VALOR ECONÔMICO Eu&Fim de semana Os mercados como construções sociais Ricardo Abramovay, para o Valor 24/08/2007
Uma das mais importantes preocupações da sociologia econômica consiste em estudar os mercados como construções sociais e não como entidades cujo funcionamento corrói a cultura, a ciência e os próprios vínculos sociais. Essa preocupação envolve uma crítica tanto à idéia de que mercados são mecanismos neutros de equilíbrio entre indivíduos isolados uns dos outros, como à noção de que são fatores de corrupção e pasteurização da cultura humana. "L'Économie des Singularités", título do livro de Lucien Karpik, sociólogo e professor da prestigiosa École des Mines, de Paris, agora publicado pela editora Gallimard, tem como ponto de partida essa dupla crítica, que faz dos mercados entidades ora endeusadas, ora demonizadas, mas pouco estudadas e compreendidas. Para a escola de Frankfurt, por exemplo, o século XX assiste a uma fantástica atomização social, que faz do consumo e da mercantilização de todas as esferas da vida o prenúncio da barbárie. A obra de arte perde seu sentido especial e único, e torna-se mecânica, por incorporar-se ao mundo das mercadorias. Com isso, a produção artística passa a fazer parte do amplo processo de dominação e alienação social. Essa é a tese central do célebre texto de Max Horckheimer e Teodor Adorno, publicado em 1944, "A Produção Industrial de Bens Culturais - Razão e Mistificação das Massas". A indústria cultural e a submissão do mundo da cultura às exigências do mercado marcam uma regressão da razão, um declínio das capacidades críticas e, portanto, ameaçam a própria vida civilizada. Essa imagem vai além da produção artística e cultural. John Kenneth Galbraith tinha 96 anos quando, em seu último livro, denunciou o mito da soberania do consumidor como parte da "Economia das Fraudes Inocentes" (Companhia das Letras, 2006). A fantástica máquina de propaganda, capaz de dirigir os gostos, faz da identidade entre preferência e escolha uma ficção. As preferências não são livres, mas, sim, moldadas por mecanismos poderosos que os indivíduos não podem
controlar e que corrompem a integridade de suas escolhas. Portanto, por trás da soberania do consumidor só pode existir fraude, ainda que inocente, por estar baseada na crença genuína de que indivíduos autônomos são os mestres de suas próprias escolhas. Entre a imagem canônica dos manuais de economia, em que o mercado é formado pelo equilíbrio de oferta e procura, e a visão opressiva da crítica frankfurtiana, em que os indivíduos são totalmente dominados por forças sobre as quais não exercem qualquer controle, a sociologia econômica procura construir uma alternativa intelectual, cujas conseqüências políticas são fundamentais. Mercados não são entidades impessoais em que unidades autônomas e anônimas se encontram de maneira ocasional, orientadas por sinais emitidos pelos preços. Tampouco, neles, os indivíduos apenas obedecem, sem saber, a determinações que vão além de sua capacidade e vontade. Para que os mercados funcionem, não basta que os indivíduos decidam, com base nos preços. Tanto é assim que, nas sociedades contemporâneas, é cada vez mais importante um conjunto de bens e serviços cujo uso não pode ser decidido fundamentalmente com base em preços. É o caso, por exemplo, da busca de um psicanalista, de um advogado, de um bom restaurante, de um bom vinho, de um produto ou um serviço ecologicamente sustentável. Por mais que os preços contem, os mercados desses produtos não se formam com base nas mesmas regras que caracterizam os mercados de bens de massa e indiferenciados. Exigem modalidades de coordenação econômica que a visão convencional de mercado é incapaz de conter. Deverão ser qualificados, e este é um exercício que exige a construção de dispositivos de julgamento que determinam a maneira como cada mercado monta seu regime de coordenação. E isso não importa apenas para os bens de luxo, mas também para mercadorias cuja qualidade social e ambiental é questionada, como os biocombustíveis ou os transgênicos. O traço decisivo dos bens e serviços singulares é que seu uso não se apóia apenas em decisão calculada. Ao contrário, supõe julgamento, mais que decisão. E esse julgamento envolve um nível de incerteza superior ao que existe nos mercados convencionais, não singulares. As incertezas ligadas às singularidades - por exemplo, a escolha de um dentista, a realização de uma viagem turística, mas também a compra, por uma empresa, de um combustível que não se origine em formas aviltantes
