Unison

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U N I S O N


A


U N I S O N

ANDY

MARINO

A REDE

SOCIAL

DO FUTURO


O novo nome dela era Mistletoe. Em seu aniversário de 15 anos, ela anunciou a seu tutor, Jiri, que estava cansada de ser chamada de Anna. – Seu nome é Anna – grunhiu Jiri. – Quem foi que escolheu? – Seus pais. – E onde eles estão? Ele ergueu uma sobrancelha cerrada. – Tudo bem. Como você vai querer ser... – Mistletoe. Ela leu o rosto dele: . Então acrescentou: – O negócio é o seguinte: a partir de agora vou pensar em mim mesma como Mistletoe, então, quando você me chamar de Anna, não vou responder. Porque esse não é o meu nome. Ela olhou feio quando ele, resignado, revirou os olhos, sinal de que ela tinha vencido. Jiri voltou a enterrar seus dedos grossos num emaranhado impossível de fios que algum dia fora um legítimo computador pré-Unison. Mistletoe saiu para a varanda. Deitada de costas, olhou através das


aberturas de ventilação na cúpula de aço plástico que impedia a Pequena Saigon de se abrir bem no meio da Cidade Litorânea do Leste, que a recobria. A jovem vivia com Jiri no topo de uma montanha de barracos que cascateavam por trinta andares até chegar à rua lá embaixo. A casa deles estava tão espremida por baixo da cúpula, que Mistletoe sempre tinha a impressão de poder sentir todo o peso da cidade sobre si enquanto dormia. A garota mexeu a cabeça devagar para a frente e para trás, até que sua espessa e macia trança azul acomodou-a como se fosse um travesseiro. As aberturas de ventilação não eram maiores que o punho de Jiri, mas se ela se deitasse no ponto exato podia ver os carros reluzentes passando, separados entre si por escassos milímetros. O murmúrio de um bilhão de motoristas conduzidos pelo sistema de controle de tráfego da Cidade Litorânea do Leste ressoava pelas aberturas e fazia seu corpo vibrar por dentro de um jeito bom, como as cadeiras de massagem pré-Unison que Jiri vendia em sua loja de velharias. À medida que, acima da cúpula, a tarde se transformava em um crepúsculo escarlate, ela mergulhou num sonho agitado... O lugar era escuro e gelado. Ela estava atada a uma espécie de cama dura dentro de um tubo metálico do tamanho de uma geladeira. Tiros à moda antiga, secos e ressonantes, eram ouvidos no meio de uma gritaria ao longe. O som surdo de armas disruptoras deu lugar a passadas frenéticas. – Não tenha medo, Anna – disse uma voz suave. Corte para uma nova cena. Estava sendo sacudida para cima e para baixo. Uma serpente deslizava sobre seu ombro. Não, duas serpentes. Três! Ela gritou, mas o grito saiu abafado, e então notou que seu rosto estava enfiado nas dobras do casaco sujo e malcheiroso de um homem. Ela se contorceu e o homem a apertou com mais força contra o peito. Havia cobras por todo lado. Ela tentou morder a mão enorme. O homem soltou um palavrão em outra língua. Ele corria mais rápido do que ela jamais teria imaginado, apertando-a junto ao corpo com uma das mãos enquanto a outra disparava uma pistola


para trás, por cima do ombro. Ela libertou um braço e agarrou uma das serpentes. Era lisa e metálica, como uma espécie de cabo. Deslizou a mão ao longo do cabo, até que chegou à própria testa. Eram fios que saíam de seu rosto. Mistletoe gritou e escapou das mãos de Jiri, e de repente estava se debatendo, solta no espaço. Acordou antes de bater no chão. Sentou-se ereta e ofegante na varanda, as mãos apertadas contra os lados da cabeça, da qual não saía fio algum. Hoje, seis meses depois, Mistletoe estava sentada na varanda com as costas apoiadas em Nelson, uma scooter capenga que ela garimpara na loja de Jiri. Na cidade acima da cúpula, Nelson talvez fosse o brinquedinho que algum garoto rico jogara fora. Aqui embaixo, no bairro apinhado onde a jovem vivia, ele era um tesouro a ser protegido com a própria vida. Os quatro propulsores iônicos eletrostáticos por baixo do veículo eram um equipamento top de linha da Cidade Litorânea do Leste lá em cima. Seu amigo Sliv tinha trocado a transmissão barulhenta e alinhado a direção. Ela não costumava deixar a scooter fora de vista. – Tive aquele sonho ontem de novo, Nelson. A scooter continuou em silêncio. Não tinha componentes de I.A. e não podia ouvir nem responder. As conversas entre Mistletoe e Nelson eram bem unilaterais. Ela suspirou e olhou através da porta de acrílico transparente para Jiri, debruçado sobre um antigo manual de instruções caindo aos pedaços, enquanto apertava os olhos e repetia para si mesmo as palavras em voz alta. Ela já tinha visto outros estrangeiros lendo o Inglês Ocidental daquele jeito. Mas nunca vira ninguém fazer anotações como Jiri, como se estivesse copiando tudo de novo. O método dele parecia ridículo, mas ela jamais perguntou nada sobre aquilo, e só arquivou o assunto na categoria de assuntos em que nunca tocariam. Desde que os pesadelos tinham começado, fazia seis meses, essa categoria não parava de crescer. Segredos


pareciam originar mais segredos. E a maneira como Jiri lhe falava era sempre meio apressada, nervosa, como se preferisse que ela guardasse as coisas para si. E isso era, portanto, o que ela fazia na maior parte do tempo. Seu último segredo era o presente que Sliv lhe dera, uma gargantilha com um pingente prateado, na forma de três engrenagens interligadas. Ele nunca lhe dera nada antes, e ela tinha ficado tão surpresa que nem conseguiu agradecer. Mistletoe a guardava escondida por baixo da blusa. As engrenagens pequeninas aninhavam-se no oco onde as clavículas se juntavam à garganta. Ela viu Jiri coçar o bigode e virar a página. Estava ocupado demais para notar que a garota passara o dia rodando pela cidade na scooter, sem dar notícias. Ela dobrou o joelho junto ao peito e tocou a canela, que machucara ao tentar se enfiar entre um ônibus quebrado e uma carroça de especiarias importadas. Doía, mas dava para aguentar. Do outro lado da passarela que se estendia suspensa sob a cúpula, um casal de jovens alimentava uma fogueira. Mistletoe acenou, mas tampouco eles tinham tempo a perder com ela, e nem olharam em sua direção. Ela se deitou de costas, a trança azul lhe servindo de travesseiro, e olhou para cima, pelas aberturas de ventilação. Ficou imaginando quantos outros jovens estariam fazendo o mesmo. Sempre que pensava em outros jovens, ela os imaginava com exatamente os mesmos pensamentos e dúvidas que ela. Olhou, por cima da borda da varanda, para as multidões infinitas se acotovelando lá embaixo – a Pequena Saigon era uma uva madura cuja polpa suculenta era grande demais para caber na casca – e se angustiou. Afinal, o que importava o que pensasse sobre o que quer que fosse? Ela era um cisquinho, uma partícula minúscula, que ia viver e morrer olhando por um buraco, enquanto o mundo seguiria em frente, como se ela nunca tivesse nascido. Como sempre fazia quando precisava mudar o rumo dos pensamentos, ela visualizou tia Dita, a única pessoa que a levava para fazer coisas legais. Foi tia Dita quem a ajudou a escolher o perfume certo para a trança,


jasmime centeio, e a tingi-la de azul com raízes amassadas. E foi tia Dita que conseguiu que ela entrasse de penetra na Zona Recreativa Designada para Jovens, no Parque da UniCorp, lá em cima, onde havia rampas para scooters e uma simulação gratuita do Unison, que diziam ser igual ao verdadeiro. Unison: o auge de todas as redes sociais humanas. BetterLife. A Alucinação Coletiva. Como quer que fosse vendido e anunciado, Mistletoe não ligava a mínima. Ela não tinha nem como obter a ID de código fixo para ter acesso à Cidade Litorânea do Leste, quanto mais o tão desejado login para o Unison. Imprecações furiosas soaram de repente dentro da casa. Ela voltou a cabeça. Jiri acertou dois tapas num telefone celular velho e depois atirou-o com força no chão. Como todos os moradores da subcúpula, ele tinha que testar um monte de celulares velhos e detonados para conseguir pegar um sinal muito fraco, e ela sempre assistia, meio se divertindo, meio perplexa, àquela cena: um homem grandalhão e frustrado contra um telefoninho minúsculo e indefeso. Ele pegou outro, apertou um botão e começou a berrar. – Sim, mas... Sim. Foi o que eu disse. Claro que estou em casa, é onde... – Seus ombros descaíram, e ele baixou a voz. – Agora? Sim. Tudo bem. Entendi. Ma buh. Jiri olhou através da porta, pálido, e pareceu não vê-la. Ela acenou. Tinha algo errado. Ela abriu a porta. – Jiri? Os olhos dele encontraram os dela. – Vem para dentro. Fecha a porta. Fica aqui. – Qual é o problema? – Fica dentro, Anna. Ele parecia tão perturbado que ela nem tentou corrigi-lo, e ficou só olhando enquanto ele se enfiava em seu casaco pesado, apalpando a pistola pré-Unison no bolso. Ele achava que ela não sabia da arma, mas ele ficava o tempo todo dando palmadinhas nela, sem perceber, através do tecido.


– Volto mais tarde. – Aonde você vai? – Depois explico. – Já na porta, ele se virou de novo para ela, abriu a boca, hesitou. – Se eu... – O quê? – Mistletoe. Sempre esqueço. Fica aqui dentro. Te vejo mais tarde. A porta bateu detrás dele, e a garota ouviu o zumbido do elevador descendo. Mistletoe correu para a varanda e localizou o pontinho brilhante da careca dele no meio da multidão. Estava a pé. Então não ia longe. Ela ficou olhando enquanto ele abria caminho por entre três ciganos pintados de amarelo e laranja, empurrando um deles para o meio da massa compacta de buggies e scooters decrépitos que avançavam lentamente pelas ruas, o dia inteiro e a noite inteira. A maioria das pessoas daqui de baixo desarmava os alarmes de trânsito, mas alguns eram dificílimos de silenciar, e a Pequena Saigon estava sempre cheia de lembretes suaves, em mil línguas diferentes, de dirija devagar e com cuidado, como se houvesse alguma chance de correr nas ruas congestionadas. Ela olhou para Nelson e depois voltou a observar a cena lá embaixo, bem a tempo de ver Jiri sumir por trás de uma pilha de barracos no fim do quarteirão, junto à atravancada pista de acesso por onde transportadores com os circuitos de I.A. reprogramados carregavam ferro velho para os reis da sucata. Em segundos ele sairia de vista por completo. Mistletoe ergueu os óculos de motociclista laranja que trazia pendurados ao pescoço e os prendeu por sucção sobre os olhos. – Nem sonhando a gente vai ficar aqui, Nelson. A scooter estava fria, mas Mistletoe deu a partida e pulou nela, meteu as mãos nas alças do guidão e com o pé abriu um alçapão na varanda. Ela já tinha esquentado Nelson durante a descida antes; podia não ser uma boa ideia, mas impossível não era. Sentiu um colchão macio de energia debaixo de si quando os propulsores iônicos despertaram com um zumbido. O motor tossiu, mas ainda não havia pegado quando ela enfiou a frente do veículo


pelo alçapão. Os propulsores mal conseguiram mantê-la afastada dos telhados dos vizinhos enquanto ela meio manobrava, meio despencava ao longo da encosta inclinada da favela vertical. Uma mulher que pendurava roupa se abaixou quando a frente da scooter arrancou do varal um monte de camisas brancas, espalhando-as pelos casebres abaixo. – Cuidado! – Mistletoe gritou por cima do ombro. Os propulsores entraram de vez em ação e ela sentiu o colchão se expandir sob o veículo. Perto da base da coluna de casebres ela fez um voo rasante sobre a rua apinhada, dando um chute forte e ligeiro na lateral da scooter. A eletricidade estática levantou mechas de cabelo enquanto ela sobrevoava a multidão. Então o motor pegou e ela desceu entre dois bêbados que cambaleavam, suas camisas manchadas com o verde do absíntio. Deu um cavalo de pau, abaixou-se para passar por baixo dos braços esticados e dobrou a esquina, ignorando os gritos com que a chamavam de volta. Enquanto seguia pela pista de acesso, de repente percebeu que o som do motor velho da scooter parecia um trovão perto do silêncio sinistro dos transportadores de sucata. Os modelos antigos ainda faziam barulho, mas sem os palavrões, gritos e gargalhadas, toda a rua, que traçava o limite da Pequena Saigon, dava uma impressão de solene desolação que a aterrorizava. E não havia nem sinal de Jiri. Obrigado por seu trabalho!,disse um dos transportadores. Fiquem de olho na bola, crianças!,disse outro. Mistletoe sentiu um arrepio. Seguiu em frente com cautela. Os transportadores eram recuperados das pilhas de sucata; depois de terem seus circuitos de I.A. recondicionados com programas incapazes de pensar, ficavam condenados a carregar, eternamente, montes e montes de lixo da subcúpula. Para onde ia tudo isso? Logo adiante, ela ouviu uma troca abrupta de palavras ríspidas: Jiri e mais alguém. – Devagar, Nelson – sussurrou, e reduziu ainda mais a velocidade.


A scooter ronronou. Mistletoe seguiu o som das vozes até uma via estreita e mal pavimentada, que corria entre a rua principal e a pista de transporte de sucata. Era um caminho abandonado, atulhado de garrafas e amontoados de coisas cinzentas e disformes, das quais ela preferia ficar longe. Desligou o motor, mas deixou os propulsores engatados, e espiou por cima de uma pilha de metais enferrujados. Lá, no meio da rua, estava Jiri, de costas para ela, apontando a pistola pré-Unison preta para um policial grandalhão da Cidade Litorânea do Leste, cujo braço metálico reluzente terminava numa ponta brilhante. Esta, por sua vez, mirava um garoto mais ou menos da idade de Mistletoe, mais bem vestido do que qualquer um que ela já tivesse visto. Ele usava holomoda, uma elegante projeção de um terno supertransado, como aqueles dos empresários poderosos lá de cima. O cabelo louro e fino brilhava, mesmo na sombra da subcúpula. Estava bem longe de casa, era óbvio, e tinha as mãos para cima. Seus olhos arregalados iam de Jiri para o policial. – Eu levo ele – disse Jiri. – Leva coisa nenhuma – retrucou o policial calmamente, e a ponta de seu braço assumiu um brilho alaranjado. Ele se voltou para o rapaz: – Você vai pra casa agora, garoto. O rapaz não se mexeu nem falou nada. Mistletoe deixou a scooter em ponto morto. Sentia-se meio zonza. As ameaças de sujeitos como Jiri e aquele policial a incomodavam. Todos os dias ela percorria as ruas da Pequena Saigon e testemunhava toda a mesquinharia humana. E seu sonho lhe dizia que Jiri e seus amigos eram assassinos. Ou sequestradores. Ou as duas coisas. Lá no fundo, ela acreditava nisso. Teve uma lembrança breve e sufocante do vento uivando em seus ouvidos, de estar apertada contra o peito de Jiri enquanto ele corria. Tiros, gritos, mortes. E qual o motivo? Ela refletiu que talvez nem os caras soubessem. Talvez fizessem aquelas coisas por fazer, pela adrenalina doentia, a subida vertiginosa antes da queda. De repente ela viu a cabeça de uma policial aparecer devagar por cima


da pilha de ferro velho, e viu que ela erguia o braço metálico – disruptor, lembrou-se Mistletoe –, apontando-o para Jiri. Com absoluta determinação, Mistletoe deu partida e fez a scooter saltar sobre a pilha enferrujada. Ouviu a si mesma gritar, um grito abafado e incompreensível. A lateral da scooter pegou de raspão a cabeça da policial, que, surpresa, tentou se abaixar e caiu. Jiri não mexeu um músculo, mas o primeiro policial piscou os olhos e se virou para o monte de ferro velho. Jiri conseguiu disparar um rápido pampam-pam antes que o braço do guarda emitisse um brilho laranja. Por um breve instante, o crânio e a espinha dorsal de Jiri apareceram através da carne transparente, de células desestruturadas, e então ele pareceu normal de novo. Oscilou de leve enquanto via o policial desabar. Em seguida virouse e fitou o olhar chocado de Mistletoe enquanto caía de joelhos. Mistletoe sentiu a bile subir até a garganta. O que o disruptor tinha feito com Jiri? Horrorizada, ela ficou olhando enquanto ele abria a boca e levantava as sobrancelhas, implorando. A vida fugiu de seus olhos e ele caiu de bruços no chão. A mente dela ficou vazia, exceto por um único pensamento muito claro: tia Dita é minha única proteção agora. Uma série de tossidas tímidas a tirou do estupor. O garoto bem vestido estava de joelhos entre os três adultos caídos. Ela se deteve ao lado dele. – Você pode andar? Ele continuou olhando para o chão e sacudiu os ombros. – A gente não pode ficar aqui – ela disse. A arma ultrapassada de Jiri tinha feito um barulho ensurdecedor. Logo alguém viria investigar. Mais policiais chegariam e iriam encontrar os colegas feridos. Ela não queria estar por ali para ter que explicar. – Sobe aqui – chamou ela. Dessa vez o garoto olhou para Nelson, e depois olhou para ela pela primeira vez. Abriu a boca, mas nenhum som saiu. Ela entendeu a expressão dele: nessa coisa? A scooter era minúscula, enferrujada, de cem anos atrás. O Almofadinha ali talvez nunca andasse em nada menos chique do que um


daqueles elegantes carros de chassi articulado que ela via pelas aberturas da cúpula. – Sobe! – Ela o agarrou pela manga da camisa. Sua mão atravessou a projeção de tecido azul-marinho e tocou o material respirável e colante de seu traje moldável. A três metros de distância, a policial começou a se mexer. O garoto engoliu em seco – ela viu seu pomo de adão subir e descer – e subiu na garupa da scooter. O peso dos dois forçou os propulsores, e Nelson respondeu com um rrrrr raivoso. O garoto rodeou com os braços a cintura de Mistletoe, cauteloso, e espirrou quando a trança densa e perfumada pinicou seu nariz. Eles ultrapassaram uma fileira contínua de transportadores descerebrados. Mistletoe invejou-lhes a falta de raciocínio – “seria tão ruim assim?” Será que lembravam algo de suas vidas antigas como unidades de I.A.? De repente ela se sentiu enjoada e deteve o veículo. Nos últimos segundos de vida, Jiri olhara para ela com olhos cheios de dor. Ela vomitou. A arma do policial tinha feito algo horrível às vísceras dele. Apoiou a mão no muro lateral do acesso e vomitou de novo. – Você está bem? – o garoto perguntou. Ela respondeu com uma fungadela entrecortada, limpou a boca com a mão e engatou a marcha da scooter. O veículo subiu a rampa de acesso até o nível da rua, onde um grupo de crianças maltrapilhas jogava holodados defeituosos contra um engradado vazio. No mesmo instante, os cheiros e sons caóticos da Pequena Saigon, tão familiares, mesclaram-se ao barulho do motor de Nelson. Ela acelerou, passando em meio aos jogadores de dados, e manobrou com destreza através da multidão, cruzando a rua. Desmontou da scooter ao pé de uma favela vertical, distante poucas quadras de onde ela morava. Ela tinha consciência de que estavam perto demais do local da morte de Jiri, e seus instintos de rua lhe diziam para subir, subir sempre. Também estava ciente de que, atrás dela, o garoto fazia tanta força para não chorar que seu corpo se sacudia todo. Ela não queria olhar, porque cairia no choro. Estava com os nervos abalados e sensíveis.


– Sinto muito – ele murmurou. – Se algo acontecer a Jiri, devo ir para a casa de minha tia Dita – ela disse, com a maior calma que pôde. – Tive que prometer isso. O garoto estremeceu de novo e ficou em silêncio. Ela o conduziu através da porta aberta do pequeno elevador quadrado e acomodou a scooter lá dentro. – Sinto muito – ele repetiu. – Não sei o que mais dizer. Eu... Obrigado. Havia uma mancha de graxa no rosto pálido do garoto. Fora isso, ele parecia ter acabado de sair de uma wiki de moda. – Então, quem é você? – Mistletoe perguntou. Mas antes que ele pudesse responder, os olhos dela se encheram de lágrimas e ela começou a chorar. A porta fechou-se e o elevador subiu. – Sou... – ele começou, então parou e seus olhos se fixaram na parede metálica do elevador, onde alguém tinha pichado uma flor murcha em cor laranja. – Hoje de manhã eu era uma outra pessoa. Ela piscou até as lágrimas pararem, e firmou a voz. – Você é lá de cima. Ele fez que sim com a cabeça. – Então o que está fazendo na Pequena Saigon? O rapaz apoiou as palmas das mãos na parede e inclinou-se para diante, até a testa tocar o miolo da flor. As pétalas alaranjadas rodeavam seu cabelo reluzente. Ele inspirou fundo e depois soltou todo o ar. – Tem sido um dia bem estranho.


O nome dele era Ambrose Truax, e seu dia estranho havia começado logo depois do amanhecer, com uma batida seca na porta do quarto e uma voz chamando-o. – Senhor? Está na hora. Ambrose emergiu do sono, afastando-se do sonho que vinha tendo quase toda noite desde que fizera 15 anos, seis meses antes. Nesta manhã, tinha sido como um slideshow de impressões: metal frio, escuridão, a voz de seu pai. Ele estremeceu e piscou para afastar o sono dos olhos pela última vez. Depois do procedimento de modificação de hoje, ele nunca mais dormiria de novo. Detectando seu despertar, o quarto clareou a janela aos poucos, até o ambiente ficar imerso na luz solar suave e amarelada. Outra batida na porta. – Senhor? Ambrose sentou-se enquanto o Fluxo de Processo matutino padrão ajustava-se em sua mente, com algumas alterações aqui e ali por conta da importância do dia que tinha pela frente. Alguns preparativos adicionais seriam necessários.


– Te encontro no saguão em sete minutos – gritou na direção da porta. Ouviu os passos que se afastavam. Aos 15 anos, Ambrose era o mais jovem Associado da UniCorp. O segundo mais jovem, um gênio em Mapeamento de Dados da Expansão da Grande Londres, tinha 21 anos. Ambrose até mesmo chefiava sua própria equipe de Fluxo de Processo, e era o responsável por seguir as Linhas de Amizade e prever o comportamento dos usuários dentro da rede social Unison. Isso garantia que cada login no Unison fosse uma experiência plenamente satisfatória, agradável e eficiente. Mais da metade da população mundial pagava bem caro para ter um Perfil Unison, e era atribuição de Ambrose fazer com que todos quisessem ficar logados para sempre. O fato de ser filho de Martin Truax, Presidente da UniCorp, e mais rico do que Mistletoe jamais poderia imaginar, nunca foi um grande problema para os Associados mais velhos, por uma razão: ele era excelente em seu trabalho. Os bons administradores sabiam que os Associados realmente talentosos para trabalhar com Fluxo de Processo tinham uma espécie de sexto sentido para seguir múltiplas Linhas de Amizade e Linhas de Pensamento até seu destino mais provável. Para Ambrose, seu trabalho era só uma extensão do modo como sua mente sempre funcionava. Ele já sabia que levaria exatos sete minutos para se aprontar, antes mesmo de ter qualquer pensamento concreto sobre o que ia fazer em primeiro, segundo ou terceiro lugar. De fato, fazia tempo que ele tinha entendido que poderia mudar sua rotina em qualquer ponto – olhar pela janela, tomar um segundo copo de suco sintético de grapefruit – e ainda assim levaria os mesmos sete minutos. Como se quisesse demonstrar isso, pulou da cama e foi direto para a janela. Ambrose morava com o irmão mais velho, Len, no 298o andar do Condomínio Grandes Planícies, chamado assim porque os atmoedifícios que o formavam eram, em sua maioria, prédios de pastagens. De sua janela, quase dois quilômetros acima da cúpula da Cidade Litorânea do Leste,


Ambrose viu o sol se erguer sobre os campos. A manhã começava com um calor escaldante, e a luz alaranjada banhava os telhados verdes bem cuidados. Ele comprimiu de leve a palma da mão contra a janela para que o vidro escurecesse, atenuando a luminosidade, e observou um grupo de vacas – pontinhos manchados de preto e branco – pastando em um dos campos. Elas o faziam se lembrar da fazenda na periferia da Expansão da Nova Inglaterra, que visitara com a família anos antes. O pai deixou Ambrose e Len se divertirem por conta própria durante umas duas horas, e os dois ficaram incomodando as vacas de laboratório, forçando-as a chegarem até a borda do pasto. Este era cercado por um escudo acrílico quase invisível, que impedia as vacas de caírem e arrebentarem a cúpula lá embaixo à velocidade de uma reentrada atmosférica, mas Len conseguira encontrar um orifício. – Ambrose! Vem cá! – Len entregou-lhe uma bola de gude e deu um sorriso malvado. – O que foi? – Deixa cair. – Da borda? – É, a não ser que você... Ai, caramba, você tá é com medo. Você é certinho como um podcast. – Não sou, não! Eu faço isso, só que... aqui tá bom? O olhar de Ambrose cruzou o pasto. Lá do outro lado, seu pai conversava com o gerente da fazenda genética GenFarm, e apontava para a câmara central de irrigação, um cilindro reluzente que atravessava todo o edifício de alto a baixo. Ambos estavam ocupados e longe demais para distinguir detalhes. O garoto hesitou alguns segundos, tomou impulso com o braço e lançou a bolinha pelo buraco, a mão espalmando-se com força contra o acrílico. A bolinha cruzou o espaço vazio, rodopiou, pairou por um milissegundo, e sumiu antes que pudessem registrar sua queda. O acrílico impedia-os de se debruçarem para ver.


Len agarrou o ombro do irmão, parecendo muito sério. – O que é que você foi fazer? – Para, Len. – E se você... – Cala a boca! – Estamos tão alto que a bolinha vai pegar fogo e explodir a cabeça de alguém. Quem sabe uma família inteirinha, assim... – Len pôs as mãos nos lados da cabeça e então as afastou num gesto rápido. –

Pchhhhhhhhhhhhh! Ambrose mordeu o lábio e olhou por cima da borda. Estavam pouco acima do centésimo andar. Com certeza não era alto o suficiente para... Len deu uma risadinha. – Vamos embora. – Mas... – Você fez um bom trabalho hoje, soldado. Eu mesmo vou fazer o relatório para o Alto Comando e recomendar que você receba a medalha de coragem e uma promoção para sair da Brigada Podcast. Len se virou e saiu correndo pelo campo orvalhado. Ambrose gritou Peraí! e tentou alcançá-lo, mas seu irmão mais velho, como sempre, conseguiu manter a dianteira. Em seu quarto, Ambrose se deu conta de que estava com a testa encostada na janela. Não importava se um evento de sua breve infância fosse divertido ou assustador; uma parte de si sempre queria revivê-lo, de novo e de novo, num contraponto à sua crescente responsabilidade como adulto. Havia um motivo pelo qual só tinha amigos na casa dos 20 anos: mais ninguém de sua idade aguentaria a pressão constante daquela vida de decisões empresariais. Já os sonhos eram outra história: odisseias alucinantes que o deixavam sem fôlego, exausto. Não conseguia se livrar deles. E estavam piorando: vívidos, detalhados, repetindo-se a cada noite nas últimas semanas. Seu pai dizia que era o centro do sono no cérebro que, percebendo sua extinção


iminente, estava saindo de controle antes de ser desligado. Ambrose pousou a mão na mesa sintetizadora, uma reluzente bandeja prateada que saía da parede, perto da janela. – Torrada de canela. Daí a pouco, a parte de cima da bandeja abriu-se, deixando à mostra uma fatia de BetterToast coberta com manteiga e uma camada uniforme de canela. Ambrose devorou-a enquanto encostava a mão no closet para abrilo. Os produtos BetterFood (Um Gostinho do Unison no Mundo Real!), da UniCorp, constituíam uma simulação deliciosa, enriquecida com os nutrientes apropriados e uma etiqueta sensório-ofuscante, que dava ao estômago a sensação de estar cheio. Devido ao enriquecimento, produtos BetterFood eram muito mais nutritivos que a comida de verdade, e nunca estragavam ou tinham um gosto diferente do esperado. Ambrose terminou depressa de comer e espanou do peito as migalhas; o sublimador de partículas na unidade filtradora do quarto vaporizou-as antes que chegassem ao piso. O garoto pensou na bolinha de gude, caindo da borda da fazenda, imaginando se algum dia a Câmara Municipal da Cidade Litorânea do Leste (da qual seu pai fazia parte) instalaria grandes sublimadores para desintegrar objetos em queda antes que rompessem a cúpula e matassem um monte de gente na Pequena Saigon ou em Rio II. Um Fluxo de Processo instantâneo informou que não valeria a pena, mas ainda assim... Ele entrou no closet, que continha um só traje moldável, de espuma viscoelástica negra, pendendo de um cabide. Encostou a palma da mão no traje, para externalizar a vasta gama de opções de roupa, e no mesmo instante o cômodo ficou repleto de holomoda de grife. Ambrose foi e voltou entre as fileiras de calças e camisas transparentes que flutuavam, fantasmagóricas, e por fim decidiu-se por um terno azul-marinho e gravata vintage do século XXI. Com um gesto da mão, fez as demais roupas desaparecerem, e a seguir vestiu o traje. Este ajustou-se suavemente a seu corpo e assumiu a exata aparência externa de um terno azul-marinho.


Virou-se então para a porta do closet. – Reflexo – disse. A porta tornou-se opaca e depois espelhada. Diante dela, ele ajeitou o fino cabelo louro. Era o dia mais importante de sua vida, e queria parecer não um adolescente, mas o empresário que seu pai o criara para ser. Desativou o espelho e voltou para o quarto, onde colocou na boca uma pastilha BetterMintUniCorp e deu uma última olhada ao redor. Era a primeira manhã, em muitos anos, em que ele não se projetava para dentro do Workspaceda companhia no Unison, pronto para começar o dia. Sentiu uma pontada funda de ansiedade na barriga, ao pensar em tudo o que estava a ponto de perder, e juntou as palmas das mãos. Os receptores de código fixo fecharam o circuito de login e enviaram uma comichão familiar para as pontas dos dedos. Pensou em sua senha – LenOtário – e sentiu os sintomas da projeção: o sabor de ácido de bateria que a maioria dos usuários disfarçava mascando BetterMints, a coceira no fundo da garganta como num começo de gripe, a breve sensação de falta de peso. Então uma alegria pura fluiu através dele. Emocionalmente, projetar-se era como passar de um funeral a uma viagem de férias num piscar de olhos. Ambrose sempre notava primeiro a luz mais forte, que tornava mais definida a silhueta dos móveis e deixava o quarto num foco perfeito e refulgente. Era como se a vida real fosse vivida por trás de uma lente embaçada, que o Unison limpava por completo. Muitos usuários descreviam a experiência como se estivessem vendo pela primeira vez o lugar onde estavam. Outros diziam que era como ser um recém-nascido totalmente consciente. O quarto não sumiu nem se transformou numa sala virtual impessoal; os primeiros testes de qualidade do Unison tinham determinado que se projetar para um lugar muito diferente era desagradável e deixava as pessoas desorientadas. Em teoria, os usuários gostavam da ideia de fazer login em casa e subitamente aparecer nos Alpes suíços. Na prática, isso induzia vômitos, dores de cabeça e a sensação de ter água entrando pelo nariz.


Como um Associado de alto escalão, Ambrose poderia ter escolhido projetar-se para locais restritos aos Administradores, como o Workspace ou Greymatter, a propriedade de seu pai. Mas nesta manhã ele só tinha tempo para uma rápida atualização. Um espelho surgiu em sua mente, separando sua percepção em dois setores diferentes: o mundo interior de sua Plataforma de Administração e o mundo exterior do Unison. Filtrou toda a informação que não dizia respeito à UniCorp – incontáveis pedidos de Amizade e convites para eventos que nunca tivera tempo de examinar – e acessou o Feed Empresarial. Era como se sua mente tivesse sido aberta e organizada para que ele a examinasse; filtrar aquela carga brutal de informações era tão simples quanto fechar uma porta e abrir outra. Seu Feed Empresarial listava toda atividade ocorrida no Unison desde que ele se projetara para fora dele, na noite anterior. Ambrose analisou as atualizações: 43.987 Novas Contas 3.499 Contas enviadas ao purgatório por falta de pagamento Ele acessou as Contas novas e instruiu a Plataforma para ordená-las por lucro potencial. Uma das vantagens em ser filho de Martin Truax era que sua equipe de Fluxo de Processo tinha prioridade para lidar com os usuários novos mais ricos. A número um hoje era Lori Frederick-Smith, de Boston Heights, magnata do aço plástico. Ela estava logada naquele instante. Ele virou o espelho para fora e exibiu a informação do Perfil dela em seu quarto. De imediato, ele se viu cercado por um redemoinho de detalhes da vida dela. Tinha 64 anos, mas havia atualizado sua Conta para parecer jovem e linda. Ele observou o avatar alto e louro aceitar Amigos num brunch deboas-vindas para novos usuários da alta sociedade. Ela se movia entre eles com graça e confiança, apertando mãos e distribuindo beijinhos. Ele acessou a Linha de Pensamento dela: Lori Frederick-Smith acha que não se importaria em ficar aqui para


sempre. Ambrose sorriu. A população idosa mundial tinha hesitado em aceitar a nova tecnologia das redes sociais radicais, até a recente campanha de marketing Juventude Eterna no Unison, voltada para pessoas de 60 a 100 anos de idade. Novos usuários nessa faixa etária agora representavam uma bela fatia da receita anual da UniCorp. Os lucros, como diria seu pai, foram maximizados com eficiência. Ambrose encaminhou à sua equipe as informações do Perfil da Srta. Frederick-Smith, com instruções de que lhe apresentassem inúmeros Amigos jovens e ricos que fossem quase – mas apenas quase – tão atraentes quanto ela. O Unison já começara a analisar seus gostos e aversões, adaptando-se a eles; sua equipe faria o resto. Em poucos dias, os primeiros 64 anos da vida dela desapareceriam no esquecimento, à medida que ela penetrasse num mundo projetado apenas para sua felicidade. Sentiu um cutucão na perna. Lincoln, seu cão UniPet, encarava-o. – Desculpa, garoto – disse Ambrose, acariciando a cabecinha marrom do animal. – Preciso ir andando. Lincoln abriu as asas e voou até o teto, onde ficou pendurado de cabeça para baixo como um enorme morcego peludo. Ambrose fez uma careta. De onde tinha tirado a ideia de que um cachorro voador seria legal? No mesmo instante, Lincoln desapareceu do teto e reapareceu cutucando sua perna com o focinho. As asas tinham desaparecido. – Bom menino. – Ambrose juntou as mãos e projetou-se para fora do Unison. Piscou os olhos. No mundo real, seu quarto parecia sem graça, bagunçado. Sentia-se desconectado da humanidade, distante da interminável torrente de informações vitais. A solidão apertou seu peito. O desejo urgente de projetar-se de volta para dentro era imenso, mas ele percebeu que era só um sintoma do logout e respirou fundo. – Vou ficar fora dez horas – avisou ao quarto, que em silêncio programou um delicado equilíbrio climático para conservar energia durante a ausência do rapaz. Daí a pouco ele se juntaria ao fluxo de pessoas de carne


e osso que rumavam para seus trabalhos, aquilo que seu irmão Len chamava de Desfile dos Corpóreos. Respirou fundo e imaginou se sua vida pareceria diferente quando vista através de olhos que nunca dormiam. Então foi até a porta, que se abriu ao toque da palma de sua mão. Hora de ir trabalhar. A sede da UniCorp ocupava os últimos 25 andares do Edifício UniCorp, um atmoedifício de 375 andares. Esse era um dos primeiros prédios revestidos com um polímero de aço plástico/tijolo vermelho, de modo que sua fachada de quase dois quilômetros ficasse parecida com uma imensa pilha de mais de cem quartéis de bombeiros, um em cima do outro. Quando Ambrose nasceu, a UniCorp ocupava todo o prédio. Logo depois o Unison Versão 2.0 entrou no ar, e a partir daí cada vez mais escritórios vazios eram convertidos em apartamentos de luxo, à medida que milhares de Associados trocavam a vida de escritório pelos confortos de trabalhar somente dentro do Unison. Por segurança, o Edifício UniCorp só tinha estacionamento no térreo. O Sr. Danielson, um Associado já de idade, que estava com a família Truax desde sempre e trabalhava como motorista e acompanhante de Ambrose, desceu suavemente do fluxo de tráfico elevado e estacionou em sua vaga. Ambrose olhou para cima e viu os arabescos branco-azulados traçados no céu pelos propulsores iônicos dos carros que passavam colados uns aos outros em perfeita harmonia. Danielson abriu-lhe a porta do carro e sorriu. – Pronto para o grande dia, senhor? Ambrose encolheu os ombros. Tinha passado por tantos testes e exames preliminares durante o último ano que era difícil enxergar o dia de hoje como o ponto final. Mas era também difícil negar que o procedimento de hoje tinha um peso diferente. Todos os testes tinham sido feitos no Unison. Agora invadiriam o corpo físico, de carne e osso, alterando em definitivo seu hipotálamo, região cerebral que abrigava o impulso do sono. Ele saiu para o ar matinal, quente até mesmo na sombra densa do atmoedifício da UniCorp.


– Acho que já nasci pronto – disse com sua voz meio séria de homem de negócios. O sorriso de Danielson ficou congelado por um instante, e então ele deu um tapinha no ombro de Ambrose. – É assim que se fala. Me faz lembrar... Sabe, joguei futebol quando tinha sua idade. Não o antigo futebol americano. Não sou tão velho assim, apesar do que seu pai diz. – Ele diz que o senhor tem idade para ser o pai dele. Danielson estendeu a mão e virou a palma para cima. Dela projetou-se sua homepage, que ficou visível no ar entre eles. Era translúcida, e parecia iluminada por trás, em ambos os lados. Danielson navegou pelo site flutuante, cutucando-o com o dedo e fazendo o conteúdo deslizar; o navegador de código fixo seguia suas instruções. Parou numa wiki chamada Filhos Notáveis da Cidade Litorânea do Leste. – Tudo bem, Sr. D., eu acredito – disse Ambrose. Danielson virou a mão para baixo e o site se desvaneceu. – Esta é uma época emocionante, senhor. Ambrose assentiu com a cabeça e seguiu Danielson por um jardim de arbustos bem cuidados e através de portas de vidro. A habilidade de Fluxo de Processo, sempre sussurrando em piloto automático no fundo de sua mente, indicava que o procedimento inauguraria uma nova fase de sua vida, na qual o Unison suplantaria facilmente o aço plástico como a invenção humana mais importante de todos os tempos. Os preparativos cuidadosos de seu pai não podiam dar noutra coisa. Os códigos fixos de segurança de ambos abriram outro par de portas, e os dois entraram num saguão lotado de gente. Ambrose estacou, assombrado. Fazia anos que não visitava a sede da Unicorp, e as coisas com certeza tinham mudado. A sala imensa era um museu que continha cada inovação sofrida pelas redes sociais até a versão atual do Unison 2.0, cuja demonstração era projetada vários metros acima de suas cabeças. E as demonstrações eram funcionais de fato; ele viu um professor cansado reunir um grupo de crianças em volta de duas telas – telas! – que exibiam o


Facebook e o MySpace, ou como Martin Truax os chamava, os bisavôs do Unison. O professor clicou um antiquíssimo mouse e surgiu uma infinidade de rostos dentro de quadradinhos. Ambrose ficou imaginando se os criadores dessas redes tinham chegado a pensar em Fluxo de Processo e sentiu um arrepio. Como maximizavam o lucro sem saber exatamente o que as pessoas iam fazer com suas Contas? – Engraçado, não é? – perguntou Danielson. – O quê? – Como as pessoas aceitavam ficar presas a uma tela e um teclado. Parece ignorar um fato básico dos seres humanos. – Que fato? – Somos animais, e animais odeiam ficar presos. Enquanto percorriam o saguão, Ambrose deteve-se na exposição do USpace, a primeira grande transição para além das redes sociais presas a telas. Foi bem antes do seu tempo, e tinha uma aparência tão primitiva que ele deu uma risada. Avatares que se moviam aos trancos e barrancos – meras projeções – olhando textos que flutuavam, adicionando Amigos manualmente a suas listas. Era constrangedor, e ele se sentiu grato por ter nascido neste lugar e nesta época. O U-Space durou pouco. Era mais parecido com um jogo do que com o mundo real. As pessoas queriam algo que fosse familiar, uma versão melhorada da realidade, onde tudo corresse bem. Mas o U-Space acertou numa coisa: preparou o caminho para um jovem gênio chamado Martin Truax, que apareceu do nada com o revolucionário modelo de rede social BetterLife. Martin Truax proibiu seus programadores de simplesmente retrabalhar códigos já existentes. O Unison seria construído do zero, cada peça criada por pequenas equipes de Associados dedicados à filosofia que Danielson acabava de repetir pela milionésima vez: seres humanos são animais, e animais odeiam ficar presos. As ideias independentes seriam então analisadas e integradas nos estágios iniciais de desenvolvimento, ou


rejeitadas depois de as partes utilizáveis serem aproveitadas. O resultado foi algo radicalmente novo mas que dava a sensação de um velho amigo logo no primeiro login. Ambrose caminhava pouco à frente de Danielson, com uma sensação crescente de irrealidade, quando passou pela exibição do Unison 1.0. Era uma imitação razoável do mundo real: uma vez logado, podia-se percorrer sua casa, sua vizinhança, sua escola, mas tudo parecia melhor; não havia filas, a informação fluía livre e fácil, Amizades e Atividades eram predeterminadas a partir de Fluxos de Processo e pré-filtragens. Os problemas do mundo real evaporavam. A satisfação geral se tornou a regra em vez de exceção. Ambrose esquadrinhou a demonstração da Versão 1.0 até as falhas ficarem evidentes: o design pesadão, os defeitos e a lentidão quando as pessoas entravam em lugares lotados. Ele viu um shopping (em escala reduzida para caber dentro da área de exibição isolada por cordas) piscar, congelando centenas de pessoas durante as compras. Sacudiu a cabeça. Os perigos do 1.0. Danielson estava em algum lugar atrás dele, no meio da multidão da hora do rush. À sua frente estava uma das muitas fontes que decoravam o saguão. Um dos lados da fonte estava oculto por uma parede bem inclinada, na qual Ambrose se apoiou para observar a Versão 2.0 lá no alto. Era uma projeção verdadeira, em tempo real, de eventos reais do Unison. Como seria estar vendo isso pela primeira vez? Imaginou-se como um garoto normal numa excursão escolar, parando no meio do saguão e olhando para cima para... – Sr. Ambrose. Uma voz suave vinda da esquerda. Ele se virou. Um segurança do prédio, vestindo a jaqueta preta da UniCorp, com um bastão atordoador pendendo do cinto e o disruptor atravessado nas costas. Ambrose sorriu. – Não tenho caneta. As pessoas que o abordavam fora do Unison para pedir autógrafo gostavam de fazê-lo à moda antiga. Eram sempre bem mais velhos, e a


novidade de ter um menino prodígio entre eles tornava-os reverentes de forma até constrangedora. O homem estendeu a mão. – Bem-vindo a seu edifício, senhor. É um prazer poder conhecê-lo. – Seu sorriso ficou ainda mais amplo. Ao apertarem-se as mãos, Ambrose sentiu o pequeno choque que alertava para uma transferência não autorizada de mensagem, que os receptores da palma de sua mão deviam ter bloqueado, uma vez que ele não dera permissão para aceitar. O guarda sorridente sequestrara seus filtros de e-mail. – Carpe somnium – o guarda disse, baixando a mão. – O quê? – Ambrose tentou identificar o rosto do homem, sua voz, seu aperto de mão. Em vão. – Espera aí! Tarde demais. O segurança se misturou à multidão e sumiu. Ambrose tentou segui-lo, mas o movimento de turistas e de pessoas que começavam o dia de trabalho se intensificara. O garoto viu-se cercado, e logo empurrado de novo rumo à fonte. Danielson não estava à vista. Ambrose esfregou a palma da mão, que latejava depois do sequestro. A transferência de mensagem o surpreendera por completo; talvez fosse apenas a emoção daquele dia interferindo na capacidade do seu Fluxo de Processo. Qualquer mudança significativa da rotina diária costumava levar ao caos todo o sistema. – Danielson? – chamou. Uma garotinha o encarou com enormes olhos verdes, ajustados para intensificar a cor, até sua mãe puxá-la para longe. Seria outro teste de seu pai? Ou uma das brincadeiras de Len? Ele poderia tentar desvendar esses Fluxos de Processo em particular, e descobrir direitinho o que sua família podia ter planejado para ele. Ou podia simplesmente acessar a mensagem. Por que não? Só levaria um segundo. Ele procurou um canto afastado, mas havia hordas de turistas e de Associados por todo lado. Ali perto, um Embaixador UniCorp de chapéu


roxo conduzia por baixo da projeção 2.0 um grupo de crianças admiradas. Para além deles estava a cafeteria, e mais adiante uma série de portas que levavam ao pátio. Avançando meio que de lado, ele abriu caminho pela multidão, rumo à cafeteria lotada, e dali para o amplo pátio central, programado para ter sempre um clima oposto ao da atual estação do ano. Lá fora fazia um dia de verão de céu limpo, e portanto no pátio havia uma tempestade de neve. Sua pele formigou quando o traje se ajustou ao frio, e ele parou para olhar o espaço quase deserto a seu redor. Era uma área destinada a exibições públicas de arte, e no momento exibia enormes esculturas de aço plástico de pratos da cozinha mexicana. Ele se arrastou através da neve que chegava aos tornozelos, e se escondeu detrás de uma enchilada imensa, onde externalizou seu log de transferência de mensagens. Uma caixa de entrada branca simples flutuou acima da palma de sua mão. Uma nova mensagem, um arquivo de áudio com o título SONHOS = VERDADE. Ele cobriu a orelha direita com a mão em concha, e ouviu uma voz de mulher, com leve sotaque do leste europeu. – Carpe somnium, Ambrose Truax. Primeiro: disfarcei este arquivo, mas você sabe como a UniCorp pode traçar vestígios de informações. Então ouça com atenção porque ele vai rodar uma vez só. Desculpe a emboscada. Há tempos quero conhecê-lo, mas meus colegas não concordavam. – Ela fungou, fez uma pausa, e deu um espirro violento. Ambrose piscou. Ela prosseguiu. – Queria ter mais tempo, mas quem não quer? Assim, eis o que deve fazer. Saia do prédio já. Pegue carona, roube um carro, faça o que for preciso para escapar. Você não é dono de sua vida enquanto está acordado, não permita que ele roube seus sonhos também. Ele quer destruir a sua única parte que conhece a verdade, e então se apossará de você por completo. Não deixe que isso aconteça, Ambrose. Posso ajudá-lo. Vá para a Pequena Saigon, e vá até o... Ambrose afastou bruscamente a mão do ouvido, apagou a transmissão e


limpou o histórico do log de transferência. Boa tentativa, pensou. Esses chamados terroristas eram mais patéticos do que perigosos. Como seu pai sempre dizia, quando você está no topo, todos querem um pedaço seu. E se não podem conseguir, querem arrastar você pra baixo com eles. Roubar um carro? Quem eles pensavam que ele era? Na verdade, a mensagem reforçava a necessidade do procedimento de hoje, disse a si mesmo. Dirigir a UniCorp exigia vigilância constante. Uma vez que se acostumasse à vida sem sono, ele poderia ficar de olho no Unison 24 horas por dia, trabalhando sempre para garantir o crescimento e lucro contínuos do império que um dia pertenceria a ele e ao irmão. Ele se encolheu para evitar um torvelinho de neve e ficou pensando em como os terroristas tinham conseguido infiltrar o falso guarda. Aquilo era um pouco mais preocupante que as perturbações normais anti-Unison, que em geral consistiam em sequestros de ID e exclusão de Contas. E como é que eles sabiam sobre o procedimento? Bem, não tinha importância. Numa corporação tão gigantesca, havia dezenas de formas de vazamento de informações sigilosas. Ele acabaria descobrindo como isso tinha acontecido. Mas primeiro seu pai o esperava.


