto de un incendio. IV Intermezzo El azufre es la sonrisa del oro. El oro se malgasta en las canciones. Las canciones nos desvían del camino. El camino es azufre. V Restauración Hubo que: limpiar las malas restauraciones antiguas. Retirar la retícula de madera envejecida.

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Desvelar el plan previo. Eliminar añadidos: la emoción de los evangelistas, las lágrimas de las beatas, estucos y repintes, metáforas piadosas. VI Dubitas Quién va a venir a endurecer el pan Quién va a venir a apagar el color del fruto Quién a vaciar las cuencas de los ojos Quién a llenar cuencos de silencio Quién pondrá dentro el primer gusano Quién abrirá la ventana que oreará el hálito VII Amemus Amemos cada esquirla vieja y nueva de belleza sin significado que pese a todo nos salva porque sabe salvar y se hizo para salvar.

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MARIO LOURTAU

RESIDENCIA EN LA LUZ Residís en la luz, poetas inmortales, vosotros que vivís en la espiral del mundo y cantáis al otoño como a un ave ya extinta; que blandís en una mano las vísceras de todos los recuerdos y en la otra, joviales, sostenéis la tinta que desprenden las estrellas. Residís en la luz, poetas inmortales, que a fuerza de sembrar en las palabras habéis parido a otros poetas nuevos, y es vuestro verso abierto un mapa sin fronteras, un gesto, una caricia, y es vuestra savia el cáliz donde habremos de beber eternamente. Sabed que vuestra herencia es nuestro aliento, el generoso don de todas las estirpes, la casa donde habitan -ya sin murosla luz y la esperanza.

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LA DICHA Se afana la tarde en perseguir recuerdos, en querer remontar hasta el olvido mismo de las cosas y hurgar en sus cenizas. Remueve entre sus ascuas, como una sombra espesa, aquellas viejas glorias de un tiempo ya apagado donde nada fue acaso aquello que soñaste. Luego vuelves a tierra, y herido de cordura, abrazas el silencio, tocas fondo. No es misión del recuerdo devolver a los hombres la luz de su estatura, hacer de lo perdido un bálsamo falaz para sanar abismos. Quedémonos aquí, distantes del pasado, hagamos de esta llama intermitente una hoguera común donde alentar la vida, dejemos que este instante de luz inabarcable nos cubra por completo y aspiremos -dulces, suaves, ebrios de fraganciasel don de compartir el uno frente al otro las palabras, el tiempo, nuestra dicha.

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LA NOCHE CONTEMPLADA Pellizcas hoy la luna como el que arranca pedacitos de pan al universo. Sin apenas notarlo han trazado tus ojos un sendero de diamantes en lo alto de todas las esferas. Igual que un gran puñado de migajas, la noche se desploma bajo cientos de estrellas. Y tú estás allí, gozoso del milagro, sentado en el verano de las ensoñaciones, robándole a la noche su luz y su sentido.

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ALINEACIÓN DE LOS PLANETAS La vida es así, un par de viejos jugando a la petanca, mientras la tarde cae como una bola espesa sobre el foso. Calculamos las distancias y los tiempos: las parábolas, el viento, la gravedad de nuestras acciones, siempre pendientes de que otras bolas -planetas alineados en su perfecto planono rompan nuestra armonía de seres rutinarios, no hagan vacilar nuestro sereno status. Frágiles, aceptamos sin más las circunstancias. Vivimos en continuo desafío. Vencemos y nos damos por vencidos. Ese pequeño corazón que rueda entre la arena es nuestra meta: acercarnos o alejarnos de nosotros mismos quizá pueda salvarnos la partida.

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40 Se acerca ya febrero, lentamente, desde la luz taimada de este invierno hermoso y compasivo. El tiempo, como todo, no da tregua a los años, a esta edad que en silencio se demora en tu cuerpo y asedia con sus luces y sus sombras. Serán cuarenta años, con éste, los que cumplas, una cifra tan redonda como extraña. Y ya has vivido mucho si comparas las lunas que han pasado con las que acaso queden. Hasta tu aniversario viajan, intactos de armazón, con esa llama viva en la memoria, todos esos amigos de la infancia, la quinta que aún te mira sin reproches desde la juventud, desde las altas torres donde creció el desvelo y sazonaron las primeras cicatrices de la vida. Quién lo diría, después de tantos años. Habrá que celebrar tanta fortuna, abrir con entusiasmo, como el que abre un libro, un nuevo anecdotario. Soplemos hoy las velas, -sed conmigo-, que nadie nos apague cada instante dichoso, cada goce, ahora que aún nos habla el corazón despierto, ahora que aún estamos todos vivos.

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REINO DE LOS BARDOS ¿Quién os dijo el sabor de la amargura y os habló -con desdén- de géneros menores? ¿Quién os habla- desde la niebla negrade abstractas celosías, de voces apagadas, de papeles manchados por tinta diluida donde solo gravita la sombra del poeta? Desoíd al ingrato, borrad las cicatrices del rencor, la vanidad, la envidia, y sed condescendientes. No derraméis espadas donde se ovilla el tiempo. Complaced con palabras y templanza, pues no existe otro modo de rendir pleitesía a nuestros iguales. Bebed de los silencios, de la verdad, del alba, y haced de cada estrofa, una forma distinta de celebrar la vida. Al cabo, poseéis, bajo esta luz sagrada, ese don con que se entrega el corazón al mundo, ese hueco interior donde germinan la bondad, el perdón, la inmensidad del hombre.

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EL PULSO DE LO ETERNO Elegía por Miguel Ángel Velasco

Tan puro y mineral yaces ahora, tan hueco y tan distante de labios y licores, del polvo de la vida y de sus celebraciones, que apenas veo horizonte si recuerdo lo tanto que sufriste y lo temprana que levantó en tu ser la muerte el vuelo. No exagero si digo que viviste con los ojos abiertos como un niño que mira la espuma de los días romper su hechizo sobre el óxido letal que embriaga el sueño. Si acaso regresases, desde la luz quimera, a este lugar de niebla y desencanto, no sabría qué ofrecerte de vuelta ya a este mundo: tal vez unas cervezas rodeado de amigos, o unas cuantas palabras de aliento y compromiso, aunque intuyo, sin más, que no rechazarías la emoción de un poema latiendo en las entrañas o el silencio que dejan, después de las hogueras, dos cuerpos que se aman. Sin embargo, amigo, objeto que quisieras regresar a la verdad de nuestros días, alzar la vista al frente y ver que todo como un dios de cristal se desmorona. La vida en estos lares, -si te sirvesigue siendo un corazón de cal y espinas, un hombre cicatriz que aguanta y que sostiene los muros del desahucio, promesas, corrupciones, el olor a podrido por los barrios del alma y la mucha tristeza disfrazada de espanto. Más allá de esta soga que oprime con su sombra, nos queda respirar, lamer la miel amarga de los días, jugar a ser acero, tragar tierra, y bebernos el sudor de las entrañas. A los que aquí quedamos, -tan breves, a la espera-, -en cálices de barro o de cenizasla muerte una vez más nos ha brindado las brasas de la luz para seguir viviendo.

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JORGE MARTINS O espĂ­rito das nuvens, 2010

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JORDI MAS

Astres, aspres

El Molí del Pocurull Una mica més endavant, el camí baixa i es desvia lleugerament a l’esquerra, cap al riu, el terreny s’enclota al peu del marge de l’extrem sud del tros i dos graons alts de pedra ben tallada, amb una bancada de llosa a cada banda, delimiten un petit replà on dues o tres persones, assegudes o dempeus, podrien fer petar la xerrada o travessar el llindar i endinsar-se sota l’arc apuntat —compte amb el cap: el mur és més gruixut que no hauries dit des de fora. A dins, els ulls triguen una estona a acostumar-se a la penombra de la volta també d’aspecte gòtic. Algunes pedres del sostre han caigut i els forats revelen l’entramat que sustenta el sòl del camp de sobre. A poc a poc, de la foscor que cobreix el terra de l’estança van emergint lloses caigudes, utensilis rovellats, restes de maquinària desgavellada. Al fons, una forma rodona, blanquinosa, es va aclarint i passa de taca circular a possible roda de carro i, potser, roda de molí. Què hi fa, però, una mola aquí? La sala és massa petita per haver-hi encabit cap mula que la fes girar, i el riu corre més avall, força lluny d’aquest indret on, sense cap bassa o sèquia a la vista, tampoc no es podria haver emprat la caiguda de l’aigua per fer girar un molí. Concloc, per què no, que l’estança ha de ser la tomba d’una donzella mítica —en donen fe les proporcions de l’interior i les del coixí blanc on recolzava el cap— que fa segles s’hi va ajeure —boca amunt, com una princesa de conte, o de costat, mirant cap al nord per evitar la llum de l’entrada— i es va endinsar al son secular en què es va anar esvaint literalment, desintegrada en pols, o del qual es va despertar fa temps per sortir a buscar l’aire i la llum de fora. L’únic rastre que ara en queda és el coixí i les restes ruïnoses de l’aixovar. O dels somnis inconnexos que hi va tenir.

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Mare de Déu de la Llet Fa uns quants anys, els pocs veïns que ara viuen a Sant Gallard o hi vénen a passar els caps de setmana en van recuperar, per alegria dels amics i els descendents de les famílies que n’eren originàries, les festes que s’hi celebraven abans. L’espai que acull les trobades és el rectangle que hi ha darrere l’esglesiola, dedicada a la Mare de Déu de la Llet, per bé que la imatge que avui la presideix és un sant Josep amb el nen Jesús —l’anterior va desaparèixer durant la Guerra Civil. Per Sant Joan, aquesta placeta informal és plena d’herba que han alimentat les pluges primaverals, i el foc que crema des d’entrada de fosc fins a altes hores de la nit hi deixa un ròdol negre que durant tot l’estiu dóna constància de la força abrusadora del solstici. Si a final d’agost hi ha alguna tempesta, és possible que per la festa major, que se celebra el cap de setmana de després de la Mare de Déu de setembre, el cercle sigui menys nítid i s’hagi assimilat, poc o molt, a la verdor circumdant. En tot cas, l’aire del vespre pot ser molt fred a aquestes alçades de l’estiu, i, quan el sol es pon, els veïns encenen una foguera al mateix lloc per escalfar-s’hi les estones que paren de ballar o xerrar-hi mentre fan la sobretaula. Aquest cop, tret que la tardor sigui molt plujosa, la petja negra del foc sol durar fins a principi de primavera, i molts anys encara es pot distingir per l’alçada i el color de l’herba quan torna a arribar Sant Joan.

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Santa Maria de Guialmons El camí del Convent es bifurca poc després de sortir del poble. Si agafessis el de l’esquerra, aniries a parar al Camí Vell de Sant Gallard, mentre que el de la dreta travessa la carretera i porta cap a la Font del Llop, que queda a l’esquerra, i l’ermita romànica de Sant Salvador de Figuerola. Des d’allí, evitant altre cop els camins que giren cap a l’esquerra —llevat que vulguis tornar a la carretera—, continues pel que mena, sense gaires esforços, cap a Santa Maria de Guialmons —o Guimons, com has de dir si no vols que et prenguin per foraster: potser la contracció del nom fou motivada per l’escassa altura del turó on es va bastir el llogaret, que, tot i la manca de pretensions, ofereix una de les vistes més belles i més exemplars, en el sentit literal de la paraula, de tot l’Alt Gaià. Després tens l’alternativa de girar cap a l’esquerra, per on, travessant l’indret conegut com la Terra Promesa, acabaràs desembocant en una zona abrupta en què la carretera de Pontils s’omple de revolts, o bé continuar més o menys recte i, deixant Les Piles a la dreta, fer cap, finalment, al nucli de Biure. La padrina explicava que aquest poble devia el nom a la construcció, feia molts anys, d’un cementiri que n’havia de ser l’orgull. El problema era que no es moria cap veí per estrenar-lo. L’assumpte se solucionà amb una rifa que concedí a l’afortunat guanyador —o guanyadora, la narració de la padrina no ho concretava— l’honor d’inaugurar la nova instal·lació. Algunes obres sobre la toponímia de la comarca expliquen la be alta no gens normativa que encapçala el nom d’una manera que, al capdavall, és coherent amb la història de la padrina: Biure —en aquest cas de Gaià, però a l’Empordà n’hi ha un altre—, seria una contracció de Benviure, cosa que podria explicar les dificultats per estrenar el nou cementiri. Però potser no cal anar tan lluny, i ens hem de resignar al fet que l’alfabetització del poble i l’estandardització de la llengua van arribar massa tard per evitar un escàndol ortogràfic d’aquestes proporcions. D’altra banda, és fama que l’aigua de la font de Biure és la millor de la rodalia, fins al punt que un bon nombre de colomins —l’aigua de Santa Coloma, com la de gairebé tota la Baixa Segarra, és d’una qualitat pèssima— hi vénen a omplir-ne garrafes cada setmana per beure’n i cuinar-hi. Un fet tan prosaic i poc remarcable com aquest podria donar lloc a una tercera etimologia, potser poc ortodoxa però sens dubte escaient: el nom de Biure vindria de la fusió —poètica i, per tant, plausible i fins i tot necessària— dels verbs viure i beure —aigua, és clar.

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LUÍS FILIPE CASTRO MENDES

EM ITACA Ce qui vient au monde pour ne rien troubler ne mérite ni égards ni patience René Char

O regresso a Ítaca foi muito diferente do que esperava o outro Ulisses. Ele preparara-se, é certo, para as astúcias dos pretendentes, mas em muito mudara o Reino de Ítaca e por isso a primeira coisa que fez foi aprender. O cão Argos era fiel e discreto, mas riam-se daquele homem que à ilha arribara em tão avançada idade. Uma mulher, que lavava anáguas no mar, perguntou chocarreira “Quem és tu? Que rosto nos mostras, que propósito nos trazes? São as tuas palavras mornas ou ardentes? São de fogo ou de cinza?” Mas Ulisses era o dos mil ardis. E assim o inspire o verso e a malícia.

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JORGE MARTINS O destino das formas, 2011


EDUARDO MOGA

[TIEMBLAN TUS PUPILAS…] Tiemblan tus pupilas [también tienen esfínter] como tiembla la noche, y mi mano huérfana adereza tus lágrimas [las lágrimas permitieron a Alexander Fleming descubrir la lisozima en 1922] vertiginosas en el hueco apresurado de tu nombre. Me oyes aunque calle, aunque desguace la luna que nos araña con el buril genital del grito. Y yo te oigo a pesar de que tus mucosas [epitelio y tejido conjuntivo laxo subyacente] se interponen entre el tiempo y la tristeza, y balbucean, irisadas [las irisaciones se producen cerca del Sol: a menos de 10 grados de distancia angular se generan por difracción, mientras que a distancias angulares mayores se generan por interferencia] de torpor, como balbucea el cervato [también gabato en Andalucía] ante la nada. Óyeme en la trepidación del mundo, pájaro de nudos y fecundidades, porque ríes con el dolor del heliotropo [Chrozophora tinctoria] y te viertes en las alturas; suéñame para redimirme, para ser oblación [no debe confundirse con ablación o ablución; «cuando alguna persona ofreciere oblación a Jehová, su ofrenda será flor de harina, sobre la cual echará aceite y pondrá sobre ella incienso » (Levítico, 2, 1; traducción de Casiodoro de Reina y Cipriano de Valera)] de tus manos buenas, cielo de barro, luz contra la insuficiencia. Óyeme y tráeme a mí donde tú estés, sea este silencio sin ruido, o la disgregación que te construye,

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o la agonía [αγωνία: sufrimiento extremo] de los minutos embravecidos como clavos. Tu oscuridad es mi muerte. Tu no ver me ciega. Reposo en tu ausencia como la alondra [Alouette, gentille alouette, / alouette, je te plumerai. / Je te plumerai la tête, / je te plumerai la tête, / et la tête, et la tête, / alouette, alouette, / oh, oh] en el alambre que sobrevuela el albañal. Me inclino para recoger tu fuego: te apartas como agua amputada; te recluyes en el plantío de la indolencia, para la que carecemos de antídoto [no hay antídoto conocido para el envenenamiento por fenobarbital, ni por aconitina, ni por la tetradotoxina del fugu, ni por la batracotoxina, un alcaloide esteroideo liposoluble tóxico secretado por el tegumento de las ranas del género phyllobates y dendrobates y algunas aves (pitohui, ifrita kowaldi, colluricincla megarhyncha)]. Ahí, en la destemplada mudanza de las cosas, encuentro un labio que ha sido tuyo, un río en el que te desangras y, a la vez, prosperas, y ahí, en el tatuaje [en Grecia y Roma el tatuaje se utilizaba para marcar a los criminales; en la Alemania nazi, a los prisioneros de los campos de concentración] de la desaparición, que te adorna como un satélite [pastores y troyanos], encuentro el rapto que me desnuda, que me revela, el ensimismamiento de tus desfiladeros [abertura angosta y alargada formada por la erosión fluvial antigua en terrenos generalmente calizos o kársticos] y mi salvación. Orillas la vejez cuando me miras y haces el mismo camino que mi sombra, delante de mí, antes que yo, como una tiniebla enfurecida de carne, entusiasta como el semen [la ingesta de semen no es nociva, a menos que el emisor padezca una enfermedad infectocontagiosa; a algunas personas les sabe dulce y afrutado, debido a sus proteínas alcalinas. Y el aroma puede ser muy intenso] que te regalo en el beato equinoccio [ocurre dos veces por año: el 20 o 21 de marzo y el 22 o 23 de septiembre] de los cuerpos. He mordido tu hiel [bilis] y me ha sabido a pan. Tu ahínco es el signo de la inundación y el piafar de la oropéndola [the Eurasian golden oriole or simply golden oriole (Oriolus oriolus) is the only member of the oriole family of passerine birds breeding in Northern Hemisphere temperate regions].

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Recórreme cuando llore, y dime si algo ha brotado de mi hastío. Dime, tras oírme, si he mudado de piel, o si son otros mis párpados [el calacio es el resultado de la inflamación crónica, o lipogranuloma, de una glándula de Meibomio], o si el sol se refugia antes en mis axilas [en botánica se denomina axila al fondo del ángulo superior formado por el pecíolo, o al ángulo de encuentro de dos nerviaciones, o de la lámina foliar o el pedúnculo con el eje o tallo que lo lleva] que en el horizonte. Abrázame con la devastación de tu lengua y muda mi insomnio [A veces en la noche yo me revuelvo y me incorporo en este nicho en el que hace 45 años que me pudro, / y paso largas horas oyendo gemir al huracán, o ladrar los perros, o fluir blandamente la luz de la luna. / Y paso largas horas gimiendo como el huracán, ladrando como un perro enfurecido, fluyendo como la leche de la ubre caliente de una gran vaca amarilla]: que sea ahora una larga meditación de ti, sostenida en el suelo cartilaginoso [hialino, fibroso, elástico] de tu lejanía, en la bruma salitrosa [KNO3 y NaNO3] de tu insolencia. Hallo en tus hormigas [las reinas duermen 90 veces, hasta un total de nueve horas, e incluso podrían soñar; las obreras hacen 250 siestas de un minuto], que surgen de las ingles como fosforescencias [algunos minerales tienen propiedades fosforescentes: su luminiscencia se explica por la presencia de iones de elementos de las tierras raras en su estructura] anómalas, una afirmación sin error. Y escribo con ellas, tinta [medias tintas, cargar las tintas, de buena tinta, sudar tinta, tinta china, tinta de calamar] de ti, este poema en el que la luz y la oscuridad se asedian y se entrecruzan, se deducen una de otra, mueren una en otra, como yo muero sin ti, en ti. ¿Por qué umbría habré de peregrinar para alcanzar tus antorchas? ¿Qué espinas deberé acariciar para que tu vientre sepa a sol, sea el sol? [Ma seule étoile est morte –et mon luth constellé / Porte le soleil noir de la Mélancolie] Ahí está a lo que renuncio y lo que embisto. Ahí están las astillas enloquecidas de los

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días, que se suceden como flechas que no alcanzasen su objetivo y, sin embargo, mataran, besaran. Ahí están tus pechos [en las sociedades occidentales tecnológicamente desarrolladas, muchos varones se sienten atraídos por los senos de gran tamaño; otros, sin embargo, los prefieren más pequeños, aunque turgentes y firmes], limpios de acedía, horros de pesadumbre. Y ahí estás tú, sin yacer, sin cesar, emisaria de ti ante un reino incomprensible, hija de lo que me constituye, de lo ajeno pero entrañado, de lo innecesario aunque esencial. Miras como la hiedra [la inmortalidad, la sobriedad, el ciclo de la vida, la muerte y el renacimiento, la fidelidad, el demonio, la cruz]. Respiras contra mí, y crezco. Cuando sobreviene el mal, esparces tu escarcha [escamas, agujas, plumas o abanicos] ardiente, tus esporas [plantas, hongos, algas y protozoos] de estaño [sufre la peste; grita], por las geometrías que me cercenan. Se quiebra lo invisible y enmudezco, pero tu savia [no es látex, cerumen, resina ni mucílago; se compone de agua, azúcares, fitorregulares y minerales disueltos; la transporta el floema de forma basípeta] me derrota y renazco. (Renacer es morir al revés, sombra que se deshila y de pronto se ensoga, mutilación que agrega. La sinrazón alcanza el tuétano [el osobuco es un guiso preparado con jarrete de ternera, corte transversal del corvejón de la res, en rodajas de gran grosor y sin deshuesar. A menudo se sirve acompañado de arroz a la milanesa] y lo mella, pero lo que callas me cicatriza: quietud que sana, como la ajedrea [Satureja montana: perennifolia, semileñosa, subarbustiva, de hojas opuestas y oval-lanceoladas] o la tormenta). Óyeme cuando peno. Dame tu insumisión y tu latido.

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NUNO MOURA

Portamento 1 longe de terem acabado as ruínas à volta de um eucalipto que cresce ao nível dos discos que adoramos 2 vocação cheia de atrevimento a disfunção do mundo por um teatro de homens não eram assim mas agora divertem os que calam a vocação imperial sofisticada com a obtenção do aplauso universal clonado claro mas o teatro de homens decide importar actor do écran e retirar a parangona biblioteca 3 ´fuga para a frente do experimentalismo´ coloca na parede por causa de uma legenda uma joie de vivre

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4 desagua entre práticas roubou o ímpeto, largou o espeto porque ele tinha que ter uma habilidade naquela grande (que este contador de histórias pode estar errado) orfandade humilhação, pobreza, guerra doença e provação as paisagens esqueçam 5 milícias em conserva por carta fechada desaparecimentos no programa de rádio expérience multisensorielle esvaziar lixo enviados para o portal onde se entrevistam pós-eleitos e seus classificadores que vão ser compensados 6 feliz centenário, artista esquivo! obrigado a saltar risco futuro de dano e o separador arborizado estás a salvo, artista esquivo apontaram ao ex-espião só que vivo 7 e disseram nós vimos tal como 130 mil pessoas já viram lisboa

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PABLO JAVIER PÉREZ LÓPEZ

Los países de piedra

«Sancho, vezi tu cum ne duce un noroc prin ţări de piatră ?….»1 Lucian Blaga

En el reflejo del cielo dibujamos nuestro rostro. Marea distinta dormimos en la sombra. Con las tenazas de la lengua limpiamos nuestra boca. Gritamos un país azul junto a los muertos y hacemos en el mito perdido nuestra casa. Caminamos hacia el sol en el elefante más melancólico. La luz nos hace libres en la dureza de la piedra.

1 “Sancho, ¿Ves cómo nos lleva / la buena suerte por los países de piedra?...”

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ÍCONO PERPETUO «Ce e poezia? Înger palid cu priviri curate, Voluptos joc cu icoane şi cu glasuri tremurate. Strai de purpură şi aur peste ţărâna cea grea.»2 Mihai Eminescu

La mirada pura heredada de las madres. La contraseña nítida. El canto relevado. La voz aérea del pastor mudo. Un rostro musical. La máscara en el tiempo. El signo infinito que para el río en nuestros ojos. Puerta repetida que nos hace piedra viva. Oro perdido en otra mano. Ropa aérea que no muere. El ícono mágico que convierte en viento nuestro cuerpo.

2 “¿Qué es la poesía? Ángel pálido con mirada pura / voluptuoso juego de iconos y de voces temblorosas, / ropa de púrpura y de oro sobre la pesada tierra.”

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Auriga de Delfos AĂŠrea como la muerte se anuda de riendas transparentes. En la senda mĂĄs azul el rostro de un muchacho nos enseĂąa el verdor del tiempo. Un rostro verde y femenino que nos convierte en caballos invisibles.

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Puente romano. Salamanca. ¿Con qué luz clara y distinta se hace el denso blancor de las tinieblas? Cruzas sobre las piedras cuajadas de lágrimas robadas y gritas en la corriente verde, sobre las algas aéreas del olvido, el nombre de todos los muertos. La memoria es el amor profundo entre las piedras y los ríos.

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«[...] Agora que os deuses partiram, e estamos, se possível, ainda mais sós, sem forma e vazios, inocentes de nós, como diremos ainda margens e como diremos rios?» M anuel A ntónio Pina

Ainda há um homem, só um que sabe dizer os rios. Tem a boca grande como a morte e dos seus dentes, a tremer nascem os rios mais antigos os que morreram também nus aguardando um sentido. Quando o homem que diz rios e a mulher que fala margens se encontram num olhar leve voltam os mortos. Os rios só crescem para o passado tal como os deuses.

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JORGE MARTINS What?, 2011 SW7(tecnigraf).indd 112

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JOSEP M. ROQUER

Rita, la política “La selecció natural afavoreix les forces de la negació psicològica. L’individu treu profit de la seva habilitat per negar la veritat fins i tot quan la societat, de què forma part, pateix”. Garrett Hardin

Ara que sóc ben morta us seré franca: allunyeu-vos d’obsequis i prebendes, ni us hi acosteu, ningú pot rebutjar-los! Sota un bell embolcall de cortesia s’hi oculta una fragància enganxosa, el verí d’un judici dissolut que et mena a fer els ulls grossos! Quan els tens a les mans el cos transpira, les pupil·les s’eixamplen i la pell lluenteja com fulls de cel·lofana. Vol dir que ja has fet tard! El teu cap s’embolica, et guarneix d’eximents, i de cor caus al llaç. Com negar-te, aleshores, el desig, -com impedir de vendre’tsi tens el cos sencer en estat d’oferta?

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Manel, l’afilador “És la por el que refrena el frau i esmena la negligència”. A dam Smith

Si parlem de ser rectes -i això val per un pobleno podeu ignorar allò que diran. Ans el contrari: ho haureu d’esmolar al màxim, aguditzar la por, si és menester, que us provoca l’oprobi. Us ho diu un humil afilador, de xiuladissa incòmoda, que va fressar mil pobles i ciutats anant de casa en casa per redreçar defectes. Si voleu un món just, tingueu-ho en compte! Vocifereu per places i carrers, aneu de porta en porta, feu públiques les tares i els afronts. I que giri la mola per polir l’amor propi fins que sagni: esgrimiu la ignomínia, la daga de l’honor.

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Òscar, el presoner “Cada arbre només pensa en si mateix i vol aconseguir tant de sol com pot [...]. Però no poden posar-se d’acord. En aquestes circumstàncies, és inevitable que la traïció doni millor resultat que la cooperació i si no fos perquè la llum és essencialment inesgotable, els arbres es veurien atrapats en la Tragèdia dels Comuns”. Daniel C. Dennett

Caram afilador, no tothom té la manya que proclames! Per tractar l’amor propi cal saber filar prim. O et creus que als rufians el parer de la gent els treu la son? L’únic que els fa basarda és que un company els pugui delatar. Si no, escolta el meu cas: després d’un robatori fracassat, reclòs en una cel·la, creient que em trairien, vaig trencar el nostre pacte de silenci i em van apunyalar fins a la mort. Els que encara sou vius, no ho oblideu! Respecteu els acords! Si no hi ha sintonia la daga de l’honor és l’harakiri.

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Isaac, el soldat “Podem evitar d’alguna manera aquest potencial aterrador, aquesta submissió a l’autoritat, encara la mal dirigida o perversa? Tal vegada siguem titelles mogudes pels fils de la societat”. Stanley Milgram

Ai las, quin desencís la disciplina i el seu lligam jeràrquic! Els meus pares, l’església i l’exèrcit m’havien inculcat que els manaments eren la plaça forta de la vida, l’adalil de l’honor, l’estendard del triomf i la victòria. Maleïts siguin! Manipulat per l’ordre i els preceptes, els meus artells penjaven dels fils de les creences. Ningú no em va explicar que l’engany del valor i de la glòria convertien el deure en integrisme, que l’heroisme és l’escamot dels titelles: només sentir la veu del capità els meus peus van alçar-se lleialment per fer un pas endavant. I crivellat pel foc de l’enemic vaig caure en el guinyol de l’obediència.

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Lluís, el fanaler “La destresa que es requereix per superar els obstacles que comporta la manipulació de la identitat a l’època de la modernitat líquida s’assembla a la d’un malabarista o bé, encara més, a l’art i l’habilitat d’un prestidigitador”. Zygmunt Bauman

D’aquesta fosa estant es veu d’una hora lluny qui és l’enemic! Jo era un vigilant, un fanaler amatent que rondava la fosca per allunyar els malànimes del barri. Acarrerat a bregues i batusses havia après a fons el meu ofici. Distingia de lluny les traces d’unes passes sigil·loses, el brandar d’un coltell o el tremir de les ombres. I vés per on un vespre em van trair. Com que no malpensava per defecte em van substituir per una càmera de mirada panòptica. Un final vergonyant per un sereno! No vaig veure venir ni el crepuscle d’una època ni l’alba dels guants blancs. Si encara em feu confiança obriu els ulls! Els nous malefactors són carteristes sempre amatents a dir-vos que us convé de fer, llegir o comprar. No us deixeu enredar, alleugeriu el pas i amagueu bé el carnet d’identitat. Apostats als xamfrans us volen pispar l’ànima!

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Ernest, el sabater “Veure el disgust o el dolor aliè és molt similar a sentirlo. La comunicació afectiva també crea estats psicològics semblants al subjecte i a l’objecte”. Frans de Waal

Només un sabater, i encara no pas sempre, entén que cada passa té una petja, el ròssec personal d’un peu que s’acomoda a l’experiència, que galindons, durícies i ulls de poll no necessiten falques ni artificis: són traumes que ens ensenyen el camí. Si ho voleu comprovar i sentir el dolor aliè, seguiu el meu consell d’ortopedista: calceu-vos les sabates dels vostres enemics.

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JAVIER PÉREZ WALIAS

Ciclo de las tres piedras

Ciclo I La piedra blanca Cada vez que abro los ojos muere un cordero en mi memoria. El cuello se le quiebra como un hilo de sangre. Nadie fue el nombre con el que mi hermano bautizó a aquel cordero blanco. A Nadie lo amamantamos entre todos con el biberón de nuestro hermano pequeño, lo amamantamos por turnos, en riguroso orden, desde el alba al ocaso, con la leche del pezón de la luna, convertida —la luna— en una gran ubre de corderos blancos, de corderos blancos desahuciados, de corderos blancos esquilados desde el instante de su llegada al mundo. En el hogar fuimos observados por los ojos aturdidos del degollamiento, fuimos medidos con la vara del miedo, con la oscuridad del daño. Durante semanas —mis hermanos y yo— amamantamos a Nadie, antes incluso de conocer su nombre, sin saber que a la llegada del crepúsculo serían engullidas su alma, sus vísceras y sus estertores fríos por nuestros estómagos de niños hambrientos, por el sonajero de nuestras tripas, por la inocencia abierta en canal de todas las vísperas, de todos los días sin escuela. Las lágrimas de Nadie taponaron nuestras gargantas. La sangre de nuestro cordero, muerto ya de frío, se heló en mi hambre y en el hambre de todos mis hermanos. Hoy, con renovada luz en los ojos, lo llamo por su nombre, y Nadie —mi cordero fiel— viene a mí puro, confiado, feliz, haciendo cabriolas sobre las piedras, calle arriba.

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Ciclo II La piedra negra Cada vez que abro los ojos muere un jilguero en mi memoria, con alas de cuervo, con ojos de cuervo. Cada vez que cierro los ojos aparece el mismo jilguero —una vez y otra vez— volando sobre mí, convertido en mirlo, en piedra negra. Pareciera que la infancia no duerme nunca. ¿No duerme nunca? No puedo deshacerme de este pájaro porque la bobina de su voz en hilo lo alimenta. Dentro de nosotros. Dentro de mí. Dentro del poema. Sucede que una jaula es un lugar sin aire que cuelga boca abajo. Sucede que en la jaula hay un zapato blanco que canta, un pájaro de charol que no es la piedra negra, que no es la vieja mesa de mármol. Es el recuerdo triste de la madre. Su trino —aún hoy— suena. Su recuerdo me devuelve al balbuceo, me sostiene. Cómo me gusta saber de esta presencia, saber de su plumaje en otros pájaros. O por el cuello de sangre que enjaulo en los poemas. ¡Sucede que he visto volar por los aires tantos cuervos! Sucede que a veces me resguardo de la lluvia en el último poema: el infinito, el inacabado, el imperfecto. Entonces se agita el pez de la nostalgia. Resucita el insecto ámbar de la piedra y se incendia todo.

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Ciclo III La piedra ámbar Una mosca azul invade mis ojos: la belleza y la muerte juntas en una piedra fósil, en una lágrima ámbar. Sobre mi cuello de pájaro o de cordero o de insecto. Todavía inmóvil. Sucede que tú vives en la llave. Un día miré por el ojo de una cerradura y escuché lo que allí dentro palpitaba. Allí estaba la nada, el silencio pertinaz de la ausencia. Allí estaba el universo caído de bruces, rodeado por un círculo de música. Sonando a caverna. Permanecí allí. Salí al cabo. Aquí fuera hace frío. Adentro. No volví. Regresé. Mis recuerdos van y vienen movidos por el instante. Fosilizados acaso, convertidos acaso —ya— en un pequeño insecto atrapado en la lengua caliente que lamió la corteza del árbol. Alguien. Nadie es alguien. ¿Un pequeño insecto no eres tú? ¿Un pájaro no eres tú? ¿Un cordero no eres tú? Tal vez yo no soy. —Me digo. ¿Quién anda ahí a tientas tocándolo todo, ordenando el caos natural de las cosas de los que aquí vivimos? ¿Quién, estando yo fuera de casa, sube de dos en dos los peldaños de mi cuerpo? ¿Quién, a tientas, palpa y araña mi rostro y, a tientas, fijamente me mira? ¿Quién enhebrará la alegría en los ojales de mi espalda? ¿Quién en los ojales del costado de mi hijo? Abotonado el miedo en el poema. He entrado en el dorado ciclo de la luz, en el dorado ciclo de la piedra ámbar que no precede a noche alguna. Solo la muerte existe justo antes de la muerte. Quebraderos de luz. Desfiladeros de luz. Quebraderos, tus ojos son de luz, de quietud ámbar. He entrado en el ciclo de las tres piedras, en el ciclo del día que vence la noche. He entrado en el ciclo de la noche que antecede y vence la luz, en el ciclo del insecto que enciende la memoria.

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Narrativa

PÁGI N A

123 ANTÓNIO BARATA EDUARDO BRITO MERCEDES CEBRIÁN NUNO CORVACHO ANTÓN GARCÍA VALTER HUGO MÃE FERNANDO CABRAL MARTINS MIGUEL FILIPE MOCHILA ABEL NEVES JORDI PUNTÍ

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ANTÓNIO BARATA

O primeiro suicídio

E

le entrou na taberna. Arrumou-se a um canto junto ao balcão e esperou o empregado que se inundava nas folhas de um jornal. Havia silêncio e pó a flutuar sobre o ar. Reparou no corpo gordo do empregado a mover-se e pediu uma cerveja. Pousou-a à sua frente. Ele serviu-se de um gole e disse, vou-me encontrar com deus. O empregado olhou-o, reparou numa linha vermelha que lhe revestia a pele do pescoço. Reparou nas mangas da camisa que acabavam a meio do antebraço. E o que vais fazer? A voz do empregado engoliu um sorriso. Pensou, um louco. Um bêbado. Ele olhou o empregado. Moveu-se no banco. Arrastou a mão à anca e arrancou a arma que se guardava entre o tecido das calças e a pele branca. Pousou a arma no balcão e disse, vou matá-lo. Os olhos do empregado pararam no revestimento metálico da arma. A cadeira era o único lugar vivo da casa. O mundo dormia corcunda e de costas voltadas ao sol. O cinto de cabedal já estava preso a uma viga. Ele pousou os pés sobre a cadeira. Não houve um som que se prolongasse no instante. As paredes escorriam silêncio. Em pequeno, ele lançava uma moeda ao ar e pensava, se sair cara, deus existe, se sair coroa, deus não

existe. Talvez o melhor fosse não olhar a queda da figura que pousava no centro da palma da mão. Houve um instante que se sucedeu em outro. Um instante que não se prolongou. O corpo dele lançou-se num passo ao vazio. No pescoço sentia o frio do cabedal. O corpo dele moveu-se e a cadeira arrastou-se num movimento em queda. O corpo dele, preso pelo cinto, arrastava-se pelo ar. Ele sabia que o mundo pequeno e plano, plantado por fios finos como novelos de lã, tinha sido cortado. O mundo plantado nas costas de deus, e onde cada fio era revestido por mil caos dentro de outros mil caos e outros mil. Sabia que alguém havia cegado a razão. E essa lâmina pendia-se nos dedos de deus. Depois houve um som. Um eco insuportável e a trave, a viga que suportava o peso do seu corpo, partiu. O corpo dele, quieto, no chão, e todas as palavras dos seus pensamentos escorriam húmidas por todo o seu corpo. Se ao menos houvesse uma frase, uma voz, um gesto. Se ao menos houvesse uma palavra, um silêncio, uma lâmina. Quando se levantou a cadeira estava morta. Caída. A cadeira onde se sentava quando desarrumava palavras com a cor da tinta. Ele era um poeta. Era um verso em desconstrução.

