Cooperativismo de crédito: efeitos contraditórios de uma legislação restritiva Ricardo Abramovay In SANTOS, Carlos Alberto dos, org. (2004) – Sistema Financeiro e as micro e pequenas empresas – Diagnósticos e perspectivas – SEBRAE – Brasília pp. 151-157
O cooperativismo de crédito está passando por um momento de transição decisivo. Seu amadurecimento profissional permitiu que o marco regulatório dentro do qual atuou até aqui fosse consideravelmente ampliado. As discussões do Grupo de Financiamento e Capitalização das Micro e Pequenas Empresas do SEBRAE refletem claramente este processo de mudanças. O Grupo dedicou duas sessões ao cooperativismo de crédito. O que mais chama a atenção no resultado das discussões é a diversidade e as imensas diferenças que caracterizam o cooperativismo de crédito. Ao mesmo tempo, chama a atenção a colaboração ativa tanto das diferentes organizações entre si, quanto entre elas e os técnicos do Banco Central. Participaram das reuniões representantes de quase todas as organizações brasileiras deste segmento, além de membros do Banco Central e do SEBRAE. Além disso foram apresentadas iniciativas inovadoras no campo do financiamento às empresas. Por fim, dos debates saíram propostas importantes.
1. As organizações O que caracteriza os dois maiores sistemas do cooperativismo brasileiro de crédito (o SICOOB e o SICRED) é que ambos possuem um banco que lhes permite existir como organização financeira plena: as outras cooperativas são obrigadas a recorrer a bancos na prestação de alguns serviços a seus associados (compensação bancária, por exemplo). São bancos comerciais, que podem realizar as operações comuns do sistema bancário. Mas são voltados para atender às necessidades das cooperativas. São bancos extremamente enxutos, com a estrutura mínima necessária. O SICOOB está presente em vinte Estados brasileiros e tem um peso considerável no Nordeste. Tanto o SICRED como o SICOOB (sobretudo este último) têm presença muito importante no meio rural. O SICRED existe em seis Estados da Federação, todos no Sudeste e Sul do Brasil Atende, fundamentalmente, segmentos importantes das classes médias urbanas e rurais. Ambos são especialmente ativos na construção das novas modalidades de cooperativas aprovadas recentemente pelo Banco Central: de livre admissão, de micro e pequenos empresários e de empresários de um mesmo setor. O terceiro maior sistema cooperativista do Brasil é o UNICRED, a união de profissionais da área da saúde sob a forma de cooperativa de crédito onde a missão principal é assessorar econômica e financeiramente seus cooperados, ou seja: agregar, administrar, manter e otimizar os recursos gerados pelo quadro social, garantindo a satisfação de suas necessidades e a excelência dos resultados através de atendimento personalizado com produtos e serviços de qualidade. A UNICRED procura atenuar as restrições que os bancos
opõem à concessão de crédito aos profissionais da Saúde. Mas ela se distingue por sua organização rigorosamente profissional e por um esforço permanente de incutir nos associados uma cultura de boa gestão do crédito e do conjunto de atividades aos quais o crédito está voltado. O sistema tem alta rentabilidade e excelentes índices de saúde financeira. Estão discutindo, atualmente, se criam um banco próprio ou se continuam atuando via parcerias. O quarto mais importante sistema cooperativista brasileiro é o CRESOL, cooperativas de crédito solidário. É certamente a experiência mais inovadora, sob o ângulo institucional, por conciliar duas exigências, aparentemente incompatíveis. A primeira refere-se à composição social das cooperativas: o sistema só admite como seus associados agricultores familiares, entendidos como aqueles cujas unidades produtivas são trabalhadas e geridas por indivíduos que possuem entre si laços de parentesco ou de casamento. Surgido no Sudoeste do Paraná e no Oeste de Santa Catarina na segunda metade dos anos 1990, o sistema teve origem em fundos rotativos que eram distribuídos, a fundo perdido, por organizações internacionais (Misereor, por exemplo). Na maior parte das vezes, estes fundos rotativos foram de curtíssima duração, já que não havia incentivos para que os agricultores pagassem os montantes emprestados. Providos de um rico tecido social em matéria de organizações de desenvolvimento, os agricultores do Sudoeste do Paraná perceberam que seria importante dotar estes fundos de uma estrutura organizacional formal que universalizasse suas regras de aplicação. Criaram então as primeiras cooperativas de crédito, mas estabeleceram explicitamente o objetivo de lutar contra a exclusão bancária e ao mesmo tempo de fazê-lo no âmbito de organizações financeiramente sustentáveis. Com isso, o Sistema CRESOL tornou-se referência nacional obrigatória, como exemplo de inovação institucional no campo do cooperativismo de crédito. Uma das discussões interessantes que hoje o Sistema CRESOL enfrenta consiste em saber se as cooperativas rurais devem converter-se em organizações de micro e pequenos empresários: isso permitiria que atendessem também ao comércio e à indústria das localidades onde existem. O Sistema ECOSOL de crédito solidário ainda se encontra em fase de formação. Trata-se de iniciativa tomada pela Agência de Desenvolvimento Solidário da Central Única dos Trabalhadores. As cooperativas melhor implantadas da ECOSOL são as de assalariados urbanos (bancários, metroviários, aeroviários, funcionários públicos). É muito limitado, conforme mostra o texto de apresentação deste capítulo, de Ricardo Abramovay, o papel destas organizações no processo de desenvolvimento. O sistema ECOSOL deu início à criação de várias cooperativas de crédito rural. Um ponto fundamental de concordância entre todos os participantes das reuniões é que a organização do cooperativismo em sistemas abre perspectivas muito promissoras de crescimento, diversificação e, sobretudo, possibilita que se alargue o alcance das iniciativas e do público atingido pelas cooperativas. O SEBRAE vem trabalhando no sentido de divulgar melhor o cooperativismo, de qualificar o micro empresário para o crédito e de contribuir à elaboração de novos produtos financeiros ao alcance das capacidades econômicas de seu público.
