Lacerações da carne (amostra)

Page 1

Ricardo H. Rodrigues

Lacerações da Carne Fotografias de T.W. Jonas

Ela estoura em arroubos crepusculares. Caga flores e fazemos saladas. Na contra mão do amor. E, depois do fim do mundo, um novo processo. Antes me restavam alguns trunfos. Agora só queixa, a queda do perdedor. Humilhado. Ela me atraiu, me traiu. Ao lado dela fiquei constrangido até de pensar. Ela estava com a faca e o queijo na mão.

Lacerações da carne

1


2


3





Lacerações da carne



Ricardo H. Rodrigues

Lacerações da carne

Fotografias de T.W. Jonas



Sem meias palavras, os narradores de “Lacerações da carne” utilizam um vocabulário que vai direto ao ponto, nomeando órgãos, orifícios e secreções que entram em ação no ato erótico. Fala-se em “rego sinuoso e sinistro do cu”, “pica alta, enxuta, soberba e robusta”, “triângulo de pelos encobrindo a racha de lábios ouriçados que babam cobiça”, apenas para mencionar expressões usadas no curto “Teste de anatomia”. Tal título aponta com precisão um mecanismo frequente nestas pequenas histórias: mapear o corpo, conhecendo-o e testando as infinitas possibilidades que o corpo humano possibilita. O encontro de um cliente e de uma prostituta em uma noite de Carnaval, rápidas palavras trocadas em um banheiro entre um homem que se masturba e a dona da boca úmida que motivou um gozo masturbatório, jovens que se encontram em uma orgia: breves contos relatam breves contatos, em uma aproximação pertinente entre forma e conteúdo. Para expressar as relações estabelecidas pelas carnes laceradas que dão título ao volume, a linguagem apresenta-se seca e fragmentada, tal como o


contato erótico que se descreve e diálogos ácidos trocados em cenas curtas acabam por compor um painel de relações breves e, em grande medida, superficiais. Os personagens das histórias observam, ora com indiferença, ora com momentâneo desejo, os corpos que se sucedem, uns após os outros. Em “Sodomia de domingo”, o narrador constata a excitação de um modo que beira o tédio: “Cinco jovens de cabelos longos de cores diversas, magras e despidas, vão e voltam, param e, com a cabeça em movimento de cadeira de balanço, me provocam uma ereção”. As fotos apresentadas no volume formam um conjunto indissolúvel com as histórias aqui presentes. Nessas imagens, representa-se visualmente o embate que se trava ao longo das narrativas: um jogo em que revelar e dissimular são duas faces da mesma moeda. Ao observar as fotos, vemos corpos nus em posições eróticas, mas essa precisa e clara exposição pouco nos revela sobre o que se passa. Processo semelhante ocorre nas histórias, pois não conseguimos ver com clareza o que ocorre por trás do desfile de corpos. Ao leitor cabe todo o prazer do desvendar os sentidos apenas aparentemente evidentes.1

1 Thais Torres de Souza é doutora em Literatura Brasileira pela USP. Em sua tese de doutorado pesquisou o erotismo em contos de Caio Fernando Abreu.




agradecimentos


16


A civilização transformou o planeta numa bela, grande e eficiente latrina. Eis que me submeto a todos os ritos mundanos: imerso na idiotia.

17


18


19


20


Sumário Glória eruptiva ........................................................................ 19 Esbórnia .................................................................................. 20 Loucuras comedidas ................................................................ 21 A bela intrigante ...................................................................... 23 Com a faca e o queijo .............................................................. 24 Cumplicidade .......................................................................... 25 Monogamia ............................................................................. 26 Com os brancos dentes ............................................................ 27 Teste de anatomia .................................................................. 28 Fora de órbita ......................................................................... 30 Domingo insalubre ................................................................... 32 A descoberta do segundo sexo ................................................ 35 Nenhum lugar fora da terra ..................................................... 37 A cidade na noite de carnaval .................................................. 41 Boca úmida .............................................................................. 45 Os filhos da puta vida de merda .............................................. 49 Conto urbano .......................................................................... 53 Sodomia ................................................................................... 57 Que forte vontade de sol ............................................................ 59 A ponto de bala ...................................................................... 63 Considerações intempestivas de um assalto ............................ 73 O deserdado da sociedade ....................................................... 79 O terrível zunir da vulva .......................................................... 83 A noite .................................................................................... 89 Lacerações da carne ................................................................. 92 Créditos das fotografias ........................................................... 102 21


22


Glória eruptiva

Em vez do bolo me atirou os ovos e a farinha na cara. Pegou a vassoura e me tacou o cabo entre as pernas. Eu, no chão; ela nua. Cuspiu da boceta a gosma branca. Junto vieram os gases nobres da bunda. O calor foi subindo, subindo. Gregório despertava um vulcão. “Não fode tanto, filho! Não fode tanto!” Gregório febril. Glória eruptiva. Nono cliente do dia, vigésimo quinto da semana. A sensação tântrica dispersando-se pelo corpo. Então, explodiu. Bingo! O berro ecoou pelo hotelzinho. Gregório caiu prum lado, Glória pro outro.

23


Esbórnia

Quanto mais se dorme, mais se dorme. “Acorda, piranha!” Com os olhos esbugalhados tenta levantar, caindo logo em seguida de volta na cama. A morte é um sono profundo. “Se fosse escolher alguém pra levar pruma ilha deserta, escolheria você, sabia?” A esbórnia não está acessível, mas me afogo nesses seios sem pesar. Metendo não só o olho, mas também o pau no buraco da fechadura. “Você, que passa horas melindrosas pra verificar se a cueca está limpa.” Ele chegou. “Que se passa?” E todos deixaram seus postos. O violino monocórdio espocou a corda. O gemido da pomba alcançou a nota máxima. A estação popular saiu do ar. E a chuva caiu de vez, num estrondo de gotas sobre o solo.

24


Loucuras comedidas

“Comi uma puta e a camisinha estourou. Ela ficou histérica e gritou que eu nunca mais enfiaria a porcaria do meu pau nela.” Fricções sem orgasmo. Um vulcão entre as pernas. Comichão lascivo. “Na próxima eu gozo.” “O quê? Você comeu o cu sujo de uma puta?” “Ela gemia como arrulha um pombo.” Rose olhou para Kely e disse: “Eu entendo o amor com tesão. O amor sem tesão eu não entendo”. Glória saiu do hotelzinho. “Porra! Eles ficam bolinando meus orifícios... Deu agora a maior vontade de cagar, mijar, gozar.” “Te faço mais barato, garotão, se você me deixar meter também.” Glória saiu do hotelzinho. “Ufa!” Rose olhou para Kely e disse: “Eu gosto de loucuras comedidas. De loucuras demais, não”.

25


26


A bela intrigante

A porta para o ventre. Duas vias de inacessibilidade. A maquiagem compondo o quadro, ornando o rabo de duras faces rechonchudas. Dois apreciadores. “Eu conheço este rabo.” “Eu conheço este charuto.” “É a bela intrigante.” O rabo transversal. O charuto no centro, aceso.

27


Com a faca e o queijo

Ela estoura em arroubos crepusculares. Caga flores e fazemos saladas. Na contra mão do amor. E, depois do fim do mundo, um novo processo. Antes me restavam alguns trunfos. Agora só queixa, a queda do perdedor. Humilhado. Ela me atraiu, me traiu. Ao lado dela fiquei constrangido até de pensar. Ela estava com a faca e o queijo na mão.

28


Cumplicidade

Bendito seja o fruto entre as mulheres. Bendito os pelos da barba roçando as pernas. Uma vez que no mundo não há mais do que matéria em movimento. Parco, pouco, curto. De repente, ela ficou muito interessada no que eu estava fazendo. “Fiquei olhando e tentando perceber a diferença”, disse. “Você segurava um ovo e me olhava, novo. Deve ser bom ter barba. Mudar o rosto”. De repente ela ficou muito interessada. Considerou os pelos. “Fiquei pensando no que muda. Ter pelos sobre os olhos. Cílios de proteção. Sedutores pelos negros compondo o movimento de piscar e transmitir cumplicidade.”

29


Monogamia

Padecendo de monogamia. Entre uma e outra axila. Vejo a força do orifício imberbe. A força do contorno até os quadris. Abaixo, montanhas, dunas sob sol inclemente. Sei do risco que corro de morte por atropelamento. Da fragilidade do corpo diante do impacto. Desculpe, por pura distração, gozei dentro.

30


Com os brancos dentes Sorria sempre. Dizia que todos eram idiotas. E sorria. Que a morte era um belo fim para sua história. E sorria. Que era tudo imitação. Um coro de vozes. Uma porção de vezes repetidas. E sorria. E sorria. Ela dizia, com os brancos dentes, que não valia lágrimas a vida.

