Debate entre construtivismo e método fônico

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Debate sobre as diferentes teorias e métodos de alfabetização Por Elisa Baeninger e Ricardo Gouvêa Véspera de prova, sinônimo de tensão na casa de Henrique Pescarini. O aluno do colégio construtivista Escola Comunitária de Campinas começou a ser avaliado por meio de provas somente aos 10 anos de idade, cursando o quinto ano do ensino fundamental, e ainda não está acostumado com o sistema de avaliação. A utilização de provas mais tardiamente é característica do construtivismo. Henrique e seus colegas de classe ainda tentam desvendar como se estuda para as temidas provas, enquanto sua prima da mesma idade, estudante de outra escola, que adota outra linha de alfabetização, já está familiarizada e tranqüila com a questão há muito tempo. Tal insegurança gera a insegurança da mãe quanto à confiança na escolha do método de alfabetização aplicado na escola de seu filho. Nas escolas públicas, nas quais o modo de aprendizado que será utilizado não é escolhido pela mãe, mas sim pelas instituições governamentais, a questão da eficácia quanto ao método escolhido fica ainda mais complicada. Recentemente veio à tona um debate envolvendo a eficácia do método fônico e do método construtivista. Segundo Ana Lúcia Guedes, professora da Universidade Estadual de Campinas e mestre em Educação com ênfase em Ensino e Formação de Professores, o debate entre os adeptos da linha construtivista e os partidários do chamado método fônico veio à tona há alguns anos por diversos motivos. Primeiro, pela decisão do Ministério da Educação de rever os métodos de alfabetização propostos nos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs), que são orientações para o trabalho do professor. Segundo, em relação ao pouco sucesso da escola em garantir o domínio da leitura e da escrita aos alunos iniciantes do ensino fundamental. Segundo dados do Saeb (Sistema Nacional de Avaliação da Educação Básica) e da Unesco (Organização das Nações Unidas para a educação, a ciência e a cultura), foi o construtivismo que reinou absoluto, mas que também fracassou no Brasil. Uma pesquisa feita entre 1995 e 2003 pela Unesco relatou que o construtivismo tem produzido repetências escolares anuais de mais de cerca de

O construtivismo tem origens nas idéias e pressupostos de Emília Ferreiro, psicóloga e pesquisadora argentina

20%, o que contribuiu para que o Brasil conquistasse a posição de vice-recordista mundial em incompetência. “Como esse impasse não foi bem sucedido através do construtivismo - que esteve em "alta" por muito tempo - os defensores do método fônico passaram a questionar e a colocar em xeque as propostas consideradas progressistas, levando em conta que o método fônico foi adotado com êxito por países ricos (França, Estados Unidos, Inglaterra)”, destaca Guedes. O princípio do método fônico é bem distinto do construtivista e consiste em ensinar fazendo com que a criança associe rapidamente letras e fonemas. Ou seja, a criança relaciona que o código que representa a letra "a" é associado ao som "a". Para fixar a didática, no entanto, é preciso um material exclusivo com textos produzidos para esse fim. Já o método construtivista prevê a entrada da criança no mundo da leitura e da escrita pelo contato com os textos, com a palavra escrita que vai sendo paulatinamente separada em letras e sílabas para que a criança se aproprie da linguagem verbal. Os construtivistas rejeitam a prioridade do processo fônico e, principalmente, o uso de um material único a ser aplicado para todos os alunos. Por isso,


