ARTIGO MARCELO LIMA REVISADO

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Capitu incompleta: indeterminação na construção do feminino em Dom Casmurro Marcelo Lima1

Universidade Positivo

Resumo O romance Dom Casmurro (1899), de Machado de Assis, apresenta um dos retratos femininos mais importantes da literatura brasileira. Por meio de um narrador que joga o tempo todo com elementos de indeterminação a seu favor, o leitor tem acesso ao esboço de Capitu e, em meio às lacunas, ajuda a desenhar seu rosto. A fortuna crítica do livro aponta para a construção de um narrador autoritário, legítimo representante da classe dominante brasileira no século XIX e a sua cordialidade. O objetivo do trabalho é mostrar a representação de um ideal de mulher do século XIX, que, na visão do narrador, não é preenchido por Capitu. Para realizar esta análise, faz-se um estudo das convenções formais do texto machadiano e seu diálogo com elementos sociais. Palavras-chave: Literatura brasileira, narrador, feminismo

Abstract Machado de Assis’ Dom Casmurro is known as one of the most important feminine portraits of Brazilian Literature. Throughout the book, the author, by using a narrator that plays with evasive elements, shows some hints on Capitu’s life. Captivating some information, the reader would have some idea on Capitu’s features. The book critics show an authoritative narrator through the book’s structure, which brings back to Brazilian’s elite at the end of the 19th century. The main idea of this piece of work is to show that Bentinhos’ ideal of woman is not measured up by Capitu’s character. This analysis is based on the novel formal structure and its dialogue with some social elements. Key-words: Brazilian literature, narrator, feminism

1 Marcelo Lima, jornalista, mestre e doutorando em Letras (UFPR), é professor no curso de Jornalismo da Universidade Positivo. Publicou “Sobre galhos, esqueletos” (1999) e “Nas trilhas de Saint-Hilaire” (2002).


Capitu incompleta: indeterminação na construção do feminino em Dom Casmurro

Dom Casmurro foi publicado em 1899 e compõe a fase mais importante da produção em prosa de Machado de Assis, à qual ainda integram Memórias póstumas de Brás Cubas (1881) e Quincas Borba (1891). É nesses livros que o autor toma uma posição inovadora no percurso de sua obra e na história da literatura brasileira: assume elementos modernos da narrativa e dialoga de maneira criativa com grandes obras da literatura ocidental — principalmente a francesa e a inglesa —, além de criticar de maneira incisiva a sociedade patriarcal brasileira. Nessa fase, enfileiram-se nos romances de Machado de Assis os principais atores sociais do patriarcado local — registrado pelo escritor num período de declínio e de transição, em que a elite rural migra para as cidades, embora não abandone suas práticas culturais; a moral que regia, até meados do século XIX, as casas-grandes é a que impera nos sobrados das cidades, apesar dos ares de modernização do período da Abolição e do regime republicano. Em Dom Casmurro, Machado de Assis narra a relação amorosa entre Bento Santiago, filho da classe abastada do Rio de Janeiro do século XIX, e de sua vizinha e amiga de infância Capitolina Pádua, cuja família está alguns degraus abaixo na escala social. O romance — uma espécie de educação sentimental do homem brasileiro — é escrito em primeira pessoa, em forma de memórias, por um narrador socialmente qualificado na época: homem branco, maduro, bacharel em direito, ex-seminarista e pertencente ao andar de cima da sociedade. É um narrador insuspeito que será posto à prova na história da recepção do romance. Bento Santiago, que aceita a alcunha de Dom Casmurro que lhe foi dada no primeiro capítulo do romance, busca passar a limpo sua vida e aproveita de seu prestígio social, de sua posição como falante qualificado, para apresentar a sua verdade ao leitor: seu amor puro de seminarista que lutou contra a batina foi traído pelas dissimulações da mulher e do amigo de escola, Ezequiel Escobar. O fruto dessa relação furtiva fora o menino Ezequiel Santiago, que, à medida que crescia, ficava cada vez mais parecido com Escobar. Como solução para o impasse — a traição ganha forte significado na sociedade brasileira do século XIX e incomoda a honra masculina —, Bentinho tenta os caminhos clássicos da época: o suicídio, o assassinato do filho ou, se Escobar estivesse vivo, um duelo. Mas sua solução foi mais simples e discreta: decidiu mandar Capitu e Ezequiel à Europa, onde este pudesse estudar e manter-se longe do Rio de Janeiro, para que a sociedade local não desconfiasse da suposta traição. Em sua narrativa, Bentinho — nome que, assim como sua posição social, reforça o caráter acima de qualquer suspeita — desenha um narrador parcial, autoritário, que esconde as informações do leitor e se nega a fazer retratos completos das personagens e do ambiente em que as ações se desenvolvem. O romance assume, logo no início, uma feição memorialista, parcial e subjetiva, quando o narrador anuncia sua intenção de passar a limpo sua juventude e a idade madura. Diz ele: “O meu fim evidente era atar as duas pontas da vida, e restaurar a adolescência. Pois, senhor, não consegui recompor o que foi nem o que fui. Em tudo, se o rosto é igual, a fisionomia é diferente” (ASSIS, 2008, p. 8). Valendo-se 142 | COMUNICAÇÃO - REFLEXÕES, EXPERIÊNCIAS, ENSINO


