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Ana Rodolfo . Carlos Muralhas . Catarina Correia Sampaio . Gonรงalo Valverde . Joรฃo Vasco . Luis Rocha . Miguel Carriรงo . Miguel Rodrigues . Rita Castro
n.1
t Propriedade Movimento de Expressão Fotográfica Diretor Luís Rocha Editorial Miguel Rodrigues, José Oliveira Colaboradores Ana Rodolfo, Carlos Muralhas, Catarina Correia Sampaio, Gonçalo Valverde, João Vasco, Luis Rocha, Miguel Carriço , Miguel Rodrigues, Rita Castro Grafismo Joana Tubal Redação e Administração SIGC, Palácio de Laguares, R. Prof. Sousa da Câmara, 156, 1070 Campolide, Lisboa Contactos geral@mef.pt www.mef.pt 962527453
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ÍNDICE 17
Ana Rodolfo Cultura da Bicicleta
43
Carlos Muralhas Desertos O.
67
Catarina Correia de Sampaio Bairro Alto
79
Gonçalo Valverde Infoinexclusão
97
João Vasco Crescer com bonecas para ser uma boneca apaixonada
129
Luis Rocha No Decorrer De Um Acontecimento
165
Miguel Carriço Podes vir prá Rua?
175
Miguel Rodrigues Cinco Retratos em Algés
183
Rita Castro Quando se anda a pé por LISBOA, olhar é apenas um ponto de partida
EDITORIAL Assistimos hoje ao nascimento de um novo projeto editorial do Movimento de Expressão Fotográfica, a Revista TEMA. Este novo desafio vem no seguimento do actual posicionamento do MEF em relação à fotografia enquanto documento e surge na continuidade das questões da identidade frequentemente trabalhadas nas diversas propostas formativas e expositivas que o MEF tem dinamizado nestes últimos anos. O MEF pretende através desta iniciativa poder contribuir para a vertente autoral e antropológica da Fotografia Documental com particular enfoque na relação entre os indivíduos e os grupos sociais. Ao pretendermos que esta proposta editorial seja reflexo de um trabalho documental prolongado no tempo, procuraremos desenvolver, como tema de fundo, uma abordagem das alterações que Portugal tem assimilado nestes últimos anos. As mudanças da cultura portuguesa deram assim origem ao conceito base de trabalho da Revista TEMA - Cultura Portuguesa: Percepções e Documentos. Luís Rocha
INTRODUÇÃO Tema é um levantamento de mudanças na cultura. É essa a ideia inicial. Propor um olhar para a cultura portuguesa e, ao mesmo tempo, confrontá-lo. Fazer perguntas.O que é a mudança? O que é a cultura? O que é português? Percebe-se rapidamente que o tema não é fácil. Logo porque a fotografia, pese embora a sua história afirmativa, positiva, deixa sempre mais perguntas nas respostas do que havia nas perguntas. Ao isolar e fixar uma evidência, ou algo que julgamos evidente, e ao olhá-lo, depois, fora do tempo a que pertencem, a fotografia muda. Quando comparamos a imagem com o objecto, vemos que não são a mesma coisa. Objecto e imagem evoluem em sentidos diferentes, com leituras e vivências diferentes e o que, na captura da imagem, era um acto de afirmação de um facto torna-se quase logo uma forma de questionar a afirmação. Talvez por isso, estes trabalhos oscilem entre observações do presente e observações da memória, o que é novo e o que já não é. Esperamos que a noção de cultura portuguesa e as mudanças que esta atravessou e atravessa surjam, também, não de qualquer modelo do que foi ou do que é a cultura – fará sentido, hoje em dia, definir cultura portuguesa sem cair em esquemas de publicidade e propaganda? - mas da experiência visual e vivêncial das pessoas cujo trabalho integra este número. A partir daqui, começa a desenhar-se uma ideia que surge com tanta clareza como a diferença entre cada um e todos os trabalhos: a evidência de que a cultura é um produto que cada um de nós cultiva na forma como observa, como se desloca; que não há uma cultura portuguesa nesse sentido do galo de barcelos ou do fado ou do benfica. Tal não faz sentido, sequer, numa aldeia global,numa corrente de informação que não tem origem nem destino evidentes, que não tem contorno nem forma aparente. Que, para usar um chavão, tem na mudança o seu único ponto estável.
