Do silĂŞncio Ă morte Raira Castilho Oliveira Susany Tamily de Souza Fernandes
Do silêncio à morte Eu estava tão entediado naquela manhã. Mais uma vez, pegando o ônibus e tomando caminho do trabalho. Sempre a mesma realidade e as mesmas ações. Chegando lá, pego meu café e sento-me à mesa. Quando penso estar finalmente em tranquilidade, ouço um alto e esperado berro de meu detestável superior. — Henry Diorgeles! Faz cinco minutos que você chegou e não vejo nenhum relatório sobre minha mesa! — grita meu chefe. E mais uma vez eu respiro fundo, para não perder as estribeiras. — Desculpe, senhor — eu respondo, me segurando para não me exaltar. — Desculpe nada! Você tem que aprender que está aqui para trabalhar! Está pensando que pode fazer o que bem entende?! Pois muito pelo contrário, não é assim... — Cala a boca! Já chega, não aguento mais você! Faz cinco anos que aturo isso, todos os dias! Já basta! — grito de volta, saindo com pressa pela porta e passando pelo meu chefe boquiaberto. Recolho minhas coisas e, imediatamente, vou embora daquele lugar. Essa foi a gota d’água. Nunca havia feito algo assim, mas agora fora preciso. Chegando em casa, me jogo no sofá e respiro bem fundo. Eu não posso continuar assim. Minha vida não pode continuar assim! Busco o silêncio, mas reparo que, por mais que em minha casa reine a paz, externamente o barulho nunca acabará. Decido tomar medidas drásticas em relação a isso.
Neste momento me vêm à mente minhas aulas da faculdade, aulas sobre os sentidos — mais precisamente o sentido da audição. Um raio gigantesco atinge meu cérebro! Uma grande ideia, uma inovação para minha existência! Ponho-me a desenvolvê-la de imediato. Talvez fosse impossível, mas talvez não. A partir daí, muitos testes são feitos, não consigo me concentrar em qualquer outra coisa que não esteja ligada a este projeto. Dois meses se passam e..., acho que consegui! No porão da minha casa, abaixo da escada, está a máquina que vai me salvar da minha condenação à mesmice, do rotineiro cotidiano. Lá está o silêncio absoluto! Sim, o único modo de organizar minhas ideias e conseguir viver de verdade é entrando em contato com o silêncio total. Puxo a alavanca e um feixe de luz branco enche o local. Isso realmente funciona! Ao lado da máquina, pego a mochila, onde guardo comida, água e outras coisas para me abastecer. Pretendo ficar um tempo por lá. Porém, uma pergunta me para: “Lá onde?”. A única finalidade desse trabalho era conseguir abrir um portal que me levasse a um lugar de extremo silêncio, mas onde exatamente isso vai dar, só vou descobrir agora. Pego o controle de entrada do portal e o ativo, o lugar que estava escuro se torna claro, como se um segundo sol estivesse do outro lado. Essa é a hora. Inspiro coragem e atravesso o portal. Meus olhos demoram a se acostumar com a luminosidade. Existe muita luz, mas não consigo identificar de onde.
A minha primeira sensação é o contato com a falta de som. Sim, o portal se fecha e consigo, finalmente, ficar isolado do mundo. Estar em um lugar tão tranquilo me fez sentir num estado de nirvana, um bálsamo para os meus nervos abalados. Quando me acostumo ao ambiente, percebo que sua estrutura é semelhante a uma sala sem fim, toda branca; mas não consigo distinguir entre o chão e o teto. Isso me incomoda um pouco.
Finalmente alcancei meu objetivo. Sento-me no chão branco, colocando minha mochila como travesseiro, e me deito. Meus movimentos logicamente produzem som, mas é algo anormal, sem eco, simplesmente puro e ouvido sem nenhuma interferência. Faço mais uma tentativa de ouvir algum ruído sequer, mas só ouço um incrível nada absoluto. Começo a pensar se tomei a decisão certa, abrir esse portal sombrio.
Torno-me consciente de que os sons do meu corpo preenchem o silêncio de fora. Posso ouvir nitidamente minha respiração, por isso a prendo. Posso escutar o sangue correndo nas minhas veias; a batida surda do meu coração se torna evidente. Ouço meu pulso, meus ossos friccionados uns contra os outros, e até minha pele deslizando sobre a cartilagem! Isso está me assustando! Consigo até ouvir meus tendões rangendo quando me mexo, o barulho de meus órgãos, e o couro cabeludo movendo-se sobre meu crânio. Soa algo como um ruído metálico raspando.