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Quando se levantou, agarrou nas folhas perdidas sobre a mesa. Percorreu os dedos sobre a garganta das palavras, amachucando-as. Segurou esse volume de abismos, tempo, pó e vazio, e saiu de casa. Lançouse numa corrida de desaparecer até ao caixote do lixo. Lançá-las sobre o negro do lugar.

O empregado enfrentava a voz dele com os olhos colados à arma. Ele pousou a garrafa de vidro no balcão e sobre as cicatrizes da sujidade. Atirou uma moeda ao balcão, guardou a arma e saiu. Os olhos do empregado recortaram cada passo dele até à saída, depois segurou na moeda sem lhe sentir o peso e guardou-a.

Os dedos levantaram o tampo metálico do caixote do lixo e lançou um mundo sobre lixo. Houve um instante em que as folhas foram como uma queda lenta e ao mesmo tempo sonora. Depois surgiu nos olhos dele uma luz branca. Um pedaço de sol. Uma explosão fina e certa e direta. Dentro daquele poço negro de lixo estava uma arma.

Atravessou as ruas e o sol sangrava no momento em que ele caminhava sobre o monte. As árvores estendiamse até ao céu. As raízes tocavam o coração do mundo. Ao longe via a pequena capela. Contornou-a e sentou-se no banco que se colava à cal branca.

Sabia o que tinha a fazer. Enterrou o braço dentro do lixo, apertou o frio metálico, encaixou a arma sobre o tecido do casaco e voltou a caminhar para casa. Houve uma voz. Entrou em casa. Dirigiu-se à casa de banho e olhouse ao espelho. A barba pesava-lhe o rosto. Os olhos estavam inundados de negro e risco de sangue. Pensou: no princípio era o verbo e vou matar o verbo. Agarrou na arma e apontou-a ao seu fantasma. Ao vidro. Ao espelho. Pousou a arma quando o peso dela se aumentou e lhe percorreu o músculo. Segurou uma gilete e limpou o rosto. Dirigiu-se ao guarda-fatos. Pó e tempo e silêncio. Apertou nos dedos um fato antigo. Vestiu-o. As mangas eram curtas. As calças eram curtas. A camisa era curta. Pensou: daqui a duas horas vou-me encontrar com deus. Acendeu um cigarro. Enfiou a arma junto à carne. Sorriu. E saiu. O sol lacrimejava pela estrada do mundo e ele seguiu-o até à taberna.

Esperou pela eternidade. Olhou o relógio. Faltavam minutos. Acendeu um cigarro. Para lá dele existiam pequenos pontos de lugares. Apalpou a arma. Sentiu o seu peso. Esperou. O relógio suportava um peso que passeava pelo braço. Contra a carne, os ponteiros escorriam numa força que se prolongava por todo o seu corpo. Os olhos dele eram incapazes de se centrar num lugar. Os gestos dele escorriam numa surdez ao mundo e ao lugar e ao tempo. Uma brisa deslocava-se invisível. Uma folha rastejava. O pó secava. Dentro dele, deus ria-se. Dentro dele, explosões agudas escorriam em gotas de suor frias. Passou a hora marcada e ele não existia. Mergulhou a mão na arma. Apertou os dedos à arma. Encostou o cano metálico ao lugar do coração e por cima do tecido da camisa. Puxou o gatilho. Esperou ouvir um último grito. O último eco. Houve um silêncio. A arma era o silêncio do lugar. Desencostou a arma do peito. Houve uma voz. É amanhã.

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EDUARDO BRITO

O Gelo Imperfeito

A Primavera a chegar Com a chegada do bom tempo, regressaram as moscas. Vi uma ou outra a esvoaçar sobre o escritório, procurei causas que justificassem a sua presença, mas nada. Era apenas a Primavera a chegar, o pólen a esvoaçar, a respiração chiante. Depois, a noite cheirava já a Estio, as pessoas suavam e havia quem oferecesse porrada com facilidade. Ela falava de uma pulsão qualquer, teorizava demais para a circunstância. De quando em vez, uma rajada de vento arrefecia tudo, num repente, como uma lâmina no corpo num assalto. Ele dizia que era do rio ali perto, atrás das casas, que não demoraria até o vento passar. Os bêbedos estavam muito bêbedos e houve uma altura em que um deles se preparava para dizer qualquer coisa, esqueceu-se, deixou de falar e ficou de olhos mortos nos carros que passavam. E no fim, os passos levaram os corpos a casa, exaustos, e ainda houve tempo de cheirar o hálito da mulher que dormia e que nessa noite não lavou os dentes. Outra vez o vento Onde os círculos se fecham: na primeira vez que desejamos a estação que se segue, ao sentirmos o ar fresco secar o corpo transpirado. Passa um ano e a memória do tempo regressa, então: dia cor de cinza, nuvens baixas, a trovoada que se adivinha mas que acaba por não chegar. Também as cidades têm ciclos reconfortantes, escreveu M. a propósito de uma árvore em flor, de um círculo que se abre. Repetes a frase baixinho duas, três vezes, enquanto caminhas. Também as cidades têm ciclos reconfortantes: árvores no parque, outra vez o vento, depois casas antigas numa rua estreita que custa a subir. No Verão as flores vão queimar, e no final acabamos sempre por perder. Ritual Acreditava que a repetição dos gestos poderia conduzir a algum lugar: permitir uma melhor compreensão do papel de cada um no seu tempo no mundo, por exemplo. Bastaria repetir, esperar e insistir: um ritual teria que ir dar a algum lado. Por isso subia a calçada todos os dias da mesma forma, pelo passeio da direita, primeiro, atravessando para o outro lado ao passar a farmácia, de modo a poder entrar em diagonal na night shopping do indiano que vendia, por dois euros sem meter conversa, um litro de cerveja que beberia gelada em casa, à espera dessa revelação cuja possível chegada era sempre interrompida pelo sono. No processo de adormecimento, por mais de uma vez pensou que iria acordar sem passado, livre de toda a culpa, ser apenas ele, a sua respiração e o mundo à espera.

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St Margaret’s Hope Cada vez que me falares em ir com calma, em fazer depois, lembrarei a pequena aldeia de St Margaret’s Hope, virada a norte na margem da baía, com as suas casas quase iguais e o frio a atravessar os intervalos entre cada uma delas, pequenas vielas que ligam as duas ruas, Front Road, Back Road. Lembrarei o barulho mínimo daquele lugar, feito do ranger de cordas e madeiras no pequeno porto e do ocasional good morning vociferado por alguém que passa. Recordarei os correios minúsculos, mais parecidos com um quiosque, o único pub chamado The Murray Arms, o centro de saúde, a igreja e, numa cota um pouco mais alta, a escola já sem crianças. E recordarei também uma inscrição numa pedra tumular no cemitério: we do all fade as a leaf. Cada vez que me falares em adiar, lembrarei como o tempo passa em St Margaret’s Hope, distante da cronologia da pressa no resto do mundo. Lembrarei também o que terá feito os homens estabelecerem-se naquele lugar: talvez o mesmo que me fez querer ali ficar, à espera que chegasse depois. Praga Em Junho, apareceu em casa uma praga de traças. Revistámos tudo e não lhe encontrámos a origem. Eu disse que talvez viessem dos cereais. Tu discordaste, talvez de um modo demasiado assertivo para a importância da questão. Na noite em que jantámos apenas flocos de aveia, eu juro que vi uma traça a sair da tua boca enquanto dormias. Quietude Entretanto, acendeu-se o primeiro candeeiro e os mosquitos apareceram. Coisa intensa, coisa intensa. Depois pensei: tenho que fazer-me presente, amar os amigos, lembrar as perdas mais importantes, refinar a caligrafia. Chegará um tempo em que se nos iguala a expressão do rosto e desacelera o gesto, o ritmo e a palavra. A altura em que a sublimação nos toma, numa unidade sem forma: o momento em que dizemos podia morrer. E então volta o vento, o vento nas árvores: o barulhar primeiro torna-se o único ruído nesta espera. Sul Não se queixava da dor no pé que lhe trepava pelo tornozelo e se adensava com o passar das horas, vagando-lhe o andar pelas tardes. Por isso deixava-se ficar na varanda após o almoço, entre o calor e os figos, a beber vinho branco, até cair no torpor da meia garrafa. Numa dessas alturas disse-me: “sonho que estou no meio de toda esta alvura e de um momento para o outro desfaço-me em cal”. Setembro De forma discreta, amarelecem folhas da árvore da esquina da avenida. Repete-se tudo, como um refrão: chegará o tempo em que avermelham, prenunciado pelo cheiro da terra que se desune pela noite, à saída da cidade para norte. Reabre então o café onde vão os homens que só falam de futebol. Na inspiração sente-se o primeiro frio: algo corta outra vez. Convoca-se então o retomar de um ciclo sem regresso: hão-de comprar-se cadernos e canetas, haverá marmelada a fazer-se na cozinha.

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White Noise Há uma série de ruídos que ocupam a noite: o motor de um velho frigorífico, a ventoinha de um projector, o tinir de um circuito eléctrico. Todos se afundam num falso silêncio ao passar um avião que faz a casa tremer e que, quando se afasta, deixa ouvir uma ambulância ao longe, a desaparecer para lá do parque. É o instante anterior ao regresso deste silêncio alvo, ali mesmo quando por fim se apaga a lucidez do pensamento: uma história que não pode acabar, porque justifica a própria espécie; a angústia de nunca termos recuperado os velhos verões; uma actriz que se vê filmada trinta anos antes e pensa “o que eu podia ter feito aqui”. Give me more of everything Há anos, frágil como o gelo imperfeito de um lago prestes a atravessar, encontrei uma mulher que me disse: “dar-te-ei uma bondade sem condições, como quem nada pergunta ou exige às estações do ano”; só depois fiquei a saber que era actriz. Hotel Rimbaud Endiabrados pela aceleração da noite, subimos as escadas até ao quarto barato, e, continuando a conversa, exercemos o nosso direito à autodestruição. Ali estávamos, portanto, pela euforia; talvez fosse a morte a chamar, talvez em nós morasse já a sua bactéria, ainda que segunda-feira estivéssemos destinados ao regresso. Da janela avistámos o quarteirão de Serai, onde todas as línguas do mundo são faladas desde há milhares de anos, onde conhecendo a pessoa certa até um coração é possível negociar. Pensei então em algo inominado, ao qual tu e eu pertenceríamos juntos, sob um céu amarelo sem sol, num halo que não desapareceria com o passar das horas. Por ali ficámos noite fora, infligindo pequenos golpes um ao outro, revelando erros e falhas que sabíamos de tempos antigos, tentando recordar palavras exactas, ainda que o que quiséssemos mesmo fosse dizer que temíamos acabar a vida sem companhia.

O título “Give Me More of Everything” é retirado de uma canção de Stina Nordenstam. O quarteirão de Serai fica na cidade de Hav, tal como descrita por Jan Morris no livro homónimo.

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MERCEDES CEBRIÁN

Comercio exterior

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ráenos algo importado, Lola” —el mensaje de su familia era claro y escueto. Algo importado: lo más fácil del mundo en un Duty Free Shop. Lo más fácil del mundo cuando alguien compra algo en un país A y lo regala en un país B: nadie va a obsequiar con un sombrero mexicano comprado en plena Gran Vía de Madrid a sus anfitriones de Oaxaca; nadie va a llevarle chocolate Lindt a un amigo que viva en Zúrich. Pero en la tarjeta de embarque de Gallardo López/María Dolores figura el falso acrónimo EZE, diminutivo de Ezeiza, el aeropuerto de Buenos Aires. Es decir con no llevarles una caja de alfajores, ya se puede considerar que los regalos son importados —piensa Lola sin verse obligada a realizar un esfuerzo mental excesivo. Porque de algún modo, ¿no son sus propios familiares de allí un grupo de personas que, décadas atrás, se autoexportaron por obligación, como si ellos mismos fuesen un producto ibérico envasado al vacío y necesario en una tierra donde faltaba mano de obra? Los tíosabuelos españoles de frente corta que al llegar a la ciudad en barco se instalaron en la versión tridimensional del cartel turístico que, repartido por oficinas turísticas de todo el mundo, muestra los multicolores conventillos para inmigrantes de la calle Caminito en el barrio de La Boca. A los tíos-abuelos españoles les fue bien, por eso procrearon y esas nuevas voces humanas, generadas por los Gallardo sobre tierra fértil y vacuna, ahora piden con insistencia algo importado como regalo. Perfumes franceses, italianos, estadounidenses y, en muy pequeña medida, españoles llenan un gran sector

de las estanterías del Duty Free. He aquí el epítome de lo importado, piensa Lola. Si fuesen libros, sería políticamente incorrecto que se dividieran en textos para hombre y textos para mujer, pero al ser meros perfumes esperando ser atomizados sobre alguna piel, la división no molesta. Aunque no sirve como regalo para esa hidra de siete cabezas que es la familia hispano-argentina de Lola: ¿qué perfume o fragancia podría gustarle a todo un grupo de personas de nombres tan dispares como Osvaldo, Paula, Gabriela, Marcelo o Soraya? Abandona entonces la idea de llevarles perfume, no sin antes probarse cuatro: dos en las muñecas y dos en mitad del antebrazo. Su aroma es tan denso que parecen cubrirla con un chal olfativo intangible. Se dirige a los estantes del refrigerador donde los productos del cerdo loncheados esperan su turno para ser elegidos. Pero trece horas de vuelo con una pata de cerdo en rebanadas no es tampoco una idea brillante: ya llevó en una ocasión lonchas de jamón serrano envasadas al vacío (total, si nadie distingue, una vez fuera de España, entre el ibérico y otros jamones inferiores, como si las papilas gustativas de los foráneos no contasen con el dispositivo que logra diferenciarlos); al pasar la maleta por el escáner nada más entrar a Ezeiza, el policía, un hombre moreno de argentinidad condensada en un tamaño reducido, le hizo ver que no se podían introducir alimentos crudos en el país. Pero si hasta ella misma, en un momento dado, podía ser considerada alimento crudo si la atrapaba una tribu de caníbales —con este comentario trató de congraciarse con el poli, ayudándolo

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a relativizar, haciéndole ver inmediatamente después que ese jamón había sido curado, y que la técnica para curar alimentos es, de algún modo, una manera de cocinarlos, pues se emplea la salazón en el proceso. No insista —le dijo el policía, requisándole el paquete de jamón de gama media que probablemente llevó más tarde a su modesta casita de Quilmes o de Lanús y abrió y comió junto a su familia (“Che, gorda, no hagas cena hoy: mirá lo que traigo”). Sigue Lola en busca de lo importado, esta vez en la zona de ropa y complementos. Las chanclas Havaianas, descartadísimas, pues lo Made in Brazil se encuentra demasiado cerca de los Gallardo geográficamente; los productos de Agatha Ruiz de La Prada también los descarta, pero por razones diferentes: su religión laica no le permitía comprar una combinación de colores tan incomprensible. El policía argentino que le retuvo el jamón en la aduana aquella vez, ¿habría hecho lo mismo con un albornoz fucsia estampado a base de corazones color verde billar? Quizá algún uso le habrían sabido dar en la casita de Quilmes o Lanús. Quedan veinte minutos para el embarque y hay una larga cola integrada por compradores de cartones de Fortuna Light y de toros negros reproducidos en diversos materiales. Ha que decidirse ya mismo por un regalo importado. Deja atrás Lola varias tabletas de turrón del duro y una caja de polvorones, casi seguro vueltos a envasar tras las fiestas navideñas, y se acerca a la sección de los alcoholes. Las ginebras, los rones y los whiskies, todos de pie y en fila, como si fuesen hombres en una rueda de reconocimiento policial. Glenmorangie, Macallan, Johnny Walker… maltas que han descansado en barricas de roble de las Highlands, de Irlanda, de Tennessee. Todas las variantes han sido destiladas en países sajones menos una: la de DYC, el whisky para gente sin complejos, como decidió anunciarse la marca a finales del siglo XX. Los anuncios mostraban a personas con algún rasgo prominente o poco atractivo en el cuerpo pero que no por ello se sentían amargadas o inferiores al resto. Por ejemplo, un trío de obesos. Uno

de ellos, el primero de la izquierda, era el novio de Lola por aquel entonces. Necesitaba un dinero extra, dijo, y pagaban bien. No tanto la vergüenza de regalarles a Osvaldo, Paula, Gabriela y los demás un whisky hecho en Segovia, sino más bien el arrebato de vergüenza repentino ante aquel novio del pasado, le hace olvidar los whiskies y dirigirse hacia las bebidas blancas. Allí pasa de largo los vodkas y las cada vez más numerosas ginebras; ¿qué tal una Larios, malagueña y económica? Pero el diablo marrón de orejas puntiagudas y sotabarba que figura en la etiqueta de la botella de Anís del Mono la mira con su mal humor acostumbrado y logra convencerla. En la cola para pagar, Lola, de repente algo avergonzada ante su elección, tapa la ilustración del homínido feo. Mientras espera su turno ante la caja, se le van los ojos hacia un espectáculo en directo de formato reducido que acaba de comenzar en medio de la tienda. Lo protagonizan una chica y un chico vestidos de marinero, es decir, con camisetas a rayas blanquiazules y sendas gorritas de grumete. El espectáculo es completamente incoherente con el resto de lo que sucede en el Duty Free: quizá el hecho de que estemos en verano impulse a los que idearon la promoción a vestir de marinero a los dos bailarines. Un grupo de japoneses y unos viejos de aire muy castellano miran con impaciencia a los marineros, cuya coreografía obstaculiza el paso a los distintos sectores de la tienda. Los marineros terminan su baile, procedente de una película de Gene Kelly, y comunican la promoción del día: por una botella de alcohol nacional, le regalamos un paquete envasado al vacío de paletilla ibérica. Lola se alegra: ya sabe lo que el policía bajito y argentino cenará mañana en su casa de Quilmes o Lanús.

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NUNO CORVACHO

A angústia do comentador antes do comentário

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comentador estava nervoso. E o principal indício revelava-se nas doze vezes em que tinha verificado o nó da gravata desde que chegara àquela antecâmara. Estava prestes a entrar no programa televisivo onde pontificava semanalmente à atenção venerada do país inteiro e sentia uma impressão de aperto no pescoço. De modo algum ele poderia estar a ser vítima dessa especial forma de intranquilidade que atinge os estreantes, pois tratava-se de um comentador experimentado, a abeirar-se mesmo do centésimo programa e sempre com elevadíssimos níveis de audiência, que estava normalmente seguro das suas opiniões e sabia como contornar questões incómodas de acordo com o seu pessoal e intransmissível método de fuga que, até agora, não o tinha deixado ficar mal. Hoje nem era de prever que a agenda dos assuntos fosse particularmente exigente. De resto, já a tinha combinado durante a tarde com a apresentadora, como era seu hábito, e a semana fora relativamente pacífica. Tudo se conjugava, pois, para que o comentador encarasse mais esta emissão (a número 98, para sermos exactos) com a confiança inabalável de um homem cuja palavra é bebida por todos como um elixir de sabedoria política. Mas, ao contrário, o comentador não se lembrava de, alguma vez desde o início das suas intervenções televisivas, ter estado assim tão inquieto, nem daquele peso no peito que o impedia de respirar fundo, nem daquela necessidade irreprimível de humedecer os lábios e de cruzar e descruzar a perna. Tremia como um colegial na iminência de ser avaliado. E o temível professor desta prova oral imaginária não era a jornalista-inquiridora, por norma remetida a um papel passivo, mas ele próprio, depois de ter decidido emitir a declaração que se preparava para fazer. Era esse momento fulcral que lhe ameaçava os alicerces, era essa revelação planeada, qual monumento de televisão-verdade, que o fazia transpirar. As pessoas sabiam, e o comentador não era excepção, que a sua posição dentro do partido do poder tinha mudado sensivelmente nos últimos meses. Depois de ter sido uma das suas vozes mais respeitadas e um eterno candidato a líder, o comentador era agora um dos que mais se afastavam da linha dominante, primando por críticas acérrimas à política governamental. Dizia-se nos bastidores que com amigos destes o Governo já não precisava de inimigos… Mas, para o comentador, o rumo actual do executivo é que era indigno dos valores consubstanciados no ideário do partido. A sua lógica era simples: não fui eu que mudei, não fui eu que traí, o primeiro-ministro é que deitou fora o programa para o qual tinha sido eleito. A incomodidade do Governo com as opiniões cada vez mais corrosivas do comentador era uma evidência mas até agora ninguém se atrevera a exercer qualquer acto de censura. A democracia televisiva funcionava, as audiências mantinham-se nos píncaros e isto sobretudo porque o primeiro-ministro “saía” daquele programa com as orelhas a arder. E não há nada que mais venda em televisão do que vermos aqueles que nos governam pelas ruas da amargura… O programa do comentador na Cabo Notícias, logo a seguir ao telejornal de domingo, tinha um “share” invejável e nada do que lá acontecia passava despercebido aos outros comentadores, os muitos que enxameiam o panorama audiovisual. Alguns já iam ao ponto de considerar que o comentador estava no limiar da ruptura e não tarda nada teria de entregar o cartão de militante do partido do Governo. Tudo isto não passava, para já, de conjectura (o próprio comentador não tinha dito uma palavra nesse sentido) mas estava criado um clima, digno de um filme de sustos ao virar da esquina, em que se esperava a qualquer momento que o comentador aproveitasse o seu programa

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para consumar o corte com a actual maioria. Que dissesse, com todas as letras e inflexões adequadas, que ia deixar de ser militante do Partido Liberal. Ou dessoutro partido em que o primeiro-ministro o transformara. O comentador estava, como é óbvio, consciente de tudo isto. Bem assim a jornalista que todas as semanas lhe dava as deixas para ele desenvolver. Como esteio informativo que era da Cabo Notícias, não podia deixar de se aperceber do ambiente reinante entre os fazedores de opinião e das expectativas de quem lá em casa assistia ao programa. Mas parecia haver um acordo tácito entre o comentador e a sua interlocutora, no sentido de ela própria não chamar o assunto à colação. Aliás, fora sempre assim desde que o programa começara, já lá iam quase dois anos – o comentador estava ali para falar dos assuntos políticos da semana, escolhidos e definidos por ele e, em nome da sempre necessária isenção, ninguém compreenderia que o comentador usasse aquela tribuna para impor algum projecto da sua agenda pessoal. Havia que reconhecer, de resto, que ele nunca o fizera, pelo que a apresentadora estava convencida de que não era agora que ele iria quebrar essa regra. Se o fizesse, seria apenas da sua responsabilidade e ela não teria nada a ver com isso. Jamais ela lho perguntaria directamente, mesmo que se sentisse, como agora, a morrer de curiosidade e com uma secreta esperança de o ver a morder o isco. É que ultimamente tinham-se avolumado os indícios de que a paciência do comentador estaria a chegar ao fim. O ministro da Presidência, que muitas vezes dizia aquilo que o primeiro-ministro não podia dizer, fora ao ponto de ironizar, a propósito da realização para breve do congresso do principal partido da oposição: “Por este andar ainda veremos qualquer dia o professor Eleutério a candidatar-se à liderança do Partido da Rosa”. Mais sério na invectiva exprimira-se na sua coluna semanal um opinante profissional da área do Governo: “[…] a posição do professor Eleutério é moralmente indefensável e politicamente insustentável”. E ainda na véspera, um comentador de sinal contrário fora curto e grosso na sua conclusão: “É muito natural que o professor Eleutério esteja prestes a dizer: com esta gente, para mim chega!”. “Vai ser hoje!” – dizia o comentador para si próprio, enquanto ia buscar ao fundo das suas forças uma expressão resoluta. Todos suspeitavam e havia até quem julgasse ter a certeza mas só ele sabia. Ele era a única pessoa deste mundo que sabia o que ia acontecer nessa noite. E, no seu íntimo, já não havia volta atrás: “Que pensem, que digam o que quiserem, quero lá saber!”. Com um ruído surdo, a porta da antecâmara abriu-se e a jornalista-apresentadora entrou, toda sorridente. “Boa noite, professor!”, cumprimentou, enquanto trocavam um aperto de mão rápido mas cordial. “Já tem tudo preparado?” – era a pergunta sacramental, mas ambos estavam fartos de saber que naquele momento, a escassos minutos de o programa ir para o ar, o comentador não podia senão ter “tudo preparado” e qualquer falha de última hora era coisa impensável. A outra pergunta, essa que queimava por dentro os lábios da apresentadora, permaneceu silenciada. Ela esperava para ouvir aquilo que todos estavam à espera de ouvir. Quiçá como desenlace do programa, já depois de feitos os comentários e de forma a ressoar melhor na consciência geral. Se lhe pedissem para adivinhar o instante certo, era isso que ela diria. Mas, claro está, de nada disto ela deu conta ao comentador propriamente dito. Antes lhe perguntou, de um modo muito profissional, enquanto brandia uma folha de papel: “Começamos pelo ranking ou pelo ministro?”. “Pelo ranking”, respondeu ele, no mesmo tom, “depois é só seguirmos o guião tal e qual tínhamos combinado, as declarações do ministro em Bruxelas, a história do «marasmo ter de acabar» e, já sabe, a meio do terceiro tema, faz-me então aquela pergunta para eu poder meter a bucha relacionada com o primeiroministro”. “Com certeza”, acenou a apresentadora com a cabeça, ela que já devia ter decorado aquela sequência mil vezes. Já não havia espaço para imprevistos, o único que iria acontecer naquele programa (suspeitava ela e sabia ele) não morava naquele guião. Depois de olhar maquinalmente para os dígitos que marcavam a hora na parede, a jornalista soltou: “Bem, acho que podemos ir…”. O comentador fez que sim e, primeiro ele e depois ela, penetraram ambos no estúdio onde ia decorrer o programa. Assim, à vista desarmada, era difícil imaginar sítio menos acolhedor – um paralelepípedo sem tecto e completamente despido de mobília, à excepção da mesa de um branco-sujo a que se iriam sentar e das duas câmaras com rodinhas junto das quais se encontravam já os respectivos operadores; a agravar a sensação de estranheza, a parede fronteira estava totalmente pintada de um verde eléctrico, irreal. Ninguém ali diria que, no lugar daquele estendal monocromático, fosse possível às pessoas lá em casa verem aquele fundo tranquilizador de prateleiras com livros que costumava acompanhar as doutas palavras do professor. A estante de tipo nórdico não existia, era apenas um cenário fictício

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construído pela televisão. Nem o comentador nem a apresentadora gastaram um segundo a contemplar aquela parede berrante que lhes era tão familiar. Em vez disso, o comentador dirigiu um aceno aos “camera-men” e esperou obedientemente que a assistente, vestida com umas utilitárias calças de ganga sem glamour nenhum, lhe pregasse o microfone num recesso já seu conhecido da lapela que o tornava virtualmente invisível. “Agora é só esperar” – disse ele para si próprio, e não era muito, atendendo a que o telejornal estava quase a acabar e o programa entraria logo a seguir, sem qualquer transição. O comentador e a apresentadora tinham-se já instalado e estavam sentados um em frente do outro, sem trocarem palavra e aparentemente concentrados a conferir as suas últimas notas – ela a rever as perguntas com a ajuda de uma caneta e ele a escrevinhar uma cábula com a sua ilegível letra de médico mas logo a desenhar linhas e espirais sem nexo enquanto pensava noutra coisa. A contagem decrescente tinha começado… a jornalista sabia que, a ter de tossir ou pigarrear, era agora que o devia fazer; e, para o comentador, os dados estavam lançados, já nada o poderia impedir de dizer o que projectara e, fosse qual fosse o resultado, no final daquele 98º programa a sua vida não mais voltaria a ser o que era. O comentador disfarçou um suspiro com mais um trejeito de ombros típico de quem tem a camisa apertada. “Tenho de perder uns quilos”, pensou, negligentemente. Foi neste preciso instante que a jornalista se endireitou ligeiramente na cadeira e olhou fixamente para um ponto qualquer na distância, já com um simulacro de sorriso etiquetado na cara – sinal inequívoco de que o programa estava prestes a começar. “Obrigado, Zé”, agradeceu ela, com a familiaridade habitual, ao “pivot” de serviço, para logo anunciar: “Cá estamos nós para mais uma edição d’Os Comentários do Professor Eleutério… Boa noite, professor”. - Boa noite, Beatriz. O ranking, o tal ranking a que ambos se referiram, tinha acabado de chegar à redacção do canal de notícias e não era nada lisonjeiro para Portugal. A qualidade dos serviços públicos continuava a ser avaliada de modo muito negativo pelos próprios cidadãos e, o que era pior, desde que o actual governo tinha tomado posse, o país descera nada menos de quatro lugares nesta classificação actualizada de seis em seis meses por uma conhecida instituição europeia. Presentemente, Portugal só tinha atrás de si dois países da periferia da UE, que, nas palavras do professor, “não eram propriamente conhecidos pelos seus elevados índices de prosperidade”. “E a que se deverá esta nossa queda persistente no ranking: são os outros países que melhoram depressa demais e nós não conseguimos acompanhar ou é a crise que cava aqui mais fundo?”, lançou ela a pergunta combinada. “Bem”, aproveitou logo o professor, “tendo em conta que a percepção recessiva existe um pouco por toda a Europa e mesmo assim nós caímos, é porque há receitas a serem aplicadas que fazem os nossos governantes serem mais papistas do que o papa. Quando os outros não progridem tanto é que nós poderíamos recuperar algum atraso. Mas não é nada disso que acontece. De facto, o que temos assistido é à desqualificação dos serviços públicos através de uma política de quanto pior, melhor, porque a tão falada redução de custos apenas levou a um aumento da carga de trabalho per capita e sem qualquer ganho de eficácia. Não é esse o país para onde devemos evoluir em que o trabalho de cada um seja valorizado e o cidadão saia satisfeito”. A inquiridora deixou que lhe aflorasse aos lábios um indefinível sorriso de gioconda enquanto incitava de si para si: “Bravo, professor! Exactamente como ensaiámos!”. E, sub-repticiamente, sentiu vontade de lhe perguntar: “E é a esse partido que promove semelhantes políticas que o professor quer continuar a pertencer?”. Mas resistiu a tempo. As audiências eram óptimas, sempre a subir até, mas convinha não abusar da sorte, espantando a caça. Exaurido o assunto do ranking, coisa feita em não menos de cinco minutos, impunha-se pôr a ridículo aquilo que o ministro das Finanças dissera em Bruxelas. Era claramente o tema da semana e sobre ele já se tinham pronunciado as principais vozes dos partidos da oposição. A apresentadora deu a deixa de forma lacónica, pois mais não era preciso para os telespectadores saberem do que se tratava: “E o marasmo, professor?”, e finalizou a pergunta com um risinho. “O marasmo, Beatriz, diz bem”, respondeu ele, gulosamente. “O marasmo, ou melhor, o desnorte é de alguém que não sabe o que faz, de alguém que apenas tem acumulado erros de cálculo e cortes cegos e vai para a Europa dizer que o marasmo tem de acabar. A que marasmo se referia o ministro das Finanças na reunião do EuroGrupo? Ao marasmo por ele próprio provocado quando as suas medidas de austeridade à outrance apenas têm por consequência a paralisia da actividade económica? E das duas uma: ou o ministro é alheio à sua própria incoerência e estaremos perante alguém inconsciente ou então, as suas declarações estão destinadas a ser substituídas por outras de sinal contrário e nada do que ele disse pode ser levado a sério”. - Terá sido talvez um desabafo? – inquiriu cirurgicamente a jornalista, de forma a introduzir o “sound-byte”.

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- Não, não acredito. O ministro não teve foi pejo em surgir perante os seus parceiros europeus como uma farsa de si mesmo. Foi mais forte do que ela avançar com uma pergunta fora do guião. Mas, para a jornalista, a conclusão era óbvia e preocupava-a sobretudo a perspectiva de alguém lá em casa mudar de canal se ela não a formulasse: “Acha então que o ministro das Finanças é um ministro remodelável?”. “Bem…”, o comentador vacilou com aquela questão inesperada, mas logo, num movimento muito típico dele, achou guarida num lugar-comum que em nada o comprometia, “a verdade é que este ministro é para o actual governo cada vez menos parte da solução e cada vez mais parte do problema”. “Esta Beatriz gosta de atacar de surpresa, mas eu também tenho a minha guardada”, pensou o comentador, enquanto a moderadora introduzia a alínea seguinte: o roteiro de manifestações contra o Governo definido pela Central Sindical de Portugal e que iria arrancar na próxima Primavera com comícios de norte a sul do país. O móbil já era conhecido e não eram esperadas surpresas. Pior tinha sido a gaffe do primeiro-ministro, quando, após tecer um comentário de circunstância sobre a iniciativa, dissera “O Governo, por seu lado, não deixa de trabalhar”, como se as manifestações fossem apenas um pretexto para os cidadãos que nelas participam tirarem uns dias de folga. Não tendo ele grande simpatia pelo movimento sindical, o comentador foi marcando as distâncias, dizendo que por esta altura era já fácil prever aquilo que os dirigentes laborais iriam reclamar, pois se há oposição que quase nunca muda de discurso é a dos sindicatos. E à maré reivindicativa dos que pretendem a queda do Governo segue-se invariavelmente um refluxo de orelhas moucas desse mesmo Governo que, na actual correlação, sabe só poder ser demitido pelo Presidente da República. - Mas não nos podemos esquecer que o direito de manifestação está contemplado na Lei Fundamental – aduziu a jornalista, como aperitivo da diatribe sobre o primeiro-ministro. - É verdade. E, quanto a isto, há que reconhecer que o primeiro-ministro não esteve bem quando disse que o “Governo não deixa de trabalhar”. Como se os outros estivessem ali apenas para atrapalhar a vida útil do país. E aplicou os dois adjectivos que acabara de rabiscar: - É infeliz, porque ignora o carácter de um protesto que, goste-se ou não dele, radica numa vontade genuína das pessoas; e é injusto, porque desrespeita o sofrimento real de quem quer que tenha sido prejudicado pelas medidas do Governo. E nós sabemos como a sua quota de popularidade não pára de descer e isso não é por acaso. Depois deste rol de más notícias, gaffes e gente insatisfeita, sorvedouro invariável que, semana após semana, parecia atirar o pais para o esgoto, o único motivo de satisfação residia no terceiro lugar alcançado pela selecção portuguesa no campeonato europeu de berlinde. O comentador não se esquecia agora de mencionar esse facto, ele que, no seu dissertar enciclopédico, era capaz de ir dos pináculos da reflexão filosófico-política até ao chão comezinho das competições que não interessavam a ninguém. Numa semana globalmente desinteressante, com pouca coisa a acontecer que merecesse referência, havia espaço e tempo para semelhante nota de rodapé. O professor, nas alturas politicamente menos quentes, tinha um prazer secreto em trazer ao programa estes assuntos de lana caprina e exibir a propósito alguma erudição. “As coisas que ele sabe!... Até que é a primeira vez que Portugal chega ao pódio. Sabias que havia um torneio de berlinde em que participam todos os países da Europa?”, terá dito lá em casa o telespectador para quem o acompanhasse. E um sorriso diáfano, oscilando entre a admiração e o sarcasmo, brotaria dos seus lábios. A ninguém ocorreu que o comentador utilizara, afinal, aquele informe como estratégia de descompressão para aliviar a tensão em que se encontrava e alisar o terreno para a bomba que aí vinha. Faltariam ainda uns cinco minutos para acabar o programa quando aquilo aconteceu. De repente o comentador calou-se, deixando uma frase a meio. Não era nada de importante, era qualquer coisa relacionada com a reconfiguração do diâmetro dos berlindes exigida por uma directiva europeia, e o que não pôde ser completado por ele as pessoas fizeram-no lá em casa, isto no caso de não se terem distraído entretanto. Mais invulgar foi porém a forma como o professor baixou os olhos para o tampo da mesa, pigarreou duas ou três vezes e chegou mesmo a corar. Isto era inédito em televisão, era a primeira vez que alguém via o professor, sempre tão torrencial no discurso, ter um momento de hesitação. Era sinal de que algo de muito importante iria ali ser dito e milhares de olhos por esse país fora pregaram-se à televisão em expectativa. - Bem, há uma declaração importante que eu (e desapertou muito ligeiramente o nó da gravata) já ando há algum tempo para fazer e… (tossicou sem finalidade) não queria que este programa terminasse sem… (e, em lugar da palavra que viria, engoliu em seco).

