MÍDIA E FELICIDADE, UMA LEITURA PSICANALÍTICA Leonardo Ferrari1
Universidade Positivo
RESUMO O objetivo do artigo é esclarecer a visão psicanalítica sobre a felicidade através da análise de letras de músicas sobre o tema, da poesia de Dante Alighieri e Carlos Drummond de Andrade e de uma reflexão sobre a mudança histórica do conceito, de uma idéia trágica sobre a felicidade na Grécia antiga para uma idéia de obrigação à felicidade na pós-modernidade, apregoada pela mídia sob a forma de tecnologias de encantamento. A análise do conceito de função paterna permite então demonstrar a resposta da psicanálise a essa obrigação, ressaltando-se que o mal-estar, a infelicidade formam parte da estrutura do desejo humano, não podendo ser eliminadas por nenhum artifício, sob pena do sujeito não existir. Palavras chave: Psicanálise, Felicidade, Mídia, Desejo, Édipo, Função Paternal.
ABSTRACT The purpose of this article is to clear the psychoanalytical vision about happiness through an analysis of the lyrics of some songs about this theme, of the poetry of Dante Alighieri and Carlos Drummond de Andrade and through a reflexion about the historical change of the concept of happiness. In Ancient Greece happiness was a tragic idea but in Pos-Modernity it became an idea of obligation, which is used by Midia through technologies of enchantment. The analysis of the concept of father function allows the demonstration of the psychoanalysis answer to this obligation, emphasizing that unhappiness and ill-being are part of the structure of the human desire and therefore cannot, by no means, be eliminated unless the person doesn’t exist anymore. Keywords: Psychoanalysis, Happiness, Media, Desire, The Oedipus Complex
1 Leonardo Ferrari é psicanalista, graduado em Psicologia pela Universidade Tuiuti do Paraná e Máster en Dirección y Administracción de Empresas pela Escuela Superior de Administracción y Dirección de Empresas - ESADE/Barcelona, Espanha. Trabalha como psicanalista em consultório desde 1991 e é professor da Universidade Positivo desde 1999, tanto na graduação como na pós-graduação.
MÍDIA E FELICIDADE, UMA LEITURA PSICANALÍTICA
Conferência apresentada na Semana Mídia e Desejo, promovida pelo curso de Comunicação Social – Publicidade e Propaganda da Universidade Positivo, em outubro de 2007 “Todas as mágoas são suportáveis quando fazemos delas uma história ou contamos uma história a seu respeito” Isak Dinesen2 O que é a felicidade? Tom Jobim responde dizendo que ela é aquilo que tem fim3. Já Lupicínio Rodrigues explica porque ela tem fim: é que ela foi-se embora4. O que aconteceu então? Pois Milton Nascimento e Fernando Brant declaram: foi nessa hora que fez-se noite em meu viver5. Fazer a travessia da perda da felicidade exige um trabalho. Trabalho de luto, para Freud, que em 1917 escreve “Luto e Melancolia” (FREUD, 2006a) para tentar entender o que é que se perde quando a felicidade vai embora. O que fazer dessa noite? Dante Alighieri, em 1300, descreve assim esse momento em sua vida: “Nel mezzo del cammin di nostra vita mi ritrovai per una selva oscura, ché la diritta via era smarrita.” “A meio caminhar de nossa vida fui me encontrar em uma selva escura: estava a reta minha via perdida.” (ALIGHIERI, 1998a, p. 25).
Eis aí um homem, aos 35 anos de idade, perdido numa selva escura. Fez-se noite em seu viver. O que faz esse homem diante disso? Pois Dante retorna à memória, volta a Virgílio, seu mestre, seu autor, aquele de quem tirou o belo estilo6, e faz de Virgílio seu guia, seu intermediário para chegar à Beatriz. 2 Citada por Hannah Arendt na epígrafe do capítulo V, “Ação” de “A Condição Humana” (Rio de Janeiro: Forense Universitária, 10.ed., 2004. p. 188. 3 “Felicidade”, música de Tom Jobim e Vinícius de Morais. No anexo 1 deste artigo estão listadas todas as letras e autoria das músicas citadas ao longo do texto. 4 “Felicidade”, música de Lupicínio Rodrigues – ver anexo 1. 5 “Travessia”, música de Milton Nascimento e Fernando Brandt – ver anexo 1. 6 “A Divina Comédia – Inferno” - Canto I, verso 87, p.28 (ALIGHIERI, 1998a).
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Freud também teve o seu Virgílio. Ou, quem sabe, suas Beatrizes. Foram elas, as mulheres, suas primeiras pacientes – e que paciência tiveram em ensinar Freud! Foram elas que lhe ensinaram a psicanálise – com o detalhe: sem saber que lhe ensinavam. Qual era a selva escura em que Freud se encontrava logo após terminar o curso de Medicina? Era a selva escura de um conhecimento que não servia para tratar o sofrimento das neuroses. Era um conhecimento que servia para tratar osso, servia para tratar rim, servia para tratar fígado, servia para tratar garganta. Mas, diante de uma dor que não era orgânica, diante da dor de uma infelicidade cotidiana, Freud logo percebeu que o saber universitário, tão rigidamente lhe ensinado, não conseguia resolver essas dores da alma, essas dores de paixão, essas dores de conflitos mal resolvidos, essas dores muitas vezes sem nome. Selva escura. Sem ver muito bem o que fazer, foi pela luz da palavra de suas histéricas que esse homem se deixou levar. Enquanto Dante e Virgílio, quando começam a descer no Inferno e se deparam na ante-sala, numa espécie de saguão, com aqueles que não poderão jamais nem chegar ao céu, nem ir para o inferno, é a descoberta dos indiferentes, dos neutros da vida, daqueles que fizeram do muro sua profissão de fé, aqueles que nossa língua tão gentilmente qualifica de “bagres ensaboados” – nem felizes, nem infelizes, muito pelo contrário –, enquanto Dante fica estupefato pelo fato de nem Deus nem o Diabo quererem esses condenados7, as histéricas levaram Freud ao avesso da indiferença, levaram-no pela mão até a diferença sexual, ao campo onde a biologia não consegue responder por que um corpo biológico não nasce sabendo o que fazer do sexo. O que é ser um homem, o que é ser uma mulher? Não vem escrito no DNA essa resposta. É uma resposta construída, não uma resposta pronta. As histéricas levaram Freud pelos círculos infernais do insabível (é o próprio conceito de inconsciente em alemão, unbewust) levaram Freud para o terreno das fantasias sexuais. E aqui, uma primeira parada fundamental, quando Freud recebe uma pergunta de uma paciente, uma pergunta muito difícil de responder. Isso está registrado no quarto capítulo de seus “Estudos sobre a Histeria”, assinado junto com seu professor, o doutor Josef Breuer – pode-se considerá-lo como um primeiro Virgílio nessa caminhada de Freud. Infelizmente ou felizmente, ao contrário do Virgílio de Dante, este aqui deu no pé muito cedo. Medo do inferno?8 A pergunta do paciente foi a seguinte: “É provável, doutor, que meu sofrimento, a minha infelicidade, esteja conectada com as peripécias de minha vida. Ora, se você nada pode fazer para mudar as coisas que acontecem em minha vida, meu chefe que me perturba, meu marido que não me dá atenção, meu professor que não me entende e me deixa abaixo da média, como é que você vai me ajudar?”9. Pergunta muito difícil. Freud dá uma resposta paradoxal: Olha, eu não duvido que o destino pode muito mais facilmente do que eu livrá-la de seu sofrimento. Que, por exemplo, seu chefe poderia morrer de repente, que seu professor poderia ser substituído de um dia para outro por alguém mais compreensivo, 7 “A Divina Comédia – Inferno” - Canto III, versos 31-42, p. 38 (ALIGHIERI, 1998a). 8 Em sua monumental biografia de Freud, o historiador Peter Gay relata, nas páginas 74-79 as possíveis causas do afastamento de Breuer em relação às idéias de Freud (Cia.das Letras, 1997). 9 “Você mesmo afirma que é provável que meu sofrimento esteja ligado às condições e peripécias de minha vida. Já que você nada pode fazer diante delas, então como pretende me socorrer?” (FREUD, 1987, p. 309).
