Finanças de proximidade e desenvolvimento territorial no semi-árido brasileiro Ricardo Abramovay*
In – COSSÍO, Maurício Blanco, org. (2003) - Estrutura Agrária, Mercado de Trabalho e Pobreza rural no Brasil – capítulo 12 – no prelo
Apresentação A construção de um sistema financeiro que estimule a geração de renda por parte das populações hoje vivendo em situação de pobreza no semi-árido nordestino choca-se contra três obstáculos intelectuais básicos. O primeiro é o que confunde microfinanças com microcrédito e subestima o papel da poupança local nos esforços de investimento de uma determinada comunidade e a importância do pleno acesso ao sistema bancário para o sucesso de empreendimentos econômicos promissores. O segundo é o que vê na precariedade da agricultura a fonte praticamente exclusiva da pobreza rural e preconiza o crescimento agrícola como motor quase único da emancipação social no semi-árido. O terceiro consiste na prática arraigada de pré-selecionar, a partir de critérios objetivos (nível de renda, educação, população vivendo da agricultura, tamanho dos estabelecimentos etc.), os municípios onde vai concentrar-se a ação pública garantindo-lhes de antemão a transferência de recursos, independentemente da qualidade dos projetos que sejam capazes de elaborar. Estes três preconceitos estão profundamente enraizados nas instituições nacionais e internacionais que lutam contra a pobreza rural. Assim, o próprio desenho de uma proposta potencialmente inovadora de desenvolvimento corre o risco a tomar as formas já conhecidas da política pública: definem-se municípios (ou critérios com base nos quais serão escolhidos) e, dentro destes municípios, um determinado público (os assentados e os que vivem no entorno dos assentamentos, por exemplo); atribui-se um certo montante de recursos, mobilizam-se as agências financeiras capazes de fazer com que estes recursos cheguem às mãos dos destinatários previamente delimitados e mobiliza-se a assistência técnica e mesmo uma certa assistência educacional para garantir sua boa utilização. O que tem mostrado a literatura econômica voltada ao estudo das instituições é que os caminhos tomados pela vida social (tanto na adoção de tecnologias, como nos rumos de certas políticas, por exemplo) refletem menos a racionalidade e a eficiência das propostas e das organizações que o conjunto de forças e influências já existentes e que empurram programas e políticas numa certa direção. Brian Arthur (1988) fundamenta aí sua crítica à própria idéia neoclássica de que o funcionamento dos mercados conduz, espontaneamente, a soluções mais eficientes e abre o caminho para compreender que a ineficiência pode perdurar num sistema social como resultado da configuração de forças já existente. O mesmo raciocínio pode ser aplicado às políticas públicas que são permanentemente *
Professor titular do Departamento de Economia da FEA e presidente do Programa de Pós-Graduação em Ciência Ambiental da USP – abramov@usp.br
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magnetizadas pelos caminhos já conhecidos e traçados: é o que os institucionalistas contemporâneos chamam de “dependência de caminho ” (path dependence). É claro que existem inúmeras definições de “instituição ” nas ciências sociais. O importante é que, em todas elas – isso é comum à sociologia e à economia – a instituição liga-se a normas, regularidades de comportamentos, expectativas de condutas e crenças associadas a uma certa inércia nas formas de relação social. É exatamente neste sentido que o historiador Avner Greif (2001) fala em falhas de transferência institucional: a estrutura de uma certa política, seu desenho organizacional podem ser transferidos dos planejadores para a realidade concreta em que será executada. Entretanto, não se constroem, no mesmo ritmo, expectativas, “modelos mentais partilhados ” (Denzau e North, 1994), normas de conduta com a facilidade que se montam estruturas administrativas (1). A transferência de recursos para regiões pobres – e esta não é uma característica estritamente brasileira - tem sido, com grande freqüência, a ocasião de reforçar estruturas de dominação e clientelismo que estão na raiz da própria pobreza. Qual deve ser o formato de um sistema financeiro voltado fundamentalmente ao combate à pobreza rural no semi-árido do Nordeste brasileiro? O que caracterizou a política pública brasileira até hoje, neste sentido, foi a tentativa de utilizar o sistema bancário estatal para a transferência de crédito a populações desprovidas de garantias e contrapartidas. O resultado tem sido duplamente frustrante: por um lado, apesar de um crescimento notável, os programas creditícios atingem apenas uma minoria entre os agricultores familiares do País. Além disso, o acesso ao crédito raramente se acompanha da possibilidade de uso do conjunto de serviços que o sistema bancário tem a vocação de oferecer. A transferência de recursos creditícios acaba não se traduzindo numa dinâmica de investimentos capaz de representar um salto qualitativo na luta contra a pobreza. Pior: uma vez que o formato da política de crédito tem consistido, até aqui, na tentativa de se colocar agências bancárias comerciais em contato com populações pobres, os custos da assimetria desta transação recaem sobre o Tesouro Nacional: quanto mais a política chega a populações pobres, maiores são as contrapartidas que os bancos (ainda que estatais) recebem do Tesouro para levar adiante suas operações (Dias, Abramovay, Bittencourt, 2001). Ou então o Tesouro assume os riscos das operações e o resultado é a inadimplência generalizada. A construção de um sistema financeiro local - que o último relatório do Centre Walras chama com razão de finanças de proximidade (Servet e Vallat, 2001:13) – não pode ter como objetivo central simplesmente repassar créditos oficiais a um custo inferior ao atualmente cobrado pelos bancos na operação do Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar, o PRONAF. O desafio básico está em construir um conjunto de organizações locais que estimule a poupança e a diversificação dos investimentos das populações vivendo hoje em situação de pobreza no meio rural. Este objetivo pode parecer conflitante com a própria pobreza hoje existente, como se primeiro fosse necessário gerar renda para só então pensar na formação de poupança local. Este trabalho apóia-se na hipótese – fortemente corroborada pela literatura internacional e mesmo por algumas informações brasileiras – de que existe um considerável potencial de poupança, entre as Aí reside uma fonte de explicação para os problemas operacionais encontrados pelos inúmeros conselhos de gestão e de desenvolvimento que se formaram no País nos últimos anos. Ver Abramovay, 2001a. 1