– Espera aí! – disse Mistletoe. Até aquele momento, ela deixara Ambrose contar sua história sem interrompê-lo, as palavras ecoando dentro do elevador. Estavam parados no alto de uma favela vertical, distante poucas quadras da sua, mas ele parecia não ter notado. O garoto tentava entender as últimas horas. Mistletoe sabia como ele se sentia. Num momento ela estava sonhando acordada na sacada; no instante seguinte estava vendo Jiri morrer. – A mulher no seu ouvido, fone, sei lá, disse Carpe somnium? Tem certeza? Ambrose deslizou um dedo pelo caule da flor pichada. – Tenho. O segurança também disse isso. Significa... – Aproveite o sonho. Em latim. Não sou uma mané ignorante. Dita e Jiri dizem isso o tempo todo. Ela apertou o único botão na parede. As portas se abriram, rangendo em protesto. Ambrose olhou, assombrado. – Tudo aqui é tão velho! – comentou. Ela lhe deu um empurrão. Foi mais forte do que pretendia. As costas de Ambrose chocaram-se contra a parede e seu queixo caiu quando a menina lhe barrou a saída. Mistletoe teve vontade de rir da cara assustada que ele fez. Pelo visto, aquele menino não estava acostumado a ser empurrado. Ela


o encarou de frente. – Jiri era meu amigo, tá legal? E ele morreu tentando te salvar. – Não tinha certeza de nenhuma das duas coisas, mas soava dramático. – Lembra disso da próxima vez que for dizer que meu bairro é velho, ou fedido, ou barulhento, ou que tem gente demais, se bem que é tudo isso mesmo, só porque você vem de lá de cima e... Ela chegou mais perto e o cheirou. Ele recuou o máximo que pôde. – Você tem cheiro de salada de fruta. Ele engoliu em seco. – É uma colônia de essência cítrica sintética. De Bruxelas. – De onde? – Bruxelas, uma cidade na... – Tá, esquece. Cala a boca. Vamos. Ela tirou Nelson do elevador e esperou que Ambrose pulasse na garupa. O menino se acomodou devagar, cauteloso, como se Nelson fosse algum transportador defeituoso que a qualquer momento iria jogá-los longe. – Ele não morde não, viu? Tomaram um caminho estreito e esburacado que percorria o alto da favela vertical, paralelo a uma feia parede cinzenta onde enfileiravam-se janelas sem vidros ou bloqueadas por tijolos e tábuas. A superfície inferior da cúpula, a pintura cor creme toda descascada, estendia-se pouco acima de suas cabeças. Centenas de casebres iguais ao que ela dividira com Jiri amontoavam-se sob eles, encosta abaixo até o asfalto. Vielas parecidas com córregos preguiçosos dividiam em platôs aleatórios a massa de casinhas. – Que lugar é este? – perguntou Ambrose. Mistletoe olhou em volta, confusa, até lembrar-se de que ele nunca estivera na subcúpula. Era impossível para ela colocar-se no lugar dele e imaginar como seria ver pela primeira vez os lugares familiares de seu dia a dia. Quando tia Dita a levara escondida ao lado de cima para visitar a Zona Recreativa Designada para Jovens, sentira-se desamparada sem a cúpula sobre sua cabeça, como se fosse flutuar para longe da superfície terrestre e


nunca mais parar de subir. Talvez Ambrose tivesse a sensação oposta, de estar aprisionado. – Sabe aqueles prédios enormes de escritórios e apartamentos que vocês têm? – perguntou. – Os atmoedifícios. Eu moro num deles. – Já esteve na parte de baixo deles? – Claro que sim. Meu restaurante favorito está no térreo, onde eles servem um... – Não, não o térreo, cabeção. Na parte de baixo. Mesmo ansiosa para chegar à casa de tia Dita, ela reduziu a velocidade para que Ambrose pudesse absorver aquilo tudo. De novo notou como o motor da scooter soava barulhento quando estava longe das ruas da Pequena Saigon. Como ela gostaria de poder comprar um silencioso para o escapamento. Ambrose roçou a mão ao longo da parede, deixando na sujeira o rastro tênue dos dedos. – A parte de baixo... Mistletoe achou que ele externaria o resto de sua súbita compreensão, mas o garoto não disse mais nada. Ela então contou a história da vida sob a cúpula, na versão resumida que construíra a partir de conversas com Jiri e tia Dita. – Primeiro inventaram o aço plástico. Então os prédios começaram a chegar até as nuvens. Ninguém com grana para viver no alto queria ficar na parte baixa. Daí os andares de baixo ficaram para gente como eu e Jiri, mas depois de um tempo gente como você decidiu que era muito perigoso ter ricos e pobres no mesmo prédio. Evacuaram os primeiros trinta andares e encheram tudo com vigas extras de suporte de aço plástico para ninguém voltar. No fim todos ficaram assim. A gente construiu casas subindo encostadas nos prédios de vocês, e aí vocês instalaram a cúpula. Foi tudo um enorme toma lá dá cá. – Houve revoltas – disse Ambrose com suavidade, como se corrigisse


uma criança bem-intencionada mas equivocada. Mistletoe pensou em meter o cotovelo na cara dele e empurrá-lo barranco abaixo. Em vez disso apertou o guidão até os nós dos dedos ficarem brancos e manteve os olhos no caminho à frente. Tentou afastar a imagem mental do policial ensanguentado e da agonia muda de Jiri, mas a cena estava gravada a fogo em sua memória. Uma onda de náusea apertou-lhe a garganta e o coração. Estou chegando, tia Dita, pensou. – Já não era uma sociedade civilizada – continuou Ambrose. – Era o caos. A Lei de Divisão da Cúpula da Cidade Litorânea do Leste foi necessária porque as pessoas estavam se matando. Está tudo nos arquivos. Veja, posso mostrar o vídeo da coletiva de imprensa. Ele pôs a mão perto do rosto dela e virou a palma para cima. Nada aconteceu. Ela ergueu uma sobrancelha quando ele virou a mão de novo. – O que você está fazendo? – Não consigo entrar online. Não tem sinal. – Você usa a mão pra isso? Ela continuou olhando para a frente e colou na parede quando três scooters velhíssimas passaram a toda no sentido oposto, deixando um rastro fedorento de fumaça de óleo queimado. – Como assim? Todo mundo... – Ele se interrompeu e depois recomeçou. – Tudo está implantado no alto da minha espinha dorsal. Receptor com código fixo, transmissor, etiquetas de ID. Posso externalizar a informação pela palma da mão. Lá em cima isso não é nada... estranho. Mistletoe lembrou-se de já ter visto cenas de telejornal em que as pessoas viravam a mão. Externalizando. Montes de informação surgindo na palma da mão e sumindo em pleno ar com a mesma rapidez. – Aqui embaixo a gente usa celulares. E o sinal é sempre fraco, isso quando tem – explicou. – Mas o sinal é gratuito. E tem em todo canto. Ela deu de ombros.


– Lá em cima, pode ser. Passaram por uma fila de cachorros de rua deitados junto à parede. Os que estavam acordados olharam para eles com preguiça, línguas rosadas pendendo da boca. Ambrose apertou a cintura de Mistletoe com mais força. – Duvido que ataquem. O rapaz engoliu em seco. – Então essa parede cheia de janelas quebradas é a lateral de um prédio de apartamentos? – O trigésimo andar. O mais alto que alguém consegue empilhar uma casa. Passaram diante de uma janela desimpedida, aberta para o interior escuro do edifício. – O que tem lá dentro? – ele perguntou. – Apartamentos vazios? Quanto espaço existe entre as vigas de suporte? Com certeza milhares de pessoas ainda podem viver aí. Nunca fizeram uma reforma? – Não. Ninguém entra aí. – Ela estremeceu. – Por que não? – Quero dizer, ninguém que entra aí consegue sair. – Ridículo. – Você também não ia entrar, se soubesse o que rola. Não ia nem chegar perto de uma janela dessas. O caminho mergulhou de repente, levando-os a uma ponte caindo aos pedaços, feita de tábuas atadas com arames velhos. Nelson ajustou-se ao ritmo dos solavancos. – Se soubesse o quê? – Ambrose indagou, as palavras ecoando estridentes quando, sob a ponte, as casas deram lugar ao vazio. – Nada, não. – Ela não queria falar sobre o Horror, nem agora, nem nunca. – Estamos quase chegando à casa da tia Dita. Ela vai saber o que fazer. – Quem é ela? – A irmã de Jiri.


– Não, quero dizer, o que ela faz na vida? Qual a contribuição dela para a sociedade? – Contribuição para a sociedade? Ambrose era o cara mais estranho que ela já encontrara. Quanto tempo teria durado nas ruas da Pequena Saigon se ela não o tivesse achado? Uns dois minutos, e olha lá. Que será que Jiri queria com ele? Ela acelerou a scooter para terminar de cruzar a ponte, e derrapou no caminho do alto de outra favela. Os propulsores protestaram com um zumbido agudo. Os braços de Ambrose apertaram-na com tanta força que ela ficou sem ar. Ela deu uma cotovelada no estômago dele e o abraço afrouxou. Tia Dita morava alguns níveis mais abaixo. A garota desacelerou e saiu do caminho superior quase deserto para entrar numa rua tortuosa, entupida de gente e cães sem dono. Entraram atrás de uma carroça de ciganos, lenta de doer e lotada com xales coloridos e sacas onde se lia CAFÉ; Mistletoe sabia que deviam conter armas ou a última droga da moda na Pequena Saigon. Um transporte capenga carregado de material de refugo – cabos de eletricidade e monitores queimados – surgiu detrás deles, e eles ficaram imprensados. Mistletoe sentiu a paciência se esgotar enquanto se arrastavam como lesmas. Mordeu o lábio para não gritar. – Quantas pessoas moram numa casa dessas? – perguntou Ambrose, apontando um barraco amarelo minúsculo, espremido entre dois feios casebres marrons. Um sanduíche de pêssego, pensou Mistletoe. – Deve ser uma família inteira. Como se fosse de propósito, uma mulher veio até a porta, ninando um bebê nos braços. Logo depois um garotinho saiu correndo do barraco, passou entre as pernas dela e disparou em meio à multidão. A mulher olhou ao redor com um tédio desinteressado, cheirou o ar, fez uma careta e voltou para dentro. – Onde eles guardam as coisas?


– Que coisas? – As coisas deles. – Você é o espertinho mais mané que eu já vi. Não dá pra você usar aquele lance de Fluxo de Processo que te dá tanto orgulho pra responder suas próprias perguntas? – Não funciona assim. Um Fluxo de Processo é um processo. Ele se baseia em uma extensa pesquisa e análise. – Pra mim parece puro chute. – Não é chute, e não é mágica. Não posso prever o futuro. Posso apenas aplicar o que sei sobre os hábitos das pessoas para ajudar os programadores do Unison a criar uma série de resultados satisfatórios, baseando-me nos hábitos de gastos e nos Amigos de um usuário. – Era indisfarçável o orgulho em sua voz. – Ajudo a melhorar a vida das pessoas sem que elas precisem pedir. – Tá, tá – ela suspirou. – Eles não têm nada, Ambrose. – Quem? – Aquela mulher, as crianças. Todos aqui embaixo. Não ter espaço em casa não é uma preocupação quando você não tem grana pra comprar coisas que ocupem esse espaço. A carroça cigana virou à esquerda. Mistletoe percorreu mais três quadras, costurando através de uma procissão de scooters, e virou à direita numa rua tranquila cheia de arbustos em forma de lágrima. Tia Dita dizia que morar naquele lugar significava que todos tinham que fazer sua parte para torná-lo mais bonito. Ela cuidava dos arbustos todos os dias, regandoos e podando a folhagem, mas ainda assim havia áreas secas e marrons. Mesmo dotada de ultravioleta, a iluminação da cúpula não substituía por completo a luz do sol. – Bonita rua – disse Ambrose, com animação. Mistletoe reconheceu uma tentativa exagerada de compensar as críticas. De repente ela jogou Nelson para fora da rua e desligou o motor. Desta vez ficou aliviada por Ambrose estar grudado nela como um carrapato, do


contrário talvez ele tivesse se esborrachado no chão. Manteve os propulsores engatados e se escondeu atrás de um arbusto, avançando um pouco para poder ver a casa de tia Dita. – O que você está... – protestou Ambrose. – Psiu! Tem algo errado. Havia dois homens parados no degrau diante da porta azul de tia Dita. Eram altos e magros, com roupas que pareciam lá de cima: ternos castanhos, não holo como o de Ambrose, mas ainda assim bons demais para aquela vizinhança. Um deles tinha cabelo ruivo curto e carregava um pequeno bastão de metal. O outro usava um chapéu marrom amorfo e tinha uma mão de metal, como a do policial que matara Jiri. Outros três homens sumiram de vista pela viela estreita entre a casa de Dita e a da vizinha. – Ma buh – Mistletoe sussurrou. – E agora? – Não sei – Ambrose respondeu. Ele parecia chocado por dizer aquilo. Mistletoe lembrou-se de que o tal Fluxo de Processo se atrapalhava em situações fora do comum. Bolas, então para que servia? – Usa o seu treco de código fixo – disse. – Descobre quem são esses caras. – Como é que vou entrar online? Todos vocês aqui embaixo são tão desplugados! Mistletoe deixou passar o “todos vocês”. – Bom, não podemos só ficar sentados aqui. – Liga pra ela. Avisa ela. – Ligar como? Jiri detonava quase todos os celulares, e de qualquer forma eu não trouxe nenhum. Ninguém nunca liga pra mim. – Isso é ridículo! Como é que você não... O que você está fazendo? Ela acelerou Nelson, que saltou para fora do esconderijo e seguiu, a toda, direto para a porta de Dita. Ambrose apertou os braços com força em torno da barriga dela e berrou. Tudo bem. O plano era mesmo fazer barulho. Ela ajudou, com um grito estridente, e se jogou em cima dos homens.


Ruivo puxou Chapéu para trás pelo ombro e apontou a scooter que avançava para eles. Chapéu ergueu o braço reluzente e Mistletoe desviou. O facho incandescente de um pulso eletrostático errou o alvo por centímetros. Ambrose enfiou a cara na trança dela. O homem disparou mais um pulso, alto demais, e em seguida Mistletoe estava quase em cima dele. Os sujeitos se jogaram para fora do caminho. Quando ela desviou de novo para não bater contra a porta entreaberta, pensou ter visto um movimento frenético dentro da casa. – Se segura! – berrou, como se Ambrose precisasse do aviso. A rua de tia Dita terminava na lateral de um bar de absíntio, e estavam a ponto de se chocar contra ele. Mistletoe esticou as pernas, acionando com os calcanhares o freio de emergência de Nelson. Quando começou a derrapar, ela puxou o guidão para a esquerda com toda a força que pôde e segurou. Os propulsores iônicos agitaram-se e estalaram. Ambrose e Mistletoe se inclinaram paralelos à rua. A parede ainda se aproximava. O tempo desacelerou o suficiente para ela ler um pôster desbotado: NÃO ACREDITE. Não acredite em quê? De repente Ambrose agarrou o guidão por cima da mão dela e puxou. Nelson rodou, engasgou e parou, o parachoque traseiro a centímetros da parede. Mistletoe soltou o ar sem nem notar que estava prendendo a respiração, e olhou para a rua de Dita. Estava deserta agora, a não ser pelos arbustos em forma de lágrima, num dos quais haviam esbarrado. Folhas finas e quebradiças caíam no rastro deles. Hipnotizada e assustada, ela viu a última folha chegar ao chão. O ar estava carregado de uma forma estranha, e não apenas por conta do canhão de braço de Chapéu. O silêncio persistiu por menos de um segundo. Então uma explosão arremessou a porta de tia Dita rua afora, rodopiando, com um rastro de chamas alaranjadas e fumaça negra. O barulho veio logo após o clarão, um estalo forte nos ouvidos e uma pancada surda no peito. Por toda a rua, o tilintar de vidro estilhaçado. Nelson foi jogado contra a parede. – O que foi isso? – guinchou Ambrose.


Mas Mistletoe só podia contemplar, anestesiada, o telhado da linda casinha de tia Dita desabando sobre quem estivesse lá dentro, sobre a pilha de cobertores onde ela se aninhava quando estava cansada, sobre a prateleira cheia de frutas secas de verdade, sobre a miniestufa autor-regante que ambas tinham comprado no Novo Mercado Egípcio. A única coisa que a estufa produzira foram umas cenourinhas raquíticas, e tinha virado a piada favorita delas: fome, nunca mais! Ela viu tudo isso num segundo. Então saiu do transe e apertou o acelerador de Nelson. – Precisamos descobrir se ela está lá dentro! – Não podemos só... Ela deu uma brecada seca no instante em que, da densa nuvem de fumaça que engolia a rua diante da casa de Dita, Ruivo e Chapéu emergiram montados em elegantes scooters negras do Departamento de Polícia da Cidade Litorânea do Leste, equipados com os diminutos giroscópios estabilizadores que permitiam deter veículos em alta velocidade. – Polícia – ela sussurrou. – A polícia não tenta te matar sem um motivo. – Lá onde você mora, pode ser que não. Mistletoe olhou para a esquerda: mais parede. Mas à direita havia uma viela muito estreita, meio escondida por um grande pedaço de reboco verde que se desprendera da parede do bar. Acredite, pensou, e dirigiu Nelson direto para a parte inferior da passagem, onde o reboco ainda não se soltara. Outro pulso eletromagnético chamuscou-lhe a trança. – Cotovelos para dentro! – berrou, torcendo para que Ambrose ainda tivesse uma cara. Ela chegou à passagem a toda e não desacelerou. As pontas do guidão de Nelson arranharam as paredes, produzindo uma chuva de faíscas. Se o beco estreitasse mais, eles parariam de supetão e sairiam voando sem a scooter. Ela passou por cima de um amontoado de roupas imundas que bem


podia ser alguém morto. Mais adiante a viela se alargava e desembocava na rua atrás da casa de Dita. Quase lá! Só que agora um vulto escuro bloqueava a saída. Recortada contra a claridade diurna vinda da rua, a silhueta de um dos policiais montado em sua scooter que, com o motor ligado, balançava de leve para cima e para baixo. Como chegara ali tão rápido? Ela podia distinguir o contorno de seu... – Chapéu! – berrou Ambrose. Pela primeira vez, Mistletoe apertou com o polegar o botão marcado HP, torcendo para que, da vida anterior de Nelson, tivesse restado nos hiperpropulsores combustível suficiente para impulsionar o salto. Sim, restara o suficiente. Com um rugido, a scooter disparou direto para cima enquanto o policial atirava, e o pulso estourou muitos metros sob eles. Mistletoe teve a sensação de que seu estômago tinha sido puxado para as pernas. Apertou os dentes e tentou controlar o veículo, que ultrapassou o alto do beco e continuou subindo. Pelo jeito, Sliv também dera um trato nos hiperpropulsores. Ela imaginou se teria cometido um grande erro, mas Nelson desacelerou e pareceu imobilizar-se em pleno ar, no ponto mais alto do salto. Enquanto pairavam, ela olhou por sobre a superfície dos telhados irregulares, apertados uns contra os outros como uma boca com excesso de dentes, e viu a nuvem de fumaça negra rodopiando no local onde estivera a casa de tia Dita. Acima deles, a cúpula se estendia a perder de vista. Então eles caíram. Ambrose apertou-a tão forte que Mistletoe ficou com medo que lhe quebrasse as costelas. Tentou dirigir a scooter para um telhado plano, mas os hiperpropulsores roubavam potência dos propulsores iônicos, e sem eles Nelson era um peso morto. Ela aplicou um chute rápido na lateral da scooter, como fazia ao descer em sua própria favela vertical. A queda ia ser violenta. Deu outro chute furioso.


Os propulsores pegaram. A scooter quicou no colchão estático justo antes de colidirem. De imediato Mistletoe calculou a próxima ação. Seu cérebro se movia numa sequência de cenas rápidas, seus atos controlados por algo que não era o pensamento consciente. Vá para cima, esse algo lhe dizia. Sempre para cima. Atrás dela, Ambrose expirou longamente. – Aposto que você adoraria viver aqui embaixo – ela disse sobre o ombro, enquanto saltava para o telhado vizinho. – Você faz muito isso? Ela sacudiu a cabeça. – Primeira vez. Sempre subindo, percorreram um labirinto de varais, casas de cachorro e caixas receptoras de sinal que entulhavam os telhados da Pequena Saigon. Poucos quarteirões abaixo do topo da favela, ela deslizou pelo telhado inclinado de um chalé até a rua, terminando atrás da mesma carroça cigana de antes. – Essa porcaria chata de novo, não – protestou Mistletoe, e dobrou uma esquina. Na mesma rua, lá adiante, Ruivo seguia devagar, examinando a multidão. Quem são esses caras?, ela pensou. Como é que conhecem todos os

atalhos? – Atrás! – alertou Ambrose. Ela se virou a tempo de ver Chapéu surgir virando a esquina. Ele vinha o tempo todo na cola deles. – Continua subindo! – o garoto gritou. Ele estava certo: era melhor arriscar com Ruivo do que com Chapéu e seu braço-canhão, mesmo que a pontaria dele não fosse lá essas coisas. Até aqui tinham tido sorte. Ela acelerou Nelson, fazendo os pedestres se jogarem para os lados. Ruivo virouse para encará-los e mirou neles o bastão de metal. Mistletoe guinou para a esquerda, derrubando um garoto de sua bicicleta. O bastão pareceu se estender numa sequência rápida de lampejos. Uma mulher que, por


infelicidade, passou bem onde eles estavam antes, caiu de joelhos na hora, mãos para trás e cabeça baixa, em dócil submissão. Mistletoe esbarrou na lateral de uma carroça de absíntio, e o líquido verde-neon voou na cara do Ruivo. Ele deixou cair o bastão – um atordoador de uso policial – e colocou as mãos no rosto, contorcendo-se na scooter. Vai queimar pra burro, pensou a garota, num repente de euforia, quando passaram por ele rumo à rua de cima. – O outro ainda está atrás de nós – informou Ambrose. Mistletoe não saberia dizer como o plano se formou em sua mente, ou por que não pensou em nada mais aceitável. Mas ali estava ele, pronto, como se tivesse sido elaborado durante dias. – Ele não vai seguir a gente no lugar aonde vamos – avisou ela, enquanto deixaram a borda da multidão e passaram para a rua de cima. – Que lugar? – Este – disse ela, indo direto para uma janela vazia na parede do trigésimo andar. – Achei que você tinha dito... Mas o silêncio se fez tão de repente ao entrarem no prédio que Ambrose engoliu as palavras antes que pudessem ecoar. A escuridão os envolveu. Mistletoe desacelerou e deu um cavalo de pau, à espera, ofegante. O mundo agitado para além da janela parecia distante, fora de foco, como se tivessem atravessado um sem fim de câmaras estanques. Segundos depois, a silhueta de Chapéu surgiu na janela, oscilando para cima e para baixo na scooter estacionária. Ela prendeu a respiração e se encolheu na escuridão. Ambrose apertou mais suas costelas doloridas. Chapéu permaneceu tanto tempo ali que ela teve vontade de gritar. Então se foi. Ela penetrou mais no edifício, apesar dos sons da scooter soarem como um terremoto ali dentro. Mas ela não podia abandonar Nelson. Algo provocou um estrondo, muitos andares para baixo. O prédio pareceu estremecer, as entranhas de aço plástico chacoalhando como ossos.


O Horror. Ela desligou o motor. O ruído cessou. Temerosa demais para ligar o farol, ela se soltou de Ambrose e desmontou com cautela, pondo-se de pé no chão duro. Tateou até encontrar uma parede, ou talvez uma das imensas vigas de aço plástico. – Vem pra cá – sussurrou. Ambrose juntou-se a ela. Nelson detectou a ausência de passageiros e silenciosamente adormeceu. A mente de Mistletoe deu voltas à medida que as cenas rápidas começaram a se suceder. Jiri. Ambrose. Dita. Os policiais. E agora? O que viria a seguir? Não podiam ficar sentados na escuridão para sempre. Tia Dita. Não queria pensar nela. Estendeu a mão e agarrou a mão bem cuidada de Ambrose, o que de imediato a fez pensar em seus próprios calos e cortes. Juntos sentaram-se em silêncio, apoiados na parede. Ela ouviu seus corações se acalmarem aos poucos. Esse garoto era estranho e irritante, mas ela tinha que admitir que era bom encostar em seu corpo quente depois daquela fuga alucinada. – Me conta o resto – ela murmurou afinal. – O resto... – Você resolveu ignorar a mensagem da mulher. Carpe somnium, Ambrose Truax. Foi se encontrar com seu pai. – Não sei se... Quer dizer, agora? – Preciso ouvir o resto, tá bom? Preciso ouvir alguma coisa ou vou pirar.

Os olhos suplicantes de Jiri. A casa de tia Dita explodindo. – Tudo bem – ele disse. – Ignorei a mensagem. Parecia maluquice, e eu precisava ir andando. Meu pai estava esperando na cobertura. Mistletoe fechou os olhos. A escuridão era a mesma.


Ambrose abriu caminho através do pátio nevado da sede da UniCorp, retraçando suas pegadas já meio indistintas. No saguão, olhou ao redor buscando o guarda que sequestrara seu receptor palmar. Ele poderia acessar num instante sua base de dados pessoal e bloquear todo o edifício. Poderia exigir o que quisesse de qualquer Associado de Segurança, e seria atendido na hora, sem perguntas. Mas talvez fosse o que os terroristas queriam: um incidente que paralisasse a sede da UniCorp. – Sr. Ambrose! – Danielson surgiu do outro lado da fonte e entregoulhe uma pequena cápsula cor de bronze. – Achei que gostaria de uma xícara de chá antes de subirmos. Nos perdemos um do outro no meio do grande rebanho corpóreo, hein? Deu uma piscadinha enquanto Ambrose engolia a cápsula. Um calor imediato se espalhou do estômago para os braços e pernas. Um leve sabor de hortelã se formou em sua boca. Era um ótimo chá. O garoto começou a relaxar. O que o incomodava, porém, era que o guarda tivesse acesso a um tipo de tecnologia pirata de transferência capaz de invadir seus receptores. Uma invasão inesperada constituía uma quebra de etiqueta profissional, o tipo de coisa que ele esperaria de Len, para quem tudo era um assunto urgente. Mas enquanto transitava pelo saguão, sob o produto resultante da


genialidade peculiar de sua família, o choque da transmissão ilegal foi perdendo importância. Ele era um Líder de Equipe de Fluxo de Processo da UniCorp, e tinha de levar em conta o futuro da empresa. Aproximou-se do elevador prateado em forma de projétil, reservado para Associados do nível da Gerência, e encostou nele a palma da mão. A porta deslizou sem ruído. – Boa sorte, senhor – disse Danielson. Apertaram as mãos, e Danielson repetiu o lema da companhia: – Vida melhor no Unison. – Vida melhor no Unison – respondeu Ambrose, e ficou olhando a parte de trás da cabeça de Danielson desaparecer na multidão. Ambrose entrou no cilindro luxuoso e se sentou na poltrona viscoelástica. Balançou a cabeça ao ritmo da batida fragmentada do techno suave, enquanto o elevador subia, silencioso. Examinou seu rosto no espelho e exibiu os dentes brancos. Estava a ponto de ser a pessoa mais jovem da história a passar pelo procedimento de modificação de Nível Sete. Ambrose sabia que era considerado de nível sete porque todas as cobaias anteriores – empresários poderosos, militares, caçadores de emoções fortes – haviam enlouquecido de modo irreversível ao longo das duas semanas seguintes à modificação. Os efeitos já documentados do procedimento incluíam incoerência verbal e escrita, paranoia, automutilação, fúria homicida, alucinações vívidas, demência geral e suicídio. O que Ambrose também sabia era que, desde que obedecesse ao regime severo de calibragem concebido e finalizado por seu pai e seu irmão – um privilégio que os demais recipientes não tiveram – ele conservaria a sanidade. Um pequeno desvio era aceitável, pois uma vida inteira desprovida de sono não podia deixar de ter consequências imprevisíveis. Mas a calibragem obteve uma taxa de êxito de 99% nas simulações cerebrais de I.A. Além do mais, a inovação sem riscos não se enquadrava nos princípios da UniCorp. O elevador desacelerou no 350o andar e parou com suavidade no 375o. Ambrose respirou fundo e ficou parado enquanto as portas se abriam para revelar um cômodo vazio, do tamanho de seu closet. As paredes eram


prateadas e pareciam formar redemoinhos e escorrer como mercúrio derramado. Às vezes clareavam, ficando quase transparentes. Mais além ele vislumbrou o corredor de acesso ao laboratório, onde o tubo de escaneamento o aguardava. A voz de seu irmão mais velho ecoou no recinto. – Informe o propósito de sua visita. Ambrose rolou os olhos. – Sou eu, Len. Quem mais poderia ser? – Siga o protocolo. Informe o propósito de sua visita. Ambrose suspirou. O profissionalismo metido a besta de seu irmão tornara-se ainda mais irritante nas últimas semanas. Será que Len estava com ciúmes? – Ambrose Truax, Líder de Equipe de Fluxo de Processo da UniCorp. Presente para modificação hipotalâmica de Nível Sete. – Por favor, entrar pela porta no final do saguão. – Eu sei aonde tenho que ir, Len. As paredes líquidas prateadas desvaneceram como se nunca tivessem existido. O corredor branco e sem janelas brilhava com luz solar filtrada e reconstituída. Ambrose piscou e atravessou, decidido, uma sequência de portas fechadas, que o fizeram se lembrar de maneira incômoda de seu sonho recorrente. Sua vida enquanto está acordado não lhe pertence... Tirou o pensamento da cabeça e, com a palma da mão, fez a porta se abrir. No recinto pouco iluminado, seu irmão estava de pé ao lado de um imenso fluxo externalizado de dados da UniCorp, um conjunto flutuante de textos e gráficos móveis. Ambrose reconheceu parte deles como sendo o Fluxo de Processo que criara com o pai: a probabilidade de cada possível resultado da operação. Sucesso: 92 por cento. Insanidade: 1 por cento. Suicídio: 1 por cento. E assim por diante. Len virou a palma da mão para cima e um modelo detalhado do cérebro humano surgiu no ar. Ambrose entrou, e a porta se fechou atrás dele.


– Cadê o papai? – Aqui, Ambrose, desculpe. A voz profunda e ressonante veio de uma mancha de espaço negativo que zumbia baixinho. Ela representava os padrões e personalidade de Martin Truax, que vivia exclusivamente dentro do Unison, projetando sua imagem no escritório do mundo real para grandes eventos e reuniões de diretoria. Seu eu corpóreo era mantido em estase permanente num local tão secreto que nem os filhos o conheciam. – Qual o problema? – perguntou Ambrose, fazendo um esforço para se concentrar no borrão. – Estou tendo alguns problemas com a largura de banda – seu pai explicou, tremulando de leve. – Precisei mandar a equipe de Chen embora ontem à noite. Realoquei recursos para tapar o buraco. A maior parte de Unison não foi afetada, mas alguns problemas de back-end ainda precisam ser resolvidos. Ambrose concordou com a cabeça, tentando se lembrar do rosto do Sr. Chen. Associados de Programação e de Fluxo de Processo raramente se misturavam. – Eu queria ter me livrado dele no ano passado – disse Len. – Se tivesse me ouvido, você poderia ter economizado... – Ah! – Linhas tênues começaram a brilhar dentro do borrão cinza como raios no interior de uma nuvem. As linhas se conectaram e surgiram os contornos de uma figura humana. A sala clareou à medida que a projeção de Martin Truax atingiu cem por cento de intensidade. Dois técnicos que até então não haviam sido vistos apareceram na extremidade oposta do recinto, ocupados ao redor do tubo de escaneamento que reluzia em sua plataforma elevada. Len fez desaparecer o fluxo de dados e esperou o criador de Unison acabar de chegar. Seu pai tinha 71 anos de idade, mas não parecia ter mais de 40. E não era só porque a imagem o favorecia: a vida toda Martin Truax se aproveitara das melhores modificações anti-idade que o mundo tinha a


oferecer, viajando a cada ano para a Livre União Asiática em busca de tratamentos raros e não testados. Ambrose viu o cabelo claro do pai definirse. Sempre parecia revolto, em completo contraste com o resto de sua aparência imaculada: terno azul, abotoaduras vinho, um U de UniCorp dourado preso à lapela. Os técnicos do outro lado da sala pararam e olharam. Mesmo como imagem, a força cinética de Martin Truax era irresistível. O homem era um dínamo de energia e ambição. Ambrose endireitou a postura quando um misto de orgulho e ansiedade tomou conta dele. Martin Truax sorriu e estendeu a mão para o filho caçula. Ambrose a pegou, e seus receptores palmares enviaram sensações falsas que formigaram braço acima. Teve a sensação de apertar uma verdadeira mão humana. Seu pai deu uma piscadinha, e depois entrou em ação e começou a dar ordens. Os técnicos se agitaram. Ambrose seguiu o irmão até o tubo de escaneamento, que se abriu revelando um interior de aço liso, contendo apenas um orifício minúsculo por onde passava o raio do microbisturi. Ambrose fechou os olhos. De repente sentiu a boca muito seca. Ele havia analisado muitas vezes o fluxo de suas reações nervosas, e sabia com cem por cento de certeza que entraria no tubo. – Ambrose, você não vai sentir nada – disse Len com uma suavidade surpreendente. – Você sabe disso. Os olhos azuis de Len deixaram de lado o movimento ávido de sempre, fixando-se no irmão, que assentiu com a cabeça. Ambrose olhou para o pai, que selecionava linhas de código de um programa externalizado, substituindo-as por fileiras de números luminosos saídos da palma de sua mão. Len tocou o ombro de Ambrose. – Considere isto como sua promoção para sair da Brigada Podcast. Ambrose riu. Às vezes Len era legal. – Algum problema? – perguntou o pai. Ambrose sacudiu a cabeça. Deviam começar. As seis horas seguintes se passaram como um delírio febril. Dentro do


tubo, não estava acordado e não estava dormindo. Seu corpo parecia suspenso num vasto espaço vazio, embora repousasse numa superfície com metade do tamanho de sua cama. A mente não chegou a parar por completo de funcionar, mas ele lutou para se agarrar às coisas básicas de sua vida: as coisas no quarto, detalhes do trabalho, os milhares de Amigos no Unison. Mas por fim estava tão desconectado que não teve escolha a não ser deixar de pensar. O último pensamento antes de sua mente esvaziar-se foi que era impossível não pensar sobre alguma coisa. Quando estava inconsciente, o raio do bisturi penetrou-lhe o crânio e o tronco encefálico. Ao localizar o hipotálamo, ampliou-se para envolvê-lo por completo. O raio queimou através da membrana e se extinguiu. Modificação. Ambrose flutuou devagar de volta à superfície de seus pensamentos. Sentia-se exausto, pronto para dormir por vários dias. Mas, é claro, nunca mais voltaria a dormir. O pânico preencheu o espaço escavado pelo bisturi. Algo estava errado. Ele procurou o Fluxo de Processo correto para guiá-lo até uma conclusão reconfortante, mas não achou nada. Algo que ele nunca planejara havia mudado. A transmissão. Parte dela se implantara antes que Ambrose a apagasse, e agora ele estava preso dentro do código fixo. A mulher com o sotaque tinha algo mais a dizer, algo tão básico que não podia ser dito até ele estar sendo operado, seus receptores virados do avesso. Algo que ele não entenderia a menos que estivesse indefeso, incapaz de recusá-lo e de expulsá-lo da mente. A mensagem era parte dele, e não tinha escolha senão recebê-la.

A mensagem era o sonho. A cena familiar o inundou de novo. Um bebê estava preso ao interior de um tubo de escaneamento. A tampa do aparelho abriu-se e os olhos úmidos focaram o mundo pela primeira vez. Martin Truax, em carne e osso, iluminava com uma luz azul todo o corpinho que se debatia. Havia técnicos externalizando gráficos.


Seu sonho era uma recordação. Um dos técnicos virou para cima a palma da mão e surgiu a imagem de um bebê. Presos ao bebê havia dúzias de fios metálicos. O técnico traçou um deles com o dedo, e Ambrose sentiu o braço formigar. Os fios ligavam-se a seu corpo. Ele estava sendo construído. Ele era o bebê.

A recordação era real. Ele aceitou isso sem resistência ou hesitação porque uma parte dele sempre soube. De algum modo a mulher também sabia.

Ele nunca havia nascido. Seus parentes mais próximos eram os técnicos de laboratório que o tinham criado. De repente seu cérebro abandonou a transmissão, ou o procedimento abandonou seu cérebro. De um jeito ou de outro, a lembrança onírica sumiu. Ela estava sendo retirada. Criado com que objetivo? Ele tentou agarrar-se à transmissão, mas ela se fora. Seria aquele o fim do procedimento, ou eles tinham entrado em pânico e queriam arrancá-lo de lá antes que pudesse descobrir toda a verdade? À medida que a fria realidade do tubo de escaneamento se impôs, ele de novo tornou-se o único habitante de seu corpo. O tubo se abriu, revelando o teto branco do laboratório. – Ambrose. – Era a voz de seu pai. – Não tente se sentar. – Agora era seu irmão. Mas ele se sentia bem, embora um pouco tonto, como se acabasse de acordar de um cochilo. A metade de cima do tubo se inclinou, colocando-se de pé, até ele estar cara a cara com o irmão. Seus braços e pernas ainda estavam atados. Os pés apoiavam-se em pequenas plataformas. Len deu um sorriso sombrio. – Parabéns, Ambrose. Ambrose olhou para o irmão. Como sempre, impossível de decifrar.


Teriam eles se inteirado da transmissão? Não havia como saber. Melhor ficar calado. Tentou avaliar o fluxo de um rápido processo e notou como estava lento. Não pôde chegar a nenhum resultado real. Estava diante de um novo mundo, com um conjunto desconhecido de possibilidades e resultados, e sua habilidade estava um caos. Seu coração batia descontrolado, mas manteve a voz firme. – Como fui? – Você não fez nada a não ser ficar deitado dentro do tubo. – Quero dizer... – Nós modificamos com sucesso seu hipotálamo e os padrões cefálicos correspondentes. O desejo físico de seu corpo por sono já não terá registro. – Me tira daqui. – Você sabe que precisamos fazer uma série de testes, que você não pode simplesmente... – Cadê o papai? Seu pai surgiu em seu campo visual. – Como previsto, o procedimento foi um sucesso. Len fará os diagnósticos, e depois nós o ajustaremos ao processo de calibragem. Preste atenção, filho. – Qual? – perguntou Len. – Ambrose. – Podem, por favor, me soltar? – perguntou Ambrose. Seu pai ignorou o pedido. – Quero que continue concentrado na tarefa. Pode achar que se sente bem, mas é importante nunca subestimar os efeitos psicológicos de um procedimento de Nível Sete. Ambrose deu um breve aceno com a cabeça e adotou o discurso de cientista empresarial que usava com seu pai. – Levamos tais efeitos em conta no nosso Fluxo de Processo inicial. Dezesseis resultados de médio espectro envolvendo estados oníricos expandidos logo após o procedimento. Meu próprio monitoramento interno


indica que... – Como exatamente você está efetuando esse autodiagnóstico? – debochou Len. – Checando se a garganta dói? – Leonard – admoestou Martin. Len voltou sua atenção para uma série de gráficos externalizados que giravam devagar no ar. – Ambrose, o que seu irmão está tentando dizer é que você precisa relaxar e nos deixar trabalhar. – Meus resultados estão pouco claros. Quando vou ter de volta a habilidade de Fluxo de Processo? – Logo – garantiu o pai. – Talvez você sinta uma leve pressão – disse Len, situando as palmas das mãos a centímetros da testa de Ambrose e externalizando dados no espaço entre o tubo e o teto. – Cala a boca, Len. Len moveu as mãos devagar em torno da testa e do rosto do irmão. Os pés de Ambrose formigaram com a sensação de quase-toque. – Deixa ver – Len disse, e moveu os dados de forma que Ambrose pudesse enxergar a projeção de seu cérebro dividida em seções transversais e subseções. – Viu? Estou bem. Len grunhiu. Aquela não era exatamente a área de competência de Ambrose. Len voltou-se para os dados, penetrou no hipotálamo e o expandiu, separando-o em partes. Cutucou fundo no cérebro de Ambrose, e a lembrança da transmissão se impôs. A atual realidade de Ambrose era uma imitação de seu nascimento: atividade cerebral projetada, tubos de escaneamento, Martin Truax. Ele analisou os gráficos de padrões cerebrais em busca de alguma indicação do que estava pensando. Se Len e seu pai perceberam algo, não disseram nada. De repente a imagem do pai falhou e sumiu. A iluminação do recinto atenuou-se outra vez. Martin Truax suspirou. – Manterei uma construção vocal aqui no laboratório. Não sei bem o que está acontecendo, mas parece que não estou conseguindo... Len, peça


aos Associados Billick e Greer para se projetarem no Escritório Virtual no Unison, depois que você terminar aqui. E o outro, ali... Len ergueu uma sobrancelha para o espaço vazio. – Chen? – Chen. – O senhor despediu Chen. – Bem, assegure-se de que ele continue despedido. Len assentiu com a cabeça. Ambrose tentou forçar as correias que prendiam seus punhos e tornozelos. – Gente, preciso ir ao banheiro. – Aguenta aí. – Ah, dá um tempo, estou preso nesse tubo faz... As correias se abriram. Len olhou feio para o espaço vazio onde seu pai estava. – Você tem dados suficientes para começar a análise, Len – disse a voz do pai. – E ele já volta. Ambrose se pôs de pé, ativando a circulação. – Estou orgulhoso de você – a voz paterna disse, enquanto o garoto se dirigia à porta. – E te amo muito. Ambrose quase parou de todo. – Te amo também, pai. – Vida melhor no Unison! – gritou Len, enquanto Ambrose abria a porta e percorria o corredor silencioso até o elevador. Entrou nele e chegou bem perto do espelho, apertando as têmporas, bochechas e nuca. O procedimento não tinha mudado sua aparência externa. Passou a mão pelo alto da cabeça, procurando algum vestígio dos fios aos quais estivera conectado quando era bebê. A lembrança parecera muito real dentro do tubo de escaneamento. Por que permitira que uma transmissão terrorista lhe incutisse dúvidas no dia mais importante de sua vida? – Seu destino, por favor – pediu o elevador. Ele hesitou, tentando recordar a última vez que seu pai dissera “eu te


amo”. – Banheiro dos executivos – disse. Ambrose olhou seu reflexo e tentou imaginar como seria aparecer como uma imagem projetada. Pela primeira vez se deu conta de como seria fácil e natural mentir se você nunca estivesse de fato cara a cara com ninguém. Como você poderia se acostumar com isso, se estivesse no ramo de criar mundos novos e melhores. – Espera aí! – gritou para o elevador. – Para o saguão. Ele era Ambrose Truax, o futuro da UniCorp. Tinha responsabilidades. O curso de sua vida fora traçado com cuidado. O que estava fazendo, agindo assim por impulso? Num instante analisou todas as formas pelas quais o pai poderia rastrear seus movimentos: vigias do prédio, impressões vocais, os transmissores e receptores nos implantes palmares. Precisaria ter o cuidado de não externalizar quaisquer dados para evitar o sinal. Isso queria dizer ficar desconectado. E não poderia de modo algum projetar-se para dentro de Unison. A falta de interação com seus Amigos já o afetava. Lutou contra o impulso poderoso e súbito de bater as mãos e dar uma olhadinha no que rolava no mundo virtual. Seu coração batia forte. Fechou os olhos e enquanto o elevador descia concentrou-se no frio na barriga. O que quer que descobrisse, teria que voltar rápido. Devia pensar nas calibragens, na manutenção da sanidade. E precisava dar alguma explicação ao pai e ao irmão. A porta se abriu. Ele cruzou o saguão, os olhos baixos, tentando não pensar nas dezenas de escaners de segurança pelos quais estava passando. Pelo menos ainda havia uma multidão. Fora do prédio, a manhã luminosa dera lugar a uma tarde quente e enevoada. Os carros de chassis articulados e tetos arredondados lotavam o nível inferior do estacionamento e pareciam vibrar no calor. Ambrose caminhou depressa, lutando contra o desejo de pedir uma limusine com a


palma da mão. Em algum momento teria que acessar o sinal para consultar wikis geográficas ou mapas de trânsito, mas não enquanto estivesse perto da sede da UniCorp. Que faziam as pessoas comuns quando precisavam ir com urgência a algum lugar? Um táxi, pensou, e olhou ao redor. Nunca usara um, mas conhecia os carros amarelos que esperavam como urubus do lado de fora dos saguões dos atmoedifícios. Estava nervoso e afogueado. Seu traje moldável excretou uma cápsula de suor que caiu no chão e rolou para baixo de um carro. Ao lado desse carro estava um táxi decrépito, um modelo da era U-Space, sem o empuxo vetorial necessário para circular nos fluxos de tráfico superiores. Tudo bem. A Pequena Saigon ficava para baixo, não para cima. Aproximou-se do carro amarelo banana desbotado. O taxista dormia no banco da frente. Ambrose bateu na janela e o homem despertou de um salto, derramando o café que segurava no colo. Ele olhou feio para Ambrose. Seu olho esquerdo e a pele ao redor tinham sido substituídos por um enxerto de aço plástico que brilhava no sol da tarde. A janela se abriu. – Fora de serviço, rapaz – grunhiu o taxista. Ambrose não conseguia desviar os olhos. Nunca tinha visto uma modificação facial tão malfeita. Talvez fosse o trabalho de algum desmanche ilegal. – É... é uma emergência – gaguejou Ambrose. O olho de aço plástico projetou-se de sua órbita, preso por um cabo e escaneou Ambrose de alto a baixo. Deu um chiadinho e então retornou à cara do taxista. A janela começou a se fechar. Ambrose olhou por cima do ombro. Outra cápsula de suor caiu perto de seu pé. – Posso pagar. Pago quanto você quiser. A janela deteve-se. O homem passou a língua no espaço entre as gengivas e os lábios estufando a pele. Em seguida, cuspiu dentro da caneca de café vazia e a guardou debaixo do painel.