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alguém mais motivado, alguém mais cooperativo, que seu marido pudesse mudar depois de uma forte dor de dente, e assim por diante. Mas, você se convencerá de que será muito maior o ganho se conseguirmos que, em vez de ficar esperando isso acontecer, em vez de ficar sentada à beira do caminho, diz Freud, não é melhor acabar logo com isso10? Não é melhor acabar com essa morte lenta e transformar a sua miséria histérica [neurótica] em uma infelicidade banal? Com uma vida psíquica restabelecida, você poderá defender-se muito melhor do destino.11 Reparem que é uma resposta belíssima. Mais do que uma resposta, é uma interpretação, ou seja, é algo que faz parte da lógica e da dinâmica de uma análise. Não se pode pegar essa resposta e colocá-la na capa de um livro de auto-ajuda e distribuí-la pelo mundo como uma “receita de felicidade”: seja um infeliz ordinário! É que essa transformação de uma miséria neurótica em uma infelicidade banal é fruto de um trabalho. Trabalho de análise. Trabalho singular, particular, não universal, não válido para todos. A cada um, sua própria e específica infelicidade banal. Como diz Tolstói em Ana Karênina, “todas as famílias felizes se parecem ; cada família infeliz é infeliz à sua maneira” (Tolstói , 1982, p. 11) . Freud está dizendo ao sujeito para não esperar sentado. Não ficar esperando a felicidade voltar. Ele convida o sujeito a fazer uma travessia. Ele convida o sujeito a parar de ficar olhando para si mesmo e passar do olhar para a fala, para a palavra. Ele está convidando a sujeito a sair da frente do lago (Narciso) e prestar mais atenção a Eco, ao eco do Outro12. Vocês sabem que Narciso, por não dar bola a ninguém, acaba condenado pela deusa Nêmesis a amar sua própria imagem refletida no lago, sem dali poder sair, sequer para se alimentar. Ora, a resposta de Freud indica essa travessia de passar de sentado a caminhante. A sair do silêncio para soltar sua voz nessa estrada da análise. Soltar sua voz mesmo que exista uma vontade de se matar. A vida na voz contra a morte do sonho, a morte da esperança. Sair da miséria...mas não para a riqueza. Freud não é neoliberal – ele não acredita no engodo do “sucesso”, na ilusão do “self made-man” [homem que se faz por si mesmo], no aconselhamento da “felicidade ao alcance da mão”, no conto-da-carochinha do “desenvolvimento de competências”, para esse tipo de finalidade13. O sujeito não é neurótico porque é incompetente. Ele é neurótico por tentar domesticar o indomesticável de suas pulsões, de seu desejo, de seu inconsciente. Ele é neurótico por tentar controlar, tentar dominar, tentar regrar o incontrolável, o incontornável, o ilimitável. Ele achar que é incompetente faz parte de sua miséria neurótica. Se sai da miséria da neurose através de um trabalho de 10 “Sentado à beira do caminho”, música de Roberto e Erasmo Carlos – ver anexo 1. 11 “Eu não duvido que seria mais fácil o destino livrá-lo de seus sofrimentos do que eu próprio. Mas você se convencerá de que é grande o ganho se conseguirmos transformar sua miséria histérica numa infelicidade banal. Com a vida psíquica restabelecida, você poderá se defender melhor do destino”. (FREUD, 1987, p. 309). 12 A história de Eco e Narciso é contada por Ovídio em Metamorfoses (São Paulo: Madras, 2003, pp. 61-65). “Outro” é um conceito que Lacan apresenta como sendo um lugar em que “ a questão de sua existência coloca-se para o sujeito” (LACAN, 1998, p. 555) , “isto é: de sua sexualidade e de seu desejo, de sua procriação e de sua filiação, de sua existência e de sua morte, do destino que terá sido o seu, enfim. Outro, portanto: um lugar de questionamento do sujeito. Poderia ser uma versão lacaniana do conceito de Inconsciente.” (fonte: Luiz Eduardo Prado de Oliveira in “O conceito de Outro e a abordagem das psicoses”, disponível no sítio http://www.pradodeoliveira.com/br/outro.html (acesso em: 26 de agosto de 2008). 13 Dany-Robert Dufour discute essas questões no magnífico “A Arte de Reduzir as Cabeças – Sobre a Nova Servidão na Sociedade Ultraliberal” (Rio de Janeiro: Companhia de Freud, 2005).