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Um gongo próprio de um duelo de artes marciais soou dentro da cabeça da apresentadora: “Querem ver que é desta que o professor Eleutério vai dizer, em directo e no meu programa, que abandona o Partido Liberal?”. E subitamente, com a perspectiva das audiências a subirem, sentiu-se presa de uma enorme excitação, que lhe arrepiava a raiz dos cabelos e punha o coração a bater mais depressa. O comentador continuou, com a voz meio embargada: - Eu já faço estes comentários aqui no canal há quase dois anos e em todos os momentos procurei sempre ser fiel à minha consciência. Há alturas na vida em que deixa de ser possível prolongar certo tipo de situações sem nos confrontarmos com elas… (embalada, a jornalista estava já a agradecer-lhe um milhão de vezes pela possibilidade de tocar o nirvana de um “share” nunca antes visto) (“é, esticou a corda e é agora que ela se vai partir”) Dizem que estamos numa era em que a televisão mostra tudo e como tal não podemos esconder nada. Se é verdade isso, eu então podia dizer que estou agora aqui consigo a falar de política, de economia, de assuntos sérios e graves mas, aqui entre nós que tanta gente nos ouve, por minha vontade estaríamos antes a conversar trivialidades e a gracejar um com o outro sobre qualquer delicioso assunto que só nós compreendêssemos. (a jornalista não mudou de expressão mas só ela sabia o desconcerto que a dominava) É verdade, Beatriz, você é a entrevistadora e eu sou o comentador. Mas também já não me chega estar consigo apenas no dia do programa. Passo a semana cheio de saudades suas, a contar os dias até voltar a ver o seu sorriso a dizer-me olá, professor. Estou apaixonado por si e, nesta época de permanente exposição, não me importo que esse facto seja tornado público. Eu amo-a, Beatriz, que se lixe que o país inteiro fique a saber. Eu podia agora oferecer-lhe uma flor mas hoje é domingo e a florista lá do bairro está fechada. Interdito com o que fora capaz de declarar, de um só fôlego e ali mesmo em frente às câmaras, o comentador parou abruptamente de falar e fez-se um silêncio incómodo. Depois de uma confissão destas, não havia mais nada para dizer – as discórdias inter pares, a política, o futuro do país, tudo fora ofuscado pelo mesmo clarão inimaginável. Lá em casa, as pessoas deviam estar aturdidas e a não saberem o que pensar. Podia o professor ter anunciado a sua despedida do partido deixando cair uma lágrima furtiva ou até com insultos e impropérios mas para aquilo é que ninguém estava preparado. Muito menos a apresentadora, que esteve alguns segundos sem respirar e não chegou a conseguir recompor-se durante o programa. Abriu a boca uma, duas, três vezes mas não lhe saiu qualquer som. Estava fora de questão responder o que quer que fosse a tão inusitada declaração. Lembrando-se de repente que o programa estava para acabar, a jornalista agarrou-se a essa tábua de salvação, e colocando na vertical como se de um maço se tratasse a única folha de papel que tinha à frente, tartamudeou, em jeito de despedida, com a sua fachada de normalidade a derreter-se a cada acidente no discurso: “E fela ao chim… perdão, e chega assim ao fim mais um amor… um amor de programa… peço desculpa, um programa de amor … não, o programa do comentamor… do comentador professor Eleutério”. A imagem afastou-se acto contínuo dos ecrãs e por isso poucos lá em casa se aperceberam da apresentadora a romper num riso desengonçado e incontrolável.

Que não nos admiremos desta declaração de amor em praça pública, pois a vida da jornalista de televisão Beatriz Pessegueiro não é segredo para ninguém e é caso para dizer que já quase tudo lhe aconteceu. Ao contrário do que sucede com a maioria dos seus confrades, a “pivot” da Cabo Notícias é menos conhecida pelos artigos que ela própria escreve do que pelas notícias que sobre si outros redigem nas revistas das chamadas celebridades. Ela já era conhecida pelo seu estilo sóbrio a apresentar o telejornal e pela sua argúcia de entrevistadora, bem como, porque não dizê-lo, pelos seus dotes físicos mas ultimamente andou nas bocas do mundo por causa do seu tumultuoso processo de divórcio. Depois de se ter casado há uma dezena de anos com um professor universitário bastante mediático e de tal enlace ter sido exaustivamente coberto pela imprensa cor-de-rosa com o beato consentimento de ambos, eis que a união se desfez com estrondo, acompanhada de um rol de páginas cheias de letras gordas e fotos à sorrelfa esfregadas em lama e ressentimento. Por aí se percebia que o ex-consorte, outrora a regurgitar de fleuma e prestígio

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intelectual, era afinal um maníaco do controlo cujo verbo, quando atiçado, estava sempre pronto a resvalar para a chinela da calúnia e do mau gosto. No dia em que o professor Eleutério Silva avançou em pleno ar com a declaração que se tornou célebre, Beatriz Pessegueiro estava já a procurar juntar os cacos de uma vida irremediavelmente devassada. O comentador, por seu turno, é apenas presença habitual nas páginas de política dos jornais e nos textos de opinião que outros assinam, pelo que não é seu costume aparecer nas notícias de socialite. Durante o período em que a apresentadora viveu o seu malfadado casamento, eivado cá para fora de imagens paradisíacas a cada temporada de férias na neve ou de cada vez que lhes nascia um filho, ter-se-ão contado pelos dedos de uma mão as vezes em que o professor foi referido nalguma daquelas revistas. A sua vida privada é exactamente isso, privada, e o seu protagonismo televisivo não chegou felizmente a dar pretexto à violação dessa regra. Mas aqueles que o conhecem, incluindo gente ligada à Cabo Notícias, sabiam que o comentador, divorciado há vinte anos da única mulher com quem casara, vivia uma relação on-off com a sua secretária, uma exuberante loira com o dobro da sua altura, que ligava sempre que ambos se deslocavam ao estrangeiro (e isso acontecia com alguma frequência) e desligava no regresso à pátria. Nada constava que esta rotina (baseada, afinal, na falta de rotina) estivesse para ser alterada. Por isso foi enorme a surpresa de todos quando o professor anunciou urbi et orbi e, pasme-se, também em directo que Beatriz Pessegueiro era a eleita do seu coração. E agora, que já passou um mês sobre esse facto notável, os dois aparecem juntos e felizes na capa de um magazine televisivo de grande audiência e por baixo pode ler-se o seguinte título, em maiúsculas cor de sangue: “Beatriz Pessegueiro reencontrou o amor”. Menos risonho, verdade seja dita, foi o resultado para a Cabo Notícias, que acabou por ficar sem a rubrica do professor Eleutério. A administração do canal reconheceu que era impossível preservar a isenção e a objectividade enquanto aqueles dois, em quem a seta de Cupido acabara de ser espetada, continuassem a contracenar. Beatriz Pessegueiro mantém-se, bem entendido, na Cabo Notícias, onde continua a notabilizar-se pelas suas entrevistas de cariz político, mas Eleutério Silva mudou-se para a concorrência, protagonizando agora uma rubrica de comentário político no canal Portugal News, em tudo idêntica àquela que já tivera na Cabo Notícias. Com a diferença de que desta vez é um moderador que introduz os temas mas, no resto, tudo como dantes, quartel-general em Abrantes, até isso de ainda hoje estarem à espera que o comentador se lembre de anunciar a sua desvinculação do Partido Liberal. Como diz o outro, bem podem esperar sentados, pois ainda ontem o comentador confidenciou a um conhecido seu: “Jamais eu darei essa alegria àqueles que me querem ver pelas costas”.

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ANTÓN GARCÍA

Hecatombe

C

uando llegué nun había naide. La lluz marchara como si baxaren el telón escuru del cielu. Nun había lluna, pero la nueche, estrellada y duce, dexaba ver los perfiles del mundu, como si los acuñaren en dalguna moneda antigua de cobre. Podíes tar fuera casa, mirando les lluces del pueblu dende la entrada del Caleyu, y sentir que’l pocu aire que corría afalagaba la piel selemente, casi con ciñu. Senté nuna piedra fría a escansar y a esperar. Nun sabía si fumar sería bona idea, pero pensé que tampoco diba importar. ¿Quién había tar mirando dende’l pueblu, a aquelles hores de la madrugada, p’arriba? Por si acasu fui a la castañal y envolubré col cuerpu la cerilla. Fumaba guardando’l pitu dientro los concos de les manes, igual que facíemos de guah.es nel recréu de la escuela pa que la brasa encedío nun nos delatara. Cuando sentí pisaes pel camín noté qu’el mio corazón s’impacientaba. Pero aína acolumbré la figura allargada de Farrucu que xubía colos so pasos inconfundibles, lentos y de reblagos llargos, acompañándolos con un movimientu esaxeráu de la cabeza, como si rebotara p’atrás. Llamábemoslu l’Avestruz, anque nun m’alcuerdo de sentir que naide-y lo dixera nunca a la cara porque tarrecíemos la reacción airada de quien tenía’l cuerpu grande y les manes poderoses d’una familia avezada al esfuerciu; pero daquién viera na tele un documental sobre estos bichos y llegó diciendo que caminaben igual que Farrucu. —¿Quién va? Amaruté la voz y solté la pregunta xusto detrás d’él, xunto al cogote. Asustóse, anque nun tardó en recuperar namás que reconoció la mio voz y refexo la compostura. —Cago na madre que... —¿Y los otros? —Voi partite la cabeza. Yá vendrán, si quieren. Quedáremos xunto a la castañal del Caleyu depués de les trés de la madrugada. Teníen que venir Lolo, Marcial el de ca Roque y Hilario’l de Gapita. Con Farrucu y comigo díbemos ser cinco. Inda nun dieren les trés en nengún reló, anque los otros nun se presentaron en llegando la hora.

Yá me consideraben unu más de los rapazos del pueblu. Na rueda l’añu namás vivíen ellí dos, pero coles vacaciones llegábemos tres o cuatro más, delles cases barríen el morgazu de la solera la puerta y l’aburrición abría un paréntesis hasta que marchábemos, como páxaros estacionales. L’añu anterior yo pagara la contribución necesaria pa que m’almitieren na camarilla qu’encabezaba Farrucu y yá nun-yos importaba que fuera una moza. Aquel branu, depués de tantu tiempu inorándome, convidárenme a dir con ellos a cazar cordobeyos cuando fuera nueche piesllo y yo dexé que me conducieren mansamente, sabedora de que yera, amás d’una broma tonta sobre la que mio güelu yá m’avisara delles vegaes, la puerta pa entrar en grupu. Ellí tuvi cazando cordobeyos hasta que los mios vecinos cansaron. Ellí tuvi plantada de nueche, metida hasta la cintura naquel regueru que llamaben el ríu anque nun llevaba un forcu d’agua, con un sacu na mano recitando’l cantar (“cordobeyu ven pal sacu”..., “el que ye llistu y agudu...”), una melodía que se supón irresistible pa esos animales fabulosos y que los atrái irremediablemente. Cuando empecé

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a pasar los branos y dalgunes otres vacaciones en ca mio tía, el que fuera la única nena y que llevara unes gafes gordes de bona estudiante nun ayudaba muncho a que los demás guah.es m’acoyeran como unu más de los suyos. Anguaño ye distintu, vienen ellos a buscame. «Esta nueche tienes qu’acompañanos a prender fueu al ríu».

Yera lo que decidieren como revancha contra los de San Andrés. Pocos díes primero de que llegara yo, la xente del pueblu sufriera la mayor afrenta de los últimos tiempos. Los de San Andrés, un puñadín de cases que s’espurren pel fondu’l valle a entrambos llaos del ríu, los enemigos mortales del nuesu pueblu de la llomba, xubieren al Picu de nueche y cuando toles cases dormíen echaron a rodar una peña de considerable tamañu fastera abaxo. Empezó a dar vueltes aduces, pero la cuesta pindia que baxa del Picu y el mesmu pesu de la peña fexeron que garrara velocidá, terminando por afrellase con violencia contra’l portón de Primitivo. Desféxolu con un cruxir secu y aquella respetable piedra (fexo falta la fuerza de seis paisanos pa sacala d’ellí) entró hasta’l mediu de la corralada. «Corriérennos la galga», según tuvieron qu’esplicame. A naide, nin a los mayores nin a los mozos, parecía importa-yos el peligru que suponía una peña asina rodando desafranada rimada abaxo. Toos falaben de la burlla y de cómo facé-yosla pagar. Prender fueu al ríu que pasaba per San Andrés diba ser lo definitivo, el golpe xustu que devolvería a los del valle’l ridículu que nos fixeron pasar reflundiando con nocturnidá aquella galga, una peña, contra les cases del nuesu pueblu.

Farrucu y yo llegáremos a la castañal del Caleyu arrodiando tolo que pudimos, pasando cerca de Cerecéu, pa que naide pudiera siguir depués un rastru de paya delator. Cadún de nós cargaba unos manoyos que robara onde pudo. Colo que teníemos yera abondo y los dos bastábemos pa dar el golpe. Ensin dicir nin una palabra punxímonos en marcha, moviéndonos igual que si conociéremos el camín colos güeyos zarraos. Como calculáremos, col airín que venía dende San Andrés dándonos mansamente na cara, nengunu de los perros aldovinó les nueses intenciones y lleguemos al ríu ensin contratiempu, ensin que nos delataren col so lladrar avisador. Baxo’l pequeñu arcu de la ponte nesa parte que llamen Sotu, el ríu remansa antes de dexase cayer pela presa que riega’l prau’l Moru. Pela derecha, sobre’l coz del ríu, empecemos a estender la paya qu’acarretáremos, sabiendo que la corriente suave de la olla lo emburriaría escontra la otra vera y terminaría ayudando a cubrir el calce enteru. Siguimos prau p’arriba, pela ribera, echando más paya esfotaos en que’l fueu s’estendiera per una superficie grande y la rellumada pudiera vese dende cualquier sitiu del monte, per tol valle. Pero entós, según avanzaba decidida, noté que’l suelu s’ablandaba y que los mios pies parecíen quedase apegaos a la tierra. Tábemos entrando nun llamazal qu’a cada pasu se volvía más húmedu y güelmu y nel que tarrecí que pudiéremos terminar perdiendo’l calzáu. A Farrucu nun paecía importa-y; adelantóme y siguió arrefundiando brazaos de paya al ríu. Noté con noxu que la humedá na que pisaba se volviera más resbariosa y entendí qu’acababa d’estripar un probe sapu. Súpilo ensiguida, pol golor, y porque toa aquella parte del fangal se punxo a saltar al empar. Unes boles pesadones y vives afrellábense contra les mios piernes nuna allocada blincadera pa l’agua. Cientos, miles de sapos tirábense de calón al ríu dende’l prau pel que caminábemos, fuxendo d’aquellos dos intrusos que s’atrevíen, a tan altes hores de la madrugada, a cortar el so suañu de folla o seique a interrumpir el so empareyamientu a palpu, ciegu. Yera pel tiempu nel que los sapos críen. Con voz bien baxa, casi un xuxuriu, Farrucu mandábame qu’entainara mientres siguía esparciendo paya. Yera evidente qu’aquellos bichos dáben-y igual. N’acabando la sema, inclusive a la lluz tenue de les estrelles tol ríu parecía doráu. Pero nun podíemos parar a contemplar nada, teníemos que volver sobre los nuesos pasos, rápidos como esguiles, pa rematar la xera dando fueu a la paya. Yo nun m’atrevía. La imaxe de los sapos entrando a l’agua dende la oriella entumía los mios deos, que nun yeran a sacar nin un mistu de la caxa y muncho menos a prendelu. Farrucu púnxose a rascar les cabeces de los fósforos velozmente, una tres otra, con una sola mano, de manera que terminaben de prendese pel aire o yá ente la paya, sobre l’agua. Parecía que’l ríu empezaba a amburar con galbana. Un perru gruñó na primer casa del pueblu. Nun quedemos a ver qué pasaba. Al segundu lladríu yá había una docena respondiendo y ensiguida l’espolín de los chuchos qu’intentaben lliberase de les sos cadenes medraba valle alantre. Tamién oyíemos a los canes del nuesu pueblu empezar a llatir, más p’arriba. Nós corríemos col ruíu del mieu mordiéndonos los calcaños, en dirección contraria a onde los perros s’esgañitaben, primero saltando sebes que nunca imaxináremos que pudiéremos resalvar d’un blincu,

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travesando depués carbes ensin qu’engabitáremos nelles nin un retal de la nuesa ropa, hasta que punximos cientos de metros de distancia ente’l ríu qu’acabábemos d’enllenar de paya y cerilles enceses y nós. Cuando lleguemos otra vegada al Caleyu paremos a tomar aliendu y volvimos la mirada atrás. Llueñe, ente les cases, siguía oyéndose la lladrida desesperada de tolos perros del mundu, agora entemecida con delles voces sueltes que los primeros humanos se refundiaben unos a otros a berríes. Pero los nuesos güeyos marchaben detrás de la reblaneda que se llevantaba na oriella na que tuviéremos un momentu p’atrás. Miré pa Farrucu y vi’l llume nos sos güeyos y la cara seria, allumada, como si tuviéremos al par mesmu d’una foguera. La paya amburaba con tales fogarales que llegaben hasta les cañes más altes de los umeros, encandelando los praos y bona parte del monte que zarraba’l ríu pela manzorga. Aquella lluminaria, na nueche, si llevaba fuerza abonda pa desvelar les nueses propies cares asustaes, había vese dende munchos kilómetros de distancia. Reparemos con creciente esmolición na manera en que les fueyes de les ablanales, de tolos árboles d’entrambes orielles, empezaben a engurriase pol calor y terminaben esplotando nuna diminuta bolina de fueu. Nun podíemos esplicanos lo que taba pasando. Sí, el ríu amburaba tal y como pretendiéremos, pero onde tábemos esperando la rellumada d’un flax, un fueu que lo encendiera too y que s’apagara de sópitu dexando una ferida de lluz nes neñines de los nuesos güeyos, parecía que’l líquidu se volviera aceite debaxo la paya, y el ríu siguía amburando inmisericorde. Empecemos a percibir les primeres figures de la xente de San Andrés corriendo d’un llau a otru ensin saber qué facer, retayándose contra la lluz del fueu. ¿D’ónde sacar agua p’apagar un ríu? Entós sentimos un primer toque de campana, el metal dolorío, y de siguío les dos que sotechaba’l campanariu de l’antigua ilesia del pueblu punxéronse d’alcuerdu pa dar la voz de fueu y repicaron con murniu entusiasmu. Como si tuviera esperando esa señal, la foguera del ríu apagóse de sópitu y les tiniebles envolubraron otra vegada les vides de toos. Nós, dende la prudente distancia a la que nos retiráremos, mirábemos con plasmu lo que pasaba ensin podelo creer, satisfechos del nuesu trabayu pero bastante asustaos. La vengación que maduráremos, los planes que fixéremos pa llavar la burlla de los de San Andrés, la nuesa broma, too se cumpliera a la perfección. ¿Por qué teníemos entós esti remor dientro? Volvió la sorpresa a los nuesos güeyos cuando reparemos que la superficie del ríu s’allumaba de nuevu con un ensame de llucines tenues. —¡Sapos! –dixo Farrucu con entusiasmu, empezando a rir. Nun yera un xuramentu atenuáu, como’l qu’usaba’l mio güelu cuando s’enfadaba, qu’arrenegaba de los sapos de cría. Dende’l sitiu del Caleyu nel que tábemos podíemos ver cómo toa aquella parte del ríu qu’ardiera diba poblándose de lluminaries, diminutes islles flotantes que, como si se punxeran d’alcuerdu al empar, empezaron a saltar a tierra a un y otru llau del ríu. Pudimos ver cómo aquellos sapos encesos s’alloñaben pelos praos dando penosos saltos, dexando detrás d’ellos baldrayos de la so pelleya aspra y un cercu de fumu trupo, aceitoso. A la nuesa posición aportó l’arrecendor acre, non de carne quemao nin de pexe, sinón xustamente d’aquello qu’en dalgún momentu depués de la creación del mundu quien ponía nome a les coses dio en llamar anfibiu, lo que ta fecho pa vivir ente la tierra y l’agua. —¿Qué pasó? –pregunté yo ensin que’l mio maxín pudiera dar una esplicación razonable a lo qu’acababa de ver. Farrucu ría, pero nun yera quien a dicime nada. Tampoco entendía lo que taba asocediendo.

La rayina del amanecer empezaba a entrar nel valle. Galbaniegos como gües que tienen que tirar por un carru cargáu de piedra, los dos amigos punxímonos en marcha, callaos, escontra’l nuesu pueblu. Si volvíemos la vista atrás mientres xubíemos la costosa cuesta que teníemos per delantre podíemos ver, claramente, la estroza de la nuesa broma. Naquella parte del ríu que llamen Sotu, onde l’agua remansa, tolo qu’algamaba la vista volviérase negro: la fueya de los árboles, la paraza, les piedres qu’unes hores enantes taben enllenes del verdín del mofu, el güeyu mesmu de la ponte. Onde la corriente facía dalgún remolín, daben vueltes los restos quemaos de la paya, ceniza yá que llexaba enriba l’agua. A entrambos llaos del ríu, los praos tamién amosaben les feríes del fueu, como si una gadaña ingriente se punxera a segar unes brazaes de yerba tienro. Pero lo que llamaba la nuesa atención yeren aquelles pisaes negres qu’equí y allá, tremaes en perfectu desorde, parecíen alloñase campa alantre en cualquier dirección. Yeren les buelgues que dexaren los sapos amburando cuando ensamaron a saltos dende’l ríu. Siguimos en silenciu, como si inttentáramos componer na nuesa cabeza dalguna razón a too aquello. Pa cuando algamemos les primeres cases del pueblu lo que fixéremos pesaba na mio conciencia de tal manera que los pasos

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volviéranse espesos. La casa de mio tía queda pa contra’l picu, asina que yo tenía que facer el percorríu más llargu pa llegar. Yá diba separame de Farrucu cuando empecé a amoriar y al llau del palu la lluz de casa Engracia devolví. Farrucu viome tan mal que m’esperó ensin dicir nada, encendiendo’l so primer pitu de la nueche. Creo que les mios voltures intentaben sacame del cuerpu l’alcordanza mofosa de qu’estripara col pie unu d’aquellos animales, el golor grasiento de la so carne quemao, la imaxe grave de velos alloñase del ríu saltando prau alantre mientres dexaben atrás un repinche de fumu trupo, aceitoso, que me parecía llevar inda apegao al cuerpu. La palabra hecatombe sirvía pa dar nome a lo que fixéremos.

Al pie de la casa de Farrucu llegó hasta nós un golor dulzayo, repunante y fedoriento al empar, insoportable. Cruciemos la corralada cola alma nun puñu, sorprendíos del silenciu sepulcral qu’acompañaba los nuesos pasos, tan raru a aquelles hores. ¿Y los perros, úlos? Parecía como si tolos bichos de casa marcharan xuntos. Entremos en ca Farrucu detrás del rastru d’aquella pestilencia, hasta la cocina. Cuando abrimos la puerta yá tábemos atrapaos. Ellí, ocupando’l suelu, sobre la mesa, peles sielles, enriba la chapa la cocina y del bañal, per toles repises, nel armariu, sobre la encimera... taben esperando por nós acalafrando a acetona rancio. Cientos, miles de sapos de tolos tamaños, tolos que vimos salir del ríu y mialma otros que se xuntaron a ellos pel camín, taben ellí, col so pelleyu fumientu y la carne esmendrañao, dellos negros como carbonizos y otros vistíos d’un blancu llechuzu y palpitante. Volvieron pa nós los sos güeyos grandes de neñina tresversal y sentimos cómo’l mieu nos apertaba’l corazón. Pudi ver qu’abríen la boca y dime cuenta de que zarraben los párpagos igual que faen pa tragar una de les sos preses. Malapenes m’avagó pa entornar la puerta cuando surdió de cadún de los gargüelos d’aquellos sapos una burbuya blanca que s’espardió pela cocina. La finísima llingua de fueu na que se xuntaron toles burbuyes arrasó aquella pieza de la casa y llambióme la mano cola qu’empuñaba la maniya enantes de que pudiera cerrar del too la puerta. Farrucu, el mio amigu l’Avestruz, quedó atrapáu ellí endientro, na cocina, y dende l’otru llau del batiente de madera que nos separaba pudi oyer claramente cómo-y chirchaba la piel, quemando enteru. Per debaxo de la puerta llegó hasta min un golor distinto, acre, pero conocío: esactamente igual qu’el de los candiles de carburu cuando amburen.

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VALTER HUGO MÃE

Espanha 1977

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ara cima da igreja começavam os campos e havia muitas árvores. Por certos caminhos, a vila acabava e a mata punha-se alta a criar barreira. Para afastar as crianças dali, impedindo que fugíssemos mundo fora a inventar aventuras, diziam-nos que a partir da linha das árvores era Espanha. Era longe e terra nenhuma. Uma terra que não entenderíamos e que nos seria hostil. Outro povo, outras leis, facas, talvez pistolas, martelos com picos de ferro, muita facilidade na morte. Os perigos todos juntos. Perigos inimagináveis e muitas dores para sempre. Em Espanha, sabíamos com dificuldade, havia reis e príncipes e andavam a cavalo e vestiam ouro, luziam ao sol, eram ricos de serem antigos e furiosos, caçavam animais selvagens, usavam peles, habitavam palácios em tempo de paz e castelos em tempo de guerra. Casavam-se bêbados. Tinham muitos filhos. Eram quatro ou cinco vezes mais do que nós. Eram demasiados e talvez nascessem em grupo, aos dez de cada vez, sempre furiosos e preparados para atacar. Tinham mais dentes do que nós, como se fossem crocodilos ou outros animais dos quais nem saberíamos o nome. Quando olhava para as árvores, a densidade que faziam, eu julgava olhar para muito longe e acreditava que bastaria mudar um pé até elas para que um mundo invisível se nos revelasse. Na verdade, os espanhóis eram dos contos de fadas, encantados como nos contos de

fadas, cheios de sorte e inteligentes, eram felizes. Se puséssemos um pé em Espanha, as árvores vistas de perto haveriam de denunciar os palácios que albergavam, e poderíamos contemplar os bolos enfeitados sobre as mesas e as raparigas muito lavadas e perfumadas com roupas claras e os peitos redondos quase saindo do espartilho. Pensávamos que as raparigas espanholas faziam nada. Eram só bonitas e também felizes. Estavam sempre sentadas em contemplação com o ar de quem tinha uma natureza profunda e preciosa. As moças espanholas serviam para poemas e para pinturas importantes. Em 1977, as pinturas mostravam muito as pessoas de Espanha. Nos livros de escola falava-se de Picasso, Miró e outros. Eram, quase todos, artistas esquisitos, como se os espanhóis tivessem olhos na testa e braços a sair pelo umbigo. Nunca tive coragem para ir a Espanha. Não passava da rua que levava à igreja. Sendo o fim do país, era o fim de tudo para mim. Tinha medo que, depois de atravessar a fronteira, me tomassem e proibissem o regresso a casa. Imaginava a zanga da minha mãe por lhe ter desobedecido, e como entristeceria. Imaginava que ela, de traída, nem iria pedir o meu resgate, certamente frustrada com a minha incúria e estupidez. Pensava eu que ocupariam o meu lugar na família com outro menino qualquer, ou com um cão bonitinho, servil e mais afectuoso. De todo o modo, eu não sobraria para amargar muito tempo, imaginava que os animais

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selvagens, que o rei andaria invariavelmente a caçar, seriam implacáveis e que numa dentada me devorariam para sempre, com ternura e inocência incluídas. Ossos, olhos, tripas, ternura e inocência, tudo incluído na morte. Tudo morto. Contudo, acontecia de ter tardes de maior coragem. Depois da escola primária e a pensar que a primavera era benigna, eu ia por ali, às vezes na minha bicicleta, e pasmava diante das árvores e até atravessava a pequena rua e ficava quase sob os ramos mais compridos. Mas não colocava os pés em terra fértil. Ficava no batido da estrada, onde planta nenhuma medrava, e suspeitava que as próprias plantas adiante olhavam e conspiravam, talvez passando a palavra. Havia algumas carnívoras, isso sabia eu, e comer um rapaz tão magrinho como era eu até as flores de cemitério, cabisbaixas, haveriam de saber comer. As plantas carnívoras saberiam falar, de bocas bojudas e antipáticas balançando nos caules. Numa dessas tardes, sentado na bicicleta e a tentar ouvir ruídos estranhos, assustei-me e pedalei para o outro lado da rua, a pensar sempre que a estrada servia de linha de chamas, ardendo em minha defesa, esturricando o inimigo que tentasse atravessar. Ali fiquei, convencido da minha maior segurança, esperando. Subitamente,

adiante, entre as sombras mais ao fundo, quase sem possibilidade de ser visto, eu vi. Passava o rei de Espanha a cavalo. Era um rei intermitente, aparecendo e desaparecendo, como uma lâmpada fundindo. Ondulava. Mas vi bem como estava de costas muito esticadas, importantes ou orgulhosas, e convenci-me de que sorria. Era indubitavelmente um rei contente. A coroa luzia. Foi por causa da coroa que o percebi. As pedras preciosas eram excêntricas e gostavam de fazer luz nos lugares mais apagados e, ondulando, a coroa acendia em cima e em baixo, passando, e eu, muito pasmado, estremeci inteiro. Eu penso que o rei de Espanha andava a caçar animais lentos, ou então ia apenas a passeio. Porque não ia à pressa mas também não estava com ar cansado. Estava satisfeito. Talvez já trouxesse a caça morta no dorso do cavalo ou arrastando nas ervas do chão. Pensei que a rainha devia ter criadas para cozinhar um banquete, a mandar apenas pôr mais sal como se fosse ela a cozinheira mais sabichona e esperta. Não era muito estranho que a Espanha fosse ali na vila de Paços de Ferreira. Durante muitos anos, por visitar no verão a família do meu pai que estava emigrada, pensei que a França ficava na Póvoa de Varzim.

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FERNANDO CABRAL MARTINS

Diário de Lisboa Il ya en moi quelque chose d’affreux qui monte et qui ne vient pas de moi, mais des ténèbres que j’ai en moi, là où l’âme de l’homme ne sait pas où le Je commence et où il finit. A ntonin A rtaud

1 de Janeiro de 2013 Passou o tempo. Não posso deixar de contar isto. O meu filho passou a andar por fora de casa e não me diz nada de nada. Não sou capaz de trabalhar, atirado a esmo para distracções e cultivando as falhas de memória, que pode ser uma boa via quando se desiste, mas antes traz inquietação e muito tempo perdido. Não gosto de me ver ao espelho. Quando falo acho estranho o som da minha voz, como se fosse a voz de outro, ou como se entre mim e a minha voz tivesse aparecido um espaço em branco. A consciência do som da minha voz, que é a consciência do meu corpo a actuar, impede-me de pensar bem naquilo que digo. Calo-me, portanto, como num certo filme de Bergman. Ou falo como quem empurra um rochedo pela encosta acima. Ora isto é um problema, dando-se o caso de eu ser professor. As minhas memórias não me agradam. Não tenho nada de grande nem de belo que possa contar. Só tenho coisas verdadeiras, isto é, deprimentes. Tudo porque tinha tanto amor para dar e não mo quiseram. Tinha tantas palavras para dizer e não mas quiseram ouvir. Queria tanto estar com os outros e voltaram-me as costas. Ou, mais simplesmente, a preguiça. Não fui capaz de fazer nada. Agora que sei que é tarde, o melhor é apagar da memória o que acabo de escrever. Se calhar é toda a gente assim.

3 de Janeiro de 2013 Quem é ? - José de Mamede. O que é a arte para si? - Um dom uma paixão uma beleza que se transmite.

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O que o leva a criar? - Necessidade e por gosto. O que o inspira? - A beleza em tudo o que nos rodeia e que nos traz na vida. Como se sente ao criar? - Paz e orgulho. O que espera quando um público vê as suas obras, o que sente? - Espero que admirem, gostem e que dêem valor às obras e isso faz-me feliz. Qual a obra que mais o marcou e porquê? - La Petite Danseuse, representa uma figura com um olhar que transmite vida e sabedoria. Quais os pontos altos da sua experiência como artista plástico? - Exposição Colectiva no Novotel em Lisboa. Quais os planos futuros? - Aperfeiçoar as técnicas da pintura, continuar a expor as minhas obras e criar novos projetos de pintura que demonstrem o realismo na pintura. Que conselhos dá a quem está a começar? - Ter confiança, paciência, tentar e nunca desistir.

4 de Janeiro de 2013 O coração não aprende nada. Na cabeça percebo tudo, mas no coração continua sempre a rodar a mesma melodia repetitiva em que uma frase absurda se vai fazendo ouvir. Estou doente. Na cabeça vejo claramente o afastamento do outro, o facto de o outro se ter desligado, porque a ligação não era forte ou porque o vento a fez cair. Até nem custa muito a perceber as razões por onde passaram os gestos que criaram a distância. É sempre muito claro, muito compreensível. E radical, sem retorno, sem recurso e sem tempo. Mas no centro do imaginar, no côncavo do sonho, as figuras de outro tempo e de outra lógica continuam o seu percurso de luzes eléctricas e nuvens pintadas. Bem, como Goethe explicava a Eckermann: o amor não tem nada a ver com a inteligência, não é a inteligência quem ama, ainda que a inteligência… Inteligência – meu Deus, que inteligência? Quando a pele é riscada por uma lâmina, quando o olhar é vidrado por dentro na fantasia infantil, quando os sinos dobram pela morte de quem tu amas, que é mais tu do que tu és, onde pode estar colocada a inteligência, e, já agora, a caridade? O meu coração não é um solitário caçador.

7 de Janeiro de 2013 A consulta de certos sites é absorvente e constitui uma aventura em si mesma. A internet tem-nos, não somos nós quem a tem. Nós, os pequenos autores-leitores, somos o seu conteúdo. Ela é a nossa forma. Estamos resolvidos num conjunto de relações e esse conjunto é que somos “nós”.

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É preciso, pois, procurar temas que existam fora do toda a ocupação digital. Talvez a fotografia esteja bem como tema. A literatura, deixar. A doença limita os meus dias. Escrever, como agora, faz-me doer o pescoço. Comer faz-me doer os braços (se a perspectiva de mastigar for suportável). Cada passagem de um dia é uma perda de tempo e um ganho precioso. A minha doença não tem sintomas, mas não é virtual, está apenas escondida. O que está escondido não é imaginário, mas aproxima-se de o ser por revestir uma das suas características principais, que é a de não se ver. De resto, o imaginário é ainda mais real do que a minha doença escondida, porque o imaginário pode ser transformado em imagem, e a minha doença é apenas um resultado positivo com um valor expresso de milhões de unidades.

10 de Janeiro de 2013 As fotos do casal foram tiradas com um ano de diferença. A primeira é de janeiro de 2007, quando Vanessa estava grávida do seu filho Jax. A segunda foi captada exatamente um ano depois, quando Melanie carregava no ventre a filha Ero. “O corpo da mulher é incrível. A forma como cria e cresce outro ser humano é incrível. Esperamos que a nossa foto seja esse sinal de que algumas mulheres precisam para serem incentivadas a carregar uma criança”, acrescentou Melanie.

15 de Janeiro de 2013 Vi um bocado de um filme de Clint Eastwood. Nem sequer sabia o título original, a informação do teletexto informava apenas que o realizador era ele próprio. Parecia-me já o ter visto, de tão previsível que era. Mas agradável, claro, e de uma clareza de construção que me fez bem aos olhos durante os poucos minutos em que me mantive naquele canal. De repente, uma face conhecida, ou que assim me pareceu. Seria um Sean Penn muito novo? No decorrer da sequência, foi a minha preocupação perceber se era ou não Sean Penn quando novo. Não consegui ter a certeza, e depois pareceu-me que não era. Fui verificar, e lá estava o nome do actor, era Chris Penn, o irmão de Sean Penn. Descobri que tinha morrido há poucos anos, gordo e drogado. Mas o que me maravilhou foi ter reconhecido, sem o ter dito com a palavra certa, que era um irmão de Sean Penn, e percebi mais uma vez que as figuras de filmes entram tanto no meu universo afectivo como a minha família ou os meus amigos.

24 de Fevereiro de 2013 Estou fraco, confuso, como tenho andado estes últimos anos, mas com a febre a mais. E vão quase quatro semanas que tenho febre, desde o dia 20 de Janeiro menos do que antes, só à roda de 37 e meio, mas isso chega para me sentir quente, suar. E tenho dores nas costas, na zona sagrada. Não sei o que hei-de fazer. Não sei o que hei-de fazer mais do que já fiz, eu que visitei quatro médicos. A hepatologista, o médico de família, dois urologistas a escolher. E escolhi, um que me pareceu mais preocupado com a minha saúde. Ando a fazer exames que não concluiram ainda nada, mas que não sei se podem ter a ver com a situação antiga. É preciso manter o espírito, a todo o custo. É preciso manter o espírito, a todo o custo.