ANA RODOLFO
Começamos por notar esta evidência da escolha, de uma individuação cada vez maior no meio de uma massa de informação, no meio que escolhemos para nos deslocar. À presença cada vez maior do automóvel, ao trânsito e à poluição, vem agora juntar-se uma outra forma de nos deslocarmos. A bicicleta tem conquistado o seu espaço e é cada vez mais notada nas cidades – já o seria nas aldeias. O trabalho de Ana Rodolfo fala-nos disso mesmo, da cultura da bicicleta. É um convite a participar na rotina de um conjunto de ciclistas, na forma como estes, nos percursos que fazem, vivem o seu dia a dia através da bicicleta. Mais, é um convite feito aos próprios ciclistas para que nos levem nessa rotina: as imagens apresentadas neste trabalho são feitas pelos próprios, a pedido da autora. Não será uma reportagem sobre a cultura da bicicleta, portanto, mas antes uma recolha de testemunhos pessoais, vivenciais. De um cultivo. Esta ideia de cultivo é importante e é um factor decisivo numa noção contemporânea de cultura. E é um factor decisivo pois permite distinguir o indivíduo como alguém que escolhe e que define os seus hábitos no meio de uma massa, de um fluxo constante de matéria e de informação aparentemente informe. É preciso uma tomada de consciência para fazer sentido dessa realidade. É preciso um testemunho, mais não seja, de si para si, para que não nos sintamos sugados por esse fluxo, já não como autómatos – talvez a imagem já não seja essa – mas como elementos de informação num circuito qualquer, ou aqueles espelhos dos satélites, fazendo circular a informação sem pessoalidade. Andar de bicicleta é também, para além de tudo o mais, uma escolha pela não passividade, não somos, como quando seguimos sentados no automóvel, sujeitos passivos no nosso percurso, somos activos; mais do que ser apenas uma origem e um destino, somos um percurso, também.
Da fruição de si como sujeito activo num percurso à fruição do espaço que se atravessa vai um pequeno passo. É curioso que Carlos Muralhas seja um dos ciclistas presentes no trabalho de Ana Rodolfo. Apresenta-nos um conjunto de rotundas com planos tão iguais, com a mesma luz, a mesma distância ao objecto, o mesmo enquadramento, que parecem filmados por câmaras de segurança pré-instaladas. Imaginamos uma sala da segurança onde estas rotundas são monitorizadas constantemente para que o seu centro não seja ocupado: para que não entre ninguém, um pouco à imagem das instalações nos museus em que não se pode tocar. Pensamos numa visualidade quase absurda, no relvado regado duas vezes ao dia, na estátua da sereia com um mármore mais branco que o de qualquer rei, na imagem perfeita e na proibição da participação de todos os outros sentidos. Falámos há pouco do facto de Carlos Muralhas ser um ciclista. Fica a questão: este trabalho seria possível, imaginável, aos olhos de um automobilista? No texto de introdução ao trabalho, Muralhas fala-nos da relação entre a função e a fruição destes espaços, de todo o cuidado que lhes é votado e do contraste que isso gera quando pensamos que são espaços inacessíveis. Apesar de não haver automóveis a circular nestas rotundas – se calhar, mesmo por causa disso – é possível imaginá-los a circular e pensar neles, uma pessoa em cada carro, isolada como as próprias rotundas, estando ali apenas à espera de chegar. A relação de isolamento de uns e de outros torna-se inevitável e, com esta, uma das leituras deste trabalho: o de uma cultura, não tanto do indivudualismo, como gostamos de pensar, mas do isolamento; os restos de uma cultura de passividade e não participação que começa agora a dar lugar a uma necessidade maior de consciência do meio como algo inseparável da nossa presença nele.