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do discurso memorialista e do prestígio de que sua fala é investida, o narrador tenta a todo custo justificar os seus atos, fixando, na superfície, uma leitura que conduz à condenação de Capitu, mas que, pela abertura possível com a forte carga subjetiva do texto, é passível de questionamento. Uma leitura menos favorável a Bentinho, no entanto, é prevista na estrutura do romance e/ou no diálogo que o leitor mantém com outras obras de Machado de Assis. O que, à primeira vista, parece ser um elogio — o uso da autoridade do narrador bem posto na sociedade patriarcal brasileira — é o principal ardil que mostra os defeitos desse grupo social. E é nesse momento, ao mimetizar a autoridade do discurso masculino na voz de Bento Santiago, que o autor faz com que o elemento externo, historicamente determinado, torne-se interno, colado à forma como o romance foi estruturado (CANDIDO, 1985, p. 7). Uma das principais características dos contos e romances da última fase de Machado de Assis é que a autoridade do narrador será posta à prova. Esta foi uma maneira de o autor evidenciar as contradições da sociedade brasileira então em mudança. O Brasil de Machado é aquele que aderia, em teoria, à modernidade ocidental e aos ideais da Ilustração. Sob influência do modelo francês, o Brasil “civilizava-se”, sob o lema “ordem e progresso” da bandeira republicana positivista e sob o estado laico, embora permanecesse com a maioria de seu povo analfabeto, com uma política perversa de distribuição da riqueza e com a manutenção dos processos de exclusão. Uma das estratégias do narrador é mostrar a pureza do amor que sente por Capitu e a luta dos namorados contra o poder castrador da mãe e da religião. Dona Glória, a mãe autoritária de Bentinho, queria-o no seminário para que pudesse pagar uma promessa que havia feito quando o filho nasceu. Nessa altura do livro, a posição do narrador é insuspeita, apesar de alguns deslizes que revelam um caráter frouxo e descompromissado com as pessoas de classe social inferior. Nas palavras de Roberto Schwarz, neste segmento do romance ocorre a luta entre as idéias da Ilustração, com o desejo de liberdade inflado no casal — em destaque o caráter irrequieto de Capitu — contra a moral do ancien régime local, representado pela autoridade de Dona Glória (SCHWARZ, 2006, p. 16). O primeiro tento é vencido pelos pensamentos arejados da Ilustração. O narrador arma a estratégia para conquistar a confiança do leitor, que torce pelo happy ending e pela felicidade do par romântico. A expectativa, no entanto, é desfeita no segundo tempo do romance, quando Bento Santiago, com o ânimo tomado pela suposta traição de Capitu, condena-a. Nesse ponto, o ancien régime patriarcal brasileiro alcança vários pontos de vantagem sobre a Ilustração. Como a expectativa de final feliz não se completa, a estratégia do narrador é culpar Capitu de sua infelicidade — com grande possibilidade de adesão do leitor. A posição assumida por Bento Santiago expressa bem as contradições da classe dominante brasileira do final do século XIX: educada segundo os padrões da Ilustração, conserva o seu lugar de custódia de práticas autoritárias, transformando o saber em mero adereço. A educação da elite não resulta no esclarecimento e na COMUNICAÇÃO - REFLEXÕES, EXPERIÊNCIAS, ENSINO | 143