de trabalho ou que não conduza à devastação da floresta tropical - não são dissipadas no momento da aquisição do produto. A concorrência em torno da qualidade é mais importante que a realizada com base nos preços. Por isso, o encontro casual entre oferta e procura - a base da economia de mercado - é muito difícil de realizar-se. Em outras palavras, o mercado é opaco e não funciona como mecanismo automático. Para que possa operar, são necessários dispositivos que auxiliem os indivíduos na formação de seus julgamentos. As colunas de vinho dos jornais, as críticas de cinema, música e teatro, mas também as apelações de origem, a rastreabilidade e as redes de contato personalizadas são dispositivos sociais indispensáveis para que esses mercados possam cumprir sua missão. Não se trata de propaganda ou de mistificação, como bem sabem os que acompanham as crônicas de gastronomia, a crítica literária e as diferentes modalidades de certificação. O importante é que esses dispositivos são construídos socialmente por um conjunto variado de atores. Não resultam de um encontro mágico e espontâneo entre oferta e procura. Mas tampouco podem ser interpretados como mecanismos de dominação onisciente sobre um consumidor totalmente ignorante, passivo, obediente e incapaz de raciocínio. Os "dispositivos de julgamento" são, como insiste Karpik, modalidades de construção da confiança indispensável ao mercado das singularidades. O mercado convencional é regulado pela concorrência de tal forma que, diante de uma decepção, o comprador simplesmente pode mudar de fornecedor. O mercado de singularidades exige a reunião de um conjunto de informações que reduza ao mínimo essa margem de erro. O estudo das singularidades faz parte de um longo percurso em que as ciências sociais dotam-se de meios para examinar os mercados sob o ângulo das qualidades e não fundamentalmente das equivalências. O aparato neoclássico, com suas unidades autônomas e isoladas umas das outras, é totalmente inadequado para isso. O próprio mercado passa a ser visto como construção política, cultural, em cujas estruturas é permanente a intervenção consciente e voluntária dos atores. Nesse sentido, os mercados não são elementos de deterioração da cultura e da vida social, mas, ao contrário, são construídos permanentemente pela própria qualidade dos vínculos estabelecidos, em cada sociedade, entre os indivíduos e entre os grupos sociais. Os mercados não são os invasores da integridade cultural do mundo. Eles se encontram - como provam os
equipamentos sociais em que se apóia o julgamento das singularidades - entre os principais produtos da própria cultura humana. São, portanto, um espaço de atuação política, cujo sentido não é forçosamente o de aniquilar a diversidade, exterminar a cultura e aviltar os laços sociais. Ricardo Abramovay é professor titular do departamento de economia da FEA/USP e do Programa de Ciência Ambiental da USP
Uma aventura antropológica Ricardo Abramovay, para o Valor 24/08/2007
Divulgação
Lucien Karpik: confiança e diversidade são elementos essenciais para desenvolver mercados de singularidades e impedir que ocorram "dessingularizações" As centenas de variedades de queijos, as paisagens, os molhos, os monumentos históricos e uma espécie de olhar crítico permanente, avesso à padronização massificada, ajudam a explicar o desenvolvimento, na França, de um fértil campo de estudos voltados para a "economia da qualidade", ou "das singularidades". Lucien Karpik, um dos nomes mais importantes da sociologia francesa contemporânea, aprofunda essas pesquisas, examinando as condições em que diferentes modalidades de atuação e relacionamento social permitem a construção da confiança do consumidor em torno da qualidade de certos bens e serviços, por meio de dispositivos de julgamento também específicos. Esse é o