31


Teste de anatomia

Pica alta, enxuta, soberba e robusta entrando pelo rego sinuoso e sinistro do cu. Triângulo de pelos encobrindo a racha de lábios ouriçados que babam cobiça. Dedos compridos de unhas mal feitas abrindo o traseiro empinado, esperando a pica enfiar-lhe rija. Picada de glande inchada, injetada, cabeça sem casca, eriçada, cheia de veneno. Pus que fervilha, vida que se inflama. Cilíndrico reto finito de esfíncteres soturnos que comprime o sanguíneo membro, que cheio, sob pressão, bufa. Espuma lânguida, cera densa que jaz em torno, lubrificando o espaço e auxiliando os corpos que se fodem e se fundem.

32


33


Fora de órbita Era difícil ver, mas via, sabia do que se tratava, do lugar no qual estava, difícil era ter certeza. Duas mãos que se alongam, paralelas, forçando, ambas, as divisões da janela. Um corpo careca, despido, redondo. Uma coisa movente, condensada, em relevo. Um corpo fora de órbita, atabalhoado, movendo-se no vazio. Apoiou os cotovelos, colocou a cabeça e imergiu novamente no buraco. Aquela coisa não parava, pé ante pé, contraindo-se, os braços alçando voo, dependurado no parapeito. Tentou se erguer mais uma vez e olhar pra dentro. A janela então é aberta e “Ooooouuusaapatoss”. “Ahhhaagora.” “Aesssahora.” Os sapatos pularam dos pés, seu corpo foi subindo, arrastando-se pela cama até atingir o travesseiro. A janela fechou bruscamente, e o mundo se apagou. De manhã olhou para o teto; do beliche foi, desequilibrado, num 34


instante, até o assoalho. Engatinhou chorando. O estômago resistiu enquanto pôde e, enfim, se desmanchou podre, bichado, sobre o chão. Levantou-se com ajuda dos irmãos. Tomou glicose na farmácia e foi repreendido pela nova namorada.

35


Domingo insalubre

Ela dançou sobre meu cadáver e cuspiu minhas tripas pelo ar. Gritou meu nome em vão e profanou minhas lindas palavras de amor. Eu, aqui, me masturbando como uma cadela; e ela, lá, fodendo com todos os malditos terráqueos filhos de Deus. “Querido, em honra do seu amor eterno por mim, oferecerei meu maior tesouro ao seu pior inimigo.” A perversidade dos jovens semblantes. A divindade voluptuosa da juventude. A virgem e doce energia dos recém-criados. Ela se orgulha dos seus peitinhos e posa para meus olhos estatelados numa tarde de domingo insalubre. Tentei afugentar a estupidez e perdi uma parte importante de mim. Tentei afugentar a solidão, a tara e a loucura - perdi as outras. 36


37


38


A descoberta do segundo sexo

Senta como mulher e balança o pau dentro da privada. Emanuel na verdade começou com os pelos. A descoberta se deu aos poucos. A depilação propiciava uma boa sensação feminina. As pernas lisas e macias: um convite à masturbação. A desobstrução do rego; os pelos retirados; o saco, a virilha, o membro mais alongado. As tetas livres para o passear dos dedos. A calcinha enfiada. Era gostoso se olhar no espelho. Fazer do cu, boceta. “Como será? Vem por trás... Agora é você que me fode.” Quando viu aquela bailarina do samba foi uma consternação. Rebolar é bom. Emanuel se alisa na cama. Segue com os olhos os contornos do corpo. Bem que podia ser tomado por um corpo de mulher. Nunca passara pela cabeça. Se demorar no olhar. Fitar aquele homem no ônibus. Estimular um desejo até então não divisado, ou recalcado, ou evitado a todo custo. Ser fêmea uma única vez ao menos. Emanuel e 39


seu experimento. Usava o bidê, o chuveirinho. Quando estava só em casa, a fissura por mulheres era resolvida com uma rápida técnica de se fazer outro, ou outra. Usava calcinha. Com um espelho apreciava a fenda entre as nádegas. Emanuel e suas técnicas. A descoberta do segundo sexo. Então perde-se o fio da meada. A virilidade se dilui. O corpo cede à pressão atmosférica. Desmunheca. O desejo feminino irrompe. Emanuel acorda de manhã. Júlio o recebe com um sorriso. Depois da bebedeira e de todo o papo sobre a transmutação. Júlio sorrindo. Emanuel pula da cama. “Que porra de lugar é este?” Um quarto num prédio antigo. Na entrada, o cartaz: “Só para rapazes”. A cama encostada na parede, próxima à televisão e ao som. Uma porta aberta, uma banheira atulhada de revistas e livros, o lavabo. A privada encardida. A escova de dentes gasta. A pasta sem tampa. O balde suprindo a descarga. A toalha azul. A parede com infiltração e um xis preto de carvão. O pôster do Che no fim do corredor. “Que porra de lugar é este?” O sorriso de Júlio denunciando cumplicidade. O corpo de mulher violada de Emanuel girou sobre os pés, pôs a roupa, apanhou o casaco, conferiu a carteira, os bolsos, pressionou a maçaneta e se mandou.

40


Nenhum lugar fora da terra

Fodia aos quatro cantos do quarto e do mundo. Nenhum lugar fora da terra. A bochecha saliente. A língua presa. O anel de sua vó que estava perdido há anos. Parou no posto. Escolheu o menos esquisito – belo ninguém era. As bochechas queimadas de sol. Mastigava um capim. “O senhor poderia...” “Claro!” “Para São Paulo. Para o sul. Menos para lá. De onde vim. Está vendo? Lá embaixo. É minha cidade.” Ela gozava a cântaros. O caminhoneiro primeiro. Tire os pelos das minhas costas. Depois a passada saliente. Rastejando a mão pelas sinuosidades da menina. Ela na maior parte, calada. Com algumas insinuações, é verdade. As pernas lisas no short jeans desfiado. Ele ria dela. “Sabia que posso matar?” “Você?” Gargalhava. E metia a mão na coxa. 41


“Olhe, vou te dar carona, mas vou ter que fazer uma parada. Você me espera no posto às cinco.” A cidade pacata. Um restaurante de comida caseira. As voltas de reconhecimento. Os botecos decadentes de beira de estrada. Nenhum ambiente para estar. Dormiu no banco da praça. Acordando às vezes com uma voz próxima. No meio da madrugada, desacreditada da promessa, decide procurar outra carona. “Não deve ser difícil”, pensa, mas volta a dormir. Ainda na praça acorda num pulo. “Joel?” “Vamos! Vamos!” A felicidade invadindo o corpo sonolento. O caminhão estacionado. “Porra! Quase não te encontro.” “Pensei que você não vinha.” “Que isso, menina. Não vou te deixar aqui, não. Não tinha lugar melhor pra dormir? Você teve sorte.” “Ah, obrigada. Obrigada.” Logo, o caminhão cortando o ar. Joel estava alegre. Se comunicava no rádio com outros caminhoneiros. Dizia que ela era uma sobrinha sua. E desatou a falar de mulheres. Campari com carne mal passada. E fodia a noite toda. Não era virgem. E até que lhe deu algum tesão. “Vamos tomar uma cerveja?” Joel riu. Na parada, apenas café. “Quanto dinheiro você tem?” “Nenhum.” “Puta merda! Come aí.” A impressão é de corte. Adentramento. No alto da cabine, e a velocidade. Transportando combustível. Querosene de aviação. Os olhos mal dormidos de Joel. O primeiro herói da estrada, de sua vida. Sua cidadezinha ficando para trás. O bloqueio ocupando a 42


lembrança. “Sabe que posso matar?” Parada para almoço. “Joel, vamos tomar Campari e comer carne de boi mal passada?” O vinho de mesa sorvido a goles sôfregos. Foram para o quarto. “Sabe o que é, menina? Fiquei a noite toda fodendo. Dormi só duas horas. Acho que nem a carne mal passada dá jeito.” Mas era hora de retribuir. Lembrou-se da praça. Do desalento e da alegria ao revê-lo. “Meu herói.” Iria chupá-lo. “Ah, safadinha.” “Feche os olhos. Dorme.” Fez cafuné. Fodia aos quatro cantos do quarto e do mundo. Nenhum lugar fora da terra. Podia matar. Matou. Sua cidadezinha ficava cada vez mais distante. Amava Joel. A estrada era um adentramento.

