Herança.

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Sei l

Sempre temos uma escolha.

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Para os meus amigos.

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Prólogo. Os pés brancos-demais e descalços tremiam ao chegar cada vez mais perto da ponta daquele penhasco tão alto. Apesar disso, os finos e delicados tornozelos sustentavam com graça e firmeza as curvas de Diana. Seus cabelos cacheados cor de bronze deixaram a altura de seus seios e preferiram acompanhar a brisa que sussurrava algo para as árvores. Uma mecha louca cismava em enrolar-se na ponta do nariz pequeno da mulher com o vestido branco, descalça e bela que estava a quatro passos do ponto mais alto do penhasco, e a cinco passos de sua morte. Com andar vagaroso, e respiração ofegante, Diana continuava indo em direção; mais três passos... Dois, um. Ela observava o horizonte, sentia o vento, ouvia os ruídos da noite e quase se curvava a incrível lua nova que se apresentava humilde. Cansada de correr, agora encontrava a saída. A única saída. — Chegou a hora. — respirou, com voz baixa. — Anne, eu te amo. Com essas últimas palavras cuspidas junto com o alívio de estar se despindo de toda dor, Diana deixa o mundo. Ao invés de despir-se também da classe com um pulo bruto e gritos

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histéricos, a musa resolveu dar o quinto passo em direção ao nada e deixar que a gravidade fizesse seu trabalho. Com o rosto um pouco abaixo do nível de inclinação de seu corpo, com os olhos fechados e os braços abertos ela se deitou nos lençóis da morte. Ao percorrer a queda, seu esvoaçante vestido branco ornamentava a hora fúnebre, juntando-se ao vento e dançando a música dos anjos com graça. Diana Elisabeth Bloonwold morreu naqueles 30 de agosto de 1952. O trágico evento fora testemunhado apenas pela luz de um filete de lua nova, juntamente com três pessoas não identificadas que tentavam se apossar do corpo, mas que fugiram com a chegada da polícia. Deixou um império têxtil, quatro mansões pela Europa e uma filha muito especial. Anne Rose Bloonwold. Ao falar seu nome, poderá sentir-se como se saboreasse um chocolate. Anne é a menina mais doce da Inglaterra. Mentira, mas é uma das mais belas e maduras. A jovem tinha umas curvas lindas, não chegava a ser taxada de "cheinha", contudo, também não tinha suas costelas a mostra e sim um quadril acentuado. Sua pele era lisa e branca, sempre fria, quase pálida, tonalizada com um quase tom de creme. Mas, nada se comparava aos seus cabelos. Eram extremamente lindos, oh que obra prima... Cascatas de fios de sol desciam até sua

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cintura, os cachos ficavam mais definidos à medida que desciam,

eram

formosos,

cheios

de

vida,

graciosos,

inacreditáveis ao primeiro olhar. Tudo isso contornava as maçãs arredondadas e rosadas de seu rosto, e logo acima seus olhos. Joias. Poderiam ser descritos como joias. Incríveis olhos verdes que beiravam o azul celeste, com um contorno negro na íris. Era uma menina muito linda, mesmo fora de alguns padrões, e a mais rica da Inglaterra. Porém era pobre. Uma pobre órfã, que perdeu seu pai antes mesmo de conhecê-lo. General George William Carter, um grande magnata.

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Capítulo 1. Um clima imprevisível, não? 1 de setembro de 1952. Londres, Inglaterra.

Para a surpresa de Anne, o sol nasceu naquela manhã após o trágico ocorrido. O calor do verão parecia ignorar seu quarto, assim como a luz do sol que não se intrometia pelas frestas das

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cortinas esvoaçantes. O luto estava estampado por toda parte, embora não fosse tão explícito. Anne Rose Bloonwold era uma dama, e segundo seu mordomo — e professor de etiqueta—, “Uma dama não demonstra sentimentos ruins a não ser pela moda. Se estiver de luto, se vista de preto, mas não derrame lágrimas, pois são uma demonstração terrível de vulnerabilidade e falta de educação”. — Bom dia senhorita Bloonwold! É hora de acordar! O sol nasceu... Para todos, por sinal. — anunciou Edward, o mordomo, deslizando as luvas pelas cordas de veludo das cortinas, convidando a luz dourada do sol a molhar o quarto por completo. Anne resmungou e revirou-se para o lado. Edward insistiu, e puxou seus lençóis de algodão egípcio com frieza, eficiência e força. Estressada, levantou abruptamente entre gritos: — O sol nasce para todos, mas ninguém vive de auroras. — sua classe e nobreza transpareciam mesmo com os cachos embolados e entrelaçados, o rosto e a camisola amassados. Era sua essência, impregnada na pele e no timbre. — Bem, achei que gostaria de saber que uma carta especial chegou. O envelope é negro, e tem um M e um W desenhados

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em escarlate e cinza. — instigou-a, fazendo o envelope dançar por entre suas mãos. — Não pode esperar que eu fique animada com isso. — engoliu a seco, ainda de costas, sentada na cama. — Além disso, tenho certeza que esse envelope é tão sombrio quanto a resposta e os resultados do teste de admissão. Mas não será tão sombrio quanto minhas roupas. Compre tudo que for negro e dramático nessa cidade. — Como quiser. Mas, se mudar de ideia... — com a voz embebida numa presunção absurda, Edward deixou a carta ao lado dos lençóis desarrumados, enquanto uma empregada qualquer entrava para arrumar a cama. A carta em questão era a resposta da ilustre Academia Cristã dos Irmãos McWaverly. A melhor escola da Europa. Histórica, conceituada, tradicional, rígida. O modelo perfeito de escolas que formam o modelo perfeito de cidadãos, cortando-os as sobras, acrescentando-lhes nos buracos, até que se encontrem dentro da forma sob medida. Dentro da carta, haveria um sim ou um não, para o teste de admissão que Anne fizera. Por mais rica que fosse, e por melhor que sua educação acadêmica tenha sido, Anne não é uma pessoa de traços tão intelectuais. A resposta, para ela, já era previsível, e

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por mais que quisesse entrar na tal escola, tinha que aceitar a realidade. Depois de tomar um banho, e vestir um hobby para esperar por sua arara nova de roupas negras, foi inevitável não abrir a carta. Por mais que o resultado fosse óbvio, soava um tanto descrente não abri-la. Deslizou discretamente pelo tapete, depois de relutar contra a vontade, e perder. Pegou o envelope, e paralisou. Era de um papel espesso e de um negro quase sólido. Um M escarlate e um W cinza se sobrepunham com um contorno dourado, em alto relevo. A sensação de dedilha-los era semelhante à de cheirar chocolate e não poder comer, quase uma tortura. ACADEMIA DOS IRMÃOS MCWAVERLY. É com prazer que informamos que a senhorita ANNE ROSE BLOONWOLD, de treze anos completos, filha de DIANA ELISABETH BLOONWOLD e TRIANNON GEORGE BLOONWOLD, está apta a iniciar o segundo semestre do ano letivo de 1954 conosco.

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O início das aulas é dado dia primeiro de setembro. O Expresso MW irá busca-la em sua cidade, junto com os outros aprovados. Esteja na estação central, às onze horas e trinta e três minutos para o embarque único, e leve consigo esta carta. Atenção: O maquinista não se fará piedoso pelos atrasos eventuais dos alunos, por isso, é recomendável que chegue antes à estação. A viagem durará um dia completo, e tem por destino a nova instalação da escola, na floresta RedShire, em Durham. Especificações adicionais — uniformes, materiais, regras, precauções, mensalidade e etc. — na segunda folha. ASS: Sarakiel A. — O diretor.

Ao terminar de ler, um salto de alegria ferveu em seus pés, mas a morbidez pesada do luto em seus ombros fez com que tal instantânea felicidade imensurável se reduzisse à uma alegria tênue. Revirando o envelope, Anne percebeu que haviam três folhas. Na verdade, duas e meia: A folha em sua mão, a folha de especificações, e um pedaço rasgado da página de um livro, onde algo escrito em letras feias parecia gritar:

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P.S: Senhorita Bloonwold, a aguardo ansioso. Seria bom se viesse conversar comigo assim que chegasse. Sarakiel Alston. — um amigo.

... — Muito bom. Excelente, senhorita Anne. — sorriu, parando debaixo do sobral do closet, com a arara negra de roupas novas. — Bem, isso é algo extraordinário... — Edward, não tente me influenciar! — cortou. — Eu não sei o que pensar sobre isso. — sacudiu a cabeça, e se jogou na cama, deixando o envelope cair. — Não preciso influenciá-la quanto a este assunto. Agora, deve estar confusa, triste, mas por mais frio que isso possa soar, tudo isso vai acabar em algumas semanas. Essa ferida não fecha tão rápido, mas não queria tomar as decisões erradas só porque ela ainda sangra. Me entende? — Sim — concordou, fungando. — Não jogue essa oportunidade se ser feliz no futuro fora por causa da condição de tristeza do presente. Ficando aqui, tudo que olhar a machucará, pois Diana está em tudo. Vá para a

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escola, e quando voltar no natal, a única coisa que não vai ter mudado é a localização geográfica da mansão. Fora isso, tudo estará diferente, para esse novo “reinado”. — fez as aspas com as mãos, e os dois esboçaram o mesmo sorriso amarelo. — Você tem razão. Isso tudo é uma tortura! Tenho que ir, Edward. Eu preciso ir, mas não posso ir antes de me despedir dela.

— desabou em lágrimas, com a voz cada vez mais

embargada. — O velório é às dezesseis horas e o trem parte hoje, a pouco mais de onze horas. — Não tem problema.

— puxou um relógio de bolço,

encarou-o franzindo o cenho, e continuou. — Vista-se. Tem exatamente uma hora até partir. Farei suas malas. — Mas, Edward... — gemeu. — Não me questione. Vamos! — virou de costas e saiu porta a fora. Exatamente cinquenta e nove minutos depois, Anne entrava no carro para voltar apenas no natal. A medida que o carro se distanciava da mansão, pelo jardim disciplinado, elegante e iluminado, a sensação de nunca mais voltar só crescia, junto com o sentimento sufocante da perda de Diana. Sair de casa era uma medida que faria bem a longo prazo, mas não a curto.

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Depois de algum tempo dentro do carro, Edward fez uma curva singela para a esquerda, que os desviou do caminho até a estação. — Para onde estamos indo, Edward? — fungou Anne, tirando a cabeça do vidro. — Achei que gostaria de se despedir de sua mãe. — parou o carro, e indicou com a cabeça, um amontoado de terra, ao lado de uma cova. O caixão não estava visível, já devia estar no fundo. Anne não esperou Edward descer do carro para abrir a porta de trás educadamente. Pela primeira vez precisou colocas as mãos na maçaneta, e pôs-se a correr pelo gramado do cemitério. Perto da cova, havia algumas coroas de flores, muitas cadeiras e uma tenda. Tudo parecia ainda estar sendo preparado; a decoração sugeria um casamento fúnebre. Talvez fosse... Um casamento entre Diana e a morte. Anne, desesperada entre soluços, tacou-se à borda da cova, debruçando-se sobre, ignorando todos os riscos. Nada mais parecia importar... O sol brilhava forte e maçante; seu brilho era contrastante com a situação. Seus gritos eram audíveis à Edward, mesmo que ele ainda continuasse dentro do carro.