tema de seu mais recente livro, "L'Économie des Singularités", publicado pela editora Gallimard. De Paris, Karpik concedeu, por e-mail, a seguinte entrevista ao Valor: Valor: Quais horizontes a economia das singularidades vem abrir para a coordenação de mercados? Lucien Karpik: A coordenação do mercado deve satisfazer três condições, sem as quais a própria continuidade do mercado estaria ameaçada. Em primeiro lugar, a manutenção da confiança nos dispositivos de julgamento, na ausência dos quais nenhuma escolha razoável pode ser feita. As decepções, a desconfiança provocariam a desaparição dos mercados de singularidades. Em segundo lugar, deve-se manter a diversidade das escolhas e, portanto, limitar a concentração do controle dos dispositivos de julgamento. Sem isso, o pluralismo dos critérios de julgamento e dos caminhos do desenvolvimento seriam reduzidos. A concentração excessiva colocaria em questão a originalidade e a pertinência que fundamentam a existência desse universo de produtos. Em terceiro lugar, a coordenação do mercado deve manter a continuidade das singularidades. Para se conseguir isso, é preciso garantir um certo equilíbrio no uso dos meios de persuasão, pois, independentemente de sua eficácia, alguns dispositivos favorecem a "dessingularização", enquanto outros a bloqueiam. Essas ameaças são ainda mais sérias pelo fato de seus efeitos não serem passíveis de identificação no curto prazo. Valor: Pode-se falar em uma tendência geral de que as singularidades tenham importância crescente na organização dos mercados contemporâneos? Ou se trata apenas de mercados especiais, de luxo? Karpik: O universo das singularidades é diversificado. Reúne, entre outros, os bens culturais e os serviços profissionais personalizados, ao lado dos bens de luxo. Cinema, vinho, médico, advogado não podem ser considerados bens ou serviços de luxo. Já faz duas ou três décadas que esse universo não pára de se desenvolver. Segundo o economista Jean Gadrey, representaria, na França, nada menos que um quarto da produção nacional. Há, porém, duas razões que exigem prudência quando se tenta fazer projeções a esse respeito. A origem da mudança se situa tanto na sociedade, como no mercado. Embora seja possível identificar as formas de individualismo e suas relações com os produtos do mercado, nada permite prever sua importância relativa. É uma aventura antropológica, cheia
de incógnitas, que está começando. Além disso, as causas da mudança não estão apenas em forças gerais e impessoais: as decisões dos atores sociais fazem parte dessa mudança. A evolução vai depender, portanto, também da capacidade dos produtores de recusar a "dessingularização" e também do grau de resistência dos consumidores em usar em larga escala, e por comodidade, os dispositivos que favoreçam a "dessingularização". O adversário não é necessariamente o "outro". Ele está também em nós mesmos. Valor: Os dispositivos de julgamento em torno dos quais se constróem os mercados singulares incluem valores éticos, sociais e ambientais? Karpik: Em princípio, o mercado de singularidades é agnóstico. Mas se organiza em torno de produtos que concentram valor simbólico. Num mundo dominado pela extensão da uniformidade, ele se confunde com os valores associados a certas formas de viver. A questão, portanto, envolve uma concepção da "boa" sociedade. É uma questão que envolve um valor multiforme e, no entanto, bem distinto, cuja presença se descobre por meio dos conflitos que surgem em torno da manutenção das obras do passado, da paixão estética, do serviço personalizado, da invenção heterodoxa e, de maneira mais geral, dos estilos de vida.