43


44


A cidade na noite de carnaval

Ela estava radiante. A cidade na noite de carnaval. A mulata samba para me incitar uma ereção. Ela dança com seu biquíni de miçangas verde e branco. Meu pau vai pulsando, irrigando, subindo pelas paredes do abdome. Meu grande pau no ritmo do samba. Encontrei-me com a cidade e nunca a tinha visto tão feliz. Na verdade aquilo era um turbilhão. Não se distinguia de onde vinha o som. Pelas ruas empoçadas eu cantarolava uma música qualquer. Via aqueles tipos singulares de rua, de praças, de bares. O metido se achando promissor de terno sem gravata. E fiz uma constatação intrigante: não havia nenhum dorminhoco sem-teto, nenhum guri de mão estendida. Onde estariam? No carnaval eles fazem ponto em algum lugar que desconheço ou também curtem a folia? A cidade irradia sua luminosidade nas poças e na cara das pessoas. Eu tinha dois cigarros apenas, mas resolvi dividi-los com a moça 45


de preto. Parei para ouvi-la, para acender o pavio e para comentar as novidades. “Parece que vai chover muito neste carnaval.” Ela me falou sobre um bloco próximo e me convidou. Fomos andando até o cortejo. Disse a ela que adorava o centro sujo e vazio da cidade antiga e gostava dos casarões arruinados. Ela disse que já tinha sacado a minha queda pelo decadentismo, pois de outra forma não estaria com ela. Foi então que reparei em sua pele e em seus contornos da cara. Ela era feia, e ainda por cima, depois se assumiu lésbica. Toda de preto como quem quer distância. Isolada. Passando despercebida. Falei que a estava achando ótima companhia. Tudo o que queria mesmo era um risinho idiota no canto da boca. Lamber a bunda de todas essas mulheres de capa de revista. Ela olha para a blusa do cara de touca musculoso e ri. Eu me adianto e leio: “Cala a boca e me beija”. Uma multidão concentrada no fim da rua. E lá estava o bloco. Paramos no bar e tomamos conhaque. Compramos mais cigarros. As pessoas estavam animadas. A chuva não impedia nada. Lambuzados, pintados, seminus, os foliões se agitavam próximos à bateria. Ela recomendou que atravessássemos a multidão. Do outro lado havia uma igreja. Subimos por uma escada que nos levou à praça da igreja, de lá podíamos ver o cortejo logo abaixo, seguindo o carro de som. Sentamos na murada e, com cigarros e cervejas, curtíamos o carnaval. Ela, de preto; eu, de verde e calça de brim. Perguntei se ela não queria descer, dançar, sorrir, se misturar à multidão. Ela riu, encheu as bochechas e deu uma baforada. Enfim, era tempo. Saímos e rodamos pelas ruas. Casinhas pequenas. Tudo muito deserto. Eu precisando de uma chupada. Cantinhos promissores se assanhavam em minha mente. Antes tinha reparado bem nas partes das garotas 46


do bloco. Que fissura! No entanto, só fumávamos e andávamos calados. Então ela sugeriu. “Você não gosta? Vamos lá!” Achei tentador. Promessas de carícias, talvez. Era um casarão ocupado, escancarado e vazio naquele dia. Perguntei a ela sobre os sem-teto e os guris pedintes. Aquela era a época de ganhar algo mais, me disse. Estavam vigiando carros, se prostituindo, vendendo drogas, trabalhando a todo vapor. Passamos por uns tapumes e subimos as escadas. O som ficava mais distante. Abafados no breu. A luz fosca se animando. Da sacada dava para ver os foliões. Fumávamos intensamente, iluminando com a brasa o cassarão escuro. Ela parecia conhecer muito bem o lugar. Estava ansioso. Venha me chupar, doçura. Ela agarrava minha mão e me puxava. Subimos até o último andar. Era divertido. Das ruas, passei às casas. Da solidão, passei à companhia. Era carnaval. Encostei na parede, abri as pernas e relaxei. Fui tão lascivo e insinuante que ela não se conteve. Chiou. Apoiou-se no parapeito da sacada e ficou olhando o bloco ao longe. O som persistia. O som da cidade na noite de carnaval. Minha voluptuosidade foi baixando. Sentei no chão. Toquei sua perna e a alisei. Minha companheira de noite. Dividi meus cigarros com ela, minhas bebidas, ela me apresentava a cidade, os casarões, tudo o que eu precisava naquela noite, menos o boquete. Ficamos longo tempo ali. Eu, sentado, pensativo. Ela, no parapeito, observando. O bloco havia sumido, e o som se extinguido. Até que tudo recomeçou. O som primeiro. Depois o bloco e os foliões. Levantei para observar. Havia menos foliões. E estes dançavam menos. Muitos debandavam. Outros sentavam pelos cantos. Me via lá embaixo. Olhei ao redor. Me via nas ruas. Nos prédios. Nos casarões velhos. Me via na cidade. Menos na boca daquela lésbica 47


desgraçada que só fumava, pesarosa. De repente, fiquei puto. Ou dá, ou desço. Acendi uma longa brasa. Desci saltitando pelas escadas do casarão velho. Trombando, caindo, levantando e cantando uma música qualquer. Lá de baixo olhei para o casarão. Ela continuava no mesmo lugar, fumando, na sacada. Corri para alcançar o bloco. Passando pelos carros. Parei diante de uma garota que dançava e falei que detestava arlequim e colombina. A obriguei a olhar para o casarão velho. “Olha, porra! Lá na sacada, encostada no parapeito, de preto, fumando, tem uma lésbica pesarosa.” Ela cuspiu cerveja na minha cara. A bateria rufava. Larguei a garota e fui para o meio da multidão. Era tarde. A noite se encerrava. O bloco se desfazia. Mas, enfim, me lancei ao chão, deixando que todos me pisoteassem.

48


Boca úmida

Ela percebe que olho e parece não se importar. Tem um magnífico sorriso, cabelos longos e lábios vermelhos cintilantes. Ela cruza as pernas, e eu vejo suas reentrâncias. Seu sorriso me impressiona. Não consigo deixar de olhar. Ela me contamina. Por dentro, me consome. Ela percebe que olho pra suas pernas; direto pro meio de suas pernas. Ela cruza, descruza, posiciona melhor o corpo, levanta, caminha, volta a sentar. Seu sorriso... Vejo que ela percebe quando a olho. Mas não para de lançar sobre mim seu sorriso brilhante. Não a incomoda minha insistente admiração. Quando fala, vejo sua boca bastante úmida, e seus dentes bem ordenados, pequeninos. “Para de olhar.” “Que?” Observo em volta. Todos notaram. Levanto. As pernas vacilam. Caminho para o banheiro. Abro a porta e entro. Acendo a lâmpada e passo o ferrolho. Minha cara no espelho é grotesca. Abaixo a tampa da privada. Desabotoo as 49


calças. Soco minha mão para dentro e acaricio meu sexo já úmido e duro. Tiro-o para fora e me masturbo, imaginando-a. Ela entra no banheiro. Levanta o vestido. Senta sobre mim; me beija; me molha o rosto de sa...li...va. Em poucos minutos, o sêmen jorra. Uma vertigem me domina. Escoro na parede e deixo a sensação fluir. Alguém me interrompe batendo na porta. Abotoo as calças e limpo rapidamente o sêmen pelo chão. Puxo o ferrolho. “Desculpa. Tô muito apertada.” “Nada. Pode entrar.” Ela entra, e eu continuo na porta. Ela para e olha para trás. “Que que você usa nos lábios?” Ela sorri, cerrando levemente os olhos e balançando a cabeça, e não diz nada. Instantes atrás eu estava ali, desejando-a com as calças arriadas. Daqui a pouco ela vai sentar para urinar e, se fizesse um pouco antes, mijaria sobre mim. Apenas uma questão de tempo, o espaço é o mesmo. “Posso fechar a porta?” “Ah, desculpe.” Ela fecha a porta e passa o ferrolho. Levanta a tampa do vaso, mas não senta. Posso ouvir e imaginar tudo. O corpo levemente inclinado. As pernas abertas. O vestido arregaçado. O xixi saindo pelo canal. A expressão de alívio. A vagina umedecendo-se. Os lábios brilhantes. Os dentinhos bem ordenados. E a linda boca úmida.

