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Djonga
DJONGA ROUBA CENA EM LADRÃO
por MATHEUS LEÃO (@)
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Ceará, 13 de março de 1830, nasce Antônio Vieira Mendes Maciel. Posteriormente: Antônio Conselheiro. Apelido que ganhou graças às jornadas no Nordeste do Império do Brasil, onde conseguiu seguidores seduzidos pelo seu discurso e seus ensinamentos. Popular entre os pobres por libertá- -los das influências e das explorações que sofriam de padres e grandes latifundiários, era respectivamente odiado por estes. Acabou sendo preso, injustamente, o que resultou em mais adeptos. Absolvido, iniciou seu feito mais famoso: ocupou, junto de seus companheiros, uma fazenda abandonada na região de Canudos, sul da Bahia. O local prosperou e incomodou os mais poderosos do País. A polícia fora enviada para resolver o obstáculo e foi facilmente derrotada. Temendo uma retaliação, a Coroa envia milhares de soldados em quatro campanhas para destruir o lugar. Conselheiro morre e o massacre popular vira página nos livros de história do Brasil, intitulado Guerra dos Canudos.
DJONGA, nome artístico de Gustavo Pereira, escolheu a data de nascimento de Antônio Conselheiro (citado em Deus e o Diabo na Terra do Sol), durante os últimos anos – 2017 a 2019 –, para lançar seus três álbuns de estúdio. O mais recente, LADRÃO, é uma produção da gravadora independente Ceia Ent. O rapper belorizontino classifica este como o seu melhor trabalho, contando como principal tema o resgate das suas origens. As 10 faixas do álbum denunciam o racismo, o machismo na perspectiva de um homem, o preconceito e a desigualdade de classes e o cotidiano na vida do crime, principalmente no tráfico de drogas. Também, exaltam seu trabalho, sua família e amigos, ancestralidade, sua comunidade e suas conquistas e o rap. Costume do artista, conterrâneos participam de seus trabalhos, como o coral Rosa Neon e Jacques Cigarra, enfatizando o conceito de resgate aos seus.
“Arte é pra incomodar, causar indigestão”. É nas palavras do próprio artista, que podemos descrever a capa do álbum, com direção de arte e capa de Alvaro Benevente. A fotografia apresenta Djonga com um sorriso histérico, corpo ensanguentado, ofertando correntes de ouro e dinheiro na mão direita, e uma cabeça sangrando, vestida de um capuz utilizado nas cerimônias da Ku Klux Klan (movimento extremista que defende a supremacia branca através de atos terroristas), na mão esquerda. A cena conta com Dona Nadir, avó do Gustavo, sentada em uma poltrona vermelha, recebendo os “presentes”, com ar de satisfação.
A faixa inicial, Hat-Trick, é produzida por Coyote Beatz e Thiago Braga, assim como o restante do disco – com exceção de Deus e o Diabo na Terra do Sol e MLK 4TR3V1D0. Hat-Trick faz referência ao próprio álbum, o terceiro do artista, já que a expressão é comum quando um jogador faz três gols numa mesma partida. Pedindo passagem, o rapper fala sobre a importância do seu trabalho, evidenciando as portas que ele vêm abrindo e as barreiras que vêm quebrando. Citando O Rei Leão, Djonga compara os problemas na infância de diferentes classes sociais: as mais privilegiadas sofrem por ficções, enquanto a realidade dos mais pobres são tragédias reais. Para compor a trama, a saída musical explica como crianças periféricas são rotuladas de ladrão, antes mesmo delas saberem o significado da palavra.
Bené segue a beat e o flow de rap, com conteúdo semelhante ao dos funks conscientes. A faixa objetiva alertar aos jovens sobre a vida curta no narcotráfico: “São aviõezinhos, mas tão a caminho do World Trade Center / Todo mundo sabe que vai dar merda”. O eu lírico conta da sua própria vivência para mostrar que o crime não compensa, e que além de não ser lucrativo financeiramente, empobrece o espírito e mata. Djonga mostra que o caminho vai ser duro, mas que como Elis Regina, em Como Nossos Pais, a vida real, mesma que complicada, é melhor que a ilusão.
Com teor mais romântico, Leal traz leveza ao álbum, com um relacionamento sincero, mostrando o cortejo a “musa”, mas de uma forma racional, sem promessas vazias.