2. Iniciativas inovadoras
Duas iniciativas exemplares foram relatadas. A primeira vem de Maringá (PR), que, desde 1996 organiza suas atividades públicas (estatais e não estatais) em torno de um plano de desenvolvimento chamado Maringá 2020 e que conta fortemente com a adesão da sociedade local. Empresários, organizações da sociedade civil, Universidade, governo municipal e várias secretarias de Estado participam ativamente da implementação deste plano. Neste contexto é que as cooperativas de crédito podem ter papel importante de trabalhar com taxas de juros inferiores às cobradas pelos bancos e de reduzir o nível de garantias que eles exigem para conceder os financiamentos. A segunda experiência é da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (FIESP). A principal constatação da FIESP é que os bancos não têm interesse no real funcionamento de fundos de avais que resultem na redução das taxas de juros por meio de ampliação das garantias bancárias. Para isso, a própria FIESP está em fase final de montagem de três cooperativas de crédito. Além disso, a FIESP está criando fundos de recebíveis e instituindo um sistema de leilão de crédito para duplicatas que poderá beneficiar consideravelmente o micro e pequenos empresários que hoje fazem estas operações junto aos bancos.
3. Propostas e pontos de discussão a) As cooperativas reivindicam atuar no repasse de recursos do Fundo de Amparo ao Trabalhador (FAT), que hoje só podem ser transferidos aos bancos federais. No caso do sistema CRESOL, por exemplo, o pagamento de spread e taxa administrativa ao Banco do Brasil não se justifica sob o ângulo da racionalidade econômica. Este pagamento não seria necessário, caso houvesse acesso direto aos recursos do FAT. Além disso foram propostas medidas para que o conjunto das transferências governamentais sobretudo as voltadas a populações pobres não seja feito exclusivamente por meio de bancos federais, mas possam contar também com a participação das cooperativas. b) A simples existência das cooperativas representa uma salutar concorrência com os bancos e obriga-os a cobrar mais barato pelos serviços que prestam. Mas o principal desafio atual é o de colocar a experiência do cooperativismo a serviço do fortalecimento do tecido empresarial de cada região. Houve consenso de que a legislação – discutida permanente entre os atores do segmento, o Banco Central e o próprio SEBRAE – evolui num sentido muito positivo. c) É impossível estabelecer um consenso sobre os limites da regulamentação do mercado financeiro por parte do Banco Central. As posições no grupo foram muito variadas, neste sentido. Alguns enfatizavam que várias determinações legais – a proibição de exigência de contrapartidas na concessão de empréstimos baseados em recursos públicos, por exemplo – não eram cumpridas e que a fiscalização do Banco Central, nestes casos, era quase inexistente. Saber se a repressão a este tipo de prática (denunciada recentemente, de forma ampla pela imprensa, com base em pesquisa feita
pelo BNDES junto a micro e pequenos empresários) era da alçada do Banco Central também foi um tema polêmico. Outros insistiam nos perigos de que o excesso de regulamentação trouxesse efeitos contrários aos desejados: é o caso, por exemplo, da aplicação de recursos poupados numa determinada região, no fortalecimento de sua economia local. d) Está em discussão com o Banco Central a adoção de incentivos que estabeleçam uma diferença entre as cooperativas por tamanho, para beneficiar e estimular organizações que atuem em municípios rurais, especialmente os desprovidos de outros serviços financeiros. e) Alguns cooperativas pleiteiam a possibilidade de criarem Sociedades de Crédito ao Microempreendedor (SCM) para que possam trabalhar com público de muito baixa renda.