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Doctor Who

Doctor Who: uma nova era e a primeira Doutora

por VICS (@wondrvics)

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Não são muitas as séries que conseguem atingir uma grande longevidade na televisão. Chegar ao centésimo episódio é um marco digno de festa – e para poucos, com muitas séries chegando ao fim antes disso. Mas este não é um caso que se aplique a DOCTOR WHO, cujo primeiro de 851 episódios foi ao ar em 1963 pelo canal britânico BBC.

A série, estrelada por um amigável alienígena capaz de viajar pelo Espaço e Tempo em sua cabine policial chamada TARDIS, arrebatou o público quase que instanteneamente, em uma época em que seriados familiares não eram bem recebidos. A ideia para o porgrama, no começo, era ser o show de William Hartnell, que ao longo de quatro temporadas deu rosto ao personagem título conhecido apenas como Doutor. Mas problemas de saúde fizeram o ator se afastar do papel, levando os roteiristas a procurarem formas de manter Doctor Who no ar de forma crível.

NOVOS ROSTOS

A saída escolhida por eles foi simples, mas inteligente, sendo logo incorporada como parte da mitologia da série. Quando morrem, os Senhores do Tempo, raça habitante de Gallifrey, tem a incrível capacidade de regeneração, mudando completamente sua aparência e personalidade, mantendo suas memórias. Este processo poderia ser o resultado de morte por um ferimento mortal ou velhice, e até mesmo por vontade própria. No início, a regeneração podia acontecer apenas 13 vezes, mas o cânone foi mudado recentemente para 507.

Doctor Who durou 26 temporadas (1963-1989) antes de entrar em um hiato, dando espaço para sete atores darem seus rostos para o icônico personagem. Em 1996, a franquia ganhou um filme, mas o Oitavo Doutor ficou restrito a apenas aquela produção. Em 2005, a série teve seu revival, voltando às telinhas britânicas com o Nono Doutor.

JODIE WHITTAKER COMO A DOUTORA, LOGO APÓS A SUA REGENERAÇÃO.

Bem recebida pelo público, a produção trouxe novas faces para o personagem, ampliando ainda mais sua mitologia e, sempre que possível, prestando suas homenagens aos arcos clássicos do original. Com o buraco de quase uma década entre o filme-revival, a produção teve atenção para elaborar um background que explicasse os anos de ausência do Doctor na televisão (uma terrível guerra no planeta natal do alienígena), afetando diretamente a história e personalidade da nova leva de Doutores.

Nessa nova versão, conhecemos e nos apaixonamos pelo Nono Doutor (Christopher Eccleston), o Décimo (David Tennant), o Décimo Primeiro (Matt Smith) e o Décimo Segundo (Peter Capaldi). Como parte do background previamente citado, também temos o Senhor do Tempo conhecido como Doutor da Guerra (John Hurt) – que, na cronologia, se encaixa entre o Sétimo e o Oitavo. E agora conhecemos a história de número 13.

SENHORA DO TEMPO

O conceito da regeneração deu início, em algum momento, a uma discussão entre os whovians, nome dado aos fãs do programa. O questionamento gira em torno da possibilidade de um Senhor do Tempo trocar de gênero durante o processo, tornando-se uma Senhora do Tempo. E, sendo possível, porque nunca uma mulher havia assumido o manto de Doutor?

JODIE WHITTAKER JÁ EM SER PRÓPRIO “UNIFORME” COMO A DOUTORA.

O mistério foi finalmente solucionado quando o Mestre (John Simm), arqui-inimigo do Doctor, deixou de ser um homem e, na oitava temporada, passou a ser uma mulher, conhecida como Missy (Michelle Gomez). O público pareceu não se incomodar tanto com isso, até que a mudança foi feita com o personagem título (como eu já discuti nessa outra matéria).