"Homo sapiens" no mercado Por Cyro Andrade 24/08/2007
AP
O bom vinho, saboreado em casa ou com amigos, é exemplo de singularidade encontrada em mercados que serão sempre uma forma de "construção social" Mercados foram feitos para ser xingados. Pelo que se ouve de uns tempos para cá, é o que merecem essas
entidades malignas, obedientes a nefandos desígnios neoliberais. No entanto, quem não gosta de um bom vinho? Ou de um "gruyère" para acompanhar? E que tal um jantar a dois no Petit Canard, em Nova York? Só aparentemente não há nexo entre essas indagações que se contrapõem. Pois onde se encontrariam o vinho de rótulo vistoso, o queijo de fina procedência, o restaurante de várias estrelas e tantas outras coisas de características muito específicas, senão em situações "de mercado"? Bloomberg
Preços são importantes, mas os mercados de singularidades não se formam, nem funcionam, com base nas mesmas regras dos mercados de bens de massa Mas não serão mercados quaisquer, esses do vinho, do queijo, dos restaurantes elegantes, do cinema, e também dos serviços do psicanalista e até do dentista. Serão mercados nos quais o consumidor é, antes de tudo, um avaliador das "qualidades" do que pretende adquirir, ou seja, os bens e serviços que se destacam por suas "singularidades". O francês Lucien Karpik, nome notável da sociologia econômica, professor da prestigiosa École des Mines, em Paris, está de volta ao assunto, com seu livro "L'Économie des Singularités", publicado pela editora Gallimard. É leitura obrigatória para quem pretenda compreender como funcionam os mercados, sem o grude de análises extremistas que nada explicam e só confundem, freqüentemente atirando teorias e práticas de compra e venda ao poço sem fundo das mistificações ideológicas. Julio Bittencourt / Valor
Mesmo os mercados de massa não são mais pensados, faz tempo, como universos únicos, em que os consumidores são tratados de forma indiferenciada O consumidor de singularidades faz julgamentos, não apenas contas. Esse consumidor não é, então, o "homo economicus" típico das teorias de linhagem neoclássica, aquele sujeito "racional", que procura alcançar o máximo de satisfação, vidrado em utilidade, e solitário nas suas decisões, num mercado de equilíbrio mecânico entre oferta e procura. O consumidor de singularidades - ao mesmo tempo contidas em e representativas de bens culturais, serviços profissionais personalizados, bens de luxo, entre outros - é ator em mercados "socialmente construídos". O "homo economicus", individualista e iludido na pretensão de dispor de todas as informações necessárias para decidir corretamente, é bem mais parecido com as supostas vítimas da sanha neoliberal. O consumidor de singularidades corre riscos, pode errar em suas avaliações, mas não é um autômato egocêntrico. É real, pensa, emociona-se, é socialmente ativo. É um "homo sapiens". Como explica Ricardo Abramovay, professor titular do departamento de economia da FEA e do Programa de Ciência Ambiental da Universidade de São Paulo (ver artigo na pág. 13), "uma das mais importantes preocupações da sociologia econômica consiste em
estudar os mercados como construções sociais e não como entidades cujo funcionamento corrói a cultura, a ciência e os próprios vínculos sociais". Essa linha de pensamento e estudo envolve uma crítica dupla: à idéia de que mercados são mecanismos neutros de equilíbrio entre indivíduos isolados uns dos outros e à noção de que são fatores de corrupção e pasteurização da cultura humana. O livro de Karpik toma como ponto de partida essa ambivalência, "que faz dos mercados entidades ora endeusadas, ora demonizadas, mas quase sempre pouco estudadas e pouco compreendidas", diz Abramovay. Mercados de singularidades têm características que os recomendariam como uma espécie de padrão desejável para todos os mercados. Convém, porém, não fazer transposições apressadas. Em entrevista ao Valor Karpik adverte que a expansão dos mercados de singularidades - que, na França representariam perto de um quarto de todo o produto nacional - ainda é "uma aventura antropológica cheia de incógnitas", que está apenas começando. Uma das razões que sugerem cautela quando se tenta fazer projeções a respeito da generalização dos mercados de singularidades, diz Karpik, está no fato de que essa evolução vai depender "da capacidade dos produtores de recusar a 'dessingularização' e, também, do grau de resistência dos