20 anos sem a candura de Gonzaguinha

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Música

20 ANOS SEM A CANDURA DE

GONZAGUINHA Da amargura à esperança, a evolução da obra do compositor, falecido em 1991, expressou a mudança de clima no País por Ricardo Viel

MAGRO. EXTREMANTE magro. Com uma barba comprida e malcuidada que decorava uma cara de pouquíssimos amigos. Sujeito fechado, sisudo, pessi!"#$%&%'()(%'&%* $%+,)-*$%$.$'$/%0 % anti-herói. Essa foi a impressão que Luiz Gonzaga do Nascimento Júnior deixou na primeira vez que se apresentou na televisão em rede nacional. A aparição no programa de Flávio Cavalcanti, em 1973, poderia ter afundado sua recém-iniciada 1$22&!2$/%3%.+4(%'&%5*!6%7()6$-$%1$)#(*% “Comportamento geral”, música carregada de ironia e crítica social. Perplexos, os jurados não economizaram nas críticas e Cavalcanti quebrou o LP no ar. Receberam como resposta um “vocês merecem”. Era uma provocação do cantor que fazia alusão à música criticada, que dizia: “Você deve zelar pelo bem do patrão e esquecer que está desempregado; você merece, tudo vai bem, tudo legal”. Gonzaguinha, como depois viria a ser chamado, havia dado um grande passo em sua carreira. “Comportamento geral”, seu LP de estreia, esgotou nas lojas depois daquela apresentação na TV Tupi. A censura passou a prestar atenção no músico que, quando não era impedido, lotava casas de shows no Rio de Janeiro. O público queria escutá-lo cantar a vida real, por mais dura que ela fosse. Foi nessa época, junto com os primeiros sucessos e atrelado à fama de homem amargurado, que surgiu o apelido que acompanhou Gonzaguinha durante o restante de sua carreira: cantor-rancor. Foi na manhã do dia 29 de abril de 1991, horas depois de uma apresentação em Pato Branco, interior do Paraná, ou seja, há 20 anos, que Luiz Gonzaga morreu, aos 45 anos, num acidente de carro. Antes do silêncio forçado, ele conseguiu ser reconhecido como um dos maiores 54

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compositores do País. Mas nem sua fase mais tranquila (com músicas bem-humoradas, que falavam de amor e traziam mensagens de esperança) foi capaz de apagar a fama de homem carrancudo. Mas essa imagem é contestada por quem conviveu de perto com Gonzaguinha. “Isso de cantor-rancor não tem nada a ver. Se tem uma coisa que ele não era é rancoroso. Falava tudo na cara, falava o que pensava. 8$)1(2("(%9%:*& %-*$2'$%$"%1(!"$";%.1$% remoendo”, diz Daniel Gonzaga, 36 anos, * %'("%:*$#2(%.+4("%'(% <"!1(/%=$2$%&+&;% o pai tinha um jeito peculiar de levar a vida. “Ele tinha uma postura meio sacana com as coisas. Era o jeito dele mesmo. Às vezes, ele estava feliz e mal-humorado. Não era uma pessoa agressiva, mas o jeito dele de falar podia passar essa imagem, e em algumas situações as pessoas não têm a oportunidade de um segundo contato para mudar de ideia”. MAU HUMOR COM A INDÚSTRIA

A jornalista Regina Echeverria, autora da >!(-2$.$%Gonzagão e Gonzaguinha – Uma história brasileira [2006, Ediouro], teve a chance de reconstruir a imagem que tinha do músico. Em 1979, ela, então editora da revista Veja, o procurou para uma entrevista: “A primeira impressão que tive dele foi a pior possível. Na verdade, ele me ignorou. Estava carregando umas caixas de som no teatro, para preparar o espetáculo. Ele me viu, eu me apresentei, e ele continuou o que estava fazendo durante muito tempo. Depois veio falar comigo e pensei que a entrevista ia ser difícil, mas eu sabia que ele era meio esquivo com quem não conhecia, e mais ainda com a imprensa. No outro dia ele falou tudo, respondeu a todas as perguntas, foi ótimo”. Para Regina, a postura de Gonzaguinha era uma forma de se defender: “Era