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De longe, a cena não podia ser mais mórbida: Uma menina com um vestido negro, coberta pela luz do sol, a beira de uma cova, entre cruzes e tumbas luxuosas. A imagem lembrava que ricos e pobres, negros, brancos, asiáticos, mestiços... Todos eram igualados em algum dia, toda individualidade, toda inferioridade ou superioridade, toda a dor, alegria, tristeza... Tudo se transformava em memórias ao vento, depois que tudo virasse morte. A verdade é que desde que nascemos, estamos caminhando para a morte. Alguns pegam atalhos, outros preferem correr, outros dão voltas em círculos para adiar, mas não há como voltar atrás nessa estrada única que leva ao desconhecido, mesmo que previsto, mas inesperado e temido fim. As palavras de Anne se embolavam na garganta, e saiam apenas grunhidos embargados entre soluços e lágrimas. Ao passo em que o pranto aumentava e a dor se mostrava mais pungente, nuvens cinzentas e malformadas iam aparecendo aos poucos, vindas de não-se-sabe-onde. A brisa quente e leve, aos poucos, se rebelava em chicotes de ventanias momentâneas, crescendo mais e mais. As árvores atiravam suas folhas, que junto ao vento, viravam projéteis cortantes e quase invisíveis, numa velocidade amedrontadora.

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O brilho vívido amarelado que cobria as coisas se transformava em sombras frias e mortas, junto com o clima que parecia anunciar um furacão. Os ventos não vinham do sul, nem do norte, assim como as nuvens. Tudo parecia ter seu início e clímax acima do cemitério, como se partisse daquele lugar. As nuvens logo se espalharam pelo céu, transformando o dia ensolarado em algo negro, desestimulante e melancólico, como um fim de tarde de inverno. Percebendo que até galhos soltos acompanhavam a ventania abrupta, Edward atirou-se para fora do carro e pela primeira vez em anos, pôs se a correr. — Anne, volte já para o carro, uma tempestade está vindo. — gritou, sem muito sucesso em ser ouvido, ou pelo menos foi o que pareceu. A ventania parecia mais voraz a cada trovão, quase maciça, com isso a tenda fora arrancada do chão, sumindo entre as árvores, e as cadeiras voavam rente ao chão, em círculos a volta do túmulo. Anne, entretanto, parecia imóvel, ao passo que Edward lutava para continuar de pé. — Anne, está perigoso! Vamos, rápido! Anne não respondeu, mas Edward teve sua resposta quando dezenas de trovões puseram-se a sucederem sem deixar nem um

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silêncio entre si, como numa música ameaçadora orquestrada por um assassino com Mal de Parkinson. Edward desmoronou para trás, e quando se recompôs, ainda no chão, dois raios gêmeos cortaram os céus, bem acima do cemitério. Um atingiu um galho de um carvalho, que caiu sobre Edward, prendendo-o. O outro, infelizmente, atingiu o borrão negro de tristeza sem fim, ou se preferir, Anne. — NÃO! — gritou Edward, puxando tal brado do fundo dos pulmões, e expulsando-o como se fosse uma praga.

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Capítulo 2. Saindo de casa... 1 de agosto de 1952. Londres, Inglaterra.

— Você tem que se cuidar. E, ser mais obediente é algo que deve entrar na sua lista de imperfeições a serem trabalhadas. — murmurou Edward, com os olhos grudados na rua. — Por falar em se cuidar, e seus remédios? — Edward, por favor, você está me deixando nervosa com tantas recomendações óbvias. — replicou do banco de trás. — Talvez eu não precisasse lembra-la de nada se um raio não a tivesse atingido à menos de trinta minutos atrás. — resmungou.

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— Eu já disse que nada me atingiu, e o médico concordou comigo. A razão está te deixando, Edward. E, alguns fios brancos estão chegando. — apontou para suas têmporas recémquase-grisalhas. Edward corou acanhado, e depois mudou de assunto. — Foi uma consulta muito rápida para se diagnosticar qualquer coisa. Sei que não estou louco! Céus... Aquele raio foi direto na sua cabeça! — arfou. — Eu não estaria aqui se o raio tivesse me acertado, e tenho certeza que qualquer um, doutor ou não, teria reconhecido uma pessoa atingida por um raio. Além do mais, quem desmaiou foi você, e não eu. — acusou. — Eu não sei como isso aconteceu. — rebateu. — Eu ficaria surpresa se soubesse. O fato é que você desmaiou, e viu coisas Edward. Não pode querer ficar com a razão, pois você estava inconsciente e eu não. — cortou, com um tom finalizador. Edward se calou. — Ficou sem palavras? — provocou. — Na verdade, ficamos... Sem tempo. Anne, sinto muito, são onze e quarenta. Acho que já devem ter partido, se eles forem

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tão rigorosos quanto à carta. — abaixou os olhos, pelo espelho, observou os de Anne caírem também. — Bem, eu... — sua voz embargou, mas não chorou. — Vamos lá... Talvez alguma compaixão tenha brotado no coração deles? Ou, não sei bem... Vamos Edward. Em frente. Chegando à estação, tudo parecia vazio e cinzento. O céu ainda não havia sido coberto por nuvens naquela parte da cidade, mas elas já despontavam ao norte, como se se estendessem do cemitério para o resto de toda a Inglaterra. O relógio estampava meio dia em ponto, mas nem uma alma viva se importava. Anne, entretanto, corria pelas plataformas com uma empolgação que Edward não queria ter o trabalho de matar. Lá estava ele, rente à plataforma sete: O Expresso MW, em todo seu esplendor. Uma maria-fumaça respeitável, negra, com detalhes em escarlate e prata. Crianças observavam nas janelas, debruçadas como se Anne fosse algum tipo de animal de zoológico. Edward, assustado, via em cada criança uma ameaça significante. — Oh, criança... Não era para estarmos aqui ainda. Vamos, deve se apressar. — encorajou um homem fardado de cores

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próximas às do trem. O maquinista, com certeza. — Jhon! Ajude a senhorita Bloonwold! — gritou, correndo para sua cabine. — Não me lembro de informar meu nome... — sussurrou Anne, para Edward, que deu de ombros. — Olá senhorita Bloonwold. Eu sou Jhon Willborn, e a senhora está atrasada. Muito atrasada. Temos que ir, e sinto dizer que sua despedida não pode ser mais longa do que isso. Jhon usava um macacão jeans, com uma blusa branca encardida por debaixo. Seus cabelos loiros caiam sobre seus olhos e juntavam-se a sua barba. Seu corpo era grande, largo e seus poucos ossos visíveis pareciam ser mais grossos e sólidos. Um casaco de músculos estufados por debaixo de sua pele o transformava num armário, fazendo Edward parecer um cigarro negro. Anne esboçou palavras, mas se interrompeu ao som das de Jhon. — Bem, senhor Stocke, onde estão as malas? — perguntou, pegando as malas de mão de Anne. — Todas estão no carro. — indicou com a cabeça. — Ficaria muito grato com sua ajuda na tarefa de levá-las ao vagão de bagagens. — sorriu. — Claro. — assentiu, virando-se junto com Jhon.

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— Adeus Edward. — gritou Anne, com voz embargada e um dos pés dentro da maria-fumaça, enquanto a silhueta reta e negra de Edward sumia ao lado dos contornos musculosos e espaçosos de Jhon. — Até mais senhorita Bloonwold. — piscou. — E, bem, acho que você se esqueceu, mas hoje é seu aniversário. Parabéns! O presente que sua mãe lhe deu está em sua bagagem de mão, junto com um bilhete. A despedida indigna e nada especial deixara a menina com um sentimento de ter sido roubada. Perder sua mãe, sua rotina, seu inseparável mordomo e sua segurança, num período de vinte e quatro horas não era exatamente lembrança que queria ter de seu último aniversário em Londres. Mas, não escolhermos lembranças, apenas as aceitamos sem questioná-las. Um aniversário em que se ganha perdas é algo realmente contraditório. Perder tudo em um dia de celebração era a prova de que o destino brinca com as pessoas apenas para seu próprio divertimento.

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Capítulo 3. Segredinho sonhado. 1 de agosto de 1952. Londres, Inglaterra.

O trem era uma senhora-maria-fumaça respeitosa e consideravelmente grande. As paredes eram cobertas por um papel de parede marfim, os rodapés tinham detalhes em madeira e o chão também era do mesmo material.

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A maioria dos vagões comportava cabines de viagem, com uma cama e um sofá espremidos em pequenos metros quadrados. Cada vagão comportava aproximadamente oito cabines, oito janelas. O corredor ficava apertado e escuro, pois apenas algumas pequenas luzes os iluminavam. Enquanto Anne ainda vagava pelos vagões batendo pelas cabines a procura de uma vaga, Jhon a surpreendeu: — Olá, senhorita Anne! — entusiasmado, agachou-se, nivelando o olhar ao de Anne. — Olá...? — retorceu o rosto a procura de seu nome. — Jhon, Jhon Willborn. Lembrada? — levantou-se, ainda parecendo interessado demais. — Ah, claro. — sorriu de volta. — Bem, tenho que pedir que me siga. Assentiu. — O diretor quer falar com você. Ele está no último vagão. Tente ser o mais discreta possível, e passe por todos sem lhes dirigir o olhar ou a palavra, assim tudo correrá bem. Chegando lá, é só bater na porta três vezes e ele a receberá. Depois que sair de lá, repita a postura adotada no trajeto de ida e tome seu lugar na mesa dois do vagão de almoço. Entendido? — Sim. — balançou a cabeça.

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— Duvidas? — Nenhuma. Seguiu como fora orientada. As pessoas que lhe comiam com os olhos pelas janelas, agora pareciam ignorá-la completamente, como se não a pudessem ver. Chegando lá, fizera exatamente como fora orientada, e ao terceiro toque a porta se escancarou, revelando um lugar rico em vermelho, dourado e luxo. O diretor a esperava numa poltrona grande perto da janela. O chão era coberto de carpete vermelho, as paredes amareladas, e as lâmpadas em lustres. Sofás, divãs, flores, tapetes, tudo lembrava um salão digno de reis. Por algum motivo o vagão parecia ter dimensões absurdas para pertencer a um trem, mas o estrondo grave da voz do diretor acabara por dispersar as indagações na cabeça de Anne. — Sente-se aqui, senhorita Bloonwold. — indicou o espaço ao seu lado. Com mil perguntas novas na cabeça, a que mais lhe perturbava e ecoava de um ouvido para o outro era: “Como sabem meu nome, no meio de tantos alunos?” Anteriormente, quando entrara na sala, não vira nenhum outro assento perto do diretor, mas enquanto se distraia com

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suas perguntas internas, uma cadeira alta e de madeira negra aparecera a frente da poltrona. Anne esfregou os olhos e preferiu pensar que não a notara no primeiro olhar. Não haviam motivos aparentes para, mas tudo no ambiente parecia ser surreal, como uma vertigem, um sonho. Talvez a roupa do anfitrião causasse esse efeito. O diretor era um idoso de cabeça branca, seus cabelos cacheados escapavam pelos lados e para fora de sua cartola azul, com uma faixa rosa. Ele usava um paletó coral com listras rochas e lilás, uma calça branca com estampa de bolhas e um sapato vermelho chamativo. As pontas de suas barbas brancas eram tingidas de um tom estranho de escarlate, talvez o mesmo tom do logo da escola. — um M escarlate e um W cinza sobrepostos. — e acabava perto das clavículas. Usava uma bengala que parecia ser de vidro, tinha uma tampa decorada e dentro era cheia vinho. — Sinta-se em casa. — começou, enquanto girava a tampa de sua bengala, tornando-a uma cachoeira de vinho que desaguava agradavelmente no fundo da taça. Ele a tomou em mãos e estendeu-a para Anne com os olhos levantados e esperançosos. — Desculpe, não posso beber.