consumidores em usar em larga escala, e por comodidade, os dispositivos que fovoreçam a 'dessingularização'". Isso significa que "o adversário não é necessariamente 'o outro'. Ele está também em nós mesmos". O professor John Wilkinson, do Centro de Pós-Graduação em Desenvolvimento Agrícola da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, doutor em sociologia pela Universidade de Liverpool e pós-doutorado em sociologia econômica pela Universidade de Paris XIII, entende que "a dinâmica da economia de singularidades começa a ser a norma para o conjunto da economia". Isso significa que "a coordenação dos mercados se torna cada vez mais visível, expondo os interesses e valores de distintos grupos". Wilkinson dá exemplos: "Na montagem de sistemas de garantia, de normas e 'standards' e de certificações, pode-se ver o que os sociólogos econômicos chamam de 'construção social' dos mercados." Wilkinson também observa, a esse respeito, que a teoria das convenções, à qual Karpik se associa, trata de questões relacionadas aos modos de interesses passarem pelo crivo de valores publicamente justificados, consagrados em normas técnicas que asseguram a objetividade desses
valores. Os primeiros traços do quadro em que hoje se vêem os mercados de singularidades funcionando datam dos anos 1970, quando a produção em massa começou a ceder lugar, nos países de industrialização avançada, a estratégias de diferenciação e segmentação ditadas por mudanças demográficas, no mercado de trabalho e nos níveis de renda e sua distribuição. Iniciava-se, assim, a promoção de interesses e valores associados a grupos específicos, que passou a predominar nas estratégias de marketing. "Essas 'singularidades' ou 'qualidades específicas'", ensina Wilkinson, "passaram a ser cada vez mais identificadas, não com propriedades aparentes do produto final, mas com as condições, em geral invisíveis, da sua produção. As condições técnicas e sociais de produção, sua origem, os materiais utilizados e não utilizados, tornaram-se as qualidades mais valorizados." Tais qualidades não são comprováveis, nem antes nem, muitas vezes, durante o consumo. Está se falando, então, de "bens de crença" [aqueles cujas características não são observáveis diretamente], sujeitos a uma grande carga de incerteza. Assim, "a falta de informação mina as premissas da escolha racional e exige a negociação de sinais, outros que não os preços, para transmitir a confiança necessária para o funcionamento dos mercados", explica Wilkinson.
No mercado de singularidades, opiniões a respeito do bem ou serviço se formam num jogo de interinfluências que fluem livremente Nesse processo, a economia como um todo se aproxima do setor de serviços, que anteriormente era o repositório privilegiado da economia de singularidades. [Wilkinson lembra que os primeiros trabalhos de Karpik focaram o mundo do direito e da advocacia]. Hoje, mesmo os mercados típicos de commodities, como soja e carnes, precisam de "sinais" - na forma, por exemplo, de certificações de conformidade ambiental. A dinâmica da economia de singularidades começa a ser a norma para o conjunto da economia, avalia Wilkinson. Preços continuam a ser importantes, claro, mas os mercados de singularidades não se formam com base nas mesmas regras que caracterizam os mercados de bens de
massa e indiferenciados, explica Abramovay em seu artigo. Colocam-se, isto sim, passos à frente, ao "exigir modalidades de coordenação econômica que a visão convencional de mercado é incapaz de conter". São mercados, por assim dizer, de qualificação, que "exigem a construção de dispositivos de julgamento determinantes da maneira como cada mercado monta seu regime de coordenação". Essa coordenação vai além daquela que existe nas cadeias agroindustriais, por exemplo. "O interessante nesta abordagem", disse Abramovay ao Valor, "é que envolve o estudo dos mecanismos concretos, palpáveis, de formação dos diferentes elos da cadeia que dá origem ao mercado e analisa a formação do próprio consumidor, sem fazer dele um autômato". Entenda-se que a coordenação não está entregue a uma pessoa ou a uma empresa. Nem a governos. Não há um agente de persuasão ou comando. As opiniões a respeito do bem ou serviço se formam num jogo de interinfluências pulverizadas. O que há é a operação conjunta de dispositivos que variam de acordo com o tipo de singularidade. Esses dispositivos vão de redes pessoais a colunas