CARLOS MURALHAS
CATARINA C. SAMPAIO Que memória teremos nós desses espaços que não podemos fruir? Que relação podemos construir com um espaço que é pouco mais, para nós, que uma qualquer imagem do canal paisagem? Não é possível falar de mudança sem falar de memória, e é difícil lembrar um espaço sem fruição; um espaço que seja apenas uma imagem à distância – física e emocional – quando é a proximidade, a presença, que constrói memórias. O trabalho de Catarina Correia de Sampaio evidencia isso mesmo, a presença da memória, apesar da transformação. Um espaço presente que é tão distante do mesmo espaço décadas antes e, mesmo assim, ou talvez por isso mesmo, um espaço que revela o seu passado quase imediatamente a uma pessoa que tenha com ele esse passado. A relação formal que Catarina Sampaio desenvolveu, aparentemente fria e sem história, é rebatida pelas legendas, pela imagem mental do passado vivencial de cada um dos espaços fotografados. As legendas surgem como notas manuscritas, como apontamentos pessoais. Não são imagens que pudessem fazer-se agora – qualquer reconstrução histórica peca pelo próprio historicismo e demonstra ainda mais uma não presença – são notas tiradas de memória, imagens necessariamente emocionais de um espaço que já não está lá. No entanto, a própria impossibilidade de mostrar essas memórias, aliadas a uma neutralidade que a formalidade sugere, convida-nos a trazer as nossas próprias memórias e as nossas próprias comparações para estes espaços. É difícil distinguir o que é o presente e o que é o passado, o que é objectivo e o que é subjectivo. Todos estes hábitos mentais da separação, estes espaços mentais, tendem a misturar-se nas imagens que evocam em cada um e a dificultar um pouco essa arrumação racional.
GONÇALO VALVERDE Essa mesma evidência está presente no trabalho de Gonçalo Valverde. Na proximidade entre parentes, apesar da distância física. Falamos, também aqui, de memória, de uma comunicação que, antes de estar presente no suporte, está presente na relação construída, na memória afectiva. Só assim podemos compreender todos os quadros apresentados. Imagem após imagem, vemos surgir esse espaço afectivo que permite que pessoas que não estão presentes no mesmo espaço físico comuniquem intimamente pela partilha de um espaço afectivo que não se reporta apenas à presença física do outro ali, mas, sobretudo, à presença emocional do outro em nós. Esta possibidade que a tecnologia nos vai dando, de manter viva uma presença na ausência é também um traço da mudança cultural que atravessamos. O facto de nos ser possível manter uma relação afectiva com algo que está distante de nós, sejam os familiares que vivem longe, sejam os interesses que mantemos e nos mantêm em contacto com pessoas e informação de todos os cantos do mundo, seja a própria construção da nossa identidade, a forma como podemos ir para além dessa noção estática de cultura, que é, necessariamente, uma propaganda, para uma construção, mais caótica, porventura, mas também potencialmente mais autêntica, mais activa. De uma noção de cultura ligada a uma noção de cultivo de um espaço simbólico e não apenas do seu consumo.