A ERA DE JODIE

A 11ª Temporada da série agraciou o público com uma Doutora, que caiu na responsabilidade de Jodie Whittaker, famosa por contracenar ao lado de David Tennant (o Décimo) na produção televisiva Broadchurch. O primeiro vislumbre de Whittaker como a Doutora aconteceu dia 25 de dezembro de 2017, no clássico especial de Natal, Twice Upon a Time, episódio que marca o final do ciclo de Peter Capaldi como o personagem. Mas Jodie assumiu de vez o mantou apenas no dia 07 de outubro de 2018, com a estreia da nova temporada de Doctor Who.

Com um novo showrunner (Chris Chibnall, que antes ocupava o cargo de produtor-executivo e é responsável por Broadchurch) e um novo rosto no personagem título, a produção toma suas habituais decisões para dar uma identidade mais autoral para este novo ciclo. Embora a TARDIS permaneça praticamente a mesma do lado de fora, uma regeneração da Doutora também significa uma regeneração da icônica cabine telefônica (maior do lado de dentro). A nave especial adota um visual que lembra muito a sua primeira versão, com sua padronagem circular, ao mesmo tempo em que dá sua própria personalidade, apostando em uma cor âmbar e diversos cristais, além de um mecanismo de pilares que lembram muito dedos.

Aliás, como apontam críticos e fãs, a nostalgia não para apenas na TARDIS. A série em si resgata bastante o teor da produção original, colocando a Doutora e suas Companions (nome dado às suas companhias de viagens) em aventuras pelo Espaço e Tempo que prezam por historinhas com moral, na (re)afirmação da humanidade da Doutora e na esperança de que podemos ser o melhor de nós mesmos.

A grande e maior diferença neste novo ano está na ausência de um grande plot escondido entre os episódios, como tornou- -se comum na era comandado por Steven Moffat (responsável por séries como Sherlock). O máximo que acontece é o retorno, no último episódio, de um dos primeiros vilões do novo ano, cuja raça também é citada ao longo de alguns capítulos. Fora isso, não há nenhum Bad Wolf ou Impossible Clara acontecendo – para o bem ou para o mal.

Mas o grande trunfo do ano 11 de Doctor Who está, justamente, na Doutora. Jodie Whittaker entrega uma personagem bastante polida e, talvez pela primeira vez, uma Senhora do Tempo que entende perfeitamente a sua capacidade e não tem medo algum de verbaliza-las. A jornada torna-se ainda mais curiosa e divertida ao vermos que a Décima Terceira, embora cheia de si e extremamente confiante, assume ainda mais a personalidade de outsider, tendo uma visível dificuldade na hora de manter conversas furadas (“Talvez eu esteja nervosa. Ou só seja socialmente estranha. Eu ainda estou me descobrindo“) e estando diversas vezes falando consigo mesma ou verbalizando seus pensamentos em voz alta.

Na mesma lógica, a personagem de Whittaker passa o maior espaço de tempo se adaptando ao seu corpo (talvez, possivelmente, por ser a primeira vez em que ela assume o gênero feminino), comentando constantemente que ainda está se entendendo e descobrindo o que ela gosta ou não. O público até mesmo precisa esperar um pouco mais que o habitual para vê-la com a sua verão da Chave de Fenda Sônica ou usando seu próprio “uniforme”/figurino – também, um misto de homenagens à versões antigas dos Doutores. Mas nada impede que ela encontre espaço para fazer piadas de cunho feminista, afirmando em um determinado episódio (S11E08), por exemplo, que se ela ainda fosse um homem, não seria ignorada e teria sua voz ouvida

A DOUTORA E AS COMPANIONS.

Jodie é extremamente carismática e entrega um papel memorável. Sua Doutora é mais feliz e leve que seus predecessores, assustados pelo o que haviam feito durante a guerra em Gallifrey e pelas consequências geradas pelo embate. Neste novo ciclo, ela não está atormentada por nada disso e nem está em uma interminável busca interna e externa de encontrar seu planeta perdido. Aqui, o mais importante, é reencontrar a sua identidade enquanto tenta salvar o planeta Terra e sua humanidade – muitas vezes, dos próprios humanos.