– Bom, já estou indo pra casa, então se for no meu caminho... Ambrose ergueu a pesada porta e escorregou para o banco traseiro. A porta se fechou. Dentro do carro havia um cheiro de pinheiro sintético e cigarro real. – Para a Pequena Saigon, por favor – Ambrose anunciou. O taxista teve um acesso de riso seco. Ambrose afundou no assento. – Como eu disse, é meio que uma emergência, então se você puder... – Claro, garoto, claro. – O táxi se elevou do solo enquanto os propulsores tossiam e pegavam. – Tem amigos lá? – Mais ou menos. O taxista deu de ombros, com uma risadinha, e entrou no fluxo de tráfico de nível térreo da Cidade Litorânea do Leste. O padrão fora concebido para eficiência total e risco zero de acidentes, desde que os motoristas entregassem ao sistema o controle de seus veículos. Não fazê-lo era motivo de perda da licença e prisão. O motorista desobedeceu às regras com tanta tranquilidade que Ambrose se perguntou como ele conseguia manter aquele emprego. Então percebeu que a licença dele não estava à vista em lugar algum. Segurou-se enquanto o sujeito cruzou quatro pistas de controle estrito e começou a penetrar numa quinta, para só então ligar a turbopropulsão. O táxi subiu acima do tráfico e em seguida mergulhou num beco sem saída entre dois atmoedifícios. Elevaram-se na outra ponta, onde o motorista por um instante juntou-se ao tráfego organizado, fez outra manobra lateral, e brecou de repente diante de um cilindro de acrílico, do tamanho de um elevador. Uma câmara estanque de acesso à subcúpula. – Isto vai te deixar na periferia da Pequena Saigon. – O taxista virou-se para olhar Ambrose, estudando seu holoterno azul e a pele lisa e bem cuidada. – Tem certeza, guri? Não quero me meter onde não sou chamado, mas de repente seria melhor você ir procurar seu barato em alguma espelunca no Unison em vez de descer até a Pequena S.


O taxista ergueu a sobrancelha ainda presa à pele humana. “Se desse meia-volta agora, poderia voltar ao laboratório sem dar muita explicação”, pensou Ambrose. Então lembrou-se do sonho. Pensou na mulher da transmissão e em outras coisas que ela podia saber. – Tá tudo bem, obrigado. Quanto é? – Só tente não morrer lá embaixo, e estamos quites. – Quer dizer... – Cai fora. – A porta traseira se abriu. – Obrigado – disse Ambrose. O motorista sorriu. A maior parte dos dentes eram tocos estragados. – Era caminho. Ambrose desembarcou na rua quase deserta. Ninguém olhou para ele. Dentro da câmara, postou-se sobre a plataforma enferrujada que o levou para baixo, descendo ao longo de uma grande vitrine de acrílico. Lá dentro, redemoinhos de vapor envolviam inúmeras estátuas brancoazuladas. Observando com atenção, ele viu que eram pessoas congeladas, as bocas abertas em terror. Sentiu um calafrio. Seria algum tipo de exposição pública de arte? Então lembrou-se de algo que o pai contara fazia tempo: havia um fluido de congelamento rápido nas câmaras. Os residentes do lado de cima que tivessem IDs de código fixo podiam ir e vir à vontade sem ativar o fluido. Mas se um morador não autorizado da subcúpula tentasse subir, ficaria preso na câmara estanque, onde primeiro seus órgãos internos se congelariam, depois o sangue, depois a pele. Seu pai tinha rido ao comentar que, se o sujeito tivesse sorte, acabaria dentro da vitrine de exibição, como um alerta aos demais. Caso contrário, seria simplesmente descartado. Era bem eficiente. Uma das figuras congeladas era um adolescente que cobrira o rosto com as mãos no momento final. Os olhos arregalados apareciam através dos dedos abertos. No acrílico diante dele alguém tinha rabiscado BUUU!


Que tipo de lugar era esse? A plataforma chegou ao fundo com um baque, e a porta da câmara abriu-se deslizando para cima. Pela primeira vez na vida, Ambrose Truax saiu para as ruas da subcúpula.


– Este lugar é diferente do que eu imaginava – disse Ambrose no mesmo sussurro forçado que vinha usando o tempo todo. – É que... – tamborilou no joelho, tentando encontrar as palavras. – Quer dizer, quando saí da câmara não tinha nenhum meio de descobrir nada. Acho que estou acostumado a acessar a informação, e aqui embaixo é como entrar numa máquina do tempo e voltar cem anos atrás. Não digo isso para te insultar, é só que... bom, sei lá. Saí andando sem rumo, e aí o seu... amigo Jiri me agarrou, e um segundo depois os policiais apareceram, e depois você. Mistletoe ficou de olhos fechados e não respondeu. Desde que Ambrose descrevera o sonho – o sonho dela – a história que contava tinha virado ruído de fundo para seus próprios pensamentos alucinados. Se ele dizia a verdade, e a mulher da transmissão também, isso queria dizer que ela, Mistletoe, não era real? Que ela e Ambrose tinham o mesmo criador? Ela soltou a mão dele e esfregou os lados do rosto onde os fios do sonho haviam estado. Pele sem marcas. Feições humanas normais. – Não é verdade – ela disse baixinho. – Desculpe, não estou dizendo que aqui embaixo é ruim. Só que... é diferente. – A mensagem, quero dizer. Ambrose não disse nada. Mesmo no escuro ela podia sentir a explicação hesitante morrendo nos lábios dele. Ele não tem certeza,


pensou. – Pode ser que só pareça super-real porque foi o seu último sonho, ou algo assim. – Então você acha que larguei minha vida por nada? – perguntou ele, com raiva. – Psiu! – ela sussurrou. – Não sei. Pelo jeito você também não. Ele baixou a voz até um sussurro rouco. – Você não faz ideia do que eu acabo de abandonar. No silêncio que se seguiu, ela abriu a boca duas vezes para contar sobre o sonho dela – o sonho que compartilhavam –, mas algo a impediu. Se contasse, teriam que conversar a respeito, e não estava pronta. Em vez disso, falou: – Esse negócio que fizeram com você... – A modificação hipotalâmica? – É, isso. Você não vai mais dormir? Nunca? Só para poder trabalhar mais? Ambrose inspirou fundo, depois expirou. Uma vez mais ela teve a impressão de que ele parecia estar tentando se comunicar com alguém mais jovem, apesar de terem a mesma idade. Ela apertou a mão dele com força para não estrangulá-lo. – Eu tenho... eu tinha uma responsabilidade enorme. Uma pessoa poderia passar uma vida inteira navegando pela infraestrutura da UniCorp e nunca chegar ao fim. Mas imagine se fosse possível pegar todo o tempo desperdiçado dormindo e aplicá-lo de forma produtiva? A escolha era simples. – Então era algo que você amava. – O quê? – As coisas que você fazia. Esse lance de Fluxo de Processo, seu trabalho. Na escuridão, ela o sentiu dar de ombros a seu lado. – É quem eu sou.


– É quem você era – ela o corrigiu. – Pode ser – ele disse baixinho. – Mas você está certa, eu não sei. Ele mexeu a mão e a libertou da mão dela. Ela sentiu uma ponta de decepção quando perderam contato, e então se repreendeu em silêncio por se importar. – Desculpa – ela disse. – Acho que é impossível ter cem por cento de certeza sobre qualquer coisa. – Não para mim. Essa é a questão. De repente ela o sentiu imobilizar-se, e o corpo dele ficou tenso. Ele procurou a mão dela e a apertou. Ela ficou feliz por estarem de mãos dadas de novo. – Que foi? Ele continuou rígido por um instante e depois sua mão relaxou na dela. – Achei que tinha ouvido algo. – Não tem nada... Um lampejo verde ofuscante iluminou o chão, e por um instante ela viu que não estavam sozinhos. A escuridão retornou. Duas esferas verdes brilhantes descreveram um arco na direção deles, deixando um rastro de estática branca. – Corre! – ela berrou. Tentou aflita pegar a mão que ele agitava em desespero. Uma das esferas cercou seu rosto antes que ela pudesse desviar. Mistletoe ficou paralisada, vendo tudo verde. Uma vibração grave, ressoante, encheu seus ouvidos e se estabilizou num zumbido de frequência média. Seus dentes batiam violentamente. Por detrás das costelas sentiu uma leve penetração, como um dedo que rompe a superfície da água e depois se afasta. Então seus ouvidos estalaram e a esfera verde sumiu. Ela desabou no chão, e no último pensamento consciente torceu para que Ambrose tivesse conseguido escapar. Algum tempo depois, Mistletoe despertou sobre uma pilha de almofadas e cobertas cheirando a mofo. Estava zonza e com muita sede.


Sentou-se devagar, tentando conter uma dor de cabeça, e olhou em volta. Estava num quarto escuro e sem janelas, repleto de amontoados de fios, cabos e antenas. Nelson e Ambrose tinham sumido. Por instinto, apalpou-se. Corpo intacto. Roupas e gargantilha no lugar. Pôs-se de pé devagar, como uma velhinha, apoiando-se nas entranhas em espiral de uma máquina quadradona, pré-Unison. Havia uma única porta de metal, com um olho mágico alguns centímetros acima de sua cabeça. Foi até lá e deu um pulo, mas a lente destinava-se a olhar para dentro e ela não pôde ver nada. Tentou a maçaneta. A porta se abriu.

Ma buh... Piscou duas vezes, contraindo todo o rosto e esfregando os olhos para ter certeza de que não estava sonhando. Diante dela estendia-se um zoológico subterrâneo. Bem lá no alto, aves de plumagem laranja e azul entravam e saíam de estranhas formações. Corvos se empoleiravam, sinistros, nas barras dos trapézios que pendiam do teto em forma de domo. Colmeias de abelhas e ninhos de tamanhos e formas variados estavam presos em grossos galhos. Sob eles, macacos balançavam-se, tranquilos, para a frente e para trás. Alguns metros à frente dela, o piso de concreto cinza dava lugar a uma planície gramada onde pastavam enormes animais cobertos por densa pelagem marrom. Mais além, dois bodes com os chifres entrelaçados mediam forças sobre uma enorme pedra cinzenta. No centro do recinto havia um lago onde descansavam patos e gansos. O silêncio era total. De súbito todo o recinto começou a vibrar, e depois a chacoalhar. Aves assustadas voaram aos bandos dos galhos quando do teto começaram a cair pedaços de reboco. Ela perdeu o equilíbrio e caiu no chão. Era a mesma vibração profunda que ouvira no trigésimo andar, só que agora sua fonte estava ali perto. Seria o Horror algum tipo de estouro de manada? Encolheu-se na grama macia e tampou os ouvidos, tentando lembrar se tinha visto algum elefante.


Um segundo depois o silêncio retornou e ela abriu os olhos. À sua frente estava o homem mais alto que já vira. Tinha cabelo branco desgrenhado, pele pálida e enrugada, e um magro pescoço que parecia comprido demais. Vestia uma feia túnica cinzenta, que caía solta até prender-se aos tornozelos. Ele sorriu com suavidade e estendeu para a garota a mão de dedos delgados. Mistletoe ignorou o gesto, ficou de pé sozinha e recuou. – Estamos felizes por você estar bem, criança – ele disse. Seus olhos irradiavam um brilho penetrante, que não combinava com sua voz tranquilizadora. – E peço desculpas pela recepção nada calorosa, mas infelizmente não tivemos escolha. – O que vocês fizeram com a gente? Cadê Ambrose? Ele deu um passo na direção dela e estendeu a mão de novo. – Venha e veja por si mesma. Mistletoe tornou a recuar. Ele aquiesceu com a cabeça e cruzou os braços. Detrás dele, um dos animais peludos moveu-se, pesado, olhou-a com grandes olhos negros e baixou a cabeça para comer capim. – A situação desagradável pela qual vocês passaram foi necessária para remover qualquer rastreador que tivessem implantado. Mistletoe lembrou-se da sensação de ser cutucada por dentro e esfregou o peito. – A gente estava sendo rastreada? – Ele estava, claro. Você não, mas precisávamos ter certeza. Ela fez que sim. Isso explicava como os policiais tinham encontrado Ambrose assim que ele saiu da câmara estanque. Talvez por isso tivesse sido tão fácil para ele escapar do prédio da UniCorp: Martin Truax queria que ele fugisse, para que seus homens o seguissem. Ambrose era a isca, mas para quem? Jiri e tia Dita? O rosto dela ficou neutro como uma máscara e ela cerrou os punhos. – Quem é você? Que lugar é esse? Cadê Nelson? – Nelson? – o homem franziu as sobrancelhas brancas.


– Minha scooter. – Ah, sim. Escute, sei que não dei motivo algum para você confiar em mim, mas se me seguir prometo que lhe mostro tudo. Mistletoe mordeu o lábio. Se ele quisesse matá-la, já teria feito isso, e se quisesse lhe fazer mal, tinha tido a oportunidade enquanto ela dormia. Ela acenou com a cabeça. – Tudo bem. Mas não pegue na minha mão. Nunca. Ele riu. – Podemos apertar as mãos ao menos uma vez? Meu nome é Magnus. Este lugar é minha casa. Seu veículo está intacto. – Não, não podemos. Meu nome é Mistletoe. Sua casa é esquisita pra caramba, e é bom mesmo que Nelson esteja bem. Magnus deu de ombros e a conduziu pela planície que descia numa encosta suave. Passaram tão perto dos animais marrons que ela esperou sentir seu forte cheiro, mas nada. O lugar todo exalava um leve odor embolorado, como o da pilha de cobertas em que acordara. Com certeza aquele não era o cheiro de um recinto lotado de animais selvagens. Perto do lago, desceram numa vala gramada que logo se transformou num túnel de cimento. Ela olhou para trás e viu o magnífico recinto ser eclipsado por uma breve escuridão antes de emergirem num túnel muito maior. Era escuro e úmido e tinha cheiro de meias sujas. A água pingava das vigas de ferro corroído lá em cima, formando pocinhas. – Ande com cuidado, criança – alertou Magnus, indicando a grade de barras de aço dispostas sobre o piso a intervalos regulares. – O que você conhece da história de nossa cidade? – Conheço a Lei de Divisão da Cúpula e as revoltas. Mas nunca estive aqui embaixo. Nem no trigésimo andar eu tinha estado antes. As pessoas entram mas não saem. Os olhos de Magnus brilharam no escuro. – É isso que dizem? Ela fez que sim com a cabeça.


– Dizem que o Horror pega todo mundo que entra. De repente é assim que você alimenta os animais, pensou. – Ah, sim. O Horror. Ela seguiu Magnus ao redor de um maciço muro de aço plástico que dividia o túnel ao meio e se enterrava no solo. Foram pela esquerda, onde uma luz fraca lançava longas sombras sobre as paredes azulejadas em mau estado. Sob a sujeira marrom que cobria tudo, ela percebeu um padrão que se repetia: LEX 59 LEX 59 LEX – Estamos no antigo sistema de metrô de Nova York – Magnus explicou. – A parte mais profunda da Cidade Litorânea do Leste, esquecida pela maioria, ignorada pelos demais. Meu irmão e eu vivemos aqui faz muito tempo. Ela tinha ouvido falar dos velhos túneis de trem, mas o que se acreditava era que todas as entradas e saídas tinham sido bloqueadas muito tempo atrás. – O caminho está fechado para todos, menos para meu irmão, para mim e para poucas pessoas mais – ele informou. “Será que podia ler seus pensamentos? Ela não teria ficado nada surpresa.” Viraram uma curva e o túnel iluminou-se todo. Neste trecho a sujeira fora removida das paredes e os trilhos deram lugar a um caminho liso e azulejado. Diante dela, banhados pela luz de um enorme lustre, dois sofás de couro flanqueavam uma porta de ferro. – Bem-vinda a nosso lar. No passado, entre nossos hóspedes privilegiados estavam seu tutor, Jiri, e a irmã dele, Dita. Mistletoe estacou. Ao ouvir isso, um nó formou-se em sua garganta. Engoliu em seco e segurou o homem pela manga, torcendo o tecido macio. – Você conhece a tia Dita? Ela está viva? Está aqui? Magnus sacudiu a cabeça e empurrou a porta de ferro. – Nós perdemos todo o contato – respondeu ele, sombrio. Ela o soltou, seguindo-o até um recinto bem iluminado, com cerca da


metade do tamanho do zoológico silencioso, abarrotado com enormes computadores pré-Unison, ao lado de equipamentos modernos de laboratório, que a fizeram se lembrar de seu sonho. Junto às paredes havia fileiras de tubos de escaneamento abertos, as vísceras mecânicas pendendo para fora. Diante de Mistletoe, Nelson apoiava-se a uma pilha de caixas que ela reconhecia. Fornos de micro-ondas, que Jiri tinha às dúzias em sua loja. Quanto tempo levaria ela para pular na scooter, ligar os motores e os propulsores e disparar túnel afora? Quem dera ela soubesse usar aquele lance de Ambrose, previsão de fluxo, algo assim. O mais provável era ser agarrada por Magnus antes de alcançar a porta de ferro, que de qualquer maneira tinha se fechado atrás deles. No centro do recinto, um tronco de grossos fios descia do teto e se espalhava pelo chão como se tivesse raízes. Os fios-raízes se ramificavam em várias direções e se conectavam ao maquinário híbrido ao redor. Parado ao lado do tronco havia uma versão ainda mais velha de Magnus, com cabelo e pele de um amarelado doentio, não tão alto e usando uma túnica igual. A seus pés estava deitado um grande cão labrador negro, de cujo crânio saíam o que pareciam ser os chifres curvos de uma cabra montês. – Meu irmão Ivor – apresentou Magnus. O cão-cabra e o homem a olharam e acenaram com a cabeça ao mesmo tempo. – Qual deles? – perguntou Mistletoe. Ela se aproximou. O cão-cabra esfregou o nariz molhado na mão dela. Como os animais do zoológico, não produzia som algum, nem ao ofegar. – Carpe somnium – saudou Magnus. – Relatório? Ivor primeiro olhou para Mistletoe e depois para o irmão. Seus olhos eram duros, inexpressivos, num contraste com a mirada maliciosa de Magnus. Ela não conseguiu decidir de qual olhar gostava menos. Quando Ivor falou, sua voz soou distante e fria, como se ele relatasse um assunto tedioso. – A remoção inicial da ID teve suas... dificuldades. – Seus olhos relancearam por um balde cheio de trapos sujos de sangue. – Não há dúvida


de que o código fixo do jovem Truax foi implantado com a tecnologia mais avançada da UniCorp. E também deve ser levado em conta seu recente Nível Sete. Tive de proceder com muita cautela. Virando-se para um conjunto de monitores pré-Unison, ele passou a teclar em vários teclados ao mesmo tempo. – Tentamos ao máximo nos manter atualizados, mas a cada novo avanço, a UniCorp nos deixa mais para trás – disse Magnus a Mistletoe. – A inovação é rápida demais para acompanhar. É melhor você tapar os ouvidos. – Os ouvidos? Agarrando-lhe as mãos, Magnus fez com que as pusesse sobre as orelhas, retendo-as ali. Mistletoe resistiu por um instante, e então soou a mesma vibração profunda que ela ouvira no trigésimo andar e, mais intensa, no zoológico. Nesta sala, porém, onde o troar se originava, era insuportável. A garota caiu de joelhos, e Magnus se abaixou com ela, apertando-lhe as mãos ainda mais contra os ouvidos dela. Ela sentiu o estômago contrair-se e a garganta trancar, como se a imensidão do som envolvesse seu pescoço. A visão turvou-se e ela lutou para segurar a bile que subia, e então o silêncio voltou. Magnus ajudou-a a se erguer. Os irmãos e o cão não tinham sido afetados em nada pelo barulho ensurdecedor. Ivor ainda teclava. O animal lambia as patas dianteiras. Ela respirou fundo, de novo e de novo, e sentiu o som deixar seu corpo em ondas vibratórias. – O Horror é esta sala? – perguntou, e sua voz soou distante e abafada. – As pessoas têm medo de um barulho? – Um bônus não intencional – disse Ivor. – Até onde sabemos, mantemos o sinal pirata mais sofisticado de toda a subcúpula – orgulhou-se Magnus. – Ele testa os limites de nosso equipamento quando exigimos demais dele, e o equipamento protesta com essa leve... reclamação. – Pois então lhe deem um pouco de óleo vegetal e uns chutes bem


dados – ela disse, tentando transformar seus pensamentos difusos em perguntas reais. – Afinal, quem são vocês? Como conhecem Jiri e tia Dita? Onde está Ambrose? Os irmãos se entreolharam. Ivor deu de ombros, desinteressado, e desapareceu por trás do tronco de fios, mais largo que o barraco onde Mistletoe morava. O cão-cabra foi atrás dele, silencioso. Magnus sorriu de novo, ou pelo menos tentou. Desde o encontro deles no zoológico, cada novo sorriso saía menos expansivo. Agora era uma linha fina e rígida. Ela contou mentalmente quantos passos precisaria para correr a toda até Nelson. – O que você sabe sobre o Unison? – ele perguntou. – O suficiente – ela mentiu. A verdade é que, como a maior parte dos moradores da subcúpula, não sabia quase nada. Magnus ergueu as grossas sobrancelhas brancas e apertou os lábios. Assentiu de leve com a cabeça e disse: – Hum. Bem, Ivor e eu fazíamos parte da equipe original de desenvolvimento da UniCorp. Projetamos a estrutura para a atualização do Unison 2.0, e logo depois que ele entrou em funcionamento, Martin Truax nos designou para um novo projeto altamente secreto. Fomos... muito bem pagos por nosso trabalho. Havia em sua fala uma saudade mal disfarçada daquilo que Mistletoe imaginou ser sua antiga vida lá em cima. Por trás do tronco de fios, alguma coisa guinchou e parou com um baque. Ivor xingou. – No começo, nossas instruções eram vagas – prosseguiu Magnus. – Martin Truax relutava em fornecer a menor indicação do objetivo do projeto. Recebíamos transmissões codificadas, acompanhadas por dados embaralhados e desconexos. Não sabíamos quem as enviava, nem de onde, e nossa ordem era decifrar seu conteúdo o melhor que pudéssemos. Quando reclamamos, e deixamos claro que saber a origem delas era vital para nossa tarefa, Martin ameaçou nos tirar do projeto. No dia seguinte, mudou de ideia e admitiu que as transmissões vinham de algum lugar dentro do


Unison. Magnus começou a andar pelo recinto enquanto falava, as mãos unidas atrás das costas como um cavalheiro passeando pelo jardim. Seus olhos se apertavam enquanto ele se concentrava nas lembranças. Mistletoe seguiu-o meio a contragosto, enquanto se afastavam cada vez mais de Nelson. – Meu irmão e eu deciframos as transmissões o suficiente para perceber que, embora tivessem sido encontradas dentro do Unison, elas com certeza vinham de outro lugar. O Unison era só um meio de comunicação para os remetentes. Quando mostramos nossas conclusões a Martin, ele descobriu que as transmissões formavam uma espécie de... – Magnus fez uma pausa e mordeu o lábio inferior – ...manual de instruções. – Instruções para quê? Mistletoe esquecera por completo de Jiri e de tia Dita, dos policiais e do zoológico silencioso. Estava pensando sobre o sonho de criação que compartilhava com Ambrose. Tinha um horrível pressentimento de que sabia a resposta para sua própria pergunta. – Um organismo híbrido – Magnus tossiu, nervoso. – Bom, dois organismos híbridos, para ser exato. – Ambrose e eu. – O coração dela batia forte, e sua cabeça rodava. Magnus deteve-se, olhando-a com piedade. – Sim. Isso mesmo. Quem enviou as transmissões queria que os construíssemos... quer dizer, que construíssemos vocês. – Quem? – ela conseguiu articular debilmente. – Ivor e eu acreditamos que o remetente é algum ser parecido conosco, quer dizer, biologicamente próximo aos humanos, mas vivendo em um lugar totalmente diferente. Pense no universo como uma grande mansão com milhões de quartos. Em geral os quartos de uma extremidade da mansão estão completamente isolados dos quartos da outra. Mas às vezes um alçapão se abre e alguma coisa consegue passar de um lado a outro. Achamos que a transmissão era algo assim e que o Unison funcionou como alçapão.


Mistletoe sentiu a boca seca. Ela ficava repetindo para si: esse aí é o cara que me criou. Não parecia real. Era como se aquilo fosse algo que ela deveria descobrir dali a muitos anos e o mundo tivesse cometido um erro enorme, revelando cedo demais o segredo. – Então por que estou aqui? – Sua voz estava rouca de repente. – Para que vocês me criaram? O sorriso de Magnus virou uma linha ainda mais fina e rígida. O homem tocou de leve o ombro dela, que desta vez não se afastou. Ele abriu a boca e hesitou, olhando para o irmão, que surgira perto deles, limpando a mão num pano manchado de sangue. – Não temos a menor ideia – respondeu Ivor, a voz monótona repleta de amargura. – Martin decidiu que sabíamos demais sobre seu precioso projeto secreto e revogou nossos privilégios de Administradores do UniCorp. Então fomos despedidos. Imaginamos que seria só uma questão de tempo antes que decidissem acabar conosco, e então viramos fantasmas. O motivo de sua existência é um mistério tão grande para nós quanto para você. – Ele apontou para o tronco de fios. – Mas não por muito tempo. No lado de trás do tronco, os fios estavam afastados como cortinas. Ambrose estava lá dentro, as palmas das mãos viradas para cima e sustentadas por pequenas redes de finas fibras prateadas, que desapareciam tronco acima. As mãos estavam envoltas em bandagens. Ao redor dele, dançavam no ar informações externalizadas. O menino conseguia manter-se de pé sem apoio, mas seus olhos vidrados, fixos, não piscavam em meio às luzes coloridas e pulsantes que explodiam ao redor, ali dentro, da fonte do sinal. Mistletoe voltou-se para Ivor, que agora tinha em mãos um bastão atordoador, como o que Ruivo usara nas ruas da Pequena Saigon. Detrás dele, Magnus fitava o chão. – Temos de pedir-lhe que se junte a ele, Anna – disse Ivor. – Esse não é meu nome! – ela berrou. Seu grito foi abafado pelo estrondo do Horror.


Novo usuário. Ambrose concentrou-se nessas duas palavras como se fossem uma lembrança preciosa. Uma ansiedade boa ardia dentro dele. Apesar das circunstâncias, ele amava o Unison. Sempre o amaria. Não era um incômodo construir uma nova Conta partindo do zero; era maravilhoso. Nas palmas das mãos, o latejar nos pontos onde Ivor havia reinicializado implantes receptores atenuou-se, e agora era só uma dorzinha chata. À sua volta, o ponto central do sinal rugia. Sentiu o gosto de ácido de bateria, aguentou os sintomas familiares da projeção, e emergiu do lado de cima, numa manhã luminosa e perfeitamente calibrada do Unison. A subcúpula da Cidade Litorânea do Leste nunca havia sido mapeada, codificada e transformada em um bitmap, e portanto nunca fora incluída no mundo do Unison. Assim, o mais provável era que ele estivesse num ponto da superfície logo acima da casatúnel dos dois irmãos. A cidade estava silenciosa e vazia. Sendo um usuário novo, não tinha nenhum Amigo. Atmoedifícios sem graça e sem cor erguiam-se ao redor. Seus passos ecoavam enquanto passava por lojas de fachadas vazias e imponentes saguões empresariais. No ar havia um leve cheiro de arroz. Lembrou-se da equipe de programação do Associado Garvey, discutindo semanas a fio as especificações exatas para o cheiro de usuário novo. Depois de uma longa contemplação – o Unison nunca mais teria essa


aparência ou daria essa sensação de paz –, Ambrose acessou seu Perfil. O espelho surgiu em sua mente, dividindo sua percepção do Unison em duas áreas distintas: a cidade vazia a sua volta, que ele podia tocar e cheirar, e os detalhes da nova Conta. De repente ele podia sentir as características da nova personalidade que Ivor implantara para evitar a detecção pelos escaners da UniCorp. Ele torcia para que essa máscara servisse. Voltou o espelho para dentro. Agora ele era Adam Trevor, um cantor pop iniciante, em busca de uma grande oportunidade. Seus interesses incluíam música do século XXI, design de móveis e colheita de maçãs na Expansão da Nova Inglaterra. Tudo bem. Escolheu tornar pública essa informação e sentiu de novo um gostinho de ácido de bateria. Ao redor dele, a cidade começou a mudar. O leve cheiro de arroz ficou mais encorpado e de alguma forma mais próximo, como se estivesse sendo cozido ali perto. Sob seus pés, a calçada agitou-se. Raízes retorcidas emergiram, empurrando o calçamento para o lado. Dúzias de plantinhas brotaram em meio às raízes e cresceram acima de seus joelhos. Pétalas brancas se abriram, florescendo radiantes antes de caírem ao solo, cobrindo os trechos onde o pavimento não fora substituído por grama. Ambrose caminhou por entre os troncos que engrossavam, enquanto seus galhos se projetavam agora acima de sua cabeça. De uma só vez, milhões de folhas verdes brotaram e se agitaram numa brisa que ele não sentia. O ruído – um leve farfalhar – soava errado, baixo demais e áspero. Ambrose fez uma nota mental de encaminhar o erro para um Associado de Design, e então lembrou que já não tinha acesso a sua Plataforma de Administração. Teria de ignorar todos os erros de sistema que encontrasse. Mas quem sabe o ruído de farfalhar tivesse sido projetado especificamente para os ouvidos de Adam Trevor? Seria preciso se acostumar à nova ID. Parou, fechou os olhos, e respirou fundo. O cheiro de arroz fora substituído por outro, forte, doce e reconfortante. Abriu os olhos e descobriu que estava de pé no meio de um pomar totalmente formado. Por


entre as camadas de folhas, podia ver manchas cinzentas e azuis, cidade e céu. Maçãs vermelhas maduras pendiam das árvores, em pencas, em pares, sozinhas. Ambrose esticou-se, agarrou uma das solitárias e puxou. O galho envergou e depois saltou de volta quando a maçã se soltou. Ele deu uma mordida, e o sumo escorreu por seu queixo. Perfeitamente deliciosa, melhor até que uma BetterApple. De fato, nada podia substituir a comida Unison bem calibrada. Mastigando com gosto, ele foi até o limite do pomar e jogou o miolo da maçã numa pilha de pétalas brancas. Deixando a sombra da última árvore, passou para a calçada. A cidade agora tinha uma população: milhares de Amigos em potencial – usuários com interesses, valores e padrões mentais similares – apareceram como fantasmas translúcidos caminhando pelas ruas. Moveu-se devagar no meio deles; o anonimato conferido pela nova ID. Nenhuma avalanche de pedidos de Amizade. Nem uma horda de desenvolvedores de Aplicativos lutando por sua aprovação. Viu, do outro lado da rua, um garotinho vaporoso correndo atrás de um Amigo ainda mais jovem. Graças ao Plano Família da UniCorp, até crianças podiam receber seu login. Tinham privilégios bastante limitados, mas era do interesse da UniCorp criar uma demanda para BetterLife o mais cedo possível. Pais obcecados com status costumavam gastar sem qualquer controle. No mesmo espaço ocupado pelo Perfil no espelho interno, começou a piscar um Feed: De Ambrose Truax para o Novo Usuário Adam Trevor: Em nome de minha família, quero desejar calorosas boas-vindas. Vida Melhor no Unison! Chocado, Ambrose quase se projetou para fora, antes de se lembrar que Len insistira para que mensagens automáticas “personalizadas” fossem enviadas a cada novo usuário. Havia uma de Len, uma de Ambrose e uma do pai. Lembrou-se do dia em que o irmão e ele tinham discutido os termos da


mensagem de boas-vindas. Um detalhe tão bobo e sem importância, e tinham gastado horas nisso. Olhou para o céu azul que se entrevia em meio aos atmoedifícios. Tão pouco tempo havia se passado desde que ele deixara para trás a vida antiga, e as coisas a que antes costumava dar importância já pareciam absurdas. Então recordou os detalhes de seu antigo quarto – o closet cheio de holomoda, a mesa sintetizadora top de linha, a linda vista do prédio de pastagem vizinho – e uma dor surda se irradiou de seu peito. Nunca voltaria a ver essas coisas. Reprimindo a onda de saudade, lembrou a si mesmo que a família, a carreira e as posses de Ambrose Truax tinham todas sido construídas sobre a grande mentira de sua criação, e que agora ele estava aqui no Unison para descobrir a verdade. Magnus e Ivor tinham lhe mostrado as transmissões confidenciais e agora ele sabia o segredo de seu pai: Ambrose, assim como Mistletoe, tinha sido criado de acordo com as instruções das transmissões. Essa era uma informação irreal, difícil de assimilar. Ele não se sentia diferente, mas por outro lado ainda não vira os projetos específicos de sua criação. Já era bastante duro aceitar que não era humano de todo; ver diante de si, exposta friamente, a nanotecnologia intrincada de sua constituição celular seria demais. Mais tarde teria tempo para essas coisas estranhas e dolorosas. Antes disso, ele aceitara a ajuda oferecida pelos dois irmãos para rastrear e localizar a fonte das instruções de sua criação. Não que confiasse neles ou em seus amigos anti-UniCorp, mas Magnus fizera uma pergunta irresistível: Quantas pessoas neste mundo têm a chance de investigar

pessoalmente o mistério de sua própria existência? Não muitas, Ambrose admitiu. Talvez ele fosse a única. Seu Feed prosseguiu: UniCorp apresenta: Maximize sua Felicidade! Fique mais tempo em BetterLife, faça muito mais Amizades e alcance seus objetivos com um revolucionário procedimento de cirurgia rápida. Pergunte-nos como!


Para cada item que ele absorvia, sua reação imediata de curti ou não curti era medida e registrada. Uma equipe de Fluxo de Processo da UniCorp havia criado um molde para o tipo de personalidade de Adam Trevor e iria preenchendo as lacunas à medida que recebesse mais informação. Em geral era agradável estar num mundo onde as coisas sempre se encaixavam com perfeição, mas habitar a Conta de Unison de Adam Trevor era perturbador. A experiência acolhedora e reconfortante, que trabalhara toda sua vida para manter e aperfeiçoar, estava toda deslocada, como se ele tivesse acordado dentro do sonho de outra pessoa. Um garoto surgiu diante de Ambrose na calçada, o cabelo negro brilhante caindo sobre seus olhos. Ao contrário dos outros fantasmas, ele parecia sólido. Olhou para Ambrose com um misto de interesse e divertimento e em seguida estendeu-lhe a mão. Ambrose sorriu e apertou-a. Quando as palmas de suas mãos se tocaram, uma onda de Informação de Perfil invadiu o Feed de Ambrose. O Unison lhe designara seu Primeiro Amigo. Takashi Nakamura tinha 16 anos. Compartilhava com Ambrose o interesse pela música do século XXI. Além disso, os dois eram confiantes, mas tinham tendência a se acidentarem, eram alérgicos a mofo e transpiravam horrivelmente quando falavam com garotas. Claro, o perfil de Takashi poderia ser totalmente falso, como o seu. Até onde Ambrose sabia, o Takashi bem poderia ser um príncipe bilionário do Polo Norte. Ou um Associado da UniCorp. – Oi – disse Takashi, abaixando a mão e fazendo um breve aceno com a cabeça. – Bem-vindo à BetterLife. Ambrose ficou sabendo que Takashi tinha 42.578 Amigos e que a maior parte do seu tempo no Unison era passada no Centro de Imersão de Entretenimento de Massas. – Como foi sua primeira projeção? – Takashi perguntou, sorridente. – Meio esquisito – respondeu Ambrose, no papel de um novo usuário. –


Teve um gosto ruim. – É pra isso que servem as BetterMints, inteligência-rara. E então, por que demorou pra logar? Seus pais não queriam deixar você brincar? Você é religioso ou algo assim? – Só agora a gente conseguiu grana pra uma ID de login. Meu pai arranjou um emprego novo. Antes a gente vivia... – quase disse na subcúpula, mas interrompeu-se a tempo. – Bom, foi meu presente de aniversário. – Feliz aniversário, pop star. A gente precisa comemorar! – Ah, é? – Nunca fui um Primeiro Amigo antes! – Takashi estava eufórico. Sua EmotiSombra, um dos Aplicativos mais populares do Unison, começou a dançar no chão entre seus pés. Ambrose riu. Ao curtir a EmotiSombra, abriu seu Feed para ofertas de outros Aplicativos: Eventos demais? Você se sente sobrecarregado? Finja que deletou sua Conta com UniFui! EmotiSombras são ótimas, mas serão adequadas no Workspace? Regule a sua com um EmotiTooth. 100% diversão, 0% distração. E recebeu sua primeira atualização de Linha de Pensamento, que sentiu como o toque suave de um dedo atrás dos olhos: Takashi Nakamura acha que Adam Trevor vai ter o melhor aniversário da vida. – Bom, não tenho nada planejado... – disse Ambrose. – Agora tem – interrompeu Takashi. – Vem comigo. Acenou para que Ambrose o seguisse pela multidão de fantasmas. Ambrose hesitou. – Estou esperando alguém. – Boa desculpa. Eu sou seu único Amigo, lembra? A EmotiSombra de Takashi cruzou os braços. Ambrose precisava esperar por Mistletoe no mesmo ponto em que chegara ao Unison. Ivor tinha prometido projetá-la logo que ela acordasse, e Ambrose não tinha


como localizá-la até fazerem Amizade. À sua volta, o Unison continuava mudando. O atmoedifício à esquerda deles era verde-limão, a cor favorita de Adam Trevor. O imponente saguão de mármore branco foi substituído por uma loja abarrotada com discos e roupas vintage. As enormes portas de vidro espelhado estavam cobertas de cartazes antigos de bandas que Ambrose não conhecia. Uma fina camada de sujeira cobria as ruas, e o lixo se amontoava ao longo do meio-fio. Adam Trevor preferia um ambiente urbano menos sofisticado. Ambrose arrepiouse. Por que alguém iria querer sujar seu ambiente no Unison? Mas, pelo menos, os implantes de Ivor estavam funcionando. Até aqui, os escaners da UniCorp respondiam apenas às supostas ações e desejos de Adam Trevor. – Ei, pop star – disse Takashi, impaciente, sua EmotiSombra socando o ar. – Você vem ou não? No fim da rua apareceu um fliperama a céu aberto. Velhas máquinas de jogos eletrônicos alinhavam-se, com imagens perfeitas, sem qualquer falha. – Na boa, não vai dar. Como já disse, eu... – Está esperando um amigo misterioso. Eu ouvi. – Sua EmotiSombra baixou a cabeça. – Desculpa. – Ambrose fez de tudo para parecer sincero. – Da próxima vez, quem sabe... Takashi Nakamura acha que seu novo Amigo odeia se divertir ou algo assim. Ambrose olhou para seus sapatos reluzentes, estampados de xadrez. Sentiu a decepção do novo Amigo como se fosse sua: um desânimo repentino, mesclado a uma tristeza enorme. Takashi é solitário, compreendeu. Ao mesmo tempo, veio a percepção de que Takashi sabia que Ambrose sabia que ele era solitário. Seus Fluxos de Pensamento tinham se mesclado. Ambrose torcia para que os novos implantes de Ivor estivessem configurados para não colocar muita informação nos seus. O Feed informou-lhe: Jogue agora Guerra nas Luas de Saturno!


Atualização de pulso disruptor gratuita para os primeiros 500 usuários! Ocorreu-lhe que não haveria mal em relaxar e se divertir um pouco. As últimas 24 horas tinham sido puro stress, e se conseguisse aceitar totalmente a ID de Adam Trevor, o Unison se encarregaria de tomar todas as decisões. Poderia flutuar à vontade de uma distração a outra. A EmotiSombra de Takashi se animou, reagindo a tais pensamentos positivos. Ambrose sentiu vontade de ser generoso e aberto. Parecia que conhecia Takashi a vida toda. A adrenalina da conexão com o Primeiro Amigo era algo que ele não sentia fazia muito tempo. Se relaxasse e seguisse Takashi, poderia manter o clima e, com cada novo Amigo, incrementar o Fluxo de Pensamento coletivo. No entanto, lembrou a si mesmo, agora tinha uma missão, um propósito na vida que não era baseado em mentiras. Havia pessoas contando com ele. Não era difícil distrair-se naquele lugar.

Foco, Ambrose. Ele imaginou que um detetive devia começar com as perguntas certas. E sem sua Plataforma de Administração, perguntas eram tudo o que ele tinha. – Ei, Takashi, como é que este lugar funciona? – Tem um tutorial. Se você quiser, te mostro onde... – Não, eu quero saber como é que ele funciona na real. Takashi apertou os olhos. Sua EmotiSombra encolheu os ombros. – Não estou entendendo. Ambrose acenou com a cabeça. Precisava ter cuidado. Olhou ao redor. Um cachorro magro e marrom fuçava na sarjeta. – Tipo aquilo – disse, apontando. – É meu cachorro, porque fizeram para mim, certo? Então, você vê um cachorro? Takashi assentiu. – A semelhança de percepções entre os Amigos não é como no mundo material, mas chega perto. Dizem que na Versão 3.0 vai ser perfeita. – Então o que você vê não é um gato, um elefante ou sei lá o quê? Você


também vê um cachorro? – Vejo, mas a pergunta é, de que cor? – Takashi abriu um largo sorriso. – E de que raça? – Não sei, hum... Labrador dourado, acho. – Hummmm – fez Takashi, inclinando a cabeça. Takashi Nakamura acaba de descobrir que prefere buldogues. – Tá legal, beleza – disse Ambrose. – Mas tem alguém com quem eu possa falar que sabe como o Unison faz o cachorro que eu vejo ser diferente do cachorro que você vê? Takashi riu. – Você quer dizer um Associado de Programação? Você acabou de chegar, Adam. Na boa, tá, mas você não é ninguém. Tem tipo uns dois bilhões de pessoas na sua frente. – Não, não quero dizer um programador do mundo material. Só alguém que... sabe das coisas. Ambrose estremeceu. Ele teria que melhorar nisso. Ficaram olhando enquanto o cão roía um retalho de couro. Fantasmas passavam por eles o tempo todo. – Bom, tenho um Amigo que de repente seria legal você conhecer – disse Takashi, pensativo. Era impressão ou algo tinha mudado entre eles? O entusiasmo de Takashi agora parecia permeado de cautela. Sua EmotiSombra se imobilizou, meio trêmula. Takashi Nakamura recomenda uma Amiga: Sonia Carter. Um vislumbre do Perfil de Sonia Carter invadiu seu Feed. Quinze anos. Ex-hacker que virou desenvolvedora independente autorizada de Aplicativos. Desenvolveu o UniPetz, serviço de animais de companhia customizáveis. Ambrose pensou em Lincoln. – Bom... Tudo bem – disse Ambrose, fingindo timidez. – Acho que vai ser bom mesmo conhecer mais gente, né?