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desidentificação do indivíduo dessa unidade tão falsa da consciência de si próprio.14 Fazer com o braço seu viver não significa transformar a miséria em riqueza, a riqueza do ser feliz. Significa isso: fazer com o braço algo, fazer com as pernas um caminho, fazer com os buracos do corpo um percurso. Fazer uma escolha. E escolher significa perder algo, abrir mão de algo. Em um dos trechos mais belos do livro “Felicidade” de Darrin McMahon, o autor diz o seguinte sobre a representação da felicidade na antiga Grécia: Obrigadas a tomar decisões impossíveis entre alternativas irreconciliáveis, figuras como Agamenon e Antígona, Orestes e Édipo, Electra e Medéia são assombradas por deuses e perseguidas por maldições de família, submetidas pelo destino e derrotadas pela própria natureza das coisas. E, embora esses personagens tenham inevitavelmente contribuído para sua ruína pela arrogância e pela ingenuidade, o cerne do dilema trágico é que não há resolução simples para os conflitos, não há decisões sem preços altíssimos, não há finais felizes e fáceis. Agamenon, na Oréstia de Ésquilo, é, no que diz respeito a isso, uma figura típica. Ele ou tem que sacrificar sua própria filha em nome dos deuses ou tem de renunciar à sua honra abandonando a campanha grega contra Tróia. A tragédia de seu dilema é que ele não pode ter as duas coisas” (MCMAHON, 2006, p. 24).
Não poder ter as duas coisas talvez seja uma síntese magnífica para esse tempo antigo. Será que vivemos esse mesmo problema? Pensei, quando escrevia, no filme “Matrix”15, em que ao herói, Neo, é ofertada a seguinte escolha: ou a pílula azul, ou a pílula vermelha16. Ora, o bobo do Neo escolhe uma das pílulas. Por que bobo? Porque ele poderia não ter escolhido nenhuma, ou seja, poderia ter escolhido aquilo que Odair José um dia proclamou: pare de tomar a pílula17. Neo não está diante de uma escolha, ou a pílula ou a palavra, por exemplo. Ele está diante de ou a pílula ou a pílula. Que diabo de neo, de novo há aqui?18 Não é isso uma brutal servidão voluntária19 ao desejo do outro – outro equívoco entre sono e sonho, pois Morfeu, que propõe a escolha, pode ser tanto dormir quanto sonhar – aliás, cabe dizer que Paula Toller em seu SóNós20 brinca com essa palavra: é só nós dois ou é para dormir? Então dormir juntos? SóNós vira Sexo! 14 Sobre o conceito de “desidentificação”, indico o artigo “Acerca de la Desidentificación” de Willy Baranger, Néstor Goldstein e Raquel Zak de Goldstein in Artesanías Psicoanalíticas (Buenos Aires: Kargieman, 1994). 15 Filme “The Matrix” (1999), dirigido por Andy Wachowski e Larry Wachowski. 16 Há um excelente debate sobre isso no capítulo 14, “Tomando uma Pílula Amarga: Autenticidade em Matrix e a Náusea”, escrito por Jennifer L. McMahon, no livro “Matrix – Bem-Vindo ao Deserto do Real”, coletânea de William Irwin (São Paulo: Madras, 2003. p. 193-203 17 Música “Pare de Tomar a Pílula” de Odair José – ver anexo 1. 18 Basta lembrar do encontro de Ulisses com os lotófagos na Odisséia: “Quem saboreia a doçura do loto, perde a vontade de informar, de viajar, esquece o lar, quer permanecer, morar com aqueles indivíduos, os lotófagos. Transtornados pelo loto, perdem a vontade de voltar para casa” (HOMERO in Odisséia parte II. Porto Alegre: L&PM. p. 119. 19 Referência ao “Discurso sobre a Servidão Voluntária” escrito por Etienne de La Boétie em 1577. Disponível na Internet no sítio: www.culturabrasil.pro.br/boetie.htm. 20 CD de Paula Toller, “SóNós”, lançado em 2007.
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Que admirável mundo novo21 é esse proposto por Morfeu? O mundo da servidão voluntária da drogadição22? O mundo onde se é obrigado a sorrir, obrigado a ser feliz, obrigado a tomar droga para se divertir? Sobre isso, o psicanalista Joel Birman faz uma reflexão fundamental: Diante da impossibilidade do sujeito de afrontar a dor produzida pelo desamparo, surge como solução imediata e, de maneira submissa, a colagem ao outro, considerado poderoso e do qual se espera proteção para os seus infortúnios. O sujeito oferece ao outro o seu corpo e o seu psiquismo, para que aquele possa gozar como queira, desde que, em contrapartida, ele lhe ofereça proteção para o desamparo. Não obstante a humilhação que tal posição possa implicar para o sujeito, este prefere isso a permanecer entregue a seu desamparo. Podese entrever, por esse viés, por que as depressões assumem tal importância na atualidade, resultantes que são do pacto masoquista, realizado à custa de uma imensa humilhação da auto-estima. (...) Nesse contexto, as drogas são ofertadas em larga escala pela medicina e pela psiquiatria para apaziguar a desesperança e os gritos de terror que solapam as subjetividades. Com a psicofarmacologia e as neurociências, a maciça medicalização do sofrimento no Ocidente, que caracterizou a modernidade, atinge níveis de barbárie (BIRMAN, 2006, p. 52-54).