MAIS QUE COMPANIONS

As Companions, por sua vez, fazem uma interessante adição à trama. Diferente de Clara Oswald (Jenna Coleman), entre a 7ª e 9ª temporada, e até mesmo de Bill Potts (Pearl Mackie), na 10ª, as companhias da Doutora voltam a dedicar-se completamente às viagens, não balanceando-as com o seguimento de suas vidas pessoais – Clara foi a primeira a fazer isso plenamente, assumindo o cargo de professora da escola em que o Primeiro Doutor lecionava.

Ryan Sinclair (Tosin Cole), Yasmin “Yas” Khan (Mandip Gill), Graham O’Brien (Bradley Walsh), que agora são mais conhecidos pelo título de Amigos, triunfam em seu carisma e no desenvolvimento de seus personagens. O trio dá continuidade ao trabalho de diversificar a trama de Doctor Who e trazer representatividade racial, étnica e sexual para o meio. Bill, por exemplo, foi a primeira Companion queer do Doutor, além de ser a terceira negra a acompanha-lo nas viagens e a quarta personagem abertamente LGBTQI+ da série.

AS COMPANIONS, OU AMIGOS, DA DOUTORA: YASMIN “YAS” KHAN, GRAHAM O’BRIEN E RYAN SINCLAIR.

Ryan é um jovem adulto negro e de baixa autoestima, consequência da vivência com um problema de coordenação motora que possui. Após perder sua avó, que o criou, e lidar constantemente com a ausência de seu pai, a única pessoa que está presente em sua vida é Graham, um homem branco que ele recusa chamar de avô. Ao longo da temporada, vemos a relação dos dois se estreitando e caminhando a passos mais íntimos, com Ryan eventualmente enxergando o amor e carinho que emana de Graham e a possibilidade deles serem uma família. Aos poucos, fica até mesmo mais fácil para o jovem rapaz lidar com suas dúvidas pessoais e ter controle diante de seus problemas de coordenação motora.

Yas fica um pouco mais de lado, mas sua história é igualmente interessante. Khan é uma garota de 19 anos, muçulmana e de descendência paquistanesa. Desesperada para provar o seu valor, ela precisa lidar com uma família que está sempre querendo tomar as rédeas de sua vida. Com a TARDIS, ela se vê na possibilidade de abrir seus horizontes e até mesmo entender um pouco sobre a história de seus entes. Yasmin funciona muito como a segunda principal fonte de positivismo do quarteto (a primeira é a Doutora), estando sempre disposta a ajudar seus amigos.

Para aprofundar um pouco mais nos personagens, a temporada dá a possibilidade do trio de Amigos a se desenvolveram em pequenos arcos solos. Para Ryan isso acontece em Rosa (S11E03), quando a TARDIS vai parar em 1955 e o quarteto se depara com Rosa Parks (Vinette Robinson), uma figura emblemática responsável por um importante capítulo da história de segregação dos Estados Unidos – e a grande heroína da avó de Ryan. O episódio aproveita para falar sobre racismo e humanizar a luta em busca por direitos civis dos negros, apresentando não só Parks, como, brevemente, a figura de Martin Luther King (Ray Sesay). Rosa ainda mostra aos telespectadores o comovente e duro momento que tornou a personagem famosa.

Como estabelecido nas mitologias do gênero, ao viajar para o passado a menor das intervenções pode causar mudanças catastróficas no presente/ futuro. Assim, a Doutora, Yas e Graham se veem de mãos atadas ao, involuntariamente, participarem do momento que vai colocar Rosa Parks na História. Durante a segregação, a população negra era obrigada, por lei, a ceder seu lugar no ônibus para os brancos, caso a locomoção pública estivesse lotada. Rosa, no histórico episódio, recusa-se e acaba sendo presa, não só tendo seu rosto estampado em diversos jornais como também tornando-se o símbolo do movimento por direitos civis dos negros nos Estados Unidos, encabeçado por Martin Luther King Jr.. O trio de protagonistas mostra-se completamente enojado pela situação, mas são obrigados a seguirem em seus respectivos “papéis” sociais – afinal, a Doutora e Graham são pessoas brancas, assistidas pelo Estado da época – para não alterarem nada daquele momento que mudaria o curso da História do país.