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populações pobres, vindo de transferências públicas e privadas de renda. O problema básico é que aos pobres são abertas modalidades precárias e restritas de valorização desta poupança: o gado, por exemplo, é uma forma freqüente, mas perversa, de conservação das economias dos agricultores pobres que reflete o bloqueio de seu acesso a modalidades mais seguras e líquidas de depósito de seus recursos. Esta poupança, que se confunde com o próprio patrimônio produtivo das famílias (o gado, por exemplo), além de sujeitar-se a perdas e depreciações, não pode ser reunida para suscitar investimentos produtivos. A constatação básica que torna necessária a construção de um sistema financeiro de proximidade, capaz de estimular as atividades econômicas das populações mais pobres, é que parte importante da renda monetária dos pobres no campo é hoje simplesmente esterilizada por um ambiente institucional que não estimula a poupança e que inibe os investimentos. Este texto pretende definir algumas condições e alguns limites da construção de um sistema de finanças de proximidade no semi-árido nordestino. Ele foi inspirado por uma demanda dos organizadores do Projeto Dom Helder Câmara, que, com base em recursos governamentais e do Fundo Internacional de Desenvolvimento para a Agricultura (FIDA/ONU), deu início a um conjunto de iniciativas voltadas especialmente ao desenvolvimento do semi-árido (2). O texto não entra no detalhamento operacional, na estrutura administrativa ou jurídica de tal sistema. A idéia central em torno da qual o trabalho se organiza é que um sistema de finanças de proximidade no semi-árido pode desempenhar papel estratégico na incorporação ao processo de desenvolvimento das populações hoje vivendo em situação de pobreza. Uma vez que se trata de uma proposta para a organização de um sistema financeiro descentralizado o texto está organizado na forma de seis proposições em torno das quais são expostos os argumentos que o fundamentam. 1. A principal hipótese em que se apóiam os investimentos que o Projeto Dom Helder pretende fazer em municípios do semi-árido nordestino é que a luta contra a pobreza na região passa fundamentalmente pelo reforço do empreendedorismo individual e coletivo. Até aqui a contribuição do trabalho assalariado na geração de renda no semi-árido nordestino tem sido muito limitada. Estudo recente do IPEA e da SUDENE (2001) localizou as 18 microrregiões mais dinâmicas do semi-árido nordestino levando em consideração três critérios: a evolução dos depósitos bancários durante os anos 1990, o aumento da produção agropecuária e os rendimentos do emprego assalariado no mesmo período. Para efetuar os cálculos o estudo concentrou-se no emprego assalariado formal do setor privado, cujas declarações são registradas pela RAIS. Embora se trate de um indicador imperfeito da situação do trabalho assalariado (cuja esmagadora maioria é sabidamente informal), chama a atenção o fato de existirem, nestas 18 microrregiões mais dinâmicas do semi-árido (e que reúnem quase dois milhões de habitantes) um total de apenas 26 mil empregos formais no setor privado - ou seja, excluindo-se as prefeituras, os empregos estaduais e federais.
Para maior detalhamento sobre http://www.projetodomhelder.org.br/ 2
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Mesmo que se projete um horizonte altamente favorável de criação de novos empregos – o que não parece ser o caso ao menos para os próximos dois anos no Nordeste e, sobretudo no semi-árido – é muito difícil acreditar que a expansão do trabalho assalariado, fruto do progresso econômico das áreas mais dinâmicas do semi-árido possa contemplar o essencial da necessidade de geração de renda para a população vivendo hoje em situação de pobreza. Por maior que seja o poder da criação de trabalho assalariado em função do crescimento das atividades mais dinâmicas do semi-árido uma parte muito importante da geração de renda vai depender antes de tudo do trabalho autônomo e familiar. O reforço do empreendedorismo resulta de uma combinação – sobre cuja natureza as ciências sociais têm se concentrado de maneira crescente – entre um certo ambiente social e um conjunto de políticas públicas. O empreendedorismo tende a ser mais forte ali onde o tecido econômico e social é mais denso: a existência de bancos, a diversificação econômica, a presença de gama variada de serviços públicos contribuem para reforçar as redes que vão estimular as iniciativas empresariais, sobretudo das populações mais jovens. O que a sociologia econômica contemporânea vem mostrando de maneira persuasiva é que “a capacidade das comunidades para mobilizar recursos e pessoas e organizar as atividades econômicas está baseada na coordenação e na ação coletiva entre indivíduos. As organizações econômicas estão formadas por indivíduos que trabalham de maneira interdependente para produzir bens e serviços; e as interdependências requerem coordenação para assegurar que atividades como a mobilização de capital e trabalho, a divisão de tarefas e a distribuição dos ganhos sejam desenvolvidas recorrentemente ” (Wanderley, 1999:31). O mais importante é o ambiente institucional que permita a ampliação das redes sociais em que os indivíduos inserem suas atividades: o belo catálogo produzido pelo Projeto Comunidade Solidária sobre o trabalho artístico de fiação no município de Pedro II, no Piauí, revela uma criatividade formidável e um potencial de inserção mercantil altamente promissor. Grandes estabelecimentos comerciais de São Paulo já tentaram comprar estes