O extremo deste cultivo talvez seja a proposta de João Vasco, do seu trabalho sobre o transfeminismo. A contrução de hábitos identitários até para fora da sua base biológica. João Vasco diz-nos “Aquele corpo, aquele eu, viveu sempre de forma distinta entre o espaço público e o privado.” Talvez este espaço privado seja o tal espaço do afecto, do cultivo de si como cultura. Mais à frente, “ O corpo é agora apenas um espaço, um invólcuro performativo...” Este trabalho leva ao limite algo que, nos nosso dias, se tem tornado um lugar comum: o corpo como espaço performativo; o eu como espaço de construção e não de conformidade. Aliás, talvez a mudança não seja da conformidade para a construção, mas antes, da construção do eu enquanto espaço de conformação a uma norma colectiva entendida como cultura para a construção de uma indentidade muito mais próxima do cultivo, da liberdade de escolha dos hábitos e das consequências que esses hábitos têm no estilo de vida. Escolher quem se é e cultivar os hábitos que permitem assumir essa escolha; sentir esse espaço como o nosso espaço de liberdade é um traço de mudança de cultura como poucos outros. É a evidência da individuação levada ao extremo de se transformar uma questão de sexo que é eminentemente biológica numa vivência transformista que abre uma janela de transcendência dessa mesma realidade, vista como uma prisão.
JOÃO VASCO
LUIS ROCHA
A mesma noção de liberdade, de espaço individual de cultivo identitário é-nos apresentada por Luís Rocha. Num levantamento mais solto, por um lado, e necessariamente muito mais abrangente, cada imagem surge como um quadro individual, um levantamento das várias individualidades e da forma como se misturam. Percebemos, no conjunto das imagens, o quão difícil é pensar, hoje em dia, a cultura portuguesa nesse sentido da cultura estereotipada, propagandeada. Naquilo que é, aparentemente, um trabalho solto, vemos surgir um retrato do colectivo possível nos dias de hoje; um conjunto de retratos que, mostrando várias formas de estar, mostram várias formas de ser, numa cultura cuja identidade colectiva é muito mais definida pela pertença a minorias de hábitos, sejam de pensamento, de vestuário ou de consumo, do que a um espaço geográfico.
MIGUEL CARRIÇO
Começam a perceber-se duas abordagens ao tema das mudanças. Uma que procura a memória para comparar com o presente e outra que apresenta, por assim dizer, a evidência de um presente e deixa a evocação da memória para o leitor. Miguel Carriço retoma um diálogo com a memória ao rever os seus brinquedos de infância. O que pode parecer um espaço simples de enumeração, uma colecção de brinquedos, é antes um diálogo consigo mesmo, com as suas memórias, com a evocação e a riqueza destas, por um lado e, por outro, com a impossibilidade de partilha dessa evocação. Uma vez mais, à semelhança do que acontece no trabalho de Catarina Sampaio, somos convidados a viajar às nossas próprias memórias de infância para colmatar a ausência de sensações, mesmo a impossibilidade de partilhar sensações que apenas pertencem a quem as viveu. Os brinquedos podem não ser os nossos, a rua, também, pode ser outra, mas quem não viveu esse espaço entre o toque da campaínha e a chamada para jantar? Quem não passou por essa despreocupação que é a infância e as férias passadas na rua a brincar? “a Rua. A minha rua. O nosso mundo”. É o próprio Miguel Carriço que nos aponta o caminho dessa fruição colectiva pela partilha, pelo trazer da lembrança individual para um espaço colectivo e que, com esta chamada, dá sentido a todo um trabalho e convida à reflexão que, no fundo, é o tema de todo este projecto.
A outra abordagem está presente no trabalho de Miguel Rodrigues. Um pouco à semelhança de Carlos Muralhas, embora numa amostra mais pequena, há uma tentativa de isolar um pormenor corrente da nossa realidade urbana contemporânea para uma proposta de leitura generalizada. Estas plantas, estes retratos, são um pouco como os jardins nas rotundas, um retrato do isolamento que tantas vezes se sente na sociedade contemporânea. Ao mesmo tempo, apontam uma possível causa para esse isolamento: a distância ao biológico, a leitura do biológico como adereço do cultural, como algo que temos que respeitar e viver quase como se não fôssemos, nós, esse biológico.