– A ideia é essa – disse Takashi. – Do contrário, você nunca vai ser nada aqui. Vai ser só... você mesmo. Ambrose vasculhou a multidão fantasmagórica procurando alguém que pudesse ser Mistletoe. Magnus e Ivor tinham prometido que ela entraria logo depois dele. Takashi agarrou seu braço. – Precisamos ir ao CIDEM. – O Idem? – Ambrose se fingiu de bobo. – C-I-D-E-M. Centro de Imersão de Entretenimento de Massas. Foi onde conheci Sonia. Ela está sempre por lá. Ambrose olhou em volta. Mais uma vez sentiu falta de sua Plataforma de Administração; com uma triagem simples ele teria podido limitar a busca, descartando milhares de possibilidades. Deveria ter dado a Magnus e Ivor instruções específicas para encontrar Mistletoe, mas com tantas novidades, não tinha pensado nisso. – Tudo bem, só que... Minha amiga é nova, como eu. Ela não vai saber... Takashi sorriu. Sua EmotiSombra jogou a cabeça para trás e deu uma risada silenciosa. – Aaaah, então o “amigo” misterioso é uma garota. Escuta, quando conhecer a Sonia, vai se esquecer dela completamente. Vai por mim. Ambrose pensou por um instante. Quem sabe Mistletoe ainda estivesse dormindo, recuperando-se dos efeitos da remoção dos rastreadores. Não podia ficar para sempre ali, esperando. Concordou com um aceno de cabeça, e Takashi o levou rumo ao fliperama. Enquanto atravessava a multidão de fantasmas, Informações de Perfil inundavam seu Feed. Fluxos de Pensamento tagarelavam. Bilhões de emoções microblogadas, fugazes alegrias e dores do dia a dia roçaram os limites de sua percepção, como peixes se dispersando ante a chegada de um tubarão. Um ciclo interminável de transmissão de conexões humanas, que ele estava perdendo! Naquele exato momento, alguma coisa interessante


ou hilariante ou emocionante estava sendo introduzida no fluxo por algum daqueles Amigos em potencial, ali mesmo, e tudo o que ele ouvia era um murmúrio abafado. Passaram por um grupo de homens transparentes, sentados na varanda de uma casa antiga. Ao redor, o desfile fantasma prosseguia incessante. Tantos usuários, e esta era só uma porção minúscula da população logada. Ele poderia viver uma dúzia de vidas aqui, e nunca conhecer todo mundo. Sempre haveria algo rolando, do qual estaria excluído. A inserção permanente começava a parecer razoável. Por que não ficar, simplesmente? Podia fazer milhões de novos amigos e se esquecer por completo de seu pai, seu irmão, Magnus e Ivor. Podia se esquecer totalmente de Ambrose. Parou e olhou direto para o alto. O topo de um atmoedifício branco reluzente fazia um ângulo reto bem definido contra o céu azul contínuo. Reconheceu a nitidez familiar das bordas, a aparente falta de distância entre ele e o final da quadra, entre terra e céu. Não havia névoa, só perfeição e o conforto de chegar em casa depois de um longo dia. Respirou fundo: o ar tinha o cheiro de lençóis lavados. Sabia que por meio de Takashi poderia ter acesso a centenas de linhas de Amizade, e a partir daí a milhares, milhões, bilhões. Respirou fundo de novo e soltou o ar. Com dificuldade, afastou o pensamento e se concentrou em acompanhar Takashi. Atrás deles, o cachorro ziguezagueou entre os fantasmas, nariz na calçada, seguindo o cheiro dos dois.


Mistletoe mordeu a lateral da língua quando o ribombar do Horror fez seus dentes baterem. Sentiu o gosto metálico do sangue. Corra, pensou. Mas as vibrações na sala em sua cabeça e na barriga a mantiveram tão enraizada ao piso quanto o tronco de fios que prendia Ambrose. Saber o que estava por vir não tornava o som nem um pouco mais suportável. Fechou bem fechados os olhos, rilhou os dentes e lutou contra a tremenda vontade de enfiar os dedos no ouvido até chegar nos miolos. Em vez disso, tapou as orelhas com as mãos até a última reverberação se dissipar e o silêncio voltar aos túneis de metrô. Abriu os olhos. Os dois irmãos estavam parados, esperando que ela se recuperasse. Casualmente, como se passasse o bastão para outro corredor numa corrida, Ivor ergueu o atordoador de polícia e apontou para ela. Nelson estava em algum ponto atrás dela. A que distância? O Horror a desorientara. Os olhos dela se fixaram no minúsculo prisma na ponta do atordoador, depois na verruga marrom no nariz de Ivor e por fim nos olhos baixos de seu irmão, que pareceu encolher diante do olhar furioso. Ela cuspiu sangue, e os olhos de Ivor observaram-no bater no chão entre os dois. O cachorro preto trotou até a mancha vermelha, baixou a cabeça e cheirou. Mistletoe olhou para Ambrose, cujos olhos vidrados lembravam a velha boneca Repolhinho que havia nos fundos da loja de Jiri.


– O que fizeram com ele? – Parece mais dramático do que é, Anna – disse Magnus, ressuscitando de repente o sorriso de velho bonzinho. Ela cerrou a mão direita, involuntariamente. – Apaguei a ID antiga dele – informou Ivor. – Novos implantes, novo código fixo, pacote básico de novo usuário. Não poderá ser reconhecido como Ambrose no Unison. Agora, queira ter a gentileza de vir até aqui. Ivor apontou com o bastão para a fileira de teclados. – Me devolve ele. Ivor sacudiu a cabeça. – Receio que ele não lhe pertença. – Eu encontrei ele. – E eu participei da fase inicial do projeto dele. – Ivor, essa criança passou por tanta coisa – protestou Magnus. E você ficar aí assim... A mão erguida de Ivor calou o irmão. Um sorriso tenso surgiu em seu rosto. – Meu irmão está preocupado com nossa imagem – explicou. – Infelizmente, para ele é mais importante como as pessoas nos veem do que descobrir, antes que Martin Truax venha atrás de nós, para que você e seu amigo educadinho foram criados. – Não sou criação de vocês – ela retrucou. Dava-lhe náuseas pensar nas mãos enrugadas daqueles sujeitos manuseando-a quando era bebê. Ivor deu de ombros. Não parecia ligar para o que ela achava. E com certeza não se importava se a situação era difícil ou dolorosa para ela. Magnus ao menos havia tentado suavizar a transição. Mas teria sido amável só para que ela caísse na armadilha? – Sua outra metade está esperando – disse Ivor. – O que meu irmão quer dizer – intrometeu-se Magnus – é que, sem você e Ambrose juntos em Unison, pensamos que nosso... – ele olhou para Ivor – ...que seu processo de autodescoberta será impossível.


– Ah, que dó – disse Mistletoe. Ivor apontou o bastão para o rosto dela. Magnus suspirou. – Meu irmão e eu, nós não somos... – Soltou uma risadinha nervosa. Indicou os panos sujos de sangue, o atordoador. – Nós não somos assim. – É, isto aqui na verdade é um bandejão para pobres – ironizou Ivor. Ele cerrou a mandíbula e apertou os olhos, num blefe de jogador amador de holodados, e Mistletoe percebeu sua pouca intimidade com as armas. Os instintos de rua da garota gritaram Abaixa! O bastão se estendeu em segmentos que faiscaram logo acima da cabeça dela. Sua mão direita escorregou na pocinha de seu próprio sangue. Os segmentos se retraíram de volta ao bastão. – Ivor! Ela olhou a tempo de ver Magnus atirar-se na frente do irmão quando o atordoador disparou pela segunda vez. Magnus caiu instantaneamente de joelhos, cabeça abaixada, mãos cruzadas às costas, à espera das algemas de um policial antitumulto da cidade de cima. Ivor baixou o atordoador, perplexo. – Magnus... Olhou para o atordoador, confuso, como se houvesse um botão para reverter o efeito. Mistletoe sabia que ele só precisaria esperar, talvez horas se o bastão fosse de boa qualidade. Ela se ergueu de um salto e correu para Ivor, que tentou apontar-lhe o bastão. Tarde demais. Ela apoiou o pé esquerdo no chão e com o direito desferiu na canela de Ivor um daqueles chutes de dar partida em Nelson. No último instante, lembrou que estava calçando botas vintage com ponteira de aço, da loja de Jiri, e sentiu uma ponta de remorso. Pela primeira vez Ivor pareceu um homem velho, frágil, alquebrado. Ele rodopiou com a força do golpe, e Mistletoe ainda conseguiu ver seu olhar chocado. O atordoador caiu ao chão. Ela o chutou para trás dos tubos de escaneamento.


– Foi mal – gritou por cima do ombro enquanto corria até Nelson. Estava a meio caminho do veículo quando o cão-cabra preto emergiu de trás de uma maçaroca de fios e se plantou em seu caminho, as unhas batendo contra o chão duro, o atordoador firme em suas mandíbulas. Um fio de baba pendia de uma ponta. Mistletoe estacou. O cachorro agora parecia maior, mostrando uma fileira de dentes que parecia não ter fim. Virou a cabeça para um lado, olhando a garota de forma enigmática. Ela engoliu em seco. Os únicos cachorros que conhecia eram os vira-latas esquálidos que percorriam as ruas da subcúpula, que tinham mais medo dela do que ela deles. Isso aqui era outra coisa; ela nem tinha certeza se era mesmo um cachorro. Atrás dela, Ivor gemeu de dor. O cão-cabra deixou o bastão cair entre as patas dianteiras. Estremeceu uma, duas vezes – e rosnou. O cabelo da nuca de Mistletoe arrepiou-se e ela engoliu em seco. O animal avançou devagar, preparando-se para saltar, e ela olhou ansiosa para Nelson, tão próximo. O pelo do cão-cabra ficou arrepiado, criando uma crista pontiaguda ao longo do dorso. Mistletoe imaginou se ele pularia direto em sua garganta e qual seria a sensação. – Patrícia! – soou, cortante, a voz de Ivor. – Sentada! No mesmo instante, as orelhas da criatura se ergueram como periscópios. Patrícia? surpreendeu-se Mistletoe. A cadela sentou-se e ficou na expectativa, a língua para fora. – Quieta! Mistletoe se virou. Ivor estava sentado no chão, a perna encolhida junto ao peito, olhando duro para ela. A seu lado, Magnus estava de joelhos, totalmente inerte. Ela não sabia o que dizer. Obrigada parecia totalmente fora de propósito. Indicou Ambrose com a cabeça. – Vou levar ele comigo. Como o tiro dali? – Não tira – Ivor disse, com amargura, esfregando a canela. – Você


pode fazer o que bem entender, claro, não tenho como detê-la. Mas se perturbar externamente o login dele, com o código fixo novo ainda cru e exposto, não garanto a segurança do garoto. Mistletoe mordeu o lábio. Olhou através dos dados externalizados flutuantes, blocos de texto sobre campos de cores, para os olhos arregalados de boneca Repolhinho de Ambrose. Havia a possibilidade de Ivor estar blefando e de que, ao arrancar Ambrose de dentro do tronco, ele acordasse bem e pudessem escapar juntos. – Ele tanto pode sentir uma leve desorientação... – prosseguiu Ivor –... como sofrer um dano grave no lobo frontal. Ela não queria correr o risco. Mas se abandonasse Ambrose, para onde iria? Viu o velho examinando a perna. Para não sentir pena dele, lembrou a si mesma que ele lhe dera ordens, como se ela não fosse nada mais que uma engrenagem em sua máquina pessoal de vingança contra Martin Truax. Decidiu que ganharia mais tentando descobrir as coisas por conta própria, mesmo que isso significasse deixar Ambrose... por ora. Sem uma palavra, foi apressada na direção de Nelson, afagando meio sem jeito o pelo macio entre os chifres da cabeça de Patrícia. Apanhou o bastão babado, fez uma careta, e o segurou entre o polegar e o indicador. – Você já provou o que queria, Anna! – gritou Ivor. – Agora me escute: você está cometendo um erro! Ela libertou o guidão da scooter, que estava enganchado em um dos fornos de microondas empilhados, e guardou o atordoador num compartimento diminuto sob o assento. – Não seja tola, eles irão atrás de você, pode ter certeza – continuou Ivor –, eles vão te caçar. Você acha que Martin Truax vai apenas deixar isso pra lá? Você e Ambrose são seu experimento mais valioso. Ele nunca desistirá. Ela deu partida na scooter com o pé. – Está jogando fora sua única chance! Quando ele a encontrar, ele vai...


O motor tossiu e engrenou, engolindo as palavras dele. O colchão de energia se expandiu sob a scooter. Nelson tinha o cheiro de sua velha favela malcuidada, de churrasquinho de rua, de mil encrencas e escapadas por um triz. Nelson tinha cheiro de casa. Ela acelerou passando pelas máquinas préUnison enfileiradas, desmontou para abrir a porta de ferro, e lançou uma última olhada para o tronco de fios, atormentada pela vida secreta que compartilhava com o rapaz que estava deixando para trás. Montada de novo na scooter, deixou o saguão iluminado dos irmãos e ingressou no túnel escuro e malcheiroso. Nelson reagiu aos trilhos com solavancos barulhentos antes de começar a rodar macio. Ela aumentou o brilho do farol e parou, surpresa. O túnel era muito mais largo do que imaginara. Havia vários pares de trilhos que corriam paralelos em alguns trechos e se separavam em outros, perdendo-se na escuridão. Cada par estava separado por uma série de vigas verticais, como os corredores de um prédio por terminar. Não fazia a menor ideia de como voltar para o zoológico. A Pequena Saigon parecia incrivelmente distante. Estava a ponto de escolher um trilho qualquer, quando um farfalhar crescente chamou sua atenção. Diminuiu a marcha e pôs as mãos em concha sobre as orelhas, para captar melhor o som. O ruído, cada vez mais alto, era de algo que vinha direto para ela. Inclinando-se para diante, ela comprimiu o queixo de encontro à scooter, bem quando um turbilhão saiu da escuridão, numa gritaria. Morcegos, pensou, mas quando o primeiro bando passou batendo as asas, alucinado, viu que eram avezinhas brancas do tamanho de sua mão. Elas rodopiavam em grupos, enquanto indivíduos solitários orbitavam como elétrons, voando sobre sua cabeça aos milhares. Mistletoe franziu o nariz, sentindo o cheiro de meias sujas que as aves deslocavam nas camadas superiores de ar. Prendeu a respiração e observou, fascinada, quando uma das aves perdeu o controle e desceu numa espiral, cruzando a luz do farol de Nelson para pousar num trilho na frente dela. A plumagem branca da criaturinha era imaculada, exceto por uma


manchinha vermelha entre os olhos, que se estendia abaixo do bico branco e terminava numa ponta fina negra. Ela olhou para cima, para Mistletoe (que juraria tê-la visto apertar os olhos com o brilho da luz), sacudiu a cabeça, abriu o bico, soltou um tchiuíppp! miúdo e decolou para se unir às demais. Mistletoe havia visto aves como essas uma vez, anos antes, ao visitar o Novo Mercado Egípcio. Estavam numa gaiola dourada pendurada na traseira de uma carroça que vendia animais exóticos, absíntio de primeira e celulares recondicionados. Mistletoe e Dita tinham andado por horas, só olhando, ignorando as ofertas dos camelôs e a insistência dos vendedores. Dita usava um longo cachecol amarelo que dava voltas em torno do pescoço e ombros, e Mistletoe segurava a ponta livre do tecido fino, que esfregava distraída entre os dedos, enquanto caminhavam. – Anna – chamou Dita, apontando para a gaiola. – O que são? – Chmura Dité, minha mãe os chamava. Crianças das Nuvens. Está vendo como estão agrupadas? Só avançam voando juntas como se fossem um único bloco. Anna olhou para Dita, que observava o homenzinho gorducho, responsável pela carroça, barganhar com um casal bamboleante o preço do absíntio. Algo lhe disse que soltasse a ponta do cachecol quando Dita deslizou para trás da gaiola e se colocou entre as aves e o homem de rosto vermelho. Algo brilhou de dentro do bolso de Dita e traçou um arco branco através do ar. Ela olhou para Anna, com um pequeno aceno de cabeça apontou para o outro lado do mercado e depois mergulhou na multidão. Mas Anna ficou no lugar, paralisada, enquanto um lado da gaiola derretia e escorria para o chão, onde endureceu formando um arabesco dourado. As aves fugiram pelo buraco e, como tia Dita, atravessaram o mercado. O homenzinho guinchou. Anna correu. Quando por fim pegou de novo a ponta do cachecol amarelo, Dita lhe disse, séria: – Algumas coisas nunca deveriam ser vendidas.


No túnel, Mistletoe perguntou-se se estes Chmura Dité descendiam do bando que Dita havia libertado, ou se eram uma criação de Magnus e Ivor. De um jeito ou de outro, pensou, estão indo para a saída. Que ave quer ficar presa debaixo da terra? Ela manobrou Nelson e seguiu as aves num túnel que aos poucos subia. Depois de algum tempo, percebeu que esfregava o metal quente do guidão entre o polegar e o indicador, como se fosse o cachecol de Dita. Piscou para conter as lágrimas. Vigas de sustentação passavam ligeiras, como umbrais vazios. A lembrança do mercado levou a um pensamento confuso e sombrio: Tia Dita sabia o que Magnus e Ivor sabiam, e guardara segredo durante toda a vida de Mistletoe. Jiri também, e isso significava que havia um lugar perfeito para começar a investigação: a loja dele, abarrotada de relíquias antigas – e talvez algumas pistas do passado dela. De qualquer modo, ela precisaria de armas melhores. Quando os Chmura Dité começaram a bater as asas de forma menos errática, os grupos reduziram velocidade e se uniram em uma nuvem densa. Mistletoe sentiu o ar mais fresco. Dos dois lados, as vigas deram lugar a paredes sólidas. A inclinação do túnel aumentou. Os Chmura Dité rumaram direto para duas luzes horizontais na parede onde o túnel terminava. Ela seguiu mais devagar, e ficou perplexa ao ver as luzes engolindo as aves, até perceber que eram saídas. Quando as últimas aves desapareceram, ela avançou para olhar através das aberturas. Não havia muito o que ver: o túnel dava para a parte de baixo de um duto de ventilação. Impossível dizer se estava na Pequena Saigon ou em algum outro bairro, mas ao menos era do lado de fora. E as fendas com certeza eram grandes o bastante para que ela passasse. O problema era que, estando com Nelson, a coisa seria apertada. Mas não podia abandoná-lo. Deu ré e acelerou o motor da scooter. – Nelson, desculpa. Com a frente do veículo apontada para baixo, ela acelerou e mirou na fenda inferior. O tempo desacelerou. Acredite, ela pensou. No último


instante antes de arrebentar a cabeça na parede, ela jogou o peso para baixo e para trás, puxando o guidão com toda força e apontando os propulsores para a abertura. O guidão raspou as laterais da fenda, com um guincho atroz. Ela fechou os olhos. Quando o túnel os cuspiu, Nelson foi para um lado e ela caiu esparramada sobre o lixo acumulado no chão do túnel de ventilação. Ela se encolheu toda quando Nelson chocou-se contra a parede oposta, sob uma janela fechada com tábuas. Mistletoe retomou o fôlego e testou braços e pernas: nada quebrado. Seu coração batia forte enquanto ela avançava, com lixo até os joelhos, para examinar a scooter. O cheiro de fruta podre, adocicado e enjoativo, a fez lacrimejar. As pontas do guidão estavam arranhadas e ásperas. O cano de descarga tinha entortado e estava meio achatado. No assento havia um corte fino, pelo qual escorria um gel azulado. Entranhas de visco elástico? Fluido de hiperpropulsor? Ela não sabia dizer, e torcia para que não fosse importante. Endireitou a scooter e sentou-se nela. Procurou se orientar: quatro paredes de tijolos subindo a perder de vista, com varandas improvisadas – tábuas largas se estendendo de uma janela aberta a outra, se entrecruzando e sobrepondo-se a ponto de bloquearem a vista. Lâmpadas pendiam das tábuas, lançando sombras longas e ovais sobre as paredes e iluminando pontos isolados da pilha de lixo. Ela golpeou a tábua que tampava a janela mais baixa. Estava podre e mole. – Desculpa outra vez – disse, e deu partida em Nelson com o pé. A scooter deu um solavanco, arremeteu e sua frente arrebentou a tábua. De novo ela se viu nas fundações desertas de um atmoedifício. Ziguezagueou entre as colunas de aço plástico, saltou com Nelson por outra janela e emergiu na luz difusa da noite na subcúpula. No ar havia cheiro de charuto barato e suor úmido.


Uma hora mais tarde ela deixou a scooter no vão debaixo da varanda de um barraco abandonado. Tirou os óculos de motociclista, pendurando-os no guidão. Odiava deixar Nelson sozinho, mas não queria chegar na loja fazendo um barulhão, pois o local devia estar sendo vigiado. Antes de ir, abriu o compartimento e pegou o atordoador, enfiando-o na manga. Percorreu uma rua tortuosa que descia, passando uma procissão silenciosa de monges de túnicas negras. A loja de Jiri ficava no fim da quadra, espremida entre um cabeleireiro para senhoras de idade e uma floricultura fechada havia muito, cujo letreiro barato de fibra de vidro exibia o desenho desbotado de um bonsai. Não tinha qualquer identificação, e por fora parecia a casa de um maluco com mania de juntar tralha. As duas janelinhas da frente estavam bloqueadas por montes caóticos de objetos, todos à venda. Ela sorriu, lembrando como Jiri costumava avaliar na hora qualquer objeto da loja e gritar um preço, assustando o cliente. Ela se aproximou de uma janela e olhou por uma fresta entre as coisas empilhadas. Mesmo com a luz principal apagada, os diminutos LEDs verdes e vermelhos iluminavam a loja, como sempre. Então outra luz se acendeu no meio do recinto – uma lanterna pequena – e dançou sobre as pilhas de laptops, aparelhos de ar condicionado e máquinas de jogos. A solitária boneca Repolhinho. Mistletoe se abaixou quando o facho passou pela brecha da janela. Isso nunca terá fim, ela pensou; Ivor tinha razão sobre Martin Truax:

ele não vai desistir. Ela retirou o atordoador da manga e se agachou na soleira da porta, à espreita.


Sonia Carter tinha grandes olhos cheios de lampejos cinzentos, como a superfície de um rio veloz. Eles davam a Ambrose a sensação perturbadora de que o Unison havia virado do avesso e formado um túnel para dentro da cabeça dela. Ela aceitou o pedido de amizade dele. A Linha de Pensamento dela ativou-se e entremeou-se à dele. Sonia Carter quer saber por que Takashi demora tanto entre uma visita e outra. Takashi Nakamura pede 0110010001100101011100110110001101110101011011000111000001100 0010111001

Binário, pensou Ambrose. Ele está empolgado. Estavam numa pequena sala de conferências – mesa redonda, uma dúzia de cadeiras, sem janelas – nas profundezas das entranhas labirínticas do Centro de Imersão de Entretenimento de Massas, onde Sonia acabava de fazer uma apresentação para os investidores sobre sua mais recente atualização do aplicativo UniPetz. Essa atualização permitia integrar à Linha de Pensamento de um usuário um animal de estimação senciente. Na verdade, Ambrose não conseguia ver a utilidade de uma janela para a alma de uma criatura sem alma, mas percebia que aquilo podia ser bem lucrativo.


Ao redor deles, investidores fantasmagóricos conversavam entre si enquanto iam embora. Ambrose piscou para libertar-se dos olhos hipnóticos de Sonia. Ela usava um sobretudo impecável de couro branco, com uma larga faixa vermelha perto da barra, que rodeava um par de botas pretas. Circundando seu tornozelo havia uma criatura peluda e de nariz enrugado, parecida com um furão e ocupada em farejar a EmotiSombra de Takashi, que havia reaparecido como uma mancha pulsante, vermelha e laranja. – Bem-vindo ao CIDEM – saudou ela. Sua voz era pausada e contida. O oposto do jeito direto de falar de Mistletoe , pensou Ambrose, com uma pontada aguda e inesperada. Ele prometeu a si mesmo que iria projetar-se para fora e ver como ela estava, assim que conseguisse arrancar alguma informação de Sonia, cujo olhar frio e profissional o incomodava. – Obrigado – agradeceu. – Acho que é a primeira vez que você vem. – Ele acabou de criar a Conta dele – informou Takashi. Ela sorriu. – Ainda sentindo os efeitos da projeção? Ambrose se fez de tonto. – Não sei direito. – Sente algo na garganta? Os resíduos se acumulam. Ambrose respondeu com um gaaahh exagerado e deu de ombros. – Acho que está tudo bem. Sonia despediu-se com um aceno do último fantasma, um velho careca que deixava a sala. Ambrose e Takashi tinham perdido a apresentação. Haviam percorrido um trajeto sinuoso pelos intermináveis corredores do epicentro de jogos do Unison, numa jornada cheia de distrações. Em sua antiga vida, Ambrose não tinha tempo para um parque de diversões como o CIDEM, criado pelos usuários, e seu assombro com a tremenda magnitude do lugar era autêntico. Um olhar através de uma porta revelara uma paisagem infinita de colinas ondulantes, florestas densas e monumentos de


granito em ruínas, restos de uma civilização que nunca existiu: gigantes de quatro braços, os membros de pedra desgastados pela idade. Outra porta abria direto no oceano. Ambrose pousara a palma da mão na parede de água que ondulava, como uma lâmina suspensa no umbral da porta. – Vamos dar uma volta – disse Sonia, enquanto as cadeiras da sala de conferência se expandiam e ganhavam braços espessos e estofados, e encostos altos com apoio para a cabeça. Pareciam ter saído de uma antiga sala de estar vitoriana. Ambrose abanou a cabeça, enojado, lembrando que Adam Trevor curtia design de móveis. Estaria Ivor decidido a tornar a experiência a mais irritante possível? A cor bege da mesa se transformou em um laqueado marrom-escuro, com padrões granulados mais escuros. – Sim, vamos para algum outro lugar. Por favor – respondeu ele. Sonia e Takashi se entreolharam. A expressão neutra e profissional dela suavizou-se. Ambrose teve um sentimento súbito e inexplicável de proximidade a ela, como se ambos fossem velhos amigos num encontro inesperado que exigia um longo e caloroso abraço. Sua Linha de Pensamento estava sendo bastante afetada pela de Takashi. Ambrose teve a impressão fugaz de um momento que ele nunca compartilhara com Sonia – uma espécie de rejeição suave, que não feria a dignidade. Sentiu um aperto na garganta, e seu coração bateu mais rápido. O interesse de Takashi por Sonia era evidente e constrangedor. Ela abriu a porta, agora espessa e de aparência medieval, construída com tábuas de carvalho presas entre si por lâminas de metal escuro e enormes cravos pretos. Esta é uma réplica exata da porta da sala do trono do Rei Ricardo III! Outras 6.897 pessoas curtiram esta porta. Fora da sala de conferência, cadeiras-bolha de espuma viscoelástica, populares vinte anos antes, alinhavam-se ao longo do corredor. Ambrose ignorou as wikis de mobiliário que seu Feed acessou instantaneamente. Ele não queria saber que a espuma viscoelástica surgira a partir de designs


inovadores de colchões, no século XXII. Para o Novo Usuário Adam Trevor, o CIDEM estava se tornando um museu de móveis.

Valeu, Ivor. Ambrose ficou imaginando se Mistletoe estava dando trabalho ao velho. Ele torcia para que estivesse. – Puxa vida! – exclamou Takashi, recuando um passo. – Por que este lugar deixa você tão bravo, Adam? – perguntou Sonia. A Linha de Pensamento de Ambrose mostrava seu desprezo. Ele deu de ombros. – Só estava pensando em outra coisa. – Uma coisa que você vai aprender bem rápido é que os problemas do mundo material não têm importância aqui – disse ela. – Mas isso não é verdade. Quer dizer, os problemas lá de fora não somem sem mais nem menos. Ela acenou com a cabeça, aceitando que ele acreditasse nisso. Dobraram uma esquina e contornaram uma multidão de fantasmas reunidos em torno de uma mesa de Tetra Jack. Cartas metálicas apareciam acima de suas cabeças e caíam como uma cachoeira. Aquilo fez Ambrose se lembrar dos jogos mensais com Len e alguns Associados Programadores, antes que o excluíssem por ganhar com muita frequência. Sua habilidade com o Fluxo de Processo, além de ser a razão principal da genialidade assombrosa que moldara sua identidade empresarial, também fazia dele um oponente frustrante em um jogo de Tetra Jack. Mas agora essa habilidade se fora. Ele podia sentir a ausência dela em sua mente, latejando como o membro fantasma de um amputado. E se tivesse sido eliminada para sempre pelo procedimento? Enquanto se afastavam dos jogadores, Ambrose captou uma vaga impressão de suas Linhas de Pensamento, e teve um calafrio com o desespero sórdido que havia ali. – Viciados – resmungou Takashi. – Todos temos nossos vícios – disse Sonia. – Você joga o RPG Guerra


nas Luas de Saturno; outros jogam Tetra Jack. Ambrose olhou de lado para Sonia, desconfiado com o tom maternal e condescendente. Seu jeito de falar parecia mais com o de alguns de seus amigos mais velhos do que com o de Takashi ou de Mistletoe. Ele se perguntou quem se esconderia por trás do perfil de Sonia Carter, e se sua própria máscara era tão óbvia quanto a dela. Ou talvez ele estivesse apenas ficando paranoico. Dobraram outra esquina e agora estavam no corredor de um hotel barato, com suas padronagens florais e papel de parede descascando. O UniPet de Sonia cutucava os tornozelos de Ambrose com o focinho. – Rapazinho simpático – comentou ele. – Menina. E algum dia, em breve, vamos poder ser todos como ela. – Meninas? – Não. Vamos existir só dentro do Unison. Do outro lado de Sonia, Takashi fez força para esconder um sorriso de orgulho. Sua EmotiSombra emitia um brilho intenso. Ele tinha levado Ambrose até a Amiga certa, e sabia disso. – Você quer dizer, tipo... inserção permanente? – perguntou Ambrose. Ela olhou para Takashi, que encolheu os ombros. – Já ouvi falar – emendou Ambrose, depressa. – Todo mundo fala disso. – Ahã – fez ela. – Escuta, Adam, por que você está aqui? – Takashi não... Sei lá, só estou curioso, e Takashi achou que você podia me ajudar. – O que quero saber é por que você criou uma Conta. – Acabamos de conseguir uma grana. Meu pai arranjou um emprego novo, e aí, no meu aniversário... – Isso é como você está aqui. Estou perguntando por quê. Por um instante, Ambrose não conseguiu falar. Não havia previsto que ela o interrogaria. Agora tinha certeza de que Sonia era uma máscara para um usuário mais velho. – Porque todo mundo já está aqui – respondeu ele por fim. – Eu me


sentia como a última pessoa na Cidade Litorânea do Leste sem um login, tá sabendo? Ele percebeu, pela frieza que se infiltrou na Linha de Pensamento dela – um arrepio tangível, que arranhou seus olhos por trás –, que Sonia se decepcionara com a resposta. Ele teria de ser mais específico, se queria descobrir algo útil. Bancar o detetive partindo do degrau mais baixo do Unison – sem Plataforma de Administração, sem acesso, sem rede de Amigos – era algo tão estranho para Ambrose quanto seria o mundo do lado de cima para Mistletoe. Ele se sentia desconfortável com sua ID inútil que curtia móveis e maçãs, e lutou contra o impulso de se projetar para fora. – Desculpa – disse. – É que nunca pensei nisso antes. Quer dizer, o Unison parecia como... Ele seguiu Sonia e Takashi por uma porta que levava ao nível superior de um antigo estádio romano. Os bancos duros de granito davam vista para um campo esportivo oval, de terra batida. O lugar estava deserto. Eles se sentaram. Ela o olhou, esperando que continuasse. Ele prosseguiu. – Parecia que alguma coisa importante estava passando por mim e que, se eu esperasse demais para embarcar, ela estaria mudada... Tipo, tão lá na frente que eu nunca conseguiria alcançar. Quer dizer, ouvi dizer que já teve uma atualização bem grande, não é? Ele se deu os parabéns pela forma como preparou a isca. Freelancers como Sonia sabiam o que rolava na fábrica de boatos do Unison. Se seu pai tivesse agido por fora dos limites da UniCorp, escondendo de Ambrose e dos demais Associados seu projeto pessoal, Sonia talvez tivesse captado algum fragmento de informação relevante. Ele ficou olhando enquanto ela descalçava a bota do pé direito e traçava uma linha na poeira com o dedão. Um leão apareceu na beirada do campo lá embaixo, e caminhou devagar até o centro, onde se deitou, descansando a cabeça pesada sobre as patas dianteiras. Takashi inclinou-se para a frente e traçou uma linha paralela com um


dedo. Um dragão vermelho gordo, com asas escamosas dobradas para trás ao longo das costas, deslizou a partir do outro lado do campo. O leão ergueu a cabeça e observou o dragão, ressabiado. – Bom – Sonia voltou-se para Ambrose. – Para mim foi mais uma questão de negócios. Onde mais uma garota de 15 anos poderia ganhar tanta grana? Lá fora, você precisa de patentes e equipes de engenheiros. Aqui dentro, você só precisa da matéria bruta, de ideias e conceitos. Se você tem 15 anos, eu sou Adam Trevor. – Mas você não programa os aplicativos sozinha, não é? – Sou contratada da UniCorp. Eles fazem todo o trabalho preliminar e ficam com uma parte dos lucros. Ambrose estava surpreso com a franqueza dela. – Então você não é de fato uma desenvolvedora independente? – Tanto quanto qualquer um, acho. Você tem que ser muito ingênuo para achar que a UniCorp não tem a ver com o que as pessoas criam aqui dentro. – O CIDEM, por exemplo – disse Takashi. – É um espaço criado e mantido pelos usuários, mas a UniCorp pode puxar a tomada na hora que quiser. Tudo isto... – ele fez um gesto indicando o leão e o dragão, que tinham começado a rodear um ao outro, cautelosos – ...pode virar fumaça em um microssegundo. – Por que eles fariam isso? – perguntou Ambrose. – Quem sabe o que passa pela cabeça dele? – disse Takashi. Sonia lhe lançou um olhar fulminante. A EmotiSombra de Takashi se encolheu debaixo do banco. Ele voltou a atenção para o campo, onde o dragão tinha aberto um par de imensas asas translúcidas, entrecortadas com veias, como olhos injetados de sangue. Elas se agitaram de leve, apenas o suficiente para erguer o corpo do dragão acima do leão, enquanto a cauda se mantinha no solo. O leão escavou a terra com a pata. – Pela cabeça de quem? – Ambrose indagou. Mas ele sabia. Sonia mordeu o lábio e deu um ligeiro aceno de cabeça para Takashi.


Ele sorriu, e Ambrose sentiu um aumento brutal de energia na Linha de Pensamento de Takashi. Takashi Nakamura quer sangue de leão. O dragão dobrou as asas e mergulhou direto no pescoço do leão. O felino se virou de lado e o dragão fincou seus dentes, semelhantes a adagas, no pelo das costas do oponente. O felino rugiu, e em resposta um coro de urros se uniu a ele. Dezenas de leões saltaram de valas ocultas e convergiram para o dragão, que batia as asas loucamente, pairando no ar, a cauda longa chicoteando as bocarras que tentavam mordê-la. O dragão guinchou, e seus próprios reforços sobrevoaram num rasante os muros de pedra do estádio, um borrão escamoso vermelho, amarelo e verde. Ambrose reconheceu o truque: eles estavam gerando o caos para cobrir uma conversa arriscada intra-Unison. Uma batalha como aquela poderia confundir os escaners da UniCorp por alguns minutos preciosos. – Martin Truax – disse Sonia, por fim. – O criador. Aquele que concede e toma de volta. – E o que tem ele? – O papo entre freelancers como eu é quase todo especulação. Metade é bobagem, metade é estratégia, com o objetivo de confundir todo mundo, abrir espaço para suas próprias ideias, passar a perna nos outros criadores de aplicativos caseiros. Mas ultimamente a coisa está confusa demais. Tipo, Martin está agindo sozinho e nem os seus assistentes sabem o que ele pretende, porque está planejando lançar a Versão 3.0 de surpresa, e eliminar tudo o que havia antes. Logins alterados de alto a baixo. Perfis apagados. Estão dizendo que não vai haver nenhum aviso prévio. De repente, zás, ele revela a atualização, e no fim ninguém está nem aí que seja uma grande emboscada, porque a mudança de jogo vai trazer oportunidades inimagináveis. – O Unison 3.0 vai ser tipo Humanidade 2.0 – disse Takashi, com um ar de sabedoria, repetindo algum bordão que ele ouvira por aí. – É melhor se abaixar...


Ambrose e Sonia se desviaram para o lado quando uma cauda amarela de dragão passou como um chicote e sumiu por trás do muro superior. Um odor acre de fumaça persistiu no ar. – E qual é o tremendo lance que vai mudar o jogo? – perguntou Ambrose. – O que ele vai causar? Sonia afastou seu UniPet da EmotiSombra de Takashi, e acomodou a irrequieta bola de pelo em seu colo. – Minha teoria favorita? O Unison está no caminho de se tornar a primeira agência de viagens interdimensionais. Você se projeta para dentro a partir de algum ponto da Cidade Litorânea do Leste e se projeta para fora na Expansão de Londres, em alguma base saturnina extraplanetária... ou talvez em outros lugares que nem estão no mapa. – Como por exemplo? – Vai saber. Como eu disse, são boatos. – E o “Marty” não parece muito a fim de dar uma coletiva de imprensa – ajuntou Takashi. Pela primeira vez na vida, Ambrose encarou por uma perspectiva externa o homem que antes conhecia como seu pai. Martin Truax parecia tão remoto e impenetrável quanto os muros cobertos de hera de sua mansão no Unison. – Imagino que a gente não pode simplesmente ir até Greymatter e tocar a campainha – comentou. A Linha de Pensamento de Sonia esfriou de novo. – Você é o primeiro usuário novo que já vi que sabe o nome da mansão do criador. O UniPet dela encarou-o com olhos semicerrados, cheios de desconfiança. No campo, os leões foram saindo de mansinho, lambendo suas feridas. Os dragões sobrevoaram numa formação em V e desapareceram para além da borda do estádio. Ele tinha deixado Sonia intrigada, e ela não lhe diria mais nada. – E rola algum boato sobre um cronograma para essa atualização?


– Bom, engraçado você perguntar isso – disse ela, distante, erguendose. – Por quê? – Porque, por acaso, pessoas em quem confio acham que o processo já começou. – E quando elas acham que isso aconteceu? – Ontem. Ela voltou-lhe as costas e dirigiu-se para uma porta onde estava escrito saída, no estilo quadrado pré-Unison. Ele a seguiu. Sonia então deteve-se e olhou para ele, hesitante. Ambrose podia praticamente ver sua corrente de pensamento: devo dar a entender que sei que ele está atrás de algo maior,

ou simplesmente deixo quieto? – Tenha mais cuidado. Você não sabe com quem está lidando. Ambrose piscou, surpreso. Enquanto ela falava, um U dourado apareceu na lapela do casaco dela. Ele piscou de novo, e o monograma da UniCorp sumiu. – Ei, Adam – chamou Takashi, por trás dele. Ambrose voltou-se. O cabelo preto e liso de seu Primeiro Amigo tinha sido substituído pelas ondas loiras e indisciplinadas de Martin Truax. Takashi deu um passo para trás. – Adam, qual o problema? Agora, também a boca de Takashi tinha se transformado na de Martin: o sorriso de estrela de cinema e os dentes brancos reluzentes. Ambrose sentiu um toque no ombro, baixou os olhos para o U gravado na abotoadura de ouro e girou, aterrorizado. Sonia vestia o terno do pai dele. Ele tentou resistir à onda paralisante de náusea que começava em seu estômago e espalhava-se para os membros. – Isto não está legal – disse Sonia, recuando. – Está tudo errado. Ambrose caiu de joelhos. O piso de pedra do estádio parecia esponjoso e elástico.


– Sonia? – gemeu Takashi. Os olhos cinza aço de Sonia apertaram-se, cheios de fúria. As feições de Martin Truax lutaram para eclipsar o rosto dela: pele bronzeada, com uma sombra bem cuidada de barba por fazer espalhando-se pela face dela, pálida e lisa. – Adam? – a voz dela era o comando autoritário de Martin. – Diga-me o que está vendo! Ambrose afastou os olhos quando os ombros largos de Martin começaram a preencher o terno. Tentou rastejar, mas suas mãos estavam pesadas demais para moverem-se. Ele olhou para baixo e gritou aterrorizado: estavam presas à terra por abotoaduras gigantes em forma de U, as pontas douradas cravadas nas palmas. Em algum lugar distante, Sonia gritou: – Pula fora, Takashi! Ele sentiu a saída abrupta de ambos como uma leve fricção por dentro do nariz. Sonia Carter está agora no mundo material. Takashi Nakamura está agora no mundo material. Ambrose ficou só. De repente suas mãos estavam livres. Ele se ergueu apressado. Um dos dragões verdes de Takashi estava sentado no banco de granito, as asas bem dobradas de encontro aos flancos escamados. O garoto recuou. Seu cérebro latejava, e a visão estava embaçada. Seu Perfil parecia distante e sem importância, uma lembrança nebulosa. – Ah, não... A cabeça alongada e reptiliana do dragão exibia no alto as ondulações loiras do cabelo de seu pai. O animal se virou para ele e sorriu, revelando fileiras e mais fileiras de dentes brancos perfeitos. Na ponta de cada asa, cintilava uma abotoadura em U. Quando o dragão falou, soou como a voz de seu pai, sobreposta mil vezes.

– Papai está muito chateado com você, Ambrose.


Ambrose bateu palmas e se projetou para fora do Unison. O estádio romano afastou-se como se fosse uma foto pendente diante de seu rosto que foi retirada de repente. O espelho que dividia sua mente entre as percepções do tempo real e seu Perfil estilhaçou-se, deixando em seu lugar um segundo de confusão alucinada. Ele então se deu conta de que era Ambrose Truax, que estava encerrado dentro de um tronco oco feito de fios, muito abaixo das ruas da Cidade Litorânea do Leste, na subcúpula, e que sentia uma dor excruciante. Ele piscou e trouxe o mundo de volta. As palmas feridas de suas mãos emitiam pontadas quentes braço acima. Fluxos de dados externalizados espiralavam ao seu redor. Ele ouviu os arquejos pesados e roucos de alguém desesperado por ar, e percebeu que era ele mesmo. Suas mãos estavam paralisadas, suspensas dos lados do corpo. Teve um flashback angustiante das abotoaduras do Unison. O que era isso que acabara de acontecer? Seu pai tinha estado por toda parte e em lugar nenhum, ao mesmo tempo. Não, não era seu pai, ele se lembrou. Não mais. – Me tira daqui! – gritou. Ele ouviu passos arrastados aproximando-se. Parecia alguém que mancava, como se o peso se apoiasse todo em uma das pernas. Algum dos irmãos mancava? Os fios que formavam o tronco se abriram. Ivor enfiou a cabeça pela abertura e exibiu seu sorriso irritante de lábios finos. – Foi uma visita produtiva, espero. – Me deixa sair. O velho abaixou-se para entrar no espaço estreito, e então aprumou-se para libertar as mãos de Ambrose do núcleo gerador de sinal. – Talvez formigue. Ambrose apertou os dentes, enquanto Ivor removia um longo fio de debaixo das bandagens da mão direita, e depois da esquerda. Seus olhos se encheram de lágrimas. Ivor desenfaixou cada uma das mãos doloridas e lambuzou-as com uma meleca fresca e malcheirosa antes de voltar a envolvê-las com bandagens novas. A dor diminuiu em seguida. Ambrose


movimentou os dedos. Ivor virou as costas e saiu do tronco de fios sem uma palavra. O garoto seguiu-o. A primeira coisa que Ambrose notou foi que o laboratório fedia. Depois da série de odores cuidadosamente calibrados que sentira no Unison, o túnel subterrâneo cheirava a umidade – um cheiro terroso, meio azedo. A seguir notou que Ivor mancava de modo acentuado, e isso era novidade. – O que aconteceu? Onde está Mistletoe? – ele olhou ao redor. Nada de garota, nada de scooter. – E onde está seu irmão? Ivor deixou-se cair na poltrona verde surrada que havia colocado diante dos teclados pré-Unison. A cadela-cabra trotou até ele e se acomodou a seus pés, apoiando nas patas peludas a cabeça provida de chifres. – Como foi sua investigação preliminar? – indagou Ivor. – Aconteceu uma coisa... Não sei descrever. Meu pai estava por todo canto, quer dizer, pedaços dele. Era como se ele fizesse parte da infraestrutura, do sistema. É impossível, eu sei, mas... Nunca vi nada assim.

Papai está muito chateado com você, Ambrose. Ele estremeceu. – Hum – murmurou Ivor, como se Ambrose tivesse acabado de descrever o almoço delicioso que acabara de comer. Também neste lugar havia algo errado. Os olhos de Ambrose examinaram a parte da frente do laboratório, os montes de máquinas préUnison, a porta de ferro na outra ponta. A scooter com certeza não estava mais ali. Ele se virou e encarou Ivor, meio esperando que o cabelo branco se tornasse loiro, e que o narigão torto se transformasse num triângulo perfeito. Mas Ivor ainda era Ivor. Ambrose observou enquanto ele esfregava o tornozelo por cima do roupão cinzento. – Que aconteceu com sua perna? O animal ganiu e Ivor estremeceu. – Um acidente, enquanto você estava fora.


De repente, Ambrose sentiu uma pontada simultânea de proximidade e de repulsa. Era a mesma sensação que sentia na infância, uma emoção de profundo conflito que ele nunca conseguira compreender. Mas tinha um único significado: seu irmão estava por perto. Ele quase podia sentir o cheiro de BetterMint extraforte. Ambrose deu um passo na direção do velho. – O que você fez, seu mentir... – Não é culpa dele, irmãozinho. – Len surgiu por uma porta aberta à direita, junto a um antigo carro a gasolina que jazia de rodas para cima, dissecado. Ele entrou no laboratório, cercado por oito corpulentos Associados de Segurança, com as jaquetas negras da UniCorp, atordoadores na cintura, disruptores de assalto atravessados nas costas. Os olhos de Len desviaram-se para os curativos nas mãos do irmão e depois de volta para o rosto dele. – Está na hora de voltar para casa.


– Mistletoe!