50


51


52


Os filhos da puta vida de merda

Os olhos miúdos de Daniela atracados aos meus. Seus braços envolvendo meu pescoço. Seu corpo delgado pressionando. Os colegas chamando. A casa devassada. Fila para despejar o esperma acumulado. Ordem de chegada. Com seis cigarros entre os dedos, matuto. O corpo de Daniela. Seus olhos miúdos. Gestos franzinos. Quase não entrava. Ela sente as dores do parto e diz: “Nunca mais vou trepar, mãe!”. Com o tempo, a má fama se dissemina e o respeito se esvai completamente. Enfiam-lhe os punhos inteiros. Daniela demora a sair. De repente eles ficaram adeptos do sexo silencioso. “Você é insaciável?” Demora a entrar. Movimento-a como uma boneca inflável. Magricela. Na rua, de madrugada, a vejo e corro. Minha salvação! Algum lero-lero e vamos à moita. No final das contas ela gosta. Os olhos miúdos se comprazem. Naquele dia em que tolerou os seis moleques... Daniela com sua 53


lista. Pouco útil, entretanto, na hora de reconhecer o pai. “Eu, não, porra!” Daniela demora. Foi me beijando. “Seja o pai, por favor.” Perdi a vontade. Três cigarros entre os dedos. Os olhos miúdos. Me disseram que ultimamente lhe enfiam até os cotovelos. Meu nome era o penúltimo da lista; agora, o primeiro. Sempre procurei alguém que gemesse como arrulha um pombo. Era Daniela. Oh, amiga, por que só fui reencontrá-la agora que a bunda está flácida e o cu, continental? Péssimas influências. A gota de cristal brotando linda dos lábios do meu pau. Daniela visionária. Parecia comigo o garoto. Os filhos da puta vida de merda. Mas veio outro e outro e outro. Um soco na cara a tirou do meu caminho. Nos encontrávamos na ponte. Nos encontrávamos no rio. Nos encontrávamos nos trilhos. Nas torres. Na rodoviária que, segundo Jack, é o recanto mais melancólico. Tudo assim, de repente. Os avós cuidavam de suas crias. No fundo ela continuava a mesma. Com novas listas. Renovando a qualidade do esperma. Ganhou musculatura. Cortou os cabelos. Acumulou cicatrizes. Passou a beber com frequência. Deixou de se importar com seu pai predileto. Numa noite, depois de muito tempo, a encontrei e foi a mesma coisa. Tão fácil que dava nojo. Nunca chupei seu grelo. Alguém chupou? Uma bêbada velha que será comida desacordada por aí. Os filhos crescem e a perseguem pelas ruas. Veem-na pelos bares e correm. Os bêbados ignóbeis lhes pagam doces. Numa manhã destas fui comprar pães e a encontro na padaria. Está acompanhada. Ela me vê e me cumprimenta. O cara ao seu lado, só pra sacanear, lhe dá um esporro amigável, na frente de todo mundo. “Essa puta bebeu à minha custa a noite inteira e agora não quer me dar. Olha só, não tem nem peito, essa porra.” E o cara pegava nos peitos. Ela ria des54


carada. Não mudou nada. Ou mudou? Daniela está demorando. Ângela bate novamente. “Daniela, tá cagando, caralho?” “Não porra, tô fodendo.” Os bons tempos não voltam.

55


56


Conto urbano

E dizem que não mais suportou, que saltou da cama, vestiu-se, calçou os sapatos, abriu a porta e, sem sequer se dar ao trabalho de fechá-la, disparou rua abaixo, parou apenas quando a ladeira cessou, curvado, com as mãos nos joelhos, respiração acelerada, e dizem que olhou para os lados, seguindo pela avenida adentro, sobre as calçadas incertas, lançando olhares às entradas luminosas dos hotéis-bares-restaurantes-igrejas, as centenas de janelas, os carros enfileirados, mal estacionados, trafegando, e dizem que perambulou pelos bares, um olhar para dentro e a inveja dos sorrisos, desejo pela garota jogando bilhar, debruçando-se sobre a mesa, errando a tacada e sorrindo, inveja do prazer que seria jogar com ela, do que seria uma noite ao seu lado, todos os bares, todas as bebidas, todos os quartos, todos os desejos realizados, uma porta que se abre, idas e vindas, e dizem que passou por uma entrada 57


de hotel e viu, na escadaria, corpos esbeltos, fartos e nus, ouviu chamados e olhou pra trás, encarou o travesti, seguindo-o depois pela escada, bonito rabo de saia curta mostrando as partes, bamboleante, indo pelo corredor, quarto à esquerda, e dizem que hesitou, observando tudo antes de entrar, o quarto minúsculo encardido, cheirando a carpete sujo, o homem de corpo e vestes femininas, serpenteante, exibindo-se, hirto, seios impecáveis, tão logo já nu e de rabo empinado, e então o desafivelar do cinto, o desabotoar das calças, “Calma, o que você vai querer?”, e dizem que penetrou-o por trás, encantado com as nádegas benfeitas, apertando os seios empedernidos, que temeu que a camisinha estourasse, mas o gozo veio rápido, uma pia para se lavar e o sabonete diluindo os odores, a descida mole pelas escadas e a noite ainda lá, a mesma, um último olhar e o beijo animado como um volte sempre, e dizem que andou até a praia, passou horas em um banco observando a maré, a noite sem lua, que uma senhora sentou ao seu lado e falou de sua infância, das brincadeiras no caminho dos pescadores, um assunto prolongado e repetitivo, e dizem que a deixou falar sozinha, descalçando os sapatos para pisar na areia, que andou até a água e não se importou que ela molhasse seus pés, e após uns instantes estanque, que retirou a roupa e nu entrou no mar, nadando até esgotar suas forças.

58


59


60


Sodomia de domingo

O último andar do prédio azul. Uma larga janela aberta se assanha aos meus olhos. Cinco jovens de cabelos longos de cores diversas, magras e despidas, vão e voltam, param e, com a cabeça em movimento de cadeira de balanço, me provocam uma ereção. Girafa peituda ambulante do centro urbano... Estou fazendo três coisas ao mesmo tempo. Enquanto você me chupa, ouço e danço e vibro o vento num assobio. Muito aquém do além homem. Despreocupado com quem sente fome. Aceitando-me como um grão comum insignificante da Via Láctea e de todos os outros sistemas e mundos paralelos. Glorificação do egoísmo sideral. Cagando, escarrando e andando... Estou fazendo seis coisas ao mesmo tempo. Enquanto bocejo, afago meus bagos, imagino a cena, sorvo o ar abundantemente, ouço a música do mecanismo de som e chuto o balde de merda da acomodação. Fala, caótica língua que mal 61


define um ínfimo! Bendita a virgem entre os bêbados. Bendito o reino dos crucificados. Alarde de bocetas e chupadas tonitruantes. Grito na procissão de velhas falsas beatas carcomidas pela TV. Será que não temos nada melhor pra fazer do que cheirar a bunda do Cristo trucidado, nessa sodomia de domingo à tarde?

62


Que forte vontade de sol

Essa imagem que fazem de mim. Pálido. Seco. Malcheiroso. Você acha que não estou nem aí, mas na verdade não estou mesmo é sacando nada. Abri o lixo e encontrei, além do seu papel de bunda, cacos do prato que você comeu, e partículas minúsculas, pedaços de unhas, fios de cabelos dos cílios ou do sovaco. Tentei agir, mas até agora só encontrei quem barrasse os fluxos. Sei lá se hoje é cinco de agosto. Perfeição é esquecer. Esquecer que se respira, que existimos. E lá vou eu pra minha alienação jazzística. Que forte vontade de sol. Horas que passam à revelia. Nada de punhetas, de beijinhos tépidos, me dá logo seu braço, sua boca, sua coxa, seu grelo, seu canal de orgasmo. Apenas o movimento dos olhos sacantes e das energias beatíficas, da cobiça pouco cavalheira, das intenções mais que claras, das vontades canibais pouco em voga. A fumaça do charuto que forma círculos, cubos, retângulos e também sua 63


expressão de pouco caso, sua vista grossa, suas costas largas. Entra ou não entra este membro em brasa, evaporando sua lubrificação de merda. E você, que me pergunta, na altura do terremoto, se assusta o eriçar dos pelos. Esta é a época das bocetas lânguidas, dos frutos, das sobremesas. Sonhar com dinheiro, sorte ou morte?