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— Sua mãe não pode impedi-la. — sorriu com o rosto untado em ambiguidade, saboreando cada palavra. — É, na verdade não. — com uma pontada de fúria e o rosto em chamas, tomou a taça dos dedos murchos do velho e a encostou no queixo. — Boa garota... É um Malbec bem maduro. Sinta o cheiro! — instigou enquanto colocava sua bebida. — É um pouco desagradável. Grata, entretanto prefiro não beber. — recusou, devolvendo-lhe a taça com olhar de desdém. Sarakiel pareceu irritado, mas não protestou. — Tudo bem... Eu sou Alston. Sarakiel Alston. O diretor da escola. Mas, você, apenas você pode me chamar de Sarakiel. — sorriu deslizando a taça molhada pelos lábios finos. — Está confortável? — Sim. — mentiu, com voz baixa. — Então acho que posso começar. Anne, você é uma pessoa especial. — iniciou o discurso, como se tivesse trabalhado para decorar cada palavra, mas Anne interrompeu. — Como sabe meu nome? Quer dizer, você e todos os outros? — soltou a indagação abruptamente, e pôde ouvir Edward repreendendo o ato em sua mente.

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— É famosa entre nós. E, eu explicaria o porquê se me deixasse terminar. — respondeu rispidamente, ponderando a irritabilidade. — Continuando... Vou te contar uma história: Quando um anjo completa alguns milênios no céu, ele pode escolher subir de cargo dentro da nossa hierarquia ou descer a terra para proteger os humanos. “Mas, a verdade é que é mais difícil se manter em santidade na terra, por isso apenas poucos escolhem descer, poucos são aprovados para descer. Qualquer pecado cometido por um anjo na terra já apagaria sua luz interior, tornando-o um mortal, até mesmo se comer ou beber algo. — engoliu a seco. — Essa era a lei: O pecado despia toda e qualquer divindade de sua imortalidade. Mas, um dia um anjo se apaixonou por uma humana, e no calor de sua relação tiveram um bebê. O amor entre anjos e humanos era algo corriqueiro, mas um bebê? Era algo inédito e curiosamente inaceitável dentre milhares de anos de contato entre essas duas criaturas, mesmo que pareça insano. Isso entrou em julgamento na Ordem dos Anjos, pois se o amor não é pecado, por que o amor entre anjos e humanos seria? O caso foi solucionado por uma profecia. A profecia dos Sete Véus.” — E, o que essa profecia diz?

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— Diz a profecia que toda descendente feminina do casal, pelas próximas sete gerações, deve se casar antes dos trinta e seis anos e ter pelo menos uma filha do sexo feminino. Um dia antes de sua filha atingir treze anos, ela deve se oferecer em sacrifício a Ordem dos anjos. Sua filha deverá fazer o mesmo, sua neta, sua bisneta e assim por diante. Dando continuidade ao ciclo. No final de novecentos anos completos da profecia, a filha deve se juntar a mãe e morrer no sétimo mês após sua morte. E, ai a profecia termina. — Bem, e o que mais? — dedilhou as têmporas, sentindo o início de uma enxaqueca causada pela voz contínua do homem. — Anne Rose Bloonwold, a profecia termina em você. Em exatamente 31 de outubro, para que o mundo dos anjos e dos humanos continue em harmonia e paz, você deve morrer. Seu sacrifício é o mais esperado e temos te protegido desde seu nascimento, se você não cumprir sua parte na profecia, todas as mulheres de sua família terão morrido em vão. — suas palavras enchiam os ouvidos e conversavam com a alma. Eram diretas, firmes e ecoavam em vários sentidos na cabeça de Anne, que ainda não tinha uma expressão formada em seu rosto. — Só pode ser uma brincadeira. Desculpa mas, eu não consigo, eu realmente não posso acreditar. Isso é uma piada que

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você bolou após ler sobre o suicídio da minha mãe. Só pode ser. E, desculpe Senhor Alston, mas não estou me sentindo bem para brincadeiras desse tipo atualmente. — com lágrimas nos olhos e o corpo formigando, tentou sair correndo, mas algo a prendia no assento, como se tivesse colada a ele e sem controle sobre seus membros. — Você não pode recusar! Bloonwold, seja racional. Caso você não cumpra a profecia, o mundo enlouquecerá e tudo que você acha que ama será seu pior pesadelo. Você prefere morrer ou viver no inferno? Viver uma vida desgraçada por causa de um egoísmo cego ou ser a heroína de dois mundos? Seja inteligente! — seus olhos esbugalhados e vermelhos tremiam, suas mãos se agitavam para todo lado e a cada palavra ele falava mais alto. — Eu não acredito em nada que você fala, e você não pode ditar minhas ações. Minha palavra permanece e eu não tenho medo de nada que você possa fazer. — afrontou-o erguendo a voz o mais alto que pôde, antes de ser surpreendida. Anne era facilmente irritável e não se deixava intimidar por qualquer um. Na verdade, por quase ninguém. Sarakiel pareceu se cansar do empasse de vozes e tirou o paletó, e antes que completasse a tarefa, asas duas vezes maiores

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que seu corpo rasgaram a parte de trás de sua blusa. Eram grandes, cinzentas e gloriosas. Seus olhos foram tomados por um brilho estonteante e quente que jogou Anne e a cadeira para trás numa explosão de êxtase. Um campo de energia se expandiu partindo de sua face e de alguma forma confirmou que tudo era uma ilusão, já que os móveis da sala pareceram falhar. Mudaram de cor, sumiram, reapareceram, até que tudo foi ficando mais e mais escuro.

... — Ela acordou! — gritou a enfermeira gorducha e vermelha, correndo em direção ao outro vagão. A visão de Anne se reestabelecia aos poucos e as manhas de cores iam tomando forma até revelarem-se elementos do ambiente. O vagão era todo tomado por macas e armários com remédios. Só havia ela lá, e algumas outras enfermeiras papeando em cadeiras a alguns metros. — O que aconteceu? — perguntou com voz fraca, mas volumosa o suficiente para cegar às enfermeiras fofoqueiras.

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— Você desmaiou, menina. — respondeu o mais rápido que pôde, voltando para o papo mais interessante de sua vida. Aliviada, tirara o episódio com o diretor como apenas um sonho. Mas o que a incomodava era a maneira como havia desmaiado, já que sua última lembrança era andar a procura de um lugar no trem. Alguns minutos depois Jhon invadiu o vagão-enfermaria precedido da enfermeira. Trazia algo em mãos: um livro de capa negra e surrada. Parecia ser bem velho e bruto. — Bom saber que você está bem. Edward pediu pra eu cuidar de você. — soltou, ofegante, freando fronte a cama de Anne. — Ah, agradeço a preocupação. — agradeceu sem graça. — Bem, trouce um presente. — estendeu o livro até dois centímetros do rosto de Anne. — É um diário. Promete que vai escrever nele todos os dias? — com descomunal entusiasmo, levantou os olhos junto com o sorriso enquanto arfava de alegria ao ver o sorriso de Anne. — Prometo. — assentiu. — Mesmo? — Mesmo. — sorriu de volta. — Vou pedir pra te liberarem antes do almoço, porque a comida daqui não é a mesma do vagão-restaurante. Sente-se na

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mesa dois no vagão do almoço. — sorriu e virou as costas tão rápido que não pôde ver Anne ficando pálida. A frase era familiar e parecia indicar que o que parecia sonho talvez não fosse. Confusa, procurou ajuda nas páginas no diário. Escrever a deixava calma. Entretanto, o que encontrou foi uma dedicatória aterrorizante na primeira página.

Anjo, obrigado por existir! Em nome de todos os anjos que trabalham na escola, agradeço a sua coragem em aceitar o seu chamado. Esperávamos por você a muito tempo. Seja forte. Sei que fará a escolha certa. Jhon. P.S: Cuide bem de nossos segredinhos. Anne gelou e lágrimas rolaram por seus olhos. Não saberia como digerir aquilo e tampouco se era verdade ou se conseguiria acreditar caso realmente fosse. Sua cabeça era como um vulcão

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de agulhas e a qualquer momento um erupção poderia doer muito para quem tivesse a sua volta.

Capítulo 4. Olhares receosos. 34


1 de agosto de 1952. Inglaterra.

Ao adentrar ainda cambaleando no vagão-restaurante, que não era muito diferente — apenas maior e com mais janelas, e mesas no lugar de cabines — seus olhos varreram todo o ambiente a procura da mesa dois. Ao achar, lá estavam sentados o diretor, Jhon, e mais um homem curioso que Anne ainda não havia visto. O homem era misterioso e tinha olhos tão azuis quanto o céu da manhã. Em contraste, cabelos tão negros quanto o céu da meia noite. Sobrancelhas marcantes, cílios fartos, e vestimentas negras. Parecia ser jovem, no máximo trinta anos. Pele branca, lisa e angelical. Conversavam sobre algo muito sério, pelo menos é o que seus olhos e gestos transpareciam. Não notaram Anne no recinto, então ela se achou no direito de não se sentar a mesa, pois a única coisa que queria era paz e entender o que era

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realidade e delírio, já que o muro que os separava parecia ser reduzido a uma linha tênue e tão fina quanto um fio de cabelo. Ao trocar a refeição inteira por apenas uma maçã e chá, vasculhou o lugar a procura de uma mesa onde pudesse encontrar pessoas que a ajudassem. E por mais estranho que pudesse parecer, a mesa que a atraiu era a que abrigava uma discussão entre duas meninas. Talvez o clima pesado entre as duas atraísse sua atenção, despertando sua curiosidade para o suposto motivo da briga. — Oi, posso me sentar aqui? — perguntou sorridente. — Não! — gritou a negra. — Sim! — bradou a ruiva, ao mesmo tempo. — Desculpe então... — virou-se. — Não... Pode sentar. — reconsiderou. — De qualquer forma, eu permiti, então você querendo ou não ela iria sentar aqui! — retrucou a ruiva, arremessando pedras pelo olhar, em direção a negra. — Por favor não discutam por mim. As duas caíram na gargalhada e se juntaram num mesmo pensamento: “Essa menina pensa que é quem?” — Você se acha tão importante assim? Quanta presunção! — resmungou a ruiva.

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— Querida, não estamos discutindo por sua causa. Desculpe, mas você não é tão importante. — complementou a negra. Anne se calou e sentou. Depois de algum tempo de silêncio, o clima esfriou e tudo cooperava para que um assunto nascesse. — Hum, desculpa. Estávamos irritadas. Meu nome é Délia Collins. — estendeu a mão, que foi aceita de bom grado por Anne. — Compreendo. Sou Anne Bloonwold. — E, eu sou Stephanie Jhonson. — estendeu a mão, e o processo com Délia se repetiu igualmente. Ao se levantar para cumprimentar Anne, acidentalmente Stephanie deixara a cocha de peru cai no carpete e logo um burburinho mal intencionado pesou sobre o ar, até que uma voz brada acompanhada de risadas cruéis. — Aquela negra vai ficar catando comida do chão? Ah, ela deve ser a empregada do trem mesmo! — exclamou um menino, com tom irônico, acompanhado de risadas cruéis. —“Aquela negra” tem nome, você sabia? — Anne se levantou instintivamente para defender Stephanie. Preconceito não existia no vocabulário desta, de modo algum. Sua estilista era negra, seu mordomo não parecia ser o mais convencional dos homens e sua mãe era a Mulher de Negócios de Londres.