produtos. Entretanto, a produção não cresce pela dependência em que se encontram os artesãos locais daqueles que financiam o fio com que tecem seus produtos. Ao mesmo tempo, como não há uma tradição de relacionamento estável com mercados exigentes, os produtos dificilmente se padronizam e a própria oferta é irregular, o que contribui para afastar os potenciais compradores (3). Este é apenas um exemplo de que mesmo quando se escapa dos produtos tradicionais agrícolas o destino das novas atividades promissoras depende da maneira como se constrói a rede de confiança não só no interior das comunidades, mas, sobretudo entre as populações locais e os atores externos dos quais a geração de renda vai depender (4). Por maior que seja a expansão dos meios de comunicação, o que caracteriza os pequenos municípios brasileiros é que seu círculo de relações sociais, sobretudo o dos mais pobres, inibe a diversificação econômica e não permite que a
Agradeço as informações que me foram prestadas por Rodrigo Junqueira, ex-secretário de Agricultura do município de Pedro II. 4 É o que, na literatura recente sobre capital social, vem sendo chamado da dimensão “bridging ” (que se refere a ponte, à capacidade de estabelecer conexões), em contraposição à dimensão “bonding ” (que se refere a cola, à coesão social interna a um certo grupo) das relações sociais (Woolcock (1998), Narayan (1999) e Moyano (1999). 3
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valorização de seus produtos e sua cultura – cada vez mais apreciados nos grandes centros urbanos – possa converter-se em fator de emancipação social. As experiências de microfinanças examinadas recentemente pela OCDE (1998:14-15) mostram que o sucesso de empreendimentos econômicos em regiões pauperizadas depende da alquimia – o termo exprime bem o caráter ainda incipiente do conhecimento a respeito do assunto – de dois aspectos: por um lado, da mobilização das forças vivas do meio local, capazes de produzir e realizar coletivamente um projeto de desenvolvimento que inclua as preocupações ligadas à qualidade de vida e à inserção social; por outro lado, é fundamental encontrar os recursos técnicos e financeiros necessários a que os projetos sejam não só concebidos, mas executados plenamente, o que supõe um conjunto de instrumentos que permitam: a) produzir as condições de emergência de idéias inovadoras pela concertação dos atores locais e aproveitando os talentos dos empreendedores do próprio meio em que se está atuando; b) dispor dos recursos, dos contatos, para levar estas idéias adiante por meio de assessoria técnica consistente e c) ter acesso a financiamentos adequados. Nada mais distante deste objetivo e dos métodos que ele subentende que a noção tão arraigada na política pública brasileira de que certos municípios devem receber recursos em virtude fundamentalmente da sua pobreza. Que seja necessário transferir renda para municípios e populações pobres, disso não há dúvida: o problema é que o automatismo destas transferências suprime o estímulo à elaboração criativa e contratual de projetos a partir dos quais estes recursos poderiam, de fato, ser valorizados e reproduzidos. Uma vez que os municípios já são pré-selecionados, os projetos tendem a tornar-se não a síntese da organização reunindo os atores e os poderes locais, mas um ritual burocrático que se parece mais a uma “lista de compras ” que à antevisão de um processo no qual devem emergir novas atividades (Abramovay, 2001a e IPARDES, 2001). A cultura da pré-seleção tem efeito tanto mais paralisante que – sobretudo nos pequenos municípios – os principais técnicos voltados à elaboração dos projetos são extensionista rurais, o que reforça uma ótica estritamente setorial (agropecuária) das demandas e inibe que se juntem forças diversas em direção ao objetivo comum de valorizar não um determinado setor, mas o conjunto de um território. O reforço ao empreendedorismo, portanto supõe participação de financiamento público, a participação de várias organizações estatais, mas, sobretudo, projetos que contratualizem a relação entre as iniciativas locais e aqueles que vão assisti-las e financiá-las. 2. O Projeto Dom Helder Câmara pode contribuir para o reforço do empreendedorismo individual e coletivo estimulando e apoiando o surgimento de um sistema de finanças de proximidade voltado fundamentalmente a iniciativas promissoras e que hoje escapam ao âmbito de ação do sistema bancário. A criação, nos países desenvolvidos, de mecanismos variados contra a “exclusão financeira ” reflete a constatação generalizada de que os bancos – como resultado da padronização de seus produtos e da própria globalização dos mercados – reforçaram a seleção de suas clientelas e tendem a eliminar operações administrativamente onerosas ou voltadas a empresas portadoras de risco potencialmente elevado (OCDE, 1988:17-18). Nos Estados Unidos, desde 1977 a lei proíbe a prática bancária do redlining (de envolver numa linha vermelha as zonas em que a atribuição de empréstimos seria evitada pelo gerente) e atribui notas aos bancos em virtude de sua capacidade de satisfazer as necessidades
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financeiras das populações locais em que a agência atua. Todos os bancos cujos depósitos são garantidos por instâncias federais de regulação expõem-se a uma avaliação com base no Community Reinvestment Act (CRA). Servet (2001:154) mostra que os resultados desta legislação são muito discutíveis, bem como suas formas de implementação. Durante o governo Clinton (que havia pedido assessoria de Mohamed Yunus, fundador do Grameen Bank, quando governador do Arkansas) foi criada uma rede de bancos voltados especificamente a populações deixadas de lado pelas instituições bancárias tradicionais: o Community Development Financial Institutions Fund Act (de 1995) criou um fundo especial para este tipo de organização, destinado prioritariamente a empréstimos ou participação no capital em áreas onde as populações são vítimas de discriminação, exclusão ou marginalização. O importante é que “as leis americanas autorizam não só os bancos e as instituições financeiras, mas também as organizações com