MIGUEL RODRIGUES
RITA CASTRO Este conjunto de trabalhos termina com Rita Castro. A imagem do flanneur tem sido recorrente no imaginário fotográfico. Alguém que erra pela cidade e regista essa errância, não como um discurso coerentemente organizado, mas como uma errância. Simples, não por defeito mas por convicção. Talvez este seja o discurso mais apropriado para olhar uma cidade como Lisboa, ao mesmo tempo simples e caótica, impossível de organizar racionalmente. A disposição das imagens já no-lo diz; torna óbvio o que se pressentia, já, olhando as imagens: um discurso que é mais fluído que coerente, que é mais poesia que prosa, por assim dizer, que se deixa surpreender constantemente consigo mesmo e que, por isso mesmo, só assim pode ser entendido, como uma surpresa; uma errância. Miguel Rodrigues
ANA RODOLFO Cultura da Bicicleta Cansa o corpo e descansa a mente Andar de bicicleta já não é uma prática da adolescência, reservada para quando se vai à aldeia dos avós ou para os passeios de fim de semana. Há já algum tempo que durante as minhas deslocações por Lisboa, contemplo um cada vez maior número de ciclistas que utilizam a bicicleta como meio de transporte em detrimento do carro ou do transporte coletivo. São pais que levam os mais pequenos à creche e seguem para os seus trabalhos, estudantes que vão para a escola, cestinhos cheios que regressam das idas aos supermercados. Com este movimento vejo também surgir novas profissões e atividades de voluntariado para ajudar os mais inexperientes, blogs com dicas para as bicicletadas, movimentos em prol de uma mobilidade ecológica em espaços urbanos... enfim, é um pedalar que parece não ter fim. Mas será isto uma moda, que no fim de algum tempo ficará esquecida no fundo da garagem, ou um estilo de vida que veio para ficar? O “dar ao pedal” não tem como aspiração responder a qualquer questão, mas sim permitir que o observador desfrute de um passeio criado com imagens de deslocações diárias de dez ciclistas, que colaboraram com as suas imagens e partilharam um pouco de si, de forma a conhecermos melhor aqueles que em ciclovias, por cima de passeios ou na estrada, me parece que vieram para ficar.
Carla 39 anos Designer e fot贸grafa
‘‘É libertador!.’
Carlos 43 anos Informรกtico
“São muitas as razões pelas quais quis começar a usar a bicicleta: como meio de transporte, porque adoro, porque faz bem à saúde física e mental, porque acaba por ser mais barato que ter passe e, acima de tudo, porque é mais ecológico (...)”
Jo達o 46 anos Assistente de Call Center
“Atividade física e facilidade de deslocação”
Pedro Gil 33 anos Engenheiro Mec창nico
“Liberdade“
Ricardo 40 anos Web Designer/ Bike Buddy
Utilizo a bicicleta todos os dias, para o trabalho ou em lazer, de dia e de noite, de verão e de inverno. Nãohouveumadecisãodeutilizarabicicleta.Foiumatransiçãogradualelógica. (...)ocarrofoi deixando de fazer parte da minha vida, à medida que a bicicleta se foi impondo (...) Este processo decorre desde 2000. Primeiro, com umas idas à praia, porque era mais prático e saudável. Depois, o raio de ação e funcionalidade da bicicleta foi sendo alargado, de uns pouco km e roupa desportiva, até uns 30 km e roupa quase formal. A bicicleta é a minha saúde física e mental. Cansa-me o corpo e descansa-me a mente. Tão simples como isso.
Rui 36 anos Estudante de Arte
“Liberdade; independência; económico; divertido.“
CARLOS MURALHAS Desertos O. A palavra Rotunda deriva do termo latino “rotundus”, originalmente associado à arquitectura, designa toda a construção circular normalmente correspondente a um elemento arquitectónico, um tipo de praça ou a uma via circular. A rotunda é um elemento típico do urbanismo português pós anos 60. Criada com a função de optimizar o tráfego nos entroncamentos rapidamente passou a ser tendência urbanística, uma “moda” utilizada em excesso e tornou-se um elemento catalisador na construção de espaços urbanos. Sendo mais um elemento da vida urbana, a rotunda pode e deve ter identidade própria. Uma característica dessa identidade interessante para este trabalho é a relação ambígua função-espaço destes lugares, que se apresentam cuidados, bem tratados e, em alguns casos, são alvo de meticulosos planos de intervenção urbana contendo jardins, fontes de água, esculturas de artistas conhecidos, etc, mas que por outro lado são espaços inacessíveis aos cidadãos.