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— É mesmo? E qual é? Ela é a sua empregadinha? — o menino se levantou mais ameaçador ainda, era um louro sardento até a alma. Era alto e magro, com ossos largos. — Não. Ela é uma estudante assim como eu e você. Calma... — interrompeu-se. — Deixe-me ver... — pegou na mandíbula do garoto com o dedo do meio e o polegar, virou seu rosto com força para a direita, para esquerda, com nojo, e exclamou em voz alta: — Lucas Sandervarro! Não foi seu pai que arruinou meu aniversário de sete anos por roubar todos os petiscos e escondêlos até no motor do próprio carro? Lembrado? Acho que não é a nossa amiga aqui que precisa catar comida. Ainda sinto o cheiro de fumaça, presunto e gasolina terrivelmente juntos, que seu pai exalava em frente ao delegado ao se explicar. — a memória de Anne nunca era falha. E, ela sabia ser uma baita de uma justiceira quando queria, além disso, seu talento para a humilhação alheia pública era óbvio. Todos ficaram pasmos e alguns até estavam na ocasião, então dando início a outras mil gargalhadas, Stephanie riu e enfiou a cocha de peru na boca de Lucas. Todos riram e caçoaram, e apenas um olhar agradecido e o rosto

vermelho

de

Sandervarro

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bastaram

como

um


agradecimento mais-que-especial para Anne. Dentre jovens rindo e inspetores de vagão gritando, Anne voltou para seu lugar. — Eu não sei como te agradecer. — gemeu Stephanie, com a voz embargada e os olhos marejando. — Você foi fenomenal. — parabenizou Délia. — Eu sei como você pode me agradecer. – olhou a sua volta e se certificou que o foco não era sua mesa. Todos ainda caçoavam de Lucas. — Me conte tudo que você sabe sobre o diretor, funcionários e corpo docente dessa escola. — O que eu sei é que tudo isso foi trocado, inclusive a localização. A escola ficava numa metrópole na Escócia, mas recentemente, muito recentemente, foi anunciado que a nova localização fica em Durham, numa floresta enorme chamada RedShire. Alegaram que a antiga escola havia desabado parcialmente. — respondeu a ruiva, entrando no mesmo tom de sussurro. — O corpo docente completo morreu com o trem que caiu de um penhasco, uma semana atrás, quando estavam voltando das férias antecipadamente. Os funcionários foram trocados junto com as instalações. E o diretor enfartou semana passada. Isso significa que essa McWaverly não é nem um pouco parecida

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com a do semestre passado. É como outra escola.

complementou. — Boatos dizem que ninguém nunca ouviu falar nesse diretor e que os donos da escola estão ficando malucos, pois passaram a escola que é da família a gerações, para esse novo diretor. — É pior do que eu pensava. — recaiu sobre a cadeira, com os dedos tremendo. — O que? — perguntaram as duas, em uníssono perfeito. — Eu não tenho coragem de falar. Parece ridículo e surreal demais. — aflita, tentou regular a respiração e a agonia, fracassando logo após as primeiras tentativas. — Fala logo! — insistiu Stephanie. — Todos os funcionários, o diretor, e os professores... São anjos e esperam que eu cometa suicídio daqui a sete meses, se não o mundo virará um caos. — disparou sem respirar. — Você é louca. — murmurou Délia. — Você está louca. — gargalhou Stephanie. — É sério! Liam isso. — abriu o diário na primeira página, onde estava a dedicatória de Jhon. — Não há nada escrito! — Claro que há, não vê? — corou. — Vá dormir. — caçoou Stephanie.

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— Não... Como podem não ver? — levantou a voz, pasma e atordoada. — Você é esquisita ou mentirosa, ou essa brincadeira é muito sem graça. — acusou Stephanie. — Percebemos que você, bem, meio que gosta de ser especial, mas não achamos que chegaria a esse ponto. — Não! — gritou, e no mesmo instante que sua voz ecoou em solo por toda a mobília, todo e qualquer vidro no vagão se estilhaçou. As janelas trincara, mas o resto se transformou em cacos ao chão. Todos encararam Anne e o ambiente ficou escurecido e lotado de penumbras pois a lâmpada explodira também. Não houve burburinho nem falação, apenas expressões de medo e receio. Sem reação, Anne fugiu correndo para sua cabine. Délia e Stephanie esperaram alguns segundos de reflexão até atrás.

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Capítulo 5. Aliados. 1 de agosto de 1952. Inglaterra.

— Acreditamos em você. — comunicou Délia, com a voz abafada por detrás da porta da cabine de Anne. Um longo minuto se estendeu até Anne decidir deixa-las entrar. — Resolvemos pode ser sensato acreditar em algo sobrenatural quando as janelas trincam e todas as taças se quebram ao mesmo tempo. E, bem, ao som do seu grito. — cedeu Stephanie, sem jeito em tom de desculpas.

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— Já sei o que fazer quando não acreditarem em mim. — Por favor, não faça de novo. — suplicou Délia, agarrando os braços de Anne. — O que? Pode fazer o quanto quiser, e quero descobrir o que mais você consegue fazer. — entusiasmada, dedilhou o ar como se pudesse imaginar luzes saindo de seus dedos. — Isso é o que? Magia? — Eu não sei. Não sei como aconteceu. Apenas senti minha cabeça leve e meu corpo quente, e algo formigando em minha garganta. Estou tão assustada quanto todos daquele salão. — assustada, contou sem olhá-las nos olhos, como se procurasse respostas em qualquer outro canto e tivesse vergonha do ocorrido. — Só quero que saiba que estou com você, não importa o que você faça de estranho e nem quantas taças você quebre. — sorriu Délia, pegando sua mão. — Eu também estou com você! Pode contar conosco sempre. — completou Délia. — Isso é importante pra mim. Acho que vocês não sabem, mas perdi minha mãe exatamente ontem. — o silêncio foi solene, até Anne engolir a seco e secar as lágrimas que ameaçaram cair, para então continuar. — Ela se suicidou.

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— Espera... Sua mãe é Diana Bloonwold? A dona das fábricas Bloonwold? Eu não acredito! — trataram a notícia óbvia como um acontecimento extraordinário. Talvez fosse, já que isso significava que Anne era a menina mais rica da Inglaterra. — Todos sabem. Está em todos os jornais. E, bem, meu pai trabalha distribuindo jornais... Li tudo sobre. — pela primeira vez com voz baixa, Stephanie se mostrou respeitosa e empática com a dor que Anne escondia. — Ainda bem que estou indo para bem longe. Quando eu voltar todos terão esquecido, e eu também. — falou com voz quase inaudível, cabeça baixa e olhos frios. — É... São alguns anos a mais que uma década numa mesma escola. — bufou Délia. — Quero sair de lá pronta para ser o que minha mãe foi. Quando meu pai morreu na guerra, muitos disseram que as fábricas faliriam em algumas semanas. Bem, quando minha mãe assumiu, houve um crescimento nas vendas de quinze por cento no segundo semestre. — disparou como se falasse com os acionistas de Diana. As duas pareceram não entender muito bem, mas assentiram. — E, agora está tudo nas mãos de Edward: O mordomo. Inclusive eu.

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— Nossa, se continuarmos assim eu vou chorar. — gargalhou Stephanie. Por alguns momentos de conversa jogada fora ela até se esqueceu do que havia deixado para trás, havia se esquecido da tragédia que a assombrava e até de certo modo de como era ser solitária. Stephanie e Délia faziam bem a Anne, e ela estava começando a notar isso. — Posso te chamar de Karlly? — cortou o assunto levantando uma sobrancelha com o dedo indicador no queixo. — Só se eu puder te chamar de Suzy. — Karlly era a vaca mais gorda da fazenda do meu avô, morreu semana passada. — falou séria, e fingiu que ia chorar antes de cair na gargalhada. — Suzy é a galinha do meu mordomo. — pronto! Apenas um dia longe de Edward fez seus modos desaparecerem. Uma das leis do bom senso acabara de ser quebrada: Nunca despeje sua vida sobre um desconhecido. As duas riram a tarde toda. Beberam quatro tipos de chá, comeram um bolo horrível que Stephanie havia trago e ainda entupiram o vaso sanitário do trem com as anáguas negras do vestido de Anne. No fim, foram obrigadas pelos inspetores de

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vagão a ficarem em suas cabines, mas com um pedido especial de Anne, todas puderam ficar numa mesma cabine. — O que você gosta de fazer? Sabe... Nas horas vagas. — perguntou Anne. — Cantar. Meu sonho é ser cantora... Mas, sou negra. Olhe pra mim! Isso está um pouco distante. E você? — os olhos de Stephanie brilharam por um instante, antes de se fecharem dolorosamente. Stephanie era a única negra dali, seu cabelo era liso, rebelde e fino, cobria o canto dos olhos e acabava com uma volta suave antes da cintura. Suas maçãs eram altas e firmes, ela era linda e sua presença parecia incomodar as pessoas. — Desenhar, se você não sabe, eu desenho minhas próprias roupas. — se gabou com um sorrisinho sacana e um estalar de dedos. — Quer ser estilista? — Stephanie perguntou com desdém. — Acho que sim. — confidenciou. — Então se prepare para morrer de fome. — gargalhou puxando a renda do braço de Anne, como se as roupas dela não fossem bonitas o suficiente para sustenta-la. Anne estava num vestido preto, rodado como todos de seu guarda-roupa, até abaixo dos joelhos, rendado nos braços e com

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babados no pescoço. Além de sapatilhas, luvas e um chapéu negro enorme. — Suzy! — estapeou de leve seu rosto, deixando a mão descansar sobre o mesmo, transformando a agressão num gesto de carinho. — Você vai ser uma grande cantora um dia... Eu acredito. — o tom de suas palavras era mais melancólico e pessoal. — Quando eu for cantora, você fará o vestido do meu show para a corte. — Stephanie levantou e balançou seu sobretudobege-sem-graça, quebrando o clima que a faria chorar mais tarde. — Com prazer. Na verdade estou dividida. Eu sempre quis administrar as fábricas da minha mãe, por dois motivos: Eu queria provar a todos que mulheres e cargos se dão bem, e também porque ela sempre dizia: “Vai chegar o tempo em que você terá que tomar escolhas, e espero que elas sejam como as minhas.” – com a cabeça no colo de Stephanie, continuou. — Pelo visto, os dois motivos tem a ver com outras pessoas e não com o que você realmente quer. O primeiro é para provar para os outros e não para si mesma, e o segundo é para honrar sua mãe e as expectativas dela e não realizar as suas. Tem certeza que quer a presidência disso e ser infeliz?

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Collins cobrava muito de si, e isso era um de seus demônios. Seu pai exigia muito, sua mãe reforçava isso e nada parecia ser bom o bastante. Esses fatores desencadeavam outro problemas. E, isso a fazia ficar paranoica às vezes. — Eu não disse que seria infeliz. — corrigiu. — Feliz é que não seria. Segundo o que eu considero felicidade, que realmente não tem nada a ver com provar nada pra ninguém. — concluiu Stephanie, sabiamente, deixando-a sem palavras. Délia ouvia a conversa como se não estivesse na cabine. Mas o jeito como olhava era cordial, como se não quisesse quebrar o momento com palavras erradas. — E você Délia? — perguntou Anne, na tentativa frustrada de coloca-la na conversa. — Nada. Não sei de nada. — resmungou quase inaudível. Seus lábios se retorciam e seus olhos piscavam lentamente, como se no escuro das pálpebras houvesse um filme. Enquanto falavam, as luzes se apagaram e a medida que seus olhos se acostumavam à luz fraca da lua, os ruídos e sons humanos iam cessando.

