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filmes: "THOR: RAGNAROK"
from ZINT ⋅ Edição #5: Stripped
by ZINT
O APOCALIPSE NUNCA FOI TÃO ENGRAÇADO
por JOÃO DICKER (@joaodickerqs)
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Desde que a Marvel iniciou a construção do seu coeso universo cinematográfico, o Thor nunca foi propriamente representado. Seus dois primeiros longas individuais nunca conseguiram reproduzir a riqueza histórica e cultural que poderia ser aproveitada nas telas, ao mesmo tempo que as participações do herói nos filmes dos Vingadores servissem somente para fazer as devidas conexões entre o lado cósmico e o lado terráqueo do universo Marvel.
Toda essa inconsistência sempre partiu da dificuldade de representar o herói, que nunca teve um tom ou jornada bem definidos: ora era o príncipe asgardiano falastrão, fútil e descolado, ora apresentava responsabilidade e preocupações dramáticas e sérias demais. Agora, em Thor: Ragnarok, seu terceiro filme individual, o Deus do Trovão finalmente recebe uma representação digna, que apesar de extremamente desvirtuada em relação aos quadrinhos, transforma o personagem e o encaixa de maneira cômica e ácida no universo Marvel.
Desta forma, acompanhamos Thor (Chris Hemsworth), em uma jornada de procura de respostas a respeito do Ragnarok: o apocalipse nórdico. Ao retornar à Asgard, o herói descobre que seu irmão Loki (Tom Hiddleston) tomou o lugar de Odin (Antonhy Hopkins) no comando e na proteção dos nove reinos. Neste cenário de bagunça e desatenção, Hela (Cate Blanchett), a deusa da morte, escapa de sua prisão e toma Asgard para si, expulsando os irmãos e matando todos aqueles que se opõem a ela. Assim, Thor se vê preso em um estranho planeta, onde precisa encontrar forças, agora sem o seu martelo, destruído pela antagonista, para retornar ao reino dos deuses e impedir que a vilã causa o Ragnarok.
Curiosamente, o enredo do longa se assemelha muito com o primeiro filme de Thor, de 2011, apresentando o herói preso fora de Asgard e precisando retornar para impedir o pior para o reino e seu povo. A diferença fundamental é que em Ragnarok a única jornada existente para o protagonista é a de regresso para casa, diferentemente do primeiro longa em que o Deus do Trovão passava por punições e aprendizados de humildade, em um arco dramático fraco e pouco crível. Agora, o roteiro de Eric Pearson, Christopher Yost e Craig Kyle, acerta ao trazer uma narrativa mais ágil e descomplicada, de acontecimentos simples e sem arcos dramáticos. A forma com que o filme não se leva a sério, quase que em uma paródia de si mesmo, encontra em Taika Waititi a mente perfeita para direção.
Responsável por O Que Fazemos na Sombras (2014) e The Hunt for the Wilderpeople (2016), o diretor trás consigo o seu tradicional humor ácido, irreverente e auto-depreciativo, para conduzir o longa com leveza e jocosidade. É admirável como Watiti consegue implementar sua identidade como cineasta na fórmula Marvel, fazendo com que Ragnarok seja o filme da Casa das Ideias que mais demonstre o traço autoral de seu diretor e que mais tenha personalidade. Ainda, ele se mostra confortável nas cenas de ação, sem explorar de cortes desnecessários ou movimentos de câmeras confusos, fazendo com que as sequências de combate sejam coloridas, divertidas e entretenham, apesar de não apresentarem inventividade ou nenhuma coreografia extraordinária.
Todo humor do filme depende, também, das atuações de seu elenco, que entrega um trabalho preciso e consoante com a proposta do longa. Chris Hemsworth e Cate Blanchett demonstram total compreensão do tom e da abordagem necessárias para o filme, com o protagonista se mostrando mais a vontade do que nunca encontrando a caracterização perfeita de um Thor irreverente, bobo e cômico, fazendo humor não só com a punchline, mas com muita atuação corporal. Blanchett, brilhante como sempre, entrega uma vilã cartunesca e canastrona, que apesar de ser subaproveita pelo roteiro marca presença pela atuação expansiva da atriz e pelo visual estilizado do figurino. Jeff Goldblum trás carisma e personalidade para um Grão-Mestre unilateral, mas que na extravagância de seu figurino e na atuação magistral de Goldblum se torna um dos personagens mais cômicos do longa.
A parte técnica, inclusive, é um show a parte. A direção de arte se esmera na construção dos cenários e planetas diferentes, com uma Asgard sempre colorida e brilhante para demonstrar sua atmosfera divina, e um planeta Sakar recheado de cores vivas e saturadas que contrapõem o lixão cósmico que é. Toda a inspiração visual do longa remete ao trabalho de Jack Kirby, responsável por alguns dos melhores arcos do herói nos quadrinhos. A trilha sonora termina por agregar uma atmosfera oitentista ao filme, com sons tecnopops sintetizados que completam perfeitamente o ritmo aventuresco e gostoso da produção.
O que prejudica o longa é, ironicamente, sua maior virtude. O tom jocoso adotado é inegavelmente importante para o avanço narrativo e para as relações entre os personagens, principalmente na dinâmica de grupo criada entre o protagonista e o Hulk (Mark Ruffalo), mas acaba tirando o peso de qualquer atitude mais séria ou dramática do filme. Mesmo que a única personagem com alguma construção de jornada pessoal propriamente dita seja a Valquíria, vivida por Tessa Thompson, fica a sensação de que o longa deixa de aproveitar o conceito do Ragnarok e sua potencialidade cataclismática.
Ao final, mesmo que com algumas falhas na estrutura do roteiro e na falta de densidade dramática na narrativa, Thor: Ragnarok se assume como uma das melhores aventuras solos do universo Marvel, graças ao seu humor irreverente e sarcástico, as atuações precisas de seu elenco e a direção autoral e cheia de personalidade de um diretor que, ao saber inserir sua identidade como cineasta na fórmula reproduzida pelo estúdio, injeta frescor e fôlego na caminhada da Marvel nos cinemas. //