estatuto associativo, a ter diretamente uma atividade financeira ” (Servet, 2001:155). Na Europa existe um nítido contraste entre as iniciativas locais do que Kohler (2001) chama de “finanças solidárias ” e as atividades bancárias convencionais. Mas a França está em vias de adotar uma legislação referente aos “estabelecimentos de crédito pertencentes ao setor da economia social e solidária ”: organizações sem fins lucrativos teriam a autorização de receber fundos públicos (alguns dos quais subsidiados) para financiar a criação de empresas por parte de desempregados ou de pessoas vivendo em situação de pobreza (Servet e Vallat, 2001:19 e 20). A distância entre o sistema bancário e as necessidades produtivas das populações vivendo em situação de pobreza é ainda maior no Brasil quando comparada à dos países desenvolvidos. Se na França 90% das pequenas empresas (com menos de 10 empregados) não têm acesso ao sistema bancário (Servet e Vallat, 2001:18), a situação brasileira mostra restrição ainda maior. Em 1997, o IBGE localizou 9,5 milhões de estabelecimentos urbanos com menos de cinco empregados. Enquanto 3,5 milhões de microempresários diziam ter planos de ampliar seus negócios, apenas 1,5 milhão conseguiu fazer algum tipo de investimento ou aplicação 1997 nos doze meses que precederam a pesquisa do IBGE. O interessante é que, deste total, 960 mil só puderam investir ou comprar algo com base em receita vinda de seus lucros. Somente 75 mil microempresários urbanos recorreram a crédito bancário para fazer investimentos e aplicações, o que não chega a 1% do universo total estimado pelo IBGE (Abramovay, 2001 b). A proporção de empreendimentos familiares agrícolas com acesso ao crédito é bem maior. O PRONAF permite hoje a celebração de mais de 900 mil contratos de crédito (a maior parte dos quais em custeio) no universo de 4 milhões de estabelecimentos agropecuários familiares. Não há dúvida de que a expansão do crédito para a agricultura familiar foi uma das mais importantes conquistas recentes das lutas sociais no campo. O crescimento no número de contratos explica-se, antes de tudo, por uma imensa pressão social patrocinada pelo movimento sindical de trabalhadores rurais e que conseguiu, desde 1996, fazer com que o crédito chegue a camadas até então excluídas do sistema bancário. Segundo pesquisa do IBASE, em 1999, cerca de metade dos tomadores de crédito do PRONAF nunca tiveram acesso a financiamentos antes da implantação do programa. Os estudos recentes mostram, entretanto que não só os custos administrativos do PRONAF crescem conforme se amplia sua base social (Abramovay, 2000), mas que os bancos dificilmente conseguem fazer com que os recursos cheguem de fato à grande massa dos 6
agricultores desprovidos de garantias e contrapartidas, a menos que o Tesouro aumente seus gastos com estas operações (5). Embora o sistema bancário exija uma certa organização local para a concessão dos financiamentos (6), ele nem de longe estimula a criação do aspecto mais virtuoso das finanças de proximidade: a mobilização da poupança, dos investimentos e da capacidade de planejamento locais para o combate explícito à marginalização econômica. A principal virtude de um sistema de finanças de proximidade é que a geração de renda por parte da população vivendo em situação de pobreza é um objetivo explícito em virtude do qual o desempenho de todo o sistema será avaliado. Sua característica fundamental é que cria “redes que constróem capital social nas áreas em que isso é mais necessário ” (Servon, 1999:12). Isso significa que um sistema de microfinanças só faz sentido se tiver como objetivo explícito despertar iniciativas econômicas que os bancos não teriam propensão a financiar e que, ao mesmo tempo, não fazem parte do formato convencional dos programas das políticas públicas. 3. A atividade econômica do semi-árido pode ser consideravelmente reforçada pela conjugação entre transferências de renda (públicas e privadas) e a montagem de um sistema financeiro acessível a populações hoje vivendo em situação de pobreza e voltado ao aumento da poupança e dos investimentos locais. Contrariamente ao que hoje já é uma tradição em países asiáticos e africanos, não existem no Brasil estudos expressivos sobre o financiamento informal das atividades das populações vivendo em situação de pobreza. Parte-se do princípio equivocado que, não tendo acesso a financiamentos formais, os pobres dispensam a utilização do crédito na organização de suas atividades cotidianas. Quando a pesquisa do IBGE (1999) investiga a quantidade de estabelecimentos da “economia informal urbana ” que obteve crédito, chega a apenas 472 mil unidades, num universo de 9,5 milhões de empresas. Mas é interessante observar que a quantidade de estabelecimentos que declararam ter dívidas é mais de três vezes maior, chegando a 1,7 milhão de unidades. As compras a prazo, os saques sobre cheque especial (para os que têm conta bancária), exprimem também o fato de que o uso do financiamento é uma condição de sobrevivência da maior parte das empresas. No caso de microempresas, as compras de mercadorias são financiadas com freqüência juntos aos próprios fornecedores ou a “agiotas ”. No meio rural, a prática tradicional e vigente até hoje de venda na palha é a mais importante forma de financiamento de agricultores pobres no Nordeste brasileiro. Como já bem mostraram os pesquisadores do Museu Nacional do Rio de Janeiro (Garcia, 1983) é equivocada a idéia de que os pobres do campo produzem para a subsistência e vendem o 5 “As
fontes comerciais convencionais negam sistematicamente empréstimos aos pobres por falta de segurança nos empréstimos e pelo alto custo a que leva a reduzida dimensão dos empréstimos. Em suma, na perspectiva de um banqueiro, emprestar para os pobres é um empreendimento de alto risco ” (Woolcock, 2001:193) 6 Além das taxas administrativas e do spread que recebe, o banco apóia-se em fundos de aval organizado freqüentemente pelas prefeituras. Na região Nordeste, sob incentivo do Banco do Nordeste organizaram-se mais de 1.200 fundos de aval nos últimos anos. Sobre os fundos de aval ver o trabalho de Sánchez e Bianchini, 2002.