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2 de Março de 2013 O suspeito de violar um homem sem pernas no concelho de Santarém ficou em prisão preventiva. O suspeito, de 40 anos, vizinho da vítima, tinha sido constituído arguido pela GNR, mas não foi detido porque o crime é semipúblico, dependendo da queixa, o que não foi feito na altura. O crime ocorreu no dia 3 de junho, quando o suspeito entrou em casa do vizinho, que não tem pernas, amputadas devido a problemas de diabetes. O homem foi apanhado, por volta das 22h30, quando uns vizinhos estranharam ver a porta da casa da vítima aberta. Ao local acorreram populares e a irmã da vítima, que apanharam o homem em flagrante, tendo havido altercações e o suspeito acabou por ser agredido e receber assistência no Hospital de Santarém. Segundo fonte da GNR, quando a patrulha chegou ao local deparou-se com um grupo de populares à volta de um homem.

9 de Julho de 2013 Num livro de António Telmo, Gramatica Secreta da Língua Portuguesa, Lisboa, Guimarães Ed., 1981, leio, na página 76, que Sibila de Cumas “conduz o herói pelos Infernos até ao Pai. Estão no ponto central do Y, onde as vias divergem: a da direita dirige-se para o Paraíso; a da esquerda para o reino da treva e da dor. Há correntes esotéricas que situam este ponto no cerebelo”. Lembro-me também de um título antigo: Viagem ao Mundalucinado deste Agora, de Fernando Batinga. Que terá acontecido a Fernando Batinga? Ponho-o no google. Existe ainda. Tenho de pressa de chegar não sei onde. Ou melhor, sei. Ao dia 25, em que ficarei a saber se continuo ou não o tratamento. O qual é, de facto, uma tortura. A sensação de cansaço que induz parece aparecer por desleixo, como se fôssemos nós que nos deixássemos andar. Mas é ele, a sua acção. Ou não, se calhar nunca mais deixo de ser um calhandreiro preguiçoso e a minha pobre vida vai ficar reduzida a uma pesquisa infinita de sítios porno na internet. Levanto-me de manhã e dói-me tudo, quero adormecer outra vez para que o tempo passe, mas ele não passa, e eu não adormeço, apenas deslizo com a inclinação que dá não sentir tanta dor. Olho muito tempo depois para o relógio, só passaram cinco minutos.

20 de Setembro de 2013 Ocorreu-me agora, numa surtida à pornografia domiciliária a que chamamos internet, que estamos a entrar numa época de tédio. O mesmo tédio que iluminou os anos do século XIX em que se geraram as comunicações de massas, bem como a sociedade secreta dos que a recusavam. Enfim, estou agarrado ao meu destino. Estou à espera da decrepitude. As coisas que me diziam respeito foram ficando entregues a outros mais competentes. Sem autoflagelação: sou um homem que procura um amigo como Nietzsche procura Deus. Ponho-me a trabalhar com a sensação de me acorrentar a um poste. A cada momento visito blogues, jornais, agito favoritos. Volto sem fôlego e sem tempo. Mas a questão é mesmo essa. Perder tempo. Tédio. Excitação do que não sei o que é. A cara esmagada contra o vidro.

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15 de Outubro de 2013 Viver bem. Tudo se reduz a viver bem. A única arte é a de escolher viver bem. À parte isso, dói-me cada músculo, cada centímetro de pele.

10 de Novembro de 2013 Visivelmente aliviado com o regresso de Elisabete à Casa dos Segredos, Bruno não perdeu tempo e passou a noite na cama com a instrutora de zumba. À parte das polémicas e dos insultos feitos pelos outros concorrentes, o novo casal não se coibiu de trocar carícias e chegou mesmo a fazer sexo na cama ao lado de Flávia. Agnes foi das vozes críticas que mais se fez ouvir. Muito amiga de Flávia, a romena não se cansa de reforçar que Bruno “não vale nada como homem” e aconselhou-o a cortar o pénis.

8 de Dezembro de 2013 Assisto à impossibilidade do corpo. O espírito resiste mais às coisas da vida precisamente porque não tem corpo. Já a matéria é frágil. Mas o espírito também deve ser mortal. Depois diz-se assim: é tudo mortal, o próprio universo é mortal. Pode ser que sim, pode ser que não, havemos de voltar a falar sobre issso, mas o que é certo é que não se pode conceber a ausência do que quer que seja, ou, pelo menos, de que qualquer coisa suceda no meio do nada. No princípio era não ter havido princípio, porque tudo existiu sempre. Uma narrativa infinita, circular, em estrela, em múltiplas linhas paralelas. Ou talvez mais que uma, talvez até uma infinita multiplicidade de narrativas infinitas. O verbo inicial apenas continua uma história. É sempre e apenas o verbo inicial de uma nova história. Um novo capítulo de haver história. Percebo que o trabalho tem todo de ser mental. Que a força de pensar é a única força. Que a única matéria que resiste são as palavras. Que a única matéria que existe são as palavras. Resistir à dor, ao incómodo de ter um corpo.

21 de Dezembro de 2013 Estou desesperado, creio que por ter tomado café. Destaco metáforas, desloco elipses, esmago prosopopeias. Estou perante a minha colecção de experiências do dia, um epítome da minha vida. Estou a tremer. A minha vida parece ser feita da vida dos outros, as minhas experiências melhores são as que vivi no cinema. E as que ouvi contar, ou as que depreendi das histórias que contam os meus amigos. Mas começo a sentir a depressão provocada pelo peso das experiências dos outros. As minhas quais foram? As que imaginei? As que vivi? Porque é que recordo tudo tão mal, tão desfeito? Em breve poderei estar sem fazer nada. Sem recordar nada.

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Algumas imagens persistem sempre, mas alteradas por sinais estranhos, misturadas já de palavras que não dizem nada, ou dizem o contrário. Procuro encontrar os fios que seguram as imagens, mas sei que imagino metade e que resto já não se vê. O fio fica solto, morto no chão. Perdeu-se. A única memória fiel é a do corpo, mas está tapada pelo brilho falso do presente.

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MIGUEL FILIPE MOCHILA

A separação

Tomara que a Tamara viesse, varada veria ao longe mãos, as minhas, betumadas de poeira branca, salpicadas de suor e de cimento, trabalhando a matéria da casa, alijando as fôrmas, baralhando serrilhas e martelos, besuntando betão e madeira cos acrílicos frígidos dos trezentos, e vindo desenxabida haveria a Tamara de desolhar trôpega e triste com o seu ar de ronha, afectando desprezo, simulando não crer que eu me atrevera, mas aninhando-se já nela então o afogo contorcido, um pozinho de consternação, polvilhando-lhe os dias futuros espezinhados pela dúvida, e se ela perguntasse: João? eu engoliria o riso, e pensaria: e não é que eu vim mesmo, Tamara?, não é que eu disse que haveria de erguer uma casa qual palácio de cristal só pra abafar a tua crista que desejaria vassourando baixa os caudais do chão, trincando bichos, sendo a ramela enfezada do olho do cão, e não é que eu vim?, e então eu veria a tua nuca enlameada do cocuruto às pontas do cabelo lascadas plo sol, do tanto tempo engalanado no olho da rua, eu veria a tua nuca rebaixada na humilhação, sopesando um pensamento triste, e eu teria ainda o riso miudinho escoltando a minha glória, por isso tu anda, Tamara, vem ver o meu dedilhado mansinho já no acabamento da mansão só minha, tu atarantada e tanto que a trela do cão esmaiada nas tuas mãos remoídas plo desconsolo, e ele ofegando ao rés de ti com o seu orelhudo modo de afagar-me, com o seu olhinho sério comovido, querendo vir já focinhar na casota de lata que levantei pra ele na soleira da casa nova, e tu repreendendo-o súbita, pensando não repreendendo-o embargada: quieto, Caju, de modo que desta vez é a sério, Tamara, eu retorcendo na euforia do corte das vigas a minha vida em titubeante equilíbrio, não é que eu disse que ia e fui mesmo, Tamara, alinhavar arestas e rodapés culminando a minha sede de haver um longe de ti onde fazer a cama, instalar a minha tralha, deixar o cotão paciente acotovelado no recanto até se entrincheirar em cada bocejo do meu corpo, da barriga à garganta, do umbigo à fronte, eu haveria Tamara de rir se viesses agora, no teu modo emproado e vadio, debicando com o teu passo-holofote a calçada deserta, com o teu tupperware ajoujado no bafo viscoso a lavanda do sovaco, com o cão de rojo balofo da vida contigo, cuidando ser observada plo mundo ao ralenti como uma star de cinema, bordando de comoção requentada uma banda sonora parola, como que ensaiando pose prá câmara, mas no fundo sozinha, Tamara, no fundo sozinha,

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mas é que, João, eu tenho o mundo todinho a estrear a tua sanha sem o mundo todo assoberbado a olhar pra ti, eis a tua sina, sem o mundo a babar a tua juba impecavelmente postiça, borbulhando ao rés da caliça das paredes ratadas da rua de baixo, tu só saindo de casa, sem cão nem nada, sozinha-inha, mas é que João trazendo o teu decote fundeado pelo imenso estertor do suor, e talvez até quem sabe um tipo mesquinho baixando o olho pra não topar o teu balanço de parideira atascada ao pico do sol, o teu menear deslavado, o teu batom espampanante de rubor e caruma, ai se o mundo soubesse que a tua boca é um ralo onde a maior porcaria se acumula, que usa catarro com frequência, que diz muita merda também e depois se acha donzela escalavrando no mato, pra deixar perfume de ranço à passagem dos pés picotando a terra batida, pensando que fizeras de mal pra merecer isto, mas é que mas eia por onde começar, Tamara?, por onde começar contando da tua lepra diária carcomendo os meus dias, do teu olhar oblíquo desprezando os meus gestos um a um até serem só caretas de gestos pedinchando caução, por onde começar sem embasbacar logo no tropel de andrajosos à espera do teu baixar a guarda que sempre vinha, não consigo eu não consigo evitar tarados trepando a tua vulva até ao paraíso que congeminavas com coisas acontecendo lá ao alto da cerração, por sobre o montado, com nuvenzinhas de idílio e talco abespinhado de palacetes benzidos esvaziadas logo logo ao alfinete da sensaboria do sexo, que trazias contrafeito com o bando de catraios à bordoada em ti quando fervias de tédio, dizendo ai, ui que tinhas de ser de outro modo, que não fora isso o prometido, a praga do sexo somente não, algum carinho também pra apimentar noites cochiladas em conchinha, e tu já nessa altura embaçada de mel, um tediozinho sussurrado aqui vendo-os persignando-se em amorosos trabalhos toda borrada lá vinhas tu, olha, João, de novo acorrendo esfalfada à minha beira, pedindo, beicinho transido, que trocasse a fechadura da casa cujas chaves ofertaras numa noite treslouca a um deles, é que eu às vezes, João, que cortasse os fios do telefone roufenho já de ofensas no bocal imundo dos perdigotos atiçados plo rancor deles, mendigando que fizéssemos uma ilha na casa só prós dois, João-ão a contrapelo do mundo fétido de injuriosas cobiças, que esquecêssemos os teus amantes emborcados nas trincheiras do quintal, contigo dobando monos escabrosos de retê-los em nenhures, pedindo-me de novo que desse corda ao teu coração, dizendo jurando que a gente havia de arranjar maneira, a gente é a gente, João, que o amor também é isto, este apeadeiro genital, que logo logo te fulminaria de novo o raio ardente da tusa por mim, que até já sentias a primeira pontada de calor no baixo ventre, põe a mão a ver se sentes, só de estares fazendo muita força com a mente, Tamara, de me quereres daqui além ao pé da lua, que plas minhas contas é na esquina da clínica veterinária ao fim da rua, e eu logo zonzo de pena dizendo

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pois sim, vem logo, Tamara, aninhar-te ao rés de mim com o teu bafo azedo de brandy e tabaco mascado, com a tua transpiração de outros, com os teus cabelos lentos desprendendo ainda os gritos lascivos dos garotos teus ex-servidores nas arte&manhas da cama, e eu de novo subjugado à tua determinação cadela, embocando o ar, subtraindo-me o oxigénio, deixando-me à nora demandando ternura no teu olhar calado, oi? e tu tosquiando um pouco mais a minha atenção com o teu zelo tímido, esse teu irritante sorriso perfeitinho até me teres rendido de volta ao aconchego mole da casa, mas hoje não, Tamara, desta vez não, só queria que me visses erguendo pedra a pedra uma casa só minha pra nunca mais te ver amochada a mexericar nas minhas coisas, metendo o bedelho, com as tuas brasas cínicas do tabaco no lençol, manhãzinha ainda, desasando tudo, torrada manteiga mel parmesão o teu leite pastoso na bancada ao primeiro arremedo de manhã, o mentol chocho da pasta dentífrica em lascas ressecas na pia do lavatório, as tuas olheiras medonhamente arrotando a melodia esmaecida de outra manhã, tô tão cansada, João, prostrando mais um dia igual a tanto dia, escalavrando o nosso amor num rascunho repetitivo, mas é preciso agora esquecer tudo isso, Tamara, ah se tu me visses erguendo o palácio barato e pontual com casota pró cão, ficarias um tanto estremunhada de raiva eu sei, batida de alto a baixo por uma comichão perdigueira, já nem sequer perguntando: João? a fitar-me depressa fanhosa de pranto sem entender sequer, e eu com os meus dedos túmidos traulitando a cervical da casa só pra embirrar, a mirar-te de entreolho, fazendo um afago no alicerce central até a casa se contorcer toda estremecida num cochicho arrepiado, a casa rindo baixinho, insinuando-se libidinosa só pra mim, e eu a começar então a gostar dela, Tamara, a pensar pra mim: eis a minha casa que é minha e a começar a amá-la, a querer fazer ronha nela, a curtir o cimento fresco as abóbadas mudas à brava, as cócegas que eu farei nos seus tampos frescos, e lá fora tu com a tua histeria baça, com o teu modo espantalho de fitar oi? o borboto indignado da tua saliva cuspida contra o oco do janelão, dentro eu coçando as virilhas deliciosamente, colhendo do ar o vapor bruto da tua raiva salivada para o interior da sala nova, que é minha, Tamara, grato pelo frescor imprevisto contra o furor do sol, e estaria tão na minha que se tu quisesses, Tamara, se tu quisesses eu dir-te-ia até quem sabe vem e pensaria: tomara que a Tamara viesse à tardinha toda anestesiada assanhada de mim, e quisesse roer os meus cabelos flácidos, franzir uma harpa buliçosa com o meu fecho das calças, e tiritasse na fivela do cinto um gemido langoroso do metal puído contra a minha ganga, e depois eu haveria de descer à mão cheia uma aranha de dedos que se arrastasse na tua nuca, e se abrisse depressa qual pensamento consumado, e no teu couro cabeludo desovasse um trilho de calafrios que te descesse o dorso até ao sexo, e tu te arrepiasses toda da testa ao cóccix, a espinha debruada num esgar sedento,

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faz isso, João, e fosses um, dois, três segundos novamente a minha casa, e eu fizesse a cama em ti e ficasse a ornar no lusco-fusco o teu hálito vencido, a conduzir os meus dedos pela tua pele sumida, e se tu não estorvasses muito, se não me trouxesses aborrecido em demasia, se tu quisesses eu rediria talvez até quem sabe vem e tu hesitarias um pouco, tossicando no medo, e dirias está bem, e então subiríamos juntos ao polibã do quarto de cima, Tamara, e a água corrente trautearia o seu bolçar quente até o vapor se grudar nos vidros feito sanguessuga, e eu tombaria o teu corpo por sobre a água a escaldar, devagarinho pra não sujar os mosaicos do chão novo de água com flor de sabão, e veria entre o vapor as borbulhinhas açucaradas da tua barriga arrepiada coloridas de ardor, rosa vermelho fogo, a tua pele tinindo como panela pressionada plos cem mil graus de desejo que eu me inventaria só pra ti, Tamarazinha, fazendo a pele das tuas bochechas requentes até estalarem fervidas numa crosta nova da água carnuda do chuveiro, contigo debatendo-te numa temerosíssima ternura por mim, e a tua boca lavada até ao estômago por esse caldo límpido até gritares meu Deus, até eu dizendo sim, e tendo-te então já vencida posto ao alto em meu lugar, olhando-te lá do alto, criatura vermelhíssima até mais não, e podendo dizer-te enfim bem-vinda à minha casa, Tamara, contigo desmaiada nos meus braços marejados de espuma fofa de sabão, pétrea estarrecida no lençol borbulhoso da água, podendo dizer-te bem-vinda, Tamara, à minha casa que é minha, e por isso adieu, songamonga linda, por isso bye, c’est fini, adeus.

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ABEL NEVES

O RONHOSO Abafa-se. O cortinado há muito que ganhou a cor da poeira que entra pela janela e costuma abanar como abanam todos os cortinados finos postos a temperar a luz e o ar entre as casas e a rua. A sala está apetrechada com uma pequena mesa de cozinha com tampo vermelho de fórmica, duas cadeiras a condizer, um lava-loiças com um prato principal e três de sobremesa, uma xícara, talheres, copos, um velho frigorífico, dois armários castanhos repintados, um relógio chinês e uma estreita cama mais ou menos mal composta, debaixo da qual se pode ver, quase inteiramente, um par de sapatos pretos de atacadores. Além de cozinha, a sala serve também de quarto. Há duas portas, uma para a rua e a outra para pouco mais de dois metros quadrados de casa de banho com um tecto que ganhou a cor do enxofre a contrastar entre alguns azulejos com o anil dos faraós. O homem, que veste uma camiseta branca de alças, tem a cabeça inclinada sobre o prato, e gotas deslizam-lhe da testa, ensopando as sobrancelhas e pingando na canja com asas e miúdos de galináceo. Sorve o líquido e nem se dá conta do chuveirinho de suor. É a canícula. A custo, muito a custo, foi à farmácia para comprar o medicamento que acalma as turbulências no estômago e disseram-lhe que o preço tinha crescido. Também há bacalhau desse, crescido, mais caro. Voltou para casa de mãos a abanar e a pensar que não podemos estar doentes, não podemos, não podemos. É a terceira vez que não compra os fármacos, e desiste. Não voltará mais à farmácia. Pensando nisso vai eclodindo mais acidez no bucho e piora, o homem tem pioras. País de merda, pensa. Eles pagam bem àqueles que conseguem pôr os desgraçados na ordem. Os novos gestores são administradores de escravos e de que me serve estar a comer este caldo se vou rebentar pelas costuras, ainda por cima com um calor destes que faz estalar até o casco dos navios? Vou comer a canja e deixar que isto rebente. Alguém há-de dar pela minha falta, talvez os da farmácia, os outros não sei, os amigos e conhecidos nem sempre se dão conta, estão na vida deles e nem se lembram que um gajo está com o bucho nas últimas e querem lá saber se a canja começa a ficar com uma aguada de sangue. Pousa a colher depois de a morder para conseguir amordaçar sabe-se lá que grito e senta-se no sofá virado para a janela, lá no alto. Quase enterrado já está, ali, na sua cave da praceta com jardim infantil, e pensar que a ganância de uns quantos o impede de estancar a revolta nas entranhas aumenta-lhe o desgosto e, claro, a revolta nas entranhas. Só quem tem dores é que sabe. Enrola os braços na barriga, dobra-se e tomba de joelhos no soalho. Sobe o olhar para a janela e o cortinado dança. É isso, dança. Muitas vezes, em miúdo, diziam-lhe que era isto e mais aquilo, que o que ele tinha era ronha, um ronhoso era o que ele era. Nunca foi de fazer as coisas com pressa, mesmo quando nos seus trabalhos da recolha do lixo se via obrigado a correr à frente dos caixotes, ainda no tempo em que não havia luvas nem elevadores atrás dos camiões

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e a força dos braços é que comandava. Andar ao lixo é um trabalho que se vê. Há trabalhos que não se vêem, que ficam ocultos para sempre. Antes de vir para a cidade, ainda se meteu nas minas, mas muito depressa começou a tossir mais do que devia e raspou-se dali para fora, do ferro para o lixo, do sul para a capital. Agora, está curvado e a sua aflição já não está em si, mas na vida e por isso, retardando a agonia, levanta-se, empurra o sofá contra a parede debaixo da janela gradeada por fora, sobe para o assento, afasta a cortina e mete uma mão para a calçada. Os que passam vêem-no lá em baixo, de mão estendida. Nenhum amigo está próximo e os que não o conhecem não o compreendem ou não querem compreender. A vida está feita assim, mais ou menos assim, e ele deixa-se ir, devagar, a mão recolhendo-se como flor de cerejeira que espera o vento.

SEXO NA BANHEIRA Entrou com o sexo na banheira. O problema foi tirá-lo. Enfiou-se no ralo. A mania de entrar na banheira com o sexo. Podia tê-lo posto na saboneteira, ficaria bem, arranjadinho, sossegado. O que valeu foi que tinha paciência e não gritou. Suspirou. A mulher veio a correr e também entrou com o sexo, nem era costume, mas como ia a correr entrou sem se lembrar que estava com o sexo. Os dois, então, ficaram a olhar um para o outro, ela com o sexo molhado e a olhar para ele que tinha o sexo no ralo. Ficaram uma hora, em paciência, com os sexos no estado em que estavam e no fim da hora a mulher ajudou o homem a tirar o sexo do ralo. Ele gostou, e ela também. O sexo era uma flor tardia, e parecia querer falar, dizer coisas, e ele guardou-o por instantes do olhar dela, mas via-se, o sexo dele via-se tanto que a mulher desviou os olhos para só poder ver o seu que estava em baixo, dentro da água. A flor do homem estava ali a dar sombra à banheira e ele, orgulhoso, pousou a mão no sexo da mulher, e era água, e ele quis dizer qualquer coisa que pudesse traduzir à mulher que se ela se voltasse talvez o céu descesse à banheira. Ela voltou-se, ele sorriu e a flor fez-se ao corpo. Desceu então o céu à banheira. Quando saíram da tina, os dois levavam os sexos, cada um no seu lugar. Viram a água correr, a ir pelo ralo. As toalhas eram grandes e brancas, de algodão egípcio. Foram secar-se cada um para seu lado, ela a sul e ele sem saber. Depois, saíram para jantar e foram ao cinema. Entre uma cena escura e uma clara, ela pôs-lhe a mão em cima da flor.

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JORDI PUNTÍ

Ronyó

L

a primera carta va arribar un dimarts al migdia, però en Gori no la va obrir fins gairebé una setmana més tard. No la va obrir perquè no en tenia ganes. La seva vida avançava sense urgències. Per alguna raó absurda que ja havia oblidat, sempre obria el correu el dilluns al vespre. Així, les poquíssimes cartes que rebia anaven a parar al damunt d’una cadira de vímet al costat de la porta, fent pila amb els rebuts del banc, els prospectes de publicitat o la revista del col·legi de pediatres, que cada dos mesos arribava puntualment amb el nom de l’antic llogater de la casa. En Gori, doncs, va despatxar el correu el dilluns al vespre, assegut a la taula de la cuina, mentre esperava que bullissin uns espaguetis. Obria les cartes amb un ganivet, els donava un cop d’ull i triava les que havia de guardar i les que no. Quan va agafar el sobre que ha engegat aquesta història, a l’instant hi va reconèixer la lletra del seu germà. No duia remitent, però en tenia prou amb el seu nom i l’adreça. Era una lletra esvelta i ossuda, amb el traç enèrgic. La te majúscula retirava a una tíbia; les ces eren arrodonides i anguloses com el pòmul d’una model russa. Mentre estudiava les lletres, va recordar un article que havia llegit en un suplement dominical. Un grafòleg seriós explicava que al voltant dels dotze anys adoptem la cal·ligrafia que ens acompanyarà tota la vida, i que després la lletra evoluciona amb nosaltres, a mesura que ens fem adults. Només les persones molt segures de si mateixes o molt supersticioses conserven sempre el mateix estil tota la vida, sense variacions perceptibles.

Amb desgana, com si no s’ho acabés de creure, va obrir el sobre, en va treure un paper doblegat pel mig i va llegir-lo. Era la mateixa lletra impertinent del seu germà. La carta no duia data, ni estava firmada, i només hi havia una frase escrita. “Necessitaré un ronyó”. En Gori va entendre al moment el que el seu germà li demanava, però no va reaccionar de cap manera, ni bé ni malament. Va tornar a doblegar el full per guardar-lo al sobre. Aleshores va adonar-se que a dins hi havia un altre paper i el va treure. Era un taló al portador per tres mil euros. Ara sí: va ofegar el somriure burleta amb un sospir de llàstima. Tot seguit va estripar el sobre, la carta i el taló i en va llençar els mil bocins a les escombraries. Els espaguetis ja devien estar a punt. Tenia gana. Feia més de trenta anys que no veia el seu germà.

D’ençà que era adult, en Gori patia atacs de solitud. Eren uns atacs escadussers, benignes, però arribaven sense avisar i el submergien tot el dia en una nostàlgia falsa pel passat, que creixia des de la imaginació i no des del record. ¿On l’hauria portat la vida, si tres dècades enrere no hagués marxat d’aquella manera?, es preguntava febrós. Les respostes sempre eren fantasioses i, com les pel·lícules d’humor adolescent, tenien la virtut de diluir-li el desànim. Ara vivia sol. Ja feia quatre anys. ¿O eren cinc? Es descomptava. Havia tingut temporades llargues d’una gran activitat amorosa, quan una nòvia en substituïa

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una altra i no li deixaven temps per sentir-se abandonat, i després fins i tot havia viscut nou anys, tres mesos i divuit dies amb la mateixa dona. També tenia uns quants amics. Al principi s’hi obligava. “Als pobles has de tenir amics de debò, si no t’hi floreixes”, es deia. Molts vespres baixava al cafè i jugava al dòmino, els diumenges al matí sortien amb la bici a resseguir camins de muntanya, agafava els llibres de la biblioteca del poble que li aconsellaven. A vegades, durant aquells accessos de solitud, quan sentia que la casa li queia a sobre, com si totes les rialles i converses del passat feliç haguessin corcat les bigues de fusta, en Gori també rumiava com seria la seva mort. Es preguntava qui el trobaria, si patiria gaire, on anirien a parar les seves coses, però més aviat eren qüestions retòriques i que l’ajudaven a compadir-se de si mateix. Havia passat moments complicats de salut i els amics no l’havien deixat mai sol. A més, no s’havia emportat res de casa. Trenta anys enrere havia marxat sense dir adéu. Aleshores en tenia divuit, acabats de fer. Era el petit, però amb el seu germà només es portaven catorze mesos. Un any i dos mesos. La gent deia que semblaven bessons. Bessons irlandesos, en diu l’humor popular anglès. Costava d’entendre com era que, tot i haver sortit del mateix ventre i bombejar la mateixa sang, la vida els havia fet tan diferents. En Gori se n’havia anat d’un dia per l’altre, revoltat, amb un cop de geni. El temps, tanmateix, l’havia ajudat a comprendre que no havia sigut una decisió impacient i arrauxada, sinó una maduració que venia de lluny, potser des del naixement, el desenllaç d’una situació finalment insuportable. L’endemà, ni el seu pare ni el seu germà no l’havien buscat. Ja els devia estar bé que fotés el camp. Ell els havia telefonat al cap d’un mes, des del nord de França, i els havia dit que no pensava tornar, que les seves vides se separaven definitivament. L’acollia el gran món, ara, ¿ho havien entès? Havia assajat el discurs davant del mirall de la pensió, tibat com un bandoler que es prepara per al tiroteig final, però amb el telèfon a la mà la veu li tremolava. Després el desafecte amb què el pare i el

germà gran havien rebut la notícia, el seu conformisme, hi havia posat encara més distància. “Ah, d’acord, que et vagi bé”. Si la mare hagués sigut viva... Però la mare havia mort anys enrere, quan ell en tenia catorze, i potser la seva absència sobtada era el primer símptoma evident de tot plegat.

Al llit, abans d’adormir-se, en Gori va pensar en el seu germà. No li va costar imaginar-se’l en el moment d’escriure aquella carta, tot sol al despatx. Potser tornant de la sessió de diàlisi. El metge especialista de la clínica privada li havia parlat d’opcions, li havia preguntat si tenia algun germà. Se’l va imaginar agafant el paper en un rampell i escrivint la frase sense donar-hi gaire voltes, sense triar les paraules, com si amb el gest n’hi hagués prou per traspassar els anys de silenci i fer-se-li proper. Com si no li donés cap alternativa. Al cap i a la fi era el seu germà, collons. Aquell futur en primera persona —“necessitaré”— sonava tan arrogant que només es podia llegir des de la ironia. Com si el seu germà el mirés als ulls des del paper i li digués: “Hauria de ser més delicat i demanar-t’ho amb educació, però jo sé que tu saps que jo no sóc així, que no puc haver canviat, ni tan sols en un moment de desesperació. Si sóc educat i t’ho demano per favor, em veuràs com un fals que vol fer-te la pilota i em menysprearàs. Així, en canvi, des de la meva superioritat prepotent, em veus tal com sóc, el teu germà de sang, i saps que sóc sincer i no arrogant”. Arran de la lletra del seu germà, el fil dels pensaments el va portar a reviure un episodi de quan eren petits. Tenien onze i dotze anys. Jugaven junts, es barallaven poc. Sovint, quan els jocs del carrer ho provocaven, tots dos germans feien pinya contra algun altre nen. En Gori havia sortit una mica més escarransit, més retret. A l’escola, a l’hora del pati, el germà gran havia hagut de defensar-lo més d’una vegada. Els lligava un instint de protecció. Llavors, un mes de juny, els pares van decidir que el gran ja tenia edat per anar de campaments i el van apuntar a un grup d’escoltes. Quinze dies al bosc, en contacte amb la natura, dormint en tendes de cam-

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panya, banyant-se a la riera gelada, a la descoberta del bon salvatge que duia a dins. Al seu torn, es deien els pares, en Gori hauria de jugar sol i s’espavilaria més. I si l’experiència era bona, l’any vinent hi anirien tots dos. El seu germà es va emocionar quan va rebre la notícia i aviat va imaginar-se com ompliria aquell parèntesi de llibertat. Els pares li van comprar una cantimplora, una brúixola, un sac de dormir, una navalla suïssa. En Gori l’escoltava, remenava aquells objectes, es delia per acompanyar-lo. Al cap de quinze dies, però, el germà va tornar canviat. Més seriós i distant, no semblava que hagués passat dues setmanes en un campament de muntanya, sinó en una illa deserta, tot sol, lluitant amb els elements per sobreviure. Diríeu que l’havien obligat a traspassar algun llindar prohibit, a escorxar un conill amb les dents, a entrar en una cova infestada de ratpenats. Aquest nou caràcter, a més, contrastava amb les novetats més ingènues d’en Gori. Al llarg de les dues setmanes, per no sentir-se tan sol, s’havia inventat un amic invisible que l’acompanyava a tot arreu. En Gori li havia donat un nom curiós, Amida. No calia ser gaire espavilat que adonar-se que era un anagrama amb les lletres del nom del seu germà. En Gori i l’Amida s’havien fet inseparables. A la piscina, saltaven del trampolí agafats de la mà; llegien el mateix Cavall fort alhora i reien dels mateixos acudits. En Gori també va agafar el costum d’escriure un dietari cada nit, abans d’anar a dormir. Hi explicava el que havia fet durant el dia, sense gaires complicacions, però sempre des del punt de vista de l’Amida. “Vuitè dia sense en D. Avui en Gori i jo ens hem menjat un polo de coca-cola i llimona. Després hem mirat a la tele la carrera dels 5.000 metres del mundial d’atletisme”. Coses així. Les paraules de l’Amida, escrites amb tinta de debò, feien més versemblant aquella existència inventada. El germà gran no va trigar a agafar gelos de l’Amida. A mesura que s’esvaïa l’efecte elitista dels dies al campament, i de nou s’imposava la jerarquia del món real —mare, pare, germà gran, germà petit i pesat—, la figura del nen invisible se li va fer més i més insuportable. El primer dia, mentre sopaven, en Gori li havia

parlat d’aquell ésser buit i el germà gran havia reaccionat amb condescendència. “Són coses de nens”, es deia per dins, sobtadament adult, i havia buscat la complicitat del seu pare amb una mirada burleta. Al cap d’uns quants dies, però, va comprendre que l’Amida feia nosa entre ells dos. Ara en Gori ja no li seguia el corrent com abans. El seu ascendent havia minvat, el germà havia après a omplir el temps tot sol —bé, tot sol no, en companyia d’aquell imbècil de l’Amida— i ell se sentia traït, menystingut, inútil. Una nit, quan en Gori ja s’havia adormit, el germà gran es va llevar sense fer soroll, va agafar el dietari i es va tancar al lavabo. Després de llegir-ne unes quantes entrades a l’atzar i inflamar-se de ràbia, va agafar un bolígraf i va escriure unes paraules a l’última pàgina. Adoptant per única vegada el paper d’Amida, va escriure això: “Avui m’he cansat d’en Gori. És un nen avorrit i ploramiques. Ja no el vull veure més. Me n’aniré d’aquesta casa abans que es faci clar. Adéu, família imbècil!”. L’endemà, el germà gran es va esperar dins el llit fins que en Gori es va despertar. Dormien a la mateixa habitació i enmig de tots dos llits, a terra, hi havia el dietari. En Gori el va veure de seguida, el va agafar, en va allisar les pàgines arrugades i, com si el guiés una intuïció, va córrer a buscar l’últim full escrit. Mentre el llegia, va reconèixer la lletra colèrica del seu germà i d’un bot se li va llançar a sobre. L’hi faria pagar. El germà gran no va trigar a reduir-lo i, agafant-lo amb una mà pel clatell, tal com li havien ensenyat al campament, el va dominar i li va dir: —Em sembla que ha quedat molt clar que aquest Amida és un desgraciat. No es mereix la teva amistat, Gori. Ara mateix cremarem aquesta llibreta i desapareixerà per sempre. Llavors van sortir tots dos al jardí, encara amb pijama, i amb una mica d’esperit de vi van cremar el dietari a la barbacoa, full per full. En Gori, dòcil com un xaiet, resignat, no podia apartar els ulls de les pàgines desfetes que s’enfilaven uns segons en l’aire i després es desfeien en flocs de cendres, com un vol baix d’ocells de mal averany.

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Al llit, ara, en Gori es va despertar de cop, amb un buf, amb la sensació que l’ala d’un corb li havia fregat la galta. Es va tocar la cara perquè tot d’una li semblava que la tenia emmascarada. Va comprendre que aquella escena del passat se li havia infiltrat en el son. Però no era un somni. Anys enrere les pàgines del seu dietari havien cremat, i tant, i el seu germà gran estrafeia un gest autoritari quan les acostava al foc. En lloc de desvetllar-lo, el record del seu germà que ara necessitaria un ronyó el va engavanyar de nou. Mentre baixava cap a la inconsciència, va tenir temps d’esbossar aquest pensament: ¿per què no recordava cap altre episodi de la seva infantesa amb tanta claredat? Era com si un antòleg hagués triat precisament aquell mal dia per representar els anys que van estar junts.

La segona carta va arribar una setmana més tard i el sobre duia escrita la paraula urgent. Com que des del primer moment ja sabia què havia de respondre al seu germà gran, en Gori va disfrutar amb crueltat d’aquell nou intent. S’hi llegia la mateixa lletra, esclar. Si l’observava amb atenció, tal vegada el ritme de les paraules era una mica més nerviós, escrit amb una impaciència que ell coneixia bé. Durant uns minuts va jugar amb la idea de llençar la carta sense obrir-la, o de fer-la retornar pel carter. “Adreça desconeguda”, estamparien al sobre. Va sospesar-la i li va semblar que era més gruixuda que la primera. La curiositat el va vèncer i la va obrir d’una revolada. Quina decepció! A dins hi havia un full amb la mateixa frase exacta: “Necessitaré un ronyó”. Tot i ser un home d’èxit a la vida, mai no havia tingut gaire imaginació, el seu germà. Semblava una fotocòpia de l’anterior. Si hagués conservat el primer, ara hauria agafat els dos fulls i els hauria mirat junts al contrallum. L’única diferència, es va adonar, era que aquest cop havia firmat la frase amb la inicial del seu nom: D. De dins del sobre en va treure un nou taló al portador. Dotze mil euros. Ah, ja anava pujant. O sigui que el seu germà es pensava que tot era una qüestió de diners... Novament va estar a punt d’estripar-lo, però s’hi va

repensar. ¿I si el cobrés? No tenia deutes, però tampoc no li sobraven els diners per llançar-los així com així. El problema era que el seu germà ho sabria. El pertorbava la idea que un dia aparegués reclamant alguna cosa. Al llarg d’aquells trenta anys no s’havien tornat a veure en persona, ni volent ni per casualitat. Després de marxar de casa, en Gori s’havia quedat a viure en aquell poble del nord de França durant una temporada. Al principi s’havia llogat en feines senzilles i que no demanessin gaire coneixement de la llengua, com ara fer d’escarràs en un hotel de tercera categoria o treballar en un viver d’herbes i plantes medicinals. L’estiu següent havia baixat més cap al sud, seguint la pista d’un amic que cada any veremava a la vall de Roina, i després, gràcies als consells d’un patró amb qui havia congeniat, s’havia instal·lat en un poble de la Catalunya nord, al peu dels Pirineus. Havia anat aprenent el francès, però ara, a més, podia parlar català amb alguns veïns. A la primeria, sempre que es fixava en la mola de les muntanyes, enfilant-se allà al davant, se l’afigurava com una muralla insalvable que el distanciava del seu pare i el seu germà, del seu país. Amb el temps aquest ressentiment es va anar afeblint i es va convertir en indiferència. La força dels dies normals, la feina de jardiner —que de mica en mica s’havia convertit en una vocació autèntica— i una sèrie de lligams sentimentals van acabar-lo d’arrelar. A desgrat d’alguns amics seus, que ho veien com una pocasoltada, fins i tot va demanar la nacionalitat francesa.