Será que não há uma droga oferecida também pela mídia? Um certo canto das sereias23? Então, da miséria neurótica para uma infelicidade banal significa lidar com as perdas. Lidar com o desamparo. É por isso que uma análise não é a procura do “sucesso”. Mesmo porque o sucesso é muito perigoso. Sobre isso, Freud escreveu um de seus mais atordoantes trabalhos. Ele se chama “Alguns tipos de caráter elucidados pelo trabalho psicanalítico”. Foi escrito em 1916 e seu segundo capítulo tem o incrível título de “Os que fracassam ao triunfar” (FREUD, 1989a). O problema aqui é justamente quando o indivíduo alcança a felicidade. Freud analisa dois personagens da literatura. A primeira, Lady Macbeth, da peça “Macbeth” de Shakespeare. A segunda, Rebecca West, da peça “Rosmersholm”, de Ibsen24. São duas personagens que, no “auge” do sucesso, não conseguem lidar com o êxito, e fracassam. É um lembrete dramático sobre os perigos da felicidade – do tipo: cuidado com o que você deseja. Um dia pode se realizar.25 21 Referência ao livro “Admirável Mundo Novo” de Aldous Huxley. 22 Não é simbólico o fato de que a discoteca mais famosa de Ibiza, Espanha, tenha o nome de “Amnésia”? Fonte: Joan M. Oleaque in “Tormenta en la isla - ¿Qué ocorre cuando la mejor discoteca del mundo se ve obligada a cerrar un mês por “permisividad” con las drogas?”, El País, 9/7/2007. 23 Homero denomina esse canto de “armadilha sonora”. Ver “Odisséia – parte II” (Porto Alegre: L&PM, 2007, p. 217. Sobre a relação entre mídia e o canto das sereias, Roger Silverstone esclarece: “Vê-se então que a tecnologia é mágica e que as tecnologias da mídia são, de fato, tecnologias de encantamento. Essa sobredeterminação lhes confere um poder considerável, para não dizer aterrador, em nossa imaginação. Nosso envolvimento com elas é impregnado pelo sagrado, mediado por ansiedade e, de quando em quando, arrebatado pela alegria. Nossa dependência delas é substancial. O desespero que nos invade quando somos privados do acesso a elas – o telefone como “linha salva-vidas”, a televisão como “janela para o mundo” – é completo. Nosso entusiasmo, quando somos confrontados pelo novo, às vezes desconhece limites: “Quatro milhões de megas? Nossa!” ”(SILVERSTONE, 2005, p. 50). 24 Há uma versão em português em “Ibsen – Seis Dramas – parte 2”. São Paulo, editora Escala. Em relação ao canto da sereia, há um personagem, Brendel, que assim se refere à Rebecca West: “sedutora sereia” (p. 65, op. cit.). 25 Por exemplo, a história do rei Midas e seu desejo de que qualquer coisa que tocasse virasse ouro. Entretanto, ao des-
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Eu lembrei, relendo esse texto e as duas peças, da personagem da mitologia grega Sêmele26. Sêmele é filha de Cadmo, herói fundador de Tebas, e de Harmonia (filha de Afrodite, deusa da união, dos acordos, da reconciliação). Ora, Sêmele é uma criatura encantadora. Tão encantadora que ela atraiu nada mais, nada menos, que Zeus, o deus todo-poderoso – aumentando com isso ainda mais o ódio de Hera para com seu marido traidor. Isso é muito bonito na mitologia grega. Os deuses são faltantes. Os deuses gregos comem churrasco e se ausentam do Olimpo – eles não estão lá o tempo todo. Há no início da Ilíada esse episódio inesquecível do desamparado Aquiles pedindo a sua mãe que vá falar com Zeus no Olimpo. E sua mãe dá a resposta chocante de que Zeus e todos os deuses (atenção para este todos) não estão: eles foram comer um churrasco na Etiópia e voltam daqui a doze dias!27 São deuses da secretária eletrônica: pode deixar seu recado! Ora, Zeus terá relações com Sêmele, mas não de apenas um dia, como aconteceu com outras – mas Sêmele não era uma mera “outra”. Sêmele era Sêmele. Zeus vai ter uma relação com ela duradoura, de vários meses. Então, Sêmele, que vê Zeus deitar-se a seu lado toda noite sob uma forma humana, mas que sabe que se trata de Zeus, deseja que o deus lhe apareça pessoalmente em todo o seu esplendor, em sua majestade de soberano dos bem-aventurados imortais. Aí podemos perceber que Sêmele era histérica – diante de Morfeu, Sêmele não dormiria no ponto, ou no conto dele: com certeza, ela responderia – mas precisa tomar isso mesmo? E se não tomar? E não tem de outras cores? É marca registrada da histeria essa insatisfação. É por isso, aliás, que a ciência é histérica.28 Bom, Sêmele não pára de implorar a Zeus que ele se mostre como deus, e não como simples humano. Sêmele também contraria toda a ética de Aristóteles aqui. Está lá, na Ética a Nicômaco, bem no início, a frase que nos acompanha até hoje como se fosse uma espécie de verdade revelada: “o bem é aquilo a que todas as coisas tendem” (Aristóteles, 1987, p. 9). Resumindo, Aristóteles nos legou que “estamos bem no bem”. Não preciso lhes dizer do “sucesso” tremendo dessa frase de Aristóteles em nossa época. São milhões de livros e revistas publicados além de incontáveis programas de televisão com “receitas” de felicidade: sorria dez vezes por dia, tenha 50 orgasmos em vinte e quatro horas, fique linda só comendo abacaxi, e assim por diante. Ora, Sêmele não está bem no bem. Sêmele é uma excelente demonstração da resposta de Freud a Aristóteles, em “Além do Princípio do Prazer” de 1920: o ser humano não está bem no bem. Ele está bem é no mal (FREUD, 2006b).29 As amigas de Sêmele anteviram isso e, como boas amigas, lhe falaram: sua boba, você já conseguiu o deus, o que mais você quer? Ei, acorde, é ele, é o cara! O deus já lhe garantiu pensão, capa da Playboy, cobrir que o próprio alimento que tentava comer se transformava em ouro, suplicou o fim da graça recebida (HARVEY, 1987). 26 Junito de Souza Brandão tem uma outra interpretação para a história de Sêmele em “Mitologia Grega – v. II”. Petrópolis: 2007, 16. ed., p. 120-123. 27 Isso está explícito no canto I da “Ilíada” de Homero (Rio de Janeiro: Ediouro, 2001, p.70). 28 Bruce Fink trabalha muito bem sobre essa questão no capítulo “Psicanálise e Ciência” de seu livro “O Sujeito Lacaniano” (Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998, p. 170-179). 29 Sobre isso, Slavoj Zizek se pronuncia: “Em psicanálise, a traição do desejo tem um nome preciso: felicidade. (...) “felicidade” pertence ao princípio do prazer, e o que a solapa é a insistência em um além do princípio do prazer” (ZIZEK, 2005, p. 77-78). Já o psicanalista Ricardo Goldenberg conclui: “A psicanálise, entretanto, não se propõe a indicar onde está o Bem, e, enquanto o político entra de chofre no jogo do publicitário – o moderno engenheiro das identificações que orienta o fluxo dos desejos na direção dos interesses que serve –, a prática do psicanalista se exerce na direção contrária, de pôr em questão as soluções neuróticas para lidar com os impasses do desejo no intercâmbio social” (GOLDENBERG, 2006, p. 38).