O. O. sofre atormentado, isolado, fora de contacto, dias desenrolam-se iguais, sem fim, invisível, um existir sem substância. O. vacila desprovido, interior desproporcionado, companhia, inúmeras pessoas lá, esquecido, irrelevância contínua. O. hesita solitário, olha em volta, esperançado, anseia, sonha o trato raro, que não vem, que nunca vem, desabitado. O. continua.
CATARINA CORREIA DE SAMPAIO Bairro Alto Hoje o que era antes Partindo do Bairro Alto da minha infância, fui à descoberta da actualidade dos meus lugares. Um dos bairros mais antigos da cidade envelheceu. Algumas portas fecharam-se, outras reabriram reinventando o espaço que encerram. Outras ainda mantiveram-se como eram mas, ao fim de quase 40 anos, envelheceram junto com o Bairro! Os grafitis invadiram o espaço poluindo quase tanto ou mais que os carros que enchem os poucos estacionamentos que antes estavam vazios! Re-montei a casa onde vivi os primeiros 19 anos de vida (Rua João Pereira da Rosa, nº 20) como era antes e fui re-descobrindo também os sítios por onde passava a caminho da escola ou onde ía fazer os recados que me pediam: 2 alfaces ou 1 kilo de açúcar ou 5 papo-secos; o que fosse preciso para o almoço ou para o jantar. “Hoje o que era antes” foi uma viagem no tempo e na memória de um bairro que foi o meu mas que já não existe.
GONÇALO VALVERDE Infoinexclusão «O quê? Estás novamente ao computador? Até parece que é isso que te vai dar de comer!». Estavamos em 1992 e era assim que a minha progenitora se referia ao tempo que eu passava agarrado a um computador. Devia estar a estudar Física na altura mas de alguma forma a informática cativou-me. Minto. A internet cativou-me. A possibilidade de ter o conhecimento na ponta dos dedos era fascinante, mas mais cativante era o facto de poder falar com pessoas do outro lado do mundo. Mas quão dificil era explicar aquele novo mundo a quem não o conhecia? Volvidas pouco mais de 2 décadas a Internet em e restantes tecnologias de informação e comunicação tornaram-se praticamente ubiquas. Desde cidade até ao interior mais remoto, todo Portugal está imerso para o bem e para o mal neste admirável mundo novo. Muito se fala da infoexclusão ou da inforinclusão, mas a realidade é bem mais complexa que isso. Ao mesmo tempo que separam, aproximam. Ao mesmo tempo que ajudam a estupidificar, informam e educam. Se por um lado cada vez nos fechamos mais a olhar para um ecrã isolando-nos de quem está à nossa volta, por outro também falamos com amigos e familiares do outro lado do planeta. Deixaram de ser o reino esotérico de uns quantos maluquinhos dos computadores ou fanáticos da tecnologia para serem utilizados no nosso dia-a-dia da forma mais natural possível. De tal forma que quando passamos por alguém na rua que aparente estar a falar sozinho partimos logo do principio que está a falar ao telemóvel. É esta normalidade, esta ubiquidade mesmo no reino do privado, esta apropriação da tecnologia que procuro captar neste trabalho.