A primeira participação do álbum aparece em Deus e o Diabo na Terra do Sol, com o carioca Filipe Ret e produção de JNR. O título apresenta os dois rappers, no qual Deus é Djonga, como o próprio se autodenomina em sua conta no Twitter , e o Diabo é Filipe Ret, “Eu faço parecer fácil porque eu sou o primeiro Diabo / Muito antes de Baco“. Os dois rappers mostram a realidade nas periferias, confrontando ideias políticos, como o conceito de meritocracia (“Meritocracia de pobre só se a frase for: ‘Morreu porque mereceu’”), a falsa criação de um inimigo para justificar atos e maquiar verdadeiras ameaças (“Comunismo imaginário num capitalismo real”), e até a delação dos crimes ambientais em Minas Gerais e a violência policial e militar (“É. Tamo coberto de lama perguntando quanto VALE / (…) Não é Eduardo e Mônica, é Brumadinho e Mariana / Na lama, indecência por grana / Aonde quem pensa apanha / Foda-se o capitão e o general”).
A voz suave do MC Kaio, marca registrada do cantor de funk de Belo Horizonte, retoma o estilo romântico de Leal em Tipo. O contraste das vozes dos intérpretes torna a faixa agradável, cuja trama é uma relação saudável e palpável – temática comum nas faixas de mesmo estilo de Djonga. A faixa-título conta com vários jogos de palavras para ilustrar a mensagem do álbum: o Ladrão é uma espécie de personagem real que utiliza de artifícios legais para fazer reparação histórica. No verso “Falar em carne, faço a preta ser a mais cara do mercado”, antítese a música A Carne, de Elza Soares, Djonga mostra como o seu trabalho tem valorizado a ponto de mudar as regras do jogo. Mas para o rapper o sucesso só adianta se ele puder dividi-lo, ressignificando o dinheiro, “Tiro onda, porque mudo paradigmas / Meu melhor verso só serve se mudar vidas”. Outro ponto importante destacado na faixa é a importância que ele alcançou no cenário musical. Antes mesmo do lançamento do álbum, Djonga já era o assunto mais comentado no Twitter. Evidenciando a metáfora do polêmico clipe, A Música da Mãe, explicada em: “Dei voadora na cultura branca”.
Em Bença, os valores, feitos e ensinamentos de Dona Nadir são exaltados. Além da avó, Gustavo mostra a importância de ter crescido com o pai, que não foi comum a seus amigos de infância. Djonga queixa o abandono parental, na maioria pelos pais, recorrente no Brasil: “É triste ver que os moleques da minha quebrada / Não teve a mesma sorte que eu / Um pai presente, no país onde o homem que aborta mais / Vai entender, né?”. O conjunto – falas do filho e da avó; menções do Pantera Negra, filme premiado protagonizado por um super-herói negro, referência na luta racial; e menções a antepassados – indica a importância das raízes na construção indenitária e de caráter.
A oitava faixa, Voz, conta com a participação de Dougnow e Chris MC. A primeira parte é responsabilidade de Dougnow, focando na denúncia da alta taxa de mortalidade de negros no País, da falta de visibilidade dos casos e da desigualdade social e racial: “De acordo com as pesquisas era pra ser só o beat / (…) O crime não é chroma key / Vai achar bizzaro, as ruas do seu bairro não são como aqui / (…) Vão ver minha caveira, cinco irmãos do gueto e um Palio / É só rajada / O boy que bate, bate a BM não dá nada”. Os últimos versos mostram casos em que inocentes foram acusados sem julgamentos e responsáveis são inocentados. A diferença no tratamento deve-se as questões raciais e sociais dos personagens. O refrão fica por conta dos convidados, onde se destaca como o negro é estereotipado na mídia e nas ações policiais. A segunda parte fica por conta de Djonga, que reforça as ideias apresentadas antes e acrescenta como venceu e chegou no seu patamar atual.
MLK 4TR3V1D0 é uma releitura de Moleque Atrevido, de Jorge Aragão. Djonga ousa na sua versão a capella, adaptando o clássico do samba a sua realidade e mostra a influência do gênero no rap e sua importância. Em Falcão, o rapper alcança o topo, em uma mistura de autocrítica e crítica a cena do rap. O eu lírico vive a dualidade do seu sucesso e a incapacidade de mudar outras realidades. Mesmo diante das adversidades, ele não desiste e segue sua luta em busca de justiça e igualdade. “Eu sigo naquela fé que talvez não mova montanhas / Mas arrasta multidões, e esvazia camburões / Preenche salas de aulas e corações vazios”. Elis Regina é acionada mais uma vez, em Romaria, e cabe a ela encerrar a música e o álbum.
Ladrão traz temáticas essenciais para a discussão da sociedade e de estereótipos no Brasil. Djonga, que vem melhorando a cada trabalho, eleva o rap e a música como manifestação artística. Que assim como Antônio Conselheiro vem ganhando seguidores e solidificando suas batalhas. //