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o que mais você precisa? Não é o máximo você chegar com ele lá na Liqüe, lá no Taco, lá na Eon, lá no Castelo do Batel30? Ele até já te engravidou, o que mais você necessita? Pois Sêmele, longe do registro da necessidade, demonstra que a pulsão não se regula pelo objeto, não se regula pelo bem. A pulsão deseja outro desejo.31 Diz Nietzsche em sua máxima 175 de Além do Bem e do Mal: “Por fim amamos o próprio desejo, e não o desejado” (Nietzsche, 2005, p. 72). Ora, evidentemente, mesmo se de vez em quando os deuses assistiam a seus casamentos, é sempre um perigo para os homens quererem que os deuses se apresentem diante de seus olhos tais como são, como fariam parceiros mortais. Quando Zeus acata o pedido de Sêmele – Zeus obsessivo? – mas é difícil não ceder a uma histérica decidida –, e então Zeus aparece em seu esplendor fulminante, Sêmele é consumida pela luminosidade flamejante, pelo brilho divino do amante. Sêmele queima literalmente – ela pega fogo, mas não no sentido erótico, mas, sim, literal: queimadura de terceiro grau, sua pele fica negra, ela sequer grita, pois o fogo destruiu suas terminações nervosas. Como já estava grávida, Zeus não hesita um segundo: tira do corpo de Sêmele, que está se consumindo, o pequeno Dionísio, faz um corte na própria coxa, abre-a, transforma-a em útero feminino (Zeus pode tudo – bom, nem tudo. Diante de Sêmele queimando, ele não conseguiu apagar esse fogo – e olha, justiça seja feita, nem o outro fogo, pois ela queria...mais – não é esta mais uma prova da debilidade dos deuses gregos? Que deus é esse que não consegue apagar esse fogo? Aguardemos os próximos. Quiçá sejam mais fortes!). Então, Zeus tira esse bebê e coloca em sua coxa o futuro filho, que é então um feto de seis meses. Assim, Dionísio será duplamente filho de Zeus, será o “nascido-duas-vezes” (Vernant, 2005, p. 150). Aliás, Dionísio é o filho que toda mãe gostaria de ter. É ele quem vai buscar a mãe no Inferno (Hades) e leva-a para o Olimpo dos deuses onde ela, enfim, será promovida a deusa. Não é à toa que Nietzsche tenha se encantado com ele em sua obra “O Nascimento da Tragédia”. 32 Bom, mas voltando à mãe de Dionísio, eis aqui um desejo plenamente realizado. O que resta quando o desejo se realiza? Pois se o desejo nasce da falta, alguém que tivesse todos os seus desejos atendidos, não levantaria mais na manhã seguinte. Morreu, como Sêmele. Talvez por causa disso Dante, no canto II do Inferno, não queira de jeito nenhum seguir caminho com Virgílio. Dante tenta convencer Virgílio que ele não tem a virtude de Enéias (fundador de Roma), nem sequer um terço da força de São Paulo, logo (Dante era aristotélico), silogismo, ele, Dante, não pode seguir adiante. O pobre Virgílio tem que apelar ao nome de Beatriz para acordar Dante – e eis aqui algo muito belo: Beatriz acende o fogo do desejo em Dante (Alighieri, 1998a). Mas não será para todo ser humano...uma mulher em especial, aquela que nos move? Bom, então Freud propõe a transformação de uma miséria neurótica em uma 30 Casas noturnas e restaurantes na cidade de Curitiba. 31 Freud é muito claro sobre isso em seu texto “Pulsões e Destinos da Pulsão” de 1915: “O objeto da pulsão é aquilo em que, ou por meio de que, a pulsão pode alcançar sua meta. Ele é o elemento mais variável na pulsão e não está originariamente vinculado a ela, sendo-lhe apenas acrescentado em razão de sua aptidão para propiciar satisfação” (in Obras Psicológicas de Sigmund Freud – Volume 1. Rio de Janeiro: Imago, 2004b, p. 149). 32 A questão central dessa obra, posta por Nietzsche já no primeiro capítulo, é a seguinte: “Se fosse justamente a loucura, para empregar uma palavra de Platão, que tivesse trazido as maiores bênçãos sobre a Hélade?” (NIETZSCHE, 2003, p. 17-18). Dionísio é o representante dessa loucura.
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infelicidade banal. O que é uma infelicidade banal? É aquela que possibilita a continuação da vida. É aquela que empurra para a frente, empurra ao desejo. É aquela em que ainda é possível uma resposta – sem que o sujeito fique à mercê do que não controla. Sem que o sujeito fique entupido de drogas, de cigarrinhos, de balinhas, de azuizinhas ou vermelhinhas que lhe prometem o paraíso sem o trabalho da perda, sem o trabalho da caminhada que em Dante vai do inferno pelo purgatório até chegar a um ponto de parada chamado paraíso – em São Paulo, é um dos destinos do metrô! Em Dante, não há atalhos entre o inferno e o paraíso. Há que caminhar e muito. É por isso que uma análise leva tempo. É o tempo de uma caminhada. Muitos anos depois, em 1930, em seu trabalho “O Mal-Estar na Cultura”, Freud aprofunda a reflexão sobre a felicidade: o que é que os seres humanos querem alcançar na vida? Querem alcançar a felicidade, consegui-la e mantê-la. E o que é essa tal felicidade? Diz Freud, é querer a ausência de dor e de desprazer e, por outro lado, querer vivenciar intensos sentimentos de prazer.33 Reparem para o “intensos” – prazeres mixurucas estão fora de questão. Eis aqui a insatisfação de Sêmele: Zeus-homem é pouco. Ela queria Zeus-deus. “Deus” no que deu. Freud declara a seguir que esse programa, esse projeto, esse objetivo, essa meta, esse desafio estratégico, esse “core business”34 entra em conflito com o mundo inteiro. É um projeto destinado ao fracasso. Ele é irrealizável. Freud recorre até a Goethe nessa hora (assim como Virgílio recorreu a Beatriz antes): “Nada é mais difícil de suportar do que uma sucessão de dias felizes”, diz Goethe35. Goethe é aquele estraga-prazeres que chega e diz: experimente fazer um jornal só com notícias felizes ou então uma revista só com anúncios publicitários, sem aquelas matérias de recheio sobre a fome no Sudão, a corrupção no Japão e assim por diante – vai morrer de fome. Mas, por que isso? Por que esse objetivo é irrealizável? Porque, diz Freud, de três lados nos ameaça o sofrimento. Do próprio corpo, destinado à ruína e à dissolução; da natureza, que pode se abater com fúria sobre nós e, a pior das ameaças, das relações entre os próprios seres humanos (Freud, 1988). É curioso pensar o que nosso século propõe a cada uma dessas ameaças. Para o corpo em decomposição, entra a cosmética36: a medicina dermatológica, endócrina e cirúrgica visando “corrigir” a falta, a falha, a divisão do sujeito através de plástica, plásticos, cirurgias e remédios. Para a ameaça da natureza, uma série de invenções, ar condicionado, aquecedores, mas as surpresas com furacões, tsunamis e mudanças climáticas. E para os relacionamentos humanos? Pois, surge a invenção genial da segregação, do isolamento, dos condomínios fechados: são muros em 33 Isso é amplamente desenvolvido por Freud no capítulo II do Mal-Estar na Cultura (FREUD, 1988), p. 74-96. 34 Expressão da Administração e que indica a parte principal de um negócio ou área de negócios, geralmente definido em função da estratégia de uma empresa para o mercado. Sobre a felicidade como “negócio”, indico a conclusão do livro “Felicidade” de Darrin M. McMahon, quando ele conta a história do executivo de publicidade, Harvey R. Ball, e a criação do “Smiley”, o rosto sorridente, ícone moderno da felicidade (MCMAHON, 2006). 35 A citação encontra-se na nota 4 do capítulo II do Mal-Estar na Cultura (FREUD, 1988), p. 76. 36 Sobre isso, há um trabalho excelente do psicanalista Antonio Quinet, “As Novas Formas do Sintoma na Medicina”, disponível no sítio http://www.estadosgerais.org/historia/160-as_novas.shtml.