Quan algú preguntava a en Gori com era que havia acabat en aquell poble, ell es feia l’enigmàtic. “Per una noia”, deia, i era veritat. No li agradava gens parlar-ne. Deixava la resposta en suspens i cadascú que pensés el que volgués. Si el punxaven perquè fos més clar, es posava de mal humor i ho tallava dient que era “una història tràgica”, i això també era veritat. La noia, però, no en tenia cap culpa. Més aviat n’era la víctima principal. La cosa havia anat així. Quan tenia disset anys, en Gori havia començat a sortir amb una noia de l’institut que anava a la seva classe. Es deia Mireia i era complicada.

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Amb en Gori s’entenien molt bé, es feien companyia, sovint sense que els calguessin gaires paraules, però més enllà del seu redós la Mireia circulava per una muntanya russa d’emocions. Venia d’una família molt catòlica, amb uns pares que la censuraven per tot, i la rebel·lió constant era l’únic estat d’ànim que la feia sentir viva. Més d’un cop, quan es trobava amb en Gori després d’una crisi familiar, esgotada, amb els ulls irritats i les mans que li tremolaven de tanta tensió, la Mireia li deia entre llàgrimes: “Tinc pressa per fer-me gran!”. Llavors ell l’abraçava amb dedicació. Mentrestant, el germà d’en Gori havia començat a estudiar a la universitat. Econòmiques. El pare li havia fet saber que, si es treia la carrera amb bona nota, li deixaria el negoci familiar i una bona morterada perquè pogués expandir-lo. El germà gran n’havia tingut prou amb sis mesos de viure a Barcelona, en una residència per a estudiants, per tornar-se un milhomes, un cregut, un corcó. Ara, a més d’estudiar com un animal, jugava amb l’equip de rugbi de la facultat i es barrejava amb uns quants cadells de l’alta burgesia barcelonina. Eren uns cognoms que, pronunciats a taula, el diumenge a l’hora de dinar, feien espurnejar els ulls del pare amb admiració. En Gori, en canvi, escoltava els sopars de duro del seu germà i li venia al cap aquella altra transformació de tres o quatre anys enrere, quan havia tornat de campaments fet un depredador solitari. Un dissabte al vespre, per aquella mateixa època, la Mireia va anar a buscar en Gori a casa seva i va coincidir amb el germà gran. En Gori havia sortit a jugar a futbol sala i encara no havia tornat. Quan va arribar, amb mitja hora de retard, va trobar la Mireia i el germà molt arriats. Reien i fumaven mentre bevien una cervesa. Tot d’una, per efecte del decorat, la Mireia semblava una altra persona. En Gori no va saber mai de què havien parlat, perquè ni ell ni ella l’hi van voler dir. Tonteries. Matàvem l’estona. En el fons li feia basarda que haguessin parlat d’ell. A partir d’aquell dissabte, el germà gran va començar a interessar-se per la Mireia. Si ella i en Gori sortien al vespre per anar als futbolins, o amb la intenció de fer

dit fins al poble del costat, el germà gran se’ls afegia sense preguntar. Com que ja tenia el carnet de conduir, s’oferia per acompanyar-los amb cotxe allà on fos. La primera vegada, en Gori va seure al davant i la Mireia al darrere, però aviat ella ja va demanar que la deixessin fer de copilot i posar música al radiocasset. Llavors en Gori s’arraulia al seient posterior, com si l’engolís la foscor, i es limitava a escoltar les converses d’ells dos al davant, les aventures barcelonines i les insinuacions del seu germà. Tot i que no passaven mai de ser històries banals, es notava que tenia més món, ara que vivia a Barcelona, i la Mireia les absorbia com un gran regal: ara sí, ara la feien sentir més gran. Si anaven al pub, en Gori bevia cervesa, com sempre, però ara ella demanava un gintònic de Bombay, com el germà. Durant la setmana, de dilluns a divendres, a la sortida de l’institut, en Gori gaudia d’una pròrroga per recuperar el terreny perdut. La Mireia tornava a fer-li cas, com si l’ambient escolar i els apunts l’hi predisposessin. Sortint de classe, anaven a la botiga de discos i escoltaven alguna cançó amb els auriculars. Reien i cridaven fins que el venedor els renyava. Es perdien al parc, es petonejaven i es tocaven una estona i després ell l’acompanyava a casa. Si algun cop ell li insinuava que fessin un pas més en el sexe —a casa d’ell estarien sols—, ella reaccionava amb excuses. Volia i dolia. Els seus pares la tenien acovardida. Una tarda, tot parlant, ella va explicar-li com si res que el seu germà l’havia trucat des de Barcelona. En Gori va esbufegar de ràbia. —No passa res —va fer ella per calmar-lo—, si ja ho sé que el teu germà és un xulo piscines. —¿Però t’agrada? —va preguntar-li ell. —No ho sé. Em caieu bé tots dos... Però em sembla que tu m’agrades més. Un altre dia, quan ja havien acabat les classes, la Mireia va explicar a en Gori que el seu germà l’havia telefonat per convidar-los a Barcelona. —M’ha proposat que hi baixem tots dos amb tren, dissabte a la tarda, i després ell ens pujarà a la nit amb cotxe. ¿Què et sembla? No tornarem gaire tard, com

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un dissabte normal. Jo donaré als meus pares alguna excusa, que estudio per a la selectivitat amb les amigues, per exemple... La veu li sortia amb un to de súplica inconscient. En Gori va forçar un somriure i li va dir que s’ho pensaria, però ja estava segur que no podria ser. Quin malparit, el seu germà. Sabia perfectament que aquell dissabte havia de jugar un partit de futbol sala decisiu. Al final la Mireia va anar tota sola a Barcelona. Quan el germà d’en Gori la va deixar a casa, de matinada i feta un embolic de sentiments, els seus pares l’esperaven desperts i apuntant-la amb tot l’arsenal de retrets. L’escàndol que li van clavar va afegir-se al trasbals que la noia ja duia per dins. Atacada per un plor inconsolable, va deixar-los amb la paraula a la boca i es va tancar a l’habitació. L’endemà, a mig matí, en Gori va despertar el seu germà de mala manera. —¿Què, us ho vau passar bé ahir amb la Mireia? —li va preguntar. El to volia ser sarcàstic. El germà va esbossar un somriure maliciós que ja ho deia tot, però després li va fer saber que allò no podia continuar d’aquella manera. —Ahir, Gori, quan vaig deixar la Mireia a casa seva, li vaig demanar que triï d’una vegada. O tu o jo. Aquesta tia juga amb nosaltres i jo passo de fer el paperet, ¿m’entens? Si et prefereix a tu, perfecte. Me’n buscaré una altra. Si em tria a mi, tu faràs el mateix. Aquella tarda en Gori va telefonar a la Mireia, però no s’hi va posar. —No sé què li vau fer ahir —va dir-li el seu pare en veu baixa—, però pots estar segur d’una cosa: no la veureu mai més, desgraciats! A entrada de fosc, incapaç de decidir o saber què volia, aprofitant que els seus pares havien sortit a comprar, la Mireia es va tallar les venes dins la banyera. Dos dies després, tornant de l’enterrament, en Gori se’n va anar de casa per sempre més.

En Gori va rebre la tercera carta del seu germà una setmana més tard. El seu nom i l’adreça estaven escrits

amb la mateixa lletra, però aquest cop el sobre no duia cap segell. Algú havia deixat personalment la carta a la bústia. En Gori va obrir la porta i va donar un cop d’ull al carrer, però no hi va veure ningú que pogués ser el carter misteriós. Malgrat tot, era inimaginable que el seu germà hagués viatjat fins allà per demanar-li un ronyó. A l’interior del sobre, aquesta vegada el text era una mica diferent: “Ara sí que necessito un ronyó, Gregori. Ara ja és urgent. Ha de ser un de teu. Demana’m el que vulguis”. El taló al portador confirmava el punt de desesperació, perquè no duia cap xifra escrita. Que la posés ell mateix, sisplau. Al llarg d’aquells vint anys d’exili familiar, en Gori havia rebut notícies directes del seu germà en dues ocasions. Un dia, feia més d’una dècada, l’havia visitat per sorpresa un periodista de Barcelona. Resulta que el germà d’en Gori havia assolit una posició important en el món dels negocis i, amb només 35 anys, l’havien nomenat director general d’una empresa electrònica innovadora. El diari l’acabava d’escollir com a “empresari revelació de l’any” i el periodista n’estava escrivint un perfil a fons. Al poble de naixement, algú li havia parlat d’en Gori, “el germà distant”, i ara el venia a veure perquè l’interessava buscar les arestes del personatge. En el món dels negocis no hi ha cap triomfador que no hagi deixat enemics pel camí, es deia. En Gori el va rebre amb cordialitat, però va assegurar-li que no tenia res a dir. Tampoc no es va deixar fer fotos. Com que el periodista va insistir-hi, al final va explicar-li que, simplement, ell i el seu germà s’havien distanciat de joves. No li tenia rancúnia ni res. Tampoc un afecte personal. Amb el temps, la relació sanguínia que els unia havia esdevingut un atzar inevitable. El periodista se’n va anar desil·lusionat, però al final aquelles quatre declaracions van fer de contrapès crític en un article exageradament laudatori. En Gori l’havia llegit al bar, un dissabte al matí, i n’havia tret dues conclusions: primera, que li agradava el paper d’ovella negra de la família; i segona, que el seu germà havia envellit molt pitjor que ell. Tot i el bronzejat que exhibia a les fotos, els anys de maldecaps i de fer el pinxo li havien passat factura.

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Gràcies al retrat periodístic, molta gent va descobrir que el gran D., l’home del moment, tenia un germà. Va ser el cas de les seves dues filles, que mai no havien sentit a parlar de l’oncle Gori. Una d’elles, precisament, la petita, va protagonitzar la segona ocasió en què en Gori havia tingut notícies del seu germà. Ara feia cinc anys, d’amagat del seu pare, la noia havia aprofitat un viatge de vacances pel Rosselló per anar a conèixer l’oncle escàpol. Un matí d’agost, doncs, en Gori havia obert la porta i s’havia trobat amb una noia que s’assemblava molt a la seva mare. Quina impressió que li havia fet! La neboda es va afanyar a malparlar del seu pare, un dèspota, per buscar llaços d’unió. D’ençà que havia sentit a parlar d’en Gori, ell s’havia convertit en un mite, la imatge de llibertat que convocava quan volia escapar-se del pes de la família. Una vegada, en plena discussió, l’avi l’havia sermonejat perquè ella havia dit: “Un dia me m’escaparé de casa, tal com va fer el tiet!”. En Gori va restar importància a les paraules de la neboda, però per dins se’n sentia cofoi. L’esgarrifava que aquell passat perdut se li fes present de nou, a la impensada, però alhora es deia que més valia que fos així, a través del gest rebel d’aquella noia. Quan s’aco-

miadaven, en Gori li va prometre que es telefonarien de tant en tant, o que com a mínim ell li tornaria les trucades. Després, a l’hora de la veritat, no va fer-ho. Li hauria semblat que es traïa a si mateix. El mateix dia que en Gori va rebre la tercera carta, al vespre, algú va trucar a la porta de casa seva. Quan va anar a obrir, va trobar-se al davant de la seva neboda. —Hola tiet —va fer—, ¿que puc passar? Era ella qui havia portat la carta i era ella qui ara li demanava que ajudés el seu pare. Se sentia com l’únic vincle familiar entre tots dos i, sentint-ho molt, ho havia de provar. El pare estava cada cop pitjor, no era broma, i realment necessitava un ronyó. Sisplau, que no li tingués en compte la seva arrogància. En Gori va escoltar-la sense interrompre-la ni un cop. Se sentia alleujat. Aquest afer ja feia massa temps que durava. Si al principi era divertit, ara s’havia tornat enutjós. Quan la noia va callar, en Gori va oferir-li finalment la resposta que paladejava des del principi. —Digue-li al teu pare que em sap greu, però no li puc donar un ronyó perquè només en tinc un —va dir—. A mi també em van operar fa un any. Deu ser genètic.

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Ensayo

PÁGI N A

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ÁLEX CHICO SARA AFONSO FERREIRA ANA LUÍSA VILELA

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ÁLEX CHICO

Gayga, muchos años después

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espués de muchas lecturas de y sobre José Antonio Gabriel y Galán, después de algunas conversaciones con sus familiares y amigos, después incluso de dedicarle un libro, nunca antes me había hecho esta pregunta: ¿Quién fue realmente José Antonio Gabriel y Galán? Parece una cuestión colateral, una inquietud que quizás haya dado por sobreentendida tras tanta charla, tanta lectura y tanto libro. Sin embargo, no me la había formulado hasta ahora. Nunca me había preguntado qué significó, cuál fue o cuál es su verdadero alcance como escritor. Insisto, lo que no me había preguntado jamás es quién fue, qué persona se esconde al otro lado de sus libros o de su diario o de las conversaciones que he mantenido alrededor suyo. Han tenido que pasar muchos años para que pueda reflexionar sobre eso y, en la medida de lo posible, tratar de explicarlo. Cuando empleo el verbo «explicar» me estoy refiriendo, en realidad, a una tarea mucho menos ambiciosa, porque debería decir, más bien, que lo que me propongo ahora es aproximarme a José Antonio. Para ello, se me ocurre un itinerario, tres formas de acercamiento que nos permita entender un poco más la cuestión que formulaba antes. En primer lugar, comenzaré con un breve apunte biográfico; más adelante, intentaré abordar algunas de las claves de su escritura; por último, me detendré en una experiencia personal que me une al autor. José Antonio Gabriel y Galán nace en Plasencia en 1940. Se desplaza a Madrid para cursar estudios de

bachillerato y para dar inicio a la carrera de Derecho, en la Universidad Complutense. En 1963, es decir, cuando el autor tenía alrededor de 22 o 23 años, se produce un hecho crucial. Así lo juzgo, al menos. Ese fue el año en el que se traslada a París, donde residirá hasta 1966. Allí se matricula durante un tiempo en Altos Estudios Internacionales, en la Universidad de la Sorbona. Allí también contrae matrimonio con su primera mujer, Livya Bounatian-Benatov, de la que se divorciará tiempo después. Y allí nace su primer hijo, Alejandro. Aquí haré un breve paréntesis. Al fin y al cabo, ese tramo biográfico, el que le lleva a París durante tres años, fue el material que empleé para redactar mi novela, o mi novela de ensayo ficción, que es la forma más adecuada para definir un libro como ese. París tiene una importancia superlativa en la formación de José Antonio Gabriel y Galán. No sólo por haber contraído matrimonio y concebir a su primer hijo, sino también en lo que a su formación literaria se refiere. Se trata de una ciudad, por aquellos años, convulsa, expansiva, heterogénea, revolucionaria y neurálgica. París volvía a ser el centro del mundo, el germen de la política y del pensamiento nuevo, con Sartre, Camus o Simone de Beauvoir a la cabeza. El lugar de encuentro entre exiliados o artistas atraídos por su magnetismo, como le ocurrió a buena parte de la literatura hispanoamericana. La década en la que, tal vez, París fue por última vez París. En ese ambiente intelectual se forjó José Antonio, desde su ático en la calle Campagne Première, no muy lejos del piso de

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Jean-Paul Sartre, en el pleno barrio de Montparnasse. Imaginemos, por un momento, qué supuso estar ahí durante esos años en los que iniciaba su carrera literaria, cuál fue el impacto que tuvo entre tanta amalgama de corrientes y estéticas, desde el existencialismo hasta la experimentación artística. Algo que culminaría en el famoso mayo del 68, una explosión revolucionaria que José Antonio no vivió en primera persona. Esa fue la primera vez en la que se quedaba a las puertas de algo, en la antesala, en el momento previo. No será la última. Después de algunos viajes por Angola y Mozambique (antes había estado en Alemania o en La India) regresa a Madrid y finaliza, en 1968, sus estudios de periodismo. Ese mismo año se incorpora a la agencia EFE y participa en la elaboración del libro Por una iglesia conciliar. Anoto este libro principalmente por un motivo: porque a menudo se nos olvida, a mí el primero, que José Antonio estuvo muy ligado a la iglesia de base, a los movimientos sociales que, desde abajo, promovía esa institución. Y lo apunto por otra razón: porque buena parte de los temas que aparecen en sus obras tienen una raíz religiosa, mística, sobre todo en lo que a la moral y a la culpa judeocristiana se refiere. Tras sus estudios de periodismo pasa a formar parte del gremio, como redactor, director o subdirector de revistas y periódicos varios. También como crítico. En el año 72 publica su primera novela, Punto de referencia. No su primera novela escrita, sino su primera novela que encuentra editor. Tiempo después se incorpora a la redacción de una revista fundamental para entender a buena parte de la cultura española contemporánea: Cuadernos para el Diálogo. Además de todo esto, escribe canciones y poemas, cuyo debut llega en 1977 con la edición de su libro Descartes mentía. Un nuevo paréntesis para regresar a la pregunta inicial. ¿Quién fue José Antonio Gabriel y Galán? A partir de estos datos iniciales, ya de entrada sabemos que no fue una sola persona, sino varias a la vez, porque

cada oficio le convertía en alguien distinto, aunque estén llenos de conexiones y de puntos en común. ¿Quién fue, pues? ¿Un periodista? ¿Un crítico? ¿Un director de revistas? ¿Un narrador? ¿Un poeta? Quizás fue todo eso junto, como eslabones de una misma cadena o como piezas de un mismo mosaico. Volvamos a los últimos años de la década del 70. Algunos datos más: matrimonio con Cecilia Alarcón López, colaboraciones en el diario El País, publicación de su segundo libro de poemas, redactado de su segunda novela, nacimiento de su hija Laura. Y así llegamos a una fecha crucial, una fecha que quedaría marcada en su calendario por dos motivos muy dispares: el mismo día que estrena su versión teatral de La Velada de Benicarló, de Manuel Azaña, le diagnostican un linfoma. Un solo día en el calendario que ha juntado, por un macabro azar, dos acontecimientos tan emocionalmente distintos: su consagración como escritor y el inicio de un cáncer. Si yo fuera, ahora mismo, un crítico sin escrúpulos, vería en ello algo así como una metáfora. Pero como no lo soy, o me tengo por no serlo, diremos simplemente que esa coincidencia debió ser horrible, espeluznante. Una experiencia que, por mucho que lo intente, nunca podré imaginar del todo. El gran poeta T. S. Eliot dijo en una ocasión que en la poesía, como en la vida, nuestra tarea consiste en sacar el máximo partido a una mala situación. O dicho de otra forma, a la manera de otro gran escritor, Cesare Pavese: la literatura es una defensa contra las ofensas de la vida. ¿Por qué cito esto ahora? Por un motivo: porque José Antonio, poco después de recibir esa terrible noticia, comenzó con la escritura de un diario. Es decir, sacó partido o generó literatura de una mala situación, de una ofensa. Los diarios se publicaron muchos años después, en la Editora Regional de Extremadura. Abarcan doce años de vida: desde 1980 hasta 1992. Ese fue el primer texto que leí de José Antonio y esa es la verdadera razón o el verdadero estímulo por el que escribí una novela sobre él. Es más, siguiendo

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esta suma de azares, si no existiera ese libro tal vez yo no hubiera escrito nada sobre Gabriel y Galán. Mucho menos una novela. Pero no avancemos acontecimientos y volvamos a su vida. A comienzos de los años ochenta, publica dos novelas: La memoria cautiva y A salto de mata. Realiza traducciones del francés, redacta una radio-novela y refunda una revista cultural, El Urogallo. Diré algo a propósito de esta revista. Cuando se publicó mi novela sobre José Antonio, algunos lectores me comentaron que su única memoria de Gabriel y Galán se centraba en dos recuerdos: uno, por ser el autor de la novela Muchos años después; y dos, por su labor al frente de El Urogallo. Es decir, debió ser una publicación medular, importante, al menos durante los años ochenta. José Antonio la recuperó y, con él como director, la volvió a situar en el centro del panorama literario. No era fácil. A ella se dedicó, por cierto, hasta el día de su muerte. El mismo año que asume la dirección de El Urogallo, en 1986, publica en la editorial Tusquets El bobo ilustrado, una narración que será finalista del Premio Nacional de Literatura y que, como ocurrirá más tarde con otra novela, nunca consiguió ganar. De nuevo, se vuelve a quedar a las puertas, en la antesala, en el momento previo. Poco después aparece El triunfo de Tito, una novela breve para niños, y la edición completa de su poesía, que incluía un libro inédito, Razón de sueño, otro de esos libros sin cuya lectura yo no hubiera escrito nada sobre José Antonio. Entre conferencias por aquí y por allá, llegamos a 1990, un año importante, porque obtendrá el primer premio Eduardo Carranza. En el jurado, entre otros, Gabriel García Márquez, Carlos Fuentes y Gonzalo Torrente Ballester. La novela se titula Muchos años después. Se trata de una espléndida radiografía de la sociedad española desde la década de los sesenta hasta los años ochenta, transición mediante. Cuando digo sociedad española no me refiero sólo a los que

vivieron en España durante la dictadura, sino también a los exiliados que viajaron a París huyendo de ella. La novela debió tener una buena acogida. Creo, y esto es solo una suposición, que nunca debió tener José Antonio una vida literaria tan frenética, con promociones del libro en España e Hispanoamérica. Muchos años después quedó finalista del Premio Nacional de Literatura y, como ya había sucedido antes, no lo ganó. Otra vez, se queda a las puertas, en la antesala, en el momento previo. Ojalá pudiera dilatar su biografía y añadir, como por arte de magia, unos cuantos años. Ojalá dedicara otra página y media y citara nuevas obras o nuevas colaboraciones o nuevos premios. Pero la imaginación da para lo que da y la realidad se impone: José Antonio Gabriel y Galán muere un par de años más tarde, el 13 de marzo de 1993, en su domicilio de Los Peñascales, en Madrid. La segunda parada de ese itinerario, es decir, la segunda manera de aproximarme a José Antonio Gabriel y Galán, se detiene en la propia obra, en las características de sus libros, en los puntos en común, en sus temas. Tal vez, la pieza fundamental del universo literario de Gabriel y Galán son sus personajes. Todo gira alrededor de sus inquietudes existenciales, de su memoria o del lugar que ocupan. Mantenemos con ellos una relación ambigua: los rechazamos por su inoperancia y su pasividad y, a la vez, empatizamos con su manera de afrontar lo que les rodea. Son seres frágiles, vulnerables, acosados, siempre entre dos aguas. Como le ocurre a Pedro Vergara, el protagonista de El bobo ilustrado : en un Madrid convulso, el de comienzos del siglo XIX, no es capaz de comprometerse ni con los afrancesados ni con los llamados patriotas. Por eso emprende una huida hacia sí mismo, hacia su propio interior. Les cuesta comprometerse con la acción, porque son agentes teóricos, perdidos en divagaciones personales y en reflexiones que les acaban desorientando aún más (cito un fragmento de El bobo ilustrado : «En ocasiones envidiabas a esa gente que lo tenía todo claro, que conocía con precisión

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dónde estaba su mano derecha»). La teoría que emplean es abrumadora. Continuamente se preguntan quiénes y cómo son, cuáles son sus límites y qué espacio deben ocupar. Por ese motivo intentan aferrarse a un punto de apoyo, el que sea. Sin embargo, sus referentes se vuelven contra ellos, les paralizan. Cargan con el peso de su propia cultura y la del país en el que viven. Su caída no es sólo un descenso personal, sino el reflejo de una sociedad en perpetua decadencia. Personajes de raíz existencialista, condenados a elegir, como le sucede a un personaje de Punto de referencia : tiene que decidirse entre Marguerite Duras o García Márquez, entre Fernando Arrabal o André Gide, entre François Truffaut o Jean-Luc Godard. Una decisión importante, pues de ella depende su forma de ser y de estar en el universo. De ahí que afronten continuas paradojas: viven de espaldas al mundo y buscan en él su reconocimiento; se niegan a cambiar, pero admiten que necesitan hacerlo; quieren ser útiles, aunque no saben cómo serlo; aparentan no depender de nadie y están, por el contrario, fuertemente aferrados a la opinión ajena. En definitiva: huyen para regresar de nuevo. Pensemos en Julián, Silverio y Odile, los tres personajes principales de Muchos años después. Tres seres que viven al margen, si bien desearían formar parte del núcleo de escritores españoles (como le ocurre a Julián), de las élites del Partido Comunista (como le sucede a Silverio) o del ballet de Marta Graham (como desea Odile). Lo que temen, en el fondo, es pasar desapercibidos, vivir su vida sin que nadie lo note. Temen ser, simplemente, seres anónimos, desencantados, condenados a llevar a cabo luchas intrascendentes, aventuras individuales, jugándose la vida en actos insignificantes, anodinos. Ninguno es lo que se había propuesto ser. Se resignan a la idea de que tienen lo que les basta. Todo ello les conduce a un proceso de autodestrucción. Sólo la idea de haber tocado fondo les procura algunas dosis de consuelo. En ocasiones esa desorientación hace que se aproximen a la locura, buscando una verdad irracional. La locura o, maticemos, la apariencia de locura. Fingirla no es más que un mecanismo de defensa ante un mundo que les resulta

adverso. Una actitud quijotesca, en definitiva. Por eso apuestan por lo irracional, por el delirio. También por la violencia, asociada principalmente a la actividad sexual. Ahí es donde demuestran ser personajes turbios, déspotas o resentidos. Por una vez no piensan, simplemente actúan. Son, en ese momento, seres animalizados. El sexo, también el incesto, es el escenario donde aflora el rencor, la crueldad, el enfrentamiento, la culpa y, a pesar de ello o precisamente por eso, el júbilo y la ternura. Aquí se encuentra la raíz religiosa que comentaba antes: en un temperamento siempre amenazado. En más de una ocasión, habló José Antonio Gabriel y Galán de dos tipos de autores: los que se juegan la vida en su escritura y los que no se la juegan. Gabriel y Galán fue de los primeros, porque no dejó de indagar en la forma, en el estilo, explorando distintas voces, aportando nuevos giros lingüísticos o, en fin, mezclando diversos registros. Sin abandonar tres premisas: ser claro, conciso y directo. Su obra evoluciona desde un cierto afán vanguardista hasta una forma de decir mucho más serena, de madurez asumida, por llamarlo de algún modo. Esa progresión es muy clara en los tres libros de poemas que publicó: Descartes mentía, Un país como éste no es el mío y Razón del sueño. Tres libros estéticamente muy distintos. Se diría, incluso, escritos por diferentes autores, aunque en ellos encontremos ciertas claves u obsesiones vitales que se repiten. Esta disparidad, más allá de valorarse como riqueza lírica y apuesta por lo heterogéneo, jugó en su contra. ¿Dónde situar la poesía de José Antonio? ¿Es un poeta épico? ¿Filosófico? ¿Meditativo? También la crítica quiere andar sobre seguro. Más en un caso como el de Gabriel y Galán, quien se supo, antes que otra cosa, poeta. Ya lo demostró en sus novelas, sobre todo en La memoria cautiva, una obra que podría leerse como un extenso poema narrativo. Acertó Gonzalo Hidalgo Bayal al comparar su inicio con unos versos de Descartes mentía. Cito: «Ambos quisimos un gran amor y tuvimos que conformarnos con uno pequeño», «A punto estuvimos de morir de amor, pero murió el amor y nosotros vivimos».

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Existen dos aspectos externos que interfirieron en la vida de José Antonio Gabriel y Galán: la ludopatía y su relación con el éxito. Dos preocupaciones que aparecen de forma nítida, descarnada, en su diario. El primero, el del juego, entra en conflicto con su propia escritura. Lo explica en una de las entradas del diario, en septiembre del 89: «El desasosiego me duró esa noche y el día siguiente: se enfrentaban una vez más el juego y la escritura. Venció como siempre el juego y a las cinco y cuarto de ayer ya estaba en el casino». Ganar o perder es una forma, otra más, de poner a prueba su personalidad. No busca el beneficio, porque en el fondo sabe que es imposible. Los jugadores, explica, están inmersos en una situación límite. Luchan contra el azar, se dejan la vida y, sin embargo, juegan para nada. Ahí residen el riesgo y la condena. Esa relación aparece con frecuencia en su obra literaria. Pensemos, por ejemplo, en «Último naipe», el poema que cierra Razón del sueño : «Hay veces en que un naipe / descubierto al desgaire / conduce a la melancolía. / En la última carta siempre asoma la nada». Es el «vértigo central de la partida», como nos dice en Punto de referencia. El juego no forma parte del ocio. Se trata de una actitud ante la vida cuya premisa es la derrota. Como explica en Muchos años después, «en la profunda realidad de que las personas son más felices perdiendo y que, en el fondo, perder es más cómodo que ganar». El problema es, como dijimos, cuando colisiona con la escritura. Lo explica perfectamente Julián, también en Muchos años después : «era consciente hasta el empacho de la imposibilidad de jugar y escribir al mismo tiempo», y añade: «Afortunado en el juego, desgraciado en el arte». Su relación con el éxito también fue motivo de preocupación. José Antonio se creyó maltratado por la crítica, y puede que no le faltara razón. Remito nuevamente a sus diarios. Allí nos muestra ese malestar por no ser incluido, una vez más, en la lista de narradores o poetas más significativos o influyentes del momento. Una exclusión que le produjo diferentes episodios de angustia. Cito otra vez sus diarios: «Tengo la impresión de que me moriré sin que nadie me conozca, ni siquiera yo mismo», escribe en

noviembre del 88. Esa falta de reconocimiento le condujo a dudar sobre la calidad de su obra, sobre las relaciones que debería haber mantenido, sobre la vida literaria y sobre su voluntaria separación de determinados círculos culturales. Al final, siempre aparece la idea de que se encuentra en la antesala de algo («Yo no he vivido. He pasado mi existencia preparándome para vivir», nos dice en abril del 91). Como sus personajes, permanece a la expectativa, con la esperanza de que su nueva novela alcance el grado de reconocimiento que no obtuvo el resto de su producción literaria. Quizás estuviera en lo cierto. José Antonio murió en su mejor momento creativo. Más allá de eso, nos queda un autor que se jugó la vida en su escritura. Desde la dirección de El Urogallo, desde su oficio de periodista o de crítico, desde las tertulias del Alabardero y, claro está, también desde su obra literaria. Nos queda un autor poseído por la literatura, en palabras de su amigo Juan Cruz, a quien comentó en una ocasión que era imposible escribir nada hasta que no fuera más importante la escritura que la vida. Nos queda, en fin, la relectura de sus libros y un buen número de inéditos aún por publicar. Tercera y última parada del itinerario: la relación que me une con José Antonio Gabriel y Galán. Tal vez tenga que echar la vista un poco más atrás que otras veces y deba remontarme a mis años de bachillerato. A finales de los 90, yo estudiaba en el instituto Gabriel y Galán. Ese nombre, o ese apellido más bien, formaba parte de una institución. No era sólo el de un escritor, sino, diría, casi el de una marca. Por aquel tiempo, se iniciaba en Plasencia una actividad que aún dura hoy, un aula literaria que, con cierta frecuencia, acerca a distintos escritores a la ciudad. Aquellos encuentros tuvieron para mí un valor fundamental. Pocas veces hasta ese momento había tenido la oportunidad de charlar con autores y, venciendo mi pudor, reconocer que también yo escribía. Recuerdo el primero de esos encuentros. Fue en mi instituto, en el salón de actos. La charla inaugural corría

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a cargo de Álvaro Valverde. Presentó el acto, presentó al poeta invitado y explicó por qué habían empleado ese nombre para las aulas. Fue justo en ese momento cuando me di cuenta. Las aulas no se llamaban Gabriel y Galán por José María, sino por José Antonio. ¿José Antonio?, me pregunté. ¿Hay más escritores con ese apellido? ¿Tenía algo que ver con José María? ¿De dónde había salido ese nombre? En realidad, si lo pienso bien, aquella fue la primera vez que me hice esa pregunta: ¿Quién es José Antonio Gabriel y Galán? Al comienzo de este texto comenté que nunca hasta ahora me lo había preguntado, pero a medida que escribo estas páginas descubro que la primera vez que me hice esa pregunta fue hace muchos años, solo que lo había olvidado. Es decir, preguntarme por ese autor estaba en el inicio de mi escritura. No tenía ni idea. Si algo he aprendido de este oficio, el de la creación literaria, es que debemos tener mucho cuidado a la hora de elegir las preguntas que nos hacemos durante nuestros años de formación, porque posiblemente estaremos condenados de por vida a tratar de responderlas. Como si nos quedáramos anudados a ellas hasta la última línea que compongamos. Aquella fue, ya digo, la primera vez que me hice esa pregunta, pero no fue la primera vez que traté de responderla. Tuvieron que pasar aún varios años. Diez, para ser exactos, cuando llegaron a mis manos los diarios de José Antonio que mencionaba antes. Los comencé a leer con una mezcla de curiosidad y de compromiso. Alguien me los había regalado y sentía que, al menos, debía echarles un vistazo. Estaba, lo recuerdo bien, en un pequeño pueblo de la Costa Brava, en Tossa de Mar. Entre baño y baño en la playa, comencé a leerlo. Y así estuve durante los dos días siguientes. Por un momento, desapareció Tossa, desapareció la playa y sólo me quedó un mundo entre las manos. Desde la primera página, cuando nos habla del inicio de su tumor, hasta la última. Al terminarlo, me sobrevino una sensación extraña, un sentimiento contradictorio. Por un lado, tenía la impresión de haber llegado tarde a esos diarios; por otro, creía que me había acercado a ellos

demasiado pronto. Esto mismo le comuniqué al que era director de la Editora Regional de Extremadura, Álvaro Valverde. Y de rebote, ese correo en el que le explicaba mis impresiones sobre la lectura llegó también a Cecilia, la viuda de José Antonio. Ahí se accionaba una unión que ha ocupado los últimos años de mi vida. ¿Qué pasó a partir de entonces? Varias cosas: en primer lugar, intenté hacerme con todos los libros de José Antonio, en librerías de segunda mano, a través de pedidos por internet o solicitándolos directamente a las editoriales. Muchos ya estaban descatalogados. Cuando conseguí reunir todos esos libros, y después de haberlos leído, decidí iniciar una tesis doctoral sobre la vida y la obra de José Antonio. Tenía tutor y tenía universidad, la Autónoma de Barcelona. Así pasé un par de años, redactando capítulos, entrevistándome varias veces con el hermano de José Antonio, Paco Gabriel y Galán, tomando apuntes, diseñando esquemas, etcétera, etcétera. Sin embargo, algo fallaba. No tenía la paciencia, ni el entusiasmo, ni la dedicación necesarias para continuar con un trabajo académico como el que me había propuesto. Tal vez me cansé o me aburrí, no lo sé. El caso es que dos años más tarde me encontraba con mucho material y no sabía exactamente qué hacer con él. Ya dije antes que es muy difícil separarnos de nuestras primeras obsesiones, de nuestras primeras inquietudes. Por eso, hubiera resultado muy extraño que no buscara una salida para todo ese material que tenía entre manos. ¿Qué hice? Busqué la mejor manera de abordarlo, la única con la que verdaderamente me siento cómodo: recurrir a la ficción. Sin embargo, lo que yo pudiera escribir no podía obviar la parte real del tema, la parte que, valga la redundancia, realmente existió. Y entonces pensé en generar algo híbrido, a medio camino entre el ensayo y la novela. El resultado es Un hombre espera, un librito de apenas cincuenta páginas en donde intento reconstruir la vida de José Antonio en París, y a partir de él la vida de la ciudad durante un buen tramo del siglo XX.