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busca de melhores condições para toda a sociedade — como um desdobramento de liberdade, igualdade e fraternidade; sua principal função é delimitar o espaço da elite, muitas vezes funcionando como mero adorno. A principal estratégia da segunda parte do romance é a omissão narrativa. Os fatos apresentados por Bentinho não são suficientes para provar a culpa de Capitu. No entanto, esta parte do romance, somada à primeira, conduz o leitor a uma interpretação simpática ao narrador. Em alguns momentos, Bentinho chega a assumir as lacunas do livro e o trabalho de cooperação do leitor: Nada se emenda bem nos livros confusos. Eu, quando leio algum desta outra casta, não me aflijo nunca. O que faço, em chegando ao fim, é cerrar os olhos e evocar todas as cousas que não achei nele. Quantas idéias finas me acodem então! Que de reflexões profundas! Os rios, as montanhas, as igrejas que não vi nas folhas lidas, todos me aparecem agora como as suas águas, as suas árvores, os seus altares, e os generais sacam das espadas que tinham ficado na bainha, e os clarins soltam as notas que dormiam no metal, e tudo marcha com uma alma imprevista. É que tudo se acha fora de um livro falho, leitor amigo. Assim preencho as lacunas alheias; assim podes também preencher as minhas (ASSIS, 2008, p. 145).

A leitura que condena Capitu, hegemônica até a década de 1960, foi quebrada pela crítica norte-americana Helen Caldwell, que fez um paralelo entre Bentinho e Otelo, de Shakespeare, mostrando a astúcia do narrador ao eximir-se de qualquer culpa. A leitura destaca a força do discurso do patriarcado brasileiro. Já na leitura de John Gledson, Dom Casmurro evidencia a crise da sociedade patriarcal brasileira. Roberto Schwarz afirma que o romance engendra uma armadilha ao leitor ao franquear uma interpretação que falsamente reforça o prestígio do narrador, e outra que põe Bentinho no banco dos réus ao identificar nele o autoritarismo da classe patriarcal brasileira e o ranço do escravismo presente na fase de transição entre o Brasil dos últimos anos da Monarquia e do início da República. Assim, a indeterminação do narrador é elemento central do romance, que pode ser lida tanto do ponto de vista formal, quanto a partir das relações sociais que reflete. A fortuna crítica desse romance aponta, em muitos casos, a polêmica do adultério. Teria Capitu traído Bentinho? — pergunta que fez as delícias de diversas gerações que conheceram a história em júris simulados nas aulas de literatura do ensino médio. Mas a questão mais relevante é exatamente o que causa a dúvida: o caráter autoritário e dissimulado de Bentinho, capaz de antepor à imagem angelical da Capitu menina o esboço de uma mulher mentirosa, mesquinha, que precisava ser varrida da sociedade. Independentemente se houve ou não traição — o que é impossível afirmar, devido ao relativismo imposto pelo narrador, sua visão cheia das omissões do ciúme —, o romance reflete a constituição do discurso de autoridade do homem brasileiro do

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século XIX, o seu habitus de classe, as suas instituições, a sua educação, e seu discurso misógino. A personagem combate exatamente a sociedade patriarcal contra que lutava o primeiro discurso feminista, na voz, por exemplo, de uma Mary Wollstonecraft, no final do século XVIII. Em A Vindication of the Rights of Woman (1792), ao referir-se à Europa do final do século XVIII, Wollstonecraft argumenta as mulheres têm um espaço secundário na sociedade. A elas é destinado apenas o lugar de coadjuvante, e esses valores são inculcados pela educação. Às mulheres cabia a formação sentimental, amorosa, enquanto que ao homem deveria ser dada uma educação voltada para o desenvolvimento racional e técnico (WOLLSTONECRAFT apud ABRAMS, 1979). Com base na idéia de que todas as pessoas têm direitos na sociedade, Wollstonecraft negava o pensamento comum na época que colocava a mulher como um ser inferior ao homem e incapaz de grandes empreendimentos intelectuais. Para ela, o que relegava à mulher um lugar secundário na sociedade era uma série de fatores desfavoráveis — dentre os quais a educação ocupava um dos papéis mais importantes. Ela escreve: I have turned over various books written on the subject of education, and patiently observed the conduct of parents and the management of schools; but what was the result? — a profound conviction that the neglected education of my fellow-creatures is the grand source of the misery I deplore; and that women, in particular, are rendered weak and wretched by a variety of concurring causes, originating from one hasty conclusion (WOLLSTONECRAFT apud ABRAMS, 1979, p. 112).