64


65


66


A ponto de bala

Eu conheço o cara. Sua metralhadora não é ofensiva. Não me interessa sua amizade, nem seu amor. Me interessa sua aliança. Todos em sua obscenidade. O celular dela acende azul. A ponto de bala. A ponto de fazer uma besteira. Para o alto e avante! Não sou um eterno devedor desses filhos da puta. Se aposenta e escreve um diário, porra! Me faz cócegas que eu quero morrer de rir. Posso tudo naquele que me fortalece. Ela estava diante de mim. Dançava. De suas pernas escorria o sangue. Pelas coxas. Pelas panturrilhas. Pelos calcanhares protegidos pelas sandálias de couro. Estou fraco e meus intestinos não funcionam. Se aposenta e pega a estrada, porra! Quando meus intestinos funcionarem serei feliz. Eu via a calcinha dela cheia de sangue. Estou queimando óleo. Caralho, onde está minha memória? Sei que saímos do bar. A rua estava vazia; também, era tarde da noite. Alguns poucos vultos. “Va67


mos nessa, rapaziada!” Espremo os miolos e estou lembrando. De repente sacamos as ferramentas e dilaceramos a fortes golpes a porta metálica. De velha, cedeu logo. É o fim! Meus intestinos não funcionam. Ah, se eu tivesse uma banheira. Saudades do Hotel Nacional. Sou jovem. Magro. Bonito. Eu tenho a força. Eu vi a calcinha dela. As plaquetas, os glóbulos, o vermelhão escurecido. Manobrando para o infinito. Chega de vista pro mar. Enfim é o fim. O metro quadrado tomou as proporções do meu corpo. A cabeça dói, o vômito vem, mas vamos em frente. A porta se fechou atrás. O barulho era demasiado. As mãos percorrem as travessas. Biscoitos e pães dormidos. Uma pancada seca apenas, e a caixa registradora abriu, vazia. Ódio e desalento. Karina soltou um grito de quebrar vidros. Glauco atirou a máquina registradora pelos ares. Eu fui ao freezer. Apanhei sorvetes e distribuí entre o grupo. Aguardamos. A mecânica do corpo insurgindo contra o espaço. Chega de olhar para o horizonte. Estou vivendo a pão e beleza. Ela passa. Jovem, cabelo curto, corpo esguio. A blusa caída nos ombros. Ah, adoro meu tempo. Nossa geração é linda, perfumada, bronzeada, maquiada, bem vestida. Ela deu um giro e respingou sangue pra todo lado. É uma mão na roda. Eu sei. E daí? Não para de me olhar o bichinho sensual. Me oferece cigarro. Me oferece bebida. A comida de suas pernas. O celular acende azul. Invade seu rosto de supetão a película luminosa. Mil e uma funções. Ótimo vibrador tecnológico. O padeiro chegou e nos deu as coordenadas. Embaixo da escada, passando pela portinhola azul, por de trás de tijolos, de areia, de cimento e de tinta antiga, estava o tesouro. Forçamos a porta. Dilaceramos o muro. Um bafo de poeira secular. Glauco socou a mão e retirou o saco dourado. Não lam68


berei seu sangue, mas confie nisso. Subimos pelas margens. Caímos no lago ressequido. Acordamos na fonte da praça da cidade. Uma fossa, na verdade. Me mostre sua veia poética. Saia de si pelo menos uma vez. O pico na flor da pele. Porra, estanca este sangue! Não há limites, só estoque baixo de álcool. Sou jovem, magro, bonito e afinal de contas sei atirar. Socar o vento. Vamos esclarecer a situação. Quanto temos nos bolsos? Estou cansado do seu papo sem eira nem beira. Então cala a boca e me beija. Seja franca. Eu tenho mau hálito? Você sangra a rua. Cospe placas, glóbulos e fica tudo melado, vermelho, escurecido. Um rastro fácil de seguir. Assim seremos pegos. Sou depositário de sua dor. Corro. Bato à porta. Dou um berro. “Alguém em casa?” Primeiro a piscina. Depois a cozinha. E rápido para o bar. O estoque está baixo. O bom do jogo é fruir o tempo. Já na rua, fomos andando. Nos permitimos uma cerveja no boteco da esquina. Sentamos e tomamos. A situação não é a mesma. Nada é como antes. A vida sequer nos dirige a palavra. Sequer volta a face para nossa miséria. Erramos. Pecamos. Estava eu, Glauco e Karina. O bando esquecido rumando para o sul. Não temos dinheiro. Mas também não somos gordos, nem velhos, nem doentes. Além de uma cândida reincidente, nada mais. Agora dou ou desço. Vou ou racho. Deus me permita uma última ereção. Analisemos a situação. Reiteremos o assunto. Antes de agir, compramos o jornal. As notícias de hoje são a extensão das de ontem, ou seja, nada de novo. Terminamos a cerveja. Seguimos em frente. Viramos à direita. Próximos ao chaveiro nos ocultamos e olhamos ao redor. Nos aproximamos da padaria, cautelosos. Lançamos o extintor de incêndio contra a porta. O estrondo é abafado por um avião que passa. Esperamos o ônibus atravessar a 69


70


rua. Os passageiros nos olham curiosos. Enquanto o ônibus desaparece e com ele o olhar no fundo, entramos rápido, a porta se fecha atrás. Glauco soca o pé contra o balcão, e a caixa registradora cai, num estrondo múltiplo. Ela abre sua boca sem expelir qualquer centavo. Karina não se contem e estilhaça os vidros com o pé de cabra. O padeiro aparece em uma das portas no final do corredor. Glauco se adianta e o interpela. Eles saem pelos fundos. Paramos ao pé da escada. Depois de capturar o ouro, amarramos o padeiro no corrimão. Venda nos olhos. Mordaça na boca. Saímos da padaria cautelosos. Karina primeiro. A luz do sol nos ofusca. Karina põe o braço sobre os olhos e sai. A eternidade nos lambe a pele. Meus dentes estão sujos, tortos, não posso sorrir. Creio também no orgasmo. Estou queimando álcool em meu corpo. Dizimado. Corro, bato à porta. Dou um berro. “Alguém em casa?” Primeiro a piscina, depois a cozinha. Corre, rápido, o bar. Porque o estoque já está baixo, na reserva. Ainda sou jovem, ainda sou forte. Tenho boas ereções. Sei a falta que faz uma conta bancária recheada, mas não desanimem. O bom do jogo é fruir o tempo. De repente fiquei puto, puto, puto! “Nada de risos aqui. Vamos esclarecer a situação. Que chance temos? Quanto há nos bolsos?” Fomos andando. Nos permitimos uma cerveja. Meu mamilo eriçado. Adoro quando você passa. Jovem, cabelo curto, corpo esguio. A blusa caindo nos ombros. Espere! Será que consigo ter uma ereção? Estou queimando óleo à toa. Estou ficando gordo, velho e doente. A cândida coagula meu esperma. Espera... Espera... Acho que sei como fazer. Estou em prantos. Só há reticências em seus olhos. Nenhuma esperança à vista. Mas posso ser ainda bastante trágico. Me desafie! Você está ficando gorda, velha, 71


doente. De sua boceta não espero mais nada. Estou queimando óleo à toa. Paga pra ver. Limpe esse sangue. Seja outra. Saia de si. Agora dou ou desço. Vou ou racho. Deus, me permita uma última ereção! Essa boceta sanguinária anseia por meu membro torto. Eu a fodo chorando. Lembrando os velhos tempos de glória eruptiva. Não sou feliz. Nunca fui. Nem sou tão consciente assim. Apenas fujo da idade inumerável da Terra. Dos desígnios de um deus que não me permite outra ereção. Queimando óleo à toa. Ele apenas diz que é culpa da pressão atmosférica. Da má alimentação. Da cocaína. Do álcool. E da má fama. Da veadagem que me chega pelas costas, me joga contra a parede e me curra. Sou um jovem hirto. Mas ainda posso? Então tomamos a cerveja e seguimos em frente. Viramos à direita. Nos ocultamos no chaveiro e olhamos ao redor. Antes de agir compramos o jornal. Temos que esclarecer a situação. Quanto temos nos bolsos? A ponto de bala. A ponto de fazer uma grande besteira. Não sou um eterno devedor desses filhos da puta. Devo, mas não pago. Estanca este sangue, porra! É uma mão na roda. Reiteremos o assunto. Então o grupo se abraçou e rezou a Ave-Maria. Andamos, vagarosos. Puxamos o trabuco. Todos estão frios e descrentes. “Mostre a eles, Karina.” Karina apanha o extintor na parede e arrebenta a cabeça de um. Glauco distribui balas na retaguarda. Eu anoto uma frase poética que me vem à cabeça. “Glauco, feche as portas!” Rendemos os atendentes. Na penumbra, chafurdamos nas gavetas. Ganhamos o dia. Assim nossa juventude. Repleta de planos intrincados. Aos poucos, limpo o sangue coagulado de suas pernas. É o fim da delicadeza, da paródia. O fim do trocadilho e da ironia. Puxo o trabuco e arrebento a cara do segurança de pancadas. Pôr debaixo de panos 72


73


quentes. Nada de gestos comedidos. Estou com você e não abro. Vou ter minha ereção a qualquer custo. Mas você só está queimando óleo à toa. Depois vai esquecer tudo. De toda forma ainda temos aquela garrafa e vamos bebê-la. Não adianta gritar, ninguém ouve. Enxergo mal, mas vejo o suficiente. Logo pela manhã... Essa é a minha voz? Estou numa fase de histeria. Acho que vou parir qualquer coisa. O sangue na calcinha dela será um sinal? São só sonhos. Proezas do álcool. De repente fiquei puto, puto, puto. Saudades do Hotel Nacional. O que meu estômago quer? Pela boca ou pelo cu. Nenhum lugar fora da terra. Você só está queimando óleo à toa. Depois volta tudo. Até o medo de dormir sozinho. O bom do jogo é fruir o tempo. E, pensando bem, já não há mais tempo como antigamente. Tudo agora é fugidio. A situação não é a mesma. Nada como antes. A claridade ofusca os olhos. Karina primeiro. Ela põe o braço sobre o rosto e sai. A eternidade nos lambe a pele.