Ma buh! Ela se encolheu ainda mais na entrada escura da loja de velharias de Jiri. Não havia pior momento para ser reconhecida por um de seus vizinhos idiotas. – Ei, Mistletoe! O garotinho gorducho era chamado de Xampu, por causa do barulho que fazia quando espirrava. Tinha 8 ou 9 anos e parecia não ter pais. Ele era alérgico a quase tudo, e seu rosto estava coberto por estranhas manchas de sujeira permanente, como um dálmata. Às vezes Mistletoe lhe dava sobras de comida da casa de Dita. Ela observou o garoto atravessar com passinhos miúdos o tráfego de pedestres da subcúpula. Não podia permitir que ele a encurralasse ali; quem quer que estivesse lá dentro podia sair a qualquer momento. Assim, começou a andar e passou pela frente da loja, sob a vitrine atravancada. Uma olhada rápida para dentro mostrou-lhe o facho de luz da lanterna indo de um lado a outro. Teria o ladrão ouvido Xampu gritar seu nome? O menino deteve-se a seu lado, ofegando. O cheiro dele parecia o de uma fruta madura demais. Um longo rastro de meleca saía de seu nariz. – Oi, Mistletoe, onde você estava? – Vem aqui – ela disse, agarrando-lhe o braço de carne macia. – Ai! O que você está fazendo... Isso dói! Ela o fez dobrar a esquina e parou atrás de uma fileira de arbustos


incrivelmente verdes e saudáveis. Guardou o atordoador e segurou o garoto contra a parede. – O-o que... – Me escuta, Xampu, você não me viu aqui. Você não sabe o que aconteceu comigo, mas não estou mais por aqui. Eu não moro mais na Pequena Saigon. Fui embora para sempre. Ninguém sabe pra onde. Entendeu? Faz que sim com a cabeça uma vez se você acha que entendeu. Os olhos dele se encheram de lágrimas. Mistletoe pensou no passarinho que caíra em frente à sua scooter. Como era pequeno e delicado. – Droga, só faz que sim, Xampu. Ele acenou a cabeça freneticamente. As lágrimas escorriam por seu rosto, deixando na sujeira estrias mais claras. Ela o soltou. Ele secou o rosto com as costas da mão, espalhando toda a sujeira. – Vem cá, deixa eu fazer isso – disse Mistletoe, e aproximou da face dele o punho da blusa, mas o menino se desviou e correu para o meio da rua apinhada. Ela resistiu ao impulso de ir atrás dele e explicar-lhe que naquele momento era perigoso ser amigo dela. Seria melhor para os dois se ele só tivesse medo dela, sem saber o motivo. Ela dobrou a esquina e colou-se à parede da floricultura fechada. O policial do lado de cima que os perseguira antes, o do chapéu, segurava a porta aberta para seu parceiro, o Ruivo. Mistletoe se encolheu no chão; apenas mais uma criança sem casa, dormindo nas ruas da subcúpula. Abrindo um olho, ela viu os policiais misturarem-se à multidão. Xampu talvez tivesse salvado sua vida: ela não imaginara que houvesse duas pessoas lá dentro; se tivessem aberto a porta enquanto ela esperava, estaria em desvantagem, apesar da arma. Ela pensou no garotinho, encolhido em algum beco, imaginando por que a moça que sempre tinha sido tão boazinha tinha ficado tão violenta de repente. Fique longe de mim, ela pensou. Não sou quem você acha que sou.

Não sou nem quem eu achava que era.


Já fazia algum tempo que os policiais tinham sumido de vista, quando ela se sentou e vasculhou a multidão. Nenhum rosto familiar. Voltou à loja e testou a maçaneta. Chapéu e Ruivo tinham trancado a porta depois de saírem. Ao lado dela havia um painel quadrado, um pouco mais escuro que o resto da parede. Ela o fez deslizar para o lado. Um teclado iluminou-se. Ela digitou a senha de Jiri, e então pressionou o polegar contra um pequeno quadrado de vidro. Jiri fora solitário e discreto, mas tinha confiado a ela sua loja. A porta destrancou-se com um estalo e ela deslizou para dentro, imobilizando-se de imediato, à espera de que a movimentação horrenda acalmasse. O lugar estava infestado de baratas, que corriam por todo lado cada vez que um humano interrompia sua festa. Ela desejou que ao menos tivessem assustado os policiais. Quando tudo silenciou de novo, ela percorreu apressada um corredor de torradeiras, passou por um barril de celulares e foi até um closet nos fundos da loja. Uma vez lá, abriu o painel de um segundo teclado. Jiri não lhe havia confiado, em absoluto, essa reserva especial, mas ela tinha fuçado e descoberto a senha. Ela esperou pelo clic e abriu com as duas mãos a porta pesada. Uma luz mortiça na outra ponta do longo cômodo iluminava duas estantes bem ordenadas de armas de metal: bastões atordoadores curtos, como o que ela tinha surrupiado de Ivor; disruptores longos e ocos, que se amoldavam ao antebraço e formavam uma ponta afilada quando a pessoa cerrava o punho; pistolas em forma de L, com componentes pré-Unison. Mistletoe examinou a fileira de disruptores até encontrar o menor deles. Toda sua superfície cinzenta exibia profundos arranhões, que revelavam o metal prateado por baixo. Você combina com Nelson, pensou a garota, introduzindo a mão no tubo até que ele recobriu seu antebraço. Fechou a mão e a ponta alaranjada projetou-se para a frente, por sobre os nós dos dedos, na posição de disparo. Voltou a abrir a mão, e a ponta recolheu-se de novo; a arma toda ficou


oculta sob a manga da blusa. – Você precisa de um nome – sussurrou ela, mas nenhum lhe veio à mente. Junto às prateleiras, Jiri havia empilhado caixas empoeiradas de balas. A garota movia-se ao longo da fileira de munição antiga quando seu sapato chutou um objeto metálico, que deslizou pelo piso e chocou-se contra a parede com um clanc. As baratas se alvoroçaram. Ela se ajoelhou e encontrou uma caixa metálica do tamanho e peso do dicionário velho que Jiri tinha em casa. Chacoalhou a caixa. O conteúdo moveu-se com um sussurro suave. Ela revirou a caixa entre as mãos, mas naquela penumbra não conseguiu achar o mecanismo de fechadura. E não havia juntas no metal; a caixa era inteiriça. Por que seria tão importante para Jiri, a ponto de ele tê-la trancado junto com as armas? Com o disruptor sob a manga e a caixa na mão, Mistletoe saiu do closet, fechou a porta pesada e esperou que as baratas se reposicionassem na escuridão. Então arrastou-se devagar pelo corredor, passando pela cadeira de massagem que Jiri nunca deixara ninguém comprar só porque a garota a adorava. Depois de lançar um último olhar à loja, ela entreabriu a porta para observar a rua. Nem sinal dos policiais. Podiam estar escondidos em algum lugar, vigiando, mas esse era um risco que Mistletoe teria de correr. Ela saiu e fechou a porta atrás de si. De volta ao espaço mal iluminado sob a varanda onde deixara Nelson, Mistletoe passou o dedo por cada milímetro da caixa, tentando encontrar alguma imperfeição no metal. Nada. Só havia uma coisa a fazer. Ela cerrou o punho, e o disruptor projetou-se de sua manga, envolvendo-lhe a mão. Com o polegar, destravou a trava de segurança. A vibração fez tremer seu braço e entorpeceu-lhe a nuca. Ela estremeceu, afastando a estranha sensação, e pousou o polegar na parte inferior do painel deslizante – o nível mais baixo de energia, pouco mais que uma fagulha. A vibração reduziu-se a um leve tremor. Fechou um dos olhos, mirou a caixa e recuou o ombro abruptamente.


O espaço sob a varanda iluminou-se como uma manhã do mundo lá de cima. A caixa voou, bateu no teto e abriu-se, pedaços de papel espalhandose como as folhas tinham caído na rua diante da casa de tia Dita. Mistletoe apressou-se em recolhê-las enquanto caíam. As poucas páginas que não ficaram chamuscadas pelo disparo estavam cobertas com a letra ruim de Jiri. Ela apanhou as que ainda eram legíveis e arrastou-se de barriga até a beira da rua, onde havia alguma luz. Na primeira folha que ergueu, a parte superior, ainda intacta, dizia: 2230. Preparativos finais posicionados. Proceder à operação. 2300 Somos apenas quatro neste resgate – J, P, D, D. Mundo de cima em uma hora. Chegada ao hospital às 0200. Libertação dos alvos no laboratório às 0230. Sem tiros se a surpresa for bem-sucedida. Caso não seja, morreremos. Chega de preparativos. Só resta fazer. Carpe somnium. Mistletoe pensou: J = Jiri. D = Dita. E o resgate só podia ser o dela mesma. Isso significava que aquelas notas tinham quinze anos de idade, como ela. Mas quem eram os outros, P e o segundo D? Ela virou a folha. A letra de Jiri ficou ainda pior. 0530. Relatório da situação: P morreu. Um só tiro em seu sistema nervoso. Alvo do sexo feminino libertado. Más notícias sobre o alvo do sexo masculino. Em outro hospital. Outro laboratório. Sem jeito de saber. Mistletoe pensou no sonho que compartilhava com Ambrose. A segunda parte era só dela: segura de encontro ao peito ofegante de Jiri enquanto ele corria, atirando desesperadamente, os fios saindo da cabeça dela e caindo sobre os ombros.

Alvo do sexo feminino libertado. Então eles tinham mesmo invadido um laboratório e conseguido arrancá-la de dentro de um tubo de escaneamento da UniCorp. Suas mãos tremeram. Várias páginas se desfizeram em fragmentos enegrecidos. Ela passou os olhos pelas restantes: gráficos detalhados de venda, fichas de inventário, recibos amarelados. Listas de palavras em Inglês Ocidental


escritas na letra caprichada de tia Dita. Gato. Pássaro. Cachorro. Peixe. Ao lado de cada palavra, um desenho simples de cada animal. Material das antigas aulas de Dita.

Más notícias sobre o alvo do sexo masculino. Ela pensou em Ambrose preso dentro do tronco de fios, as mãos ensanguentadas conectadas ao Unison. Talvez tivesse sido um erro abandoná-lo. Mistletoe desejou que ele estivesse ali com ela. Esmagando os restos carbonizados sob suas botas, pensou se deveria retornar ao laboratório dos irmãos. Puxou Nelson para fora do vão sob a varanda, e estava a ponto de colocar os óculos de motociclista quando viu algo: um relógio de pulso pré-Unison, vermelho, arremessado pela explosão para fora do local onde ela se escondera. Apanhou-o. Ainda estava quente, a pulseira torcida e queimada. O mostrador quadrado estava em branco, exceto por duas letras negras: UL. Ela o virou. Como mostrava as horas? E seria mesmo para mostrar as horas? Havia cinco botõezinhos prateados alinhados na lateral. Mistletoe apertou-os, um a um. Não aconteceu nada. O relógio era sua única pista concreta, e ela o inutilizara antes que ele pudesse revelar seu segredo. Bateu-o de leve contra o painel que protegia a transmissão tão bem reconstruída de sua scooter. – O que você acha, Nelson? Ela tocou com um dedo as três engrenagenzinhas que pendiam de sua gargantilha, sob a blusa. Se Sliv conseguia consertar uma scooter lá de cima, com certeza podia dar um jeito numa coisa simples como um relógio de pulso. – É isso mesmo, aquele cara – deu um chute em Nelson. – Eu sei. Cala a boca. Meia hora depois, ela descia a toda velocidade ao longo de uma favela vertical, no centro de Rio II. Nelson chacoalhava sob ela, reclamando da velocidade insana. Ela abriu caminho, ziguezagueando, até a dianteira de uma caravana de scooters, todas tentando ganhar posições na via


congestionada. As lentes de seus óculos se enchiam de borrões vermelhos e pretos, que ela tentava limpar com a manga da blusa. Rio II tinha um problema sério com mosquitos. Ela disparou por uma viela que fedia a vísceras de peixe. Ao emergir, o velho Hospital dos Veteranos das Guerras Saturninas surgiu diante dela como uma aranha gigante, cada longa ala parecendo uma perna que se estendia a partir do domo central em ruínas. Não havia muita gente por perto; mesmo quem não acreditava em fantasmas preferia manter-se afastado do prédio abandonado. Segundo Sliv, era um esconderijo perfeito. Um curto percurso acompanhando uma das pernas da aranha levou-a até o ponto onde ele, de surpresa, lhe dera a gargantilha – uma antiga porta de acesso no térreo, meio fora das dobradiças. Abaixo da abertura triangular, degraus de cimento desapareciam na escuridão. Mistletoe desligou o motor de Nelson. O relativo silêncio – ao longe, vozes fundiam-se em um murmúrio distante, junto com o lamento abafado dos motores das scooters – relembrou-a da estrada dos transportadores de sucata. Ela desceu da scooter e com cuidado conduziu Nelson pelos degraus abaixo, usando o farol do veículo como lanterna. Sentia o peso reconfortante do atordoador dentro da manga. O túnel estava vazio. Também estava muito limpo, sem nada da sujeira e dos escombros que se amontoavam em cada canto da subcúpula. Só o cimento liso e cinzento que se estendia a perder de vista. Mistletoe apoiou Nelson na parede e esperou. Sua presença não passaria despercebida por muito tempo. Um som na escuridão à sua frente. Tuc-tuc. Tuc-tuc-tuc. Ela prendeu a respiração e ficou escutando. De novo, mais perto. Tuc-tuc-tuc-tuc. Ela meio que esperava que um cego surgisse da escuridão e passasse reto por ela, a bengala tateando o piso diante dos pés. Em vez disso, um inseto metálico do tamanho de um cão pequeno apareceu nos limites da luz do farol. Suas pernas eram pistões de titânio, que deslizavam para a frente e


para trás nas juntas dos joelhos. A cabeça era uma lente de câmera conectada por dois fios a algum tipo de bateria alcalina localizada nas costas. As lentes varreram Mistletoe de alto a baixo e voltaram a subir depois. Três engrenagens prateadas presas à bateria giravam em sincronia com os movimentos da câmera. Mistletoe acenou. – Oi, Sliv – saudou. Sua voz ecoou no túnel. O inseto pareceu encarála por um instante antes de deslizar de volta para a escuridão. Novamente a sós, ela cerrou o punho e a ponta do disruptor emergiu de sua manga. O inseto reapareceu, acompanhado por um disco circular de plástico, montado sobre rodas, que bateu em uma parede, mudou de direção, bateu na outra e veio por fim deter-se aos pés da garota. Um velho alto-falante amarrado em cima do disco soou, com uma chiadeira. Três engrenagens se moveram em sua lateral. – Não esperava que fosse você, Anna – disse o alto-falante. Ela reconheceu a voz de Sliv por trás da estática. – É Mistletoe. – Hein? – Meu nome. – Eu tinha esquecido. Bem bacana seu canhão de braço. Andou fazendo compras? – Mais ou menos – ela abriu a mão e a arma recuou. – Escuta, Sliv, preciso da sua ajuda. O alto-falante soltou uma barulheira desconexa. Mistletoe estremeceu. – Posso entrar pra gente conversar? Mais estática. O inseto e o disco recuaram para a escuridão. Ela esperou alguns minutos por mais alguma orientação e, justo quando começou a avançar pelo corredor, ouviu os ecos de passos se aproximando. Sliv apareceu à luz. Mistletoe tapou a boca com a mão para não gritar. A carne do braço esquerdo dele desaparecera, expondo um mecanismo interno de finos pistões de metal, como as pernas do inseto-câmera. No


lugar da mão, três engrenagens prateadas reluzentes se encaixavam umas às outras, formando uma ponta oca. – Também estou feliz em te ver – disse ele. Ela percebeu que devia estar com os olhos arregalados pelo choque. – Não é nenhuma novidade, eu sempre uso manga comprida quando saio – explicou ele, indicando com a cabeça a entrada do túnel. – Mas a sua mão... Ele apontou para uma série de grandes cápsulas que pendiam de seu cinto. Retirou uma e ajustou-a às engrenagens da ponta do braço. A cobertura abaulada deslizou, recolhendo-se, e revelou dedos revestidos de carne. Sliv agitou-os. – Você fez isso? – perguntou Mistletoe. – Ahã. Não foi difícil. – Tecnologia lá de cima? Ele se encostou na parede e afastou dos olhos o cabelo comprido castanho, prendendo-o atrás da orelha. – Coisa de primeira – respondeu. Mistletoe apertou os olhos para vê-lo melhor. Era a luz do farol que criava uma sombra sob o nariz de Sliv ou ele estava tentando deixar o bigode crescer? – Toda essa pele é minha mesmo – ele disse, apontando para seu rosto. Ela desviou o olhar e pensou em Ambrose, de terno, o cabelo loiro sedoso e dentes perfeitos, e então se deu conta de que, sem querer, havia acabado de comparar Sliv com ele. – Desculpa – ela disse. – Deixa pra lá. Ela tirou do bolso o relógio de pulso queimado e estendeu-o para Sliv. – Você faz ideia do que seja isto? Ele limpou na camisa a fuligem preta, revelando o resto da etiqueta: ULL. Então ajustou outra das cápsulas do cinto nas engrenagens. Um conjunto de chaves de fenda e chaves de boca emergiu no lugar dos dedos.


Ele removeu a tampa do visor quadrado. Mistletoe inclinou-se para diante, curiosa. – Você está fazendo sombra – reclamou ele, sem erguer o olhar. Ela recuou, encostando em uma parede, esperando enquanto ele atacava as entranhas do relógio com uma chave de fenda minúscula. Segundos depois, ele fechou a tampa e apertou um dos botões prateados. Uma explosão como a de um flash pré-Unison preencheu todo o túnel com luz branca. Uma confusão luminosa de fagulhas cintilou e permaneceu congelada no ar entre eles. Sliv sacudiu o relógio e bateu-o uma vez contra a parede de cimento. As fagulhas reorganizaram-se em pequenos blocos de texto branco numa página externalizada azul-clara. – ULL é a Universidade Litorânea do Leste – informou Sliv, banhado pelo brilho azulado. – E esta coisa é um banco de dados para um curso antigo. Um monte de material de pesquisa, dever de casa e porcarias desse tipo. Já tem alguns anos. Eles pararam de usar esses aparelhos quando a maioria dos estudantes implantou código fixo. Mistletoe examinou a página. Havia um cabeçalho no alto: CURSO E-56.8 NAVEGANDO NO MERCADO FREELANCE DO UNISON PROFESSORA DEIRDRE O’HANLON Deirdre. Seria o segundo D que Jiri mencionava em suas notas? A única coisa que Mistletoe sabia sobre a Universidade Litorânea do Leste era que ficava acima da cúpula. – Preciso ir lá pra cima – disse. Os dados do curso desapareceram. Sliv puxou uma mecha de cabelo de detrás da orelha e começou a enrolá-la entre o polegar e o indicador, pensativo. – A gente está pensando em fazer uma expedição de busca amanhã à noite. Pode vir se quiser. – Quem é “a gente”?


– Eu e minha turma. – Você não tem turma. – Tenho sim. A gente se chama... – ele olhou para Nelson, para Mistletoe e então para a base de dados do curso – ... Relojoeiros. – Belo nome. – Obrigado. É novo. Como o seu. – Só que eu preciso subir agora. Ele brincou com outra mecha de cabelo e olhou-a com curiosidade. – Tudo bem, Anna Mistletoe. – É só Mistletoe. – Duas condições. Primeira: você vai me contar por que tem tanta pressa para subir. Segunda: seja lá o que vai fazer lá em cima, vai me levar junto. – Primeira: não posso. Segunda: também não posso. – Achei que ia dizer isso. Então é algum cara? Isso a pegou de surpresa. – O quê? Não, não é... Ma buh, Sliv, não tem nada a ver com... – Mistletoe suspirou. – Não tem cara nenhum. – Ficou pensativa um instante, mordendo o lábio inferior. – Você faz ideia de onde você veio? Ele cruzou os braços. A mão mecânica repousava na curva do outro cotovelo. A camisa preta sem mangas deixava ver em seu ombro direito a tatuagem de um relógio escorrendo. – Do mesmo lugar que você. Da Pequena Saigon. – Ahã. E você sabe quem são seus pais? – Mais ou menos. Ela o encarou. Ele desviou os olhos. – Tá legal – disse ele. – Você está procurando sua família. Estou procurando a mim mesma, pensou ela, mas o que disse foi: – É suficiente pra você? – É sim – respondeu ele, depois de alguma hesitação. ¬¬¬


A entrada para a câmara estanque nos limites de Rio IIestava imunda, coberta de latas amassadas, cobertores ensebados e roupas sujas. Não era à toa que o lugar tinha problemas com mosquitos. Mistletoe apoiou a mão no guidão de Nelson e ficou ouvindo os sons familiares da subcúpula, isolando cada palavrão, cada risada, cada rugido de motor, para o caso de ser a última vez que ela os ouvisse. Ela não saberia dizer o que a assustava mais: o fluido de congelamento rápido ou a possibilidade de nunca mais ver de novo aquelas ruas. Pensou em Ambrose, na mesma situação, trocando a vida no lado de cima pela vida na subcúpula. – A scooter fica – disse Sliv. – Eu sei. – Não vai caber – explicou ele. – Eu já disse que sei. Ela soltou o guidão, lembrando de todas as tardes em que saíra com Nelson pelo alçapão de sua varanda, descendo a toda ao longo da favela vertical e atingindo a rua. O dia em que Jiri trouxera o veículo para casa, ele reluzia, apesar da pintura descascada e do cromado sem brilho. Era como se estivesse dispensando seu melhor amigo. – A gente vai cuidar dela – Sliv prometeu. – Dele. E nada de desmontar ele para usar as peças. – Palavra de Relojoeiro. – Espera aí! Quer saber? Na Pequena Saigon tem um garotinho de rua chamado Xampu. Pergunta por lá que você encontra ele. Dá a scooter pra ele. – Xampu? – Diz que é um presente de Mistletoe. Ou nem diz. Não faz diferença. Sliv a estudou, e então assentiu com a cabeça. Eles observaram um grupo de pessoas lá de cima que estava junto à entrada. Usavam as jaquetas verdes do Conselho de Engenheiros da Cidade Litorânea do Leste. Os homens terminaram suas bebidas e jogaram as latas vazias no chão. Mistletoe apertou os olhos.


– Eles acham que isto aqui embaixo é uma lata de lixo gigante. – Não esquenta – sussurrou Sliv, a mão sobre o ombro dela. Um dos engenheiros olhou na direção deles, examinou-os por um instante, desconfiado, e então juntou-se a seus colegas na câmara estanque. A porta fechou-se detrás deles. Através do acrílico, Mistletoe podia ver o elevador subir até que a estrutura transparente se tornava um tubo sólido de aço plástico, penetrando na favela vertical acima deles. Ela seguiu seu avanço invisível através da favela, virando o pescoço para ver a cúpula. Acima daquilo, a câmara estanque se abria na Cidade Litorânea do Leste. – Então, como faço para tomar o elevador sem uma ID? – perguntou. Se ela acionasse os gatilhos invisíveis da armadilha, o fluido congelante dispararia o alarme em uma guarita próxima; policiais e técnicos convergiriam para o local em poucos minutos. Ela já vira essa cena uma dúzia de vezes, da rua: câmara estanque fechada, corpo congelado. Então, enquanto a multidão de curiosos se formava, decidia-se se ele seria exibido ou destruído. – Você não pode fazer isso, a menos que queira uma destas – Sliv ergueu sua mão de engrenagens. – Nem pensar. – Sabe, a câmara estanque de Rio II nunca funcionou direito. A gente conseguia passar pelos sensores sem ser detectado. Era bem prático. – O que aconteceu? – Ela foi consertada. Sliv removeu um acessório prateado de seu cinto e o encaixou nas engrenagens. Mistletoe seguiu-o quando ele deu a volta à câmara estanque, e quase vomitou. Estavam no meio de uma pilha de sacos de lixo pretos. A maioria estava rasgada, vazando imundície. Ela sentiu no fundo da garganta o fedor úmido de podridão. – Isso é nojento – reclamou, com voz apertada. – O que a gente tá fazendo aqui? Sliv usou um dedo de verdade para abrir uma tampa deslizante do


acessório. Três chaves de cobre emergiram da abertura. Ele se moveu entre os montes de lixo que chegavam à altura do peito até que pareceu satisfeito com algo que ela não conseguia ver. Ele enfiou a mão dentro de um dos sacos. Mistletoe tampou o nariz. Três estalos suaves, e ele abriu uma porta que estivera oculta pelos detritos. Ele fez uma reverência meio séria, meio de brincadeira. – Princesa, sua escada a espera. Os olhos dela escalaram os trinta andares favela acima, até a superfície inferior da cúpula. – Isso é um antigo poço de acesso para a manutenção da câmara estanque – informou Sliv. – Uma subida e tanto, mas é o que temos. Tem certeza de que não quer companhia? Por um instante ela desejou que Sliv pudesse subir com ela. Seria legal estar com alguém que conhecia o território. Mas até mesmo começar a explicar o objetivo da jornada parecia impossível.

Acabo de descobrir que fui criada pela UniCorp. Meus pais são um tubo de metal e dois velhos esquisitos. Não faço a mínima de qual o motivo de minha existência. Aliás, é o que espero descobrir. – Tenho que ir sozinha. Mas valeu. Ela examinou por dentro o estreito poço de acesso. Degraus de metal enferrujado estavam presos à parede de cimento. – Escuta – ele disse, fitando a gargantilha que tinha escapado pelo decote da blusa dela. – Não me esquece, tá? Mistletoe tocou-lhe a mão mecânica. – Não vou esquecer. Dentro do poço, ela subiu no primeiro degrau e olhou para cima. Nem um raio de luz assinalando a saída. A garota respirou fundo e começou a escalada, as mãos agarrando um degrau depois do outro, em meio à escuridão absoluta. Daí a um instante, Sliv chamou-a. – Ei!


– Que foi? – Divirta-se na escola.


– Len, seu filho de um rato sintético – praguejou Ambrose. Ele sempre tivera sentimentos conflitantes quanto ao irmão, mas naquela hora, quilômetros abaixo de seu lar e a anos-luz de distância da antiga vida como colegas na UniCorp, Ambrose tinha a certeza de que odiava Len. Que significaria a infância que passaram juntos, o sofrimento, o deboche, os momentos isolados de ternura inesperada, agora que ele sabia que não eram parentes? – Impressionante seu domínio da gíria local, irmãozinho – respondeu Len. – Ia ficar mais convincente se você pusesse mais raiva na entonação. – Não sou seu irmão. – Eu sei. Só achei que nossa nova relação podia começar de um jeito mais suave. Rodeado pela carrancuda equipe de segurança da UniCorp, Len parecia um pouco com um Martin Truax jovem e sincero: o cabelo claro e os traços bem marcados eram iguais, mas faltavam o sorriso de galã de cinema e a presença magnética. Era pouco provável que Len estivesse aqui para matálo, pois Martin ia querê-lo vivo, mas os disruptores-padrão da UniCorp tinham efeitos não letais muito eficientes. Se Ambrose tentasse correr, viraria um monte trêmulo de gelatina no chão antes de dar três passos. – Quanto tempo faz que você sabe o que eu sou?


– Mais ou menos um ano. Uma cena absurda surgiu na mente de Ambrose: Len e Martin brindando com taças de vinho, rolando de rir com a piada que compartilhavam, enquanto Ambrose perseguia às cegas suas funções, como um rato num labirinto. O garoto deu um passo à frente. Oito Associados de Segurança tocaram seus atordoadores ao mesmo tempo. Ambrose mostrou as palmas das mãos, vazias e enfaixadas, e se virou para Ivor. – Com que ele te comprou? Um escritório com vista panorâmica na UniCorp? Acesso Administrativo Total? O velho sacudiu a cabeça, cansado, e esfregou a nuca de sua cadelacabra. – Len, por favor, conte a ele a verdade antes que ele tenha um ataque. Um gesto de Len, com as palmas das mãos para baixo, fez os membros da equipe de segurança darem um passo atrás e tomarem posição de descansar. – Dita me contatou faz um ano, Ambrose – disse Len, assumindo o tom caloroso que usava em apresentações para os acionistas da UniCorp. – Ela sequestrou minha caixa de entrada e invadiu meu log de transferência, como fez com o seu. Carpe somnium, tudo aquilo. No início não dei atenção, mas alguma coisa na mensagem inicial me impediu de mostrá-la ao papai. Ambrose estava em choque. – Mentira. – Me escuta. Em parte foi por causa do comportamento dele próprio. Você começou a trabalhar só um pouco antes da inserção permanente dele, e assim tudo o que você conhece dele como empresário é o cara isolado em Greymatter. Mas eu me lembro de quando ele era corpóreo, e era bem diferente. Ele já não é mais o mesmo. A transmissão me inspirou a fazer minhas próprias investigações. Foi um desafio, já que os arquivos pessoais dele não existem, por assim dizer. E o que me deixou desconfiado foi o que


eu não consegui acessar. Greymatter costumava ser transparente, ou pelo menos acessível, para os Associados de alto escalão. Podíamos entrar lá. Lembra que uma época tínhamos reuniões de produto lá às sextas? Agora, é uma fortaleza. Algo está acontecendo lá, e é alguma coisa gigantesca. Seja o que for, ele está operando isso fora dos limites da UniCorp. Esses caras – ele acenou com a cabeça para Ivor, cuja atenção se voltava toda para a canela machucada – pelo menos ofereceram o começo de uma explicação. Ambrose examinou o jovem de 19 anos que sempre considerara seu desagradável irmão mais velho. Era difícil aceitar um mundo em que Len era seu aliado secreto. Ele disse: – Então você já sabe a verdade sobre minha... – ...criação. – ...faz um ano, e nunca passou pela sua cabeça me contar nada? A cadela latiu alegremente. – Agora percebemos que foi um erro não contar a você – afirmou Ivor. Ambrose não podia acreditar. – Desculpas recusadas. – A gente achou que você seria mais eficiente como agente infiltrado – disse Len. – Assim que papai revelasse qual o seu propósito, extrairíamos você. Infelizmente, isso quis dizer tirar você do jogo. E esperar. – Fala sério, Len, agente infiltrado? Você estava me usando, da mesma forma que papai... – ele sacudiu a cabeça. – ...da mesma forma que Martin. Você ficou na sua e me deixou ir em frente com o procedimento. – Qual, aquele que você pediu de joelhos para fazer? A gente achou que ele o tornaria um agente mais eficiente. – Para de me chamar assim. – Esses caras – Len apontou para Ivor – são parecidos com a UniCorp numa coisa: eles topam correr riscos a curto prazo, com a expectativa de ganhar muito no futuro. Dita não concordou, e passou a transmissão a você sem contar a ninguém. Isso pegou todo mundo de surpresa. Tive que mandar alguém interceptar você.


– Jiri – disse Ambrose, a cabeça a mil, acompanhando a explicação de Len. Agradeceu em silêncio a Dita, por ter sido a única pessoa a achar que ele merecia saber a verdade. – O que nos traz ao problema central de sua fuga desabalada – afirmou Len. – A calibragem. A palavra provocou em Ambrose a mesma ansiedade que apertava seu peito sempre que adiava por muito tempo uma responsabilidade no trabalho. No turbilhão alucinante dos últimos dois dias (tinham sido só dois dias?), ele se esquecera da segunda parte do procedimento. A modificação hipotalâmica fora bem-sucedida – ele não havia dormido e não estava cansado –, mas as calibragens pós-procedimento eram necessárias para prevenir efeitos colaterais. Sem a válvula de segurança dos sonhos, começaria a processar acontecimentos como alguém com insônia. O subconsciente começaria a se impor na vida desperta e, com o tempo, iria fragmentar-se sem esperança de reparo. Ambrose terminaria como as primeiras cobaias: um louco furioso e paranoico à deriva num mundo de alucinações. O rosto sorridente de Martin no corpo do dragão lhe veio à mente. Já havia começado. – Ai – exclamou, sentindo-se de fato um irmão caçula assustado e inseguro. – Isso mesmo. Ai – disse Len. – Por isso precisamos voltar ao escritório. – Esse é um plano muito mal elaborado. – É o único lugar equipado para lidar com o pós-operatório de um Nível Sete. Ambrose, você sabe disso. – É que parece... – um truque, ele pensou. O tipo de coisa que Martin faria para conseguir que ele voltasse à UniCorp com um mínimo de incômodo. Então voltou-se para Ivor. – Onde está Mistletoe? – Sua encantadora companheira caiu fora. Veja o presente de despedida que ela deixou. – O velho levantou a barra da túnica para


mostrar um hematoma feio na canela. – Preciso encontrá-la – disse Ambrose. A ideia de perdê-la para sempre o fez sentir uma solidão profunda. Além dele, era a única pessoa que sabia como se sente alguém ao descobrir que não é de fato humano. – Primeiro temos que fazer sua calibragem – disse Len. – Em teoria, a nova ID de código fixo que Ivor colocou em você funciona lá em cima. Assim, se usarmos minha entrada particular para o laboratório, em vez de entrar pela porta da frente... – Eu nunca soube que havia uma entrada particular. – Existe. É minha. Ambrose ainda queria fugir. Queria encontrar Mistletoe e fugir de Cidade Litorânea do Leste com ela. Mas Len estava certo quanto à necessidade urgente de calibrá-lo. Imaginou um mundo cheio de dragõesMartin sorridentes e estremeceu. – Tudo bem – disse a Len. Os seguranças ficaram em posição de sentido, com cara de poucos amigos. Ondearranjam esses sujeitos? Ambrose imaginou uma sala de espera silenciosa cheia de brucutus. – Vamos acabar logo com isso. Eles emergiram do sistema de metrô para as ruas da Pequena Saigon, indo apressados rumo a um transportador preto, longo e cilíndrico, do outro lado da rua. Os seguranças baixaram as abas das jaquetas, escondendo as insígnias da UniCorp. Na lateral do transporte estava escrito BEBA CHÁ ESQUILO VERMELHO, em letras vermelhas brilhantes. Sob os dizeres havia uma imagem das cápsulas verdes, pretas e laranja da marca. – Entrega de chá? – Ambrose indagou enquanto entravam no transporte. Viu o nono membro da equipe de segurança, que estivera à espera no assento do motorista. – Lamento que não aprove o disfarce – Len disse. – Não tive tempo de conseguir nada melhor. A voz de Len podia parecer unhas arranhando aço plástico. Ambrose se encolheu.


– Eu só estava tentando ter certeza de que não estou delirando. – Não posso confiar em ninguém da UniCorp. Não dá exatamente para solicitar pessoal e condução de luxo pra levar você à sede. Ambrose olhou desconfiado para os guardas. – Esses são de minha confiança – disse Len. – Reportam diretamente a mim, sem que papai fique sabendo. – Isso é o que você acha. – É o que eu sei. Então, o que você descobriu quando estava logado? O transportador se juntou ao tráfego e de imediato ficou parado no congestionamento. Os propulsores foram acionados e o veículo deslizou por sobre as scooters e carroças detidas. – É, isso com certeza não vai chamar a atenção – disse Ambrose, imitando a voz de Len. – Se prefere ficar parado no engarrafamento da subcúpula, posso dizer ao motorista para descer. Ambrose suspirou – Tá bom. Antes de mais nada, pode me devolver a Plataforma de Administração? Len sacudiu a cabeça. – Talvez eu consigo restaurar alguns privilégios de backend enquanto você está sendo calibrado, mas não posso lhe dar poderes de Administrador. Eles vão rastrear a nova presença de alto nível um segundo depois de você se projetar. – Então o que você espera que eu faça? Admire a mobília? Em teoria, estou tentando descobrir por que existo. – O que você já descobriu? – Len insistiu. Será que aquela insistência se devia a Martin estar na escuta? Então Ambrose lembrou-se de que paranoia era um dos efeitos colaterais do procedimento de Nível Sete. – Quem é essa gente com quem você está trabalhando, Len? – Na verdade, papai tem razão sobre eles: são basicamente sabotadores da pior espécie.


– Terroristas. – Tá bom. Eles me disseram a verdade; papai parou de fazer isso há muito tempo. – O que eles querem? – Magnus e Ivor querem acertar as contas com a UniCorp desde que foram despedidos há quinze anos. Tinham aliados que, com o passar dos anos, ou morreram ou se afastaram. Para eles, finalmente terem você e a menina é uma grande vitória. – Ninguém me tem. E Mistletoe sumiu. – Ótimo. Estamos melhor sem ela. Minha prioridade é você. – Eu mesmo vou procurá-la, se for preciso. – E onde? Na Pequena Saigon? Vai sair gritando o nome dela pelas ruas? Ambrose assentiu com a cabeça. – Se for preciso. – Não seja idiota. – Você já não me diz o que fazer, Len. O segurança sentado ao lado de Len lutou para controlar um sorriso, a boca tremendo. Ambrose desejou poder ver sua aparência quando tentava ser enérgico e confiante. Pelo visto era cômica. Teriam seus colegas da UniCorp rido dele por anos? Teria estado ofuscado demais por sua própria reputação para perceber o desprezo de todos ao seu redor? Paranoia. Ambrose se virou e sua atenção desviou-se para uma cena do lado de fora da janela. A entrada de uma câmara estanque para o lado de cima estava cercada de policiais da subcúpula, que abriam caminho para um par de técnicos vestindo roupas térmicas brancas e capacetes. Alguém na multidão jogou uma casca de banana que acertou o ombro de um policial e deslizou por suas costas. Os outros policiais empunharam seus atordoadores. Então o transporte virou a esquina e a cena foi ocultada por uma favela vertical.


– De qualquer forma, você conhece o funcionamento do Unison melhor do que ninguém – continuou Len. – Você deveria conseguir transformar suas habilidades numa linguagem de consulta para filtrar os boatos e definir seus próximos passos na investigação. Se fosse eu, a primeira coisa que faria é... – Len, sério, para de falar por um segundo. Encontrei uma criadora de Aplicativos freelancer e ela contou que aboataria sobre Greymatter anda fora de controle ultimamente. Por exemplo, a Versão 3.0 do Martin pode já estar em operação. Perguntei quando começou, e ela disse “ontem”. – Bom, isso faz sentido. Assim que você fugiu, ele precisou agir. E você também deve ter feito com que ele se apressasse. Isso significa que ele está fazendo duas coisas: correndo para lançar o projeto e procurando você. O transporte tomou a rua de acesso que circundava Rio II e prosseguiu lado a lado com grande variedade de veículos comerciais, longos e desajeitados, que rumavam para as docas do mundo de cima. Ambrose viu os transportadores na fila diante deles serem abordados e vasculhados por policiais de capacete em scooters negras. Quando um dos guardas emparelhou com o veículo, o motorista baixou a janela e lhe disse algumas palavras. O policial fez uma continência e os deixou em paz. – Chá Esquilo Vermelho, né? – disse Ambrose. Len fez um entusiasmado sinal de “positivo”. – As pessoas adoram. Ao chegarem à superfície, o interior do transportador se iluminou quando Len e os seguranças externalizaram suas caixas de entrada pessoais. Ambrose desfez suas bandagens e estremeceu. Um furinho marcava o centro da palma de cada mão, onde Ivor havia reiniciado sua ID de código fixo. As feridas ainda estavam em carne viva mas já não sangravam. Ambrose sempre se curava rápido: arranhões e hematomas muitas vezes desapareciam no mesmo dia. A comida sintética rica em vitaminas cuidava disso. Ou será que Martin e os Associados do laboratório o haviam feito assim? Perguntou-se se teria vastas reservas de poderes desconhecidos. Se os


humanos comuns só usavam uma fração de seus cérebros, quanto haveria ainda a explorar no seu? Ele virou a palma da mão e externalizou sua página padrão de boasvindas, algo que não via há tempos. Sentiu um aperto no coração quando viu que todas suas configurações tinham sido zeradas. Bom, e daí? Ambrose Truax também tinha sido uma espécie de ID falsa. Mistletoe é que fez certo, pensou. Pelo menos ela mesma escolheu seu nome. Imaginou onde estaria a garota, e por alguns segundos sua mente vagueou pela cidade de cima. Ele a visualizou mergulhando entre atmoedifícios, arrancando uma BetterPear de um sintetizador móvel, vagueando assombrada no interior de um dos amplos projetódromos cobertos, onde as pessoas curtiam sua experiência Unison do conforto de cadeiras reclináveis e de camas, seus corpos imóveis protegidos por guardas que patrulhavam os corredores quilométricos. Mas isso era impossível; ela não podia nem vir ali em cima. Onde quer que se encontrasse, ele torcia para que estivesse a salvo. E por mais que quisesse encontrá-la, parte dele sabia que ela estaria melhor longe dele. – Chegamos – anunciou Len, tenso e sério. Ambrose fez desaparecer a agradável página verde de boas-vindas. Um dos Associados de Segurança jogou-lhe uma bandagem limpa, que ele rasgou ao meio e enrolou com duas voltas ao redor de cada mão. – Vou conseguir um novo traje moldável para você no laboratório – disse o irmão. Ambrose se deu conta de que seu traje estava rasgado em vários lugares, resultando numa projeção débil e fragmentada do elegante holoterno azul que ele vestira para o procedimento, em outra vida. – Não vou mais usar trajes moldáveis – decidiu de supetão. Len suspirou. – Tudo bem, Ambrose, use o que quiser. Ambrose sentiu um frio na barriga. O rosto de Len se projetou da cabeça e se alongou formando um focinho. A pele se esticou para cobrir a


forma não humana do crânio. Longos vergões vermelhos surgiram, como feridas de um açoitamento medieval, depois começaram a vazar e se abriram para revelar uma nova pele de escamas verdes. Os olhos viraram fendas amarelas. Ambrose gritou. Len sorriu, exibindo os dentes branquíssimos de Martin. O sorriso se ampliou. Ambrose via fileiras e mais fileiras de dentes, recuando a perder de vista. A boca escancarada ocultou o interior do transportador. Um vento forte uivou em seus ouvidos, como se estivesse parado no meio de um campo vazio. Sentiu, ainda que não pudesse ver, uma língua pegajosa se enrolar em todo seu corpo. Ela começou a apertar, sufocando-o cada vez mais, até que uma de suas costelas estalou como um fino graveto. Tentou gritar de dor, e o ar ficou preso em sua garganta. Tinha a sensação de que o empurravam debaixo d’água. Então tudo terminou. Abriu os olhos, apesar de não se lembrar de tê-los fechado. Estava sentado em frente ao irmão no transportador. Seu coração batia forte. Len olhava-o com atenção, um olho mais apertado que o outro. Não parecia chocado nem perturbado. Os seguranças passaram por eles, saindo do transporte estacionado. – Este foi o primeiro incidente? Ambrose piscou para se livrar da imagem da cara do dragão, gravada em sua memória como o contorno de uma luz brilhante. O medo bateu de uma só vez: estou ficando louco. Respirou fundo e apertou as costelas com cautela. Nenhuma dor. – Vamos logo. Saiu do veículo passando para um recinto escuro, sem janelas, com um cheiro úmido e subterrâneo. – Estamos dentro da própria cúpula – Len explicou. – Parte da velha rede de laboratórios de pesquisa e desenvolvimento sob o prédio da UniCorp. Ele tocou um ponto da parede cinzenta e uma porta oculta se abriu.


Ambrose seguiu seu irmão e entrou num elevador tão luxuoso quanto o do saguão. Os guardas rodearam os dois. Ambrose sentiu um disruptor pressionar suas costas. – Desculpe – murmurou um dos Associados. Foi a primeira vez que Ambrose ouviu algum deles falar. Enquanto o elevador subia sem ruído, Ambrose tentou um breve Fluxo de Processo. Sua habilidade rateou, girando em falso e deixando-o tonto. Pensou ter sentido uma progressão indistinta de eventos, como palavras esquecidas que estivessem na ponta da língua. Entreviu um único ponto final: a probabilidade de encontrar Mistletoe aumentava no Unison. Não fazia sentido. Ela nem tinha uma ID de login. Sua habilidade ainda estava fora do ar. – Tricentésimo septuagésimo quinto andar – Len avisou. Os seguranças ajustaram sua formação muito sutilmente. Dois ou três limparam as gargantas. Ambrose teve uma súbita lembrança de um wiki de história americana que havia estudado anos atrás: soldados magros e de faces sombrias, não muito mais velhos que Len, apinhados a bordo de um barco primitivo que não era mais que uma caixa de aço, esperando uma rampa baixar para desembarcarem nas praias da França. E então recordou a imagem seguinte na série, a pilha compacta de corpos imóveis que momentos antes haviam sido jovens. – Espera – disse a Len, mas era tarde. As portas se abriram para o laboratório mal iluminado e vazio. Ambrose soltou a respiração. Len olhouo, preocupado, enquanto os seguranças entraram no recinto e fizeram uma varredura eficiente, disruptores estendidos. Por fim um dos Associados sinalizou, com um rápido aceno, para avançarem. – A barra está limpa – disse Len, e saiu. Ambrose o seguiu. A porta se fechou e desapareceu na parede. Estavam atrás da plataforma do tubo de escaneamento. Ambrose subiu os degraus e deslizou a mão pelo aço suave e frio do tubo fechado, o instrumento que mudara para


sempre sua vida.

Carpe somnium, Ambrose. Voltar para a UniCorp o fazia relembrar tudo o que tinha deixado para trás. E se tivesse escolhido ignorar a transmissão de Dita? – Me dá uma mão aqui, Ambrose – disse Len, acenando para que ele descesse da plataforma. Mas Ambrose demorou-se ao lado do tubo de escaneamento, a máquina que era tão pai dele quanto Martin Truax. Lembrou-se das reuniões de produto em Greymatter. No que dizia respeito à companhia e à rede social, Martin estava a par de tudo, até o mais ínfimo detalhe. Não fazia sentido que Len e Ambrose tivessem chegado até aqui sem serem detectados. Ambrose olhou para os tubos de escaneamento enfileirados nas sombras do laboratório escuro. Algo vago e desagradável o incomodava. – Len? Len estava ocupado externalizando uma fileira colorida de gráficos, scans cerebrais e documentos de Fluxo de Processo. – Quê? – Tem algo errado. – Me dá um minuto. – Não – disse Ambrose, descendo da plataforma e atravessando um tronco encefálico que girava. – Sai de dentro da sua cabeça. Estou tentando trabalhar. – Isso está fácil demais. Len o empurrou para o lado. Ele também está perturbado, Ambrose pensou. Então teve a sensação irreal de que o tempo desacelerava, a mesma que tivera na rua de Dita, pouco antes da casa dela explodir. Lembrou-se das folhas caindo devagar, a última tocando o chão justo antes de... – Corre! Temo que não possa deixar você fazer isso, uma voz sussurrou em seu ouvido.