Restrita ao espaço da casa e a atividades consideradas secundárias, a mulher deveria ser tutelada, como uma criança. Assim, o argumento central de A Vindication of the Rights of Woman é que a mulher deve ter direito a uma educação racional capaz de dar a ela a oportunidade de contribuir de maneira produtiva com a sociedade. Apesar de Wollstonecraft ter apontado de maneira incisiva para o problema ainda no final do século XVIII, as mudanças que iriam favorecer a mulher só começariam a acontecer pelo menos 100 anos depois. O século XIX, época da expansão colonial européia e da ascensão do pensamento positivista, é ainda essencialmente masculino. No Brasil, periferia da Europa, a formação rural da sociedade pouco aberta às idéias liberais reforçou ainda mais as características patriarcais européias — com o agravante de que a herança colonial portuguesa era fortemente marcada pelas práticas autoritárias do Absolutismo ainda remanescente na época da Ilustração e do poder da Igreja Católica, vinculada ao Estado. A submissão da mulher brasileira era tida, então, como um dado natural nos trópicos: O homem nascera para mandar, conquistar, realizar. O despotismo, antes privilégio dos monarcas, passa a ser do marido, dentro de casa. A mulher, por sua vez, nascera para agradar, ser mãe e desenvolver certo pudor natural. [...] Bem diferente das heroínas de romances, as mulheres viviam displicentemente vestidas, ocupadas com afazeres domésticos e dando pouca atenção à instrução (PRIORE, 2005, p. 122). COMUNICAÇÃO - REFLEXÕES, EXPERIÊNCIAS, ENSINO | 145


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A escritora inglesa Virginia Woolf, em A room of one’s own (1929), mostra que educação voltada para os afazeres considerados menos importantes afastou a mulher do mundo intelectual. Enquanto os homens se dedicavam às ciências, às grandes descobertas e às guerras, as mulheres ficavam em casa cuidando dos filhos e lendo romances. Mantidas nos limites da casa, as mulheres não tinham autonomia financeira para poder desenvolver suas potencialidades. A escritora chama a atenção para o fato de que as mulheres não possuíam sequer autoridade sobre elas mesmas. A maior parte dos livros sobre as mulheres até o século XIX era escrita por homens, quase sempre com uma visão depreciativa. Para Virginia Woolf, o caráter misógino da sociedade patriarcal, mostrando sempre a mulher de maneira depreciativa — imagem que é reforçada pela religião, no caso do catolicismo —, servia à estratégia masculina de dominação. A mulher é um espelho que reflete a imagem do homem duas vezes maior: That is why Napoleon and Mussolini both insist so emphatically upon the inferiority of women, for it they were not inferior, they would cease to enlarge. That serves to explain in part the necessity that women so often are to men. And it serves to explain how restless they are under her criticism; how impossible it is for her to say to them this book is bad, this picture is feeble, or whatever it may be, without giving far more pain and rousing far more anger than a man would do who gave the same criticism. For if she begins to tell the truth, the figure in the looking-glass shrinks; his fitness for life is diminished (WOOLF, 1929, p. 25).