É neste momento que percebo o erro que cometi ao entrar ali, pois, permanecendo neste lugar, só irei enlouquecer! Meus poucos minutos de paz foram completamente estragados. O sentimento de fuga me invade como a fome de um leão. Imediatamente me levanto e ativo o controle do portal. Não acontece nada, aperto de novo e o local permanece estável. Desespero-me, começo a
andar de um lado para o outro sem controle. Tudo em mim está descontrolado. Só de pensar que não tenho saída desse lugar horrível me faz cair em prantos. Gritos sem vida e lágrimas sem emoção desprendem-se de mim. Tudo o que acontece ali é absorvido e transformado em um nada. Recomponho-me e tento raciocinar. Preciso dar um jeito no controle, para poder voltar ao porão. Mas como, se minhas ferramentas não estão aqui? A cada segundo que passo ali, mais parece que vou me desvairar. Caio de joelhos, com as mãos atrás da nuca, lamentando a realidade atual, quando algo aparece na minha frente. Levo um susto! Minha mãe aparece, sentada em sua cama. Depois olho para o lado e vejo meu pai num escritório preenchendo papeladas. Às minhas costas, vejo minha ex-esposa jantando em sua casa. Acho aquilo tão absurdo que acabo desmaiando.
Quando acordo, não há mais nada, e percebo que tudo aquilo foram alucinações provocadas pelo ambiente. E justo com as pessoas de quem eu mais buscava distância. Mais uma vez fico ansioso e louco por sair dali. Então lembro que eu tinha colocado uma chave de fenda na mochila (havia esquecido pelos sustos). Isso poderia ser minha salvação.
Depois de alguns ajustes, consigo ativar o portal e sair dali. Quando atravesso de volta, me sinto a pessoa mais feliz do mundo. Um peso enorme cai de minhas costas. Descobri que o que pensei serem horas durou um mês inteiro. Um mês no silêncio absoluto. Destruo a máquina a marretadas e jogo fora todo o entulho. Mas o pior é que essa lembrança nunca mais me abandonará, não importa o quanto encobrir os vestígios. Alguns meses depois, tenho a ânsia de ver minha ex-esposa, ter a ciência de como ela está. Ligo para Rachel e me contento ao ouvir sua doce voz. Marcamos um encontro, e logo nossa antiga e calorosa intimidade surge novamente. Nem lembro mais a causa da separação, pois alguma coisa naquele ambiente silencioso me fez constatar como eu preciso de alguém ao meu lado. Passamos a nos ver todos os dias durante semanas, e percebo, a cada dia que se passa, o meu erro de tê-la deixado. Prometo para mim mesmo que nunca cometeria esse erro novamente.
Porém, em um belo dia de primavera, Rachel compartilha comigo uma trágica visão: uma moça teria sua vida arrancada através de um fatal atropelamento. Fico assustado com o acontecido, mas é neste momento que sinto mais urgência de permanecer ao seu lado.
No dia seguinte, combinamos de ir à sorveteria. Deixo Rachel ir à frente, para que eu tranque os portões de minha casa. Antes de partir ao seu alcance, admiro sua leveza e elegância ao andar. Eu realmente a amo. Quando atravessa a rua, um carro desgovernado surge em sua frente causando sua morte. Os dias que se passam após a tragédia, são de extrema dor. Mas a simples lembrança de sua bela feição me oferece força para seguir em frente. Então compreendo que Rachel conseguiu algo que eu sempre quis a vida inteira: o silêncio absoluto, pois a única maneira de tê-lo seria encontrar e abraçar a morte como uma fiel companheira.
Raira Castilho Oliveira Susany Tamily de Souza Fernandes Fonte das imagens: www.fondosdepantallaya.com/fondos-gratis/Silencio-Robbie.htm www.blogdopilako.com.br/wp/2013/05/03/ouvindo-o-silencio/ www.mundosdepapel.com www.pesdescalcos.blog.br www.veja.abril.com.br www.revistamonet.globo.com www.adorocinema.com www.mydearlibrary.com