Perto do Fim

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Rosa Mattos


É um dia como outro qualquer, de um ano qualquer. O céu apresenta algumas nuvens e uma brisa refrescante alivia o calor da estação. Mas isso não faz nenhuma diferença para mim. Desço do carro. Ando alguns metros e ultrapasso o portão. Conheço muito bem o trajeto. Tenho trilhado este mesmo caminho há um ano e meio. Já nem me dou ao trabalho de observar as pessoas que também circulam por aqui. Ninguém, absolutamente ninguém, desvia o meu foco, porque hoje é um dia especial... Um dia sagrado para mim. Em instantes irei encontrar-me com Lara. E os meus pensamentos estão inteiramente voltados para ela. Sigo em frente, com passos seguros, embora internamente esteja trêmulo pela emoção do encontro. A cada vez, tento não deixar transparecer o que eu sinto, mostrando- lhe o quanto sou forte, como ela sempre me julgou ser. Entretanto, é um esforço inútil. À medida que meus pés avançam, meus olhos lutam contra a vontade de chorar por ela. Todos os domingos eu a visito, pois foi num domingo que tudo aconteceu. Meu coração estremece de pesar ao aproximar-me de onde Lara está. Queria tê-la comigo em casa. Queria tê-la em qualquer outro lugar, me nos ali e daquele modo. Abaixo-me para entregar-lhe o pequeno buquê de tulipas brancas que trago nas mãos. São suas flores preferidas. E não são fáceis de encontrar. Algumas vezes tenho de percorrer várias floriculturas até achá-las. Mas sempre as trago. Sempre. E precisam ser flores naturais, pois ela tinha o costume de encostar o narizinho nas tulipas à procura de um resquício qualquer de perfume. Escoro-me na superfície fria. Cumprimento-a:


– Olá, meu anjinho, papai chegou. Não há resposta. Jamais haverá. Inclino-me, esticando o braço para depositar o buquê sobre o túmulo cinzento. Fico em silêncio por alguns minutos. E com os olhos úmidos, aliso a foto da menina de cabelos castanhos ondulados. Admiro demoradamente o seu rostinho saudoso. Mechas caem delicadamente sobre os seus ombros. Os olhos são castanhos, luminosos. O sorriso é doce e terno. Vejome nela, pois tem os mesmos traços. O mesmo desenho do nariz. Um pedacinho meu. Minha parte mais valiosa está enterrada aqui. Abaixo o rosto, fecho os olhos e faço uma prece. Em seguida, ajeito as flores num vaso cimentado na cabeceira da lápide e retiro as tulipas antigas que deixei no domingo anterior. Apesar das longas conversas mantidas em frente ao seu túmulo, em voz alta, ou só para mim, ainda há muito a ser dito. O sofrimento quase me fez desistir de tudo. Um forte sentimento de culpa me castiga, de domingo a domingo, tal qual uma sombra ameaçadora seguindo os meus passos. A sombra da morte. Ah, onde quer que eu vá, uma faca estará cravada em meu peito! E nenhum esforço farei para retirá-la. Ao contrário, eu próprio a empurrarei mais ao fundo. – Perdão, filha. Preferia ter morrido naquele domingo. Sabe disso, não sabe? Sabe que papai a ama muito e não para de pensar um dia sequer em você? Foi um instante apenas em que desviei os olhos, anjinho. Uma fração de segundos. Como isso pôde acontecer? Era nosso primeiro passeio juntos, sem a mamãe. Apenas nós dois. Deixei você brincando com sua bola colorida e seu baldinho de areia. Afasteime uns passos apenas, para comprar sorvete. Oh, as imagens não me saem da cabeça! Como pude não pressentir o perigo? O mar parecia tão calmo. Jamais imaginei que você fosse sair de onde estava, correr para a água atrás de sua bola e ser levada pelas ondas daquele jeito. Eu me joguei. Eu tentei, filha! Eu tentei! Segurei seu corpinho nos braços e chamei por socorro, quando não consegui fazer você respirar. Achei que ficaria tudo bem, mas você tinha engolido muita água. Ah, meu Deus, quando confirmaram sua morte, gritei desesperado! Perdi o chão. Fiquei sem ar. Não queria acreditar. Meu peito parecia que ia explodir. Você tinha apenas três anos... E eu fui incapaz de protegê-la. Não vou me perdoar nunca por ter me descuidado e tirado os olhos de você. Respiro fundo. Demoro para me despedir de Lara. Ergo-me. Desvio a atenção para o túmulo ao lado. Coloco o outro buquê de tulipas que trouxe. Amarelas. Belas tulipas amarelas. Olho longamente para a foto na sepultura. E uma onda de saudades atinge o meu peito em cheio. Sylvia. Meu amor desde a universidade. Fecho os olhos e me transporto para tempos afortunados. Saboreio a sensação dos dias perfeitos que vivemos. Revivo os nossos risos, as conversas e os silêncios que diziam tanto. Recordo o dia do nascimento de Lara e a felicidade que compartilhamos. Penso nos planos que fizemos para uma vida inteira que viveríamos juntos. E confesso a ela o quanto é difícil estar cheio de amor e não tê-la viva para amar. Rezo em silêncio.