Filho da sociedade patriarcal brasileira, Bentinho é um homem de seu tempo; ele expõe as ideologias e estereótipos sobre a mulher no século XIX. Capitu é o espelho no qual quer ver sua imagem aumentada duas vezes. Assim, a representação de Capitu é feita muito em função da imagem masculina que o narrador quer construir. Capitu, prisioneira da voz do narrador, é uma musa interrompida: o que sabemos dela são os silêncios do narrador, suas neblinas. E sua incompletude é a forma mesma de o narrador apresentar o Rio de Janeiro da segunda metade do século XIX: uma sociedade que goza, sob seu pince-nez, de ordem e progresso, guardando espaços bem determinados para seus atores sociais: os fidalgos, as mulheres, os pobres, os escravos, as santas e as prostitutas. Como já foi dito antes, na fase de produção romanesca mais importante de Machado de Assis, o narrador tem lugar central. Em vez de contar a história a partir do ponto de vista onisciente, em terceira pessoa, Machado opta, em grande parte, pela escrita em primeira pessoa. Com isso, evita as limitações do realismo de escola: a forma linear de ordenar os fatos, a busca pela objetividade, o movimento exaustivo (para os tempos das máquinas de reprodutibilidade técnica) da construção da verossimilhança — como nas páginas iniciais de Ilusões perdidas, de Balzac, em que o narrador faz a descrição da maquinaria de impressão, para, entre cilindros e rotativas, introduzir as personagens. O uso da primeira pessoa permitiu a Machado explorar não só a dimensão subjetiva da realidade, mas as digressões e idiossincrasias comuns a um narrador que 146 | COMUNICAÇÃO - REFLEXÕES, EXPERIÊNCIAS, ENSINO


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se assume parcial aos olhos do leitor. A opção de Machado abre o texto à incorporação de diversos gêneros textuais e níveis de narração praticamente inexistentes no romance realista, além do jogo intenso que calibra a interpelação com o leitor, sem a necessidade de realizar todas as etapas do edifício da ficção — daí os capítulos curtos e a distribuição desigual da matéria narrada. Em comum, os romances desta fase têm a criação de um determinado tipo de narrador que representa o poder masculino da classe dominante brasileira. Brás Cubas e Bentinho expressam a complexa ideologia da fidalguia nacional num momento de transição no país: da escravidão para o período de libertação dos escravos; da Monarquia para a República; do pacato século XIX para o frenético século XX. Nada melhor, para exprimir os desejos dessa classe, do que um fidalgo adiantado na idade ou um aristocrata falando do além-túmulo. Na voz de Cubas-Bentinho pode-se perceber o que Roberto Schwarz chamou de “desfaçatez da classe” (SCHWARZ, 2000), ao ler os romances da última fase de Machado como uma crítica contundente às contradições de uma classe social que era seduzida pelo discurso liberal e pelos ares tardo-humanistas do século XIX, mas que era ainda marcada pelas relações de opressão das famílias patriarcais. Nas palavras do crítico, as “conquistas liberais da Independência alteravam o processo político de cúpula e redefiniam as relações estrangeiras, mas não chegavam ao complexo socioeconômico gerado pela exploração colonial, que ficava intacto, como que devendo uma revolução” (SCHWARZ, 2006, p. 36). Além da opressão de classe, há uma forte dominação de gênero. No seu nuançado jogo de ambigüidades, Machado de Assis põe em cena o discurso como um elemento masculino. Bentinho, que se julgava menos homem do que Capitu era mulher, supera a sua fragilidade à medida que constrói suas personagens com palavras, ao mesmo tempo deixando marcas dessa fragilidade na linguagem — e uma delas é a omissão e a ambigüidade, condenáveis num século marcado pela infalibilidade do poder masculino. Ao estilo claro e “masculino” do romance realista de escola do século XIX, com sua estrutura relativamente previsível como um experimento científico, Machado de Assis opõe um universo misterioso, que só é possível se lido no espelho do texto. Dessa maneira, se na primeira leitura Dom Casmurro se arvora no discurso masculino do século XIX; na segunda, ele faz sentido se for lido numa perspectiva da construção do feminino, que examina não o conteúdo do que foi dito, mas a relação do que é dito com as estruturas de dominação social. As contradições sociais fora do texto são incorporadas na forma literária. Bentinho é um narrador entre dois mundos. As personagens são marcadas, ao mesmo tempo, por um desejo liberal, e pelo ferro quente da vingança, com a crueldade e a omissão do narrador. As personagens, para o narrador machadiano, devem ser descritas com meias-palavras. Capitu é composta por camadas que vão sendo apresentadas e sonegadas ao leitor. Como num afresco corroído, o leitor não pode observar a composição de cenas completas. Para tomar ciência do contexto, tem que espiar outros quadros que, por ventura, possam compor o mesmo sítio da