JOテグ VASCO Crescer com bonecas para ser uma boneca apaixonada AS BONECAS: Cindy Esmeralda Juvelina Rafaela
A/D
transfeminismo
Quando aquele corpo desejado nasceu, depois de mexido e remexido, todos os olhares se centraram no seu sexo e todas afirmaram: é menino! O menino cresceu desejando sempre ser homem e muito mais. O seu corpo dilatou-se enquanto território do eu e das outras. Do eu que se agigantou à procura do seu género, dos seus interesses, da sua sobrevivência, dos seus afetos, com as outras permanentemente a observálo com um olhar apreciador/julgador. Aquele corpo, aquele eu, viveu sempre de forma distinta entre o espaço público e o privado. Desde menino que gostava de brincar com bonecas. As bonecas cresceram com ele/ela e ele/ela desejava/deseja ser a própria boneca. O corpo é agora apenas um espaço, um invólcuro performativo dentro do qual existe um homem que apenas se liberta quando se transforma, com dor e prazer, numa personagem feminina: a boneca Alexia. Daniel/Alexia cresceu como as outras: brincou, estudou e hoje trabalha e ama, como todos e todas. Hoje, como todas as outras, são diferentes. Alexia está apaixonada por outra mulher. Ou seja, aquele corpo de homem transformou-se numa aparência de mulher para viver uma paixão lésbica. Daniel/Alexia mostra-nos assim quão diverso é o modo como podemos habitar/viver no nosso corpo, lugar de construção, onde somos e onde nos mostramos. Alexia, como todas, vive permanentemente sob o escrutínio de qualquer um (a). Por isso o seu corpo, o seu sexo, o seu género, estão muitas vezes espartilhados e aprisionados. Daniel vive escondido no mundo privado, do lado de dentro da janela, enquanto Alexia deseja voar, fazer a travessia, fantasiar, viver um amor reprimido, que seria naturalmente aceite enquanto Daniel. Alexia transforma-se, com dor, para sair à rua bela, mas escondida e provocadora. Sabe que a verdadeira prisão é o medo e que para ser livre, tem que arriscar. Gosta de si, de cada detalhe de si, das suas loucuras, das cores todas misturadas (azuis com rosas, verdes com vermelhos). Sabe que para ser plena tem de ser uma boneca livre, uma boneca que também vive, trabalha, ama e seduz no espaço de todas as outras: A rua! Daniel e Alexia recusam uma vida cinzenta, como a de muitos olhares a preto e branco que, incomodados, nelas reparam. Projeto de fotografia documental ficcionado.
LUIS ROCHA No Decorrer De Um Acontecimento O projeto fotográfico “No Decorrer De Um Acontecimento” pretende constituirse como um documento de análise à paisagem cultural portuguesa contemporânea. Partindo da capacidade intrínseca em transmitir mensagens de captação instantânea, o ato fotográfico pretende captar aqui o modo de vida de uma sociedade em constante mudança. Não foram premeditadas as situações captadas - este projeto baseia-se na necessidade de ordenar aquele instante fugidio com o qual nos deparamos diariamente e surge na necessidade de refletir a realidade observada do ponto de vista etnográfico. O resultado esperado desta abordagem, mais focada em comportamentos sociais, pretende ser um produto que permita uma leitura feita através da significação dos momentos captados. A sociedade em que nos movimentamos oferece diversas representações expostas ao constante movimento de influências, pelo que se pretende através da imagem realçar as suas ligações, absorvê-las e contextualizá-las garantindo assim que aquela realidade existe. As imagens produzidas serão algumas das possíveis representações da sociedade observada, suportadas por uma assumida intencionalidade dos momentos captados, com a pretensão da elaboração de um discurso motivador de um outro olhar.
MIGUEL CARRIÇO “Podes vir prá Rua?” E assim começava mais uma tarde na Rua, na minha Rua, no nosso Mundo! O primeiro a chegar à Rua ia tocar à campainha dos outros, e assim de repente, enchíamos a Rua, então sem transito, para lá brincar, ou simplesmente estar… Combinávamos que brinquedos levar que jogos iriamos jogar, o que íamos fazer. Assim se passava a tarde, toda a tarde… A Rua era o nosso recreio, por lá andávamos, brincávamos, corríamos, caíamos, magoávamos-nos, mas sempre a sorrir, sempre bem, e assim cresci… Assim foi na minha Rua, até que alguém chega à janela e nos chama “.. vem para casa jantar!!”