Depois me despeço. Saio do cemitério somente após me acalmar o suficiente para poder dirigir de volta para casa. Para elas a vida findou. Para mim a vida prossegue. E não há benefício algum em ser desse modo. Manter-me vivo, lembrando dia após dia a pior de todas as lembranças, será o meu castigo, a minha penitência. Retorno ao carro. Aperto fortemente as mãos no volante. Preciso sentir o domínio sobre algo. Preciso ter qualquer coisa sob o meu controle. Antes de ligar o motor, meus pensamentos viajam para o instante em que minha esposa soube da morte da filha. O rosto amável de Sylvia desfigurou-se em agonia. Seus gritos ainda ecoam em meus ouvidos. “Não é verdade! Ela não pode estar morta! Por que deixou o meu bebê morrer? Prometeu que iria cuidar dela. O que você fez com a minha filha, Jeff?” Fiquei perplexo, angustiado. Sylvia desmaiou e precisou de atendimento médico. Quando recobrou os sentidos, recusou meu apoio, descartou o meu abraço, rejeitou a minha aproximação, tanto naquele instante terrível, como nos dias seguintes. Nem mesmo a nossa separação, trouxe-lhe conforto. Mudou-se para a casa dos pais. E seis meses após o falecimento de Lara, Sylvia foi encontrada sem vida em seu quarto. No chão, um frasco vazio levantou a suspeita sobre ingestão de comprimidos em excesso. Através de autópsia, comprovaram que a causa da morte foi overdose de remédios para dormir. Quando eu soube da morte de Sylvia, peguei o carro e saí dirigindo feito um ensandecido, pisando fundo no acelerador. Transtornado e cego pelo desatino, perdi o controle da direção, atravessei a pista e bati contra um poste de concreto. Por pouco não atingi outro carro, ou transeuntes, causando uma tragédia maior. Sofri cortes na testa, fratura na clavícula e numa das pernas, ficando quase um mês em coma por conta de um coágulo no cérebro, causado pelo impacto. Quando abri os olhos e vi onde estava, fui invadido por uma tristeza profunda. A vida me queria vivo, ignorando inteiramente o meu desejo de morrer, para que eu pudesse pagar pelos meus erros? Paro de pensar nos fatos do passado. Passo as mãos no rosto e me olho no espelho do carro. Estou mudado. Onde está aquele Jeff que já fui um dia? O homem que me encara no reflexo tem um aspecto abatido. É jovem, pois tem apenas trinta e dois anos, mas apresenta um semblante amargurado e sofrido. Há poucas esperanças para mim, penso, olhando a figura refletida. Mas estarei aqui, com buquês de tulipas, no próximo domingo. Eu não as abandonarei mais. Tampouco virarei as costas para Lara outra vez. E se o que me falta é um sentido para continuar vivendo, este me parece grandioso o suficiente. Ligo a ignição e me encaminho para casa. Quinze minutos depois, passo pela portaria e entro no condomínio.


Trata-se de um residencial fechado, de alto padrão, com jardim, praça, passeios arborizados, um lago artificial, bosque de araucárias, trilhas e área verde preservada. O ar puro do lugar, sua tranquilidade, segurança e espaços de lazer em abundância, foram determinantes na hora de escolher um lugar para morar com a família. Todas as construções são de dois pisos, com peças espaçosas, ensolaradas, sendo as fachadas revestidas em tijolos aparentes brancos, em estilo normando, com os telhados inclinados. É nesta casa tomada por lembranças que eu resido. Estaciono. E não guardo o carro na garagem, pois pretendo sair novamente quando a noite cair. Aos domingos, após visitar Lara e Sylvia, costumo jantar numa cantina no centro da cidade. O proprietário é um amigo antigo e leal. Ângelo. E sem que eu precise avisá-lo, ele garante a reserva da mesa. É um hábito que mantenho regularmente. Faz-me bem o movimento do ambiente. O som dos talheres. O cheiro dos molhos. As vozes animadas. Os rostos corados pelo consumo de vinho e pelo calor humano. Costumo sentar sozinho num canto afastado, tendo uma boa visão das mesas. Enquanto janto, fico observando as pessoas. Gosto de me alimentar da energia vibrante que emana delas. Isso me revigora. De algum modo, assistir outras vidas vivendo suas vidas, me ajuda a seguir adiante com a minha. Assim que entro em casa, vou direto para a cozinha. Pego um copo, encaixo no dispenser da porta do refrigerador e sacio a sede com a água gelada. Olho pela janela e avisto a edícula ao fundo, onde mora Adélia e seu marido Joel. Adélia é a cozinheira e ajudante nos serviços da casa. Joel cuida do jardim, faz pequenos reparos e auxilia a esposa com as compras no supermercado. Aos domingos, eu os libero para aproveitarem uma folga merecida. Sem filhos, com familiares morando próximos daqui, eles costumam sair para visitar os parentes ou fazerem passeios, retornando somente ao anoitecer. Adélia deixa o almoço pronto para mim, bastando apenas colocá-lo no micro-ondas. Ainda é cedo. Tomarei uma ducha e descansarei um pouco. Só mais tarde sairei para jantar. Subo em direção ao segundo piso. E quando passo em frente ao quarto de Lara, paro. Passo a mão na madeira da porta, como se fizesse um carinho em minha filha. Não há mais nada ali. O cômodo foi esvaziado. Liguei para uma instituição de caridade e doei a mobília e todos os brinquedos. Exceto por um porta-retratos, acomodado no aparador da sala de jantar, em que estamos os três juntos felizes, não existe nenhum sinal de Sylvia e Lara por toda a casa. Cada objeto pertencente a elas foi removido. Mantê-los, seria um tormento. E de tormentos, a minha mente já está repleta o suficiente. O quarto do final do corredor, onde vivi com Sylvia os meus momentos mais intensos e prazerosos, encontra-se remodelado. A decoração anterior misturava o branco e o laranja, em cores vibrantes, bem ao gosto de Sylvia. Agora, predominam o preto e o cinza, cujos tons são fechados e frios, como eu.