de crítica especializada, passando por concursos, revistas, certificações, rastreabilidade, ou mesmo informações contidas nos próprios produtos. Enfim, são mecanismos cuja articulação dá sustentação à singularidade dos produtos, permitindo que escapem da massificação, que lhes retiraria esse atributo. No processo, permitem que o consumidor reduza sua incerteza no ato de decidir por este ou aquele produto. Tendo que administrar riscos embutidos em escolhas, o consumidor freqüenta espaços de comunicação alimentada também por ações de marketing. Mas "uma economia de singularidades", diz Wilkinson, "coloca em questão a eficácia de formas tradicionais de marketing, típicas de commodities, ou de produtos cujas qualidades são comprováveis 'ex ante'. No primeiro caso, trata-se de produtos genericamente apropriados a uma determinada situação ou grupo social, cuja adoção tende a se universalizar. No segundo caso, o marketing tipicamente inclui condições de testar o produto antes da compra, ou inclui a possibilidade de devolução num prazo estipulado". Novas tecnologias de marketing surgem para acompanhar tendências de individualização de produtos. Wilkinson refere-se a maneiras como o grande varejo, por exemplo, observado em estudos que adotam abordagens da sociologia econômica francesa, tenta formatar o olhar e a atenção do comprador com base em
sistemas sofisticados de coleta de informações e técnicas de posicionamento dos produtos apoiadas em avanços na psicologia social. "Outros autores dão mais ênfase à inércia ou à autonomia de práticas sociais que protegem o consumidor dessas tecnologias de marketing." Não há como deixar de reconhecer, em qualquer hipótese, que o marketing, e a comunicação em sentido amplo, podem oferecer contribuições importantes para a reflexão e as escolhas do consumidor, inclusive e particularmente em mercados de singularidades. Até porque, mesmo mercados de massa não são mais pensados, faz tempo, como universos únicos, em que os consumidores são tratados de forma indiferenciada, diz Ana Paula Cortat, vice-presidente de planejamento estratégico da Leo Burnett. É preciso lidar com universos de grande heterogeneidade, "o que pressupõe profundo conhecimento do consumidor e, mais que isso, do ser humano, em seus desejos, sua relação com o presente, suas expectativas". Mercados singulares devem ser trabalhados considerando essa mesma heterogeneidade. Com atenção no pormenor de que se trata de universos altamente simbólicos. "Nesses mercados, mais do que nos de massa, a marca adquire o mesmo valor, ou um valor ainda maior do que aspectos funcionais e preço. Marca e produto se unem de forma simbiótica e passam a traduzir um conteúdo, um significado, com o qual o consumidor se identifica", explica Ana Paula. Isso significa que "as estratégias de marketing e propaganda se voltam para valores emocionais, e não para o processo racional de escolha". Desse modo, "a escolha se pauta pela satisfação de necessidades como relacionamento, pertencimento, estima, status social, realização pessoal." Em tais mercados, a exclusividade e a peculiaridade das experiências associadas às marcas transformam valores impalpáveis em diferenciais quase palpáveis, facilmente identificados por quem os procura. "A marca passa a representar quem a usa", diz a vice-presidente da Leo Burnett. No caso de produtos e serviços cujas qualidades são imateriais e que exigem mecanismos especiais de transmissão de confiança, explica Wilkinson, "a elaboração de normas e 'standards' tem sido a estratégia principal [de marketing], com a concessão de certificações por organizações reconhecidas, públicas ou privadas. Em princípio, se essas normas forem difundidas para o conjunto dos atores num mercado determinado, a concorrência poderá dar-se em torno da reputação das
marcas" [com a veiculação de qualidades específicas inerentes a cada uma delas]. Na economia de singularidades, conflitos de interesses e de valores giram, basicamente, em torno da definição e da natureza desses "standards" e sistemas de certificação, diz Wilkinson. Isso leva a uma tensão permanente entre os esforços para dar a esses valores, imateriais, um lugar na interioridade dos mercados convencionais e a promoção de canais alternativos para preservar a autenticidade dos valores que sustentam a nova economia de singularidades. Transcorre nesse cenário a "aventura antropológica" de que fala Lucien Karpik.