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fronteiras, cercas de arame eletrificado, fossos, e logo o retorno triunfal do azeite fervendo...sem falar da invenção mais estarrecedora do século XX junto com a bomba atômica: o campo de concentração nazista – onde se inventou uma linha de desmontagem de vidas humanas inédita na história.37 Nesse campo, nosso século não quer ficar para trás. Inventou Guantánamo, onde prisioneiros sem nome, sem lei e sem acusação formal mofam ad aeternum.38 Se Freud apresenta essas três ameaças como algo permanente, isso significa que devamos renunciar à esperança? Mas como se na caixa de Pandora, foi só ela que restou no fundo39? Nisso, Dante foi absolutamente magnífico. No terceiro canto do Inferno, após Virgílio finalmente ter convencido Dante a seguir caminhando – o nome de Beatriz funcionou como o motor do desejo de Dante – ele se depara com a seguinte inscrição no Inferno: “Lasciate ognie speranza, voi ch’intrate” “Deixai toda a esperança, ó vós que entrais” (Alighieri, 1998ª, p. 37). O Inferno é sem esperança40. É o lugar da não-mudança, é o lugar do pensamentoúnico, é o lugar da não possibilidade de revolução. O inferno é pensar que chegamos ao fim da história. O inferno é pensar que qualquer sistema político-econômico será para sempre a única possibilidade de pensar a vida. Ora, a resposta de Dante é que ele mesmo após ter perdido para sempre o amor de sua vida – Beatriz já tinha morrido quando ele começa a escrever o livro, mesmo estando para sempre exilado de sua cidade, seu caminhar não terminou. A resposta de Dante é sua obra, a Divina Comédia, é aquilo que vem no lugar de outra coisa, é aquilo que vem no lugar de Beatriz, ou seja, a Divina Comédia é uma metáfora. E também é uma metonímia, pois Dante não escreveu só esta obra. Tampouco a escreveu de uma vez só. Metáfora e metonímia. Cantar o impossível, mas cantar. Se a felicidade, Beatriz, foi-se embora e a saudade ainda mora no peito do poeta, Dante lá detrás do mundo, no exílio, decide fazer com seu braço seu viver. E aí escreve, e descreve, fala do impossível do paraíso, desse amor que move o sol e as estrelas41 e que moveu todo o seu trabalho de escrever essa obra extraordinária. Fazer do impossível uma obra resulta em transformar a impotência em realização. Representa transformar a impossibilidade da felicidade total nessa infelicidade banal que pode se chamar “A Divina Comédia”.
37 Ver, por exemplo, o estarrecedor relato de Primo Levi em “É Isso Um Homem”? (Rio de Janeiro: Rocco, 1988). Sobre a felicidade, afirma Levi: “Cedo ou tarde, na vida, cada um de nós se dá conta de que a felicidade completa é irrealizável; poucos, porém, atentam para a reflexão oposta: que também é irrealizável a infelicidade completa. Os motivos que se opõem à realização de ambos os estados-limite são da mesma natureza; eles vêm de nossa condição humana, que é contra qualquer “infinito”. Assim, opõe-se a esta realização o insuficiente conhecimento do futuro, chamado de esperança no primeiro caso e de dúvida quanto ao amanhã, no segundo. Assim, opõe-se a ela a certeza da morte, que fixa um limite a cada alegria, mas também a cada tristeza. Assim, opõem-se as inevitáveis lides materiais que, da mesma forma como desgastam com o tempo toda a felicidade, desviam a cada instante a nossa atenção da desgraça que pesa sobre nós tornando a sua percepção fragmentária, e, portanto, suportável” (LEVI, 1988, p. 15). 38 Sobre o campo de concentração como um paradigma de nossa época, há um livro essencial do filósofo italiano Giorgio Agamben, “Homo Sacer” (Belo Horizonte: UFMG, 2004). 39 Jean-Pierre Vernant faz uma bela análise de Pandora em sua obra “O Universo, os Deuses, os Homens” (São Paulo: Cia. das Letras, 2005. p. 68-74). 40 Há uma belíssima reflexão sobre isso na conferência de Newton Bignotto chamada A Condição Humana (Dante), no livro organizado por Adauto Novaes intitulado “Poetas que Pensaram o Mundo”, ed. Cia. das Letras, 2005. 41 Referência ao último verso, o 145, da terceira e última parte da Divina Comédia, O Paraíso, o final da jornada: “l’amor che move il sole e l’altre stelle” [o Amor que move o Sol e as mais estrelas] (ALIGHIERI, 1998c , p. 234).
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Agora, de onde veio esta idéia de que a felicidade seja uma obrigação, esta idéia de que a felicidade total possa existir? É num trecho muito precioso de seu texto “À Guisa de Introdução ao Narcisismo” de 1914 que Freud vai esclarecer esse problema. Diz Freud:
A criança deve ter melhor sorte que seus pais, não deve ser submetida aos mesmos imperativos que eles tiveram de acatar ao longo da vida. Doença, morte, renúncia à fruição, restrições à própria vontade não devem valer para a criança, as leis da natureza, assim como as da sociedade, devem se deter diante dela, e ela deve realmente tornar-se de novo o centro e a essência da criação do mundo. His Majesty the Baby, tal como nós mesmos nos imaginamos um dia. A criança deve satisfazer os sonhos e os desejos nunca realizados dos pais, tornarse um grande homem e herói no lugar do pai, ou desposar um príncipe, a título de indenização tardia da mãe. O ponto mais vulnerável do sistema narcísico, a imortalidade do Eu, tão duramente encurralada pela realidade, ganha, assim, um refúgio seguro abrigando-se na criança (FREUD, 1988a, p. 88).