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Lo que me motivó a escribirlo fue que, entre los papeles que me prestó su hermano Paco, me encontré con varios libros inéditos de José Antonio. Ahí estaba la que yo creía, hasta hace un mes apenas, su primera novela, titulada Idea fija en Montparnasse. Cuando presenté mi libro en Madrid, hace poco, en la charla posterior a la presentación, Paco nos habló de una novela anterior a esa, una novela que debió escribir con apenas veinte años, si no antes. Nadie, ni él mismo, sabe qué vida tuvo. No la ha encontrado por ninguna parte. Lo único que tenía, y que tengo yo también en las carpetas de mi escritorio, es Idea fija en Montparnasse, un relato de unas cien páginas sobre la condena de estar esperando algo que, tal vez, nunca llegue. Cuando decidí convertir todo ese material en una ficción, o en una ficción real, o en una realidad ficcional, viajé a París en varias ocasiones. Quería conocer in situ los lugares relacionados con José Antonio, su piso en Montparnasse, sus calles más habituales, sus cafés más frecuentes, sus paseos continuos, tanto los de su propia vida como los que aparecen en su obra. Lo interesante del asunto es que una cosa me fue llevando a otra, un nombre o una calle me hacía saltar a otro espacio distinto. Así hasta tejer un enorme mosaico en donde cabían muchas más personas de las que pensaba al inicio. Una prueba de que, a poco que prestemos atención, todo parece conectado entre sí, todo parece formar parte de una secuencia única. Hablar de José Antonio era hablar

de la que fue su mujer por aquel entonces, era hablar de sus suegros, también artistas, era hablar de otros autores que habían vivido en la ciudad, mucho antes que él. El gran escritor W. G. Sebald llama a estas conexiones delirio de relación. Y es, me parece a mí, un término adecuado, magnífico diría, porque en el momento que iniciamos la búsqueda de una persona debemos estar dispuestos a seguir caminos que nos llevarán por territorios que no imaginábamos al comienzo. Esa es, quizás, la gran enseñanza que he aprendido después de escribir Un hombre espera. Tengo la impresión de que ciertos finales no sirven para concluir nada, sino para dar inicio a otra cosa, como si terminar algo no fuera más que el prólogo a lo que aún está por venir. Digo esto porque mi relación con José Antonio, que ha fructificado en un libro muy breve y en unos cuantos artículos, no ha hecho más que empezar. Tal vez no vuelva a él en unos meses, ni siquiera en unos años. Lo que sí creo es que regresará tarde o temprano. No sé con qué propuestas ni bajo qué forma. Sólo tengo la impresión de que volverá en algún momento. Porque ahora que voy finalizando me doy cuenta de que había formulado mal mi pregunta del inicio. No se trata de cuestionarme quién fue José Antonio Gabriel y Galán, sino que se trata, más bien, de preguntar dónde está exactamente. Y para eso sí que tengo una respuesta: José Antonio Gabriel y Galán está en mí y estará, con suerte, en futuros lectores.

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SARA AFONSO FERREIRA

Almada e Ramón Gómez de la Serna, Marginálias a quatro mãos

E

ntre 1927 e 1930 Almada trabalha em estreita colaboração com Ramón Gómez de la Serna, ambos vivendo, então, em Madrid. Cria cenários para a peça de teatro ramoniana intitulada Los medios seres (apresentada em 1929), ilustra dois livros do escritor espanhol: a capa e dez desenhos para La hiperestésica (Madrid, La Novela Mundial, 1928) e a sobrecapa de Dueño del átomo (Madrid, Historia Nueva, 1928) – e inúmeros textos seus nas páginas de revistas várias. Dentro desta obra vasta, que testemunha dos laços que unem os dois artistas, destaca-se, pela sua dimensão, continuidade e coerência, o conjunto de desenhos que Almada compõe para acompanhar os textos de Ramón na imprensa periódica madrilena, sobretudo em Nuevo Mundo e La Esfera, que constituem o grosso desta produção. O que então se conhecia deste núcleo – 18 colaborações nas páginas de La Esfera (entre 12.11.27 e 25.10.30), e 40 em Nuevo Mundo (entre 27.7.28 e 29.8.30) – foi publicado em 2004, no âmbito da exposição El alma de Almada el impar: obra gráfica 1926-1931 (Lisboa, Galeria Palácio Galveias), num volume intitulado Marginálias (Lisboa, Bedeteca – Assírio & Alvim). Entretanto, no contexto de outra exposição – Suroeste: relações literárias e artísticas entre Portugal e Espanha, 1890-1936 (Badajoz, MEIAC, 2010) – puderam ser localizadas mais 11 páginas de Ramón ilustradas por Almada em Nuevo

Mundo : “Angulos” (6.5.27); “Botones” (22.7.27); “La sed de Verano” (2.9.27); “Nuevos y antiguos sagitários” (7.10.27); “La rebelion de los ciervos” (4.11.27); “Avionismo” (18.11.27); “La soledad del café cantante” (25.11.27); “Tambores” (9.12.27); “La casa de té exótica” (16.12.27); “Guantes” (30.12.27); e “Chimeneas nocturnas” (3.1.1930). São estas as obras que aqui se apresentam. Apenas parcialmente reproduzidas no catálogo da exposição Suroeste e impressas no catálogo da recente exposição José de Almada Negreiros: uma maneira de ser moderno (Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 2017), sem ter em conta a parte ramoniana da colaboração – seis ilustrações por página não permitem a leitura do texto dando apenas a ver os desenhos de Almada, que é o que se pretende no quadro de uma exposição antológica – agora se mostram completas, finalmente visíveis e legíveis na íntegra. O que, no âmbito dos estudos das relações entre Almada e Ramón, geralmente se entende por marginálias (desde a publicação do referido volume assim intitulado), obras realizadas em conjunto entre Ramón, autor do texto, e Almada, autor dos desenhos, em Nuevo Mundo e La Esfera, congrega curtas ficções de facto nomeadas assim e contos que não estão directamente identificados desta forma.

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Angulos. Nuevo Mundo, 6.5.27 SW7(tecnigraf).indd 176

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Botones. Nuevo Mundo, 22.7.27 SW7(tecnigraf).indd 178

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Mas foi feliz a escolha deste título. Pois que uma “marginália” é um termo que designa, simultaneamente, as notas e comentários feitos (literalmente ou não) à margem de um livro ou de um texto e as iluminuras dos manuscritos medievais. Assim, o termo que encabeça grande parte destes textos ramonianos (a quase totalidade dos publicados em Nuevo Mundo) e que enquadra, por extensão, o vasto conjunto das suas obras ilustradas por Almada na imprensa, parece englobar as glosas escritas (por Ramón) – palavra que se refere a uma “interpretação breve de algum texto”, a uma “anotação”, a um “comentário” ou “observação”, a uma “crítica” ou “opinião” – e as desenhadas (por Almada): essas ilustrações que são, também, por definição, “explicações”, “esclarecimentos” ou “comentários aditados a uma obra”. Note-se que partindo deste significado abrangente (e artificial, mas tão a propósito) de marginália, no quadro embora restrito da colaboração entre Almada e Ramón na imprensa periódica, deveríamos referir também os desenhos realizados pelo português para ilustrar dois dos cinco textos que o espanhol apresenta na revista Mundo Ibérico – «La colección de bigotes» (12.10.27) e «Ensayo del corral» (Janeiro de 1928) – divulgados pela primeira vez por Marçal Font i Espí (http://www.edobne.com/manuscrtcao/ numero-8/), num artigo que documenta a correspondência entre Ramón Gómez de la Serna e Mario Verdaguer, director da revista dos anos vinte.

La sed de verano Nuevo Mundo, 2.9.27

Mas voltemos ao que nos interessa. As 11 “novas” marginálias publicadas nas páginas de Nuevo Mundo, e acima mencionadas, podem ser vistas como obras verdadeiramente conjuntas. Há, aliás, uma tendência de Almada em assumir, visualmente, a co-paternidade dos títulos – desenhando-os – que passam, assim, a designar ao mesmo tempo o texto e as ilustrações. As linguagens das palavras e das linhas aparecem como meios diferentes de uma mesma obra co-assinada por dois autores, de uma obra dupla escrita por Ramón e desenhada por Almada. Na marginália intitulada “Botones” (cronologicamente a segunda, no âmbito geral das colaborações entre os dois criadores), Almada parece, aliás, enunciar as bases desta relação artística profícua e duradoura. Do título não consta a preposição “por” que o une ao nome de Ramón. O nome do escritor surge, em vez disso, graficamente ligado ao de Almada, cuja assinatura espelha as linhas desenhadas da imagem-título associando-se manifestamente à obra no seu conjunto, à obra como narrativa gráfica. Os retratos de ambos os autores, representados por Almada em duas páginas diferentes das marginálias – em “Fruterias” (29.3.29) surge a conhecida silhueta de Ramón, e em “Avionismo”, que aqui se reproduz, julgamos reconhecer o perfil almadiano – parecem-nos ser mais uma forma, simbólica e espirituosa, de assumir a co-autoria das marginálias.

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Nuevos y antiguos sagitarios. Nuevo Mundo, 7.10.27


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La rebelion de los ciervos. Nuevo Mundo, 4.11.27


Avionismo. Nuevo Mundo, 18.11.27 SW7(tecnigraf).indd 184

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La soledad del cafĂŠ cantante. Nuevo Mundo, 25.11.27


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Se Almada se afirma, desta forma, como um colaborador por inteiro, desenhador das ideias descritas por palavras por Ramón, seu companheiro de viagem na glosa do quotidiano e do espaço da cidade (Madrid é o leitmotiv de inúmeras marginálias), o escritor espanhol disse-o com todas as letras. Ramón refere pela primeira vez Almada no final de 1922, numa carta endereçada a José Pacheco e preservada no espólio do arquitecto (Lisboa, Centro Nacional de Cultura): «le envio la reseña del discurso que leere en su banquete y el articulo que quisiera ilustrasse el admirado, extraordinario Almada». O desejo de Ramón de ser ilustrado por Almada, não concretizado na Contemporânea, terá dado azo a outro projecto, gorado também, de ver a sua novela A Ruiva (publicada em Julho de 1923 em Lisboa, na Novela Sucesso, com prefácio de António Ferro) acompanhada dos desenhos do artista português (segundo nos informou Vasco Medeiros Rosa). Por volta de Outubro-Dezembro de 1927, nas cartas que envia a Mario Verdaguer (e que acima referimos), também está patente a admiração do escritor pelo artista português. Ramón escreve: “¿Van más artículos? ¿Con ilustraciones de Almada que tanta modernidad da a las cosas?”. E em Janeiro de 1928: “Usted que está como un ser providente y lleno espíritu junto a los queridos editores, haga que se acuerden con continuidad de la colaboración [de Almada] y más cuando yo y Almada nos sentimos

Tambores Nuevo Mundo, 9.12.27

tan enrolados en el mismo barco”. Este empenho de Ramón em fazer acompanhar os seus textos dos desenhos do português surge também nas cartas que envia a Guillermo de Torre entre 1928 e 1929 – divulgadas por Carlos García na primavera de 2004 (no Boletín Ramón) – com vista a uma colaboração no diário La Nación, de Buenos Aires. Numa carta datada de 21 de Julho de 1928, Ramón escreve estas linhas: “¿Ilustraciones? Eso es más difícil para que acompañen a artículos completamente modernos. Sólo sabría colaborar con artistas del tipo de Almada y que pusieren alma gráfica al augurismo o a la suposición novedosa”. A colaboração de Almada com Ramón Gómez de la Serna não se limita porém à ilustração. A 7 de Dezembro de 1929, no Teatro Alkázar de Madrid, estreia a peça Los medios seres de Ramón, com “cenários do pintor português José de Almada Negreiros, chamado [pelo escritor] a colaborar na bizarria que a crítica espanhola aprecia e o público não entendeu” (segundo um recorte de imprensa não identificado guardado por Almada ao longo dos anos). Desta colaboração, de que pouco ou nada se sabia até ao momento da exposição Suroeste, em 2010, ficaram duas fotografias de cena, da autoria do célebre fotógrafo espanhol Alfonso, e um estudo para o cenário do I Acto de Los medios seres. Resta-nos também o testemunho significativo do

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La casa de tĂŠ exotica . Nuevo Mundo, 16.12.27


Guantes. Nuevo Mundo, 30.12.27 SW7(tecnigraf).indd 189

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próprio Ramón Gómez de la Serna (ABC, 5.12.29) que reitera as suas palavras de apreciação evocando, mais uma vez, a comunhão artística que o liga ao desenhador luso: «Acompañado del gran artista portugués Almada, que ha puesto fondo de poema en colores a mi comedia, sólo espero que resulte algo más que medio éxito o que un medio fracaso». Admirador de Almada desde o início dos anos vinte, e manifestamente admirado por ele também, Ramón parece estar nos bastidores da ida de Almada para Madrid (onde o artista permanece de Março de 1927 a Abril de 1932). Tendo-o apresentado aos leitores da recém-fundada Gaceta Literaria a 1 de Fevereiro desse ano, preparando já a chegada de Almada, – com um texto revelador de um conhecimento e de uma admiração profunda da obra daquele que, “ser impar en medio de la pintura y de la literatura portuguesa”, “resume la delicadeza, la inquietud y el dilettantismo de Lisboa” – Ramón surge como o impulsionador da exposição de desenhos que o português realiza sob o patrocínio da Gaceta Literaria, em Junho de 1927,

na Unión Ibero-Americana. Este evento, no âmbito do qual Almada profere também uma conferência (O Desenho) e que conta com cerca de 200 obras, de uma importância capital para um pintor que poucas vezes expusera individualmente, denota a forma calorosa com que Madrid recebe o português, que, desde logo, se insinua no meio intelectual e artístico espanhol. Almada é, aliás, simbolicamente recebido no Pombo por Ramón, protagonista da célebre tertúlia madrilena, que “levantándose de su trono popular o de su taburete imperial, abrió los brazos y la voz, en una entusiasta y cordialíssima bienvenída” (como lembra António Espina). De comuns raízes simbolistas, ambos interessados pelo futurismo (e por todos os outros ismos), ambos picassianos, ambos convencidos de que o humor é a coisa mais séria da vida e ambos sobretudo polifacetados, capazes de dominar simultaneamente a escrita e o desenho (como nos diz Juan Manuel Bonet), Almada e Ramón foram verdadeiros companheiros de arte que nos deixaram, em testamento, as marginálias.

Chimeneas nocturnas Nuevo Mundo, 3.1.30

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ANA LUÍSA VILELA

Teolinda Gersão, a menina e o areal*

Aos quatro anos aprendi a ler, ao colo de minha mãe. Aos cinco, rabiscava histórias de fadas – que, na sua maior parte, ficavam incompletas – nas agendas clínicas que encontrava à mão. Muitas vezes meu Pai, encontrando-as rabiscadas, cheias de borrões e de erros de ortografia, entretinha-se a decifrar o que o ‘diabinho de saias’ ali tinha escrito, e chegava à conclusão de que eram histórias, ou melhor, princípios de histórias. Recordo-me de que um dia, à sombra da glicínia do jardim, o meu Pai tirou uma agenda do bolso e começou a ler: «Uma vez uma menina foi por um grande areal. Perdeu-se. Viu ao longe uma luzinha e para lá se dirigiu. Era uma casa. Abriu a porta uma velha muito mal encarada, que era uma bruxa»… - Quem escreveu isto? - Eu… - Muito bem, mas agora a menina tem de acabar a história. Acabar a história? Não era preciso! Estava assim muito bonita! Não tinha fim, mas também não valia a pena escrevê-lo; quem lesse a história subentendia-o com toda a facilidade. O Pai tinha ideias!... acabar a história! […] E no dia seguinte eu começava uma outra, que também nunca chegava ao fim.1

1.

Fotografia de Susana Rodrigues

A história que acabo de transcrever é literalmente interminável. Na realidade, é o início do Prefácio, escrito pela própria autora, a uma coletânea de contos intitulada Liliana, publicada em 1954 por Teolinda Gersão, Prémio Vergílio Ferreira 2017. Tinha catorze anos. A publicação deste livrinho cumpria um seu sonho de criança. Bastas vezes a autora tem descrito este livro como um fait divers, considerando ter “sido errado publicar um livro tão cedo”. “Não tinha valor literário” – diz Teolinda, já crescida, numa entrevista. E acrescenta: “Ainda tinha que ler muito, escrever muito, aprender muito, para encontrar a minha própria voz. Foi isso que fiz”.2 Sim, foi isso que Teolinda fez. Apurou e amplificou a sua intuição estética, a finura da sua qualidade estilística, o alcance e impacto simbólico da sua experiência expressiva. Dilatou as suas referências e a sua consciência do mundo e da literatura, alargou e amadureceu os seus temas e sofisticou os seus processos. Adquiriu um saber de ofício de que em adolescente não poderia dispor. * Uma versão muito abreviada deste texto constituiu a alocução proferida durante a cerimónia de Entrega do Prémio Vergílio Ferreira 2017 a Teolinda Gersão, ocorrida na Universidade de Évora em 1 de março de 2017. 1 Teolinda Gersão, Liliana, Coimbra, 1954, pp.7-8. 2 S./A, “Teolinda Gersão. «Há experiência humana que só está na literatura»”, em IonLine, 07/04/2014. Disponível on line : https://ionline.sapo.pt/315301

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Mas até essa autocrítica já está no prefácio juvenil, no qual a autora previne, sensatamente: “Decerto não se pode esperar grande coisa da obra duma rapariga de catorze anos”. Não, não creio que este texto adolescente seja um fait divers. Na verdade, como aqui tentarei explicar, parece-me que este prefácio de Teolinda é, a vários títulos, muito importante (tal como, até certo ponto, os próprios contos do livro). Ele atesta, pelo menos, a irreprimível e precoce afirmação de Teolinda como autora. Não diz ela, de passagem e um pouco mais adiante, que se trata do seu primeiro livro?... Mais: esta explícita autoconsciência toma espontaneamente a forma narrativa. Com uma candura sem arrogância e uma honestíssima audácia, Teolinda inventa-se aqui, ao mesmo tempo, como autora, prefaciadora, narradora e personagem. Porque esta menina de catorze anos já tem, afinal, uma história para contar sobre o modo como escreve histórias. Este texto testemunha pois, antes de tudo o mais, a fortíssima pulsão ficcional que até hoje anima esta escritora, o tónus inventivo que parece conforme à sua natureza. Além disso, este prefácio juvenil é um texto de certa forma programático, na medida exata em que me parece conter os elementos fundamentais da sua poética. Em suma: a história desta menina contadora de histórias, que se adivinha primorosamente educada, senhora de uma sintaxe irrepreensível e de uma sinceridade desarmante, não serve apenas de incorrigível prefácio aos contos dos seus catorze anos. Serve também de prefácio à obra de Teolinda.

2.

Vale a pena recordar, antes do mais, as relações peculiares entre a premiada e o patrono do seu Prémio. É conhecido o sentimento de afetuosa solidariedade manifestado por Vergílio em relação a Teolinda, que deixou testemunhado em Conta Corrente, já em 1979: “É uma cúmplice, nesta loucura de encher a vida a escrever romances. Como se numa multidão indiferente alguém erguesse a voz para me saudar. Como se num deserto alguém esperasse para lhe passar o testemunho. Como se de repente eu fosse menos louco”.3

Numa entrevista, a escritora adianta ainda outro pormenor: “o escritor «gostou muito» do seu primeiro livro - O Silêncio -, que considerou «livro do ano», tendo vaticinado que [Teolinda] só iria parar quando morresse”.5 3 Vergílio Ferreira, Conta-Corrente, vol. II, Lisboa, Bertrand, 1979, p. 263. 4 Teolinda Gersão, As Águas Livres, Lisboa, Sextante, 2013, pp. 25-28. 5 S./A., “Teolinda Gersão vence Prémio Vergílio Ferreira. «O meu compromisso é com um leitor abstracto»”, em rr.sapo.pt., 21 dez, 2016. Disponível on line : http://rr.sapo.pt/noticia/71560/teolinda_gersao_vence_premio_vergilio_ferreira_o_meu_compromisso_e_com_um_leitor_abstracto

Fotografia de Susana Rodrigues

Simetricamente, em Águas Livres, Teolinda descreve em breves páginas 4 o teor das suas relações com Vergílio-autor e com Vergílio-pessoa, que conheceu através de Hélder Godinho. Como autor, parecia-lhe que os separava um “imenso diferendo”. Conta Teolinda que, desde o tempo em que era muito jovem, e se perguntava por que se cobriria de luto o eros de Aparição - desde esse tempo lhe parecia que a doutrina existencialista era uma câmara de tortura: “expulsavam Deus e ficavam a gritar por ele no vazio, torcendo as mãos de solidão e de orfandade”. E resume: “Tantos anos depois, verifiquei, eu continuava a rejeitar o eros fúnebre, Deus não me preocupava nem um pouco e a angústia existencial de Vergílio enervava-me”. Por delicadeza, e contrafeita, Teolinda acompanhou Hélder Godinho a casa do escritor. Por delicadeza, Teolinda entrou. E assim conheceu aquele que, diz, “contra tudo o que eu julgava plausível e apesar de todas as nossas divergências, se tornou um amigo ímpar e fraterno, que ficaria na minha vida. Para sempre”.

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Anuska Vaz 6 esboça uma aproximação possível entre Teolinda e Vergílio, apresentando vários aspetos ligados à reflexão de ambos sobre a Literatura. Efetivamente, creio, ambos os autores explicitam, de modo insistente, o seu comum sentimento estético e ético do tempo, a sua sensibilidade aos limites da linguagem e a sua obsessão pela “palavra total”, materializada na sua busca constante e, sobretudo em Teolinda, numa espécie de poética da dádiva, da escuta e da fusão com as vozes dos outros. Assinalo, de passagem, a peculiar materialização que, em ambos os autores, adquire o registo diarístico ou paradiarístico. Vergílio, densamente absorto mesmo quando devaneia, inteiramente sério até quando graceja, gravemente ancorado em si próprio, não raramente cáustico, parece-me geralmente manter uma sisudez assombrada de si para consigo, mesmo oscilando com leveza entre os registos da vida exterior, do pensamento e da ficção. Teolinda, solar e expansiva, não teme o rumor espumoso da luz absurda do riso; e pode romper os canónicos preceitos do género (em Os Guarda-Chuvas Cintilantes e até em As Águas Livres) com um deliberado “abaixamento” de tom e uma serialização temporal em patchwork, como se aquilo fosse literatura “de trazer por casa”, confortável e desarrumada – sem deixar de ser literatura. Sob esse ponto de vista, na sua fragmentação dinâmica, Os Guarda-Chuvas Cintilantes, um não-diário recheado de fantasias e fórmulas fulgurantes, e animado pelo diálogo constante da enunciadora consigo mesma e com alguns dos seus avatares – é de uma ligeireza absolutamente enganadora. A própria autora o define como “Um mundo feminino em que se tece, transfigurando-o, o longo tecido da vida: um trabalho de persistência, atenção, minúcia. Mas também divertimento, jogo, prazer de experimentar, aventura”.7 Se quisesse exagerar um bocadinho, diria que Os GuardaChuvas Cintilantes é uma espécie superior de blogue. Mas, em 1984, não se sabia ainda o que isso era. As flagrantes diferenças de tom e atmosfera, que notamos no registo diarístico entre Teolinda e Vergílio, poderão, afinal, traduzir o contraste e a complementaridade entre os discursos e as perspetivas feminina e masculina? É uma possibilidade. De facto, desde Liliana que se assiste, na escrita de Teolinda, a uma assunção absolutamente natural da dicção feminina, sem ademanes nem trejeitos - como quem fala do que sabe e do que é. Cristalizando uma autoria naturalmente feminina, como não atribuir a esta escrita o género feminino? Se a autora tem uma voz, um rosto, um corpo e uma experiência de mulher?

3.

O certo é que, na obra da autora que hoje premiamos sob a égide de Vergílio, e por estranho que pareça, reencontramos temas que os seus contos adolescentes já indiciavam. De algum modo, e num tortuoso sentido, cumpre-se afinal na obra de Teolinda a afirmação de uma sua imprecisa personagem escritora, aludida (na verdade, lida) em Os Teclados : “a última frase de um romance […] estava já contida na primeira”.8 Os contos da adolescência manifestam já, com efeito, a energia e a diversidade tipológica de discursos, temas, motivos, contextos, atmosferas e mundos que Teolinda vai frequentar na sua ficção da maturidade. Maria de Fátima Marinho 9 enuncia alguns desses temas, naquele que qualifica como “um universo focalizado quase exclusivamente 6 Anuska Vaz, “A arte no horizonte do (im)provável: Vergílio Ferreira e Teolinda Gersão”. Disponível on line : https://drive.google.com/file/d/0B6Yjdi1fotMmamJGUWxPQXBDSHM/view 7 Teolinda Gersão, As Águas Livres, Lisboa, Sextante, 2013, p. 29. 8 Teolinda Gersão, Os Teclados, Lisboa, Dom Quixote, 1999, p. 52. 9 Maria de Fátima Marinho, “Teolinda Gersão – uma escrita cintilante”. Disponível on line : https://drive.google.com/file/d/0B6Yjdi1fotMmWUdqZ3NlY1E1bHc/view?pli=1

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por mulheres”, de idades várias e circunstâncias díspares. Como elementos-base deste universo, aponta justamente “a importância da casa e da memória”, “as relações entre os diversos membros da família, a opressão e as várias atualizações dos sentimentos de evasão.” E conclui sobre a “coerência total” da temática gersaniana, relevando os seus tópicos recorrentes: “solidão, angústia, desespero, revolta, opressão, mas também esperança, euforia, bondade, disponibilidade.” A esses temas acrescenta Isabel Pires de Lima10 “a imaginação e o sonho como força transformadora do real e emancipadora da mulher, a problematização das relações interpessoais, em particular homem-mulher, a auto-reflexividade em torno da criação artística […] ou da construção identitária”. Defende ainda esta investigadora que, até ao fim dos anos 80, esses temas eram em Teolinda trabalhados “em função de uma teleologia ditada ainda por um projecto emancipatório moderno, social e historicamente situado”; assim, assinala nessa fase “uma forte tendência para a criação de universos auto-referenciais ou narcísicos, remissivos de modo especular para ambientes sociais e urbanos contemporâneos e familiares da autora: artistas, professores, médicos, personagens femininas inquietas que se auto-questionam e questionam o processo da criação estética”. Tal tendência é acompanhada, segundo a mesma estudiosa, por “uma clara propensão experimentalista, que subordina a linearidade narrativa a diversos processos de decomposição, a movimentos de descontinuidade, a rupturas súbitas e a um procedimento simultâneo de autodescrição reflexiva”. E dá como exemplos O Silêncio (1981), Paisagem com Mulher e Mar ao Fundo (1982) e Os Guarda-Chuvas Cintilantes (1984). Creio que estas afirmações, na sua clareza, são na verdade irrefutáveis. De facto, a ditadura e a democracia, a guerra colonial, os problemas sociais e, primeiro ou depois de tudo, o amor – constituem o corpo referencial maior destes romances de Teolinda na década de 1980. E é óbvio nessas obras o experimentalismo formal profundamente inovador, sendo nesse tempo particularmente envolvente, contagiosa e obsidiante a prosa de Teolinda, em seu pleno virtuosismo estilístico (tendo até suscitado, junto de alguns leitores, a impressão de ser uma escrita difícil ). A tais temas e processos opõe Isabel Pires de Lima os cultivados nas obras mais recentes, em que, diz, “essas temáticas configuram um romance aparentemente mais tradicional ou, digamos, menos experimentalista”, “assistindose ao retorno do romance que conta mais linearmente, embora nunca linearmente, uma história de trama coesa - a história de uma casa, de uma família e dos tempos que as atravessam”. Para a investigadora, Teolinda move-se ultimamente em “universos agora preferencialmente rurais ou universos pequeno-burgueses citadinos, e convocando pequenos núcleos humanos”, desenvolvendo “uma espécie de atenção à pequena história perdida no tempo e no espaço, de resto nem sempre localizáveis”. Se entendi bem, o que as duas citadas investigadoras complementarmente propõem é que a coerência da obra de Teolinda se observa sobretudo a nível dos temas – já que os processos da fragmentaridade e do experimentalismo das obras de 80 contrastam com a relativa linearidade da sua fase mais recente, progressivamente acentuada depois dessa década e claramente observável nas obras publicadas depois de 2000. Permito-me, no entanto, acrescentar um matiz: o que pessoalmente me parece é que, na obra de Teolinda, não pode com exatidão falar-se em fases distintas, se não à superfície. Tanto quanto aos temas, como quanto aos processos, a obra de Teolinda Gersão parece-me 10 Isabel Pires de Lima, “Ainda há contos de fadas? O caso de Os Anjos de Teolinda Gersão”, em Revista Semear, 7, Rio de Janeiro, 2002. Disponível on line : https://drive.google.com/file/d/0B6Yjdi1fotMmTmNFMERHbDdhX2s/view

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configurar uma profunda unidade. É essa unidade, suspeito eu, que constitui o segredo do seu reconhecido poder encantatório. E é por isso, principalmente, que eu volto ao seu livro fundador.

4.

Recordemos a história que, aos catorze anos, a própria autora recorda, lida pelo pai à sombra da glicínia da casa familiar: «Uma vez uma menina foi por um grande areal. Perdeu-se. Viu ao longe uma luzinha e para lá se dirigiu. Era uma casa. Abriu a porta uma velha muito mal encarada, que era uma bruxa». Aquilo que eu suspeito é que, quanto aos seus grandes temas, de uma forma ou de outra sempre a aventura romanesca de Teolinda recupera a história dessa menina perdida no grande areal, procurando uma luz. Cruzando os seus devaneios com as frases de Afonso, entretido justamente a fazer palavras cruzadas, Lídia, protagonista de O Silêncio, evoca uma remota paisagem marinha, batida de vento, e reflete: “eu procurava um enquadramento, um limite, uma forma, porque estava perdida na multiplicidade das coisas. [...] porque eu era vaga e difusa e sem fronteiras, igual a tudo e a nada, e havia uma casa que se abria na noite com a sua luz acesa [...]11 Aquilo que proponho – com todas as cautelas e a título exploratório – é que se pode de algum modo intuir, na ficção de Teolinda, a presença de uma espécie de arquipersonagem que, um pouco como em Vergílio Ferreira, permite dar conta (e retomo aqui os termos em que o próprio Hélder Godinho resume o seu conceito) “dessa evolução que as personagens que conduzem a ação foram sofrendo ao retomarem os mesmos problemas de forma evolutiva, o que cria uma espécie de personagem ideal cujo desenvolvimento a já longa obra [da nossa autora] vai mostrando”.12 A menina perdida no areal pode constituir, arrisco, essa espécie de Grande Eu, que se constrói através da indagação ontológica, existencial, social, identitária, ao longo da obra de Teolinda Gersão. No início, a menina só quer perder-se, lutar contra as opressões e as bruxas, aventurar-se e encetar, como todos os heróis, uma vida própria e livre. É por isso que Vitória termina O Cavalo de Sol com um salto para a liberdade. É por isso que Gita, de A Árvore das Palavras (1997), acaba o romance preparando-se para uma aventurosa viagem para Lisboa. É por isso que Os Guarda-Chuvas Cintilantes (1984) configura ainda uma transgressora e risonha quebra de barreiras genológicas. É ainda por isso que Maria Badala, criada d’A Casa da Cabeça de Cavalo (1995) hilariantemente se insurge contra as suas meninas, passivas como bonecas de louça, sentadas nos banquinhos, com vergonha de rir, de perninhas juntas, abanando compassadamente as cabeças, diante das visitas: “Se ao menos arrotassem!”.13 É por isso que Hortense, de Paisagem com Mulher e mar ao Fundo (1982), alucinada de dor pela morte do filho em África, atravessa o areal onde ressoa a voz surda e omnipresente do mar, como a voz do ditador; é por isso que o seu luto a despedaça, porque insiste, como Antígona, em opor a voz do sangue e do amor às leis oficiais da tirania do poder; e é por isso que o nascimento do seu neto pode representar, tal como a explosão festiva da revolução de Abril, o regresso de Hortense e de um país a si próprios. Incidentalmente, pois, a libertação pode materializar-se em temas factuais, de incidência social e coletiva, como a opressão salazarista, a guerra colonial ou o tradicional silenciamento imposto às mulheres. Mas também, e nu-

11 Teolinda Gersão, O Silêncio (4ª ed.), Lisboa, Dom Quixote, 1995, p. 35. 12 Helder Godinho, “Pensar Vergílio Ferreira”, em Revista da FCSH -1994/1995, nº 41, 1995, p. 125. Disponível on line : https://run.unl.pt/handle/10362/6787?locale=en 13 Teolinda Gersão, A Casa da Cabeça de Cavalo (2ª ed.), Lisboa, Dom Quixote, 1996, p. 180.

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clearmente, essa libertação identitária, que é também a história de um caminho para a expressão individual, é fiel a outras componentes do esquema arquitextual igualmente já esboçadas nos contos de Liliana. O primeiro conto desse primeiro livro relata na primeira pessoa a descoberta, por uma rapariguinha, de um segredo sobre os seus pais e, sobretudo, a sua mãe e o seu abandono matrimonial algo transgressor, conflito conjugal em cujo final feliz parece ter decisiva intervenção. É pelo menos curioso o paralelo com Os Anjos, de 2000, em que Ilda, a narradora, rapariguinha também, relata a obscura epifania por meio da qual se lhe revela o segredo erótico de uma mãe problemática, e se lhe permite integrá-lo na harmonia de um sistema familiar atípico. Aliás, os restantes contos do livro de 1954 apresentam também, no geral, temas sintomaticamente gersanianos: a relação ambígua com a mãe (entre o fascínio, a fusão, o apelo e a perda), a ternura inabalável pelo Pai (uma ternura onde há algo de condescendência risonha e de respeito temeroso), os locutores imaginários, o sentimento do tempo, o apelo do amor e da música e, sobre todos os outros, o êxtase de se estar vivo. E, assim, a aventura da menina que se lançou no areal, se perdeu, encontrou uma casa e uma bruxa – também vai implicar, noutras obras de Teolinda, a integração problemática da figura materna (será ela a bruxa que lhe abre a porta da casinha cuja luz brilha ao longe?), ou a identificação mais pacífica com o pai. Será este, aventuro-me, um processo que, até certo ponto, reconstitui o progressivo percurso de individuação, autonomização e afirmação da própria Teolinda, enquanto autora? Se eu quisesse ainda sobreinterpretar, associaria o areal à página branca (até porque, quando as meninas se perdem nos contos, geralmente é numa floresta). E será que no maravilhoso conto “Avó e neto contra vento e areia” – da coletânea A Mulher que Prendeu a Chuva, de 2008 – não haverá ainda grãos deste areal onde os protagonistas se perdem?... Ultimamente, desde certamente o ano 2000, a obra de Teolinda Gersão tem-se desenvolvido de outro modo. Tem preferido uma espécie de cristalização no múltiplo, absorvendo-se na pureza facetada das pequenas ou grandes histórias dos outros, cedendo, como que casualmente, em contos, novelas e romances, a enunciação a narradores de ocasião (a senhora da limpeza, parentes, vizinhos e amigos vários, um amante imaturo, um leitor delirante, uma noiva tresloucada, uma devota caloteira, um marido desiludido…), a quem empresta a sua voz inquietantemente dúctil. São narrativas rigorosas, apuradamente estruturadas, impecavelmente límpidas e desarmantes. Mas, no seu fraseado impecável, já em alguns contos de Liliana a enunciação era cedida a um pinheiro antigo, a uma boneca cúmplice, a uma andorinha sentimental, a uma freira cantora… Agora, em 2016, é como se a menina-protagonista, liberta de todas as opressões, incluindo as do ceticismo, pudesse já – na tábua rasa da sua verdade ôntica, sem alibis, apoios ou teorias – decidir-se pela vida. E, como a protagonista de Os Teclados, sentar-se, e ouvir as vozes que tem dentro de si. De facto, Teolinda generosamente procede, nos últimos anos, à auscultação de uma espécie de vozes supostamente “sem qualidades”. Adota, neste gesto de transferência expressiva, uma espécie de identificação íntima com as personagens que se lhe “impõem”, num processo semelhante àquele em que, no incipit dum conto de Mia Couto, um narrador explica: “quando conto a minha história me misturo, mulato não das raças, mas de existências”.14 Talvez

14 Mia Couto, “Afinal, Carlota Gentina não chegou de voar?”, em Vozes Anoitecidas, São Paulo, Companhia das Letras, 2013, p. 75.