uma arma que ele tinha, uma proteção. Ele era um homem doce”. No entanto, ela também acha que o apelido que Gonzaguinha ganhou no início da carreira tinha certo cabimento naquela época: “Ele era doce, mas tinha um pouco de rancor, sim”. A verdade é que ele nunca fez esforço para ser querido. Com a censura, adotava uma postura que beirava a indolência. “A gente chegava ao teatro e havia uma proibição na porta, então eu ia ver o show do Chico Buarque, eu adorava ver o Chico”, contou ele à Veja. Comprou briga com gravadoras e lançou um selo próprio. Após se desentender com o empresário, decidiu administrar a própria carreira. Até Pelé foi vítima de sua fúria. Em resposta ao Rei, que disse que o brasileiro não sabia votar, cantou: “Craque mesmo é o povo brasileiro, corre em campo, se esforça o tempo inteiro”. Nem para os fãs Gonzaguinha fazia concessão. Não dava autógrafos. “Aprendi que o autógrafo é uma coisa que distancia as pessoas, porque elas chegam perto querendo autógrafo como desculpa para falar com a gente. Então &*% ?2&.2(% 1()@&2"$2% 1( % $"% ?&""($"A;% disse em uma entrevista ao Vox Populi, em 1982. Fagner conta que passou por

VAI VIRAR FILME A história de Gonzagão e Gonzaguinha vai chegar aos cinemas. Breno Silveira (diretor de “Dois filhos de Francisco”) dirigirá o filme, cujo roteiro será baseado na biografia escrita por Regina Echeverria. A previsão é de que seja lançado no ano que vem, 2012, quando Luiz Gonzaga, o pai, completaria cem anos de vida.


Folhapress

diversos constrangimentos por conta da intransigência do amigo. “Era muito complicado, porque as pessoas não entendiam ! " ! #$%&'! () ! *+',! - ! ./"$+'%012! 3)! falava para ele dar o autógrafo, era mais 45+$"!01!() !*+',!+$%+1!6$%)#1-!# %#'%01! convencer os outros. Com o tempo ele foi se tocando e passou a assinar”, relembra o cantor. UMA ABERTURA EXISTENCIAL

Outra mudança importante aconteceu na maneira de Gonzaguinha de ver o mundo. Aos poucos, o tom de denúncia e indignação foi dando lugar a músicas que cantavam o amor e pintavam um futuro de esperança. Nessa época, a ditadura militar começava a ruir. A mudança estava relacionada também ao momento da vida 0 !71%8'9)$%&':!0$8!1!*"&12 “Já em 1979, ele era cantado por Bethânia, Elis, que gravavam músicas mais românticas. Acho que ele descobriu #'6;<6!)6!*"=12!3--'!</1+'! -#'>'!6'$-! tranquila em termos de repressão, e ao mesmo tempo ele se separou da minha mãe, foi morar com outra mulher, teve

1)#,'!*"&'2!?+&1!() !'-!+1$-'-!/','! " ! foram se acalmando, e isso foi tornando-o mais doce. Ele aprendeu, também, a falar de coisas que talvez não soubesse ou não conseguisse antes”. Em uma entrevista à TV Manchete, 71%8'9)$%&'! ./"$+1)! --'!-)'!$% -/ ,'0'! brandura. “Foi minha relação comigo que

O tom de denúncia foi dando lugar a músicas que pintavam um futuro de esperança mudou. Tem a ver com a fase que o País viveu, uma época muito dura. Queria me ./, --',! ! %+1%#,'>'! /1,#'-! 4 +&'0'-:! por isso esse comportamento agressivo. Dei bico em muita porta e entrei. Também fui muito chutado. Eu não cultivava isso, eu era assim. E não perdi. A única

diferença é que eu só era assim. Dentro de mim estava guardado esse outro lado”, argumentou. Para Regina, a reconciliação com pai, com quem teve uma relação distante e conflituosa, também foi fator fundamental para o surgimento desse outro Gonzaguinha. “Quando ele encontrou o sucesso, pôde mostrar para o pai, que nunca havia dado nada por e para ele, que tinha valor. Ele não quis a revanche, quis a reconciliação”. @1!+16 A1!01-!'%1-!BCDE:!/'$! !*"&1! (na imagem) saíram pelo Brasil na turnê “Vida de Viajante”. A paz estava selada, e se Gonzaguinha ainda guardava alguma mágoa, ela foi embora bem antes de Luiz Lua Gonzaga morrer, em 1989. Gonzaguinha foi embora dois anos depois, mas 0 $.1)!)6!" 9'01!>'"$1-1F!()$%8 !+'%AG -! inéditas e um caderno amarelo. A família 6'%#<6! 6!- 9, 01! --'-!9,'>'AG -:!6'-! promete divulgá-las em breve – o caderno, () !+1%#<6!" #,'-!0 !6H-$+'-! !'%1#'AG -:! será o encarte do disco. Vinte anos depois, Gonzaguinha, o cantor-candura, voltará a soltar a sua voz. 45 retratodoBRASIL

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