É uma reflexão genial de Freud. A criança vai surgir justamente nessa tentativa de preencher a esperança do Outro. Antes de poder escolher, a criança é escolhida pelo Outro: recebe um nome, as primeiras palavras, as primeiras significações sobre o que é que está fazendo ali, quem é e, mais importante, quem deverá ser. “Sonhos e desejos nunca realizados dos pais” – esse é o cimento e a argamassa que vão estruturar a instância do ideal em nossas vidas. O ideal do eu é uma espécie de farol42, que indica, sinaliza, aponta, mas também cobra, repreende, tornando quase que impossível uma “pureza da consciência” (IBSEN, p. 41). É desse ideal que emerge esse estranho projeto, o de ser feliz no lugar...dos pais que não foram ou não foram tanto quanto gostariam. A um primeiro momento de quase beatitude entre a criança e a mãe, poderá existir um segundo momento, de corte dessa relação. É isso que se chama função paterna em psicanálise.43 É essa função que vai fazer com que a criança possa passar da miséria de um gozo trágico – ela e a mãe – para o mundo das infelicidades banais, ela e o namorado, ela e o carro, ela e a caneta, ela e o microfone, ela e o estudo, ela e a profissão, e assim por diante. A função paterna é aquilo que funda um consumidor decidido. Decidido a vagar de objeto em objeto – lembremos que a pulsão não tem objeto, ao contrário do instinto dos animais – à procura daquilo que lhe trará a grande satisfação, a paz do cemitério, a paz do não-desejo – que seria o encontro com um objeto-total. Mesmo a tão utilizada droga exige sempre mais...mais um, mais um pouquinho, mais uma cheiradinha, mais uma balinha, só mais uma...até a morte – sem querer...querendo. A função paterna é aquilo que dá um limite, é um não que vai abrir todos os 42 Freud faz uma extensa análise disso em seu texto “A Divisão da Personalidade Psíquica”, de 1933 (FREUD, 1989b). 43 Sobre a função paterna, indico o livro do psicanalista Joël Dor, “O Pai e sua Função em Psicanálise” (Jorge Zahar, 1991).
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outros sims da existência44. No primeiro semestre de 2008, comemoram-se os cem anos da mãe de Caetano Veloso e Maria Betânia, dona Canô. Caetano lembrou da mãe desse jeito: “A maior lição que aprendi com minha mãe foi gostar da existência” (O Globo, 16/9/2007). O Édipo em psicanálise é justamente essa transformação da natureza, da nãoexistência, em cultura, é a mudança de um corpo biológico para um corpo erógeno, é a passagem da não escolha para o território das escolhas e, como preço, da perda, da falta e do...desejo.45 Não é fácil aprender a gostar da existência, pois isso implica perder essa relação inicial com tudo aquilo que a mãe representa para o bebê. Antes de gostar da existência, o sujeito só está com ela. Há uma passagem aqui, uma travessia. Da mãe para a existência. É isso a função paterna. Da mãe para o mundo. A função paterna é o anjo torto de Drummond em seu poema de sete faces (publicado em 1930, no mesmo ano do Mal Estar na Cultura de Freud!): Quando nasci, um anjo torto desses que vivem na sombra disse: Vai, Carlos! Ser gauche na vida.46
Ser gauche, ser deslocado, ficar à esquerda dos acontecimentos, ficar à margem, torto, sem jeito, sem remédio, sem solução. “Drummond chamou de “um eu todo retorcido” a essa subjetividade convulsionada pela experiência moderna” (Wisnik apud Novaes, 2005, p. 39). Ser gauche é o preço a pagar para ser. A alternativa é péssima: não ser. Mas vai, Carlos, vai ser, vai existir, vai gostar da existência Carlos, vai se retorcer, vai ser barroco na vida, vai... Em um dos momentos mais impressionantes da Divina Comédia, já no Purgatório (é o canto V), Dante pára de caminhar atraído por um grito. Dante se distrai, se perde de novo.47 Virgílio imediatamente o repreende desta forma (p. 345): “Perché l’animo tuo tanto s’impiglia”, disse ’l maestro, “che l’andare allenti? che ti fa ciò che quivi si pispiglia? Vien dietro a me, e lascia dir le genti: 44 Essa idéia é desenvolvida pelos psicanalista Alduísio Moreira de Souza no primeiro capítulo de seu livro “Precisões Clínicas em Psicanálise” (edição do autor, 2004). 45 Sobre o conceito de complexo de Édipo, indico o belo livro do psicanalista Juan David Nasio intitulado “Édipo, o complexo do qual nenhuma criança escapa” (Jorge Zahar, 2007). 46 Poema de Sete Faces, Carlos Drummond de Andrade – ver anexo 2. 47 Já no Inferno-Canto II (ALIGHIERI, 1998a), verso 121, p.35, Virgílio se irrita com a reticência de Dante em lhe acompanhar. No Inferno-Canto XXIV (verso 52, p.165), Virgílio ordena que Dante se levante, que não ceda à folgança (verso 46, p.165). No Purgatório-Canto III (ALIGHIERI, 1998b), verso 22, p.26, Virgílio pergunta de que Dante está desconfiando, se não acredita mais nele (verso 24, p.26). No mesmo Purgatório-Canto XII (versos 4 e 5, p. 79), Virgílio ordena que Dante se desligue de algumas almas que insistia em acompanhar . E, no canto XV do Purgatório (verso 136, p. 104), Virgílio precisa dar força aos pés de Dante, que parecem avançar muito lentamente. Finalmente, só no canto XXVII do Purgatório, Virgílio declara: “Aqui eu te trouxe com engenho e arte;/seja ora o teu quere quem te conduz;/ duras vias já não tens pra fatigar-te” (versos 130-133, p. 181). E, em um dos versos mais lindos de toda a Divina Comédia, já no Canto XXX do Purgatório (versos 43-48, p. 196), Dante, sem Virgílio e prestes a encontrar Beatriz, volta a cabeça à sua procura, assustado: “voltei-me à esquerda, com a confiança/ que, correndo pr’a mãe, o infante abriga,/quando assustado busca segurança;/pra a Virgílio dizer: “Uma só miga/de sangue não me resta que não trema:/reconheço os sinais da chama antiga” (ALIGHIERI, 1998b).