Tomo banho. Puxo da gaveta do closet uma bermuda jeans e uma camiseta branca de mangas curtas. Visto-as. Nesse instante, o celular toca. Olho a identificação da chamada e o nome no visor não me faz ter vontade de atender. Milton Weber. Deixo tocar. Outra hora falarei com meu pai. Ele sabe que aos domingos não me disponho a falar com ninguém. Guardo o celular no bolso. Sento-me na poltrona do quarto, pensativo. E se o assunto for importante? Sou vice-presidente na seguradora da família. E meu pai administra os negócios, sem ligar para os dias da semana. Seja como for, hoje é um dia para ser respeitado. Já o alertei sobre isso. Amanhã nos veremos no escritório, então eu... Nisso, uma rajada de vento faz abrir a porta-janela da sacada, que deveria estar mal fechada, fazendo a cortina flutuar e enrolar-se num vaso de plantas próximo. Preparo-me para ajeitar a situação e surpreendo-me com a mudança no tempo. O céu escureceu de repente. Parece noite lá fora. E são apenas dezoito horas. A brisa de antes, deu lugar a ventos fortes. Irá chover em breve, ao que tudo indica. Um relâmpago corta o céu, seguido de um trovão. E no mesmo instante, escuto um grito. Fico em dúvida se foi isso mesmo, por conta da trovoada. Olho para fora e não vejo nada de estranho. As ruas do condomínio estão desertas. Assim, julgando tratar-se de um engano, levo as mãos para empurrar a porta, quando um som agudo rasga os ares e me faz ter certeza de ter ouvido corretamente. Outro grito. Sim. Desta vez escuto nitidamente. É alguém pedindo socorro. E é uma voz de mulher. Minha impressão é de que o som veio do bosque, localizado no outro lado do lago artificial. Num impulso, saio para acudir quem está pedindo ajuda. Descalço, sem pensar em nada, desço a escada correndo. Chego na rua e disparo pelo caminho de pedras, em direção aos arvoredos. [...]

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SINOPSE Jeff Weber é um homem solitário e inconformado com o seu destino. Tentou acabar de vez com o sofrimento, jogando o seu carro contra um poste de concreto, mas sobreviveu. Um dia, Jeff escuta da sacada de sua casa, uma jovem pedindo socorro e corre até lá para ajudá-la, sem saber que esse seu gesto daria início a um grande pesadelo. Jeff liberta a jovem Valentina das mãos do agressor e recebe ameaças dele, por ter surgido na hora errada. O sujeito foge, mas no mesmo dia coloca em prática as ameaças. Após isso, Jeff vê sua rotina pacata e metódica, sofrer uma guinada vertiginosa. Uma série de acontecimentos o faz pensar que sua vida corre perigo e o homem falava sério. Ele só não entende qual o motivo para tanta fúria e desejo de vingança. Ao mesmo tempo em que se vê perseguido e na mira de um maníaco, Valentina surge como um sopro de esperança em sua vida, trazendo um pouco de paz ao seu coração acostumado a estar mergulhado em sombras. E quando ele passa a acreditar que finalmente tudo se resolveu, algo inesperado acontece, jogando Jeff num dilema desanimador. Agora ele terá que ser realmente forte para superar o novo obstáculo que o destino colocou em seu caminho, se quiser viver.

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