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— É a hora de dormir. Bem, aqui só tem uma cama. Duas vão ter que dividir e uma vai ter que dormir no sofá. — anunciou Stephanie. — Bem, acho que por mais que seja repugnante, aceito dormir com Stephanie na cama, pois ela acomoda nós duas. E, você Anne, que teve uma noite ruim, pode dormir no sofá. É menor, mas de qualquer forma é maior que você. — resolveu Délia. — Pode ser? — Eu não sei como agradecer, meninas. Não estou em condições de pensar. Minha cabeça dói muito. Boa noite. — gemeu enquanto se ajeitava no sofá pequeno, virando o corpo para a janela, que parecia mais um quadro. As árvores prateadas pela lua, as estrelas mais cintilantes do que nunca, o céu num azul exuberantemente nobre. O sono vinha com a brisa leve e fresca, que entrava pela pequena abertura da grande janela. Assim, as três adormeciam. ... De madrugada, o trem estava num silêncio tão acolhedor quanto o escuro, onde qualquer lugar pode ser seu tudo ou seu nada. Alguns alunos estavam lendo livros, com as luzes amareladas acesas acima de suas cabeças, outros roncavam. E Anne, preferia curtir os últimos sopros da noite, pouco antes do

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nascer do sol no horizonte, que observava através da janela embaçada. Num estado de inconsciência entre o sono e a realidade, lá estava Anne a dançar em devaneios. Até que, abruptamente, o trem para. Uma freada bruta, que acordara todos num mesmo suspiro. O falatório esperado não se ouviu. Nada se ouviu. O que por natureza era pra ser o fino véu frágil e translúcido do silêncio, agora era uma muralha inquebrável e impenetrável que nem o maior dos idiotas ousaria ultrapassar. Um minuto se passou e apenas olhos e corpos gelados tentando se comunicar sem barulho ou movimentos, apenas por uma intuição compartilhada entre pequenos espasmos. O escuro se arrastava pelos cantos, e o brilho azul dava um tom dramático ao espetáculo que estaria por vir. O sol parecia voltar e desistir de nascer, se escondendo atrás da linha irregular do horizonte novamente. De repente o ar fica mais gelado e denso, e uma camada grossa de neblina toma conta de todo o trem pelo chão; o silêncio reina imponente e inquebrável sobre o ambiente. Olhares são trocados como se já soubessem o que ocorreria. Anne ouvia passos, mas aparentemente ninguém estava andando

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pelos corredores. Anne ouvia suspiros e sussurros ao seu ouvido, mas não havia ninguém falando... Aparentemente. Dando fim ao silêncio, gritos agudos ensurdecedores, puxões de cabelo agressivos, coisas arremessadas para todos os lados, golpes, tapas e socos... Mas não havia ninguém. Era uma força invisível, mas irrevogavelmente existente e presente. Anne, assim como todos, desesperava-se com os hematomas surgindo. Aquele grito agudo se misturava com os gritos de pavor dos passageiros, provocando uma distorção em todos os sons. De repente os objetos começaram a flutuar e pairar de um lado para o outro, numa paz quase silenciosa, e antes que Anne se desse conta de que seu nariz sangrava, todos os objetos caíram no chão. A luz voltou para o local, o trem começou a andar. A neblina fugia pela a porta e o frio deixou o local, assim como os gritos, passos e suspiros. Os passageiros começaram a sussurrar uns com os outros, e os sussurros só ficavam cada vez mais altos se transformando em gritaria. Até que em pouco menos de trinta segundos, todos já estavam em pé correndo para as portas num coro de gritos disformes de “Quero sair daqui agora!”, “Não fico mais nenhum minuto aqui” e “Quebrem as janelas”.

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— Calem-se, agora! — gritou o inspetor do vagão, reerguendo a muralha de silêncio, fazendo-se respeitável e imponente. — Senhores e senhoras, o que acabou de acontecer foi algo que foge de nosso controle. Os espectros são uma herança da McWaverly que não temos como revogar. Quaisquer danos físicos que tenham tido nós iremos tratar. Por favor, não se apavorem e faremos o possível para amenizar essas aparições. Agora, podem voltar a dormir. Chegaremos hoje antes do meio dia. — o homem parecia passar dos quarenta, tinha o cabelo acinzentado e os olhos escuros. Era baixo e usava um uniforme com as cores escarlate e cinza, as cores da escola. Talvez ele tenha conseguido tranquilizar um ou outro, mas até ele estava ofegante. Pegou quatro alunos feridos e saiu pela porta que dava acesso ao outro vagão. Assim que se percebeu a ausência do adulto, a feira se refez, numa escala menor. Entretanto, depois de dez minutos, tudo parecia não ter passado de um pesadelo, pois todos os indícios e resquícios que vagavam no ambiente haviam se dissipado num piscar de olhos. O mais estranho era a naturalidade com que o homem, tratava um acontecimento tão infinitamente anormal. E o pior era o conformismo de todos em relação a isso.

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Algo em sua voz soava convincente e satisfatório, e todas as perguntas pareciam sumir à medida que Anne ou qualquer outro aluno as formava. — Meu nariz está sangrando. — reclamou Anne. — Délia, passe os lenços da minha bolsa pra ela. — sussurrou Stephanie. — Obrigada. — agradeceu entre fungos. Depois de um período de silêncio e reflexão, Jhon apareceu na porta fina da cabine. Anne abriu e ele lhe entregou um bilhete, o que fizera suas pernas tremerem mais do que ameaçavam antes. Délia e Stephanie, por mais que tentassem, não reconheciam nenhuma pequena letra ou símbolo no papel, já Anne, via o terror que aquelas letras simbolizavam.

Anjo, espero que estes demônios tenham mostrado o quão necessário se faz o cumprimento da sua parte na profecia. Eles e coisas piores querem que você não a cumpra, mas DEUS está do nosso saldo. Temos fé em você. Se fizer a coisa certa, seu lugar no céu estará garantido.

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Sarakiel A. P.S: Parabéns! 14 belos anos. “Depositem sua confiança em mim. Nossa vitória é certa, e certifico isso com meu sangue. Darei minha alma, e até a última gota de suor por esta causa. Eles que se preparem”

Aterrorizada Anne segurou as lágrimas na garganta e apertou as próprias têmporas com ambos os palmares, a procura de força e direção. E, talvez sanidade. Não entendia a citação no final, mas o que sabia, era que não estava preparada para o que quer que estivesse acontecendo.

Capítulo 6. Floresta. 2 de agosto de 1952. RedShire, Durham, Inglaterra.

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— Eu vou tentar apagar essas coisas “sobrenaturais” da minha mente. É tudo muito confuso pra mim. — Stephanie bufou, levantando-se com sua mala solitária. — Mas, quero ver você por lá! Tenta aparecer sempre que der. — Boa sorte. — Anne deu um meio sorriso e saiu com sua bolsinha de mão e outra mala pequena. — É... A gente se esbarra por aí! — Estava sem graça demais para implorar para nunca mais sair de perto de Stephanie, mas foi o que coube no momento. Um simples “Boa sorte” hesitado. — Até breve, Anne. — sorriu Délia, tímida. — Vamos, saiam todos! — ordenou o homem com voz cansada. — Deixem suas malas, elas estarão em seus quartos quando o processo de seleção acabar. Saindo do trem era impossível não se encantar, RedShire era uma floresta extremamente peculiar e hostil, mas nada que tirasse sua beleza exuberante.

Estavam numa clareira oval

enorme, com flores de todas as cores por todos os cantos. As espécies de árvores e plantas eram totalmente diferentes, atípicas

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e corriqueiras, entretanto, de algum modo, todas pareciam conversar pelos cantos. O sol já não era de um amarelo pálido e sim de um dourado, cintilante assim como a grama, e isso fazia tudo brilhar. Borboletas negras voavam em grupo, uma águia rodeava o local. O cheiro forte de ervas silvestres se misturava com a essência das flores. O cantar dos pássaros se juntava a voz dos alunos quase que harmonicamente e tudo um cenário cinematográfico do paraíso, das formigas às folhas grandes dos carvalhos molhados pelo orvalho matinal. O clima era frio, talvez razoável, mas úmido e um tanto desconfortável. Ao norte da visão de Anne estava uma pequena construção, um palco redondo com um telhado de madeira cinza. Lá estava o diretor e outros quatro homens vestidos igualmente: Sobretudos pretos, blusas com golas altas igualmente pretas, botas de couro até os joelhos e luvas de uma cor incomum: Preto. O homem de dentro do trem conduziu todos os duzentos e dez alunos até a pequena construção e os quatro armários, digo, homens, que continuavam parados. Ninguém tinha certeza se

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eles respiravam ou piscavam, mas ouviam atentamente o que o velho diretor os sussurrava aos ouvidos com discrição. Sarakiel evitava os olhares de Anne como se não tivessem conversado antes. “Segredinho”, pensou ela.

Sua expressão

facial era ilegível e seus olhos ainda estavam cobertos pela aba da cartola. Todos arriscavam palpites, mas nunca risadas. Ele deu algo mais do que dez minutos para conversarem e atualizarem corpos e mentes no novo espaço. Os cinco estavam imóveis, até que o velho diretor aparentemente louco bateu com sua bengala três vezes no chão de madeira do palco improvisado. Na primeira todos olharam, na segunda todos se calaram e na terceira nada se movia. O som era surrealmente alto, não era possível que um ruído tão alto viesse daquilo. Eram praticamente trovões. Era de espantar que os ossos do velhinho não tenham quebrado por estarem tão perto do projetor do barulho ensurdecedor que era aquele “Teco, teco, teco” dos infernos. — Sejam bem vindos a Academia Cristã dos irmãos McWaverly. Eu sou o diretor da escola, e me sinto no dever de pedir desculpas pelo que aconteceu hoje no trem, mas pelo que eu soube foi só em um vagão. Então não se assustem, e coisas como essa sempre vão acontecer por aqui. Quero deixar claro

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que ninguém vai pra casa, e vocês não vão ter conexão nenhuma com ninguém fora desta escola. — alguns cochichos começaram circular neste momento, mas apenas uma pausa mais longa fez com que todos se reprimissem. Encarou todos com olhos mortíferos e continuou: — Estão iniciando meio semestre na McWaverly e devem ficar conosco por muito tempo... Algum de vocês é claustrofóbico? Não, não respondam. As mãos que se levantaram, expressivamente, logo se abaixaram. E, ele continuou: — Espero que não sejam, espero que estejam mentindo. Vocês são mentirosos, eu sei. Todos vocês fizeram uma prova para estar aqui. Certo? Novamente, não respondam. Isso significa que qualquer um de vocês tem capacidade o suficiente para se tornar algo grande na área em que escolherem seguir carreira. Não é qualquer idiota desmiolado que pisa nesse gramado. Agradeçam aos céus por estarem aqui. Entretanto entrar é fácil, o difícil é se manter aqui. Se manter vivo. Embora parecesse ameaçador e medonho, como se estivesse prestes a atacar, Sarakiel era cativante. Muito cativante, e cada palavra que saia de sua boca era compreendida e guardada em todos os sentidos.

