RICARDO ABRAMOVAY (*)
março de 2006
muito além da filantropia “O homem cujo espírito encontra-se totalmente absorvido na luta pelo sucesso nos negócios tem, geralmente, pouca energia a consagrar a qualquer outra atividade séria – um pouco de filantropia e um pouco de colecionismo mais ou menos esclarecido são para ele o suficiente.” É com esta célebre frase de Schumpeter que tem início o livro “Financiers, philantropes – Sociologie de Wall Street” (Nicolas Guilhot – Paris - Raisons d’Agir – 2006), publicado na coleção fundada em 2000 por Pierre Bourdieu. O diagnóstico não poderia ser mais severo: longe de representar uma contrapartida ou uma atenuação de seus efeitos mais perversos, a filantropia integra-se de maneira perfeitamente coerente às necessidades da acumulação capitalista e mal disfarça a origem e as práticas moralmente duvidosas em que se apóiam as fortunas de que depende. O livro de Guilhot merece menção por representar um ponto de vista bastante comum a respeito da responsabilidade social empresarial: trata-se, para ele, de manobra destinada, antes de tudo, a fortalecer o poder dos poderosos e a jogar areia nos olhos do público com relação ao que fazem em seus negócios. Apesar do interesse que suscitam alguns dos exemplos publicados no livro, ele peca por não levar em conta duas dimensões centrais tanto da filantropia como da responsabilidade social empresarial. Em primeiro lugar, uma análise sociológica da filantropia não pode concentrar-se apenas nas motivações e nas práticas dos doadores. Tem que levar em conta a maneira como são usados os recursos doados. No caso brasileiro, por exemplo, até meados dos anos 1970 a maior parte dos recursos dirigidos a trabalhos de educação popular – muitos dos quais na origem de importantes movimentos sociais – vinha de Organizações Não Governamentais de países desenvolvidos. Com o fim da ditadura e, posteriormente, com a queda do Muro de Berlim e o agravamento dos problemas
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sociais na África Subsaariana, estes recursos tornaram-se cada vez mais escassos no Brasil, o que obrigou muitos grupos a se voltarem à captação interna de fundos para o financiamento de seus trabalhos. Ao mesmo tempo, grandes empresas brasileiras – estatais e não estatais – começavam a investir, de forma profissionalizada, em iniciativas de organização comunitária voltadas à educação, à cultura, à proteção à infância e à luta contra a violência, com resultados muitas vezes interessantes. Uma análise sociológica da filantropia não pode ignorar que trabalhos de organização de base, no mundo todo – muitos dos quais acabam resultando inclusive em contestação social vigorosa –, contam freqüentemente com recursos vindos de grupos e fundações pertencentes a grandes empresas. Mais que isto, vai-se formando uma institucionalidade – expressa na existência, hoje, de uma Associação Brasileira de Organizações Não Governamentais, a ABONG –, que tende a exercer um controle social significativo sobre as práticas da filantropia e até sobre a origem de seus recursos. Ou seja, a idéia de que a filantropia esconde uma caixa preta em cujo conteúdo está exatamente o contrário das práticas construtivas que preconiza é cada vez menos verossímil. A segunda dimensão que este tipo de abordagem da filantropia não leva em conta é mais geral e se refere à instituição básica em que se apóia o funcionamento de uma economia descentralizada: os mercados. Na abordagem neoclássica convencional, os mercados não guardam qualquer relação com algo que se aproxime de responsabilidade social ou ética: eles são pontos de equilíbrio (entre oferta e procura) que operam graças ao funcionamento de um mecanismo que supõe autonomia, independência e separação dos agentes, uns com relação aos outros. No mundo da livre concorrência, os indivíduos e as firmas recebem,
pela sinalização dos preços – e apenas por ela –, as informações básicas que lhes permitem decidir com relação ao uso dos fatores de que dispõem. O sistema é autocorretivo, e a ausência de vínculos permanentes entre seus protagonistas é a condição de sua própria fluidez. Mas os mercados podem ser vistos também sob outro ângulo: não como pontos de equilíbrio, mas como estruturas sociais, isto é, como formas recorrentes e padronizadas de interação sujeitas a sanções e funcionando sobre a base da partilha de um conjunto de informações e referências cognitivas que não se limitam à simples informação contida nos preços dos bens e dos serviços. Embora a idéia de “estrutura social” seja de natureza sociológica, a própria economia contemporânea dela se aproxima quando procura teorizar e formular modelos que vão além dos pressupostos básicos de uma economia de livre concorrência e integra elementos como a assimetria de informação entre os agentes, a especificidade de seus ativos e, sobretudo, sua tentativa de enfrentar com antecipação situações de alto risco, cujas conseqüências podem ser atenuadas, mas nunca exatamente previstas.
As explicações de Hommel para este fenômeno paradoxal – o engajamento das empresas em torno de objetivos que envolvem custos aos quais não estão obrigadas diretamente pelo poder público – são interessantes por mobilizarem na explicação do comportamento econômico conceitos que pertencem à tradição sociológica. Existe uma interação real entre os diferentes tipos de tecnologia adotados e os fenômenos sociais em que estão inseridos: proteção ambiental, segurança sanitária e conseqüências sociais de determinadas práticas produtivas podem ser objeto de contestação social – não antevista na legislação – capaz de jogar por terra anos de esforço produtivo e de questionar a própria organização de determinados setores. Longe de ser a expressão neutra, impessoal de forças atomizadas, que se relacionam umas às outras apenas por meio dos preços, as empresas, cada vez mais, são obrigadas a buscar legitimidade e a enfrentar ameaças de contestação em torno do que fazem. Thierry Hommel procura mostrar que a gestão capaz de antecipar o potencial de contestação (gestion antécipative de la contestabilité) visa evitar conflitos de legitimidade com outros atores econômicos e sociais e, por aí, a garantir o próprio funcionamento de uma empresa ou de todo um setor.