as escolas dessa linha tendem a usar textos já escritos por outros autores, que estejam próximos da realidade da criança no processo de alfabetização, enquanto o método fônico se baseia em evidências científicas sobre o papel das habilidades de compreender os sons na alfabetização e de que é preciso, de início, garantir o aprendizado primeiro em si, para, só depois, investir no ensino que leva à leitura e à produção de textos. “O que complica o impasse é que muitas vezes os defensores do construtivismo não colaboram com a eficácia na alfabetização por adotarem uma proposta ortodoxa de didatização da linguagem e do aprendizado do alfabeto, e negam evidências científicas eficazes provenientes de outros métodos teóricos”, afirma Guedes. Artur Gomes de Morais, em Concepções e metodologias de alfabetização: por que é preciso ir além das discussões dos velhos “métodos”, descreve que os defensores, antigos e atuais do método fônico crêem que: seria fácil para o aluno segmentar a palavra oral em fonemas, pronunciando-os isoladamente. Tal procedimento constituiria um requisito para a aprendizagem bem-sucedida das relações letra-som e para aprender a “codificar” e “decodificar” palavras, seria suficiente um casamento da habilidade de segmentá-las em fonemas com a capacidade de memorizar as letras que a eles correspondem, dominando o seu traçado. Estudiosos e defensores do método no Brasil e no exterior afirmam que a escrita é um código e que para dominá-lo, as crianças teriam que aprender que as letras correspondem ao som da fala. Uma pesquisa feita no Rio Grande do Sul pela fundação Cesgranrio e a Secretaria do Estado constatou um dado interessante. O estado escolheu aleatoriamente 677 turmas de primeira série em 536 escolas, que receberam quatro tipos de intervenção na sua metodologia de alfabetização: um grupo seria instruído através do método construtivista, a cargo do GEEMPA (Grupo de Estudos sobre Educação, Metodologia de Pesquisa e Ação), outro pelo método fônico, do Instituto Alfa e Beto, outro pela metodologia do Instituto Ayrton Senna e um último grupo serviria de controle, recebendo a instrução baseada nos Parâmetros Curriculares Nacionais elaborados pelo governo federal. Foram realizadas provas e o resultado foi que o método fônico teve o melhor desempenho: 74,5% dos alunos deste método ficaram acima de um resultado de 40 pontos (o limite do nível "insatisfatório"), contra 68,2% do método construtivista. O desempenho do método foi bom, diante da resistência dos educadores a

abdicar o método construtivista, e mesmo assim 43% dos alunos submetidos ao fônico obtiveram desempenho acima de 90 pontos ("muito bom"). No entanto, a pesquisa é mínima levando em conta que foi feita somente no Rio Grande do Sul, ainda que os números encontrados não sejam irrelevantes. Tanto não foram irrelevantes que serviram de base para a decisão do governo, em novembro de 2007, de implementar no Rio Grande do Norte o programa Alfa e Beto (partidário do método fônico) da Agenda da Educação que tem como meta reduzir os índices de analfabetismo no estado até 2010. O debate envolvendo o método fônico e o construtivista foi motivo de discussão entre Fernando Capovilla e Telma Weiss em uma entrevista a Folha de São Paulo. De um lado, Fernando Capovilla, professor do Instituto de Psicologia da USP e defensor do método fônico, esclarece que ele é baseado no ensino do código alfabético, das relações entre a escrita e o som. Atividades, como brincadeiras, são usadas para ensinar as crianças a codificar a fala em escrita, e também o oposto, decodificar a escrita na fala. Para o professor, esse método é inteligente e eficaz na compreensão e produção de textos, pois fortalece o raciocínio e a inteligência verbal. “Leva as crianças a serem alfabetizadas muito bem em quatro ou seis meses, quando passam a ler textos cada vez mais complexos e variados”, garante Capovilla. Para ele, uma boa escola é aquela que desenvolve nas crianças habilidades e competências. De outro lado, Telma Weiss, pesquisadora e defensora do construtivismo, acredita que o favorecimento do método fônico em países ricos se deu por reações a movimentos locais particulares e específicos. Nos Estados Unidos, por exemplo, foi uma resposta ao método conhecido como linguagem total, cuja proposta defendia a imersão no universo dos textos escritos como o suficiente para ensinar a ler e a escrever. Weiss diz que a impressão de estar remando contra a maré enquanto outros países priorizam o método fônico é equivocada. A defasagem em que se encontra o Brasil fez com que nós tivéssemos que importar idéias e práticas, sem considerar seus contextos de origem. Para a educadora, os alunos das classes baixas, que estudam na rede pública, são os que apresentam maior dificuldade e precisam de um atendimento baseado no diálogo, o que parece óbvio, mas muitas vezes nem se passa peça cabeça das professoras da escola pública. “As crianças oriundas de famílias cujos pais são pouco escolarizados precisam ser introduzidas no mundo