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— Entretanto, crianças, não se embriaguem com o orgulho de estudarem na melhor escola da Europa, nem se deixem cegar pela ganância. O mesmo potencial de subir na vida que cada um de vocês tem brilhando dentro desses coraçõezinhos virgens, é equivalente a vontade de acabar com os seus sonhos que o coleguinha do lado tem. E, não vou me intimidar por sobrenomes pomposos. Se o seu pai inventou a roda, ou tem dinheiro para comprar tudo que eu já vi na vida, eu estou pouco me fodendo. Anne, Délia e Stephanie se entreolharam desconfiadas e surpresas com o linguajar do diretor. Todos os alunos faziam o mesmo. — Para os mais lentos, que logo serão os primeiros a pedir pra sair, aqui é matar ou morrer. Não se tem amigos na McWaverly, se tem concorrentes sorridentes. Só para deixar claro, não são só os amigos de vocês que são parte da corrente marítima em que estão nadando contra. Nossos mentores e professores estão testando cada um de vocês vinte e quatro horas por dia, e a cada aluno reprovado eles ganham uma quantia a mais no salário. Corram atrás do que vocês querem, persigam os professores e suguem deles o máximo que puderem! Pelas carinhas de ratos medrosos prevejo que menos de um quarto de

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vocês ainda estará aqui no fim do bimestre... Agora uma pergunta pra ser respondida com as mãos: Qual de vocês mataria um parente para conseguir seus objetivos acadêmicos aqui dentro? — a voz encheu todo o ambiente como se estivessem entre quatro paredes com apenas ele. Seus olhos foram revelados no meio do discurso ao dizer “Matar ou morrer”, joias negras do diabo. Um timbre metálico cruel de barítono, uma voz potente e amedrontadora que fazia as caixas torácicas tremerem a cada sílaba. Alguns levantaram a mão direita com orgulho, talvez a metade dos alunos. Anne ficou desconfortável com a pergunta desumana e ousou o que não passava pela caixinha de hipóteses insanas de ninguém: Falar diretamente com o diretor. — Entendi tudo, mas se me permite... E, se por acaso, algum aluno daqui, não tiver nenhum ente querido ou parente distante para trocar por sonhos acadêmicos? — destacando-se no meio da multidão e ficando a quatro metros do primeiro degrau do palco de show de horrores, Anne perguntou em alto e bom som, impedindo as próximas falas do diretor. — Senhorita Bloonwold, fale diretamente apenas quando questionada diretamente. — o condutor de meia idade repreendeu.

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— Senhor Kemuel, deixe-a. — sua voz se levantou e ele finalmente mexeu a bengala. Se olhasse rápido, poderia pensar que por um instante o vinho ferveu lá dentro. — Sei cuidar dos meus alunos. Então, senhorita Bloonwold, a pergunta mudaria um pouco: Você tem um desejo. Com ele você pode reviver um ente querido ou gabaritar a prova de fim de ano da McWaverly, sendo aprovada automaticamente. Você escolheria...? — andou pelo meio da multidão com passos firmes e lentos, e à medida que chegava mais perto ela retrocedia, até dar de costas com a árvore que todos se aproveitavam da sombra. Então o velho se inclinou para Anne, ficando com seu nariz arrebitado e grande a poucos centímetros da testa da menina, ao dizer a última palavra. — Revivê-lo. –Anne sussurrou com um suor gelado escorrendo pela testa. Diana, Diana, era o que vinha em sua mente antes de conter uma lágrima. E, teve quase a certeza de ouvir um “ótimo” vindo dele, quando se virou subitamente para voltar ao palco, abrindo novamente espaço na multidão que havia se formado engolindo os dois, tendo-os como centro de um espetáculo em que o gladiador é colocado sozinho na arena com o leão.

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— Lembram-se de assinarem um tratado de morte? Que poderiam morrer nas dependências da escola, assumindo a total responsabilidade para si? Espero que lembrem. — varreu os rostos de uma maneira fúnebre, e depois cortou sua expressão pesada. — Voltando a pergunta anterior, já se decidiram? Por favor, os que disseram que sim à esquerda e os que disseram que não à direita. Bloonwold, você fica na direita já que o princípio era escola contra família, e você escolheu família. — apontou a bengala para ela, e encaixou-a no meio de sua testa, empurrando-a para trás de leve. — Então, queridos de esquerda... A escolha tomada não poderia ser melhor! Vamos, aceitem esta taça de vinho. Vamos brindar o quão ambiciosos vocês são. Garçons saíram de algum canto que ninguém identificou, com a quantidade exata de taças cheias até a metade. Todos sincronizados

em

fila,

hipnotizando

por

completo

os

“privilegiados” e deixando todos do lado direito com uma sensação de que fizeram algo errado. Os esquerdóides logo começaram a gargalhar e apertar a mão do diretor que anunciou os quatro pontos que eles haviam ganhado de primeira. Logo todos já haviam dado o primeiro gole, bem depois do brinde. Só o próprio diretor não tocou os lábios na taça de

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cristal. Ao invés disso ele deu outra batida com sua bengala, dessa vez na grama. O barulho foi idêntico ao anterior, parecia estar batendo em metal ou um trovão mesmo. Era impossível que um ruído daqueles tenha sido produzido pelo choque entre grama fofa e vidro. Todavia isso já não importava, quando todos os direitoidés perceberam que os alunos do lado oposto tinham caído no chão instantaneamente, desacordados, desmaiados assim que o barulho de desfez no ar como um eco solitário. Apenas um dos alunos daquele lado permaneceu em pé. — Você não bebeu? — perguntou o diretor com um meio sorriso falso e sarcástico no rosto. — Vamos, é um legítimo Malbec, da mesma safra do que está em minha bengala. Beba! — Não. — o aluno respondeu olhando com o rosto franzido para o vinho. Então o diretor o golpeou com a bengala, na cabeça, fazendo-o cair instantaneamente como os outros. Ele se virou para o grupo em que Anne estava, e sorriu. Um sorriso sincero com dentes longos e separados. — Os verdadeiros felizardos são aqueles que guardam seu maior tesouro: a família. Eu disse para que não se embriagassem de orgulho e não deixassem que a ganância os cegasse, mas foi exatamente o que eles fizeram levantando a mão. Parabéns a

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vocês, que guardam os valores que um jovem puro de coração deve ter. E, quanto mais pontos tiverem, pior. Eles começaram com quatro pontos, espero não ter que distribuir pontos para vocês também ainda hoje. — aquilo soava como música e gás do riso a todos que preferiram seus familiares, entre eles Anne, Stephanie e a ruiva nariguda. Infelizmente, ou felizmente, Lucas não teve a mesma sorte. Continuou: —

Acalmem-se,

eles

não

estão

mortos.

Apenas

desacordados, e isso dará uma desvantagem enorme a eles nessa primeira prova. A classificação. — voltou ao palco e continuou depois de pedir que os alunos se sentassem na grama: — O mapa da McWaverly é bem elaborado, externamente só temos cinco torres: A torre do lago, de responsabilidade do mentor L, a torre do penhasco, de responsabilidade do mentor P, a torre da montanha de responsabilidade do mentor M e a torre da clareira, de responsabilidade do mentor C. Que são os senhores logo ali. — Apontou ele para os homens, fazendo-os dar um aceno sem graça e gracioso ao mesmo tempo. E continuou. — A quinta torre é a torre da administração, onde fica a diretoria, e é tudo que vocês nunca vão ver na vida. Podem bater na porta, tentarem entrar despercebidos, mas nunca saberão nem

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a cor de qualquer parede de lá. Cada torre foi batizada com o nome do ambiente em que está. Agora devem se perguntar: Uma escola é feita apenas de cinco torres? Não! A escola é quase totalmente subterrânea, as salas de aula, os dormitórios, o refeitório, o pátio, o auditório... Tudo está abaixo da terra. Nas torres vocês só vão ter a sala do seu mentor e as centrais, que são salas onde seus mentores podem ter reuniões com vocês, ou apenas para passarem o tempo livre que não vão ter... Os alunos serão classificados de acordo com suas torres, e receberão um cordão com a letra correspondente. Agora a parte difícil: Para se classificar numa das torres, vocês vão ter que acha-las. Elas estão distribuídas pela floresta, e chegando lá, já vão poder pegar seus cordões classificatórios e ter a primeira reunião com seus mentores. Eles vão mostrar onde serão seus aposentos e com quem vão dividi-los. Alguma pergunta? Claro que não. Vocês estão em vantagem, pois tiveram as instruções... Já os nossos amigos gananciosos homicidas não terão a mesma sorte. — ele parecia não respirar. Tudo era tão fascinante e horrível ao mesmo tempo, de uma maneira boa. Anne tinha que aprender a falar tanto e ficar tanto tempo parada intactamente como o diretor, era quase uma virtude.

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Apesar da linguagem não tão formal, e de sua roupa incomum cômica, as palavras do velho eram afiadas e amedrontadoras. — Só mais uma coisa: Cuidado com as criaturas da floresta. Quero vocês vivos. E, meu nome é diretor Alston, só vocês foram dignos de saber, já que não são impulsivos, desmiolados e imbecis como o resto. Boa sorte! E... Que a vida não te abandone! — o sentido era amigável pela primeira vez, e tudo aquilo só tinha deixado Anne anêmica de tantas pulgas na orelha. Ela analisava o diretor com um olhar ofensivo e com a cabeça erguida, escondendo seus pressentimentos e pés atrás. Os quatro homens-torre ainda permaneciam paralisados observando os alunos, até que um deles, o segundo da esquerda para direita, cochichou algo ao primeiro da direita para esquerda, vindo logo depois até o diretor e cochichando igualmente. Sarakiel engoliu a seco, ao ouvir o que o mentor lhe dissera. — Corram! — o diretor arregalou os olhos e soltou com a boca murcha. Quando Anne e Stephanie se viraram saindo de um papo sobre algo bobo, lá estavam todos os quatro mentores, tendo em suas mãos longas correntes prateadas que seguravam cachorros

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raivosos e enormes. Eram todos negros, de alguma raça feroz de dentes pavorosos. Eram todos muito fortes e musculosos, suas garras se entranhavam na grama e seus olhos eram as únicas coisas que não davam calafrios em todos. Ninguém sabia de onde os cachorros tinham saído, do mesmo modo que ninguém sabia de onde os garçons tinham vindo e nem pra onde foram. Ao perceber que todos os mentores estavam soltando suas feras, os alunos começaram a correr com bagagens de mão e tudo mais em direção a floresta. Anne e Stephanie se separaram. Já não se sabia mais quem era quem. De repente, num último olhar aos céus, todos notaram que o sol dourado que os banhava já não brilhava num céu azul, e sim uma claridade mormacenta de um céu cinza agorento coberto por nuvens mal formadas. Ao invés de seguir Stephanie que ia com o grupo menor para o sul, Anne preferiu, entre alguns tropeços, ser a penúltima a sumir por entre as árvores e arbustos leste. — MERDA! Será que posso gritar isso aqui? Acho que, senhor, senhora, senhores... Não é correto para uma dama. Às vezes uma “dama” se cansa. — desabou em gritos, quando se deu conta de que estava com seus calçados negros cheios de terra e lama. Inconsolável, ela procurou alguma pedra enorme com um raio de sol sobre ela, para se sentar e parecer num conto

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de fadas, mas o que conseguiu foi um tronco coberto de musgo abaixo de samambaias quase mortas. — Cadê você Edward pra me dar um puxão de orelha? Cadê? Cadê você mãe... Pra me dar um abraço. — lamentou com voz entrecortada. — A mamãe está aqui, querida. — era uma voz familiar, mas quem? Era um cabelo ruivo surgindo dentre as folhas? Ah, sim. Não podia ficar pior. — Não mesmo, mas assim como eu, você gostaria que fosse. Não é? — Também perdeu a mãe? — talvez, ter alguém compartilhando do mesmo sofrimento ajude... Talvez. — Não. Apenas não conheci meu pai. –— confidenciou com o olhar baixo e a voz mais grave, estendendo a mão. — Prazer, Délia Collins. — Bem, nem eu. Perdi meu pai antes de nascer. Ele morreu na guerra. — titubeou fungando, querendo espantar uma possível sobrecarga em sua mente e coração. — E... Já fomos apresentadas... — secou as lágrimas, deixando as armaduras no tronco e sendo verdadeiramente Anne, sem as amarras das aulas de etiqueta. — Mas, tome isso como um recomeço. Sinto que não fui gentil no trem. Viagens fazem isso comigo.