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excedente: ao contrário, eles tendem a vender de antemão o que irão colher, como forma de financiar o próprio consumo familiar, no esforço permanente de juntar as duas pontas do ciclo agrícola e familiar durante o ano (Abramovay, 1992/1998). Mas a venda na palha é uma forma perversa de financiamento por ser cara, por reforçar a dependência personalizada e clientelista do tomador do empréstimo junto a seu financiador e por não permitir a ampliação das oportunidades daquele que precisa do dinheiro. As populações vivendo em situação de pobreza necessitam de liquidez para sua produção e para seu consumo. O que caracteriza sua vida social é que o caminho de acesso à liquidez tende a reforçar os vínculos clientelistas de dependência personalizada junto a alguns atores locais que inibem o desenvolvimento de suas capacidades (7). A necessidade de liquidez não é homogênea durante o ano, sobretudo quando se trata de famílias rurais com alguma base agropecuária. É o que explica o fato de que, muitas vezes, se tomam emprestados recursos voltados às atividades produtivas que serão parcialmente pagos a partir do trabalho assalariado de certos membros da família: os empréstimos são necessários num certo momento (para o plantio, por exemplo, ou para financiar parte da colheita) ainda que a venda do produto não gere o total da renda monetária para saldá-los. Sempre que a unidade de produção se confunde com a unidade de consumo – como ocorre no caso das famílias camponesas, mas também com parte importante do trabalho artesanal não agrícola (Chayanov, 1924/1976) – os empréstimos não podem ser vistos como estritamente produtivos e se integram ao conjunto das necessidades da reprodução familiar (8). O importante é que existe uma imensa demanda por liquidez por parte das famílias vivendo em situação de pobreza atendidas por modalidades de financiamento que drenam a renda monetária para atores que não contribuem para o desenvolvimento econômico: parte importante dos pequenos municípios do semi-árido não conta sequer uma agência bancária, o que cria um círculo vicioso entre a baixa geração de renda, a baixa capacidade local de poupança e o fortalecimento dos atores que acabam inibindo as iniciativas econômicas potencialmente promissoras. O esforço de luta contra a exclusão financeira representado pela presença dos agentes de crédito do Banco do Nordeste nem de longe é suficiente para oferecer serviços bancários a populações vivendo muito próximo à linha de pobreza no meio rural. Como bem mostra o trabalho recente de José Eli da Veiga (2001) parte expressiva dos economistas brasileiros manifesta profundo ceticismo com relação à consistência do caminho de combate à pobreza que consiste em transferir renda monetária diretamente às famílias. Gustavo Maia (2001) exprimiu com clareza esta posição contrapondo o que considera o beco sem saída das transferências diretas de renda para as famílias pobres (sob a “A forma mais radical de exclusão social parece ser a servidão por dívida: uma pessoa se endivida e, não conseguindo reembolsar sua dívida, compromete-se a trabalhar para o credor …Paradoxalmente, esta forma de exploração pode também ser considerada como uma proteção social: o trabalhador submetido à servidão não é abandonado, terá sempre como se alimentar e poderá assim sobreviver ” (Balkenhol, 2001:131) 8 Para lutar contra as formas de dependência pessoal provocadas pelo endividamento, a Organização Internacional do Trabalho lançou um programa de prevenção que aposta na pequena poupança (fundo de casamento), bem como nas atividades geradoras de rendas alternativas. Em países africanos o endividamento para fazer frente às necessidades do casamento de uma filha pode ser catastrófico. O programa estimula a família a começar uma poupança desde o nascimento da menina (Balkenhol, 2001:131). 7
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forma, basicamente de aposentadoria), ao caráter promissor de atividades econômicas como a fruticultura irrigada, a produção de soja e as indústrias de calçados e tecidos. Segundo Maia, as famílias com algum acesso à terra, vivem em condições de produção agropecuária tão precárias que transferir-lhes renda pública apenas atenua – de maneira cara e com cobertura fiscal instável – a miséria, sem o condão de produzir crescimento econômico (9). Gustavo Maia mostra que os R$ 6,3 bilhões de transferências diretas de renda em direção ao semiárido representam muito mais que o produto da agropecuária tradicional da região e correspondem a oito vezes a renda gerada pela fruticultura irrigada de Petrolina-Juazeiro (Pernambuco e Bahia) e de Mossoró-Açu, no Rio Grande do Norte: “o maior setor econômico do Sertão nordestino, conclui Maia, é uma economia sem produção ”. Ora, já é hoje amplamente conhecida a capacidade destes recursos – aos quais somam-se o que as famílias recebem dos filhos que migraram – em impedir o declínio completo de pequenos municípios no Nordeste. Não só o papel dos aposentados na estrutura familiar foi revalorizado, mas o comércio e os serviços das economias locais resistem freqüentemente graças à renda monetária de que os mais velhos agora dispõem. Mas a própria transferência de renda pode dar lugar a processos mais ou menos importantes de investimentos gerando assim crescimento econômico. De fato, o trabalho de Delgado e Cardoso (2000) mostra que uma parte da renda recebida com a aposentadoria é dedicada a investimentos produtivos na agricultura. No México, nada menos que 70% dos agricultores que viviam nos antigos ejidos (na maior parte dos casos com extensão de terra muito pequena) investem na compra de insumos a renda de garantia que recebem do Estado como compensação ao declínio do preço do milho, decorrente da entrada do País no NAFTA. É um “pagamento direto ” que vai estender-se pelo prazo de quinze anos e que teve início em 1994, no âmbito de um programa chamado PROCAMPO. Este uso produtivo da renda monetária dirigida a agricultores pobres é tanto mais importante que 93% deles afirmaram que o dinheiro chegou muito tarde com relação às obrigações do ciclo agrícola (Sadoulet e De Janvry, 1999). No caso mexicano as transferências públicas de renda (das quais o PROCAMPO é apenas uma parte) somam-se também ao envio de dinheiro por parte de membros das famílias que foram para as cidades ou mesmo para os EUA. Nada menos que 85% das famílias mexicanas possuem ao menos um membro da família vivendo em cidades. Deste total, não se sabe quantos estão nos EUA. Estima-se que os mexicanos vivendo em território norte-americano transferem cerca de U$ 7 bilhões anuais para o México. Mesmo que não se conheça, deste total, o montante que se dirige às famílias rurais, o Governo mexicano tem hoje a preocupação central de apoiar a criação e de regulamentar organizações financeiras locais capazes de estimular a poupança e, por aí, os investimentos das famílias hoje vivendo em situação de pobreza. Uma vez que a transferência de renda para os antigos ejidatarios ainda vai perdurar por mais oito anos, o atual governo mexicano estuda a antecipação deste montante com o objetivo de formar um fundo voltado a que estes recursos possam dar lugar a investimentos produtivos inovadores em escala capaz de mudar a qualidade da inserção das famílias nos mercados.