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por isso Teolinda confesse que às vezes, quando anda de metro, procura nos rostos à sua volta um que lhe sirva para a personagem que nesse momento a habita.15 Note-se que essa transferência inclui, em data recente (2011), um romance de grande fôlego ficcional, A Cidade de Ulisses, em que um enunciador masculino presta contas do seu particular processo de maturação psicológica e amorosa, prestando simultaneamente um tributo a Lisboa. Por um lado, este processo de composição é tão eficaz que, sobretudo na leitura das últimas obras de Teolinda, o leitor pode ter a mesma sensação de surpresa que tem Hortense quando acede a conhecer a namorada do filho, Clara, a qual, sentando-se no chão, lhe oferece um prato lascado com bolos de maçã e erva-doce. É a “sensação de empurrar em vão uma coisa solta, que não oferecia resistência: não existia tensão entre ambas”.16 Alguma coisa, pensa o leitor, começou a mudar. E, tal como Hortense tirou do prato partido mais um bolo de erva-doce, o leitor continua a ler Teolinda. Esta “falta de tensão” acontece, parece-me, não porque falte à prosa recente de Teolinda o tal estranhamento estético, que desautomatiza a leitura – e que, nas obras de 80, era vistosamente inovador - mas justamente porque esta prosa se oferece, inteiramente aberta, tranquilamente desconcertante, segura como Clara, na leveza exata da sua profunda e despudorada originalidade. Por outro lado, como menina sempre, Teolinda não abandona nestas últimas obras os traços que Maria Alzira Seixo identifica como típicos da produção feminina contemporânea em Portugal: “o trabalho do registo intimista; a inventiva com base no pormenor e no concreto; a situação narrativa de confidência como nó do jogo ficcional; […]; a proliferação dos dados romanescos não integrados e a sua fecundidade […] no plano da produção da significação, nomeadamente nos sectores simbólico e lúdico”.17 Por outro lado ainda, estas obras de estrutura mais coesa integram, em permanência, a atenção minuciosa e deslumbrada à circunstância aparentemente trivial, colhendo dela aquilo que Teolinda Gersão define como «o ponto incandescente em que o banal se converte em milagre e uma outra visão das coisas se revela».18 Assim, nas últimas obras a escrita de Teolinda parece-me atingir um elevado grau de transparência, que não obnubila, antes poderosamente amplifica, a sua profunda ressonância simbólica e até mítica. São histórias iluminadas por dentro, sibilinas, histórias à maneira de Alice de Lewis Carroll. Histórias sobre as quais se poderia dizer o mesmo que diz em 2016 “Alice in Thunderland”:19 “[…] a raiz da [sua] força e sedução […] é que tudo [nelas] aponta, subterraneamente, para algo que não é contado”.

Fotografia de Susana Rodrigues

Ou seja, enfim: quanto à coerência temática na ficção de Teolinda, parece-me inquestionável, desde as suas primícias até ao dia de hoje. E quanto aos seus processos? Disso falarei a seguir.

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Teolinda Gersão, “As minhas personagens”, em Carlos Reis (coord.), Figuras da Ficção, CLP/ FLUC, 2006, p. 183. Teolinda Gersão, Paisagem com Mulher e Mar ao Fundo (4ª ed.), Lisboa, Dom Quixote, p. 45. Maria Alzira Seixo, A Palavra do Romance. Ensaios de Genologia e Análise, Lisboa, Livros Horizonte, 1996, pp. 240-241. Teolinda Gersão, As Águas Livres, ed. cit., p. 150. Teolinda Gersão, Prantos, Amores e Outros Desvarios, Porto, Porto Editora, 2016, p. 131.

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5.

Sem “repetição ou simetria de motivos”, desistindo alegremente de “organizar o caos”20, Os Guarda-Chuvas Cintilantes ou As Águas Livres rompem, como sempre Teolinda faz, as distinções entre a escrita e a fala. É como se a arquipersonagem – a “menina” – resolvesse francamente emigrar da ficção estruturada e canónica para se refugiar numa espécie de sótão jubiloso, onde estivessem guardados todos Os Guarda-Chuvas Cintilantes e todas as Águas Livres borbulhassem, e onde ela brincasse à vontade, escrevendo talvez de novo em agendas clínicas rigorosamente o que lhe apetecesse, expandindo-se, rabiscando sempre – como para “fugir à ficção”, diz Miguel Real 21 (ou talvez, digo eu, para ficcionalizar essa fuga à ficção). Esses livros fazem isso, desde a década de 80, de modo simultaneamente íntimo e exuberante. Mas o discurso caprichosamente caudaloso é já de movimento irrefreável em Liliana. Aos cinco anos, conta a própria, a escrita de Teolinda corria livremente por entre as linhas das suas famosas agendas clínicas, por mais erros de ortografia e borrões (e talvez posologias e contraindicações) que encontrasse no seu curso. Em Águas Livres, Teolinda parece referir-se-lhe justamente, quando reivindica essa qualidade aquática de um discurso primitivo e solto, como “águas sem margens, limites nem barreiras, sempre nascendo, em movimento, águas ainda sem reflexos, cegas, intactas, tal como chegam pela primeira vez à superfície, deixando-se tocar mas não prender, correndo à procura de si mesmas, fazendo o seu caminho, ao encontro da luz”.22 Já em Liliana a visualidade, o dramatismo dialógico, o uso desenvolto do indireto livre, do monólogo interior e da ironia, prefiguravam a tonalidade e a estrutura conversacional da dicção de Teolinda, rente à fala, como num entretien infini que recupera a respiração, as tensões, o grão da voz, a fluidez e os ritmos da comunicação em presença. Aos catorze anos já Teolinda Gersão mostrava uma mão expedita na configuração e no timbre dos diálogos, no uso da delegação enunciativa e do perspetivismo narrativo, manifestada pelos vários processos de desdobramento do sujeito e pelo jogo de focalizações, alçapões sucessivos da subjetividade. Se integrarmos o prefácio de Liliana no próprio universo ficcional dos contos homónimos – integração talvez inevitável e a que, queiramos ou não, a massa temporal transcorrida e a consagração da autora acrescentam caução ficcional e conformidade histórica – surpreenderemos ainda outro traço genético da ficção de Teolinda. O prefácio testemunha desde logo do seu tropismo metanarrativo. A narradora conta a história de si própria no ato de ouvir ler uma história que contou. Ou seja: no próprio momento da sua fundação enquanto ficcionista, Teolinda já pratica aquilo que, muitos anos depois, Annabela Rita descreverá como “ficção em auto-efabulação”.23 Ciosa das suas agendas clínicas, como, mais tarde, dos seus guarda-chuvas e dos seus cadernos, Teolinda Gersão sabe, entretanto, tão visceralmente como Vergílio Ferreira, que o narrador é verdadeiramente o dono e o centro do tempo mental e do seu universo imaginário. É curioso observar como, em Teolinda, esta tendência à narração torrencial - que unifica, centraliza e irremediavelmente difere a informação diegética -, se alia naturalmente à enunciação dispersa e plural, que multiplica os narradores e os justapõe direta e dramaticamente. O romance Passagens parece 20 21 22 23

Teolinda Gersão, As Águas Livres, ed. cit., p. 29. Miguel Real, recensão crítica a “Teolinda Gersão. Cadernos II. As Águas Livres”, em Revista Colóquio/ Letras, nº 185, janeiro de 2014, p. 251. Teolinda Gersão, As Águas livres, ed. cit., p. 68. Annabela Rita, “Teolinda Gersão: a palavra encenada”, p. 53. Disponível on line em: https://drive.google.com/file/d/0B6Yjdi1fotMmUkJJYkVyTUFUaVk/view

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aliar ambos os processos, resultando, como A Casa da Cabeça de Cavalo, num efeito fantasmático de totalidade, aureolada de sombras. Mas até nisso o prefácio é programático: desde sempre, a autora reivindica o direito a não acabar as suas histórias, ou de as contar contando a história de outras histórias. Mesmo que também, aplicadamente, nele declare que decidiu passar a acabá-las, as narrativas gersanianas são sempre, ou quase sempre, a apresentação comentada de outra narrativa aludida – como se o mais importante não fosse contado, ou não se passasse lá, ou se tivesse perdido ou se não pudesse contar, como se o livro fosse apenas uma passagem razoavelmente precária para a continuação das conjeturas; como se o livro continuasse a conjeturar, a efabular, para lá das palavras que o constituem.

6.

Aproveitando até o prefácio para contar histórias, aproveitando as histórias que conta para falar do processo de as contar, a narradora-mor de Liliana prefigura, portanto, a extraordinária expansividade narrativa, característica que podemos dizer estrutural no discurso de Teolinda. Traduzida, em parte, pela desmultiplicação de narradores e de níveis narrativos, esta expansividade e este efeito de outrar-se não é, de todo, a tradução discursiva de uma espécie de pluralidade identitária profunda. É antes, julgo, a natural extensão de uma unicidade pletórica – a de uma sólida instância autoral, forte e naturalmente magnânima. Teolinda Gersão não cede à vertigem do vazio do eu: como Vitória, de O Cavalo de Sol, Teolinda é filha da claridade. Perdida no desvairamento da sua dor imensa, Hortense, de Paisagem com Mulher e Mar ao Fundo, é capaz de raciocinar no meio do absurdo; como Alice, é capaz de pensar “correndo mais depressa, pelo interior do medo”.24 Teolinda também. No interior da alucinação Teolinda não abdica da lógica, mantém o bom-senso no delírio. Na ficção da década de 80, esta expansividade parece preferir a famosa fragmentaridade experimentalista, sinalizando constantemente espaços em branco, escandindo pausas, oscilações ou supressões momentâneas da consciência, silêncios, suspensões, asfixias […] e só obscuramente se sentiu cair sobre uma coisa grande e vaga, almofada ou onda, que se afastava oscilando e a arrastava para longe. Mas quando voltou a si ainda existia a janela […];25

- ou concretizando-se na justaposição de tempos e materiais heteróclitos, interposições sem zona de transição, lacunares, continuação sem continuidade: […] porque há de repente uma quebra, uma interrupção no tempo, uma distância que a minha voz não consegue transpor – Saio de manhã cedo […]26

24 Teolinda Gersão, Paisagem com Mulher e Mar ao Fundo, ed. cit., p. 22. 25 Id., p. 13. 26 Id., p. 24.

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- ou pelo contrário evocando uma continuidade devastadora: bateu a porta e correu pela estrada até ultrapassar as últimas casas e alcançar as dunas, e agora é só o vento e a areia lisa, estéril sem pegadas, sem traços humanos, um deserto que cresce, alastra, avança, palmo a palmo avança,27

Entre a supressão e a expansão, a desarticulação sintática pode desenhar nas páginas o traçado, a flexão ondulante e acidentada da narrativa, que parece mover-se entre o silêncio do areal – pura virtualidade significante - e o pulsátil e loquaz conteúdo humano. E, parece-me, a mesma desarticulação sempre obstinadamente recusa a perda definitiva da consciência e do poder de rememoração, reivindicando mesmo um poder paradoxal, que observamos no explicit d’A Casa da Cabeça de Cavalo : o de descrever o seu próprio silenciamento final, como uma coagulação derradeira na substância do tempo. E, depois, há os detalhes, os maravilhosos detalhes da escrita de Teolinda. A requintada delicadeza com que os seus relatos, mesmo os mais violentos, se insinuam na sensibilidade imaginativa do leitor, pelo rendilhado sumptuoso de certos pormenores, torna-os tudo menos acessórios. Pelo contrário, eles materializam, na sua condensação lírica, o núcleo temático da história, a qual por vezes resumem por inteiro. Um só exemplo - em O Cavalo de Sol, Jerónimo reproduz, na escolha do anel que oferece à sua noiva, o seu projeto de sacralização e imobilização da mulher: O anel de noivado era fora do comum, disse Jerónimo, porque se destinava a uma mulher fora do comum, a que ele escolhera entre todas porque não se parecia com nenhuma outra. A que era única. Singular. Inigualável. Assim, em vez de um diamante ou de uma pérola […], ele escolhera uma pedra que, milénios antes, se cristalizara em volta de um minúsculo insecto. Um pequeno fóssil, envolto há milénios num cristal de rocha.28

De outras vezes, como em tantas lindíssimas passagens de O Silêncio, o brilho dos detalhes esbate consideravelmente a relevância do enredo, mantendo com ele ainda uma simbólica conexão. Deste modo, na prosa dita fragmentária de Teolinda Gersão, o detalhe pode funcionar como uma notação material e visual do tema, coadjuvando a diegese; ou pode ganhar uma irradiação totalizante, vivendo por si, como um poema que reluz a tracejado. Nas últimas obras, sobretudo nos contos, Teolinda atinge uma extrema simplicidade comunicativa, por meio de uma máxima eficiência técnica. A figura do mosaico ficcional, que já vem em parte d’Os Guarda-Chuvas Cintilantes, pulveriza agora os universos romanescos com uma aluvião de palavras alheias, de discursos caricaturalmente convencionais e por isso irónicos, recheados de alusões, elipses e subentendidos, materiais verbais deslizantemente ilógicos, bizarramente melancólicos ou perturbantemente oníricos, que, entre si e dentro de si, mantêm aquela absurda coerência, típica do modo dos sonhos, que os torna, simultaneamente, banais, poéticos e inquietantes. Veja-se, por exemplo, a ferocidade da subterrânea correspondência, na perceção de uma filha abnegada, entre a acidez das acácias e a corrosiva invasão pela mãe, em “As mimosas”, da mais recente obra da autora.29 27 Id., p. 32. 28 Teolinda Gersão, O Cavalo de Sol, Lisboa, Dom Quixote, 1989, p. 101. 29 Teolinda Gersão, Prantos, Amores e Outros Desvarios, Porto, Porto Editora, 2016, pp. 23-31.

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Em suma: toda a ficção de Teolinda sempre me parece guardar uma margem de conjetura e de indeterminação; mas sempre me parece assegurar, ao mesmo tempo, uma unidade orgânica matricial, responsável pela criação de um “efeito de mundo”. Pode ser um mundo espesso e coerente, concêntrico, fechado; ou um mundo aberto e rarefeito, plural, de fulgurância intermitente. É sempre, em todo o caso, um mundo. Não há em Teolinda oposição profunda entre fragmentaridade e linearidade, como por vezes se defende. Pelo contrário, quando muito, ela abdica, ocasionalmente, de ocupar todo o espaço vocal, trocando de lugar com os companheiros de aventuras. Ou seja, Teolinda Gersão não muda de processos nem de temas – muda apenas de prioridades e de posições. E faz isso desde adolescente. A famosa descontinuidade da ficção de Teolinda parece-me, afinal, a forma de exprimir e exercitar, à superfície, o borbulhante caudal da torrente enunciativa mais profunda. A escrita de Teolinda é sulcada de ruturas e continuidades, como um fluxo de diferentes pulsações. A enunciação em Teolinda tem o tónus da fala.

7.

É tempo de terminar. Nesta história parti, como uma espécie de mapa do tesouro, munida do prefácio que Teolinda escreveu para o seu primeiro livro de contos, publicado há 63 anos. No prefácio de Liliana anuncia-se todo um programa autoral que, em 2017, me parece ver cumprido. Configurando elementos matriciais na poética de Teolinda Gersão, esse prefácio é, acima de tudo, a garantia documental da força irreprimível da sua energia criativa, concretizada ao longo da luminosa carreira da escritora a quem hoje, emocionados, entregamos o Prémio Vergílio Ferreira. Poderosamente arcaica, irreprimivelmente juvenil, irredutivelmente transgressora, esfuziantemente atual, inesgotavelmente inventiva - essa energia de Teolinda é em si própria indefinível. Na verdade, o trabalho do leitor e do crítico, buscando acercar-se do texto literário, é semelhante ao jogo a que se entregam duas personagens de Teolinda, tentando abeirar-se das gaivotas: é o de tentar aproximar-se, tão perto quanto puder, dessa energia esquiva, assinalando com palavras o limiar da proximidade permitida, e sempre de cada vez tentando chegar mais perto. Mas há sempre o instante em que o texto parte e foge, abrindo as asas rápidas.

Porque as histórias, como a vida, não acabam nunca, dedico este texto à juventude presente, à juventude a que a escritora dedica o seu primeiro livro – e à qual Teolinda nunca deixará de pertencer. Eterna rapariga, Teolinda sempre nos deslumbrará com a fascinante mocidade que a anima, e com a Vida que em cada obra nos oferece, como se fosse a primeira, trémula e sinuosa, inteira nas nossas mãos.

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Escaparate de libros

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ELOÍSA ÁLVAREZ MARÍA JESÚS FERNÁNDEZ MIGUEL ÁNGEL LAMA ANTONIO RIVERO MACHINA ANTONIO JIMÉNEZ MORATO MIGUEL FILIPE MOCHILA

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ELOÍSA ÁLVAREZ

História crítica da literatura portuguesa Vol. VIII. O Modernismo Carlos Reis e António Apolinário Lourenço Ed. Verbo, 2015.

C

asi 25 años ya. Durante un cuarto de siglo, Carlos Reis, Catedrático de la Universidad de Coimbra, ha ido superando los inevitables contratiempos inherentes a la coordinación y publicación de una obra tan ambiciosa como esta História Crítica da Literatura Portuguesa que, en nueve tomos, está inaugurando en Portugal una nueva concepción de la historia literaria. De hecho, no se trata de su única obra de gran envergadura. Es que, además de ser responsable con sus publicaciones de la formación en técnicas de análisis textual de varias generaciones de alumnos en diversas universidades europeas y americanas, de la revelación y difusión del valor del neorrealismo y del realismo literario portugués o de la consolidación social del fenómeno Saramago, a su cargo ha quedado la investigación y la edición crítica de las obras completas de Eça de Queirós, gran proyecto paralelo al de la ambiciosa construcción del dedicado a Figuras da Ficção, en que ha enraizado su Dicionário de personagens da ficção portuguesa. Y es sin duda consciente, por otra parte, de que una crítica coherente tiene el poder de reinventar una época, de construir una personalidad literaria. Y de descubrirla, como él mismo manifestaba en entrevista publicada en su día en el lisboeta Jornal de Letras, a propósito de Fernando Pessoa. En efecto, el descubrimiento de su genio, la sorprendente dimensión alcanzada en Europa y América por el que, para sus coetáneos, no era más que un modesto oficinista, la tempestad bibliográfica que su obra ha originado, el rescatarlo del olvido, a la acción de la crítica se le debe. Este gran proyecto de Carlos Reis empezó a materializarse en 1993 con el tomo dedicado al Romanticismo, en el que trabajó en coautoría con Maria da Natividade Pires. En él, ha contado con la tolerancia mostrada por la editorial Verbo, y con la colaboración de diversos especialistas, llegando, incluso, a ser autor único del vol. final: IX. Do neorrealismo ao Pos-Modernismo, publicado, por

avatares inesperados, antes que este vol. VIII dedicado a O Modernismo, que voy a comentar, y que en sus 430 páginas, ha contado con la autoría de otro profesor de la Universidad de Coimbra, António Apolinário Lourenço, prestigioso especialista en literatura comparada hispanoportugesa, autor de obras sobre Antonio Machado, sobre el Naturalismo peninsular, sobre Fernando Pessoa o en torno a la generación de Presença, entre otras. A pesar de tratarse de una obra escrita por dos autores, estos se muestran tan sintonizados entre sí que no individualizan con su firma cada espacio tratado. Y, sin dejar de manifestarse alternancias de enfoque y estilos de escritura, principalmente en los capítulos introductorios en que se contempla el desarrollo literario –uno, más inclinado hacia la historia, otro de carácter más ensayístico– Carlos Reis y António Apolinário Lourenço terminan por ir salvando los inevitable escollos suscitados por la redacción, coordinación y estructuración, complementándose y singularizando así este volumen dedicado al Modernismo. Un término que, conviene prevenir al lector, no responde en el espacio de lengua portuguesa al concepto hispánico de simbolismo literario, sino al de una verdadera renovación vanguardista. En las páginas de “Presentación” Carlos Reis define cuál es la organización general de la obra, sus propósitos, funciones y destinatarios, evocando diferencias con las tradicionales historias evolutivas anteriormente editadas en Portugal –las debidas a Teófilo Braga, Fidelino de Figueiredo, Mendes dos Remédios o, más recientemente, a António José Saraiva y Óscar Lopes– y mostrándose cercano, como él propio indica, al concepto del hecho literario como entidad global, textual y social, como producción y también como recepción, característica igualmente identificadora de la Historia y crítica de la Literatura española, de Francisco Rico, citada por Carlos Reis en esta Presentação. La gran diferencia entre ambas producciones, la española y la portuguesa, es una novedad que denota la formación teórica

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tanto del coordinador como de sus coautores: además de la inclusión de los textos críticos a que la citada historia de Rico recurre, se insertan los doctrinarios, es decir los que escriben autores de ficción y poetas sobre su propia teoría referente a la esencia y circunstancialidad del hecho literario. De este modo, se inscribe un espacio textual estructurado en seis capítulos: 1. Modernismo e vanguarda; 2. Fernando Pessoa, ou as metamorfoses do eu; 3. Mário de Sá-Carneiro: o outro, o mesmo; 4. Almada Negreiros. Desenvolvimentos e afinidades modernistas; 5. O Movimento da Presença; 6. A Posteridade do Modernismo: legados y derivas. A su vez, cada uno de ellos se inicia con Introducción o análisis de la literatura bajo la perspectiva de su desarrollo temporal. Le siguen la correspondiente Bibliografía, extraordinariamente amplia y actualizada, los Textos doctrinarios, acertadamente seleccionados y, finalmente, los Textos críticos, que ocupan una extensión semejante a la de los doctrinarios. Lógicamente, y atendiendo a su mayor relevancia y repercusión históricas, los cuatro capítulos que completan Modernismo e vanguarda, ocupan mayor espacio (casi trescientas páginas) que el reservado al Movimento da Presença (ciento treinta páginas). De este modo, respetando en mi reseña la importancia concedida por los autores de la obra a esos dos capítulos iniciales y teniendo que limitar mis comentarios sin abordar los capítulos dedicados a los heterónimos y al grupo integrante de Presença, para no hacer a partir de esta Historia una Historia paralela, permito que el lector realice su propia lectura. Así, regreso al contenido de los textos doctrinarios (páginas 31-45) del primero de esos capítulos. Se trata del dedicado de manera específica a Modernismo e vanguarda, constituido por las primeras manifestaciones de los integrantes del grupo Orpheu (Luís de Montalvor, el heterónimo Álvaro de Campos, Almada Negreiros, Pessoa

él-mismo). Se inscriben aquí los exponentes conceptuales que preceden a una antología crítica (páginas 47-69), formada por fragmentos de ensayos ya considerados clásicos, como los firmados por Nuno Júdice, Antonio Quadros, Jorge de Sena, Casais Monteiro, Sáez Delgado, Fernando Guimarães o Fernando Cabral Martins. En el capítulo 2, dedicado a Fernando Pessoa, ou as metamorfoses do eu y en el apartado dedicado a textos doctrinarios (páginas 117-137), se encuentran reunidas muestras de las primeras publicaciones de Pessoa –crítico literario de los formantes de otras escuelas literarias–, en la revista portuense A Águia y en otras publicaciones periódicas posteriores, así como las respuestas dadas a cuestionarios diversos, los conceptos que Pessoa emite sobre lo que más tarde sería la vanguardia portuguesa, su célebre y extensa carta a Miguel Torga o sus ideas sobre la idiosincrasia de sus heterónimos. A la revelación de la esencia del Modernismo, contribuyen textos críticos, que desempeñan la función de una antología doctrinaria integrada por originales pessoanos reunidos y publicados por Teresa Rita Lopes, António Apolinário Lourenço, José Gil, Jacinto do Prado Coelho, Cleonice Berardinelli, Octavio Paz, Eduardo Lourenço, José Augusto Seabra, António Quadros, Richard Zenith, Robert Bréchon, Paulo Borges, Manuel Gusmão o Jerónimo Pizarro. Pensado para consulta tanto de especialistas como de estudiantes, no faltará, inevitablemente, quien busque un espacio mayor dedicado a un autor, a un periodo, a un problema teórico-crítico. Observación que no merma la necesidad de una Obra ya indispensable en nuestras bibliotecas, por su concepción, su aliento estructural y su actualidad en el dominio del acontecer literario en el país. Es tarea imposible dar respuesta a la multitud de opciones a que una Historia como ésta abre camino. Y no hay duda de que tardará mucho tiempo en producirse en Portugal la que la convierta en sustituible.

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ELOÍSA ÁLVAREZ

Turia Letras de España y Portugal Mostra Espanha 2015 Diputación de Teruel, (Nov. 2015 - Feb. 2016).

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undada gracias al empeño e inquietud del turolense Raúl Carlos Maícas, periodista, escritor y prestigioso autor de diarios (Días sin huella; La marea del tiempo), Turia va resistiendo, bajo su dirección, en ediciones cuatrimestrales, desde la periferia y desde hace más de treinta años, a los actuales cortes en tiradas y periodicidad sufridos, con la consecuente pérdida cultural, por revistas congéneres impresas, como Ínsula, o como otras, de inclinación más filosófica, de las que Claves es un buen ejemplo. Y la admirable perdurabilidad de Turia contrasta con esa merma de ediciones en papel, provocada por factores socio-económico diversos, y difícilmente sustituibles aún hoy por las versiones digitales, cuyos cánones de protección autoral han aumentado a partir de las leyes de Zapatero entre 2006 y 2011. Diversos mecenazgos concedidos por el Ayuntamiento de Teruel y el Gobierno de Aragón y, en el caso de este número 116, por el apoyo especial de las secretarías de estado de cultura de los gobiernos de Portugal y España, ayudan a entender la aparición de este número monográfico que, con portada e ilustraciones de Cabrita Reis y dedicado a las «Letras de España y Portugal», se integra, a partir de su presentación oficial en la Fundación Calouste Gulbenkian, de Lisboa, en el conjunto de iniciativas culturales de la Mostra Espanha 2015. Este esfuerzo de aproximación entre las culturas de los dos países queda reflejado en el sumario, que llega a las 500 páginas, y que se extiende por una clasificación de secciones dedicadas a la cultura peninsular («Letras», «Taller», «Poesía», «Pensamiento», «Cartapacio: Literatura portuguesa actual», «Conversaciones»), completadas por un interés más centrado en la región aragonesa («Sobre Aragón», «Cuadernos Turolenses») y por el apartado «La torre de Babel», espacio de cien páginas de reseñas críticas de obras de diverso género escritas por autores mayoritariamente españoles.

Así, bajo el epígrafe «Letras» se incluyen breves ensayos críticos sobre Agustina Bessa-Luís, Rafael Sánchez Ferlosio, Juan Marsé o el eco de Unamuno y sus paseos lusitanos. En «Taller», junto a aportaciones de escritores españoles, figuran traducciones de interesantes textos de Lídia Jorge, Mário de Carvalho o Almeida Faria, mientras que en «Poesía» alternan muestras de veinte poetas de ambos países, de los que cito a Nuno Júdice, Antonio Gamoneda, José Bento, Francisco Brines, Fernando Echevarría o Luís Alberto de Cuenca, dejando atrás manifestaciones poéticas de autores de gran prestigio. Alrededor del estado de la cuestión cultural gravitan en el apartado «Pensamiento» las opiniones vertidas en el ensayo firmado por José Maria de Lassalle, entonces Secretario de Estado de Cultura del Gobierno de España y que en «Cervantear la política» proyecta puentes deseables entre el humanismo clásico ejemplificado por Cervantes en el Quijote y los desestabilizadores tiempos que vivimos. Se trata de conexiones culturales que encuentran su paralelo en el ensayo de Jorge Barreto Xavier, Secretario de Cultura del Gobierno de Portugal en 2015 y que en «El lugar de la cultura. La naturaleza y lo humano» aboga por la constitución de un nuevo modelo social en que el centro del orden político-económico contemporáneo sea desplazado por un sentido de lo humano que haga de la cultura el eje del desarrollo y del progreso. En «Cartapacio: literatura portuguesa actual» desfilan una treintena de autores pertenecientes a varias generaciones, desde la primera, representada por el ensayista Eduardo Lourenço entre muchos otros, hasta valores consagrados en los últimos tiempos de los que constituyen una excelente muestra los novelistas Inês Pedrosa, Gonçalo Tavares o José Luís Peixoto. Y también la poesía de Rui Pires Cabral o la del antropólogo Luís Quintais, por citar solo a algunos de ellos, propuestos en esta sección de poesía portuguesa en el siglo XXI por la atenta observación de Rosa María Martelo.

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En «Conversaciones», António Lobo Antunes manifiesta: «Saber hacer pasteles de bacalao es tan importante como haber leído Os Lusíadas ; es una forma de cultura». Recurriendo a una lógica luminosa, muy propia de él, expone sus experiencias como escritor y también como ser humano sometido a la precariedad física. Manuel Borrás, con su recién estrenada Medalla de oro al Mérito en Bellas Artes, y fundador junto con Manuel Ramírez y Silvia Pratdesaba de la editorial Pre-Textos, participa en este espacio, reconociendo que «Hemos desvirtuado la naturaleza lenta de la literatura» en la entrevista concedida a Emma Rodríguez. Jugosa reflexión sobre sus cuarenta años de vivencias editoriales, sobre las relaciones entre industria y cultura, los recuerdos de amigos como Elias Canetti o Ramón Gaya, resaltando, con su jovial perspicacia, la pasión por el descubrimiento literario que sigue presidiendo la labor editorial de este viajero irreductible. Y, finalmente, el texto que funciona a manera de editorial respecto a la ficción lusa, firmado por Pedro Serra, asesor, junto con Antonio Sáez Delgado, de la edición de este número de Turia. Pedro Serra titula su colaboración «Esperando por el renacimiento y nada ha ocurrido. Novela en Portugal, edad de la inflación. Siglo XXI». En él, entretejiendo elementos propiamente literarios con otros sociales y político-económicos, analiza en ciento veinticinco lúcidas páginas los exponentes más visibles de la trayectoria narrativa lusa hasta el primer trimestre de 2015, sin perder ese tono del desencanto sugerido por el título de ese ensayo y que cierra con este párrafo: « […] En el momento que vivimos en 2015, es acaso más realista la pesadilla que el sueño. A ello alude el título de este texto: esperando por el renacimiento y nada ha ocurrido». Han tenido que quedar silenciados en lo que es una mera reseña, numeroso nombres, títulos y muestras de textos. Que este silencio sea un acicate para el descubrimiento personal de toda una época literaria, recogida por

la revista cultural española que ha conseguido hasta hoy la más completa representación del estado de la cultura contemporánea en Portugal, en sus vertientes de poesía, narrativa y ensayo. Y, sin duda, ha sido posible gracias a la concurrencia de circunstancias felices, entre las que se incluyen la concesión de imprescindibles apoyos con que los gobiernos de Aragón, de Portugal y de España han mostrado su confianza en el proyecto.

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MARÍA JESÚS FERNÁNDEZ

Homens imprudentemente poéticos Valter Hugo Mãe Porto Editora, 2016.

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alter Hugo Mãe publica su séptima novela Homens Imprudentemente Poéticos en 2016, año en que además cumple veinte de carrera literaria. Un recorrido que ha estado acompañado del reconocimiento del público y de la crítica. Reediciones, traducciones y varios galardones, como el Premio José Saramago en 2007 por su novela o remorso de baltazar serapião, le han confirmado como autor de referencia obligada en el actual panorama literario portugués. Dos de sus novelas han sido traducidas al español: El Apocalipsis de los Trabajadores (Alpha Decay, 2010) y La Máquina de Hacer españoles (Alfaguara, 2012). Una mirada sobre la reciente producción narrativa de Valter Hugo Mãe nos devuelve la imagen de un escritor que gustosamente canjea espacios, en un nomadismo que le ha llevado a ambientar sus novelas más recientes en Islandia, A Deshumanização (2013), y en Japón, en el caso de Homens imprudentemente poéticos (2016). Lejos de una visitación superficial a los espacios, tan alejados del contexto portugués al que el autor pertenece, la vivencia real trasciende a los textos dejando en ellos la impronta de una cosmovisión propia de las culturas islandesa, en el primero, y japonesa en el segundo. Sin embargo, ninguna de las novelas de Valter Hugo Mãe provocará en el lector, seguidor o no de su obra, un desconcierto tan estimulante como esta última a la que nos vamos a referir. Ya desde el título, reconocemos el hábito de bautizar los relatos con títulos sugerentes, intrigantes y que permanecen significantes al acabar la lectura. Homens imprudentemente poéticos nos anticipa un recorrido por un texto a cuyas puertas hay que abandonar el equipaje de lo prosaico, lo banal e incluso de lo racional, para avanzar hacia un mundo mítico en que son parte de lo real cotidiano la adivinación del futuro, los sueños premonitorios, la visita de los espectros de los antepasados, la ubicuidad de los hombres sabios…

Partimos hacia una aldea japonesa, anclada en un pasado impreciso, en un tiempo arcaico, donde viven, en vecindad inestable, Itaro, fabricante de abanicos, y Saburo, alfarero. Como reflejo de la tensión entre el Yin y el Yan, cada uno de estos hombres tiene su complementario femenino. Itaro mantiene a su hermana ciega, Matsu, a la que salvó al poco de nacer de la muerte, convirtiéndose así en su auténtico progenitor. Saburo vive con su esposa, la señora Fuyu, a la que ama devotamente, incluso tras su muerte. En ambos casos, se trata de un amor protector, dominado por el miedo a la tragedia y marcado por la pérdida. No obstante, aunque ausentes, las dos mujeres son para Itaro y Saburo una presencia constante e irrenunciable. Entre ellos, Kame, la vieja criada de la familia de Itaro, “visitada pelo sopro da inteligência universal” (p. 19), trata de tender un puente que serene la convivencia de los dos hombres. Itaro es el personaje más perfilado. Cuando se inicia el relato, es ya un hombre temeroso del futuro que le habla en la muerte de los insectos destripados. Su poder es a la vez una maldición que lo apresa, pues el destino que vislumbra para sí y para los demás es siempre desalentador y oscuro. El vaticinio de su propia ceguera es a la vez presagio de pobreza y, en su deseo de salvar a su hermana de una vida de necesidad, la aleja de sí, casándola lejos. Saburo, el alfarero, sospecha rencoroso que Itaro antevió la muerte de su esposa, la señora Fuyu. El quimono de la esposa muerta ondea al viento en el jardín como espíritu protector y como bandera de su resistencia al olvido de la compañera. Desaparecidas las mujeres y desequilibrada la balanza de los afectos, los dos hombres se dedican a alimentar el odio y el temor del uno contra el otro. Su enemistad crece, profunda pero contenida, sin que medien grandes actos de violencia. La de Itaro es también una enemistad hacia sí mismo, que le arrastra por un precipicio de desesperación

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e insomnio. El monje sabio, a quien recurre en busca de auxilio, determina que sea confinado a un pozo donde tendrá que aprender a convivir con la fiera de su propio espíritu desdoblado. El artesano vivirá una experiencia de soledad y silencio que lo redimirá de sí mismo. Aunque existente en otras tradiciones culturales, el mensaje que llega desde Oriente en esta novela remite a los principios de su sabiduría espiritual: el silencio y la meditación reconstruyen al ser humano. A lo largo de la obra, más que a un enredo de acontecimientos desplegados para dar lugar a una trama, asistimos a un suceder de incidentes mínimos y a la descripción de ciertos elementos que permiten al lector recrear un ambiente: la sabiduría de los jardines, los dibujos esquemáticos de los abanicos, la figura de un monje en meditación, los cerezos florecidos, el Bosque de los suicidas, donde se retiran silenciosos aquellos que deciden poner fin a su vida. Un cuadro que tiene su propia respiración y su propio orden: “O Japão era uma ordem generosa” (p. 19). Como decíamos, una novela desconcertante y estimulante que demuestra que Valter Hugo Mãe no es un autor al que podamos aproximarnos con etiquetas. Lo que ayer parecía a simple vista definir su estilo (“la democracia de las minúsculas”) hoy ya no sirve; la preocupación local por el terruño portugués es ahora una apertura a la extensión de nuevos mapas (Islandia, Japón). Sin embargo, puede que el mayor de los desconciertos, a la vez que de los estímulos, provenga de la modulación que la lengua portuguesa alcanza en esta novela al servicio de una prosa poética que, como tal, se libera de reglas: “quem por ali passava ignorava absolutamente o négocio e comprava nada” (p. 98), “Viu nada” (p.113), “Já sentiam nenhuma respiração” (p. 114); se depura como un aforismo: “O amor deixado sozinho é uma condição doente” (p. 132) o como un haiku: “As cerejeiras enviaram suas lágrimas em flor” (p. 208). De aquí resulta que la lectura de la novela de Mãe no

concluye cuando acaba el libro. Como si se tratase de un poemario, cualquier página servirá para un nuevo inicio y fin de la lectura. A pesar de las novedades, la novela comparte con la narrativa precedente del autor un profundo deseo de comprender la esencia de lo humano, su oscuridad y la revelación que lo ilumina. En cada nueva obra, Valter Hugo Mãe parece encaminarse hacia el centro mismo de esa humanidad contradictoria, para indagar en lo oculto, a la búsqueda de esa materia profundamente poética que nos compone a todos.

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MIGUEL ÁNGEL LAMA

Diez mandamientos Ada Salas & Jesús Placencia La Oficina Ediciones, 2016.