– Ele está aqui! – berrou Ambrose. Len apertou os olhos. – Entra no tubo de escaneamento. – Não estou maluco, Len. É o papai! Len fez sinal para dois seguranças. – Coloquem ele no tubo. Em vez disso, um dos Associados jogou um disruptor extra para Len e apontou para a porta do laboratório, que se abria. Len lutou para encaixar no braço a arma grande demais. Seu punho tremia. Bem-vindo ao lar, Ambrose, sussurrou a voz. Associados de segurança da UniCorp, estes verdadeiros, invadiram a sala pela porta aberta, um batalhão de botas pesadas e disruptores reluzentes. A equipe do Chá Esquilo Vermelho buscou abrigo, agachando-se por trás dos tubos menores em frente da plataforma. Len puxou Ambrose para baixo. – Você me trouxe de volta para ele – Ambrose disse, sentindo-se um tolo que aprendeu tarde demais a não confiar em ninguém. Len apertou a mão dolorida do irmão. – Não vou deixar ele te pegar, irmãozinho. A voz de Martin ressoou. – Aos Associados de Segurança que no momento protegem meus filhos: o primeiro que entregá-los a meus homens ficará rico. Os demais morrerão. – Entra ali. – Len apontou aflito para um tubo no centro da fileira. – É uma saída, Ambrose. Confia em mim. Ambrose hesitou. Por ter confiado ele estava preso aqui, na sala onde tudo começara, à mercê do homem que o criou. – Versão 3.0, o que quer que seja, faça o impossível para que ele não consiga levar adiante a atualização. – Por fim Len conseguiu ajustar o disruptor. Então fez um gesto amplo com a mão baixa, sinalizando para os homens escondidos em volta dele. Cada um respondeu com um breve aceno de cabeça.


– Agora! – Len comandou enquanto ele e os homens viravam as palmas para cima. Um escudo de luz ultravioleta surgiu como uma parede de luz branca, do chão ao teto. Ambrose apertou os olhos com o brilho quase intolerável. O outro lado, ele bem sabia, era ofuscante como um sol. O crepitar dos disparos dos disruptores ecoou pelo laboratório. O segurança ao lado dele gritou, seu corpo sacudindo em convulsões no ar, suspenso pelo pulso que o envolveu. Seus braços se dobraram para trás num ângulo impossível antes que ele fosse atirado ao chão. O escudo de ultravioleta servia como uma distração, mas era tão penetrável quanto fumaça. Com um empurrão de despedida dado por Len, Ambrose rastejou com dificuldade até o tubo de saída. A equipe Esquilo Vermelho devolveu fogo, seus disruptores enchendo a sala com sons de tunc tunc tunc totalmente automáticos. A voz de seu pai era audível por sobre a cacofonia. – Deixem vivo o mais jovem. – Ao mesmo tempo, ela sussurrava em seu ouvido, Você não sofrerá nenhum mal, Ambrose. Você é parte de mim. Parte do Unison. Quando Ambrose chegou ao tubo de saída, olhou para Len, que atirava, alucinado, através do escudo externalizado, ignorando os pulsos inimigos que passavam logo acima de sua cabeça. Ambrose se agachou e levantou a tampa do tubo. Um Associado da UniCorp atravessou a parede de luz e saltou sobre o guarda Esquilo Vermelho próximo a Ambrose. Os dois caíram atracados. Uma longa faca brilhou. Ambrose enfiou-se como pôde dentro do tubo, usando a tampa para aparar os disparos da UniCorp. Enquanto a fechava, viu um pulso verde acertar o ombro de Len e fazê-lo rodopiar. Um clarão laranja atingiulhe o pescoço, e apertou-o como uma forca luminosa. Len levou as mãos à garganta e caiu de joelhos. Enquanto o tempo se desacelerava de novo, Ambrose pensou na bola de gude que havia jogado da borda da GenFarm, para impressionar seu irmão tantos anos antes; lembrou dela girando por um milissegundo interminável no ar entre os atmoedifícios, antes de cair através


das nuvens e sumir de vista. Daria qualquer coisa para voltar àquele dia, para correr pelos campos rindo com Len e espantando o gado clonado e as cabras sintéticas. Quando a tampa se fechou, os sons da batalha ficaram distantes. Abaixo dele, o tubo de metal prolongava-se, descendo em ângulo como um pequeno túnel. Seu irmão tinha razão: era a única saída. Como sempre, Len estava um passo à frente.


Era noite na Cidade Litorânea do Leste. Mistletoe estava à beira de uma rua de quatro pistas. Os carros articulados passavam na procissão perfeita e interminável, que ela conhecia de todas as tardes que passara olhando pelas aberturas de ventilação. O murmúrio coletivo não era muito mais alto que o ruído distante que se filtrava para baixo da cúpula. Ficou levemente vesga, de forma que o farol único de cada carro se fundia com o seguinte e as pistas viravam linhas contínuas de luz branca. Em volta dela, atmoedifícios se erguiam entre os rios de tráfego como dedos maciços saindo de uma luva. Ela desejou ter alguém ali para compartilhar a visão, mas até Nelson ficara para trás. Sentia-se muito só, e não da forma que sempre desejara. Ansiava poder segurar a mão macia de Ambrose. Ela o imaginava de pé a seu lado, aconchegando-a junto a si em meio àquele ofuscante jogo de luzes. Do outro lado da rua, a entrada para a câmara estanque emergia do chão, um elegante cilindro de acrílico com teto negro em domo, uma luz verde no alto. Imaginou que ela informava às pessoas que a câmara estava funcionando. Mas que pessoas? Olhou de um lado para outro. Carros sem fim. Nenhum pedestre. Seguiu pela calçada deserta até chegar à primeira fachada de loja, que consistia em inúmeras caixas prateadas saindo de um painel levemente fosforescente na parede. Cada caixa estava identificada com um U bem


visível. Um letreiro flutuava sobre as caixas: DELICIE-SE COM BETTERFOOD! Comida? Só de ler aquilo ela sentiu uma pontada de fome. Tentou se lembrar quanto tempo fazia que tinha comido. Que tipo de comida haveria nas caixas? Olhou por cima, por baixo e entre elas, mas não viu como poderia pedir comida. E, de qualquer modo, ela não tinha dinheiro. Não tinha nem uma ID de código fixo. Será que algum alarme ia disparar caso abrisse uma caixa? A fome atroz a fez ir em frente. Ergueu a mão para a caixa mais próxima e imobilizou-se. Havia alguém atrás dela. – Ei! Garota! Mistletoe virou-se. Um táxi amarelo pairava meio por cima da calçada. Era mais quadrado que os carros em forma de gota que a maioria das pessoas daqui dirigia. Havia alguém no assento do motorista, oculto nas sombras. Ela apertou o punho. O disruptor deslizou de sua manga. – Que foi? A voz dela soou alta e dura, destacando-se em meio ao suave rumor do trânsito. Ela percebeu que ainda tinha os óculos laranja pendurados no pescoço e sentiu-se totalmente deslocada. – Precisa de uma carona? A garota se adiantou, cautelosa, disruptor em riste. O motorista tinha cabelo preto fino penteado de lado e piscava através de óculos grossos equilibrados na ponta do nariz. Um par de holodados embaçados pendia do espelho retrovisor. – Está bem longe de casa, guria – ele sorriu, mostrando uma fileira de dentes dourados. Ela pousou o polegar no painel lateral da arma. A ponta brilhou. Seu braço formigou com a vibração. O taxista mostrou as mãos vazias. As mangas de sua camisa azul-neon estavam decoradas com plantas tropicais. – É assim que você trata um cara que te oferece uma carona? – É assim que eu trato todo mundo.


Ele empurrou os óculos mais para cima do nariz, e depois coçou o canto da boca. – Beleza. Então boa sorte. Mistletoe pensou rápido. Essa podia ser sua única chance. – Espera aí. – Tirou o polegar do painel e desarmou a arma. Ele inclinou a cabeça com educação. – Só preciso de uma informação. Não tenho grana pra pagar uma corrida. – Pra onde você está querendo ir? – Para a Universidade Litorânea do Leste. Ele acenou devagar com a cabeça. – É bem longe. – Quanto tempo daqui? – A pé? Dois dias. Os braços e pernas de Mistletoe já estavam doloridos depois da escalada pelo poço de acesso. E ela não podia desperdiçar dois dias inteiros percorrendo as ruas. Ela abriu o punho e o disruptor sumiu de vista. – Tenho isto – disse, levando a mão à nuca para abrir o fecho da gargantilha. Segurou-o à vista do taxista. As três engrenagens prateadas giraram no ar. Ela pensou em Sliv, parado no meio do lixo nojento, junto à porta da escada. – Acho que dá pra pagar a corrida – respondeu o taxista, com um sorriso dourado. Ela hesitou. – Se tentar alguma coisa, eu mato você. Sem pensar duas vezes. – Entendido. A porta traseira se abriu e Mistletoe acomodou-se no banco, estofado com pele de leopardo. Havia um cheiro doce demais, de purificador de ar barato. Ela fechou a porta. O motorista se virou e estendeu o braço. – Vai uma pele de panda aí? Ele lhe ofereceu algo listrado de branco e preto, cheirando a cebola.


Mistletoe afundou-se no assento. Estava faminta, mas a pele de panda embrulhou seu estômago. – Não. Podemos ir? O taxista pôs a palma da mão em um dispositivo no painel, e os propulsores pegaram com muito mais potência do que Mistletoe teria esperado num carro tão velho. O táxi ergueu-se, e partiu por cima do tráfego de nível de rua. O motorista enfiou a coisa malcheirosa na boca e mascou-a produzindo ruídos altos e satisfeitos. Teria sido um tremendo erro aceitar a carona? Então a garota olhou por uma janelinha acima de sua cabeça e se esqueceu de tudo a não ser o mundo novo lá fora. O céu estava tão negro quanto o poço de acesso. Na Pequena Saigon era sempre dia, um dia de luz fraca e doentia, dependendo da qualidade das luzes da cúpula. Ela nunca vivera num mundo de fato regido pelas leis da aurora e do pôr do sol. O táxi circundou veloz um atmoedifício. Por um momento, um fluxo de trânsito foi substituído por outro, antes de o mundo desaparecer por completo. – Aonde você... – Mistletoe disse, mas as luzes da cidade voltaram quando eles saíram de debaixo de um curto viaduto. Ela foi jogada contra a porta quando o veículo deu uma guinada brusca para se juntar à fila indiana de carros que subiam pela lateral de uma grande redoma translúcida, cujo interior era iluminado por uma luz amarela suave. – Atalho – explicou o taxista. Ao chegarem no topo, Mistletoe ajoelhou-se no banco para olhar pela janela lateral. Lá embaixo, sob camadas de acrílico limpíssimo, viu uma vasta colmeia de camas brancas. Em cada cama, uma pessoa dormia de mãos postas. Guardas da UniCorp patrulhavam os corredores. Pequenos drones de I.A. percorriam os níveis superiores. – Que lugar é esse? – O Projetódromo Nove. Você paga pelo privilégio de ocupar uma dessas caminhas confortáveis por quanto tempo quiser ficar no Unison.


Com isso você fica protegido, e ninguém vem te encher se você quiser ficar conectado por semanas. – Então toda essa gente está logada. – Curtindo BetterLife neste exato momento. Pareciam estar numa paz tremenda. Tão diferentes de Ambrose, preso dentro do tronco de fios com todos os dados externalizados girando em volta. Engraçado, ela pensou. Estou aqui em cima no mundo dele, e ele lá embaixo no meu. Desceram pelo outro lado da redoma e seguiram por algumas quadras o fluxo de trânsito elevado, antes de mergulharem para o nível da rua. Aqui, alguns pedestres conversavam sob um letreiro em forma de pirâmide, que proclamava DRINQUES ESPECIAIS COM ID DE ESTUDANTE. O taxista guinou à esquerda e entrou num beco estreito. Emergiram num campo cercado de atmoedifícios e iluminado por milhões de luzes incandescentes suspensas no ar como estrelinhas. O táxi parou. Estavam rodeados de verde. Cercas vivas luxuriantes e pinheiros enormes, que fariam os arbustos anêmicos da subcúpula sentirem vergonha. Aqui e ali, um telhado de pedra aparecia acima da folhagem. – Chegamos, guria. Ela olhou pelas janelas. – Onde? – ULL. – Parece que ainda não foi construída. Ele deu de ombros. – Não fui eu que projetei o lugar, tá? Ele apoiou a mão aberta sobre o divisor de assentos e agitou os dedos. Ela deixou a gargantilha cair na palma da mão do homem, que a pendurou no retrovisor. A porta se abriu, e ela pisou na grama macia. O táxi sumiu na noite. Ela se esticou e tocou uma das luzes que pendia baixa, uma faísca brilhante no céu noturno, não maior do que a unha de seu polegar. Uma débil badalada


soou. Lá no alto, outra respondeu. Ela não conseguia parar de olhar para cima. Sem cúpula! Seu coração batia forte. O estômago torceu-se de fome. Será que alguma dessas plantas era comestível? Ela andou pelo terreno, na esperança de encontrar uma trilha. Quando a vegetação se adensou em torno dela e as raízes retorcidas começaram a machucar seus pés, desistiu de andar e sentou-se embaixo de uma árvore, apoiando as costas no tronco áspero. Balançou-se para a frente e para trás, ouvindo o suave badalar das luzes. Logo estava deitada, olhos fechados, respiração calma. Sentia-se exausta. O estranho novo mundo de luz e velocidade recuou para um ponto distante e desapareceu. Sozinha num bosque tranquilo em meio à cidade mais agitada do mundo, Mistletoe adormeceu. Algum tempo depois, um dedo cutucou seu ombro. Acorda. O toque se tornou mais insistente. Acorda. Ela ergueu-se de repente, encostando-se à árvore, e moveu o disruptor num amplo arco lateral enquanto apertava os olhos para espantar o sono. A luz brilhante que penetrava pela copa das árvores formava manchas sobre a moça assustada que a acordara. Mais velha que Mistletoe, vestia uma saia longa que a recordou do terno de Ambrose, pela quase transparência e pelo modo como agitou-se numa brisa imperceptível. Do ombro pendia uma bolsa de contas, de aparência mais sólida que a saia. Mantinha as mãos levantadas bem alto. – O que você quer? – Mistletoe perguntou com voz rouca. – Eu queria saber se você estava bem. Só isso. Juro pela minha ID! Mistletoe se deu conta do aspecto que devia ter, com as roupas sujas e a trança azul ensebada. Aprumou-se e limpou a garganta. – Estou bem. – Desarmou de forma ostensiva o disruptor e o guardou. – Desculpa. A moça baixou os braços e brincou com uma mecha do longo cabelo ruivo, nervosa. – Então, você se perdeu de alguma visita guiada ou...? – Ela examinou Mistletoe dos pés à cabeça. – Tenho algo para comer, se estiver com fome.


Mistletoe teve vontade de gritar EU QUERO!,mas apenas acenou de leve com a cabeça. A moça abriu a bolsa e retirou uma barrinha enrolada em papel alumínio. – Não é BetterFood – desculpou-se. – É feita com leite de verdade, então pode ter um sabor meio estranho. O estômago de Mistletoe rugiu de fome. Na Pequena Saigon, chocolate ao leite de verdade só existia no mercado negro, uma delícia para comer uma vez no ano. Agarrou a barra e arrancou sua embalagem, mal percebendo o pequeno raio emitido por baixo de um arbusto próximo, que vaporizou o alumínio brilhante antes que pudesse sujar o chão. O chocolate tinha um gosto forte, doce e delicioso, com apenas uma leve ponta de amargo. Comeu de olhos fechados. Maravilhoso. – Também tenho chá, se estiver com sede. – A garota ofereceu-lhe uma pílula vermelha. Mistletoe limpou a boca. O efeito instantâneo do açúcar de verdade fez sua cabeça girar. Olhou a pílula. – Não, obrigada. Estou procurando a professora Deirdre O’Hanlon. – Ah, eu não sabia que você era aluna daqui. Já checou o diretório? Mistletoe encolheu os ombros. A moça ficou confusa. – Tudo bem. – Ela virou a palma da mão. Uma esfera azul pálida surgiu no ar entre elas, orbitada por um anel fino rotulado DIRETÓRIO ULL. Mistletoe piscou e tentou não ficar fascinada, embora nunca tivesse visto a informação externalizar-se assim. Lembrou-se de Ambrose tentando em vão conseguir sinal na subcúpula. Aqui em cima, todo mundo devia virar a mão daquele jeito umas cem vezes por dia. – Professora Deirdre O’Hanlon – disse a moça. Cutucou a esfera, e ela mudou de forma, tornando-se a imagem de uma mulher sorridente mais ou menos da idade de tia Dita. – Freelancing Aplicado de Unison e Análise Aplicada de Mercado. É ela? – Hum – disse Mistletoe. – Ela tem uma sala real aqui no campus. Com sorte, hoje tem horário


de atendimento. – A garota fez desaparecer o diretório e esticou a mão. – Se você me autorizar, posso transferir. Mistletoe cruzou os braços. – Transferir o quê? – As instruções sobre como chegar na sala dela, ora. – Só me diz como eu chego lá. Quinze minutos depois, Mistletoe estava junto a um grande monumento cinzento de pedra. Era um cubo simples, sem enfeites, um pouco mais alto que as árvores e da largura do casebre dela na subcúpula. Não tinha portas nem janelas. – Oi? – chamou. Na frente dela, à altura de uma maçaneta, notou um escaner de mão embutido na pedra. Colocou a mão nele. Nada aconteceu; precisaria de uma ID com código fixo para prosseguir. Pensou por um instante, e então recuou até misturar-se à multidão que percorria o caminho que corria ao longo do cubo. Ela ficou indo e vindo, sem dar atenção aos olhares curiosos dos alunos em holomoda. Seriam todos tão ricos como Ambrose? Quando um rapaz com longos dreadlocks atados num grosso rabo de cavalo abriu o cubo com a palma da mão, ela correu e entrou atrás dele. Deu dois passos, atravessou um arco estreito de pedra e então teve um choque, ao se ver no saguão de um enorme prédio de sala de aula. A floresta e os atmoedifícios circundantes haviam desaparecido. Passarelas reluzentes se cruzavam acima dela. No meio do recinto havia uma grande caixa de vidro, tomada por poltronas e camas cheias de alunos imóveis, as mãos juntas. Outros alunos percorriam o saguão e se juntavam em volta de fileiras de caixas prateadas, como as que ela tinha visto na noite anterior. Mistletoe cruzou o saguão até chegar a uma longa fileira de portas azuis: as salas dos professores, segundo a garota no bosque. Foi de porta em porta, lendo os nomes nas placas retangulares, até encontrar o de DEIRDRE O’HANLON. Ela bateu na porta e uma voz abafada mandou entrar. Claro que, em


vez de maçaneta, havia outro leitor de mão. Ela deu um suspiro de irritação e bateu de novo. Sua mão doeu. Portas reforçadas com aço plástico não foram projetadas para tratar bem os nós dos dedos. Logo depois, a porta deslizou para o lado, abrindo-se. Ela entrou. A sala era pequena e continha apenas duas poltronas vermelhas. Uma delas estava ocupada por uma mulher magra vestindo holorroupas vintage: jeans boca de sino e uma blusa justa, de mangas longas e estampa floral. O ar estava repleto de diagramas externalizados, com detalhes de plantas esquemáticas cheias de linhas se cruzando e pequenas legendas brancas. Um dos diagramas saía da palma da mão dela. A mulher deslizou um bloco de texto de um lado da imagem a outro, depois o pegou da palma da mão e lhe deu um pequeno impulso para que se juntasse a vários outros esquemas reunidos contra a parede. Ela se virou e deu um sorriso neutro para Mistletoe. – Perdão, mas não me lembro de tê-la visto em minhas aulas aqui. Você é aluna pelo Unison? – Você é Deirdre O’Hanlon? Os olhos da professora varreram o rosto e as roupas de Mistletoe. Ela ainda sorria. – Se quer solicitar uma bolsa de estudos, deve projetar-se para o centro administrativo. Mistletoe tirou do bolso o banco de dados meio queimado e o estendeu sem dizer nada. Deirdre riu, encantada. – Incrível. Não vejo um desses há anos. Onde o conseguiu? – Presta atenção. Jiri morreu. Acho que tia Dita também. Não quero... – Os olhos de Mistletoe se encheram de lágrimas e ela lutou contra a vontade de chorar. – Não quero que mais ninguém morra por causa do que eu sou. Deirdre permaneceu imóvel, em choque, a boca aberta. Os diagramas externalizados desapareceram. As duas ficaram se olhando na sala vazia. – E quem é você? – sussurrou Deirdre, pálida e hesitante, como alguém


que sabia muito bem a resposta, mas que ainda assim não podia crer. – Quinze anos atrás, você, Jiri, Dita e sei lá mais quem, me tiraram de um laboratório da UniCorp. Ainda sonho com isso. Houve tiros. – Ma buh... – Deirdre engoliu em seco e indicou a cadeira. – Por favor, sente-se. – Prefiro ficar de pé. Mistletoe sentiu uma onda de hostilidade contra a mulher, pelo simples fato de ela estar viva e confortável, enquanto outras pessoas lutavam e morriam debaixo da cúpula. – Você tem que entender – disse Deirdre, com cautela. – Faz tanto tempo que fiz parte daquele mundo. São nomes que não ouço há muito tempo. Jiri... Ela sacudiu a cabeça como se estivesse espantada com as duas sílabas do nome. – Ele morreu bem na minha frente – disse Mistletoe, fria. – Então ainda estamos pagando com sangue. – Deirdre olhou para a parede atrás de Mistletoe. – Um de nós nem sequer chegou a sair vivo do laboratório. – “P”. Os olhos de Deirdre voltaram a se fixar em Mistletoe. – Sim. Pyotr era meu marido. Como você sabia? – Pelas anotações de Jiri. – Ele guardou anotações? Com nomes? – Só as iniciais. Eu destruí tudo. – A voz de Mistletoe suavizou-se. – Sinto muito pelo seu marido. Os olhos de Deirdre voltaram a se fixar na parede. – Há quinze anos, eu era tão idealista. Todos éramos, sobretudo Pyotr. Ele era um sonhador. Dita sempre dizia que ele vivia parte neste mundo e parte no mundo que ele sonhava, aquele onde a cúpula nunca existiu, onde o Unison era aberto para todos. O resto de nós era um pouco mais pragmático. – Ela deu uma risada. – Mas o Pyotr...


Mistletoe viu o rosto de Deirdre contrair-se e relaxar, enquanto ela relembrava algum pequeno detalhe há muito enterrado. Um leve sorriso formou-se em seus lábios. – O que ele dizia de você, Anna... – Agora é Mistletoe. – Mistletoe... Bonito nome. Pyotr dizia que deveríamos todos estar dispostos a morrer para garantir a sua liberdade. Foi exatamente o que ele fez. – Não pedi que ele... Não pedi nada disso. – Mas aqui está você. – Agora foi Deirdre quem endureceu o tom de voz. – Não pude nem enterrá-lo, sabe. Nós fugimos, e Jiri levava você nos braços. Pyotr tinha certeza de que o outro alvo, o menino, estava em algum lugar lá dentro. Os Associados vieram atrás de nós. Tínhamos perdido nossa única vantagem, a surpresa. Quem sabe se um de nós tivesse ido com ele... – ela apertava os joelhos com força, o sangue fugindo de seus dedos longos e elegantes. – Mas eu corri. Não queria morrer. Ela virou a palma da mão. A imagem do rosto de um homem surgiu no ar. Tinha longos cabelos negros que pendiam em frente aos olhos, um nariz pontudo e lábios pequenos e sérios franzidos em contemplação profunda. – É ele – disse Deirdre, empurrando a imagem para a frente. – Meu marido. Mistletoe imaginou aquele homem junto com Jiri, Deirdre e tia Dita, todos sentados em um lugar apertado, discutindo, rindo, escutando música. Era estranho pensar em Jiri como um jovem com amigos. – Vocês eram o que, algum tipo de gangue? Deirdre desfez a imagem. – Estávamos interessados em bombas. Éramos jovens o bastante para achar que, se abríssemos um buraco na cúpula, poderíamos começar uma revolução. – Ela ergueu os braços, imitando empolgação. – Então Magnus e Ivor nos procuraram com uma informação secreta sobre a UniCorp, o grande símbolo de poder no lado de cima. Duas cobaias. Claro que eles não


podiam nos contar o porquê de vocês terem sido feitos, só que eram importantes para Martin Truax. E para nós, naquela época, isso bastava. – O menino está livre agora – disse Mistletoe. – Seu nome é Ambrose. Pensou em acrescentar, portanto seu marido não morreu em vão, mas achou que isso soaria barato e não seria nenhum consolo. Deirdre assentiu. Então, escolhendo as palavras, disse: – Acho... acho que ele veio me ver. Mistletoe precisou controlar-se para não agarrar Deirdre pelos ombros e sacudi-la. – Ele veio aqui? – Não. – Ela começou a torcer os dedos. – Não deveria contar a você, nunca revelei a ninguém. No Unison, costumo alternar entre várias IDs diferentes, mas tenho uma específica para negócios. Uma jovem, adolescente como você. Essa gente da indústria de aplicativos baixa a guarda quando acha que está lidando com alguém jovem e inocente. E é... bom ser uma menina de novo, mesmo que por pouco tempo. Ela fez uma pausa antes de prosseguir. – Bom, um jogador com quem tenho contato me trouxe um novo usuário, Adam Trevor, com umas perguntas bem profundas. Ele gosta de design de móveis e de cantar música pop. – Não é ele. O nome dele é Ambrose e o único interesse que tem é o emprego idiota dele. Deirdre ergueu a mão. – É aí que quero chegar: estava óbvio que ele não era quem dizia ser. Login falso, Perfil falso, exatamente como o meu. E estava atrás de informações sobre o Unison 3.0. – Ele disse para onde ia? – Para lugar nenhum. Ele surtou. Sua Linha de Pensamento estava sofrendo, como se tivesse sido sobrecarregada com um milhão de novos Amigos de uma só vez. E a expressão dele... Era como se estivesse preso num pesadelo. Isso foi suficiente para me convencer a ficar desconectada


por um tempo. Deixe a atualização se resolver sozinha, deixe o Martin fazer seja lá o que ele vai fazer. Voltarei quando tudo se estabilizar. – Mas Ambrose precisa de ajuda. – E o que você espera que eu faça? Sou professora agora. Tenho uma vida aqui do lado de cima. – Então me ajude a logar. – Você quer ajudar seu amigo? A melhor coisa que pode fazer é sumir. Saia da cidade e fique fora do Unison. – Se eu fugir e ele morrer, então serei... – ela se interrompeu de repente. – Termine a frase. – Deixa pra lá. A voz de Deirdre estava gélida. – Termine o que você ia dizer. Mistletoe colocou as mãos nos quadris. – Se eu fugir e ele morrer, então serei igual a você, falando das coisas que devia ter feito quando tive uma chance. A boca de Deirdre tremeu. Ela assentiu de maneira quase imperceptível, depois se virou e deslizou a palma da mão na parede a seu lado. Um painel retangular deslizou revelando vários recipientes alaranjados. Deirdre escolheu um e destampou-o. Tirou uma cápsula de gelatina transparente, do tamanho de seu polegar, e jogou-a para Mistletoe. – Que é isso? O interior da cápsula fervilhava com formas de vida, bichinhos pretos e prateados que se moviam como versões minúsculas da câmera-inseto de Sliv. – É o protótipo de um artefato de login de código não fixo que estou ajudando a desenvolver. Mistletoe examinou a diminuta colônia de bichinhos. – Que nojo! – É nossa primeira tentativa, de modo que é um login bem básico, de


uso único. Você poderá se mover pelo Unison, mas não terá um Perfil nem uma Linha de Pensamento. A rede não responderá à sua presença. Não vai poder fazer Amigos. Aperte as palmas das mãos contra as têmporas quando estiver pronta para se transportar de volta. É assim que deve funcionar, em teoria. – Você quer dizer que não sabe? – A cápsula quase caiu de sua mão. – Nunca foi testada. – E você vai enterrar essa coisa na minha mão? – Não, nada disso – Deirdre a tranquilizou. – É só você engolir.


Ambrose gritou durante todo o trajeto do conduto, que descia pelas paredes do edifício da UniCorp fazendo curvas imprevisíveis. Ele tentava manter a boca fechada, mas as mudanças bruscas de direção, somadas à velocidade perigosa através de completa escuridão, pareciam arrancar de seus pulmões gritos aterrorizados. Ainda assim, apesar da intensidade nauseante da viagem, ele manteve um pensamento bem claro: Len conseguira organizar uma força de segurança clandestina e minar os planos de seu próprio pai, mantendo o tempo todo sua fachada de Burocrata Perfeito. Ele havia arriscado – e perdido – tudo por Ambrose. O conduto deu lugar a espaço aberto. Ambrose parou de deslizar e começou a cair. Seu berro pairou no ar ao redor, e então sumiu conduto acima. O rapaz soltou um hrrrmmffff brusco ao aterrissar sentado em algo macio, mas não muito. Espuma viscoelástica. Ele afundou entre suas dobras à medida que elas formavam um envoltório macio a sua volta. Então a espuma se abriu, depositando-o sobre uma pilha de cobertas e almofadas no piso de um cubículo, iluminado por uma única lâmpada. Ambrose se pôs de pé e respirou fundo algumas vezes, para acalmar o coração. Calculou velocidade e duração da queda e a altura aproximada do edifício e determinou que


estava pouco abaixo do nível do solo, no mesmo nível da entrada privativa de Len. Diante de si viu uma abertura estreita na parede. Um trajeto curto, por sorte desta vez em um túnel horizontal, e ele se viu em um espaço apertado, de paredes nuas e sem acabamento, contendo um carro preto da segurança da UniCorp. Ambrose demorou-se um pouco ao passar a mão pelo capô liso, que se curvava para trás até juntar-se ao chassi, formando uma única ponta reluzente. Abriu a porta deslizante. – Obrigado, irmão mais velho. Assim que se sentou, o teto da garagem improvisada abriu-se e expôs um amanhecer límpido e rosado sobre a Cidade Litorânea do Leste. A porta do carro se fechou. O console iluminou-se. Seu irmão tinha programado o piloto automático para uma rota pré-planejada. Os propulsores iônicos de hélice tripla entraram em ação, e o carro projetou-se para cima, para fora do estacionamento subterrâneo, sincronizando perfeitamente o salto para inserir-se no fluxo mais baixo de trânsito. Ambrose deixou-se escorregar no assento, acomodando-se enquanto o carro se juntava ao primeiro estágio do Desfile Corpóreo. Seria a oportunidade perfeita para dormir, se seu corpo fosse capaz disso. Fechou os olhos e massageou as têmporas doloridas. Se conseguisse esvaziar a mente, talvez pudesse se desligar por alguns minutos. Talvez pudesse até aprender a simular os efeitos do sono, fazer uma espécie de calibragem para manter a sanidade. Suas mãos se paralisaram quando ele tocou os fios. Uma dúzia deles, talvez, saindo da pele do rosto e serpenteando até seu colo. Ele se endireitou num repente. – Reflexo – arquejou. O vidro da janela se transformou em um espelho. Ele se olhou, pálido e abatido, as mãos segurando as faces. Não havia fio algum. Seu rosto era feito de carne humana normal. O carro saltou para um nível superior de fluxo de tráfego. Ele se dirigia


para o norte, cruzando a Expansão da Nova Inglaterra a grande velocidade. Ambrose sentou-se bem reto, respirando de forma profunda e pausada, tentando manter sob controle a mente rebelde. Assustava-o a ideia de que o tempo estava se esgotando; se não encontrasse um modo de se calibrar, o procedimento o transformaria em um lunático paranoico. Seria pior que morrer, porque em algum raro momento de lucidez poderia lembrar-se da pessoa sã que havia sido. Lembranças fugazes de uma trança azul, uma aventura na subcúpula, uma amiga em outra vida. Ele atenuou o espelho e olhou pela janela para se distrair, a paisagem uma série de imagens velozes, banhadas na radiante luz da manhã. O topo cintilante dos domos semissubmersos de apartamentos de luxo no Porto de Providence. O imenso atmoedifício verde da sede do Conglomerado Fenway Sports, em Boston Heights. O fluxo de tráfego incrivelmente veloz, embora esparso, do Corredor do Maine. Por fim, ele viajava sozinho perto da fronteira com o Canadá, deixando para trás a triste periferia da Cidade Litorânea do Leste, antigos armazéns de concreto que se amontoavam à sombra de robustos edifícios residenciais de dez andares. O carro reduziu a velocidade ao passar diante de um denso pinheiral, e entrou de repente por um caminho orlado de árvores. Os ramos espinhosos arranharam as janelas à medida que o caminho se estreitava, até desaparecer. O carro deteve-se em uma pequena clareira, onde emitiu um sinal e conectou-se a um receptor fora de vista. Um buraco abriu-se na terra, o veículo pairou sobre ele e depois desceu suavemente em seu interior. Ambrose saiu e se espreguiçou. Por cima dele, o solo se fechou. Uma luz mortiça acendeu-se. Estava em um aposento subterrâneo feito com terra batida. Raízes retorcidas projetavam-se das paredes. Uma poltrona verde já bem gasta jazia em um canto.


Era seu próprio projetódromo pessoal, oculto ali nas profundezas da floresta, mas ainda próximo o suficiente do Corredor do Maine para pegar o sinal. Len compreendera que Martin e seus recursos ilimitados tinham total controle sobre o mundo material. Ambrose podia ter a sorte de escapar uma vez atrás da outra, mas seria sempre um rato em um labirinto. No Unison, ele ao menos estaria em uma posição de – como havia dito Len – fazer o impossível para evitar a atualização. Ele se instalou em sua poltrona. Com os olhos fechados, começou a pensar em Mistletoe, onde estaria, se estaria bem. Relembrou como a garota o empurrara contra a lateral do elevador da subcúpula por insultar o lugar onde ela vivia. Inspirou fundo. O odor úmido e terroso do aposento lembrou-lhe o perfume da trança da garota. Tão penetrante quando seu rosto se apertara de encontro a ela, enquanto Ambrose viajava na garupa da perigosa scooter! Se sua mente ia se degenerar em um amontoado desconexo de lembranças e alucinações, ele torcia para que algumas delas fossem de Mistletoe. Ele bateu palmas uma vez e se projetou. A garganta coçou, mas ele não pôde tossir. Sentiu o travo forte e amargo do ácido de bateria. A luz mortiça se apagou e ele sentiu-se elevar no ar. A euforia o percorreu; seus problemas se tornaram distantes e sem sentido. Ele estava em casa. Emergiu da caverna nos limites irregulares da imagem em bitmap da Cidade Litorânea do Leste no Unison. Raízes se contorciam e ressoavam sob seus pés. Um pomar de maçãs surgiu à volta dele. Algumas das árvores se curvaram e redesenharam-se como cadeiras e mesas de aparência peculiar. Entalhes elaborados emergiram na madeira. Ele passou a mão pelas espirais entalhadas nos lados de um banco muito estranho em forma de T. Numa das pontas da peça do alto havia uma portinhola com maçaneta na forma de uma coruja empoleirada. Seu Feed dizia:


Caixa de correio de casa de subúrbio, meados do século XX. Então não era um banco. Era uma daquelas antigas caixas de entrada de correspondência em papel. Ele ficou observando enquanto ela adquiria uma cobertura laqueada, o brilho se espalhando de cima para baixo. Era linda. Sempre tinha sido apaixonado por design de móveis, desde pequeno, e nunca pensou que seu amor pudesse aumentar. Era parte indissociável dele, como as mãos e os pés e o coração. Mas agora, pela primeira vez, cercado por toda essa beleza, todo seu ser repleto de... Espera aí. Algo estava errado. Ele havia acessado seu Perfil.

Meu nome é Adam Trevor. O garoto relaxou e caminhou pelo pomar, chutando as folhas secas que revestiam a trilha suave sob seus pés. Nada estava errado. Ele era Adam Trevor, e estava em casa. Mas ainda assim, tinha algo que o incomodava, uma ansiedade insistente, como se tivesse deixado de comparecer a um encontro. Onde trabalhava? Ele não trabalhava. Era impossível. Ele tinha quinze anos de idade, e gostaria de se tornar cantor algum dia, mas... Checou seus amigos: Takashi Nakamura e Sonia Carter. Era bom ter amigos. Por que só tinha dois? Esse não era o espírito do Unison. Bom, agora que estava em casa, poderia dedicar algum tempo a Adicionar mais gente. Contemplou as belas manchas de luz que salpicavam a trilha coberta de folhas. Era tão tranquilo ali. Teve a sensação de que podia deitar-se em um colchão de folhas secas e ficar ali para sempre. As árvores do pomar se tornaram mais esparsas. Um arco de entrada feito de madeira e coberto de flores de macieira assinalava o limite do pomar. De repente ele sentiu um incômodo no fundo da mente. Foi desconfortável por um segundo, como uma coceira que não se pode coçar, e então seu Feed informou: Takashi Nakamura está em Unison!


O Fluxo de Pensamento de seu Primeiro Amigo se acendeu. Takashi Nakamura acaba de tornar-se General de nível 65 no RPG da Guerra Saturnina. Adam Trevor sentiu a alegria da conquista de Takashi. Seu Primeiro Amigo estava orgulhoso, e ele sentiu os fragmentos da satisfação de Takashi como as manchas cálidas de luz através das árvores. Todos estavam tão felizes hoje! Ele riu alto. Deteve-se bem na borda do pomar. Diante dele, fantasmas formavam fila por trás de um cordão de veludo vermelho. A balbúrdia intensa de seus Fluxos de Pensamento o pegou de surpresa: estavam todos desesperados para serem seus Amigos. A fila terminava sob a marquise de uma grande casa de espetáculos de paredes de tijolo. As letras vermelhas do anúncio luminoso informavam: O AUDITÓRIO UNICORP APRESENTA: UMA NOITE COM ADAM TREVOR Não fazia muito sentido, mas ele parecia lembrar-se vagamente do exaustivo processo das audições, a decepção vinda da rejeição, as noites mal dormidas e as longas horas que passou com um instrutor vocal. Ele merecia isso, depois de todo o trabalho árduo. Tinha finalmente conseguido! Esse concerto era o meio de se transformar numa superestrela! Uma porta simples abriu-se a pouca distância da entrada principal. Um fantasma de rosto rechonchudo e cabelo brilhante alisado para trás surgiu e disse: – Psiu! Sr. Trevor! Estávamos esperando pelo senhor, venha por aqui. Ambrose foi correndo até a porta identificada como entrada de artistas, e ao cruzá-la viu-se em um corredor sombrio nos bastidores. O fantasma, baixo e gorducho, vestia um smoking impecável. Fez uma reverência. – É um grande prazer finalmente conhecê-lo. Se quiser me seguir, vou levá-lo para o palco para fazer o teste de som. Ele afastou uma cortina de veludo bordô. O palco estava vazio, exceto por um piano e um microfone.


– Eu toco piano – constatou Adam. – Mas é claro que toca. E a casa está lotada hoje, de modo que é melhor começar o aquecimento. Por favor – o homem estendeu a mão, indicando o auditório vazio. Adam atravessou o palco, os passos ecoando dentro do espaço cavernoso.

Sou Adam Trevor. Eu toco piano. Sou Adam Trevor. Eu canto. Ele se sentou no banco de madeira e tocou uma tecla branca com um dedo da mão esquerda. A nota grave soou sinistra, um ribombar profundo. Dedilhou uma melodia de três notas agudas com a mão direita. Então combinou os sons, improvisando uma música sobre uma velha e mesquinha nuvem de tempestade que adiciona um esquilo como Amigo. A mão de uma garota agarrou seu pulso antes que ele pudesse concluir uma progressão de acordes particularmente brilhante. Ele ergueu os olhos do piano. Ela era familiar – e bonita, apesar do senso de moda bem tosco –, talvez uma antiga fã, ou alguém que ele conhecera na escola de artes dramáticas? – Não abandone seu emprego diurno para ser músico – ela disse. Por algum motivo, a voz dela fazia-o recordar-se de um sonho recente: uma fuga alucinada, uma viagem rumo ao norte, um buraco no meio da floresta. – Como você entrou aqui? – Ambrose, o que há de errado com você? – ela perguntou. Ao redor da garota, as sombras do auditório se aprofundaram e escorreram através do palco. Ele olhou para as fileiras de cadeiras vermelhas vazias, que as luzes redondas do teto abaulado mal conseguiam iluminar. Aquele lugar começava a deixá-lo inquieto. – Sou eu, Mistletoe! – ela jogou uma trança azul macia por cima do ombro. Ele foi envolvido por uma onda intensa de aromas penetrantes e tossiu. Teve a impressão de lembrar-se da primeira vez que se encontraram. Sim. Havia sido em um beco da subcúpula. Mas o que teria ele ido fazer


num lugar como aquele? Ela o sacudiu com força. – Seu nome é Ambrose Truax. Escapamos juntos de dois policiais. Aqueles dois irmãos esquisitos nos pegaram. Magnus e Ivor, lembra? Então a gente se separou. Você é Ambrose. Ele se ergueu do banco e recuou devagar, sacudindo a cabeça. – Meu nome é Adam – murmurou. – Vou cantar esta noite. Tenho que fazer o aquecimento. As palavras pareciam erradas, como se alguém estivesse falando por sua boca. As luzes do auditório se apagaram. Sussurros ásperos vinham das poltronas. – A gente tem que sair daqui – disse ela. – Aqui é o meu lugar. Estou feliz aqui – ele retrucou, debilmente. Mas não acreditava naquilo. Ele não sabia qual era seu lugar. Mistletoe puxou sua manga. Inúmeras vozes se ergueram das fileiras de assentos na escuridão.

– Canta! – Qual é, Adam, toca pra gente! – A gente te ama! – Não dê atenção – disse Mistletoe. Ela torceu o braço dele e puxou o garoto para longe do piano. Ele acenou para os fãs invisíveis enquanto ela o puxava através da cortina de veludo. – Somos Amigos? – perguntou ele; tinha a crescente sensação de que ela não gostava muito dele. – Não aqui. Eles saíram pela porta de entrada de artistas. Lá fora o sol brilhava. Ele a seguiu para longe do Auditório da UniCorp e subiram uma colina coberta de grama alta, que ondulava ao redor de suas pernas. No topo da colina havia um grupo de pinheiros. Ela o levou até a sombra do arvoredo e ambos


se sentaram sobre o toco de uma grossa árvore que fora serrada. – Me escuta – ela segurou a mão dele. – Seu nome é Ambrose Truax. Você usa holoternos e tem cheiro de Bruxelas. A gente se conheceu na Pequena Saigon, onde você achou que tudo era velho demais. Tenho uma scooter chamada Nelson. Uma tontura embaçou a vista dele. Sentia-se enjoado. – A polícia perseguiu a gente, mas conseguimos escapar. Ele fechou os olhos e viu a si mesmo na garupa de Mistletoe, que pilotava uma scooter decrépita. Eles rodavam por uma rua estreita e irregular, no alto de uma favela vertical. A superfície inferior da cúpula estava poucos metros acima de suas cabeças. A longa trança azul dela fazia cócegas em seu nariz. Ele envolvia a cintura quente dela com os braços, e estava feliz com essa proximidade. E então lembrou-se.

Ela salvou minha vida. Meu nome... A cena mudou para um laboratório úmido, escuro e cavernoso, coalhado com as entranhas de maquinários pré-Unison. Um homem de cabelos brancos, com cheiro de mofo, debruçou-se muito perto dele e segurou-lhe o braço com força. O homem furou sua mão com um espeto pontiagudo. A dor subiu por seu braço. O velho inseriu uma nova ID de código fixo, recordou-se. Meu nome

é... Mudança de cena. Ele estava escondido detrás do tubo de escaneamento, ao lado de alguém muito familiar, que empunhava um disruptor e que gritava para ele correr. Mudança de cena. Uma bola de gude, suspensa no ar entre os atmoedifícios da Cidade Litorânea do Leste, girava eternamente ao redor de seu eixo.

Meu nome é Ambrose. Ele se lembrou de tudo. – Meu nome é Ambrose Truax! – disse quando sua mente retornou à clareira em meio aos pinheiros.


Olhou ao redor, arregalando os olhos. – Uau! – exclamou. Respirou fundo – Tudo bem. A ID Adam Trevor estava em sincronia perfeita com o Unison. Ela ofuscou por completo minha consciência. E foi imediato; assim que eu me projetei pra cá, me perdi. Ele se pôs em pé e fez uma rápida avaliação de sua mente. Ficou desapontado ao descobrir que o impulso de correr de volta para a sala de concertos e cantar para seus fãs ardorosos ainda estava lá em sua mente, tentador. Mas pelo menos ele podia reconhecer o impulso e tentar ignorálo. Ele andou de um lado para o outro, repetindo para si seu nome verdadeiro. – Meu nome é Ambrose Truax. Meu nome é Ambrose Truax. Meu nome é... – Você sabe que está dizendo isso em voz alta, né? – Mistletoe olhou ao redor, para os pinheiros perfeitamente desenhados pelo Unison. – Aliás, este lugar é sinistro. Bom trabalho. Ocorreu a Ambrose que ele não sabia se este usuário era mesmo Mistletoe. Ela não era um fantasma, mas também não era sua Amiga. E ele não conseguia acessar nem o Perfil nem o Fluxo de Pensamento dela. De acordo com o Unison, ela não existia. – Como você chegou aqui? A Mistletoe que conheço não tem nem acesso ao mundo de cima, quanto mais uma ID no Unison. Ela se pôs de pé de um salto e espetou um dedo no peito dele. Isso foi suficiente para convencê-lo de que lidava com a garota certa. – Primeiro, que tal Obrigado por livrar minha cara de novo? Quantas vezes desde que nos conhecemos, tipo um milhão? E segundo, legal te ver, também. Ele ergueu as mãos. – Tá legal, desculpa. Mas você tem que entender, não tenho conseguido pensar direito desde a última vez que nos vimos. Tenho visto coisas. Afastei-me de Magnus e Ivor para tentar me calibrar, mas... Falando sério, como você conseguiu chegar aqui?