Curiosa semelhança com a posição de Aloizio Mercadante que denuncia “o caráter falacioso e a ineficiência das políticas compensatórias e focalizadas difundidas pelo Banco Mundial e assumidas pelo governo ” (Mercadante, 2001).
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Da mesma forma, a criação de um sistema de finanças de proximidade no semi-árido, tomando por base as transferências de renda já existentes, pode contribuir para romper o círculo vicioso que faz das necessidades de liquidez das famílias pobres a base objetiva de sua sujeição àqueles que bloqueiam o surgimento de iniciativas econômicas inovadoras. Assim, parte da renda monetária pública e privada (10) poderá converter-se em poupança e servir de base a investimentos capazes de aumentar a produtividade da economia local. É impossível saber de antemão quais podem ser estes investimentos. Dizer, entretanto que a pobreza atual da população vivendo em pequenos estabelecimentos que mal podem ser chamados de “agropecuários ” só seria superada casos eles tivessem sua base patrimonial fundiária multiplicada por dez ou quinze (como o faz Maia, 2001), é subestimar o fato de que podem existir técnicas produtivas capazes de ampliar a oferta de produtos típicos do semi-árido, a partir de aplicações relativamente baixas de capital e sobre a base das superfícies atualmente disponíveis. O esforço de pesquisa da Embrapa Semi-Árido nesta direção pode chegar a um conjunto variado de alternativas técnicas que valorizam os recursos locais e a preservação ambiental de forma acessível à capacidade econômica dos produtores. O nível de produtividade de caprinos e ovinos pode ser aumentados em mais de 300% com a “adoção de práticas simples de alimentação e de manejo do rebanho e dos pastos ” (Guimarães Filho, 2000:199). Na pecuária leiteira também o uso de plantios consorciados de lavouras de ciclo curto com leguminosas de alto valor forrageiro e nitrificante e com cactáceas permite dobrar a produção de vacas mestiças holando-zebus e reduzir seu custo de produção de R$ 0,25/0,30 para R$ 0,15 o litro. É muito promissor também o horizonte oferecido pela apicultura, como mostram os trabalhos de Sérgio Vilella, da EMBRAPA. Mesmo o algodão excluído da paisagem do semi-árido pelo ataque do bicudo, hoje já pode voltar com características especialmente valorizadas pelo mercado. Além disso, o encurtamento da distância entre o interior e as sedes dos municípios tipicamente rurais por meio não só da construção de estradas, mas também da massificação do uso de motocicletas de baixa e média cilindrada contribui para a ampliação da pluriatividade e mesmo para a extensão do trabalho não agrícola em direção a populações que vivem no interior dos estabelecimentos agropecuários. Trabalhos recentes no âmbito do Projeto Rurbano vêm mostrando situações em que, mesmo nas proximidades dos estabelecimentos agropecuários, trabalhos voltados à indústria começam a se desenvolver (Gomes da Silva et. al., 2001). 4. As transferências de renda sob a forma de crédito não têm estimulado o fortalecimento do tecido produtivo local das regiões rurais do semi-árido vivendo em situação de pobreza. O caminho que consiste em transferir renda para populações pobres por meio de crédito vem-se mostrando cada vez menos consistente. Mesmo quando se trata de famílias detentoras de unidades produtivas capazes de inspirar um mínimo de confiança no sistema bancário (é o caso daquelas incluídas no PRONAF “c ” e “d ”), os ganhos bancários a título Na verdade, não se conhece o montante das transferências privadas de renda que os filhos enviam às famílias que permanecem nas áreas rurais. Existe, muitas vezes, imensa dificuldade para o envio deste dinheiro. A escolha de intermediários informais é freqüente e traz insegurança além de elevação nos custos da intermediação. Um sistema de finanças de proximidade poderia dar uma contribuição importante para facilitar estas transferências de recursos, além de estimular que ao menos parte do dinheiro reforce o tecido do sistema financeiro local. A Organização Internacional do Trabalho está fazendo um estudo sobre este tema, conforme informa Balkenhol (2001:131). 10
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de risco e custo administrativos chegam a ultrapassar o subsídio embutido na equalização das taxas de juros e nos rebates. Nestes casos, existe ao menos algum nível de risco bancário, o que se, por um lado, tende a acentuar a seleção social na concessão dos empréstimos, por outro contribui para que sejam aprovados projetos cuja viabilidade é determinada por critérios econômicos objetivos. Daí resulta a tão baixa inadimplência destas linhas do programa. O aprofundamento do PRONAF em direção a parcelas mais empobrecidas dos agricultores acabou, entretanto, tomando também a forma de concessão de crédito: para contemplar famílias com faturamento anual de até R$ 1.500,00, foi criado o PRONAF “b ” que lhes atribui R$ 500,00 durante três anos consecutivos. Sobre este montante a taxa de juros é zero e incide um rebate de R$ 200,00 em caso de pagamento pontual. A experiência de campo mostrou sérios problemas com esta forma de transferência de renda: a) Em princípio, os créditos deveriam ser fiscalizados e seus beneficiários definidos pelos Conselhos Municipais de Desenvolvimento Rural. Se é verdade que os Conselhos podem dizer com clareza quais são os habitantes de uma localidade elegíveis para um determinado programa (quem pode receber cesta básica, por exemplo) isso não significa que seja um organismo adequado para avaliar capacidade de pagamento de um determinado empréstimo. O Conselho vai autorizar o empréstimo mesmo que saiba que determinada família já está endividada, pois ele tenderá a encarar estes recursos como uma simples transferência pública