74


75


76


Considerações intempestivas de um assalto

Não suporto o hálito. A voz ressoa incomodando as narinas, os ouvidos, e agora me calo. Trancando o hálito e a voz na catacumba da boca. Queria não entender nada do que dizem. Ouvir uma língua estrangeira e falar “Vai tomar no cu!”, sem que ninguém entenda. Uma sirene na boca. Uma lanterna perscrutando as dobras da bunda. Não há nada aqui, nem ali. Entro no elevador e a ascensorista com um livro na mão me impõe questões, “Que é garridice?”, “Que é celibatário?”. Não há nada aqui. É tudo oco. No mínimo uma fuligem metálica, um cume em seu corpo. Tudo oco. Insinuações de chicote em meus olhos. Doutrinas respingando do rosto. Varredura nas frestas. Cantos com aranhas empoleiradas. Por trás das portas, uma rede abandonada, uma cama de gato, uma flama de ódio. Por trás de cada porta, uma ascensorista com questões espalhafatosas. E os direitos humanos? Eles não me 77


permitem amassar sua cara, vedar sua boca, entortar seus dentes, amarrar sua língua, enfiá-la com um nó infalível no olho do seu...? O rastro de rato no chão. O caminho dos pescadores de fezes. O odor do seu hálito na minha cara todos os dias de manhã. A transpiração de ideias sujas nos seus ombros inimigos. O caminho dos pecadores sem fé. O pecador. O coro de súplicas e o coro de réplicas. Entre mim e você a solidão mais crente, a dor mais devota. No caminho dos cisnes. No caminho das fuligens metálicas, dos espectros luminosos. A morte que persegue e a sorte que encontro na curva. Salto para o céu. Segura a barra! Corro de encontro ao estelar labirinto das sobrancelhas da menina sentada olhando para o norte. É a sorte em pessoa. Caminho de mênstruo até o cais. Uma rajada de vento negro nos olhos. Não suporto a voz que soa logo atrás, nem a perseguição acirrada de ideias cinzas. Tudo oco. Tudo correndo solto. Um soco. Mordo a parede de farinha. O chão explode em verdes faíscas. Desbotam-se a coroa e a capa de veludo vermelha. Meu reinado está no fim sem ter começado e não rastejo sem apoiar os cotovelos. Nem caio sem ver as feridas, sem cravar as unhas no seu rosto. Um túnel sem tempo, sem nada preenchendo os espaços. Um carro, um quarto, uma forca, um túnel vazio entre as fendas de entrada e saída, sem tempo nenhum preenchendo os espaços, só o corpo vadio enfrentando o vazio, só a língua suarenta esperando uma boceta rosada, só a ascensorista que me põe a mesa com questões práticas: amor, laços, pentear o cabelo, química do bom sujeito. Enquanto isso, drogados sem serotonina praticam o prazer não ensinado nas escolas, o desejo febril não ensinado pelos pais. Uma boceta é um espaço catártico. Nada de considerações práticas, só abstrações: direitos humanos, 78


mercado financeiro, trabalho honesto; quando na verdade só há fome, furto, medo e sexo. Meu cabelo desalinhado. Meu corpo insurgindo contra o vento numa motocicleta dentro de um túnel oco sem tempo. Aura verde, boceta rosa de princesa limpa e bem nutrida. O gosto perdido. A cor derretida. Considerações intempestivas numa viagem de ácido. Tudo mental, jogos de linguagem, oxigenação de caixa craniana. Me dê prazer agora e depois me faça sofrer; me faça esquecer todo o passado, começar do zero; ir do nada aos números positivos. Senti tanto desejo por você que... comi sua merda! Chia na minha cara. Cospe na minha fisionomia de charlatão de meia-tigela. Me confundiram com o assaltante da TV. Olharam para minha fuça e disseram “Polícia! Mãos ao alto!”. Falsificador de moedas, facilitador de fuga, aliciador de arrependidos e convertidos aos bons costumes, estelionatário do tempo. Estou preso em um túnel com policiais de guarda me impedindo de ver o tempo lá fora. Fico no oco seguindo rastros de lagartixas, baratas, ratos, admirando teias de aranha abandonadas. Falo mais nada. O hálito me sufoca, e a voz parece morta. Toda manhã com sua expressão de cadela dócil na minha frente. Um viciado em fluidos pesados me ensinou a escamotear o desespero, a dormir e esquecer o dia a dia, mas insiste o pesadelo, no meu encalço coturnos bem engraxados, lanternas piscantes, sirenes estridentes. Alcancei a longitude e me morderam com chumbo nas costas. O estrondo ecoou pelo túnel, fodendo com os tímpanos dos fardados. O tempo agia como vidraça estilhaçada. Tentei voar, mas caí de cara no asfalto arenoso. Mais desespero talvez conseguisse me dar cabo, e a morte me abraçaria como um pai a um filho. Nenhuma solução possível à vista. Corria sem perspectiva de alcançar qualquer saída. 79


Aranhas não me davam qualquer sinal. Os ratos fugiam por buracos nos quais eu não cabia. Cada vez mais próximos, me acertaram no alvo. Tapando com peneira o sol. Vingança contra as más trepadas de toda uma vida. Extermínio a bel-prazer. O corpo todo perfumado de bala. O rastro da lagartixa, seu caminho encardido. A segui e me fundi ao concreto. Foi doloroso ter o corpo trespassado por rochas, matérias seculares e me salvar transpirado num morro oco pleno de horizonte, luz e vista pro mar.

80


81


82


O deserdado da sociedade

Carona malfadada. Ou dá, ou desce. O esteta trabalha o corpo. A medicina é sádica. Por causa do mau funcionamento do reto e dos intestinos, abriram-lhe um buraco no abdome. Primeiro os seios. Os longos cabelos. Com o tempo, todas as curvas de direito. Na minha subjetividade aquilo me pareceu uma visão apocalíptica. Eu o vi. Ele estava desesperado, inconsolável, com a merda escorrendo pelo corpo. Pai, por que me abandonastes? Tapando com os dedos o cu do abdome. Os excrementos pela bermuda, pelas pernas. A praça cheia. Os olhares de nojo e de desprezo. Precisei meditar e ficar três dias de jejum, a seco. Só depois de muito tempo me reconciliei com a vida. O esboço ganha forma. A forma de um belo monstro. Primeiro os seios, os longos cabelos, depois todas as curvas de direito. É um corpo feminino de travesti com o rosto do Cristo europeu. Ela agoniza ao tentar engolir o 83


esperma. Espermicida vendido nas ruas inflamadas de hominídeos intratáveis. A luz mira-o de frente. Um pouco à esquerda. Ela vem, escorre entre seus pés, vai até o busto e para. Uma sombra oculta seu rosto. Realmente não sei do que se trata. Uma buzina que dispara na fala mais importante. É um vlapt pra cá. E um sloup pra lá. A descoberta do segundo sexo. Ele estava só, sujo, tristonho, golfando merda pelo abdome na praça. Me crucificaram! Antes de Van Gogh existiu Cristo, não se esqueçam. Agora é esse miserável que cumpre o lugar do maldito deserdado. Ratos lhe sobem pelo corpo por conta do cheiro aprazível. Ele se armou de um cobertor. Em um ponto estratégico abre o tecido-capa e expõe sua prodigalidade. Há algo de cômico na miséria. E há algo de terrivelmente revolucionário também. Um miserável não necessita de representantes ou teorias, apenas precisa ser em-si. Mas agora lhes faço uma revelação: depois do fim do mundo resolvemos isso. Metendo não só o olho, mas também o pau no buraco da fechadura. Eu vos proclamo: perdoem a beleza. Perdoem os ricos de matéria e os bem nutridos. Todos os que são bem-sucedidos. Tudo tende ao caos. Isso prova a lei da corrupção dos corpos, da gravidade e da pressão atmosférica. Inclusive acho você uma gracinha, verdade. Imagine o caos fulminando sua existência parda, seu organismo frouxo, seu belo corpo anoréxico. Mas não me deterão jamais. Sou o fogo das entranhas. Realmente não sei do que se trata. O bom do jogo é fruir o tempo. Vamos fazer um jogo aberto agora. Sem eiras nem beiras. Só fruindo o tempo. Logo digo a que veio este. Todos os charlatões já se uniram, todas as belas bocetas bronzeadas também, os metrossexuais, os emergentes, os endinheirados já se uniram. Só faltam os malditos indigentes deserda84