da cultura escrita para entender o que o professor está falando quando informa sobre letras e sons”, argumenta Weiss. Para estas crianças, a escrita é um jogo de sinais gráficos aleatórios e elas precisam trabalhar e pensar bastante sobre este objeto sociocultural para compreender a relação entre letras e sons dentro de um sistema alfabético. Ambos os autores concordam que, para os alunos das escolas particulares, qualquer forma de ensinar terá um êxito maior. Eles vêm de ambientes onde a escrita é muito presente no material impresso que circula pela família e nas práticas sociais que as envolve. Seus pais dispõem de recursos para estimular os filhos desde a infância. Seja jogando videogame ou folheando revistas. Os saberes relacionados à escrita e leitura dessas crianças são mais avançados do que os saberes daquelas oriundas de comunidades pouco escolarizadas. O engenheiro aposentado Marco Antônio Gouvêa, de Campinas, colocou seus filhos em um colégio adepto da linha construtivista, a Escola Comunitária de Campinas, e afirma que a alfabetização deles foi muito bem sucedida. “Na década de 80 meus filhos foram alfabetizados pelo método de Emilia Ferreiro e os professores instruíam aos pais para não falarem sobre certo ou errado. Assim, num dado momento do processo de alfabetização uma criança escrevia ‘ghicaa’ e dizia que ali estava escrito galinha. Nós concordávamos. Como num passe de mágica, depois de algum tempo ‘ghicaa’ virava ‘galinha’ e o processo de alfabetização se passava de forma ‘suave’”, explica Marco. Nenhum de seus filhos apresenta seqüela desta época, muito pelo contrário, para eles uma redação é algo fácil. Já para ele, escrever ainda é complicado. “Na minha época a filosofia escolar vigente era a de que nós éramos ensinados. Piaget, um psicólogo que estudava as crianças, dizia que apenas saberíamos o que é um emprego no dia que estivéssemos empregados. Não adianta nos ensinarem a respeito. Esta forma de pensar permeia o método construtivista nascido com Piaget e meus quatro filhos tiveram a chance de terem sido nele educados”, comenta. Ainda na década de 80, Marco pôde ver no ambiente construtivista da Escola Comunitária uma forma de liderança em uma natureza diferente da vigente no meio empresarial de nossos dias. Assim, o ambiente construtivista traz a vantagem de permitir o aparecimento de outras formas de ação em contextos diferentes do cognitivo da educação. “Por isso, o que considero

de maior importância não é a aplicação do método no contexto educacional, mas a repercussão dessa aplicação em outras áreas da vida”, conclui.

“Com os erros dos alunos, o professor tem que planejar o trabalho” Bernadete Abaurre O construtivismo tem origem nas idéias e pressupostos que Emília Ferreiro, psicóloga e pesquisadora argentina, fez em seu doutorado na Universidade de Genebra, sob a orientação de Jean Piaget. Ela defende a idéia de uma psicologia que tem a capacidade de adquirir conhecimento, que discute o sujeito psicológico. Esse sujeito (abstrato) constrói o conhecimento, ele não é uma tabula rasa, ele interage com informações, ele é curioso, ele faz perguntas, ele faz hipóteses, ele ajusta hipóteses a partir da interação que vai tendo com os elementos de realidade, quaisquer que sejam para construir conhecimento. Emília questiona em sua tese de doutorado como uma criança genérica constrói um conhecimento sobre o que é essa ferramenta chamada escrita. A partir dessa pergunta ela vai formular suas hipóteses e vai fazer experimentos clínicos com crianças para ver se, provocadas, as crianças fazem hipóteses sobre a escrita. Ela pedia para as crianças escreverem uma palavra para ver o resultado. Então ela verificou, por exemplo, que algumas delas escreviam “borboleta” com apenas quatro letras (bblt). Isso acontecia porque elas achavam que havia uma letra por silaba. Nessa discussão ela propõe que esse indivíduo virtual elabora hipóteses, então ela identificou estágios da linguagem escrita. As crianças mais ou menos refazem o percurso que a própria humanidade trilhou ate chegar à escrita alfabética. Existe um nível pré-silábico, em que a criança tenta utilizar no mínimo duas ou três letras para poder escrever palavras; um nível silábico em que as crianças fazem hipóteses fonográficas (o que ela escreve tem algo a ver com os sons) e um nível alfabético, no qual ela aprende que a sílaba não pode ser considerada uma unidade e que pode ser separada em unidades menores. Para a lingüista Maria Bernadete Marques Abaurre, da Universidade Estadual de Campinas,