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memória do narrador. Assim como Bentinho, ela apresenta pelo menos dois estados bastante diversos, ambos fragmentados: a infância/ adolescência e a idade adulta. A personagem se constrói pelo olhar voyerístico do narrador, em suas impressões quase sempre parciais, ora focalizando uma característica física, ora explorando de soslaio o comportamento da musa. Outra forma de caracterização é o jogo de espelhos feito pelo narrador. Ao conduzir o leitor pelos labirintos de sua infância/adolescência e idade adulta, Bentinho é um observador obsessivo, que compara, com grande insistência, os velhos retratos às personagens que fazem parte do seu círculo. A imagem dos pais, em tradicional quadro de casamento, joga sua sombra sobre as personagens. Seminarista por promessa da mãe, Bentinho quer uma posição semelhante à ocupada pelo pai, longe da Igreja. A conclusão que tira quando olha o retrato de ambos é evidente quanto a isso: “O que se lê na cara de ambos é que, se a felicidade conjugal pode ser comparada à sorte grande, eles a tiraram no bilhete comprado de sociedade” (ASSIS, 2008, p. 21). A imagem da mãe, feliz e fiel ao lado do marido, que aos poucos vai ser canonizada pelo narrador — sobre a lápide dela, o filho manda gravar a inscrição: “Santa” —, rivaliza com a de Capitu. Esta, sem nunca substituir a imagem da sogra, é silenciada justamente por ter traçado caminho inverso. Capitu é a imagem oposta à da sogra. Esta última é a personagem que garante a manutenção do patriarcado, assumindo o lugar do marido falecido e controlando a família com mão de ferro; aquela questiona, em vários momentos, os estatutos da sociedade patriarcal — reforçada pela educação católica conservadora — e busca, com a razão, construir sua própria felicidade ao lado do marido. Numa época em que a mulher não participava integralmente da esfera pública, sendo apenas um adorno a ocupar o espaço da casa, Capitu se apresenta inclinada a fazeres e a comportamentos considerados masculinos: agia pela razão e não pela emoção; era capaz de questionar a autoridade e a ordem estabelecida; tinha inclinação para os estudos, por exemplo, em relação à matemática, o que resultou, de certa forma, na disciplina financeira do casal. Num mundo dominado pelo discurso masculino, Capitu ganha relevo pela independência. Nisso ela difere das outras personagens do livro, que se sujeitam à lógica do patriarcado, inclusive as mulheres — cuja existência é comparável à dos escravos. Como relata Simone de Beauvoir, na metade do século XX, “(...) a mulher sempre foi, senão a escrava do homem, ao menos sua vassala; os dois sexos nunca partilharam o mundo em igualdade de condições; e ainda hoje, embora sua condição esteja evoluindo, a mulher arca um pesado handicap” (BEAUVOIR, 1970, p. 14). A diligência de Capitu com o orçamento do casal causou admiração a Bentinho, acostumado à opulência e à despreocupação de uma família que vivia da renda de aluguel de imóveis e de escravos. Tais características são citadas pelo narrador, que as observa já na adolescência de Capitu: Como vês, Capitu, aos quatorze anos, tinha já idéias atrevidas, muito menos que outras que lhe vieram depois; mas eram só atrevidas em si, na prática faziam-se

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hábeis, sinuosas, surdas, e alcançavam o fim proposto, não de salto, mas aos saltinhos (ASSIS, 2008, p. 48).

Essa imagem é confirmada em outros trechos, em que Bento expõe, de forma positiva, as idéias ousadas de Capitu, que na segunda fase do romance serão usadas como argumento de condenação da personagem — devido ao seu espaço restrito na sociedade da época: Capitu era Capitu, isto é, uma criatura mui particular, mais mulher do que eu era homem [...] Era também mais curiosa. As curiosidades de Capitu dão para um capítulo. Eram de vária espécie, explicáveis e inexplicáveis, assim úteis como inúteis, umas graves, outras frívolas; gostava de saber tudo. No colégio onde, desde os sete anos, aprendera a ler, escrever e contar, francês, doutrina e obras de agulha, não aprendeu, por exemplo, a fazer renda; por isso mesmo, quis que prima Justina lho ensinasse. Se não estudou latim com o padre Cabral foi porque o padre, depois de lho propor gracejando, acabou dizendo que latim não era língua de meninas. Capitu confessou-me um dia que esta razão acendeu nela o desejo de o saber [...] (ASSIS, 2008, p. 77).