dos se unirem. Não sei do que se trata realmente. Uma fêmea no meu encalço, talvez. Primeiro, os seios, os cabelos; com o tempo, todas as curvas de direito. Já lá vai! Antes são coisas de um esteta, de um exegeta, de um asceta, de um puto exigindo a posição de lótus a sua mulher grávida de gêmeos. Uma imaginação bélica. O esboço ganha forma. Uma perna está erguida. Um braço sobre a cabeça. O personagem não medita, mira-se. Depois do fim dos tempos resolvemos isso. Na minha subjetividade imaginei outra coisa. Não era o mar, não era a lua, não era a rua estreita que mal me cabia. Era você, pai emprestado, padrasto, deus da maldade. Enfim ele foi preso, após exibir publicamente o seu rego pródigo escorredouro em frente a uma lanchonete americana. Criou-se um regaço onde a merda escorria. Os músculos do abdome se coadunaram e canalizaram o riacho de excremento para o rego da bunda de onde nunca deveriam ter saído, ou melhor, de onde deveriam sair sempre. E enfim ele foi morto. Suicidado pela multidão das praças e pelos frequentadores de lanchonetes. Ninguém suportava mais ver aquele infeliz escorrer merda pelo abdômen. Uma boceta inflada que se abria de quando em quando.

85


86


O terrível zunir da vulva

Ouço os gemidos que vêm de cima, incessantemente. No miserável catre sobre o chão de concreto, adormeço. A lua prenhe em meus olhos. O sono, em profusão, ameaça, mas não me vence. Estou entregue aos gemidos da fêmea. Ela geme e gargalha. Imagens de jovens bocetas de peles rosadas entorpecem meu corpo. O frênulo do prepúcio. O frênulo. O fraquejar do desejo. Somente órgãos sobre o catre imundo. O medo como álibi. O desespero. A desesperança. Não sou eu quem mente. Não sou eu quem promete. A solidão segue e enlouquece. A dor inflama, minha carranca expele horror. Levanto e apuro a audição. Subo sobre o catre; penduro-me nas ferragens da janela e apuro. O som vem e me excita. São. Sono. Drogas imagéticas. São. Estou entregue. Espero por ela. Sou devoto desses gemidos. Eu os venero. O jardim das delícias em meus olhos. O jardim das delícias nesse som. O 87


jardim das delícias no sono e no frênulo do prepúcio. Estou insano e desespero. Ela ri porque sente o escândalo e porque é bom rir de prazer. Seu riso é um alerta. Quando ela geme meu corpo acorda e sonha. O riso vem e me tira dos trilhos e me joga sobre este catre imundo. Uma sucessão de gemidos. Uma sucessão de risos. Estou enlouquecendo finalmente e piamente. A loucura é boa e sã. Apenas ela me fará escalar a janela e a parede e penetrar os olhos na cena; desvelar esse acontecimento corpóreo. Imagem voluptuosa da dor. Gemido sagrado de uma fêmea em prantos. Ela chora e me enlouquece, me desperta. Ela sofre o mal irreparável da solidão e se agita e delira com o dedo a boceta. Penitente. Seu gemido é solitário como uivos, cães e lua; como minha língua que saliva ao sentir o zunir incessante. Denotaria o riso cumplicidade, entretanto? E ela pode estar entre afagos. E ela pode ter bagos e afagos. Pode tê-lo em sua boca agora, a frenular. Ou louca? Louca, uivando para a lua. O louco solitário é louco e solitário e louco. Solidão fantasmagórica sobre o catre. Já não distingo se o gemido é ou não é. É incessante, na mente, no corpo todo. Talvez seja meu, esse gemido. Talvez já tenha cessado. Apuro os ouvidos e ainda o ouço. Incessantemente intenso, ou tênue, ou gradual, num crescendo. Às vezes me distraio com os outros sons da noite. Tomo um pouco de água e esfrio os ânimos. Mas por todos os cômodos, pelos corredores, por todos os cantos e entre cantos, valas e canos de esgoto o gemido prossegue. Pelos dutos do meu cérebro. Meu coração palpita de acordo. E parece que ouço melhor. Os gemidos são um mantra. Uma oração repetitiva fúnebre ou célebre. Meu desejo repercute. Verte sêmen. Os lábios ressecam. O corpo aquece. Os pelos eriçam. Movimento peristáltico. Febre. Febre 88


e delírios. O som repetitivo prolonga-se sem nexo ou término. Ladainha. Mantra. Missa. Febre. O gozo é uma ameaça a meus sonhos e vida; o riso, um golpe baixo que treme o quarto e o catre. E ela continua com seu gemido, sempre, eterno, me enlouquecendo e despertando imagens. A lua vertendo luz purulenta sobre a terra. E ouço bofetadas. Ranger de móveis. Bundas golpeadas. A cena a se definir. Sua boceta louca insaciável geme aos borbotões, e eu, pendurado na janela, enlanguesço, enlouqueço. O fremir. Seu rabo, boceta e pelos de prazer. Os gemidos prosseguem, e já não os distingo de mim. Os gemidos me pertencem. Sou um faquir miserável. O gozar. O gemer. Mas o riso, o riso só a ela pertence. Os gemidos pedem para que eu suba ou me jogue da janela? É o suicídio que me espreita de fora? Os risos são de escárnio ou de gozo feliz e descarado? Sinais de agouros? De solidão prolongada? Representam minha alucinação? E por mais que eu core, por mais que eu chore, por mais que eu implore e faça preces ao deus do amor: a solidão é minha sina nesta noite uivos de lua. A solidão, a loucura e a tara. A tara e a loucura e a solidão. O medo. O medo é o meu álibi. Verto todo o sêmen de imagens da cabeça na esperança de alcançar o sono, a calma e a manhã seguinte. E os gemidos não cessam. Madre benzedeira. Mantra. Reza e cânticos. Devo atar-me no catre e resistir ao encanto dessa boceta? Eu sonho. Aparição rechonchuda, malva-felpuda, úmida, pulsante. Em meu pesadelo há apenas órgãos autônomos sem pelos ou pele, e esses órgãos excretam suas essências pelo quarto. Sou obrigado a lambê-la e asseá-la antes de meter. Oro, choro, coro, corro para a janela e gozo pelos ouvidos esse som. Uma santa em penitência? Ouço o bramir de chicotes. A pele delicada de suas costas e 89


de meus ouvidos esturricada, sanguinolenta. Fraco. Um faquir em ascensão. Dilúvio. Suspenso num cosmo girando louco em volta desses gemidos. Uma deusa escarnecedora. Boceta autômato. Cada órgão, um universo. As trevas do útero em chamas gélidas. Malva-felpuda. A madre canta. A madre chora. Reza o rosário virgem. E o prazer voyeur transforma-se em ódio, nojo, inveja e desânimo. O tremular das carnes. A névoa de sexos em meus olhos semi despertos evanesce. É o sol que desponta sobre o mar. Ah, que venha o dia.

90


91


92


A noite

A noite. Ela só, a procura. Longe de todos num canto sedoso. Cercada de leituras toscas e brinquedos loucos. Seu olhar desabrochando no meu. Alta tensão. Intumescência dos corpos. Vívidas correntes marítimas. Precipitações inócuas. Lembranças da noite. O disco que roda vagaroso, que para aos poucos. O chá com sabão. O estrondo do avião que passa, próximo. Ela minimalista. Saia jeans, blusa preta, tênis com cadarço branco, minúsculo metal estelar na narina. Noite de ruínas. De destroços. De lusco-fuscos. Luminescências. Seu olhar acompanhando-me. Os corredores do prédio, do quarto, do banheiro interditado. Do álcool sorvido entrechoques, engasgos e tosses. O corredor entre o meu e o seu olhar. Feliz encontro 93


sob as duras penas da interdição. Corro dentro de mim, atropelado por imagens. A dança de suas pernas embalando meus planos, meus sonhos, meus hormônios. O calor de sua pele invadindo meus poros. A lisura dos contornos, dos negros cabelos. A sede jovem nos olhos. Promessas. A pintura do corpo traçado, borrado, borrifado. Dispersão sôfrega de fluidos no claro-escuro do quarto. Seu lindo sexo na minha boca. Sua linda boca no meu sexo. O ponto de fuga traçado e agora possível. Paixão. Pensamentos tórridos. Martírio. As palavras vêm e assaltam a mente. Paixão pela noite estelar, pela estrela no nariz, pelo feliz encontro, pela beleza do sorriso intimidador. Eu acompanhado. Seu olhar acompanhando o meu, me provocando ereções. Não é o mesmo mofo, o mesmo mundo. Atmosfera paralela. Eclipse total. Corte seco no sossego dos olhos, no bloco de gelo da mesmice. Um buraco negro absorvendo as gorduras excessivas do presente, que passa intenso, lento e mortal.