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É com este tipo de preocupação que Thierry Hommel, um jovem economista francês, publica em 2004 « Stratégies des firmes industrielles et contestation sociale » (Paris, CEMAGREF/CIRAD/IFREMER/Éditions INRA) onde constata que muitas firmas contemporâneas procuram enfrentar os problemas ambientais que provocam, mesmo que não sejam pressionadas diretamente, neste sentido, pela legislação existente. Sua abordagem ajuda a ampliar o horizonte analítico da responsabilidade social empresarial.
sociais franceses na área ambiental e que escreve o prefácio do livro de Hommel, o governo conta, cada vez mais, com o engajamento voluntário dos agentes econômicos para cumprir objetivos ambientais: é o caso do compromisso dos fabricantes europeus de automóveis de reduzir o consumo unitário de combustíveis e as emissões de gás carbônico em 25% até 2008, comparado com os níveis de 1990.
O interesse desta abordagem é que a responsabiliA teoria econômica tende a atribuir os problemas ambientais a falhas da auto-regulação mercantil. Caberia então ao Estado orientar as ações corretivas dos atores privados. Porém, nos últimos vinte anos, são cada vez mais comuns situações em que empresas, grupos de empresas e setores econômicos dotam-se de cartas de princípios e adotam práticas voltadas explicitamente à preservação ambiental sem que sejam a isso levadas pela pressão direta do poder público. Como bem mostra Olivier Godard, um dos maiores cientistas
dade social empresarial aparece como componente organicamente integrado ao próprio funcionamento dos mercados dos quais dependem as empresas e não como manifestação de boa consciência ou da tentativa de atenuar os efeitos nefastos das atividades econômicas. Sob o ângulo metodológico, não exige a supressão das premissas centrais da abordagem econômica da vida social, segundo a qual os indivíduos movem-se antes de tudo por interesse. Mas ela oferece instrumentos conceituais para que esta regra geral – a
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busca de seus interesses por parte dos indivíduos e das empresas – seja estudada a partir de suas determinações sociais.
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A convergência com as abordagens recentes da chamada Nova Sociologia Econômica – disciplina que vem ganhando força nos Estados Unidos e na Europa – é notável: gerir, de forma antecipada, o potencial de contestação a que uma firma está exposta supõe que os mercados de que ela depende não correspondem ao padrão atomizado, fragmentado, impessoal e neutro que lhe atribui o pensamento econômico convencional. Da mesma forma, a própria explicação neoclássica da ação econômica é colocada em questão. Neil Fligstein, por exemplo, um dos mais expressivos nomes da Nova Sociologia Econômica, mostra que o fundamental na ação econômica é a tentativa permanente dos agentes de estabilizarem suas relações uns com os outros. Uma firma não sobreviveria caso se lançasse num leilão permanente em que trocasse seus fornecedores a todo o momento conforme os preços oferecidos. Ao contrário, os mercados podem ser vistos como formas de estabilizar relações dos agentes uns com os outros para atenuar os efeitos destrutivos das variações nos preços sobre seus vínculos. É claro que estes vínculos não são eternos, e que os mercados são instáveis por definição. Exatamente por isso, as empresas procuram atenuar esta instabilidade e a explicação sociológica consiste exatamente em definir a partir de que modelos de relações e estruturas sociais o fazem. Esta estabilização passa não só pela clara definição dos direitos de propriedade, das regras de troca e das formas de governança num determinado mercado, mas também por concepções de controle, isto é, por uma dimensão cognitiva sem a qual não podem ser formados laços sociais duráveis entre os atores na esfera econômica. E é por isso que num dos mais importantes livros da Nova Sociologia Econômica (The Architecture of the Markets - an economic sociology of twenty-first-century capitalist societies. New Jersey,
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Princeton University Press, 2001) Neil Fligstein insiste na pertinência de uma abordagem político-cultural nos estudos dos mercados. Isto abre caminho para compreender novas modalidades de organização corporativa, mas também para a análise de fenômenos recentes como os dos mercados solidários. Em suma, responsabilidade social empresarial só pode ser considerada pura manobra diversionista e cortina de fumaça caso se encarem os mercados como entidades impermeáveis à manifestação dos interesses sociais, funcionando exclusivamente enquanto expressão de equilíbrio entre oferta e procura sob a forma de preços. Caso – e este é um terreno atual de convergência entre abordagens econômicas e sociológicas contemporâneas – os mercados sejam vistos como estruturas sociais, formas de estabilização das relações entre os atores, é claro que estarão sujeitos a pressões e não poderão deixar de incorporar em seu funcionamento as próprias contradições de que é feita a vida social.
(*) Professor-titular do EAE/FEA/USP e da Cátedra Sérgio Buarque de Holanda da École des Hautes Études en Sciences Sociales (Paris) – www.econ.fea.usp.br/abramovay/