– Professora Deirdre O’Hanlon. – Quem? – Acho que você se encontrou com ela quando ela era uma espécie de... – ela estalou os dedos, tentando pensar –... construtora de Aplicativos. – Sonia Carter – disse ele, depois de algum tempo. – O verdadeiro nome é Deirdre – disse Mistletoe. – Ela é professora dessas coisas do Unison na Universidade Litorânea do Leste. Descobri sobre ela nas notas de Jiri. – Espera aí. Você esteve na ULL? Como você chegou ao lado de cima? – Eu conheço um carinha... – ela se interrompeu, como se esperasse por uma reação. Ambrose não sabia bem o que ela esperava que ele dissesse. – Hã... – ...que conseguiu me fazer passar pela câmara estanque. E aí Deirdre me ajudou a logar. – Ela implantou você – ele bateu com o dedo na palma da própria mão. Ela sacudiu a cabeça. – Quem me dera. Tive que engolir uma pílula gigante cheia de bichos. Isso explica por que você está fora da grade, pensou ele. – Você tem ideia do perigo que é fazer isso? Engolir um login biotecnológico de fundo de quintal? Esses bichos estão no seu cérebro agora. Você não pode fazer esse tipo de coisa. Eu não quero... – ele se calou. – Não quer o quê? – Não quero perder você de novo. Apesar do atual funcionamento caótico de seu cérebro, ele tinha certeza de uma coisa, sua necessidade de pousar um dedo na lateral do pescoço dela, sentir a pulsação e a suavidade da pele ao mesmo tempo. Pele de verdade, pele do Unison, não importava. Ela pareceu perplexa e surpresa. – Ambrose, ninguém nunca... Eu nunca... – pela primeira vez desde que se conheceram, Mistletoe baixou a armadura forjada nas ruas da subcúpula.


Seu sorriso triste parecia o de alguém muito velho. Ela tentou de novo. – Como queria ter te conhecido antes disso tudo. O coração dele batia forte. E então seu Fluxo de Pensamento zuniu: Takashi Nakamura está doido para ver seu Amigo cantar esta noite! Ele podia sentir a presença de Takashi formigando em sua pele, esfuziante como se estivesse sob o efeito de alguma droga. – Ah, não – exclamou. – Se prepara! Takashi apareceu na clareira, sem fôlego e com o rosto vermelho. Ambrose esperou que ele mencionasse sua despedida estranha e abrupta no estádio. Seu Primeiro Amigo fez um gesto exuberante apontando para uma abertura entre as árvores. – Por que você está escondido, Adam? Não viu como está lá fora? É lindo! A EmotiSombra de Takashi enroscou tentáculos alaranjados inquietos em torno de suas pernas e cintura. – Eca! – protestou Mistletoe, recuando. – Prazer em conhecê-la – disse Takashi. – Oi – ela conseguiu articular, olhando com repugnância os tentáculos da EmotiSombra que se retorciam. Takashi Nakamura está 01100101011011010010000001100011011000010111001101100001 Ambrose acenou uma das mãos diante do rosto de seu Amigo. – Ei, Takashi? Takashi olhava direto através de Ambrose para o outro lado da clareira. Então deu uma risadinha. – Já notou como todas as camadas do mundo se encaixam? E como elas aparecem para todos seus Amigos e para você ao mesmo tempo? É como se você fosse o menor dos nanos, certo? – Ele juntou o polegar e o indicador para demonstrar o tamanho ínfimo. – E você está destinado a uma única função repetitiva... para a frente e para trás, para cima e para baixo... e ao mesmo tempo você é este... – ele agitou os braços, lutando para transmitir o


entendimento sublime que percorria seu cérebro – ...carrossel de Amizade! – ele concluiu, triunfante. Ambrose apontou para a EmotiSombra, que reagia à profunda felicidade de Takashi, subindo por seu peito e enrolando-se em seu pescoço. – É normal isso acontecer? Quer dizer, você está... – Eu finalmente sou eu mesmo, Adam! Sou tudo o que sempre quis ser. Desconfiados, eles seguiram Takashi por entre as árvores, para a luz do sol. Junto ao sopé da colina havia um vasto campo que se estendia rumo à silhueta enevoada do bitmap da Cidade Litorânea do Leste. O campo estava tomado por milhões de usuários movendo-se juntos em grupos, como se fossem cardumes densos de peixes. Diante da cena, Ambrose tinha a impressão alarmante de estar olhando para o fundo de um oceano sem água. Demorou alguns minutos para perceber que os usuários deslocavam-se com um propósito, num lento avanço que os levava rumo a uma monstruosidade que se erguia imensa, ameaçando obscurecer o sol perfeito do Unison. – Greymatter – constatou Ambrose. – Eu disse que era lindo! – gritou Takashi por cima do ombro, enquanto corria colina abaixo. A propriedade de Martin era do tamanho de uma cidade. Novas adições se espalhavam para ambos os lados; eram modernos atmoedifícios feitos de vidro e cromo entrelaçados, ao lado dos quais o palacete vitoriano parecia uma miniatura. A expansão avançava ao longo do perímetro do campo, uma subdivisão cintilante, à moda do século XXI, rodeando a massa de usuários como duas garras gigantescas. Quando os usuários atingiam a frente da propriedade, seus vultos se decompunham; meses de putrefação transcorriam em um horrível instante. Dos restos mortais de cada usuário, dados brutos fluíam em feixes coloridos que serpenteavam até as paredes da casa. A propriedade estava consumindo informações dos Perfis. – Isso é bom ou ruim? – perguntou Mistletoe.


O Feed de Ambrose berrou: Parabéns! Você foi selecionado para participar do teste gratuito do Unison 3.0 (Versão Beta). Por favor, vá à nossa festa de lançamento em Greymatter! Ambrose virou-se para Mistletoe, mas de súbito foi atordoado por lampejos ofuscantes de alegria, que penetraram cortantes em seu Fluxo de Pensamento. Em um instante, o Unison eliminou a distância entre seu próprio Fluxo de Pensamento e o dos outros usuários. Agora todos pareciam se originar do mesmo lugar, no fundo de sua própria mente, como uma ensurdecedora câmara de eco. Lauren Jenkins ama seus Amigos mais que qualquer outra coisa no mundo! : ) Julia Pittman tornou-se fã de Adam Trevor. Oscar Ward acha que a vida consiste em relaxar e CURTIR tudo! Chris Riley está imaginando por que demorou tanto para perceber como é fácil ser feliz. Mark Sullivan E Milhões de Perfis inteiros e detalhados começaram a invadir seu Feed. E todos o convidavam para o mesmo Evento: Festa de Lançamento em Greymatter. Ia ser superdivertido. Talvez ele pudesse até tocar algumas músicas para seus novos Amigos. Ele começou a descer a colina. Alguém segurou sua manga: a garota do auditório. Ela tinha interrompido seu aquecimento prévio, e agora tentava impedi-lo de ir à Festa de Lançamento. Ele se soltou dela – stalker maluca! – e estava a ponto de dizer-lhe que o deixasse em paz, quando todo o corpo dela deu um tranco para trás, como se ela tivesse deixado cair uma faca e tentasse impedir que acertasse seu pé. O olhar dela ficou vago e perdido, o queixo caiu. Então ela tremeu e desapareceu num piscar de olhos. Não era nenhuma grande perda. Ela não era sua Amiga, mesmo.


Ele se juntou aos outros usuårios no campo e se encaminhou para a propriedade, assobiando feliz e curtindo a sensação do sol em seu rosto.


Ela fLutuava na escuridão. O tubo se abriu. Uma luz a atingiu e ela apertou os olhos. A silhueta de um homem se debruçou em frente à luz, bloqueando o foco brilhante mas não seu brilho. Quando os olhos dela se ajustaram, os ângulos bem definidos de um terno e gravata surgiram dentro do espaço escuro, e então a silhueta desapareceu. A bola de fogo brilhante voltou. Fora de seu campo de visão, homens murmuravam e ocasionalmente soava um plof molhado. Ela se sentiu erguer para diante, com um leve zumbido mecânico, e aos poucos tomou consciência de estar num quarto cheio de grandes tubos metálicos. O tubo à sua frente estava na vertical e aberto. Dentro dele, um bebê retorcia-se, com longos fios saindo de sua cabeça. Ele olhou direto para ela e ficou paralisado. Ela tentou acenar, mas tinha os braços presos. Em vez disso, engrolou o melhor que pôde uma saudação. Ele piscou e moveu os lábios. Outro plof. O som vinha do fundo da sala, para além do tubo do bebê, onde dois homens com jalecos brancos e um outro, o que a olhara, debruçavam-se sobre uma longa mesa, cutucando e apertando alguma coisa. O terceiro homem endireitou-se, disse algo aos demais, e então apanhou a coisa. Fios prateados saíam dela. Então um bracinho apareceu. Era um bebê, assim como ela e o garoto no outro tubo. Mas não se mexia. O homem segurou firme o bebê, desconectou um fio e a seguir ergueu-o para que a luz o


iluminasse. Virou-o e examinou-o de todos os ângulos. Sacudiu a cabeça. Os homens de jaleco ficaram imóveis enquanto ele jogava o bebê num tanque transparente, onde os corpos inanimados de uma dúzia de outros bebês flutuavam num líquido verde, seus fios emaranhados. O bebê produziu um plof ao bater contra outro, deslocando-o para o lado. Ela voltou o olhar indefeso para o garoto à sua frente, que a olhava de boca aberta, baba escorrendo do lábio inferior. – Gaaa – ele disse. Ela tentou apontar para os homens, mas não podia se mover, e de qualquer forma ele não podia se virar para ver o que acontecia. Em vez disso, ela gritou. A cena recuou para o fim de um longo túnel e se dissolveu, dando lugar à testa alta e aos olhos verdes arregalados da professora Deirdre O’Hanlon, a centímetros dos seus. Mistletoe tentou se mexer. Os braços ainda estavam presos. Mas como? As paredes brancas e as poltronas vermelhas da severa sala da ULL surgiram na periferia de sua visão. – Ambrose! Não vá pra lá! – gritou a garota, lutando contra o peso que imobilizava seus pulsos. Suas têmporas estavam quentes, pegajosas de suor. – Acalme-se – disse Deirdre. – Ele não pode ouvi-la. Você está de novo comigo. A professora apertou mais, esfregando as palmas das mãos de Mistletoe contra as têmporas da garota até sua cabeça doer. Mistletoe havia sido extraída. Ela se livrou das mãos da professora. – Me projeta de novo! – Não posso. Eles estão aqui. Deirdre virou a palma da mão, fazendo surgir uma imagem do saguão do prédio da ULL. Associados de Segurança da UniCorp ocupavam as duas passarelas que se cruzavam acima da caixa de vidro, apontando disruptores para baixo em arcos rápidos e ágeis. No solo, um segundo grupo de


Associados examinava uma fila de estudantes cujas esferas de ID de ULL externalizadas reluziam sobre as mãos viradas para cima. – Feed de segurança do prédio – explicou Deirdre. Mistletoe observou o vídeo sem som e viu um aluno adiantar-se e extinguir sua ID. Gritou algo para o Associado mais próximo, sua boca furiosa movendo-se em silêncio, e foi golpeado na cabeça com a ponta rombuda de um disruptor, desabando no chão. Ao lado dele, a moça ruiva que dera chocolate e informação a Mistletoe apresentou sua ID para inspeção. Um Associado de Segurança passou a mão através da esfera iridescente e passou para o aluno seguinte. Mistletoe sentiu o peso de seu próprio disruptor em torno do braço, por dentro da manga. Lutou contra o louco impulso de fechar o punho, engatilhar a arma e irromper porta afora, atirando. Sou eu quem vocês

querem? Outro grupo de Associados surgiu e espalhou-se à volta do recinto, tomando posição diante das salas dos professores, dois homens por porta. Deirdre fechou a imagem e tirou uma sacola marrom de trás da cadeira. – Imaginei que um dia isso pudesse acontecer – disse, metendo os recipientes laranja e as cápsulas soltas na bolsa. – Ninguém me seguiu até aqui – disse Mistletoe. Deirdre pendurou a sacola no ombro, agarrou a poltrona vermelha pelo braço acolchoado e empurrou-a com força. Na parede exposta, havia mais um leitor de mão. – A culpa é minha, por lhe dar o login. Arrisquei-me tolamente com tecnologia experimental, e agora temos que fugir. Uma náusea fria e doída paralisou Mistletoe, desceu por seu pescoço até o peito e a barriga. Era isso o que ela era: tecnologia experimental. Ivor estava certo quanto ao risco de ser arrancado de repente do Unison: lembranças horríveis, antes sufocadas, eram revividas em detalhe. – Você não entende – protestou Mistletoe. – Sem mim, ele está perdido lá dentro.


Deirdre encaixou a mão no escaner. Uma fenda horizontal surgiu na parede do fundo e se alargou, revelando o campus da ULL. Longos raios do sol da tarde sulcavam a floresta. Mistletoe apertou os olhos quando um deles bateu direto na sala de Deirdre. – Minha prioridade no momento é não levar um tiro – disse Deirdre, passando a perna pela abertura retangular e deslizando o corpo para fora da sala. – Devia ser a sua também. Mistletoe quase a alertou para a cápsula que caiu do bolso lateral da sacola. Em vez disso, apanhou-a e guardou no bolso enquanto pulava a janela e caía na grama macia, na lateral do monumento cinza. Virou-se para esquadrinhar o campus e deu de cara com a extremidade laranja brilhante de um disruptor armado. A arma era empunhada por um homem de chapéu marrom, que pairava em sua scooter do Departamento de Polícia. A seu lado, seu parceiro ruivo brandia um disruptor idêntico, em vez do bastão atordoador não letal que usara durante a caçada na subcúpula. Mistletoe cerrou o punho. O disruptor emergiu da manga e fechou-se ao redor de sua mão. Ela o ligou, ajustando-o para força máxima e tentando manter o braço firme. Chapéu passou a língua pelos lábios rachados. Era estranho vê-lo fazer algo tão natural e tão humano. Será que esses homens tinham famílias, esposas e filhos a quem contariam a história emocionante da caçada a dois jovens fugitivos? Ela os imaginou sentados em volta de uma mesa com um belo frango assado e sabe lá mais o que a gente do lado de cima tirava daquelas caixas prateadas. O Ruivo indicou com a cabeça o disruptor dela, que assumira um tom amarelo feio no esforço de manter a carga total. – Pode estar na hora de recarregar. Mistletoe esperou que Deirdre revelasse a arma de tecnologia de ponta que com certeza tinha escondida debaixo da blusa e dizer algo como Isto vai equilibrar um pouco as coisas. Deu uma olhada de lado para a professora, que estava apenas parada, com as mãos do lado da cabeça para mostrar que estavam vazias.


Chapéu farejou o ar. – Está sentindo esse cheiro? Mistletoe não sentia cheiro nenhum, mas teve uma breve sensação de que o tempo tinha congelado, como na rua de tia Dita segundos antes da explosão. A calmaria sinistra pareceu contagiar os policiais, e até suas scooters flutuaram imóveis no ar. O tempo acelerou com dois rápidos lampejos prateados, seguidos de dois sons guturais:

Tchunc. Tchunc. Ruivo levou a mão à garganta, enquanto Chapéu desabou no assento de seu veículo, ofegando e tremendo como um coelho desesperado. Mistletoe e Deirdre recuaram contra a parede de pedra. Enterrado no pescoço de cada policial havia um círculo de dentes de tubarão metálicos. Mistletoe virou o rosto. Não queria ver as expressões deles relaxarem pela última vez. Lembrava demais os momentos finais de Jiri. As folhas de uma árvore próxima farfalharam, chamando sua atenção. Viu aparecer um par de pés, as pernas, e então um garoto pendurou-se por um instante, antes de saltar ao chão. Sliv. O rapaz moveu-se sem ruído pelo gramado, rumo às duas. Vestia uma camisa de mangas longas manchada de verde e marrom: camuflagem vintage. Atravessada no peito tinha uma bandoleira de couro da qual pendiam vários shuriken caseiros, com lâminas curtas soldadas entre os dentes rombudos de engrenagens prateadas. Cobrira a mão ausente com uma velha luva marrom. Sorriu para Mistletoe e empenhou-se em tirar da scooter o corpo de Chapéu. – Dá uma ajudinha? – perguntou. Mistletoe correu até o veículo e empurrou Chapéu pelo outro lado, atentando para não disparar seu disruptor, que deixara armado por cautela. Conseguiram passar Chapéu para os braços de Sliv. A camisa castanha do homem se soltou da cintura e embolou-se sob o queixo, escondendo a ferida no pescoço.


– Obrigado por não ter me ouvido – disse Mistletoe, depois de apoiarem Chapéu na parede. – Como você sabia que eu ia me encrencar aqui em cima? Deirdre depositou o corpo de Ruivo ao lado do parceiro, apalpando seus bolsos e transferindo um bastão atordoador para sua bolsa. – Um velho hábito – ela disse, endireitando-se. Mistletoe ficou imaginando se Deirdre estava mais próxima de seu passado do que gostaria de admitir. Deirdre montou na scooter de Ruivo e ajeitou a bolsa no colo. – Se formos para o norte, há um lar para professores aposentados perto de Montreal. – Vão te procurar lá – disse Mistletoe. – Não sou aposentada. – Esquece. Tenho um lugar seguro no meu pedaço – disse Sliv, acomodando-se na scooter de Chapéu. Estendeu a mão para Mistletoe e puxou-a para o veículo. – “Meu pedaço” quer dizer na subcúpula? – Deirdre apontou para o chão. – É isso aí – respondeu Mistletoe. Ela se instalou entre Sliv e o painel de controle. – Eu dirijo. Estirados na emergência do hospital abandonado de Rio II como cachorros no verão, Os Relojoeiros observaram com olhos semicerrados e curiosidade morna enquanto Sliv conduzia suas convidadas pelo esconderijo. Usando os colchões das camas do hospital, tinham criado um labirinto de leitos ao longo das paredes descascadas da sala. Alguns integrantes do grupo tinham improvisado cortinas com lençóis quadriculados e tapeçarias coloridas, enquanto outros passeavam em roupas de baixo em plena vista dos demais. Até mesmo, Mistletoe notou surpresa, algumas das moças. Indignada, perguntou-se por que Sliv nunca a convidara para se juntar a eles. Um súbito retinir metálico perto deles fez Deirdre estacar. O insetocâmera escalou um amontoado de cafeteiras industriais enferrujadas e focou


suas lentes nas visitantes. Sliv o enxotou, e o inseto desapareceu debaixo do beliche de um garoto com impressionantes cabelos brancos que roncava. – Não precisam ficar aqui conosco – Sliv disse. – Vou pedir que preparem um lugar decente numa das alas cirúrgicas. Tinham demorado horas para chegar ao hospital. Primeiro Sliv as guiara por um emaranhado impossível de becos no lado de cima, como garantia de não estarem sendo seguidos. Então largaram as scooters policiais na câmara estanque, antes de descerem pelo poço de acesso. Finalmente, um percurso longo e convoluto por uma série de túneis estreitos deixou-os na sala de emergência. – As pessoas dormem cedo por aqui – observou Deirdre. – Somos ativos à noite – Sliv explicou. – Está quase na hora de levantar. Nos fundos da sala de emergência, por trás de uma mesa com uma placa de POR FAVOR IDENTIFIQUE-SE, Sliv tirou a luva e desabotoou a camisa camuflada. Começou a desabotoar as calças, mas então se lembrou de que estava acompanhado. – Licença – disse, e desapareceu numa sala para além da mesa. – Esse lugar está OK – disse Deirdre. Parecia estar quase convencida do que dizia. – É legal. Você vai estar melhor aqui embaixo. Um aspirador vermelho automático passou por elas, arrastando um longo cabo. Parou do lado da mesa, abaixou uma longa tromba para aspirar um montinho de sujeira cinza metálico e depois recuou corredor abaixo. – Talvez não exatamente aqui – Deirdre disse, olhando para o ponto que acabava de ser limpo no chão de ladrilhos. – Mas abaixo da cúpula, fora do alcance dos sinais. Desde que continue fugindo. – É o que pretendo fazer – disse Mistletoe. Observou o aspirador desaparecer detrás do esqueleto de um chassi em forma de lágrima de um carro lá de cima e imaginou se Sliv mantivera Nelson intacto, ou se o veículo já fora desmanchado e as peças recicladas. – Então, descreva sua experiência no Unison – disse Deirdre.


– Em linhas gerais, confusa e assustadora. – Quero mais detalhes. – Foi fácil encontrar Ambrose, porque o nome que ele usava quando você o encontrou... – Adam Trevor. – ...estava em pôsteres anunciando um concerto que ele deveria dar. Mas quando o achei, ele pensava mesmo que era esse tal Adam, como se esse Perfil não fosse mais falso. Estava compondo uma música sobre uma nuvem. Consegui trazê-lo de volta, mas não durou muito. Então, a não ser que eu volte lá pra lembrar Ambrose de quem ele realmente é... – Não posso deixar você fazer isso. – Não é você quem tem que deixar. – Dar a você aquele login foi um erro. Eu estava certa no início: a melhor coisa a fazer é fugir. – Não vou abandonar Ambrose. Ele não me abandonaria. – Como sabe? E já que passei quinze anos construindo uma carreira que você destruiu numa tarde, o mínimo que pode fazer é ouvir meu conselho. Mistletoe olhou para o chão e viu uma mancha negra que escapou ao aspirador. Sentia-se como um demônio de conto de fadas, que entra nas vidas das pessoas para arruiná--las. Seu pulso roçou a cápsula de login dentro do bolso. Assim que conseguisse uma desculpa para se afastar da professora, iria até o único sinal que conhecia na subcúpula. – O que mais aconteceu por lá? – Deirdre perguntou. Mistletoe olhou para ela. Notou as linhas ao redor dos olhos, as rugas de preocupação gravadas em sua testa. Os sobreviventes talvez acabassem exaustos e vazios; talvez Pyotr tivesse sido o afortunado. – A grande mansão de Martin está crescendo. – Você viu Greymatter? – Não tem como não ver. É pra lá que todos estavam indo. Seus Perfis estavam alimentando a mansão, ou algo assim. Os olhos de Deirdre fitavam o infinito.


– Sempre achei que as pessoas daqui de baixo deviam lutar pelo direito de entrar no Unison, que tínhamos a responsabilidade de ajudar todo ser humano a compartilhar o progresso que uma rede social tão grande representava. Mas, mais para o fim, Pyotr concluiu que estaríamos melhor sem a rede. Ele costumava dizer, “a UniCorp está plantando usuários como se fossem sementes, cultivando-os e esperando a colheita”. A porta da sala se abriu, e quando Sliv entrou, Mistletoe olhou-o, agradecida. Ele vestira uma camiseta regata preta e calças cinza salpicadas de tinta amarela e verde. – Vou acomodar vocês duas antes do café da manhã. – Fez um sinal com o braço esquerdo metálico exposto e começou a percorrer o corredor. Deirdre pôs a mão no ombro de Mistletoe. – Pyotr estava certo – disse. Mistletoe afastou a mão dela e alcançou Sliv. – Nelson ainda está inteiro? – A gente atirou ele no incinerador pra se divertir. – Só porque você salvou minha vida não quer dizer que eu não vou te estrangular. Sliv apontou uma porta dupla no final do corredor, com uma placa de TRATAMENTO INTENSIVO. – Está ali. Mistletoe voltou-se para Deirdre, que vinha alguns passos atrás. – Hã, pode nos dar um momento? Só queremos um tempinho para matar a saudade. Ela pegou a mão humana de Sliv e a apertou com força, entrelaçando seus dedos aos dele e puxando-o para junto de si. Ele cheirava a gasolina. – Ah, desculpa – disse Deirdre. – Vou me instalando por lá. Mistletoe sorriu. – Obrigada. Por tudo. – A ala cirúrgica é virando o corredor – disse Sliv, enquanto Mistletoe o arrastava para o setor de tratamento intensivo. – Tem um chuveiro e


camas. Escolha a sua. Mistletoe empurrou as portas duplas. Dentro da sala, Sliv a puxou contra si e rodeou-lhe a cintura com as mãos. Ela ficou na ponta dos pés o tempo suficiente para dar um beijinho na bochecha dele, e depois se desvencilhou. – Isso é pela ajuda com os policiais. Sliv coçou o queixo, pensativo. – Então aquilo agora há pouco foi encenação. Mas Mistletoe já atravessava a sala, passando por uma dúzia de scooters em estados variados de desmanche. Nelson estava encostado numa parede, junto a um painel suspenso cheio de martelos, chaves de fenda e furadeiras. – Eu precisava me livrar da Professora – disse, acariciando o assento rasgado de Nelson. Sliv foi atrás dela e bateu a mão metálica na lataria de Nelson. Assustada, Mistletoe olhou para ele. – Então é isso: meio beijo e você some de novo. – Cruzou os braços. – Sério, espero que esse cara valha a pena. – Não tem nada de cara. O que deu em você? Sliv parecia magoado. Ela tentou pegar a mão dele mas ele a rechaçou. – Pra mim você não precisa mentir. – Tudo bem. – Ela respirou fundo. – Tem um cara sim. Mas com ele não é bem assim. Ou sei lá. É difícil explicar. Ele é como uma parte de mim. Sliv fez cara de quem tinha tomado um copo de leite azedo. – E as garotas daqui? – ela emendou rápido. – Você alguma vez... – Os Relojoeiros têm regras – ele respondeu com desdém. – Não somos um bando de animais. – Eu sei. Não quis dizer que eram. – Esquece. – Ele apontou para o pescoço dela. – Parece que você não gostou da gargantilha. Ela pôs a mão no oco entre as clavículas. – Tive que trocar com um taxista por uma corrida.


– Espero que tenha sido até a Islândia. Aquela corrente era de ouro de verdade. – Ah, tá. E vai chover manga da cúpula. – Te mostro uma saída secreta se você me prometer duas coisas. – Quem sabe e talvez. – Uma: que um dia você vai voltar. Duas: que não vai trocar isto por nada deste mundo. Usando a mão humana, soltou um anel de bronze do pistão metálico de seu antebraço e o deslizou sobre o guidão arranhado e enferrujado de Nelson.Sem os Chmura Dité para guiá-la, Mistletoe seguiu quilômetros de túneis úmidos, gotejantes e malcheirosos, esbarrando em becos sem saída e estações em ruínas, cheias de catracas retorcidas. Tentou não pensar no quanto Ambrose teria mudado até que voltasse a encontrá-lo, e controlavase para não gritar de frustração, quando viu à distância uma luz tênue sobre os trilhos. Acelerou Nelson e derrapou na curva, brecando a tempo de não bater em um dos sofás de couro, diante do laboratório dos dois irmãos. Lá dentro, encostou Nelson num refrigerador sem porta, que cheirava levemente a mostarda, e tirou do guidão o anel de Sliv. Era grande demais para o dedo dela e pequeno demais para seu pulso. O bronze estava manchado com fungos verdes. Meteu-o no bolso, onde se encaixou direitinho ao lado da cápsula de Deirdre, e rumou para a abertura do tronco oco de fios. O balde de panos ensanguentados sumira, assim como os bancos de monitores e teclados. Os fios que haviam atravessado as palmas de Ambrose pendiam no interior do tronco. Estava aliviada por Magnus e Ivor não estarem na área. Não sabia se a UniCorp poderia rastrear seu login ali embaixo. Esse lugar é a casa deles, lembrou a si mesma. Que direito tinha de invadir a vida das pessoas e mudá-la para sempre? Pensou em Deirdre, depois em Ambrose. Pegou um dos fios de implante pendentes e examinou a ponta, uma lâmina triangular manchada de sangue seco. – Planejando uma pequena cirurgia esta noite?


Ela largou o fio e se voltou. Magnus e Ivor estavam sob o arco do outro lado da sala. Vestiam túnicas cinzentas, e Magnus usava um chapéu de aba larga cuja sombra escondia seu rosto. Ivor deu um passo à frente, entrando na sala. – Engraçado como as coisas mudam – disse, com um surpreendente tom bem-humorado. Atrás dele, no espaço escuro além do arco, sombras se moviam. – Eu sei, eu sei – disse Mistletoe. – Vocês me ofereceram isso, eu fugi e agora voltei. Ivor disse: – Lembre-se, quando enfiar um desses fios na mão, ainda vai ter que usá-la para furar a outra. Sugiro limpar o sangue para poder segurar melhor. – Deu um cutucão em Magnus. – Adiante, irmão. Cruzaram o arco, seguidos pelas bestas peludas do zoológico silencioso, que bufavam sob o peso dos elaborados arreios em seus dorsos. Ao se aproximarem, Mistletoe notou que cada arreio sustentava pilhas de equipamento: monitores e teclados do laboratório, caixas repletas de livros impressos e manuais, rolos de fios. Viu Magnus tirar do bolso algo que a criatura atrás dele engoliu com uma lambida. – Cereal de arroz – informou Magnus. – Receio que você tenha vindo em má hora, pois estamos de partida. – Estou aqui em missão. Trouxe isto. – Mistletoe mostrou a cápsula na palma da mão. – É um login de uso único. Só preciso de um sinal. Magnus tirou o chapéu, revelando o cabelo branco emaranhado, e se debruçou para olhar melhor. Cutucou a pílula, depois se endireitou e virouse para o irmão. – É, a gente ficou mesmo para trás, Ivor. – Por isso vamos para o exílio. Quanto a você, nosso sinal se irradia. Se não precisa de código fixo, só precisa estar perto dele. Mistletoe olhou para um e para outro, profundamente aliviada por não ter que espetar os fios nas palmas das mãos.


– Vocês estão indo embora? Ivor secou o rosto com um pedaço de pano. – Como eu disse, é engraçado como as coisas mudam. Magnus recolocou o chapéu. – Essa já não é nossa luta; já não é faz anos. É hora de sairmos de cena e abrirmos espaço para você e Ambrose. – A mudança em meu irmão aconteceu no momento em que o paralisei com a arma policial – disse Ivor. – De qualquer forma, aconteça o que acontecer, estaremos fundo demais abaixo da terra para nos importar. – Ele não quis dizer isso – contrapôs Magnus. Ivor começou a guiar a manada rumo à porta que dava para os túneis do metrô. – Quis sim – gritou ele de volta. – Estou oficialmente aposentado. – Desculpe aquele chute – Mistletoe gritou para ele. Ele retrucou com um assovio penetrante. A cadela-cabra saiu de algum lugar onde estivera escondida e correu pela sala, parando na frente de Mistletoe. – Oi, Patrícia – disse Mistletoe, recebendo um leve cutucão do chifre curvo do animal. Ivor assoviou uma segunda vez. Patrícia olhou para Mistletoe com expectativa, depois correu para junto dele. Magnus tocou a aba do chapéu num gesto de despedida. – Eu te daria um último conselho, mas acho que você encontrará um jeito de fazer justo o contrário. Então, uma última vez, direi Carpe somnium. Magnus seguiu o irmão pelos túneis, enquanto Patrícia pastoreava as criaturas mais lentas, conduzindo-as através da porta. Quando Mistletoe ficou sozinha na sala, ouvindo os passos que se afastavam, sentou e colocou a cápsula entre os dentes. Então fechou os olhos e mordeu com força.


O usuário conhecido por seus Amigos como Adam Trevor estava parado do lado de fora dos portões de ferro batido, olhando através das grades para as macieiras viçosas que orlavam o caminho sinuoso de pedra que levava à porta da casa magnífica. Fascinado, ele viu como da casa brotava outra ala, três andares de tijolo aparente, telhado de duas águas e uma torre adjacente. À volta dele, os dados soltos dos outros usuários fluíam em uma corrente infindável pelo portão, atravessavam os jardins e penetravam pelas paredes da casa. Um rio de alegre vozerio de Fluxos de Pensamento – palavras soltas e frases flutuantes – juntava-se a uma montanha bruxuleante de imagens de mil diferentes festas de Ano Novo, cheias de chapeuzinhos pontudos de papelão e cápsulas de champanhe. Um calendário passou raspando seu braço e desdobrando-se, soltando páginas de convites de Evento; estas pairavam acima das árvores e depois eram absorvidas pelo telhado da casa. Adam Trevor sentiu um puxão agradável que começava detrás dos olhos e se estendia até a caixa torácica, como se alguém o massageasse suavemente por dentro. Ele estivera afastado tempo demais, fazendo coisas inúteis das quais mal podia se lembrar. Adam Trevor está finalmente em casa! O portão da frente abriu-se, e ele começou a percorrer o caminho, parando um instante para fechar os olhos e sentir o leve cheiro de maçã


madura trazido pela brisa suave. Sob seus pés, dados perdidos preenchiam as fendas entre as pedras, impressões fugazes de momentos felizes passados com bons Amigos. Por fim, depois de um minuto ou vários dias de caminhada (era difícil ter certeza, e de qualquer modo não importava), Adam Trevor chegou a uma imponente porta dupla de madeira. O arco por cima dela era encimado por uma gárgula sentada como um cão, com feições estranhamente familiares e um chumaço de cabelo humano loiro. Adam lançou um último olhar para trás, contemplando o paisagismo elegante dos jardins, e observou transfixado os rios ondulantes de dados, serpenteando por cima das colinas. Apoiou a mão na porta e sentiu a pulsação da vida de um bilhão de usuários. Então empurrou, e a pesada porta abriu-se. Ele entrou. O puxão por trás da face e entre as costelas tornou-se insuportável, como se um punho se fechasse ao redor de seus órgãos e os arrancasse através da pele. Estava atordoado pela súbita traição, pela privação de toda paz e contentamento prometidos pelo jardim lá fora. Estava muito escuro ali dentro. A dor abandonou seu corpo repentinamente, como um curativo arrancado de uma só vez. Abriu os olhos. Ainda a escuridão. Uma voz masculina soou. – Ambrose. Vou acender as luzes. Ele engoliu em seco. Meu nome é Ambrose Truax. Lembrou-se de quando observara Greymatter expandindo-se. Havia outra pessoa com ele. – Mistletoe? – Receio que não. As luzes se acenderam com suavidade, uma dúzia de lâmpadas embutidas, providas de um dimmer. Ele estava parado em um escritório confortável, as paredes revestidas de mogno e prateleiras embutidas de vidro. Pequenos spots brilhavam por baixo de cada estante, iluminando dúzias de molduras antiquadas. Uma planta alta e suculenta crescia em um vaso ao lado da escrivaninha de carvalho maciço, escuro e polido como um espelho. Num canto da escrivaninha havia uma pilha bem arrumada de


papéis, junto a uma caneca que continha canetas e um par de tesouras. A caneca dizia PAREÇO ALGUÉM QUE ACORDA CEDO? Martin Truax sentava-se por trás da escrivaninha, parecendo eficiente e enérgico em seu terno azul de costume. Tinha nas mãos uma folha de papel, como um antigo apresentador de notícias. Lançou um sorriso brilhante a Ambrose, que estremeceu quando os dentes brancos pareceram cintilar no ar um segundo além do sorriso. – Pareceu-me melhor dispensar sua máscara – disse Martin. – O Perfil de Adam Trevor não combina com você. Mobiliário antigo? Ele sacudiu a cabeça e pôs de lado o papel. Algo vibrou por dentro das paredes, e Ambrose pensou ver uma orelha humana pálida brotando da planta antes de se transformar em uma espessa folha verde. Ele se concentrou em sua última lembrança nítida: Mistletoe desconectando-se de forma abrupta. – O que você fez com ela? – perguntou. – Nada. – E quanto a Len? Aquilo também não foi nada? – Eu o imobilizei de forma segura. O disruptor apenas o atordoou. Ele é meu filho, Ambrose. – Ao contrário de mim. – Você é o futuro. – Eu vi quando ele morreu, pai. – Ambrose encolheu-se. Não queria chamar Martin de pai, nunca mais. E estava bravo com seu próprio cérebro por engatar automaticamente um senso de respeito profissional. Mesmo agora, parte dele sentia como se fosse sua obrigação apresentar algum relatório detalhado. – Mas você tem visto outras coisas também – disse Martin. A planta farfalhou e ofereceu a Ambrose uma garrafa de um líquido escuro e efervescente. A garrafa transpirava gotículas de água, como se acabasse de ser tirada do gelo. Martin juntou as mãos, entrelaçou os dedos e reclinou-se na poltrona.


– UniCola? – Não estou com sede. E eu sei o que vi. A garrafa recolheu-se de novo à folhagem. A planta murchou. Parecia desapontada. – Sabe mesmo? – indagou Martin. – Relembre a rápida deterioração dos indivíduos que passaram pelo procedimento de Nível Sete antes de você. Sua mente não é diferente, Ambrose. Ela precisa ser calibrada regularmente. Deixe-me dar-lhe sua vida de volta. Habilidade plena de Processo de Fluxo, um cargo na UniCorp. Tudo. Martin inclinou-se para diante, apoiando os cotovelos na mesa. A foto emoldurada na prateleira acima de sua cabeça mostrava a imagem de um Martin Truax mais jovem, sentado na grama da fazenda genética, na Expansão da Nova Inglaterra. A seu lado, Ambrose e Len devoravam enormes sorvetes de casquinha. Ambrose recordava-se do sabor: leite sintético de baunilha, direto da fonte. – Já fomos uma família – prosseguiu Martin. – Sei que tenho andado muito ocupado ultimamente, mas as coisas podem voltar a ser o que eram. – Você se lembra o que me deu de aniversário no ano passado? O rosto de Martin era uma máscara rígida. – Novas tarefas de Fluxo de Processo. Você dobrou minha carga de trabalho. – O coração de Ambrose batia forte. Alguns dias atrás, ele jamais teria dito essas coisas. Alguns dias atrás, ele sequer sabia que se sentia desse modo. Seus olhos foram para a imagem na prateleira. – Teria sido legal se apenas tivesse me dado um sorvete. – Às vezes desejo poder voltar atrás – disse Martin, baixinho – e manter você longe da UniCorp. Mas havia momentos, ao longo do dia de trabalho, em que eu ficava espantado com algum pequeno gesto familiar que seu braço fazia, e isso me lembrava de que eu havia transferido para você algo meu muito profundo. Eu me sentia o pai mais sortudo do mundo, podendo trabalhar lado a lado com meu filho. A foto da estante mudou para uma cena mais antiga: dunas de areia


branca na praia no Refúgio Havaiano da UniCorp. Martin segurava um Ambrose bebê, enquanto Len chapinhava a seu lado, os pés afundados até o tornozelo na faiscante água verde-azulada. – Ajude-me a construir o futuro desta companhia – pediu Martin. – Volte para casa. – Primeiro olhe nos meus olhos – disse Ambrose – e diga-me, neste exato momento, que você não me construiu usando algum manual de instrução. Os olhos de Martin encontraram o olhar fixo de Ambrose. O branco de seus olhos brilhava mais que os dentes, ofuscante e terrível. Ambrose pôs a mão diante dos próprios olhos para protegê-los. A planta farfalhou. Um Fluxo de Pensamento absorvido pelas paredes foi expelido como se fosse a rajada de vento de um furacão, e o fez cair de joelhos. Uma atualização perdida passou por sua mente. Kelly Peterson está superfeliz hoje por ter ganhado um cachorrinho! Ambrose ignorou a mensagem e colocou-se outra vez de pé. O alto da cabeça de Martin era uma placa ondulada de mogno, conectada por um fio fino à parede por trás dele. Os olhos eram buracos negros vazios. O nariz e a boca estavam fundidos em um focinho alongado e escamado. O focinho sorriu. Fileiras de dentes brancos brilharam. Ambrose ouviu a porta bater a suas costas e se virou. Mistletoe entrou no aposento. Ela havia voltado por ele. – Ambrose – disse ela, vindo até ele e examinando-lhe o rosto. – É você mesmo? – Sou eu. – E eu sou o pai dele – disse Martin. Ambrose voltou-se e viu que Martin parecia totalmente humano de novo, meio recostado na poltrona e de pernas cruzadas. – Prazer em conhecê-la, Anna. Espero que sua viagem até aqui tenha sido agradável. Fiz o que podia para tornar este lugar fácil de encontrar.


Mistletoe olhou em volta, observando as prateleiras, a planta, as molduras. Então analisou o rosto de Martin enquanto ele batia com uma unha na mesa. Ambrose contou seis batidas antes que a garota falasse. – A gente já se encontrou – disse, e voltou-se para Ambrose. – Tive um sonho em que éramos bebezinhos. Tinha outros bebês como nós, mas eles tipo não funcionavam direito, ou algo assim, e eram jogados em uma banheira grande. Todos estavam mortos e ficavam só... flutuando. Nós fomos os únicos que sobreviveram. Ela se virou de novo para Martin, e sua trança azul roçou o rosto de Ambrose. Ele percebeu que também teria voltado por ela. – A inovação requer sacrifícios – afirmou Martin. Ele estendeu o braço para trás da poltrona e abriu uma porta que estivera oculta por trás do revestimento de madeira. Uma rede densa e faiscante de atualizações de status – fitas rendilhadas de OBA! BetterTaco para o jantar! e Alguém aí conhece um bom lugar pra fazer modificação de língua?? – se entremeou com dados brutos de Perfil. Fotos das férias de alguns usuários escaparam da rede e se esborracharam contra o batente da porta. Antes de serem sugadas de volta, Ambrose viu um grande cão preto com um gorro de Papai Noel e uma grande pilha de presentes vermelhos e verdes. As imagens foram substituídas pela lista de Amigos de alguém, milhares de minúsculos rostos que se dilataram e se esticaram para sorver dados brutos, enquanto flutuavam e rodopiavam para longe. Hipnotizado pela beleza caótica, Ambrose ficou olhando até que um padrão surgiu. Fluxos de Pensamento entrelaçaram-se e se encorparam como filamentos de DNA, trabalhando em sincronia com outros filamentos para criar dentro da rede um movimento como o de um pistão. Lembrava o funcionamento interno de um antigo motor a combustão, alimentado e abastecido pelos dados de Perfil. Ambrose estremeceu. Aquela coisa – o motor – radiava um frio sobrenatural que corrompia o bitmapping do escritório. Pedacinhos da pele


do rosto de Martin apareciam entre as folhas da planta; uma delas era toda formada por narinas. Ambrose olhou para Mistletoe; podia ver através de seu pescoço a parede atrás dela. A trança movia-se solta no ar. Ele piscou, e a garota estava inteira de novo. – Porta idiota – disse ela. – É uma espécie de motor – Ambrose deduziu. – Usando como combustível todas essas Contas de usuários. – Permita-me apresentar-lhes o coração do Unison 3.0 – anunciou Martin, erguendo-se. Um fino tentáculo de espaço negativo projetou-se do centro da porta e lambeu-lhe o rosto, esticando sua boca num sorriso congelado de caveira, com um metro de comprimento. Ela voltou ao lugar num estalo. – A porta de entrada para nós mesmos. Tenho o prazer de darlhes a chance de serem os usuários-beta de suas capacidades. – Usuários-beta? – perguntou Mistletoe. – Quer dizer, ratos de laboratório – respondeu Ambrose, que depois disse a Martin: – Para mim, chega. – Você é livre para partir – Martin deu de ombros. – Apenas lembre-se, sem calibragem, sua mente vai se fragmentar por completo em poucos dias. Por que perder por completo a sanidade quando o antídoto está a seu alcance? Não quero perder você. Um líquido amarelado e fétido começou a vazar da planta, escorrendo pelo chão. Ambrose tentou imaginar a sensação de perder para sempre o controle da mente. Será que doía? Será que poderia lembrar-se de como era ser normal? – Tudo o que tem a fazer é adicionar um único Amigo novo, e poderá ter sua vida de volta – informou Martin. Mistletoe puxou Ambrose pelo braço. Só então ele notou que usava um terno azul-escuro como o de Martin, idêntico até no U dourado na lapela. – Vamos, Ambrose. – O mesmo vale para você, Anna – prosseguiu Martin, inabalável. – Um único Amigo novo, e sua tia Dita estará livre para viver a vida em paz.


Mistletoe congelou, ainda segurando a manga de Ambrose. Martin estendeu a mão e pegou atrás da planta a ponta de um longo cachecol amarelo, que enrolou duas vezes na mão antes de cerrar o punho, prendendo-o. Então deu um puxão e forçou uma mulher de meia-idade a ficar de pé. O cachecol envolvia o pescoço dela, como uma coleira que a sufocava. A mulher arfava enquanto suas mãos tentavam arrancar o cachecol do pescoço. Mistletoe largou Ambrose e correu até ela. Martin deu um puxão no cachecol e a mulher cambaleou para trás. Mistletoe deteve-se, impotente. – Tia Dita – disse baixinho. Dita tentou falar. Conseguiu emitir apenas sons roucos e débeis, enquanto seus olhos se enchiam de lágrimas. – Pare! – gritou Mistletoe. – Tudo o que você precisa fazer é atravessar a porta – disse Martin. – Vai encontrar uma nova Amiga e aceitar seu pedido de amizade. E sua tia Dita estará livre. Mistletoe não disse nada. Ambrose podia sentir que a estava perdendo. A poça sob a planta começou a soltar um fedor penetrante de vinagre. Na porta, Fluxos de Pensamento se enovelavam como haicais sem sentido. Grande Liquidação de Inauguração Amor para Sempre Lixo da Subcúpula Ambrose tentou imaginar se Martin estava blefando. Este era o epicentro de Greymatter, nas profundezas do coração operacional do Unison, e Martin tinha a Plataforma Administrativa primária. Teria sido fácil forjar a presença de Dita. – É um truque – alertou. – Não é sua tia Dita de verdade. Mistletoe estava diante da porta, tremendo no vento gélido do turbilhão gerado pelo motor. Olhou por cima do ombro para Ambrose. Ele


nunca a vira tão indefesa, e nem precisava que sua habilidade de Fluxo de Processo lhe dissesse o que a garota estava prestes a fazer. – É ela, posso garantir – insistiu Martin. – Meus homens a apreenderam antes que conseguisse detonar a si mesma junto com sua casa. Ele puxou a ponta do cachecol, e os olhos de Dita arregalaram-se de terror. – Mistletoe, pare de dar atenção a ele – pediu Ambrose. – Olhe para mim. Martin puxou o cachecol até que Dita estava a centímetros de seu rosto. Ele se inclinou e deu-lhe um beijo no rosto. – Sugiro que vá em frente, Anna. Sua nova Amiga a espera. Ambrose moveu-se para impedi-la. A planta de repente virou uma massa de dedos humanos, que prenderam sua pele enquanto um cipó enroscou-se em sua perna. Ele apenas podia olhar enquanto os ombros de Mistletoe eram sacudidos pelos soluços da garota. A abertura da porta parecia ondular, faminta, na expectativa. – Está tudo bem – ele disse. – Eu vou te achar. Mistletoe deu um sorrisinho antes de desaparecer através da porta. Sua trança pendeu como uma vírgula azul felpuda. E então sumiu.