Graham também tem a oportunidade de se desenvolver mais individualmente com uma arco que se inicia em It Takes You Away (S11E09), ao se ver em um universo-espelho, e termina no season finale The Battle of Ranskoor Av Kolos (S11E10). No primeiro episódio, ele precisa tomar a decisão de viver o sonho de continuar sua amada (mesmo que isso resulte em sua morte), ou voltar para o seu universo e ser a família que Ryan tanto precisa. Já no segundo, Graham está em uma encruzilhada: quebrar uma das únicas regra da Doutora e vingar a morte de sua esposa (consequentemente perdendo o passe de continuar viajando na TARDIS) ou manter sua integridade e tomar a decisão mais difícil de todas (perdoar e seguir em frente). O arco de Graham ilustra, de forma dolorsa, a complexidade da humanidade e uma das grandes morais de Doctor Who: é difícil, mas se realmente quiseremos, podemos ser a melhor versão de nós mesmos.

A DOUTORA E AS COMPANIONS TENTAM DESVENDAR O MISTÉRIO DA CRIATURA.

Para Yasmin, o momento de introspecção acontece com Demons of the Punjab (S01E06), quando o quarteto viaja para a Índia, a pedido de Khan, em busca de desvendar um misterioso capítulo na história de sua avó. Como a TARDIS nunca aterrissa em momentos de paz e prosperidade, eles logo descobrem que estão no exato dia do início de um sangrento episódio da história: a Partição da Índia, quando o país foi dividido em dois, dando origem ao Paquistão. Assim, Yasmin não só descobre a dolorosa verdade por trás do segredo de sua avó, como vai precisar lidar em primeira mão com as consequências que o conturbado conflito causam no local e em sua família, colocando, mais uma vez, o ser humano como o grande vilão da narrativa.

E UM PRÓSPERO DALEK NOVO

Fica claro que que a nova temporada de Doctor Who gira em torno não só de tramas e dramas envolvendo família e amizade, mas também no sentimento de nostalgia. Seja na TARDIS ou nas falas e roupa da Doutora, as homenagens estão lá, mais escondidas, perceptíveis para os whovians de carteirinhas ou qualquer um que esteja disposto a pesquisar. Mas se até aqui esses fan-services não foram o suficiente, o episódio de Ano Novo faz o trabalho completo.

Quebrando a tradição anual dos episódios de Natal, Resolution (S11E11) toma lugar durante as festividades de Ano Novo, quando uma antiga e poderosa força ameaça a existência do Planeta Terra. Não demora muito para a Doutora se dar conta que a tal entidade trata-se de um Dalek, a raça de alienígenas mais letal e vil do universo. Os arqui-inimigos declarados dos Senhores do Tempo (e, especialmente, dos Doutores) já foram os protagonistas de inúmeros episódios de Doctor Who, sendo os principais vilões da mitologia e um dos mais difíceis de matar, graças a uma armadura de metal blindada.

É inegável que Resolution é um verdadeiro trato para os fãs, não só por trazer os Daleks de volta à trama (da última vez, eles tinham sido supostamente aniquilados), mas também por quase mostrar esta versão da Doutora assumindo o divertido título de Presidente do Mundo. O cargo é um presente do Esquadrão de Inteligência Unificadas (ou U.N.I.T., que sonoramente faz um jogo com a palavra “União” em inglês), uma agência militar britânica super secreta. A UNIT é um órgão responsável por defender a Terra de atividades alienígenas e estudar suas respectivas tecnologias, mas, de acordo com o capítulo, acabou sendo desativado, em um piada que faz referência direta ao Brexit (apelido dado à saída do Reino Unido da União Europeia), alegando a terminação como mais uma consequência do polêmico capítulo na política britânica.

Doctor Who, cuja 12ª temporada estreia em 2020, pode não ser mais tão complexa e elaborada quanto no recente passado, mas continua tão divertida e encantadora como anteriormente. E se nada disso é suficiente para você, uma coisa não há como negar: Jodie Whittaker faz um excelente trabalho no manto de Doctor e, sem muito esforço, rouba nossos corações e nossas risadas. Brilliant! //

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