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— Prazer, Anne Bloonwold. — aceitou o aperto de mão, que serviu como apoio improvisado para Anne emergir do mar de lama em que estava o tronco morto. — Isso se torna estranho quando já nos conhecemos antes. Não é necessário, Collins. Todos tempos nossos dias ruins. — Você fala que nem minha mãe. — Délia fez um coque improvisado em cima da cabeça, rapidamente e estufou o peito, com os olhos meio fechados, improvisando sua transfiguração. — E, me sinto decepcionada em perceber que “merda” é o mais rebelde que você consegue ser. — Fui criada pelo mordomo. — justificou. — Mordomo? Que luxo! — queixou-se. — Nunca tive um mordomo. — Seu pai não é o dono do jornal Manhã Britânica? — questionou, já andando rumo ao não se sabe onde. — Não. Meu pai era jornalista de lá, sou filha da cabelereira. Já ouviu falar do salão J.C’s Hair? — chutou uma pedra com metade de uma gargalhada ao ouvir a pergunta de Anne. — Claro. Adorava ir lá com... Deixa pra lá. — estava evitando falar em sua mãe, mas ela estava evidentemente presa em seu passado, assim como Edward. A cada momento em que

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tentava pensar em outras coisas, um vislumbre trazia a indagação sobre o suicídio de Diana. — Então, o “J” é de Jane, minha mãe, e o “C” é de Collins. — Orgulhou-se ela. — Parece bem óbvio, na verdade. — Ah, claro. — respondeu chutando uma pedra qualquer, que por mais incrível que pareça, lembrava Diana. — Tá. — colocou um ponto final no assunto, para avançar em um de seu interesse. — Você deve estar farta de ouvir isso, mas por que ela se matou? E ainda... Toda vestida daquele jeito. Pelas fotos no jornal, ela parecia uma princesa, fada ou algo do tipo. — tomar cuidado com as palavras não era uma qualidade que transparecia em Délia, já que ela não a tinha. — Essa é a pergunta que me faço a cada minuto, desde que saí de perto de Edward, que sempre me respondia que “Ela deve ter se cansado dos sonos de beleza de todos os dias, por isso preferiu um que durasse a eternidade”. Ele deve ter sido um palhaço em outras vidas, já que ele acredita nessas teorias de reencarnação. Contudo, de qualquer forma, não sei de nada... Nenhuma carta, nenhum bilhete ou pista. — respondeu-lhe escondendo as lágrimas. “Na verdade... Tem sim.” — pensou, lembrando-se da carta que acompanhava seu novo colar de pedras preciosas.

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— Entendo. Conte-me mais desse Edward! — Délia estava sendo tão inconvenientemente dolorosa para Anne quanto sal em cortes. — Será que poderíamos falar de outra coisa? Não quero mais ter que lembrar que Londres existe, e nem que já estive lá. Muito menos das pessoas que deixei lá. E, de algum modo das pessoas que me deixaram lá. — implorou com voz suave e contenção de raiva nos olhos. — Claro. Entendo muito bem, desculpe. — arrependeu-se, enrolando uma mecha enferrujada. — Então, mudando de assunto, você acha que vamos encontrar qual torre? — reergueu-se Anne. — Não faço ideia, mas acho que pelo ar... — fungou algumas vezes. — A do penhasco. — informou cheia de propriedade, exalando confiança. — Hum... Claro, o ar. — debochou Anne. — Posso te chamar de Enna? — Não. Chega de animais por hoje! — retrucou lembrandose de Stephanie, com um sorriso embaraçado entre caretas mal definidas. Nunca tivera tanto tempo com pessoas de uma classe social abaixo, e por isso já pensava que chamar pessoas com nomes de animais era uma brincadeira “desse tipo de gente.”

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— O que? — questionou parando para subir novamente o coque e as meias três quartos azuis. —Nada. Esquece, Ailéd. — brincou, entendendo que “Enna” não era um animal, e sim seu nome ao contrário. Ao mesmo tempo, arrependia-se de seu julgamento sujo e inevitável. — Meu nome fica feio desse modo. — queixou-se. — Verdade. — concordou, para a surpresa de Délia. — Não que seu nome seja bonito normalmente. — desdenhou, tirando a lama das sapatilhas. Elas estavam se dando bem, e era disso que Anne precisava depois de uma perda: Dois ganhos. Dentre alguns quilômetros andando famintas conversando sobre coisas banais, elas finalmente se deparam com algo emocionante. O barulho de água, que significava que estavam perto da torre do Lago. Já eram quatro horas da tarde, e provavelmente eram as últimas a encontrarem suas torres. Talvez fosse por conta das reclamações excessivas de Délia, ou as frescuras e choramingos de Anne. De qualquer forma, aquilo significava uma “vitória”, ou quase: — Está ouvindo isso? — perguntou Délia, parando com os pés numa lama estranha. Um olhar feliz saiu de toda aquela expressão cansada, esgotada e esfolada.

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—Délia... — ela não deixara Anne continuar, sua euforia era maior. — É agua! Água! Isso significa que estamos chegando na Torre do Lago! Parabéns pra mim, glória Deus, aleluia, graças aos Deuses... Ah, estou realizada! — aterrissou na terra depois de ter saído do mundo da lua. Uma terra um tanto estranha... — Merda! Merda! Inferno! Merda de novo! Anne me tira daqui agora! — quando percebeu, estava numa poça de areia movediça, seus joelhos já não eram mais visíveis e à medida que ela se mexia a situação só piorava. — Calma! Vai ficar tudo bem. Como eu faço isso? — conseguiu rir e esconder esse sorriso com a expressão de falsa aflição, pois o lado dramático da situação soava mais alto que o lado cômico por mais forte que os dois parecessem. — Pega um galho! — respondeu Délia consumida até o busto, com terror transbordando pelos olhos. — Nos filmes, achar um galho parece mais fácil. Não tem galhos soltos aqui! — retrucou Anne, com pavor e pânico. — Esquece a porcaria dos filmes e me puxa! — as duas últimas palavras saíram sufocadas, só era visível agora o cabelo. O drama estava estampado em cada folha de cada árvore que olhasse.

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Pressionada, Anne olhou em volta, pensou em gritar, mas acabou não o fazendo. Ela enganchou os dedos no tufo de cabelo ruivo de Délia, e começou a puxar com toda a força. Percebendo que já não adiantava, bufou e as lágrimas começaram a brotar. Continuou a puxar com todo o furor, e junto com as dores de cabeça e o terror, aquilo tudo parecia o inferno e o fim. Entretanto, uma verdadeira mão amiga tocou os fios enferrujados e embaraçados da menina imersa, fazendo-a gritar mais ainda por baixo da grande quantidade de areia movediça: Era Stephanie, a negra com cabelos de índia. — Graças a Deus! Ela está saindo, vai puxa mais! — sorriu Anne, limpando o rosto da expressão derrotada. — Com prazer. — concordou Stephanie com um olhar malicioso e um sorriso coadjuvante aos olhos. Depois de algum tempo, conseguiram retirar Délia de lá. A sorte é que seu cabelo era forte, caso contrário ela estaria careca ou morta. Agora, o borrão preto não era mais Anne, e sim a ruiva. — Quase. — suspirou Délia, sentando-se no chão. — Ainda não ouvi nenhum agradecimento, Collins. – cantarolou Stephanie, rodeando uma árvore e se desfazendo do cabelo ruivo em suas mãos.

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— Não pedi para ser salva por você, Jhonson. E sim, obrigada

Anne.

retrucou,

enquanto

a

digna

dos

agradecimentos murmurava palavrões infantis, limpando a saia sem ligar para o que estava acontecendo. Logo já estavam andando em direção ao barulho d’água. A esperança estava visível nos olhos de Anne, mas Délia e Stephanie ficavam brigando a alguns passos atrás. Entre xingamentos

e

ameaças

de

esquartejamento,

finalmente

chegaram ao destino. Ou quase: — Isso é magia negra da leprechaun. — berrou Stephanie, estapeando Délia. —Volta pra África! — retrucou enquanto acariciava o local agredido. Estavam olhando para o que seria a torre da administração, na qual não entrariam nem mortas, segundo o diretor. Era uma torre imensa e tinha uma forma de X quando vista de cima e não a convencional forma cilíndrica. Ficava sobre dez degraus brancos, com todos os quatro lados iguais. Os tijolos eram de uma pedra lisa e negra, oque tornara diferença entre cada um quase inexistente. O topo da torre sumia entre as nuvens, sua largura equivalia a dois terços da largura da mansão Bloonwold, a porta era de uns dez metros de altura, porta dupla sem

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maçanetas, e havia o logo da escola bem grande no centro de cada uma. Parecia estar no meio de um espelho d’água, e de onde não se podia ver de tão alto, caiam quatro finas cortinas igualmente cristalinas quase coladas à torre. Mais acima, algumas janelas grandes e com vitrais coloridos contavam alguma história que ninguém nunca lia. A expressão das três foi igual ao ver que a torre que haviam chegado era única que não poderiam ir em direção. O sentimento de decepção ofuscara o esplendor evidente da torre a frente, embora fosse quase impossível seguir o caminho sem olhar para trás de boca aberta.

Capítulo 7. Capas. 2 de agosto de 1952. RedShire, Durham, Inglaterra.

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— Parem de reclamar, e vamos para a direção oposta. — ordenou Anne, com cabeça baixa, pesando em desestímulo. — Espera! — sussurrou Stephanie, puxando-as para de trás de um arbusto denso o suficiente para escondê-las. — Olha lá! — disse apontando para as enormes portas, que por um milagre da física, pareciam se mexer tão fluidas quanto o vento, embora lentamente. De dentro da torre saíram quatro homens fardados de vermelho, com emblemas e símbolos que à distância que estavam, não eram identificáveis. Fizeram duas fileiras, viradas para dentro, como numa solenidade ou até mesmo como se fossem prestar algum tipo de protocolo ou saudação. Logo

depois

de

estarem

perfeitamente

alinhados

e

posicionados, dois homens saíram lentamente, numa conversa descontraída com o Diretor Alston. Um era mais velho e ostentava uma barba expeça o suficiente, mas não grossa. Era loiro, tinha olhos verdes e era alto. Aparentava beirar os cinquenta, belos cinquenta anos. Sua

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pele reluzia como a grama ao sol e seus cabelos brilhavam até mais que os de Anne. O outro ao seu lado, no entanto, era sombrio e seus cabelos e olhos acompanhavam sua aura, no mesmo negror mórbido. Sua pele era pálida e cinzenta, seus olhos exibiam olheiras profundas, sua boca era escurecida e sua postura curvada. Parecia ser mais jovem que o outro, entretanto, os anos aparentavam terem sido cruéis a ele. O que os dois tinham incomum era um detalhe intrigante: suas roupas. Totalmente atemporais, capas púrpuras e cintilantes que transformavam suas silhuetas em algo como um triângulo borrado. Por mais que fossem chamativas, de alguma forma, pareciam se unir a paisagem, de modo que os deixavam camuflados. Pareciam satisfeitos e confiantes, apertaram as mãos e o sorriso só aumentou. A atmosfera era como se um acordo entre países fosse selado, e os dois pareciam esconder segundas intenções por trás dos dentes. — Estranhos demais. — suspirou Délia. — Infinitamente estranhos. — murmurou Stephanie. — Estou sentindo uma queimação nos pés. Não quero ficar aqui. — concluiu Anne, atordoada.