de renda e não, efetivamente, como um empréstimo. Alguns relatos de técnicos no encontro de avaliação do Pronaf “B ” realizado em Brasília em fevereiro de 2000 traziam de campo expressões como “chegou o décimo-terceiro salário do governo ”, ou “pega R$ 500 que só devolve R$ 300,00 ”, expressivos do fato de não se tratar, de fato de uma operação creditícia. b) Uma ver que não existe risco bancário na concessão destes empréstimos, não há qualquer controle por parte do banco nem sobre a qualidade de seu uso, nem sobre a capacidade de devolução por parte de seus tomadores, o que contribui para que se trate de uma transferência de renda que assume a forma provavelmente fictícia – e muito cara para o Tesouro – de empréstimo. Em 2000, nada menos que 40% de todos os contratos celebrados no âmbito do PRONAF tiveram cobertura do Tesouro Nacional e não representaram real incorporação dos tomadores aos serviços bancários. Em 2001, quase metade dos contratos foram cobertos pelo Tesouro. Pior: como se vê na tabela I, há uma queda brutal na quantidade de créditos voltados aos assentamentos. São recursos dos fundos constitucionais que os bancos temem em repassar a agricultores com os quais suas relações são excessivamente tênues. Já o PRONAF “B ” continua pois apóia-se sobre fundos repassados diretamente do Tesouro Nacional para os bancos.
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TABELA I CONTRATOS DO PRONAF NO NORDESTE E NO BRASIL POR GRUPO, EM 2000 E 2001 GRUPO
CONTRATOS 2000
CONTRATOS 2001
NE
BR
NE
BR
A
51.508
96.167
9.903
37.740
A/C
1.578*
1.596
4.893
4.915
B
47.255
48.164
95.774
106.716
C
93.275
394.379
86.167
369.556
D
47.086
346.727
22.175
280.246
Exigib/
412
82.694
0**
110.629
Total
241.114
969.727
218.912
909.802
B+A/Tot
40,1%
14,1%
48,3%
15,9%
Fonte: Tabela montada com base em informações de: BACEN (somente exigibilidade bancária), BANCOOB, BANSICREDI, BASA, BB, BN E BNDES http://www.pronaf.gov.br/saf/default.htm - 7/07/02 c) Os agricultores não se tornam clientes dos bancos, com acesso a contas e outros serviços bancários. O banco funciona como um simples administrador do recurso sem qualquer envolvimento com a vida comunitária local. O próprio BNB, que anima o maior programa de microcrédito do País, o CREDIAMIGO, reconhece que o Pronaf “b ” não possui as características mínimas do que se poderia chamar de um programa de microcrédito: não existe qualquer trabalho de formação profissional dos agricultores nem a construção de um vínculo estável entre o banco e estas famílias rurais, contrariamente ao que ocorre com o CREDIAMIGO. d) Esta forma de transferência de renda estimula uma relação burocratizada entre a extensão rural e os agricultores. A extensão não tem responsabilidade e não corre qualquer risco quanto à consistência dos projetos elaborados: ela se torna uma simples instância administrativa de aval público do empréstimo e não um organismo de auxílio na formação e na assistência aos agricultores. Um sistema de finanças de proximidade então não deve ser confundido com a atribuição de crédito sem risco bancário a populações de renda muito baixa. Os recursos do Pronaf “b ”
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(que envolvem não só o crédito e os subsídios nele embutidos, mas os próprios custos da mobilização organizacional que ele supõe – bancos, conselhos de desenvolvimento rural, extensão rural) talvez fossem melhor empregados se constituídos por um sistema de transferência direta de renda para seus beneficiários associado a uma assistência técnica voltada à realização de projetos reais de desenvolvimento e não à simples administração burocrática de recursos supostamente creditícios. 5. As finanças de proximidade supõem um sistema de assistência formado por agências de planejamento capazes de despertar os potenciais de geração de renda existente numa determinada região. O sistema brasileiro de assistência técnica e extensão rural forma, juntamente com o movimento sindical de trabalhadores rurais a mais capilarizada forma de transmissão de conhecimentos no interior do País. Os métodos de trabalho predominantes até aqui, na esmagadora maioria dos casos – e, sobretudo no Nordeste – não têm estimulado o caráter contratual das atividades dos extensionistas, nem valorizado a sua contribuição a revelar capacidades adormecidas em regiões mais pobres. Um dos obstáculos à contribuição dos extensionistas à luta contra a pobreza rural é que sua unidade de reflexão costuma ser o estabelecimento agropecuário e as melhorias produtivas que certas técnicas poderiam trazer a seu desempenho produtivo. Não há dúvida de que existe um imenso trabalho de melhoria técnica a ser realizado no interior de estabelecimentos agropecuários das regiões pobres. Porém, mais do que um grupo voltado a tornar viáveis os projetos produtivos dos agricultores, os extensionistas deveriam ser atores centrais do conjunto do processo de desenvolvimento de uma região, o que não envolve apenas a cadeia produtiva de um produto, mas o conjunto das forças econômicas de uma determinada localidade e a maneira como podem, de forma diversificada, contribuir para a geração de renda (Abramovay, 1998). Até aqui, os Conselhos Municipais de Desenvolvimento Rural não contam com a participação do SEBRAE, das associações comerciais, de representantes das pequenas indústrias (Abramovay, 2001a). Predomina uma ótica estritamente agrícola: e quando esta ótica se abre um pouco é apenas em direção à agroindústria. Ora, as famílias dos agricultores, sobretudo dos mais pobres, nunca são estritamente agrícolas. A renda familiar é composta pela contribuição variada de um conjunto de fontes que envolvem as transferências públicas e privadas, a produção agropecuária, mas também o trabalho dos filhos fora do estabelecimento e muitas