Note-se nesse trecho que a curiosidade de Capitu ultrapassava as limitações impostas às mulheres. Ela desejava dominar habilidades supostamente femininas (renda) e masculinas (latim). Enquanto a curiosidade de Capitu não tem grandes conseqüências, ela é louvada por Bentinho. Na primeira parte do romance, ela é conveniente ao narrador. A astúcia de Capitu foi fundamental para que os dois pudessem ficar juntos. Por exemplo, num momento bastante importante da narrativa, Capitu dá provas de sua insubordinação ao questionar a decisão autoritária da sogra quanto ao destino do pacato Bentinho: Capitu, a princípio, não disse nada. Recolheu os olhos, meteu-os em si e deixouse estar com as pupilas vagas e surdas, a boca entreaberta, toda parada. Então eu, para dar força às afirmações, comecei a jurar que não seria padre. Naquele tempo jurava muito e rijo, pela vida e pela morte. Jurei pela hora da morte. Que a luz me faltasse na hora da morte se fosse para o seminário. Capitu não parecia crer nem descrer, não parecia sequer ouvir; era uma figura de pau. Quis chamá-la, sacudi-la, mas faltou-me animo. Essa criatura que brincara comigo, que pulara, dançara, creio até que dormira comigo, deixava-me agora com os braços atados e medrosos. Enfim, tornou a si, mas tinha a cara lívida, e rompeu nestas palavras furiosas: - Beata! carola! papa-missas! (ASSIS, 2008, p. 47).

A ousadia de Capitu tem duplo sentido. Se por um lado ela serviu para ajudar

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Bentinho a livrar-se do domínio da mãe autoritária, por outro foi considerada maléfica pelo próprio narrador na segunda parte do romance, por considerar suas idéias atrevidas demais. A condenação de Capitu — pelo fato de ser uma mulher ousada e inteligente — acontece na segunda fase do romance, onde está evidente que o modelo feminino que Bentinho procurava era aquele típico do Brasil de meados do século XIX, em que a mulher está sob a tutela do homem e não tem autonomia. Assim, a imagem de Capitu não consegue superar, no imaginário de Bento, o retrato da mãe ao lado do pai. Da mesma forma, a fotografia do amigo Escobar, morto ao desafiar o mar em dia de ressaca, é como um objeto de mau agouro sobre os umbrais de Bentinho: ele infesta a imagem do jovem Ezequiel, que, como um Dorian Gray, vai se transformando na fotografia. No passeio a que o narrador conduz o leitor, Capitu deveria figurar como uma musa típica do Brasil da segunda metade do século XIX. Numa sociedade que entra na ordem capitalista mundial com nostalgia do feudalismo agrário, a morena de Matacavalos — que encontra no casamento uma forma de ascensão social — deveria estar circunscrita aos limites do lar burguês. Na primeira fase de definição da personagem, Bentinho descreve Capitu como o objeto de desejo na adolescência, com o seu comportamento vivo e angelical, mas com a destruição que se anuncia no espelho dos outros. O agregado José Dias vê a ameaça nos olhos “de ressaca”, de “cigana dissimulada” da menina — imagem que se prolonga por toda a família. José Dias olha Pádua, o pai de Capitu, com desprezo. Bentinho mantém uma relação indiferente ao futuro sogro. O caráter do agregado José Dias se contrapõe ao de Capitu, como observa Roberto Schwarz. Enquanto a marca de distinção desta é a insurgência e a liberdade, José Dias faz parte de um conjunto de pessoas que vivem em torno da cordialidade da família patriarcal brasileira. Ele é, ao mesmo tempo, conselheiro e criado sem salário, sob a proteção de Dona Glória. Para sobreviver como protegido da família, José Dias mantém-se diante dela de maneira servil, e comporta-se de forma arrogante em relação aos pobres e a outros criados — que, no fundo, são seus iguais —, como é possível observar em seus comentários em relação à família de Capitu: (...) A gente Pádua não é de todo má. Capitu, apesar daqueles olhos que o diabo lhe deu...Você já reparou nos olhos dela? São assim de cigana oblíqua e dissimulada. Pois, apesar deles, poderia passar, se não fosse a vaidade e a adulação. Oh! A adulação! Dona Fortunata merece estima, e ele não nego que seja honesto, tem um bom emprego, possui a casa em que mora, mas honestidade e estima não bastam, e as outras qualidades perdem muito de valor com as más companhias em que ele anda. Pádua tem uma tendência para gente reles. Em lhe cheirando a homem chulo é com ele [...] (ASSIS, 2008, p. 63-3).