Mistletoe tornou-se os olhos do Unison. Uma mulher idosa abraçou um homem idoso, e dois pontos de umidade apareceram na camisa dele, onde as lágrimas dela haviam sido absorvidas. Um garotinho acelerava sua scooter nova em folha, por uma encosta gramada, num parque do lado de cima. Uma multidão de pessoas felizes, usando holocamisetas da ULL, brindava com seus copos. Mistletoe tornou-se os ouvidos do Unison. Pensamentos em microblogs e fragmentos de conversas amontoavam-se em sua mente. Ela ficou por dentro de bilhões de fatos insignificantes como Dia nojento! ou Atrasado graças ao perfeito sistema de controle de tráfego da Cidade. Mistletoe tornou-se a alma do Unison. Ela ardia de inveja das pessoas mais talentosas. Ela dava duro nos estudos para realizar seus sonhos. Ela falhava. Ela tinha êxito. Ela sempre queria mais. Ela odiava seus pais, o dever de casa, seu chefe, os filhos, seus vizinhos, ela própria. Ela também amava tudo isso. Ela chorava. LOL! Ela tentou gritar e descobriu que o Unison tinha tirado sua voz. Seus pensamentos moviam-se em câmera lenta, como se o cérebro estivesse debaixo d’água. Ela se debatia através do ar espesso que a cercava, repleto de vozes. Por fim conseguiu voltar à porta. O escritório estava logo ali, do outro lado.


Ela saiu para o ar normal, respirável. Sua cabeça se desanuviou. A primeira coisa que ela percebeu foi o aroma, um agradável toque de madeira defumada e laca. O mau cheiro de vinagre da planta que vazava havia desaparecido. Era como se o Unison tivesse decidido que este era o aroma de um escritório elegante. Ela piscou para fazer desaparecer os resíduos dos dados brutos e olhou ao redor. Tia Dita também se fora. Ocorreu-lhe que Ambrose poderia estar certo. Martin Truax era o cérebro do Unison, e não teria sido difícil para ele produzir uma visão de Dita ali no escritório. – Ambrose, vamos... No lugar onde Ambrose estivera, havia uma garota que se parecia com Mistletoe. Espelho invisível, pensou ela. Outro truque. Martin estava sentado à escrivaninha, observando-a com expectativa. – Bem-vinda – saudou ele. Havia algo meio errado com ele, como se durante a rápida ausência de Mistletoe ele tivesse conseguido se bronzear e engordar no rosto e no pescoço. Seu cabelo ondulado também mudara de loiro para um castanho intenso, que lhe dava uma aparência mais jovem. E o terno azul adquirira um tom turquesa vistoso e feio. A caneca sobre a mesa dizia EXECUTIVO DO ANO. Ainda mais intrigante era o reflexo de Mistletoe. Ela usava um impecável terninho feminino, com elegantes calças pregueadas e uma blusa cinza-aço. E havia algo mais... – Oi! – disse seu reflexo, estendendo a mão. – Sou Anna. Estou realmente ansiosa para ser sua Amiga. Não havia trança, era isso. Esta Anna tinha um cabelo curtinho e simplesmente penteado e que parecia nunca ter sido tingido. Sua expressão viva mas severa dava-lhe uma aparência adulta, de executiva. Mistletoe sentiu-se como o alvo de uma complicada brincadeira de mau gosto. – Onde está tia Dita? – quis saber. – Onde está Ambrose? O sorriso de Anna vacilou. – Com certeza você conhece a sequência de eventos. Não recebeu as


instruções sobre o fluxo operacional do teste beta da Versão 3.0? – Devo aceitar você como Amiga, e então tia Dita é libertada. Anna abaixou a mão e olhou para o Martin Bronzeado. – Tia Dita? – perguntou-lhe, apenas movendo os lábios. Martin Bronzeado deu de ombros e olhou de uma para a outra, antes de finalmente dizer a Mistletoe: – Peço desculpas por qualquer confusão que meu equivalente tenha criado do outro lado. Agora, por favor, inicie sua Amizade. – Se não me disser o que fez com eles, juro que caio fora daqui. Martin Bronzeado olhou-a intrigado. – Você praticamente cumpriu seu propósito. Por que se dar ao trabalho de vir até aqui se não vai iniciar uma Amizade com você mesma? – Eu nem gosto tanto assim de mim mesma. – Você sabe quem somos... quer dizer, você e eu... certo? – perguntou Anna. Mistletoe ignorou-a e examinou o escritório. As prateleiras eram de cerejeira, e não mais de vidro. E em vez de fotos emolduradas, continham esculturas de aves feitas com arames. – Que lugar é este? Cada parte de Mistletoe rugia FUJA DAQUI. A repentina avalanche de coisas que ela não entendia estava deixando-a zonza. Mas ela havia usado sua última cápsula de login. Se saísse agora, Ambrose talvez se fosse para sempre. – Somos a mesma – informou Anna. Seu sorriso ansioso fez Mistletoe ter vontade de estapeá-la. – No nível genético, há partes iguais de mim em você e de você em mim. Somos equivalentes. Homólogas genéticas. Gêmeas híbridas. – Seu sorriso aumentou. – Como preferir. – Você trabalha para esse cara? – perguntou Mistletoe, apontando com o polegar para Martin Bronzeado. – O Diretor-Criador Truax? – disse Anna, confusa. – Claro. – Então não tenho nada em comum com você.


– Não é o que nosso DNA indica. Mistletoe sentia-se febril, coberta por uma camada viscosa de suor. Estava num pesadelo. De algum modo tinha sido infectada pela doença mental de Ambrose, e estava tendo alucinações. Mecanicamente, ela ergueu as mãos para os lados da cabeça e posicionou as palmas a dois centímetros das têmporas. Fuja. – Anna, fique Amiga dela agora! – berrou Martin Bronzeado, saltando por cima da escrivaninha. A planta desenrolou um tentáculo cheio de folhas na direção dos tornozelos dela. Anna parecia amedrontada e perplexa. Mistletoe lembrou-se do cachecol amarelo sufocando tia Dita. Isto não é real, disse a si mesma. Ambrose está certo. Além do mais, Martin Bronzeado nem sabia do que ela estava falando. Ela tinha que sair, ou perderia o que restava de sua mente. Martin Bronzeado ergueu-se ameaçador sobre ela, com um ar de desespero feroz em sua cara gorducha, artificialmente infantil. Ele segurou os pulsos dela no mesmo instante em que ela colocava as palmas das mãos sobre as têmporas, fechando o circuito de logout. A sala afastou-se, formando um único ponto distante. Sentia na boca um gosto quente e metálico, como uma moeda préUnison. Abriu os olhos. Estava escuro dentro do tronco de fios de Magnus e Ivor. O piso era muito mais confortável do que ela se lembrava. Ficou ali sentada um instante, aliviada por estar de volta à realidade que ela compreendia, na subcúpula; então tossiu uma grande massa de muco. Se algum dia voltasse a ver Deirdre O’Hanlon de novo, ela faria questão de dizer-lhe que concordava com Pyotr: eles estavam muito melhor sem o Unison. A maior rede social da história não passava de um ciclo interminável de confusão e frustração. Ela havia tentado fazer o que Martin exigira dela para salvar Dita, mas aí Dita tinha sumido e Martin estava


diferente, e não tinha ideia do que ela estava falando. Para que tudo isso? Ela decidiu que pegaria Nelson e sairia. Voltaria para a casa bombardeada de tia Dita, para buscar evidências. Talvez então pudesse determinar se Martin de fato a sequestrara ou se ela apenas se fora. Ambrose teria de se virar sozinho até que ela bolasse um jeito de logar de novo. Talvez Sliv conhecesse alguém que pudesse inserir código fixo nas palmas das mãos dela. Quando ela se levantou, uma luz branca agradável se iluminou à sua volta. O tronco de fios havia desaparecido. E o laboratório subterrâneo dos dois irmãos tinha se tornado a sala de estar de um apartamento chique do lado de cima. Sua fúria explodiu, repentina e ardente. – Ainda estou nesta droga de Unison! – ela berrou. – Reconheço as palavras-chave, mas não o comando – respondeu a sala, numa voz tranquilizadora, de gênero neutro. – Por favor, reestruture a frase ou permita que um escaner de pensamento determine sua intenção. – Se mata – disse Mistletoe. – Entrando no modo offline – informou a sala. – Até logo, Anna. Tenha um bom dia. Mistletoe cerrou o punho e olhou ao redor procurando algo para esmurrar. Uma mesa circular no meio da sala projetava uma enorme imagem externalizada de Martin Bronzeado com os braços ao redor dos ombros da gêmea executiva de Mistletoe e um garoto que parecia uma versão mais alta, mais bonita de Ambrose, com malares salientes, quase femininos. – Espera aí! – ordenou Mistletoe. – Onde estou? – Na sua moradia UniCorp designada – respondeu a sala. – Apartamento 1763X, no nonagésimo oitavo andar de um atmoedifício de luxo quatro estrelas adquirido pelo Diretor-Criador Truax, e redirecionado para a cúpula administrativa. – Então não estou no Unison? – Você voltou do Unison exatamente dois minutos e quarenta e um


segundos atrás. Uma das paredes da moradia era um painel inteiriço, do piso ao teto, de vidro escurecido com um tom esfumado. Mistletoe pressionou as palmas das mãos contra o vidro, e o esfumado dissolveu-se para revelar uma estonteante vista panorâmica da Cidade Litorânea do Leste. Do apartamento eram avistados alguns prédios vizinhos mais baixos – um deles com um telhado feito de areia amarela salpicada de tendas vermelhas e brancas – e o quadriculado de ruas vazias lá embaixo. À distância, o quadrado verde do campus da ULL interrompia a sequência constante de atmoedifícios. Elevando-se além do campus, o topo curvo do Projetódromo Nove reluzia ao sol da tarde. Ela nunca havia visto a cidade de tão alto, e levou um instante para perceber o que havia de errado: as ruas estavam quase vazias. Ela havia passado quase toda sua vida olhando através da cúpula lá para cima, para o fluxo de tráfego, e tinha uma certeza: ele nunca se interrompia. Mas agora – ou aqui – havia uns poucos carros percorrendo as vias. Onde estavam os padrões sobrepostos de tráfego elevado? A cena deveria estar cheia de movimento e geometria, de linhas alimentando linhas e ramificando-se em mais linhas. Mas a Cidade Litorânea do Leste era uma cidade fantasma. Impossível! Ela teve um pensamento perturbador. – Preciso de um espelho. A sala obedeceu, e a porta que dava para a cozinha transformou-se em uma lâmina opaca de vidro. Mistletoe tinha a exata aparência da ansiosa patricinha Anna, sua gêmea no lado de cima. A trança desaparecera. Ela usava aquele terninho horroroso de executiva. – Quem sou eu? – Anna 53. Associada da UniCorp. Departamento: confidencial. Ela havia se transportado para dentro do corpo real de sua gêmea. Era verdade: elas partilhavam o DNA. Ela beliscou a pele do braço, tocou o estômago por baixo da blusa. Parecia ela mesma.


– O que aconteceu aos carros? – O transporte corpóreo na Cidade Litorânea do Leste é ilegal sem uma permissão. Noventa e oito por cento da interface entre humanos é realizada via Unison. – Não. Existem milhões de carros. Eu os vi. Estive em um táxi. – O transporte corpóreo na Cidade Litorânea do Leste é ilegal sem uma permissão. – Certo. Valeu. – Ela se afastou do espelho. – Você parece desorientada. Gostaria que eu tocasse uma música destinada a estimular suas funções cerebrais? Ela ignorou a voz. Pela janela, olhou através da cidade. Pensou em tudo que estava diferente quando ela atravessou a porta: a decoração do escritório, a aparência de Martin, o fluxo de trânsito na Cidade. Era como se alguém tivesse construído um modelo detalhado do mundo para uma grande exibição de museu, sem no entanto conseguir fazer nada certo. Nesta versão de museu, Anna 53 – eu, pensou Mistletoe – era uma participante ativa na atualização do Unison. Isso significava que, aqui, Anna tinha crescido lado a lado com Ambrose e se tornado uma feliz e ambiciosa integrante do Unison. Não tinha havido nenhum resgate audacioso. Ela não havia sido armazenada sob a cúpula. Ela não tinha ficado escondida nem ouvido mentiras. Ela não havia atrapalhado tantas vidas. E quanto a Jiri e Dita? Estariam vivos neste lugar? – Ei! – gritou para a sala. – Por favor, escolha um compositor dentre os seguintes: Mozart. Debussy. Bach. Beetho... – Mostre-me como chegar à Pequena Saigon.Em seu bairro, só havia falsas percepções e visões fugazes. Ela caminhou atordoada, com medo de tocar alguma coisa e ver sua mão passando através dela, provando a imaterialidade deste mundo... ou do mundo dela. A cada poucos minutos, seu coração disparava e ele tinha de parar, fechar os olhos e respirar fundo. As pontas de seus dedos formigavam e perderam a sensibilidade.


Ruas que deveriam levar para a esquerda viravam de repente para a direita, e mesmo assim levavam-na para o mesmo lugar. Ela reconheceu uma barbearia antiquada, e até os rabiscos pichados na porta, mas a pessoa que atendia era uma mulher gorda e não o homem com nariz de batata que era dono do lugar desde que ela era menininha. A maçã que ela roubou de um vendedor de rua tinha o gosto exato de um pêssego maduro demais; ela deu uma mordida e jogou o resto fora. Mistletoe parou ao avistar o garotinho gorducho que correu para trás de uma carreta estacionada, carregada de pneus velhos. Um cartaz pendurado anunciava BORRACHARIA DO CHUCK. Ela seguiu o menino até um beco, onde ele se juntou a três crianças que jogavam holodados de onze lados contra a parede de tijolos. Ela ficou fora de vista, escutando até que o garotinho espirrou.

– X-x-xam-puuuuu! Ela entrou no meio do jogo. Xampu deteve-se, os holodados brilhando numa das mãos. – Ei, qual é? – Eu só queria pedir desculpas por ter te assustado da última vez que a gente se viu. Xampu olhou-a de canto de olho. Não estava tão sujo como de costume, e seus olhos tinham cores diferentes – um verde, outro azul. Ele limpou o nariz com as costas da mão que segurava os dados. – Vai logo! – reclamou outro garoto. Mistletoe viu que Xampu examinava seu rosto. – Hã, acho que você tá falando com a pessoa errada – disse, por fim. – No outro dia você me viu na entrada da loja de velharias de Jiri. Você gritou meu nome, mas eu estava tentando me esconder e fiquei brava com você. Ele mudou o peso do corpo de um pé para o outro, desconfortável. – Não me lembro disso. – Tá, tudo bem. Eu me enganei. – Ela revirou o bolso de Anna 53


procurando algo para dar a ele e encontrou um broche de U dourado. – Você quer? Xampu a olhou desconfiado. – Pega. É seu. Ele estendeu a mão e pegou o broche. – Valeu. – Limpa o rosto – disse ela, e afastou-se dos garotos que continuaram jogando. Era verdade: neste lugar, Mistletoe era uma estranha. Era bem triste saber que este mundo quase familiar da subcúpula existia sem ela. Enquanto percorria as ruas apinhadas rumo à favela vertical de Dita, seus pensamentos começaram a vaguear. Estaria Anna 53 tentando desesperadamente se transportar de volta para seu corpo? Mistletoe estava aliviada por estar fora do alcance do sinal. Ela imaginou as duas disputando espaço no cérebro. Ficar presa junto com aquela garota seria um inferno em vida. Mas talvez Martin Bronzeado apenas a dispensasse. Talvez ele tivesse outras. Neste mundo ela era Anna 53. Será que isso queria dizer que em algum lugar viviam da Anna 1 à Anna 52? Ao pé de uma viela estreita que subia sinuosa até o alto da favela, Mistletoe passou por duas garotas que jogavam uma para a outra um grande caramujo verde-brilhante. Quando virou na rua de Dita, ficou tão aliviada em ver a casa ainda intacta que quase abraçou um dos arbustos em forma de lágrima. Ao aproximar-se da porta marrom (que sempre fora azul) ela olhou para o final da rua sem saída. Na lateral do bar de absíntio, um pôster rasgado na parte de baixo dizia: dois por um. Ela subiu os degraus da entrada e deteve-se quando estava a ponto de bater, a mão fechada a um centímetro da porta. Imaginou o que teria acontecido se tivesse adicionado Anna como Amiga. Qual seria a fase seguinte da Versão 3.0? O que exatamente ela estaria testando como usuária beta? Se viesse se esconder aqui, talvez nunca soubesse seu


verdadeiro prop贸sito. Ficou pensando nisso por um segundo. Ent茫o bateu na porta.


Martin deu um puxão violento no cachecol amarelo e Dita desapareceu. O cachecol pendeu de sua mão e então ele o atirou na planta que apodrecia, agora marrom. – Lamento que você tenha visto isso, Ambrose. – Onde está ela? – A Dita verdadeira foi vaporizada dias atrás. Ela conseguiu se explodir quando meus homens cercaram sua casa. Esta Dita era só um Perfil com I.A. básica. – Estou falando de Mistletoe. Martin cruzou os braços e olhou, através da porta, para a tempestade de dados. Estendeu um dedo e um Fluxo de Pensamento arremessou-se para dentro do escritório, prendendo-se a sua ponta. Martin torceu seu punho e a frase pés muito membranosos! escorreu de sua mão e caiu no chão. – Existe uma realidade paralela, semelhante à nossa – disse Martin. Ele estava quase de costas. Ambrose ergueu as mãos, as palmas quase se tocando. Ele não poderia se transportar para fora até descobrir o que havia acontecido com Mistletoe. – Você quer dizer que existe um número infinito de realidades paralelas – disse Ambrose. Isso era física básica de escola fundamental. Martin virou-se e voltou para a escrivaninha. Ambrose colocou as mãos para trás, segurando o pulso. – Mas quantas delas compartilham uma mesma rede social? – indagou


Martin. – Apenas uma que eu tenha conseguido encontrar. Ou devo dizer, que me encontrou. – A transmissão original. Nossas instruções de design – disse Ambrose. Ele desejou que sua habilidade de Fluxo de Processo funcionasse e levasse seus pensamentos para um ponto final lógico. Mas era impossível, e ele apenas podia supor. – Todos esses dados de Perfil estão fortalecendo a conexão entre nossos mundos. As redes sociais são a ponte, e isto é... – como Martin havia chamado? – ...um portal para nós mesmos. – O próximo nível de Amizade – concordou Martin. – Agora, a questão mais importante é quanto cobrar dos usuários pela oportunidade sem precedentes... Ambrose deu um passo atrás quando um vulto assombroso saiu pela porta. – ...de adicionar a si mesmos como Amigos. O vulto era um garoto que poderia ser um irmão gêmeo mais alto de Ambrose. Os ossos de sua face eram diferentes. Um tanto femininos, pensou Ambrose. E ele usava um terno marrom-claro com grossas listras horizontais vermelhas. Ambrose e seu gêmeo se entreolharam. Então o gêmeo estendeu a mão. – Sou Ambrose 47. Estou ansioso para começarmos nossa Amizade. – Bacana esse seu terno. – As diferenças entre nossas sociedades, embora sejam relativamente pequenas, vão parecer estranhas no começo. Sugiro que, para que nossa Amizade seja um sucesso, nós nos concentremos em assuntos da UniCorp e evitemos piadas e sarcasmos. É assim que eu falo?,pensou Ambrose. Ambrose 47 estendeu a mão de novo, caloroso. – Por favor, Ambrose, salve sua mente – disse Martin. – Aceite a Amizade, e prepararemos o laboratório para a calibragem. – E então o que vai acontecer? – quis saber Ambrose. Seu gêmeo pareceu confuso e voltou-se para Martin.


– Ele não recebeu instruções detalhadas? – Não se preocupe com isso – respondeu-lhe Martin. A planta era uma pilha de folhas marrons misturadas à poça viscosa no piso; a moldura de foto estava vazia. – A única coisa que importa agora é sua Amizade. – Ambrose, você e eu vamos selar o vínculo entre nossas realidades deste lado do portal – explicou Ambrose 47. – As duas Annas vão fazer o mesmo do outro lado. – Eu amo você, Ambrose – disse Martin. – É uma honra poder manter o portal – declarou Ambrose 47. – Estaremos contribuindo para a maior margem de lucro projetada da história da UniCorp. – Manter o portal? – Ambrose olhou para Martin, que havia se levantado e agora estava na frente da escrivaninha. – Você nos construiu para que nos tornássemos uma espécie de portal vivo? – Os dados de Perfil dos usuários são voláteis – respondeu Ambrose 47. – Nós somos capazes de controlá-los. – Já chega – disse Martin, indo na direção deles. – Nosso DNA foi especialmente fortalecido para existir em ambos os mundos – prosseguiu Ambrose 47, orgulhoso, – e para absorver uma quantidade espetacular de energia. – Você é um ser humano, Ambrose – disse Martin. – Você é meu filho. – Se desejam um momento a sós para discutir isso, posso me transportar para fora – ofereceu Ambrose 47. – Mas, claro, vou precisar de seu corpo real, Ambrose. – Claro – respondeu Ambrose. – Ele está em estase, junto com o de Martin. Ambrose 47 pareceu surpreso. – Na fazenda genética? Martin acertou o rosto de Ambrose 47 com as costas da mão. Ambrose bateu palmas uma vez. De volta ao buraco onde estava o carro da segurança da UniCorp,


Ambrose chutou a parede de terra. Foi invadido por uma onda imensa de vergonha e fúria. Sentia-se como o mais patético tipo de perdedor de Tetra Jack, aquele que é vencido e humilhado por jogadores mais espertos e continua voltando para perder e perder, a cada vez pensando que, finalmente, ia conseguir. O procedimento de Nível Sete tinha sido o trunfo de Martin, e ele havia jogado tão bem que Ambrose tinha praticamente implorado para ser submetido ao laser. Ele embarcou no carro. O teto do recinto subterrâneo abriu-se, revelando um quadrado perfeito do cinzento anoitecer do norte. O carro apontou para cima, emergiu da terra e disparou através da planície na borda da floresta. Em sua fúria, Ambrose acelerou ao máximo o veículo. Os pinheiros passavam como borrões. O céu estava tingido com garras espectrais vermelhas e alaranjadas. Para banir visões indesejáveis, ele pensou em Mistletoe, perguntando-se se ela teria se tornado Amiga da outra Anna. Ele não pôde evitar imaginar os dados de Perfil ondulando sob a pele dela como vermes parasitas. Ele pensou no que faria se encontrasse seu pai – Martin, berrou a si mesmo, batendo a mão através do brilho dos controles do painel – e torceu para ter estômago suficiente para encarar a situação. Então esvaziou a mente e concentrou-se na corrida alucinada rumo às luzes do distrito agropecuário, nos limites da Expansão da Nova Inglaterra. Escureceu o para-brisa para bloquear o brilho das estufas dispostas em degraus, que cascateavam pelas laterais dos atmoedifícios. Na grade de trânsito perimetral, ele penetrou no fluxo no nível das ruas, inserindo-se atrás de uma fila de transportadores de laticínios em forma de projéteis. Deixou a coordenação automática conduzi-lo alguns quarteirões mais perto do distrito central, e então ligou os propulsores e juntou-se à grade do nível superior. Passou diante de longas galerias cobertas de pastagens e salpicadas com rebanhos de gado adormecido, e então deteve-se na altura do antigo pasto elevado da Gen-Farm. Ele não vinha ali desde o dia que Len o fez atirar a bolinha por cima da borda.


Passou com o carro por cima da barreira de acrílico jateado e sobrevoou o terreno suspenso. Ambrose tinha certeza de que Martin equipara o edifício com um sistema de segurança totalmente automatizado. Com os guardas humanos, mesmo Associados de confiança da UniCorp, sempre havia uma chance de que alguém revelasse a localização. Mas a área estava tranquila quando ele pousou o carro perto da câmara central de irrigação. As vacas que pastavam ali perto nem sequer reagiram a sua presença. Ele saiu do carro e pisou no solo esponjoso. O edifício tinha mais de cem andares, e o corpo de Martin poderia estar em qualquer lugar. O primeiro passo seria conseguir penetrar em seu interior. Ambrose deu a volta à câmara de irrigação, inspecionando-a, mas era um cilindro de metal sem qualquer junta. Ele imaginou se poderia perfurá-lo com o carro de segurança. No ponto onde estacionara, duas vacas malhadas de marrom e branco tinham se movimentado e vindo pastar a poucos metros do carro. Ambrose ficou pensando por que elas estavam pastando de noite. Seriam criaturas noturnas? Ele não sabia muita coisa sobre vacas sintéticas. E agora ele estava pensando duas vezes quanto a abalroar a câmara de irrigação. Uma das vacas parou de pastar e ergueu os olhos sonolentos para estudar Ambrose. – Oi, garota – disse ele. A vaca abriu a boca, deixando cair um chumaço de capim. Uma luz brilhante alaranjada piscou dentro de sua garganta. Quando o disruptor emergiu, Ambrose já havia se jogado ao chão macio. O primeiro disparo abriu um buraco irregular no metal da câmara de irrigação. Ambrose ergueu-se e ficou agachado. O segundo tiro queimou o capim onde seu rosto estivera um momento antes. Ele deu duas passadas longas e lançou-se através do buraco, arranhando o braço nas bordas incandescentes, enquanto torcia o corpo em um mergulho desajeitado. Ele se perguntou a que distância cairia e como seria a aterrissagem. Então o choque com a água gelada amorteceu a dor lancinante em seu


braço. Ambrose ficou totalmente submerso. Uma luz fraca apareceu nos limites de sua visão. Ele nadou em sua direção, penetrando ainda mais na câmara. A luz vinha de uma janela circular, mais ou menos do diâmetro de sua cabeça, situada no centro de uma comporta estanque. Havia uma maçaneta, que ele tentou virar, sem êxito. Estava ficando zonzo. Se nadasse de volta para tomar ar, não sabia se conseguiria vir tão longe novamente. Ele ficaria preso ali, boiando na água até que seu corpo afundasse de pura exaustão. Ele reuniu o que restava de suas forças. Não sou humano. Fui construído para fazer coisas impossíveis. Ele apoiou os pés contra a lateral da câmara e puxou a maçaneta. Algo estalou em seu ombro; a dor era distante e sem importância. Ele fechou os olhos e fez força, até que finalmente a maçaneta cedeu. Ele rolou através da porta. Cuspindo água, meio nadando e meio rastejando, ele foi carregado pela torrente de água até conseguir colocar-se de pé. Estava num recinto vazio e enorme. A água da câmara continuou a jorrar da porta num arco magnífico. Ela inundou o recinto, subindo acima de seus tornozelos. Ambrose respirou fundo e olhou ao redor. Um emaranhado de canos no teto parecia destinar-se a distribuir a água da câmara. Ele chapinhou ao longo de um corredor estreito, seguindo por baixo dos canos. Para permitir ao usuário manter-se permanentemente inserido, o aparelho de estase devia manter-se refrigerado e hidratado. A fazenda genética já estava equipada para irrigação em grande escala. Era o lugar perfeito. Martin provavelmente tinha comprado o edifício inteiro. Ambrose seguiu os canos até uma sala onde havia duas fileiras de tubos de escaneamento abertos, arranjadas como as camas de uma sala de quarentena em um hospital. Ambrose percorreu as fileiras, examinando cada tubo. Estavam vazios. Apenas o último estava fechado. O garoto sentiu a resistência instintiva de seu cérebro às alucinações, que eram tênues e breves, antes de ser dominado por um temor crescente e pela sensação de que não haveria volta. Viu o reflexo difuso de seu próprio


rosto na superfície prateada do tubo. Então deslizou a metade superior, revelando a face de Martin, congelada com a boca em um riso forçado. A carne ao redor da boca murchara, reduzindo-se a uma membrana translúcida, fina como papel, que deixava à mostra gengivas rosadas e dentes amarelados. Os olhos eram manchas negras afundadas. Uma maçaroca de fios brotava de suas têmporas e por entre os ralos fios de cabelo no alto da cabeça. Ambrose piscou para tentar fazer o lugar desaparecer, sem sucesso. A boca de Martin se abriu, e a carne das faces se partiu, estendendo seu sorriso até as orelhas. Isto não é real. – Eu queria que fôssemos felizes – engrolou a garganta de Martin. A boca inútil pendia sem se mover. Ambrose não pôde evitar responder, embora tivesse uma vaga certeza de estar conversando consigo próprio. A visão do corpo acabado e atrofiado de Martin fez com que se sentisse mal pelo que estava a ponto de fazer. – Eu era feliz – disse, com franqueza. – Mas a vida que você me deu era uma mentira. Ele estendeu a mão para dentro do tubo, e o movimento liberou um cheiro nauseante, adocicado e enjoativo. Segurou o braço quebradiço de Martin. A pele era como uma gelatina espessa; se apertasse demais, ficaria viscosa e escorregadia. Um fio vermelho prendia-se ao meio da palma da mão esquelética. – Ainda há tempo. – A voz de Martin veio de algum outro lugar, e Ambrose não tentou saber de onde. – Podemos começar de novo. – Eu estou começando de novo – respondeu Ambrose. – Só que não aqui. Não com você. Ele ergueu o outro braço. A palma da mão estava conectada do mesmo jeito. Os tendões do pescoço magro de Martin contraíram-se e partiram-se. Um líquido marrom escorreu dos ferimentos, cheirando a carne podre.


Ambrose tentou firmar as mãos trêmulas. Sou mais forte que um ser humano. Ele deixou que os braços de Martin pendessem para fora do tubo. – Você não tem liberação de acesso para minha Plataforma Administrativa – protestou Martin. – É avançada demais para você. – Fui concebido para absorver infinitos dados de Perfil, lembra-se? Ambrose agarrou o pulso esquerdo de Martin e de um puxão retirou o fio vermelho. Posso fazer coisas impossíveis. Enterrou a ponta afiada na palma de sua própria mão, e a dor foi como uma garra incandescente que subiu por seu braço e alcançou o ombro. – Você precisa de calibragem – gorgolejou Martin, lamuriando-se. – Não faça isso, fique comigo. Com a sola do pé, Ambrose firmou o outro pulso de Martin na borda do tubo e arrancou o segundo fio. – Estou cancelando a atualização. Vou devolver àquelas pessoas suas vidas. – Você não está autorizado – insistiu Martin. Sua cabeça agitava-se de um lado a outro; a mandíbula abria e fechava, e os dentes amarelos partiamse ao entrechocarem-se. – Minha Plataforma Administrativa está encriptada. Você não tem liberação de acesso. Ambrose fechou os olhos. Sou forte o suficiente para controlar minha mente. – Liberação de acesso é para humanos. Ambrose sentiu quando a vida fugiu do corpo de Martin. Fez-se silêncio na sala. O garoto abriu os olhos e fitou o corpo frágil do homem que lhe dera a vida. Então introduziu o segundo fio na mão. Acima dele, os canos prateados de irrigação dirigiam-se para cima, formando lá no alto a abóbada de uma catedral de aço. Seus sentidos estavam amortecidos, exceto pela cruel percepção de que seu coração batia alucinado. A pressão em seu peito expulsou o que restava de seu oxigênio. Um beija-flor, pensou. Meu coração é como um beija-flor.


Ele mal podia se lembrar de seu próprio nome, e conseguiu dizê-lo apenas uma vez antes que sua mente ficasse totalmente em branco. ¬¬¬ Nas profundezas de um sonho fluido, Ambrose sentiu um gosto de ferrugem. Sua boca foi inundada por saliva. Ele engoliu o amargor metálico, desesperado por uma sensação que substituísse a lembrança de seu coração em disparada. O sabor era familiar, mais parecido com ácido de bateria do que com ferrugem. Uma comichão começou no fundo da garganta e espalhou-se para a base do crânio, uma coceira enlouquecedora que fazia com que quisesse partir a cabeça ao meio para aliviar-se. Havia completado o circuito de login. A sensação de coceira congestionava seu rosto. Quis levar a mãos para esfregar a pele, e descobriu que ou as mãos tinham desaparecido ou ele não tinha mais rosto. Teve a breve e terrível impressão de um buraco negro onde nariz e boca deveriam estar. Quando a onda de euforia o atingiu, Ambrose percebeu novamente todo seu corpo. Sentiu suas costas se arquearem como um gato UniPet e soube que havia morrido e renascido dentro do código fixo de Martin. A gloriosa projeção deixou atrás de si um calor interno, como se ele acabasse de tomar uma cápsula de chá. Estava em casa. E sua casa havia sido muito melhorada durante sua ausência. Viu-se sentado detrás da escrivaninha de Martin, no escritório de Greymatter. A cadeira perfeitamente calibrada fazia-o sentir-se ao mesmo tempo relaxado e cheio de energia. Reclinou-se e examinou Ambrose 47 em seu absurdo terno marrom e vermelho, tentando enxergar em seu equivalente algo além de um amontoado insignificante de dados coloridos. Ambrose 47 espanou algo em sua manga. – Isto não é nada profissional – disse em um gorgolejo distante e desagradável. Ambrose remexeu-se. Estava louco para livrar-se de seu equivalente e


explorar a Plataforma Administrativa que fora de Martin e agora era sua. O Unison respondeu a seu desejo, e a Plataforma eclipsou sua percepção, de modo que o escritório recuou até se tornar uma imagem na tela de uma tela, como a gravação granulosa de alguma transmissão pré-Unison. Ambrose 47 encolheu e virou uma manchinha esganiçada, distante, enquanto Ambrose acessava o Feed corporativo de Martin, um painel centralizado de análise de dados de Unison refulgindo como a Cidade Litorânea do Leste de noite. A interface era a coisa mais bonita que ele já havia visto. Ele não tinha apenas logado de volta à rede social; ele era a rede social. Os dados se separavam sozinhos, de acordo com a capacidade do próprio Ambrose de entendê-los, obedecendo a suas ordens não verbalizadas, como um professor que silencia a classe com um único olhar. Impressões de usuários em potencial, que nem sequer haviam começado a criar seus perfis, estavam traçadas em sua mente como se o Unison tivesse se estendido ao mundo real para cutucá-los no ombro e pedir que se inscrevessem. Este universo fazia sua antiga Plataforma Administrativa parecer um brinquedo. Dentro do agora diminuto escritório de Greymatter, a figura indistinta de Ambrose 47 ia ficando mais e mais agitada. – ...e não apenas isso, é uma violação da confiança do Diretor-Criador! – A voz era um zumbido de mosquito dentro da orelha de Ambrose. Naquele submundo de distrações inúteis fora dos confins da Plataforma Administrativa, Ambrose 47 falava e falava. A Plataforma respondeu a esse incômodo persistente apresentando a Ambrose um painel de deletar Conta. Ambrose consultou o Perfil de seu equivalente. A sua volta, a Plataforma estremecia de ansiedade. Deletar um usuário de uma realidade paralela com certeza era algo que nunca fora feito antes. Seria um estudo de caso bem interessante: se a deleção resultasse na morte de Ambrose 47, ao menos Ambrose teria subsídios para melhorar a segurança nas atualizações futuras do Unison. Seu dedo pairou sobre o nome de seu equivalente, piscando em letras vermelhas. Era algo tão natural estar no controle absoluto, ter suas tomadas de decisão totalmente integradas com a


Plataforma. Eliminar Ambrose 47 seria mais fácil que esmagar uma mosca. Então por que seu dedo estava paralisado, recusando-se a obedecer a seu comando? A resposta pareceu vir de uma mente à parte, que ele vagamente reconhecia como sendo a sua própria. Bem lá no fundo, ele sabia que uma deleção fatal não deveria ser mais fácil que esmagar uma mosca. Ele se forçou a olhar nos olhos de seu equivalente. Com muito esforço, ele se lembrou de que Ambrose 47 não era apenas a soma total de dados de Perfil e atualizações de Fluxos de Pensamento. Ambrose 47 tem ideias e sonhos. Como eu. Seu dedo estendido tremeu quando ele tentou resistir à pressão crescente dentro do crânio, por trás do nariz. Era seu dever deletar Ambrose 47 para ver o que aconteceria. O Unison era seu trabalho. Greymatter era seu escritório. A Plataforma Administrativa era seu lar. – Não – exclamou Ambrose em voz alta. – Não é assim que eu sou. Ele dobrou o dedo, afastando-o do nome de Ambrose 47 e dispensou o painel de deletar Conta. Sua testa parecia estar sendo aberta aos poucos por uma navalha. A Plataforma conhecia-o melhor do que ele próprio. Seria fácil livrar-se daquela dor: era só abrir de novo o painel e fazer o que o líder decidido de uma corporação, como Martin Truax, teria feito. Ambrose respirou fundo. – Eu não sou como ele. – Fechou os olhos e afastou uma visão horrenda de si mesmo como uma casca apodrecendo em um tubo de escaneamento irrigado. – Nunca serei como ele. A dor reduzira-se agora a um latejar surdo. – Do que você está falando? – a voz de Ambrose 47 de repente soou nítida e próxima. Ambrose abriu os olhos. A percepção do escritório ficou mais clara e moveu-se para o primeiro plano de sua visão. Ele estava cercado por prateleiras de vidro e molduras vazias. Ao lado da escrivaninha, a planta era uma massa de folhas mortas e talos quebradiços. Ambrose 47 tomou uma


forma definida e cruzou os braços. – Você não prestou atenção em nada do que eu disse. – Acabei de sacar que não vou matar você – comentou Ambrose. Ambrose 47 olhou-o por um instante antes de dirigir-se para a porta aberta atrás da escrivaninha. – Quando entregar meu relatório ao Diretor-Criador, não terei opção senão declarar que o teste beta da Versão 3.0 foi um fracasso. Ambrose girou a cadeira para fitar a onda de informações de Perfil que se avolumava, e lembrou-se do que ele viera fazer. – Espera! – chamou. Seu equivalente deteve-se junto à escrivaninha. Ele está condicionado a obedecer ordens, pensou Ambrose. Ele fez isso a vida toda. – É culpa minha que o teste tenha sido insatisfatório. Martin e eu tínhamos alguns pontos não resolvidos quanto à garantia de qualidade do lado de cá, que deveríamos ter discutido antes de sua chegada. – Eufemismo do milênio – redarguiu Ambrose 47. – Seu DiretorCriador me estapeou. Esperei pacientemente por uma explicação, e em vez disso ele desapareceu. Eu deveria ter ido embora de imediato. Ambrose ergueu-se e bloqueou a porta. Sentiu os dados de Perfil em suas costas, como uma rajada violenta de vento ártico. – Eu que devo ir – contrapôs Ambrose. – O relatório precisa ser feito por um representante do lado de cá. Ambrose 47 ponderou sobre aquilo. Seus malares pareciam projetar-se de forma quase obscena, como protuberâncias que desejavam transformar-se em chifres. – De acordo com meu Fluxo de Processo, seus objetivos não coincidem mais com este empreendimento. Ambrose dividiu sua percepção igualmente entre o escritório e a Plataforma. Ele precisava manter seu equivalente do lado de cá da porta enquanto desativava a atualização. – O que você faz em seu mundo para se divertir, Quarenta e Sete?


– Aprimoro meu conjunto de habilidades gerenciais. Ambrose ordenou à Plataforma que exibisse os arquivos particulares de Martin, a programação da Versão 3.0 que Len estivera tentando localizar durante o último ano. A Plataforma obedeceu; já não tinha nenhuma influência sobre a consciência do garoto. Ele estremeceu ao pensar que quase havia se deixado transformar em outro Martin. Três longas hastes de dados iluminaram-se de branco no painel do centro da Plataforma: o design, a programação e a implementação da Versão 3.0. – Eu costumava ser como você – comentou Ambrose. – Compartilhamos o material-base. Ambrose tentou extrair os arquivos e sentiu a encriptação de Martin pressionando-o, como uma membrana de aço plástico superaquecida, que se distende mas nunca quebra. Liberação de acesso é para humanos. Ordenou à Plataforma que lhe permitisse o acesso. A encriptação protestou com manchas brilhantes na periferia de sua visão. Ele fez uma careta quando ácido de bateria jorrou em sua boca, e então a encriptação dissolveu-se com um tranco que lhe embrulhou o estômago. – Quero dizer, a rede social costumava ser minha vida – disse. – Tenho dois milhões, trezentos e quarenta e sete mil e sessenta e oito amigos – anunciou Ambrose 47. – Sério? Eu tenho uma. – Ambrose ordenou que a Plataforma deletasse os arquivos, e deu um rápido busca-e-destrói para o caso de haver backups. As três hastes desapareceram. – O nome dela é Mistletoe. As paredes de Greymatter pareceram dar um profundo suspiro de alívio quando os dados de Perfil capturados reverteram seu fluxo e começaram a escorrer da porta para dentro do escritório. Ambrose 47 piscou os olhos quando uma grossa fita vermelha, branca e azul de convites para o Evento de 4 de julho passou serpenteando junto a sua cabeça. – Eu sabia que meu Fluxo de Processo estava correto. – Ele sacudiu a cabeça, desaprovador. – Você ficou louco.


– Já me disseram isso. – Ambrose recuou um passo. As pontas de seus dedos ficaram insensíveis. – Escuta, que tal você ser o novo Presidente da Unicorp? Nervoso, Ambrose 47 alisou as lapelas de seu terno. – Esse sempre foi o objetivo primário de meu plano de dez anos. Mas você não pode simplesmente... – Vamos dizer que seja seu sonho. – O quê? – Diga que esse tem sido seu sonho. – O protocolo da UniCorp me proíbe de expressar... – Apenas diga em voz alta, Quarenta e Sete! – Sempre foi meu sonho. – Qual? – Um dia dirigir eu mesmo a companhia. – Então parabéns pela promoção. – Não estou qualificado para dirigir a UniCorp do lado de cá. – Vai dar tudo certo. Mas sugiro que encontre um novo escritório para você. Ambrose recuou para os restos do motor da Versão 3.0, onde foi de imediato envolvido pelos Fluxos de Pensamento que açoitavam ao redor como enguias alucinadas. Curtindo uma salada completamente irreal. Então contei tudo e ele ficou passado. Divirta-se e diga a seu primo que mandei um oi. Ambrose vislumbrou uma manga vermelha e marrom quando Ambrose 47 estendeu a mão através da porta e foi repelido pelo enxame de dados. Seus olhos e orelhas pareciam imensos, quando a infinidade de visões e sons deslizaram pela superfície de seu corpo. A atualização estava sendo encerrada. Ele se moveu rumo à vaga silhueta de uma luz débil. Um cheiro de cabelo queimado o fez prender a respiração. Pensou em Mistletoe e tentou colocar-se em seu lugar: que faria ela ao se ver em um novo mundo


que n達o era t達o diferente do antigo? Para onde iria? Ao emergir dos escombros da vida que havia sido planejada para ele, Ambrose tinha certeza de saber onde procurar.


Mistletoe perguntava-se se havia alguém em casa quando um pequeno retângulo abriu-se no centro da porta e um olho castanho olhou para fora. Ela achou que deveria tomar a iniciativa de apresentar-se, mas não sabia nem por onde começar a explicar a situação, e muito menos no degrau da entrada. Então lhe ocorreu que não precisava explicar nada, e que talvez fosse melhor não fazê-lo. – Oi – disse. O olho se apertou. – Meu nome é Mistletoe. Estou... – O quê? Cansada? Assustada? Confusa? – ...com sede. O retângulo fechou-se. Um instante depois a porta se abriu. Era tia Dita. Suas feições eram mais angulosas, quase como um dos Chmura Dité, mas sem dúvida era ela. Estava até usando o cachecol amarelo. Mistletoe precisou morder o lábio por dentro para não pular em seus braços. Dita examinou com o olhar a desconhecida lá de cima parada em sua porta. – Você está longe de casa – disse secamente, com um leve traço de seu sotaque tão familiar. Não ficou de lado e nem convidou Mistletoe para entrar. – Também estou perdida. Dita riu.


– Como conseguiu vir de tão longe e chegar até aqui? – É complicado – o coração de Mistletoe socava seu peito. Estou falando com Tia Dita, pensou, e ela não faz a mínima ideia de quem sou. Não parecia real. Dita olhou por cima do ombro. – Jiri! Traga água. Mistletoe ouviu alguém resmungar dentro da casa, e em seguida o barulho de panelas e palavrões abafados. Dita deu um sorriso cauteloso. – Então... você precisa de ajuda para voltar para casa? – Não – respondeu Mistletoe, quase acrescentando Estou em casa! Houve um longo intervalo. Jiri apareceu com um copo de líquido turvo. – Água – disse, passando o copo para Mistletoe sem hesitação, como se desconhecidos com sede fossem algo comum por ali. – Esta é... Mistletoe? – apresentou Dita. Mistletoe confirmou com a cabeça, tomando a água. Tinha gosto de enxofre e parecia ter areia e era a melhor coisa que ela já tinha tomado. – Mistletoe – repetiu Jiri. – Hunf. Ela tomou a água até o fim. De fato estava com sede. Ficaram em silêncio um instante até que Jiri pediu licença erguendo um dedo. Mistletoe ouviu o ruído metálico de sua cusparada na pia da cozinha. – Maj buhe – suspirou Dita. – Os hábitos desse homem... – Eu sei – disse Mistletoe. – E obrigada pela água. Ela ainda segurava o copo vazio. Dita estudou-lhe o rosto. – Você gosta de chá? Já íamos fazer. ¬¬¬ Mais tarde, quando estavam terminando de beber o chá, algum outro visitante inesperado bateu à porta. Jiri e Dita se entreolharam. – Isso aqui virou a estação do Oitavo Quadrante de Nova York – resmungou Jiri, erguendo-se. – Estamos batendo algum recorde – concordou Dita. – Esperem! Eu atendo – disse Mistletoe, levantando-se com uma pressa


que surpreendeu até a ela. Dita lançou-lhe um olhar furioso. – Está esperando alguém? – Não sei – respondeu Mistletoe. – Mais ou menos. Antes que Jiri pudesse se adiantar, Mistletoe correu para a porta de entrada. Pousou a mão na maçaneta e parou, preparando-se. E se não fosse ele? Toc, toc, toc. Ela abriu. – Eu disse que te encontraria – falou Ambrose. – Bonito corte de cabelo. – Bonito rosto. – Quem é? – gritou Jiri, da cozinha. – Um velho amigo – disse Mistletoe, pegando na mão de Ambrose.


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