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ivir. Confiar. Estar atento. Disfrutar. Aprender. Respirar. Maravillar se. Suspender el juicio. Callar y obrar. Seguir. Estos son los Diez mandamientos que propone este libro de Ada Salas (Cáceres, 1965), escrito por su colaboración con el arquitecto y dibujante Jesús Placencia (Melilla, 1964), con cuyos dibujos dialogan los poemas. Dicho sea ya desde el principio: no se trata de un libro de poemas ilustrado por un artista. Como ocurrió con Ashes to ashes. Catorce poemas a partir de catorce dibujos a partir de T. S. Eliot (Editora Regional de Extremadura, 2010), aquí el primer impulso es el del trazo, la figura o dibujo que sugiere y activa la escritura del poema. Vivir. Confiar. Estar atento. Disfrutar. Aprender. Respirar. Maravillar se. Suspender el juicio. Callar y obrar. Seguir. Es, estrictamente, el índice del libro, los títulos de los poemas que conforman esta relación de infinitivos llenos de significados. Ese índice, así, es el último poema del libro: Vivir / Confiar / Estar atento / Disfrutar / Aprender / Respirar / Maravillar se / Suspender el juicio / Callar y obrar / Seguir. Un poema que a muchos no resultará extraño. Porque les traerá a la memoria enumeraciones poéticas de infinitivos como, ni más ni menos, la de Lope de Vega y su soneto sobre el amor que comienza «Desmayarse, atreverse, estar furioso», el que termina con aquello de «creer que un cielo en un infierno cabe, / dar la vida y el alma a un desengaño; / esto es amor, quien lo probó lo sabe.» Así que esta nueva y moderna propuesta artística de Ada Salas, junto a un dibujante y pintor como Jesús Placencia, se inscribe, como todo lo grande, en la mejor de las tradiciones poéticas. La tradición inmediata de estos Diez mandamientos es, sin embargo, el libro citado arriba, Ashes to ashes, que Jesús y Ada hicieron, como este, al alimón. En aquel no solo estaba el germen de estos Diez mandamientos, sino el sentido de la antología que también vamos a comentar en estas páginas de Suroeste, pues ese «escribir y borrar» está en un poema de Ada de aquel libro y está en la explicación que Jesús Placencia dio en su momento sobre su intención con aquella lectura que hizo de ese «Cenizas a cenizas» que proviene de los Cuatro Cuartetos de Eliot: «Partiendo de dicha traducción hice una serie de dibujos —escribió Placencia—, catorce en total, utilizando exclusivamente la escritura como forma gráfica y permitiéndome como ‘reglas del juego’ sólo escribir y borrar (sin ‘dibujar’), y tomando como temas de los mismos palabras, versos o conceptos que aparecen en la obra de Eliot.» (T. S. Eliot; pero también David Bowie de

fondo). No deja de ser mágico que una poeta dibuje con sus versos en la página en blanco y que un dibujante quiera expresarse escribiendo palabras que representan figuras como una mano, una hoja, espirales, el tocón de un árbol, huellas, un iris, unos pulmones, una caracola..., a partir de la lectura de unos poemas. Como aquel libro, estos Diez mandamientos, es un viaje de ida y de vuelta, del texto a la imagen y de la imagen al texto. Estos Diez mandamientos no prohíben, no advierten ni conminan; si acaso comparten algo con el decálogo clásico es su carácter instructivo. Instruyen en su propuesta de vivir, de confiar, de poner atención, de disfrutar, respirar, maravillarse y, por encima de todas las cosas, de seguir. Son diez propuestas verbalizadas poéticamente en veintidós poemas, dado que algunos, como «Respirar», tienen dos partes; otros como «Vivir», «Confiar», «Callar y obrar» y «Seguir» tienen tres; y uno «Disfrutar», se descompone en cuatro partes. Por otro lado, la medida formalidad de los textos se confirma también en un significativo y expresivo orden de la serie, que comienza en «Vivir» (que empieza así: «Podemos empezar / desde el principio») y concluye con «Seguir», de tal modo que la idea de lo renacido es el último apunte del libro y su última palabra la palabra «resurrección». La correspondencia entre dibujo y texto, ilustración y poema es perfecta. Se apoya en el excelente criterio editorial de presentar los dibujos en página impar, precedida y hermanada pues con una página tintada en negro en la que se ha impreso el título en negativo. El efecto es muy sugerente, como si al abrir el libro por cada uno de esos dibujos la página se iluminase, naciera desde lo negro para impregnar lo blanco. Así, el lector lee el poema posteriormente con la presencia aún de la imagen, como si retuviese la huella del dibujo mientras ya está leyendo el poema. La sensación es de placidez, de equilibrio, natural; y de una cierta levedad que lógicamente aportan los poemas que sugieren otro efecto impresionante, como si el texto surgiese después de una leve pulsación en la página, de la misma manera que la piel modifica su aspecto con una leve presión sobre ella. «Hay siempre algo pequeño que habla con la lengua de los astros», escribe Ada en uno de los textos («Maravillar se», pág. 43). Y así, con su lenguaje poético, Ada ha logrado elevar a otra categoría, sublime, hay que decirlo, estas acciones esenciales de Vivir. Confiar. Estar atento. Disfrutar. Aprender. Respirar. Maravillar se. Suspender el juicio. Callar y obrar. Seguir.

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MIGUEL ÁNGEL LAMA

Escribir y borrar Antología esencial 1994-2016 Ada Salas Antología y prólogo de José Luis Rozas Bravo. Fondo de Cultura Económica, 2016.

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l modo infinitivo poético de los Diez mandamientos se prolonga oportunamente en otro que podríamos considerar el undécimo: «Escribir y borrar», que contiene toda una poética que remite también a una tradición, la horaciana de la limae labor, de la necesidad de tachadura, de volver sobre lo escrito. Y de volver sobre lo escrito se trata cuando hablamos de antologías. Seis de los mandamientos del libro anterior se incluyen —sin imágenes— en la penúltima sección de esta antología esencial elaborada por José Luis Rozas Bravo que recorre la poesía de Ada Salas desde el segundo de sus libros, Variaciones en blanco (1994). Y no solo la poesía, porque la última de las partes de este florilegio es una antología de textos acerca de la escritura publicados por la autora en diferentes revistas y en su libro El margen. El error. La tachadura (2010), que fue Premio de Ensayo Literario «Fernando T. Pérez González» de la Diputación Provincial de Badajoz y de la —en su momento— Consejería de Cultura de la Junta de Extremadura. Cuando se publicó No duerme el animal, una reedición conjunta de la obra poética de Ada Salas desde 1987 hasta 2003, o sea, de sus cuatro primeros libros, la autora cacereña sometió a Arte y memoria del inocente, su opera prima editada en 1988, a una revisión importante —mayor que la que ella misma declaraba en la «Nota» previa— que eliminó ocho poemas de la primera edición. Ahora, aquel libro desaparece de esta antología, con unas palabras justificativas de José Luis Rozas en la primera nota de su introducción: «Hemos prescindido del poemario Arte y memoria del inocente […], pero no queremos dejar de señalar que en este libro, escrito durante sus años universitarios, y a pesar de ser una obra primeriza, están ya presentes algunas de las claves estilísticas posteriores de la autora» (pág. 9). La responsabilidad es del antólogo; pero el hecho editorial de reunir una importante cantidad de textos de una trayectoria poética de treinta años, junto a la estrecha comunicación entre el compilador y la autora, nos sugiere la cuestión de cómo es actualmente la mirada de ésta sobre su propia obra. En cierto modo, lo confirma la presencia de Ada Salas en la antología en forma de «Epílogo» —con el título de «Sin sentido»— expreso para esta edición y que se cierra con una nota de agradecimiento de la escritora que ha insistido en que «Escribir es una manera de sumergirse en el intento de dar una respuesta: de darnos una respuesta. También a nuestra continua incomprensión de nosotros mismos» y no se ha olvidado de que también la escritura es «Un modo de protesta ante el aplastante acallamiento que uno mismo se impone, que todos nos imponen» (pág. 203). «El rastro fulgurante de lo que fuera asombro» —de dos versos de Esto no es el silencio— es el título elegido por José Luis Rozas

Bravo para sus páginas introductorias, que estructura en tres partes: «Brechas. Huellas. Silencios», que ahonda en la caracterización de la poética de Ada Salas, «De Variaciones en blanco a Limbo y otros poemas », que nos traza el itinerario entre los dos puntos que representan esos dos títulos y La sed (1997), Lugar de la derrota (2003) y Esto no es el silencio (2008), como estaciones intermedias; y la coda «Escribir y borrar», que recuerda la certeza futura de seguir indagando, buscando y hallando, y buscar de nuevo, y escribir y borrar, y escribir y borrar de una obra en marcha de las más interesantes de la poesía española contemporánea. Para Rozas, hay «en cada uno de los libros de Ada Salas una reveladora unidad, no tectónica, guilleniana, sino debida a la presencia en ellos de una respiración o inspiración identificables, enraizadas en diferentes momentos de predisposición a la escritura, a manera de etapas sucesivas en el devenir de un proceso biográfico y creativo. Cada nuevo poemario parece recoger el fruto de una necesidad de maduración, como si su autora hubiera esperado pacientemente a que las cosas del mundo tuvieran algo que decir, tuvieran que decirse» (pág. 13); de tal modo que se hace ardua la tarea de selección del antólogo, que ha de operar contra la unidad de sentido que es el libro en cada una de las entregas de Salas. A pesar de esto, y de los muchos textos que se sacrifican, de los que se prescinde, la lectura de la obra poética de Ada Salas que propone en Escribir y borrar José Luis Rozas es muy reveladora de las claves principales de su poesía y está muy cuidada, muy pensada y muy cohesionada. Por ejemplo, se parte del principio, del primer poema de Variaciones en blanco y se cierra con el último poema «Seguir» de Diez mandamientos, como si fuesen marcas de principio y fin de un recorrido real y completo por toda la obra de la autora. O se facilita al lector al que se ofrece la oportunidad de leer un ensayo de Ada Salas —«Lo no reconocible que vive en lo real», publicado en Cuadernos hispanoamericanos en 2009— la lectura del poema al que remite. Son detalles del rigor apreciable en esta antología. Fondo de Cultura Económica de España ha publicado una excelente edición enmarcada en una colección de antologías esenciales en la que ya hay otros títulos como En un principio era el hambre, de Chantal Maillard, o Canto un pájaro, de Vicente Gallego. Pero en el caso de Ada Salas se nos antoja la esencialidad como algo más sustancial y notable que se refuerza por la propia naturaleza de la palabra poética de la autora extremeña. De ella es una de las citas que encabezan el prólogo: «No escribo para cantar, sino para indagar: plomada, sonda, rama de zahorí. Notas de campo de esta indagación: el texto» y de ella es la convicción sobre la identificación de los términos de un mandamiento más: «Escribir y leer».

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ANTONIO RIVERO MACHINA

La poesía de Gerardo Diego Estudio bibliográfico José Luis Bernal Salgado Fundación Gerardo Diego, 2016.

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o se me ocurre un ejemplo mejor que la obra poética de Gerardo Diego para ilustrar la necesidad y oportunidad de trabajos bibliográficos como el desarrollado por el profesor José Luis Bernal en el volumen que aquí reseñamos. Ejemplo de ello resultan, ciertamente, tanto la trayectoria poética del autor de Alondra de verdad como la labor minuciosa y rigurosa desempeñada en este trabajo bibliográfico por su responsable. El caso de Diego no es ni raro ni excepcional, pero sí arquetípico: pocos poetas tuvieron tan clara –y desde la más temprana juventud, como el profesor Bernal subraya en su estudio– la amplitud formal y de horizontes en su quehacer lírico, la versatilidad del mensaje poético, en suma. La célebre «polimusía» dieguina se constituyó así, en sí misma, en una poética cerrada y congruente desde su diversidad técnica y su coherencia personal. Nos encontramos, en conclusión, ante una «obra varia y múltiple, en fin, cuya trabazón alcanza conexiones insospechadas que hemos tratado de poner de manifiesto en nuestro estudio –libro a libro– de la obra dieguina, a fin de ofrecer la necesaria visión poliédrica y múltiple del poeta» (p. 12), según resume en sus palabras introductorias Bernal Salgado. Es por esta razón por la que, según decíamos al comienzo, pocas trayectorias poéticas se muestran tan agradecidas ante un análisis bibliográfico concienzudo, libro a libro, variante a variante, edición a edición, como el presentado en este volumen editado para la Fundación Gerardo Diego. Con ello, con esta suerte de vademécum dieguino al fin completado, cualquier estudio sincrónico o diacrónico de cualquier elemento de la obra poética del autor de Manual de espumas habrá de recurrir sin dudarlo a la tarea de contextualización y cotejo desarrollada en estas páginas por Bernal Salgado. Efectivamente, libro a libro, como decimos, se ordena cronológicamente un conjunto de más de sesenta libros de poemas, incluidas las antologías. Junto a su oportunidad –el primer mérito de un investigador es saber elegir su objeto de estudio, saber atisbar una necesidad real que subsanar dentro de su ciencia– y a su minuciosidad, el tercer mérito de La poesía de Gerardo Diego. Estudio bibliográfico es su amenidad. Cabe decir que, no por último, deja de ser este un gran mérito, toda vez que el género bibliográfico no se presta, a priori, a grandes amenidades. Sin embargo, el profesor Bernal lograr estructurar bajo su prosa ensayística un relato en el que, más allá de catalogarnos libro a libro la trayectoria dieguina, nos ofrece un estudio completo –y poliédrico como la misma poesía de Diego– de su devenir lírico. Desde lo estrictamente bibliográfico -dataciones, pies de imprenta, colofones, tiradas, entintados, ilustraciones, distribuciones, reimpresiones- se construye un relato puramente literario, en esa íntima e intrincada trabazón de la que hablaba Bernal Salgado en su introducción. De esta manera, con breves capítulos consagrados a cada

uno de los libros poéticos de Diego, se va desvelando la reciprocidad entre la materialidad de cada poemario y su más encarnado mensaje. Ordenados, como ya hemos apuntado, de manera cronológica, de cada libro se nos anota sus datos editoriales: desde la información básica de su pie de imprenta a las más azarosas rarezas de impresión. Junto a la edición original, se señalan asimismo posteriores reediciones o –algo muy frecuente en Diego– ulteriores reelaboraciones e integraciones bajo nuevos títulos o volúmenes. A ello se suman también las anticipaciones parciales de algunos poemas en otros libros o revistas, sin olvidar sus consecuentes posibles variantes textuales. Ahora bien, ningún capítulo deja de entreverar entre todos estos datos, como decimos, el pertinente análisis literario de su contenido. Sin esto último, no en vano, el trabajo de Bernal Salgado perdería la hondura de la que goza, y abandonaría ese relato ensayístico desde el que sabe administrar la meticulosidad de sus pesquisas. No convendría dejar de señalar en esta recensión, igualmente, la hermosa factura bibliográfica del volumen en sí mismo y, particularmente, el catálogo final en el que se reúnen todas las portadas originales, puntualmente reproducidas (pp. 209-227). Una recopilación solo posible gracias al propio fondo documental de la misma Fundación Gerardo Diego que acoge y edita este volumen de Bernal Salgado. Se completa tan rico repertorio, a la postre, con varios índices: de poemas, de obras, onomástico y de publicaciones periódicas. La perspectiva de la trayectoria lírica del poeta de Cementerio civil que nos ofrece aquí Bernal Salgado es, en suma, compleja, completa y poliédrica. Un retrato certero, en consecuencia, del legado poético dieguino. No en vano, el acercamiento bibliográfico se convierte, en este caso, en la mejor estrategia posible. Un retrato fiel del poeta santanderino y una reivindicación justa –siempre desde lo tangible– de su testimonio lírico, ya que, como recuerda el responsable de este ensayo bibliográfico, «Diego tuvo que sufrir una sistemática desconfianza de cierta crítica que veía en su polimusía o diversidad de maneras una limitación creativa cuando no una falta de autenticidad lírica. Y todo ello pese a que el poeta, que desde los años veinte nos ha regalado un compendio de reflexiones líricas excelentes, había proclamado siempre con claridad y sinceridad a raudales esa manera singular de entender la poesía y el quehacer del poeta» (p. 13). No nos cabe duda de que es el estudio riguroso y minucioso de todo este corpus dieguino –su contextualización y análisis como compendio de voces y posturas– el que mejor revela la inexactitud de aquellas afirmaciones que quieren negar a Diego un rumbo plenamente consciente en su trayectoria lírica. Solo a través de la suma total de sus «librucos, libritos y librotes de todos los tamaños imaginables» se puede percibir, como el mismo Diego anotó, la dimensión y coherencia de su legado poético. Este volumen nos muestra cómo hacerlo.

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ANTONIO JIMÉNEZ MORATO

El enfermero de Lenin Valentín Roma Periférica, 2017.

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ás de una vez, en algún texto o en mesas redondas y encuentros similares, el escritor y editor Julián Rodríguez ha expresado su deseo porque se hubiera desarrollado en España una literatura de hijos de inmigrantes, escrita por una primera generación de españoles nativos que han crecido en una lengua distinta de la de sus padres pero que gira en torno a la herencia cultural de su familia más que a la del país donde han nacido. Pero Rodríguez no ha manifestado sólo ese deseo, sino también la perplejidad porque aún no se haya producido esa literatura como ha sucedido en otras culturas, ya sea la anglosajona, francesa o alemana, donde ha surgido una literatura formada por varios escritores que contarían con esas características comunes de ser los primeros miembros de su familia educados en esa lengua del país donde han crecido y que en muchos casos no es la misma de su crianza. Es lícito preguntarse por qué la literatura española, en general su cultura, no ha producido a esos escritores, o de haberlo hecho son casi invisibles para medios y crítica. Acaso en entornos como el de la música popular, pienso sobre todo en el hip hop y ámbitos cercanos sí que se ha formado esa tipología de creador, pero no así en la literatura. Esa sería pues la primera de las preguntas que se hace este texto: ¿por qué no se ha dado esa literatura de la inmigración asimilada? Pero es que además, y esto es curioso, la cultura letrada española, no sólo la literatura, sino todo el entorno intelectual que usa la palabra impresa como vehículo, se ha mostrado de modo reiterado impermeable a las producciones que no pertenecieran al ámbito burgués. Incluso cuando por ideología explícita o tema los textos se aproximaban a una mirada más revolucionaria, que en el caso español ha sido prácticamente siempre comunista con algunas muestras anarquistas, han sido producidos en muchos casos por miembros disidentes o díscolos de esa burguesía que no ha abandonado el dominio de la cultura letrada. Acaso sea Semprún el ejemplo más conocido, pero no el único, de esta singularidad española. Podría, quizás, buscarse una razón industrial: la mayoría, por no decir la casi totalidad de los editores, propietarios de las editoriales o asalariados, pertenecen a esa clase burguesa, y de algún modo han proyectado su visión del mundo, su lenguaje y sus obsesiones como las exclusivas de la literatura patria. Dicho lo mismo de otro modo: en España hay

que pertenecer ya al ámbito letrado para poder desenvolverse en él sin renuncias. Y eso requiere que aquellos que pretenden entrar en ese círculo sin haber crecido en él deban, necesariamente, desclasarse, para poder ser aceptados en su interior. Muchas veces los que adquieren carta de naturalización en esa élite pasan a convertirse en celosos custodios de la pureza de la misma, y en avezados vigilantes de los que pretenden incorporarse a ella. Pareciera que de algún modo hubiera que cobrarse los esfuerzos que se hicieron para convertirse en uno de ellos, y acaso ser el embudo de entrada a la misma sea un modo lógico de hacerlo. Por fortuna, en otros casos los que ya son bienvenidos en ese acotado mundo no se sienten cómodos en él y no olvidan sus orígenes, por lo que se lanzan a la escritura de ficciones sobre ese desclasamiento, que en muchos casos se encuentran entre la mejor literatura que se está produciendo hoy en España. Uno de esos autores es Julián Rodríguez, a través, sobre todo, de su ciclo Piezas de resistencia, formado a día de hoy por los libros Unas vacaciones en la miseria de los demás y Cultivos a la espera de anunciadas, pero aún no publicadas, nuevas entregas. Sí, han leído bien, se trata de la misma persona que reclamaba esa literatura escrita por españoles de primera generación en correlato con lo sucedido en otras literaturas europeas. Y, además, es el editor del libro que nos ocupa: El enfermero de Lenin, el segundo libro de Valentín Roma que su autor prefiere considerar como su primera novela debido a las singularidades de un libro tan inquieto y socavador como era Rostros. Digo que hay una paradoja en que sea la editorial de Rodríguez la que ha publicado a Roma porque esta novela se emparienta con las de otro autor indispensable para entender la literatura hoy: Javier Pérez Andújar. Se emparienta porque se trata de autores criados por emigrantes, una emigración distinta, la interior, que tiene la singularidad de haber escogido como destino una región más industrializada que la de origen en la que, además, hay una lengua propia. Esa lengua, que es el catalán, defendido sobre todo con intereses económicos por esa burguesía que abrazó en independentismo como un medio de gestionar los beneficios económicos de la región sin tener que compartirlos con el gobierno central, es la lengua de la intelectualidad burguesa a la que el autor debe incorporarse para

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ser un autor publicado. Por fortuna, también en Cataluña, ha habido siempre elementos díscolos frente a ese orden de cosas. Históricamente el ejemplo más claro fue Juan Marsé, y más tarde Vázquez Montalbán o Eduardo Mendoza. Son autores que han complicado siempre el uso del adjetivo “catalana” a la hora de hablar de una literatura. ¿Se refiere a la escrita en catalán o a la producida en cualquiera de las dos lenguas que son oficiales en la región? Una interesante vuelta de tuerca es la que provee la producción de autores como Pérez Andújar o Roma, que es la escrita en lengua española por los hijos de los inmigrantes que llegaron a Cataluña en pleno desarrollismo. Es, pues, para decirlo más claro, la literatura de los que no eligieron la lengua de la élite económica e intelectual de la región, el catalán, sino la de sus familias de origen, el español. Que, además, sus libros hayan tocado de modo reincidente ese asunto: su herencia charnega y su lateralidad dentro de la cultura catalana, los hace doblemente interesantes. Sobre todo porque, en sus circunstancias personales, están perfectamente integrados en la vida social y cultural de Cataluña. Pérez Andújar ha sido durante años el cronista de las sesiones del parlamento catalán para El País, Valentín Roma ha dirigido diversas instituciones culturales ubicadas en Barcelona, hitos de la cultura oficial catalana, y además es profesor universitario. No se trata de inadaptados que usen la literatura como escenario de sus reivindicaciones, para nada, es mucho más sutil y por eso mucho más potente: son escritores que retratan y narran la vida de los que han sido preteridos o intencionadamente olvidados por ese establishment. Y, en ese sentido, son, de modo sesgado, esa generación de hijo de inmigrantes que pedía Rodríguez, pero, y por eso resultan doblemente complejos, son los que han elegido escribir no en la lengua de acogida, sino en la de origen. Que, como ya he dicho antes, sus libros se encuentren entre lo mejor que se puede leer hoy de la literatura española (los de los tres: Pérez Andújar, Roma y Rodríguez) no creo que sea algo casual o fortuito. En el caso de El enfermero de Lenin la narración se vehicula entre dos personajes: Lenin y su enfermero reparto alucinado e inexplicable para el narrador transformado en “el enfermero” de su padre, que es Lenin en su delirio provocado por la enfermedad y en torno a la cual se construye una narración que trenza reflexiones estéticas, políticas e históricas con los hechos narrados con una sencillez apabullante. Si por algo habría que felicitar a Roma es por haber encontrado un mecanismo idóneo para tratar una cantidad enorme de temas: las relaciones paternofiliales, la enfermedad, el desclasamiento, la teoría política, la estética e, incluso, la idea misma de la representación. Las conversaciones con el padre devenido en Lenin, el modo en que en la clínica le siguen el juego hasta que un evento desgraciado precipita un cambio en las relaciones (por cierto, no es eso lo que sucede en toda la Segunda parte del Quijote cuando todo el mundo participa en la fantasía quijotesca), e incluso los momentos en que el hijo se relaciona con los habitantes de ese pueblo, donde saben demasiado de él y al mismo tiempo demasiado poco, van hilando una novela iluminadora sobre la sociedad que nos ha tocado vivir. Una narración que desenmascara muchos clichés y lugares comunes desde dentro, al hacer más evidentes las renuncias y extorsiones que el capitalismo salvaje enmascarado

de monarquía constitucional ha impuesto en España. Y, por encima de todo ello, como en la escritura de Julián Rodríguez o la de Javier Pérez Andújar, lo más pasmoso es la naturalidad del estilo de Roma, donde todo cabe, la referencia filosófica de alto nivel, el matiz estético y la broma chusca, siempre con oraciones engañosamente sencillas, con un vocabulario tan ajustado que parece espontáneo cuando en realidad es fruto de un meticuloso trabajo literario. Valentín Roma insistirá en que esta es su primera novela, lo que puede ser cierto, pero va a ser muy complicado creer eso, porque revela una sabiduría poco común en el arte de construir la realidad a través de las ficciones.

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MIGUEL FILIPE MOCHILA

Contra Mim Falo Vasco Gato Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2016.

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m recente entrevista conduzida pelo editor e poeta Diogo Vaz Pinto, Vasco Gato referia-se à poesia como “o grande adversário da complacência”, obstinada em reincidir no “desafio” e na “luta”. Essa atitude, aliás plasmada no título desta reunião da sua obra poética, Contra Mim Falo, insinua-se numa inusitada dissonância autoinduzida, dir-se-ia até uma certa errância, que a leitura conjunta da mesma testemunha. São doze os títulos aqui reunidos, sob a chancela da Plural, colecção criada por Vasco Graça Moura na Imprensa Nacional-Casa da Moeda em 1982 e agora rediviva, que revelam um percurso iniciado em 2000, quando o autor tinha apenas 22 anos. A leitura em contínuo do volume revela quer uma acentuada maturação, numa progressiva desmarcação da juvenília mitigada por um certo enquinamento herbertiano, quer uma inquietação que se revela na aparente acidentalidade do percurso, polvilhado por diversos projectos editoriais e visitando formas várias. Vasco Gato debate-se portanto, e em permanência, com a sua própria voz, embora sejam rastreáveis elementos que perpassam toda a sua produção. Assim uma atenção a uma vocação modernista, em sentido lato, assente na compreensão da poesia como força resistiva em face de uma modernidade civilizacional e ao arrepio do discurso enumerativo em que certa pós-modernidade ancorou, de que A Fábrica é exemplo paradigmático, mas que se adivinhava já numa apreensão de um certo cratilismo constitutivo da poesia na produção mais jovem, na defesa de um discurso especificamente poético (“uma nova língua nos fará dizer / o que a poeira da nossa boca adiada / soterrou já para lá da mão possível / onde cinzentos abandonamos a flor”), eivado de ressonâncias herbertianas. Assim também a predilecção pela imagem e pela metáfora, escorada por um descritivismo que se coloca sob o pano fundo de um narrativismo que progressivamente se vai acentuando na sua obra. O traço mais saliente da sua obra é, no entanto, a propensão metapoética que a mesma sempre testemunha, a qual reivindica essa preocupação pela função e essência da poesia, que invariavelmente tendem para a perscrutação de uma transcendência propulsada pela materialidade banal dos factos imanentes. Não é pois ingénua a epígrafe citada de Roberto Juarroz, seleccionada pelo autor para Um Mover de Mão (“cualquier cosa puede ser

otra / las manos son todo lo que son / y también algo más”), na demanda da revelação do “coração das coisas”, da “aparição da flor original”, como quem procurasse achar nas suas diversas desformalizações a forma originária, “palavras / com que se extingue a pele do tempo”. Por conseguinte, estão estes versos impregnados de uma retórica da atenção (“A penumbra cai em flocos / sobre a respiração atenta do dia”; “A paisagem move-se no poder / da observação”), procurando um modo próprio de dizer o mundo das imanências e de desvendar nele uma gramática da realidade, tão totalizadora como os grandes projectos da literatura modernista, de ecos românticos, como quem forçasse sistematicamente a língua até haver nela uma metamorfose que a levasse a dizer o que não quer, segundo a lição de Artaud, dizendo nisso o que importa. Esta espécie de hiperconsciência dá-se como procura, sem se resolver num banal tratado de costumes poéticos, é um discurso in fieri, desiderativo (“se ao menos eu sentisse totalmente”, “se me fosse permitida a amplitude /… / e eu não mais precisasse de trabalhar a atenção, / assim descalço sobre a realidade”), que propugna esse “agudíssimo sentido dos detalhes” como figura antropológica por definição: “o humano / não é senão um contágio da paisagem / uma tarefa da atenção / repara”. Há pois uma transparência sempre almejada nestes poemas tão fortemente centrados na sua própria matéria, caucionando a analogia derridiana do poema como um ouriço que, mesmo que enrolando-se sobre si próprio, encerrando-se numa massa inexpugnável, tem sempre os espinhos apontados para fora: “Entendo que cada coisa é um caminho para fora / de si mesma. Que são intermináveis / as coisas sucessivas.” Neste dobrar-se há pois um desdobramento, que veicula a simultaneidade do literal e do metafórico, conferindo aos ditos instrumentos um autotelismo estético que não esgota no entanto a referencialidade do discurso poético, que leva a língua a dizer a um tempo a realidade e o seu excesso: “A minha alegria é um aroma de tangerina nos dedos, / comer aos gomos a paisagem / e limpar depois / a boca / à manga do espanto.” O que se revela é uma espécie de unidade primordial, “o traço comum”: “quero crer que tudo se faz de um só ventre, que tudo ocupa o tempo / sem diferença,

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que uma só voz pronuncia todas as palavras desde sempre. /…/ que se disser «nasci da ideia de um lírio» os meus pés firmarão / raízes nos rios e rebolarei a eternidade no leito dos campos, / internamente, / como se não me fosse estranha a vida da seiva”. Esta procura de uma transversalidade radica sempre no comum e não na cidade, para empregar a formulação dicotómica de Jean-Luc Nancy, recordando, com Deleuze, que a arte é, pela sua própria subsistência, resistência. Este traço torna-se cada vez mais nítido à medida que avançamos na leitura do volume e descobrimos a linguagem tacteante, a procura de uma ordenação (“A nossa situação é, no meio das avalanches, tentarmos um paisagismo”) que se tece pela própria textura da língua em permanente redefinição contra a fetidez do político - “Isto não é higiénico. Isto é para tentativas e escândalos. Isto é para sair daqui muito confuso”. Trata-se da já indicada propensão resistiva da arte poética em face do curso do mundo, na demanda de uma gramática do desequilíbrio, tal como definida por Deleuze, colocando a língua poética ao arrepio do discurso vigente: “O mundo reserva-nos uma língua que se usa por obstinação. Instala-se e é absoluta prioridade: vivemos para frequentar palavras lacónicas. Quereríamos deixar escrito um cântico, uma fábula, mas não – o nosso legado é um fragmento repetido na noite, corpo escaleno.” A partir de Napule, essa atenção a uma “Lacónica realidade”, no ensejo de transcendê-la, torna-se obsidiante, recordando que “Os lugares inóspitos, sobretudo / os nossos, quando abordados, são assim: / espezinhados, capazes de nos prometer / a noite reveladora”. É aqui que a poesia de Vasco Gato, na senda aliás do perfil poético que a leitura das suas versões de várias dezenas de poetas em Lacre (Língua Morta, 2016 e 2017) testemunha, revela a sua força maior, desenhando sempre esse movimento elíptico em torno de uma materialidade que surge à transparência, em vista de uma universalidade e de uma atemporalidade prementes, promovendo um salto significativo que indaga no concreto a sua transcendência: “as unhas cortadas / do puto // pequenas vírgulas / inquietas / no tampo da mesa // com que haverei / finalmente / de gramaticar o lixo”. É justamente à medida que a sua atenção se prende cada vez mais aos factos quotidianos e mesmo civilizacionais que a poesia de Vasco Gato se revela mais libertadora de um sentido de ressonâncias cósmicas, em sucessivos ressaltos que uma versificação mais sintética, menos grandiloquente, agudiza. Em A Fábrica essa contenção mostra-se particularmente capaz de apontar à visada transcendência, travejada sempre de um discurso analógico que é a base poética da sua visão: “Como um enxame, / o zumbido dos televisores. / Será assim / a noite inteira. / A luz difundida por esses ecrãs, / se somada, / daria para derreter milhares de corpos. / Mas este é o pior dos holocaustos: / sem grilhões, / sem divisas, / sem valas comuns. / Apenas o leito quotidiano. E retinas / para sempre escancaradas / na hipnose do merecido descanso.” Para este efeito, em muito contribui uma atenção aos afectos, não confessional ou egotista, inscrevendo-se no circunstancial para despoletar a partir dele uma visão simultaneamente epocal e universal. Fera Oculta concretiza este desígnio com particular eficácia, partindo do espectro do casuístico – Portugal como cenário de uma crise, sinédoque de uma contemporaneidade asséptica e disfórica – para reinventar um sentido para uma

existência a vir – o filho esperado – para o sentido abrangente do humano que a poesia pode, na já referida simultaneidade do referencial e do simbólico que a mesma promove, deslindar: “Durante essa tua natação de fera oculta / há um papiro que se desdobra na minha boca / e nunca o futuro teve o sabor / de palavras tão sobejamente pronunciadas / família rapaz umbigo / palavras com que se poderia redigir / tão pouca coisa / se não fosse a reinvenção da tua chegada / inscrita no mundo como pedra preciosa”. São versos poderosos, no modo como entroncam nesse sistemático vaivém entre o concreto e aquilo que o excede, entre o particular e o universal, com um despojamento e mesmo uma desfaçatez vocabular, uma oralidade patente, que nunca se esgotam no comezinho, pois visam sempre o resgate de um sentido global: “Perdoa a falta de graça / o tom melancólico a guerra / mas é que vivo numa época / que como muitas antes dela / repetiu os subsídios ao nojo / bateu o sangue em castelo / para se levar ao forno da ambição / deu uma sova às pequenas respirações / - sim, intersticiais, subtis, difíceis – / sem as quais um corpo é apenas / um estorvo à sua própria morte / percebes isso?” É a própria luta em que a poesia de Vasco Gato sempre se encontra entre a condição limitante do aqui e do agora e o ensejo de uma relação umbilical com o universo na sua fluência mais imediata (não-mediada) que aqui se revela na sua mais alta qualidade. E assim se faz da língua poética crítica do real (“Que não te enganem / os que compram as horas por atacado / para do teu suor extraírem / a bandeira de um país que nunca será o da atenção / mas sempre e sempre / o território homeopático da extinção / em que os troféus são / joelhos vergados à condição de cera / para os soalhos do progresso / cujo verdadeiro nome é / despovoamento // Vender-te-ão o conforto/ a perseverança o brio / como se tivéssemos por fito / a acumulação do tempo / sem o fruirmos boca a boca / desesperadamente”), sem cedências à univocidade da crónica dos costumes em que a poesia dita social amiúde engasga, tendo sempre em vista “o sopro pleno / de um dia sem rodeios / um baptismo mais vasto e súbito”. Vasco Gato encontra enfim o poder sintético que a sua obra sempre procurou, na atenção e na absoluta não retenção no real histórico, no equilíbrio entre o privado e o comum: “Que se foda a época / digo-te já / que se foda a sépia dos futuros / eu quero aparecer no dia / do teu nascimento / desarmado como uma árvore / sem outra missão que não / amparar-te o susto / e dizer-te baixinho / bem-vindo ao continente dos frágeis / podes parar de nadar”. Estes versos são chegados, enfim, à matéria primordial do seu olhar, à relação da pessoa com o mundo e à poesia como acesso privilegiado a dita relação.

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Sem título

O todo e as partes

Sem título

Três unhas negras

O sítio das coisas

A raiz da sombra

O espírito das nuvens

O destino das formas

What?

JORGE MARTINS 2010 / 2011, Grafito s/ papel, 100 x 70 cm Excepto O espírito das nuvens : 110 x 75 cm

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SUROESTE es una revista anual con vocación de diálogo entre las diferentes literaturas ibéricas. Publica textos inéditos de autores que escriben en las diversas lenguas peninsulares, así como un escaparate de libros en el que los críticos de la publicación recomiendan algunas de sus lecturas favoritas del año anterior. La Península Ibérica es un mosaico de culturas, un babel de lenguas de una extraordinaria riqueza. Por eso SUROESTE ofrece preferentemente los textos en su lengua original y sin traducción, pidiendo al lector que haga el pequeño esfuerzo de leer en las lenguas que comparten el espacio ibérico como un signo inequívoco de acercamiento al otro y su cultura. Así, a través de esa labor de aproximación, podremos conocer mejor y entender la diversidad cultural del territorio que habitamos, un puzzle en el que cada una de sus piezas, grande o pequeña, cumple un papel esencial e insustituible. A. S. D.

El séptimo número de SUROESTE, REVISTA DE LITERATURAS IBÉRICAS ,

se imprimió en Badajoz en mayo

SE

INCLUYEN EN ESTE NÚMERO

DE

S UROESTE

de dos mil diecisiete.

DOS ENCARTES

DE LOS ARTISTAS Y

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F IREHN H ATE M AITE C AJARAVILLE, G ISLE F RØYSLAND

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