vezes fora da agricultura. O modelo até aqui predominante na relação entre crédito e assistência técnica não tem favorecido formas inovadoras de geração de renda e contribui para eternizar uma relação burocrática entre o extensionista e o potencial beneficiário de seu trabalho. Por um lado, quem não recebe crédito dificilmente será beneficiado pela extensão. Para os que recebem, a extensão não trabalha a partir de objetivos contratualizados com base nos quais ela mesma pudesse ser julgada. A avaliação dos extensionistas se faz, na maior parte dos casos, pelo controle dos processos (quantas viagens a campo, quantas reuniões) e não pelo exame dos resultados. Além disso, os beneficiários potenciais da assistência técnica não possuem instrumentos contratuais de controle do trabalho extensionista. Um sistema de microfinanças será tanto mais promissor na geração de renda, quanto mais seus beneficiários puderem ter uma assistência contratada e cuja remuneração dependa cada vez mais do cumprimento de metas estipuladas conjuntamente. As mudanças recentes 13
na extensão em países como México e Chile vão neste sentido: não se trata simplesmente de oferecer um bem público e quase universal, mas sobre o qual ninguém tem controle e, portanto cuja utilidade social não pode ser sequer avaliada. É mais interessante apoiar-se sobre o comprometimento de ao menos parte dos recursos dos próprios atores econômicos beneficiários sobre a base de projetos claramente definidos, do que receber gratuitamente um serviço que em nada modifica as condições de vida do público visado pela extensão. As mais variadas combinações entre aportes públicos e privados podem ser combinadas para tanto. Se o eixo decisivo de um sistema de finanças de proximidade é a poupança (mais do que o crédito estatal), então o uso produtivo destes recursos deve ser objeto de um sistema que comprometa o prestador de serviços com os resultados que dele se espera e pelo qual seus beneficiários pagam ao menos uma parcela. 6. A unidade de reflexão do Projeto Dom Helder Câmara não deveria ser o estabelecimento agropecuário, os assentamentos ou o “entorno ” dos assentamentos e sim a dinâmica municipal e sobretudo regional do processo de desenvolvimento. O objetivo maior de um sistema de finanças de proximidades é ampliar o restrito círculo de relações sociais em que se movem as populações vivendo em situação de pobreza. As organizações que respondem hoje pelo trabalho do desenvolvimento rural no Brasil tendem a confundir desenvolvimento com melhoria de algumas das condições básicas que determinam a produção agropecuária. Esta é uma das razões pelas quais a maior parte dos planos de desenvolvimento rural do PRONAF infra-estrutura e serviços toma a feição, na maior parte dos casos, de um conjunto de obras e serviços estritamente setoriais. Ora, hoje já está nítido que as áreas ocupadas pelos estabelecimentos agropecuários desenvolvem, cada vez mais, atividades de natureza não-agrícola, como vêm mostrando os resultados do Projeto Rurbano (Campanhola e Graziano da Silva, 2000). Mas não se trata apenas de constatar a importância destas atividades: o essencial é que o desenvolvimento seja concebido como virtude do conjunto variado de forças econômicas, organizações sociais e atores políticos de um determinado território (Abramovay, 2000), que não envolve apenas os que vivem nas áreas em que predomina a ocupação dos agricultores, mas também as pequenas cidades.
Conclusão O desafio fundamental do Projeto Dom Helder não está em fazer um pouco melhor e de maneira um pouco mais barata aquilo que o governo já vem fazendo. Transferir renda sob a forma de crédito por meio do sistema bancário vem-se mostrando cada vez mais caro e ineficiente. A construção de um sistema de finanças de proximidade parece ser hoje um ponto de convergência entre os próprios responsáveis pela execução da política de fortalecimento da agricultura familiar e os movimentos sociais. Mas as finanças de proximidade não podem ter como objetivo central apenas perenizar as modalidades atuais de repasse de créditos oficiais. O desafio fundamental é que elas consigam abrir o acesso dos pobres a serviços bancários e, sobretudo ampliar suas possibilidades de poupança. Esta pode ser uma das bases essenciais do próprio crescimento econômico em regiões caracterizadas pela atual escassez de oportunidades de geração de renda e que não parecem atrair de maneira especial investimentos capazes de criar empregos assalariados em larga escala. O pressuposto fundamental para este sistema é um conjunto amplo de transferências públicas (e, em menor escala privadas) de renda para famílias pobres. Organizações financeiras locais 14
e agências de desenvolvimento comprometidas contratualmente com a abertura de novas oportunidades de geração de renda podem contribuir de maneira decisiva para alterar um ambiente institucional caracterizado pela estagnação e pela esterilização dos recursos monetários existentes. A forma mais provável de um sistema de finanças de proximidade no quadro das restrições impostas pela legislação brasileira é a cooperativa de crédito (Bittencourt, 2000). O Projeto Dom Helder Câmara tem dois desafios fundamentais hoje pela frente. Por um lado, é urgente que ele concentre sua inteligência no estímulo à criação de organizações financeiras e de planejamento do desenvolvimento que tenham expressão suficiente para que não se trate apenas de um caso isolado e exemplar. Por outro lado, esta experiência inovadora vai fornecer subsídios para que se aprofunde a discussão a respeito do próprio papel que o sistema bancário comercial pode desempenhar no fortalecimento de organizações financeiras comprometidas com a geração de renda por parte dos mais pobres.
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