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sta come torre ferma, che non crolla già mai la cima per soffiar di venti;
“Por que a tua mente tanto se aventura”, disse o meu Mestre, “em vãos impedimentos? Que te interessa o que aqui se murmura? Vem, e ignora das gentes os comentos, sê como torre, que nunca estremece seu firme cimo por soprar de ventos;” (ALIGHIERI, 1998b, p. 37-38)
É claro que Virgílio não é Freud. Se Freud certamente endossaria o “lascia dir le genti”, jamais ele estaria preocupado pelo fato de Dante se distrair, de Dante se perder na selva do desejo. Jamais diria a Dante para ele ser como uma torre firme. Torre firme? Isso é conselho, é auto-ajuda da Idade Média. O próprio Dante procura o tempo todo na Divina Comédia a fuga da disciplina, a fuga da ordem em que cada coisa está em seu lugar. No lugar do previsível, Dante erra pelo imprevisível. Dante desmaia diversas vezes, ele cai, ele se esborracha no chão48. Dante, esse homem símbolo do Renascimento, na verdade abre também a via do Barroco. E nesse sentido, Dante está próximo da psicanálise. Uma análise precisa que o sujeito aceite dizer o que não sabe, falar o que lhe vem à cabeça, falar sem saber, falar sem poder controlar onde é que vai dar o que está dizendo. Fazer da selva escura algo que valha a pena. Fazer metáfora, fazer metonímia, fazer um viver. Ser gauche na vida.
48 Por exemplo, no final do Canto III do Inferno, verso 136 (p. 41) e no final do Canto V do Inferno, verso 142 (p. 54),
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ANEXO 1 – MÚSICAS CITADAS NO ARTIGO 1. Felicidade
Música: Tom Jobim Letra: Vinicius de Moraes Tristeza não tem fim Felicidade sim... A felicidade é como a pluma Que o vento vai levando pelo ar Voa tão leve Mas tem a vida breve Precisa que haja vento sem parar. A felicidade do pobre parece A grande ilusão do carnaval A gente trabalha o ano inteiro Por um momento de sonho Pra fazer a fantasia De rei, ou de pirata, ou jardineira E tudo se acabar na quarta-feira. Tristeza não tem fim Felicidade sim... A felicidade é como a gota De orvalho numa pétala de flor Brilha tranquila Depois de leve oscila E cai como uma lágrima de amor. A minha felicidade está sonhando Nos olhos de minha namorada É como esta noite Passando, passando Em busca da madrugada Falem baixo por favor... Pra que ela acorde alegre como o dia Oferecendo beijos de amor. Tristeza não tem fim Felicidade sim...
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2. Felicidade Lupicínio Rodrigues Felicidade foi embora E a saudade do meu peito inda mora E é por isso que eu gosto lá de fora Porque eu sei que a falsidade não vigora A minha casa fica lá detrás do mundo Onde eu vou em um segundo Quando começo a cantar O pensamento parece uma coisa à toa Mas como é que a gente voa Quando começa a pensar
3. Travessia
Milton Nascimento e Fernando Brant Quando você foi embora Fez-se noite em meu viver Forte eu sou mas não tem jeito Hoje eu tenho que chorar Minha casa não é minha E nem é meu este lugar Estou só e não resisto Muito tenho pra falar Solto a voz nas estradas Já não quero parar Meu caminho é de pedra Como posso sonhar? Sonho feito de brisa Vento vem terminar Vou fechar o meu pranto Vou querer me matar Vou seguindo pela vida Me esquecendo de você Eu não quero mais a morte Tenho muito que viver Vou querer amar de novo COMUNICAÇÃO - REFLEXÕES, EXPERIÊNCIAS, ENSINO | 139
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E se não der não vou sofrer Já não sonho Hoje faço com meu braço meu viver
4. Sentado à beira do caminho
Roberto Carlos e Erasmo Carlos Eu não posso mais ficar aqui a esperar que um dia, de repente, você volte para mim Vejo caminhões e carros apressados a passar por mim estou sentado à beira de um caminho que não tem mais fim Meu olhar se perde na poeira dessa estrada triste onde a tristeza e a saudade de você ainda existem Esse sol que queima no meu rosto um resto de esperança de ao menos ver de perto o seu olhar que eu trago na lembrança Preciso acabar logo com isso Preciso lembrar que eu existo Vem a chuva, molha o meu rosto e então eu choro tanto minhas lágrimas e os pingos dessa chuva se confundem com o meu pranto Olho pra mim mesmo, me procuro e não encontro nada sou um pobre resto de esperança à beira de uma estrada Preciso acabar logo com isso Preciso lembrar que eu existo Carros, caminhões, poeira, estrada, tudo, tudo se confunde em minha frente minha sombra me acompanha e vê que eu estou morrendo lentamente Só você não vê que eu não posso mais ficar aqui sozinho esperando a vida inteira por você, sentado à beira do caminho Preciso acabar logo com isso Preciso lembrar que eu existo
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5. Pare De Tomar A Pílula Odair José
Já nem sei há quanto tempo Nossa vida é uma vida só E nada mais Nossos dias vão passando E você sempre deixando Tudo pra depois Todo dia a gente ama Mais você não quer deixar nascer O fruto desse amor Não entende que é preciso Ter alguém em nossa vida Seja como for Você diz que me adora Que tudo nessa vida sou eu Então eu quero ver você Esperando um filho meu Então eu quero ver você Esperando um filho meu (refrão) Pare de tomar a pílula Pare de tomar a pílula Pare de tomar a pílula Porque ela não deixa o nosso filho nascer (3x) Você diz que me adora Que tudo nessa vida sou eu Então eu quero ver você Esperando um filho meu Então eu quero ver você Esperando um filho meu Pare de tomar a pílula Pare de tomar a pílula Pare de tomar a pílula Porque ela não deixa o nosso filho nascer (3x)
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ANEXO 2 – POEMA DE SETE FACES DE CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE Carlos Drummond de Andrade Poema de Sete Faces In Alguma Poesia (1930) Edições Pindorama Belo Horizonte, 1930 Quando nasci, um anjo torto desses que vivem na sombra disse: Vai, Carlos! ser gauche na vida. As casas espiam os homens que correm atrás de mulheres. A tarde talvez fosse azul, não houvesse tantos desejos. O bonde passa cheio de pernas: pernas brancas pretas amarelas. Para que tanta perna, meu Deus, pergunta meu coração. Porém meus olhos não perguntam nada. O homem atrás do bigode é sério, simples e forte. Quase não conversa. Tem poucos, raros amigos o homem atrás dos óculos e do bigode. Meu Deus, por que me abandonaste se sabias que eu não era Deus se sabias que eu era fraco. Mundo mundo vasto mundo, se eu me chamasse Raimundo seria uma rima, não seria uma solução. Mundo mundo vasto mundo, mais vasto é meu coração. Eu não devia te dizer mas essa lua mas esse conhaque botam a gente comovido como o diabo.