MIGUEL RODRIGUES Cinco Retratos em Algés Ando há muito com o excerto de um poema poema de Álvaro de Campos na cabeça. Tem aquela frase fantástica, “Há entre mim e os meus passos uma divergência instintiva; há, entre quem sou e estou, uma diferença de verbo que corresponde à realidade.” Fixamos uma imagem de nós que carregamos como cartão de visita – para todos, até para nós – e que existe apesar de tudo. Levamos a vida no esforço ardilento da conformação a essa imagem, estática, a uma ideia de Ser que criamos nos intervalos da novela, do ter o que fazer. É nisto, nesta certeza da indentidade dos instantes, da vida do dia a dia com a ideia que temos de nós nela, com uma suposta identidade imutável do ser, que Campos crava um punhal enorme de dúvida: a distância entre estar e ser. Cinco retratos em Algés fala da imagem do ser e do nosso esforço de adequação a essa imagem. Fala talvez do espanto do leitor desse poema com a sua própria situação de prisioneiro de uma imagem que aprisiona. Como quem solta um pássaro por extenso, em liberdade, e se tranca a si mesmo na gaiola, que guarda como edifício daquela.
RITA CASTRO Quando se anda a pé por LISBOA, olhar é apenas um ponto de partida Porque uma parte muito significativa das pessoas que moram e/ou trabalham em Lisboa vive fechada em prédios e casas, muitas horas do seu dia, seja por motivos profissionais ou pessoais, acentua-se a distância entre a vida humana e a vida social. E é tão fácil esquecer o que nos rodeia se não vemos para além de alguns metros quadrados. Simultaneamente temos: a pressa com que impõem o nosso quotidiano; a simpatia pela desumanização e indiferença; a criação e promoção do desespero que dificulta a clareza do raciocínio; a expansão de uma visão miserabilista do nosso destino (individual e colectivo); a pressão quotidiana de uma sentença grave que nos transcende; o empobrecimento que nos limita os actos. Mas, não nos deixarmos acorrentar neste modelo dominante passa, precisamente, por contrariar estas forças. E contrariar é viver! É sentir; é gostar de estar e de fazer parte de um conjunto maior. Lisboa é para mim um elemento protector que temos que preservar; guardar na memória; construir registos que nos despertem para a sua existência e nos liguem a ela sempre que tivermos vontade. Lisboa, que está sempre em mudança, pode ser captada e guardada a cada momento. O seu registo, a meu ver, permite-nos ser mais felizes, porque são formas de manter viva a noção de partilha, na diferença, no bom e no mau. A fotografia possibilita tornar real o que, muitas vezes, já se tinha esquecido: “A memória é a forma mais precária de documentação porque morre quando aquele que relembra morre; é como se a vida fosse o documento de si própria – uma vida que, a cada momento, se esquece de si.” (TORDO, João, <O Livro dos Homens sem Luz>, pag.17, 2011). Não se tratando de um percurso turístico, ou de relevante interesse municipal, escolho fotografar o trajecto* que liga a minha casa à empresa onde trabalho, de cerca de 3,5 kms, e que faço todos os dias, em ambos os sentidos. Poderia, igualmente ter optado por outro percurso; seria tão rico e interessante como este. Cada km é um mundo; cabe lá tanta coisa… Nota* - Alameda D. Afonso Henriques – Avenida Almirante Reis – Rua Pascoal de Melo – Rua Almirante Barroso – Praça José Fontana – Avenida Duque de Loulé – Rua Rodrigues Sampaio – Avenida da Liberdade e vice-versa.