À representação psicológica de Capitu pelas palavras de José Dias, que ganham força na narrativa de Bentinho, se soma a curiosidade do narrador em relação ao corpo 150 | COMUNICAÇÃO - REFLEXÕES, EXPERIÊNCIAS, ENSINO


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da personagem. A curiosidade visual do seminarista traça a beleza bem ao gosto do patriarcado brasileiro: a menina de pele morena — de uma morenice que passa longe da negritude, esta mantida à distância —, cabelo liso e negro, as ancas largas a encher os olhos do leitor. Depois, vêm os braços, os quais Bentinho procura manter livres de curiosos. Na segunda fase do romance, Capitu aparece como uma mulher compreensiva e comprometida com a vida do casal. Aos poucos, quando Bentinho é picado pelo inseto do ciúme, parte para a mutilação de Capitu, movimento sempre protegido aos olhos da sociedade, já que, “em briga de homem e mulher, ninguém bota a colher”. Bentinho sequer dá ao leitor a oportunidade de saber o que teria acontecido com os outros 2/3 da vida de Capitu que ele escondeu. Nesta fase, a obra torna-se lacunar. Bentinho concentra seus esforços em empreender a difamação de Capitu. O romance ganha outro ritmo. O tom idílico da primeira fase, com uma narrativa cheia de detalhes, desaparece; Bentinho acelera a velocidade dos fatos e do tempo – causando uma sensação de desproporção ao leitor. Sucede à primeira centena de páginas de conquista do amor um texto ligeiro, que pontua a infelicidade e a vingança asséptica do narrador. As descrições detalhadas da beleza da morena de Matacavalos e seus olhos de ressaca, seus cabelos, suas ancas e braços são substituídas pela incompletude: o que teria acontecido àquela mulher logo depois de ter sido expulsa do Paraíso? Teria permanecido bela e astuta como no frescor da juventude? O amargor do Casmurro não lhe permite tais pensamentos — ou talvez tenha preferido escondê-los do leitor. A personagem feminina mais importante da literatura brasileira é também uma das mais incompletas: seu corpo é enfunado pelo sopro do olhar liberal de um narrador voyeur, mas é escondido pela voz masculina que fala do meio da família patriarcal brasileira.

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Referências ASSIS, Machado de. Dom Casmurro. 1. ed. Rio de Janeiro: Mediafashion, 2008. BEAUVOIR, Simone de. O segundo sexo. 4. ed. Trad. Sérgio Milliet. São Paulo: 1970, p. 14. CANDIDO, Antonio. Literatura e sociedade. 7. ed. São Paulo: Ed. Nacional, 1985. PRIORE, Mary Del. História do amor no Brasil. São Paulo: Contexto, 2005. SCHWARZ, Roberto. Um mestre na periferia do capitalismo. 4. ed. São Paulo: Duas Cidades/ Editora 34. São Paulo: 2000. ______. Duas meninas. 2. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2006. WOLLSTONECRAFT, Mary. A vindication of rights of women. In: ABRAMS, M.H. Norton Anthology of English Literature, v.2. New York: Norton, 1979. WOOLF, Virginia. A room of one’s owe. Disponível em: http://etext.library.adelaide.edu.au/w/ woolf/virginia/w91r/complete.html. Acesso em: 2 set. 2008.

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