94


95


Lacerações da carne

Cortes no sossego dos corpos. Lacerações da carne. Sentidos perfurados. Sangria benevolente do Cristo. Almejando costurar os olhos com fios de prata; tapar as narinas com granizo; amordaçar a boca com couro curtido; os ouvidos com lãs de aço; furar a boceta com pregos em brasa. O espelho revela a face transfigurada com expressão de assombro e orgulho. Carla, 16 anos, início da vida profana. Sexo, uivos e lua cheia. Garotas, velhos e luzes multicores. Pés de lagartixa, compridos e brancos. Ao redor do orifício, rastros da violação. Intumescências, frações avermelhadas, vincos, sulcos, rugas supuradas. Ela defeca meu esperma cobrindo o chão com uma mancha marrom odorífera. Na altura do braço esquerdo, fractal 96


97


98


tatuado com aspecto de veias, vasos à flor da pele. O pó vermelho, fina mistura sintética, adentra as narinas transmutando o cérebro em um caldo fervilhante. O uivo paira na noite. Da janela tipos notívagos esperam na esquina. Acima, uma imagem nos encanta. Nossos corpos nus refletidos em um espelho de teto. O prazer de ver seu corpo vergar-se, ceder ao desejo. Um grito irrompe pelas ruas despertando os instintos da noite. Os sexos lacerados lambidos com carinho materno, aptos a continuarem despertando prazeres. Estrondos anunciam uma tempestade. Nos cobrimos e rimos do mau tempo. Logo nossos corpos se embalarão em uma nova harmoniosa dança sexual. Brincos dourados, pesados. Peitorais. Narigueiras de ouro. Pingentes místicos. Anéis ancestrais. Tatuagem de dragão chinês no dorso branco de uma fêmea cambaleante indo ao banheiro. 5:15. Percorro com os olhos o carpete mofado. Figuras de adereço tomam formas inusitadas. Minha imagem sextuplicada pelas paredes e teto especulares. Cotovelos ralados. Mamilo perfurado por finos projéteis de chumbo. Um dia ensolarado na capital dos sonhos amargos. Você me faz gemer. A curvatura do reto é perfeita para meu membro torto. Minha glande coberta com as fezes de seu jantar sofisticado. Penetro sem pudor sua virgindade mental. Rasgo suas crenças com ardor. Sequer creio na dor de sua carne que agora dilacero. Suas unhas alcançam meu abdome. Um metal perpassa seu septo. Aperto suas nádegas e invisto estocadas suaves. Você geme como uma cadela: ansiosa, desesperada, sem compasso. 99


O sol é regurgitado pela noite no leste. Sua pele escaldante, seu sexo abrasador, escarlate. A dor é só mais uma sensação na série que se alojou entre nós. Na rua abaixo, os remanescentes da noite lançam-se ao sol para se purificar. Um dia tropical. Elevamos ao máximo a refrigeração. Experimentamos os lampejos infernais da fricção dos corpos. Contraio-me ao toque de sua língua: glande contra piercing. Boquete canibal. O amor é a chaga dos homens. O sexo, o intento perfeito para uma morte alegre. Se o desejo do amante é suprimir o amado, privá-lo do mundo, guardá-lo em uma caixa de sapatos, então Cristo é exemplar. Cedeu sua carne à história da putrefação. O belo corpo anseia pela saraivada de chicotes, pelo sangue purificador aos borbotões. Cristo: o masoquista ilustre. Um crucifixo prata entre seios fartos. Uma blusa preta cortada acima do umbigo. 1) acender o cigarro; 2) tencionar a blusa; 3) seguir linhas imaginárias; 4) esculpir, com pequenos buracos, formas geométricas; 5) primeiro um crucifixo; 6) depois uma suástica; 7) cruz-de-malta; 8) por fim uma hélice, um moinho, um pelourinho. 8: 35. O atendente bate na porta para nos oferecer o café. Visto um roupão branco e encardido e vou atendê-lo. Assim que ele vai embora, volto ao quarto e decido não perder mais tempo. É mais que chegada a hora. Peço para minha donzela se posicionar. Abro delicadamente suas pernas. Acaricio seu sexo, preparo-o com tapinhas leves para a grande cena. Seus pequenos lábios, de pelos dourados, recendem a mel. Uma fresta nas persianas permite a passagem do sol. Peço para ela se virar, o sol inunda sua boca felpuda. Ela, em êxtase programado. Espreguiçando-se. Abro um pouco mais a 100


101


cortina. Após uma bela noite resguardando seu sexo casto, preparo-me para violá-lo com esmero. Com breves toques de língua, vou despertando os recônditos entre as dobras. Ela apanha minha cabeça, puxa meus cabelos negros de tinta ordinária. Surpreendo-a com um beijo forte na boca embevecida. Peço para ela se pôr de joelhos; introduzo a cabeça entre suas pernas para tê-la sobre minha face. Crispo os lábios e a língua para ela se servir. Seu sexo declina até minha boca. Primeiro com movimentos delicados. Não satisfeita com os lábios e a língua, passeia por meu rosto, que é tomado por suas secreções. Acaricio seu corpo imberbe. Dou-lhe dedadas leves nos orifícios. Ela se apressa a gozar, mas retenho-a. “Sou eu quem dita as regras do teu universo.” Seu sexo mareja, apto para ser, enfim, penetrado. Deito-me. Deixo-a degustar por si mesma. O membro retesado em direção ao Olimpo. Ela o devora e um vulcão irrompe. Movimentos de bailarina manca. Seu gozo vem com o desfalecimento dos sentidos. Apoplexia. Orgasmo hemorrágico. Afasia. 10:05. Medito na banheira enquanto ela dorme. O líquido mais sagrado é o líquido seminal. Foi do líquido seminal de Deus, lançado à Terra, que surgiu a vida. O contrário da morte não é o amor, mas, sim, o êxtase, o entusiasmo. A morte é a ausência da luxúria e de todos os pecados capitais. Estados de lubricidade. Ritos do sêmen. Insaciabilidade e plenitude. Excitação que prenuncia novos tempos. Apenas vinho e nossos corpos. Maravilhas sonoras. Fúria dos poros. Marcha para o infinito. O calor da água excita meu corpo cansado e insone. Ainda restam algumas carreiras. Para o alto e avante! A excitação toma meu corpo. É o fim da 102


delicadeza. De um salto, saio da banheira. Deito sobre meu anjo dorminhoco e penetro-a seco, duro, famigerado. Ela ressuscita escandalizada, após um coma orgástico. Agarra minhas costas num gesto de defesa instintivo e crava as unhas com força. Viro-a de costas para mim. Preparo seu traseiro para meu gozo. São onze horas. Domingo. A cidade festeja sua solidão. Resquícios do pó mágico. Última cafungada, preparada com apreço sobre um poema de William Blake. É quase hora de darmos o fora. O dragão chinês no dorso branco se agita. Admirando as próprias botas. Núpcias entre o céu e o inferno. Ela me pergunta sobre o anticristo, se ele virá. Respondo que sim. O anticristo está entre nós, ele é a própria maldita sociedade profana que tudo transforma em merda. Estamos bem e é só. 12:45. Na cidade desértica incendiada pelo sol saímos para o dia, com os trajes notívagos, besuntados por momentos de glória.

103


104


105


CrĂŠditos das imagens

106


107


DIAGRAMAÇÃO E CAPA

Ricardo H. Rodrigues IMAGEM DA CAPA

TW Jonas, Aproveitou-se dos sonhos da garota Rio de Janeiro, 2015

108


109


110


111


Ela estoura em arroubos crepusculares. Caga flores e fazemos saladas. Na contra mão do amor. E, depois do fim do mundo, um novo processo. Antes me restavam alguns trunfos. Agora só queixa, a queda do perdedor. Humilhado. Ela me atraiu, me traiu. Ao lado dela fiquei constrangido até de pensar. Ela estava com a faca e o queijo na mão.

112


Turn static files into dynamic content formats.

Create a flipbook
Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.