a dificuldade que as crianças têm para entender a base da escrita tem a ver com o fato de que há uma dificuldade em entender que há uma letra para cada fonema. “No início queremos que a criança se de conta de como funciona a escrita. O problema é que ninguém quis explicar isso para os professores. Então algumas pessoas emprestaram a proposta da pesquisa acadêmica da Emília Ferreiro e transformaram isso num método”, comenta. Emília não criou um método de alfabetização e sim procurou observar como se realiza a construção da linguagem escrita na criança, é uma proposta de trabalho pedagógico. “Os resultados de suas pesquisas permitiram que novos caminhos fossem apontados a fim de evitar os erros mais freqüentes daqueles que alfabetizam, desmistificando certos mitos comuns em nossas escolas”, explica Abaurre. Ao transformar as idéias em um método, tudo se complica. Não basta entender como funciona, é necessário que o professor pense na construção da sua maneira de trabalhar. Há décadas o ensino brasileiro debate com essa questão. “Todo mundo viu a produtividade que pode ter um trabalho baseado nos pressupostos de uma pesquisa como essa, as implicações pedagógicas disso. Mas as pessoas estão travadas no como de fato usar esse conhecimento para a sala de aula, para os alunos”, argumenta Abaurre. Considerando as várias críticas à maneira como trabalham os construtivistas, é que surgem os chamados métodos fônicos. O fônico nada mais é do que um método baseado numa coisa evidente, ou seja, a escrita alfabética funciona a partir do principio que existe um símbolo para cada fonema. Daí não decorre necessariamente que para ensinar a escrita alfabética é preciso usar o método fônico. O pressuposto é que primeiro as crianças são treinadas na percepção de sons e diferenças de sons supondo-se que isso facilita depois a apreensão da escrita. Tal percepção é uma falácia. “Seria ideal trabalhar de outra maneira fazendo com que essa curiosidade natural da criança pela escrita se manifeste em proposta de escrita, fazendo referências ao som quando necessário”, comenta Abaurre. Falar “cada” e “cata”, por exemplo, é muito parecido. Ao trazer informações sobre os sons não estamos ajudando a resolver o problema. “O fônico já pressupõe que, preventivamente, se passa um longo período fazendo esse tipo de exercício. Essa é uma crítica

que eu faço ao método. Uma coisa são os sons da língua, outra coisa é estudar a escrita como ferramenta cultural”, defende Abaurre. O método fônico não é necessário se o professor souber trabalhar direito com um conhecimento que ajuda a entender como é que as crianças de diferentes meios sociais mergulham no universo de escrita. Então o fônico tem esse problema porque ele cria uma expectativa na criança que vai se frustrar imediatamente. No momento em que ensinamos como é que se usa o “z”, passa-se horas treinando o seu som. A criança vai saber porque ela coloca o “z” em zebra, mas vai ficar em dúvida ao ter que colocar o “s” em asa, já que o som é o mesmo. Criar uma expectativa de uma relação unívoca entre letra e som vai frustrar imediatamente a criança quando ela quiser escrever. Essencialmente a criança tem que entender a base. A partir daí ela precisa entender que cada palavra tem a sua forma e a escola vai colocá-la em contato com a forma correta de escrever as palavras. Ou seja, sem criar a expectativa de que a linguagem oral é cópia fiel na escrita. Se criar essa expectativa, como a criança lidará com a diferença dialetal? A palavra em si não esta comprometida com som nenhum, ela abre possibilidades dessa variação que existe no aprendizado dos fonemas da língua. A grande tarefa é informar os educadores da melhor maneira para eles fazerem um bom trabalho. Mas isso é tarefa de cada professor. Fazer essa discussão implica apostar na capacidade de um professor se virar. Não existe uma receita ótima para qualquer sala de aula. Depende dos conhecimentos do alfabetizador, dos alunos, do conhecimento das noções básicas da escrita e da sua condição de acompanhar essas crianças. “As pessoas tem que ter objetivo, tem que ter uma metodologia, uma maneira de trabalhar para conseguir chegar a um determinado objetivo. Tem que promover o aparecimento do texto. Com os erros dos alunos, o professor tem que planejar o trabalho com os mesmos”, argumenta Abaurre. Falta autonomia, o professor tem que dispor de um conhecimento adquirido na sua formação. Ele precisa ser crítico, avaliar prós e contras. Ter referências e reflexões próprias para entender e se posicionar.



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