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— Não nos faça ir agora! Vamos espionar mais um pouco... — suplicou Stephanie. Délia calou cordialmente. — Vamos sair daqui! — insistiu uma Anne nervosa e vermelha. — Não! Fique quieta, ou seremos descobertas. — repreendeu Stephanie. — Estamos á uns cem metros, não seremos vistas. A não ser que queiramos. — disse Délia. Todas se calaram e observaram a satisfação transbordar da conversa, até que os homens marcharam até depois dos degraus, e formaram um círculo. Os dois homens estranhos entraram no centro e de repente suas imagens ficaram nebulosas e seus corpos explodiram em fumaça, que era sugada pelo centro do círculo. Tudo durou nada mais que dois segundos. — Você viu isso, Anne, você viu isso? Anne! Você viu isso? Anne! Você viu... Oh, meu deus! Anne, você viu aquilo? — boquiaberta e histérica, gritou Stephanie. — Eu não sei o que pensar... É simplesmente... Nossa! Meu deus! — perplexa, Délia procurava as palavras nas pontas de seus cabelos, perdendo-as enquanto gaguejava.

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— Eu avisei que era pra irmos. — murmurou Anne, num tom baixo de voz. — O que quer dizer com isso? Eu queria ver mais coisas! — disse Stephanie, entusiasmada. — Achei que quisesse apagar isso da sua mente, por ser muito confuso. — lembrou Anne, usando as palavras de Stephanie como seus argumentos, como uma advogada venenosa. — Bem, acho que pensei melhor. — sorriu. — De qualquer forma, acho que fui a única a sentir algo terrível pressionando meu rosto para dentro do meu crânio e afundando minhas costelas em minhas entranhas. Estou certa? — colocou três dedos na área acima dos lábios e os virou para as meninas, a fim de mostrar o sangue que escorria de seu nariz. — Acho que devíamos ter saído daqui quando ela disse. — concluiu Délia, entendendo o lado de Anne. — Bem, acho que tenho algo aqui. — cantarolou Stephanie, revirando sua bolsinha. No fim, ela tinha um pedaço de tecido de algodão, que serviu para Anne com seu nariz. Quando voltaram os olhos para a cena, tudo já havia sumido. O que deixou Délia e Stephanie totalmente desestimuladas.

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Andaram por bastante tempo. A rivalidade mortal das duas parou e deu lugar ao silêncio, quando Anne caiu em prantos lembrando-se mais uma vez de sua mãe. As palavras ríspidas trocadas entre Délia e Stephanie se tornaram palavras de consolo destinadas ao coração de Anne. Finalmente poderiam “trabalhar juntas” em algo. Por mais que sofresse muito com a perda, no luto de Anne havia algo peculiar ou a falta de algo familiar: Ela não estava totalmente de luto, ela não estava com uma depressão mórbida, ela falava e comia normalmente, mesmo que reduzidamente. De alguma forma ela podia sentir o cheiro e os movimentos de Diana por onde quer que fosse e isso ao invés de matá-la de saudades, só lhe proporcionava aconchego... Uma sensação estranha de “Ela ainda está aqui”. Talvez ainda fosse a negação. — Algumas coisas a vida leva. Mas isso não significa que o que ela levou não seja mais nosso. — sussurrou Délia ao ouvido de Anne, no meio de um abraço de lado. — Belas palavras, Collins. — admitiu Stephanie quase que beirando a ironia, mas não ousou fazê-lo naquele momento. Délia saiu do abraço e lançou um olhar desconfiadamente indagador sobre Stephanie, que não respondeu.

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— Eu não sei como é a dor de perder alguém desta forma, por isso meu respeito sempre irá em direção ao coração dessas pessoas, por mais que elas sejam... sejam... sejam assim! – apontou os cabelos ruivos cobertos de lama, de Délia. Délia bufou, mas o clima não era propício para uma discussão, então apenas desviou o olhar. — Então, Délia, é verdade que você faz magia negra? – brincou Anne, fungando e repaginando a expressão, enquanto limpava a lama negra de lápis de olhos abaixo de seus cílios inferiores. — Não. Mas minha mãe sempre diz “Você pode não controlar o fogo, mas se você fizer alguém pensar que está queimando, ela realmente queimará”. Ou seja, eu ia a fazer pensar que está azarada para ela realmente ter má sorte em tudo... É uma mentira de verdade. Ela faz o cabelo de algumas mulheres estranhas, e sempre volta falando coisas sem sentido quando passa muito tempo com elas. — respondeu sem prestar muito atenção no que falava, como se já tivesse dito muitas vezes. — Cuidado com esses boatos. É uma escola cristã. — alertou.

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— Não acredite nela, tenho certeza que vive sacrificando galinhas pretas. — gargalhou Stephanie. — Você é uma galinha, e você é preta. Deveria ter medo de mim! — retrucou arregalando os olhos e fazendo movimentos com os dedos. — — Eu tento semear a paz... — bufou. — E nada adianta. — Anne, você não tem o menor jeito com artesanato. — É botânica, sua idiota. — corrigiu Stephanie. — Que seja. — De qualquer forma, acho que quem está metida com magia aqui não sou eu. Não leio papeis em branco, não quebro vidros e nem brilho enquanto durmo. — Como? — perguntou Anne, boquiaberta. — É verdade. — admitiu Stephanie. — Você emana uma luz considerável por debaixo da pele, como se algo tivesse aceso ai dentro, enquanto dorme. — E, bem, você pareceu ficar mais afetada do que todos nos eventos inacreditáveis que tivemos até agora. — arrematou Délia, pondo um fim definitivo e concluindo que Anne não era “normal”. — Você não é normal. O que temos que descobrir é se isso é bom ou não. Anne resmungou.

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Andaram mais

alguns

metros, passaram por quatro

agrupamentos de quatro espécies diferentes de árvore, então quando já passavam das quatro da tarde e todos já estavam em suas torres, elas finalmente encontraram uma.

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Capítulo 8. As duas torres. 2 de agosto de 1952. RedShire, Durham, Inglaterra.

— Olha! — Anne apontou para cima, para a torre que também sumia dentre as nuvens cinza. — Chegamos! — celebrou Délia. — Acho que minha magia ajudou. — gargalhou, dando um murro em Délia. — Sua macumba só serve pro mal. — justificou. Correram todas, e se depararam com a Torre da Clareira. Era uma clareira bem maior do que a anterior e não haviam muitas flores,

apenas

arbustos

bem-cortados

e

caminhos

de

paralelepípedo que levavam à porta. A torre era quase igual a anterior, mas seus tijolos eram vermelhos e suas portas tinham como estampa um “C” ornamentado com florões e trombetas, além disso, os degraus não eram dez, mas sete e sua forma era

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cilíndrica. Durante todo o caminho que levava às portas, estavam presentes grandes estátuas de anjos de mármore branco, com trombetas e harpas douradas. Ao todo eram sete de cada lado, alinhados perfeitamente com as asas esticadas para trás, intercalando seus instrumentos. No jardim de grama prateada pelo céu nublado, estavam sentados os jovens que já haviam chegado. Alguns penduravam suas coisas nas asas dos anjos e outros chegaram a roubar-lhes a trombeta. Do topo da escadaria observava o mentor C, impassível. Haviam no mínimo cinquenta jovens espalhados pelo gramado, era realmente muita gente, entretanto, bem acomodados, sem risco de lotação. — Acha que faz muito tempo que eles chegaram? — Perguntou Délia debaixo da camada de terra, passando pelo meio dos anjos. — Pelo modo como estão acomodados, eu diria que sim. — respondeu Anne, pegando as duas pelos braços e arrastando-as mais rápido entre os anjos até o mentor, para receberem o tal colar “C”. — Por que estão feridos? — perguntou Délia encarando as graves feridas que já estavam sendo tratadas por enfermeiras.

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— Lembro-me do diretor falar pra termos cuidado com as criaturas da floresta, certamente demos sorte de não encontra-las e eles não. —Estão olhando feio pra você Délia. E, por isso já gostei deles. — Stephanie abaixou o rosto e riu disfarçadamente. — Sabe do que eu gosto? Eu gosto da ideia de ter a minha mão na... — Fora interrompida pela empolgação radiante de Anne. Chegaram ao topo das escadas, onde se encontrava o homem que olhava para o horizonte com medo nos olhos. — Chegamos, acho que um pouco atrasadas... Prazer, eu sou Anne Bloonwold, essa Délia Collins e aquela é Stephanie Jhonson. — apontou para as meninas, sorridente. — Desculpe, mas você não pode ficar aqui, entre rápido! — Ele olhou para os céus novamente com aflição como se visse através dele. Logo, puxou-as para dentro num movimento bruto e rápido, fechando as portas sem tocá-las, de alguma forma incomum. O quão grave sua voz era não importava, já que todo esse grave estava molhado de medo.

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— Por que não podemos ficar aqui? — perguntou Stephanie, ficando para trás enquanto o Mentor C puxava Anne para longe e Délia os seguia pelo chão de mármore negro polido. — Eu disse que ela não pode ficar aqui. — enfatizou ele, apontando para Anne. — Sem elas eu não vou a lugar algum, me solte. — gritou Anne passando por um arco gigantesco de um material desconhecido e metálico. — Que seja! Vamos rápido! Você e as duas negras. —referiuse a Stephanie, que realmente era negra e a Délia, que estava negra. Jhonson soltou uma gargalhada e correu atrás do trio. A torre era bem larga por fora, entretanto, de alguma forma, por dentro parecia ter dimensões bem maiores. O teto era muito alto, e tudo era maior que o necessário e bem ornamentado. O chão era negro e refletia até a menor mosca. Mosca? Na verdade não. O silêncio e a paz reinavam calmamente, e não havia nada se movimentando. Até o tapete era mais limpo do que a taça de cristal mais brilhante da mansão Bloonwold. Tudo era impecavelmente limpo e reluzente, e ainda intocado pelos alunos, a luminosidade era baixa e nítida e vinha de algum canto não identificado.

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Existiam muitas portas altas e escadas de todos os tipos, por todos os lados. Muitas flores, estátuas e quadros. Olhando melhor, as janelas eram a coisa mais abundante no local, mas não havia tanta luz solar por mais que as cortinas fossem translúcidas. — Por que aqui tem tantas janelas? — perguntou-se Anne, em sua mente. — Porque vocês passam a maioria do tempo na parte subterrânea da escola, então não vão ver janelas lá. Aqui serve para isso: Matar a saudade das janelas. Respirem por aqui. — respondeu ele, passando por quatro portas de madeira enormes sem dar-lhes a devida atenção, procurando a maneira mais rápida de chegar ao seu destino sem correr. — Como você... — Como você sabe, o que? — completou a frase de Anne antes que ela soltasse o final. — Para com isso, por favor! — berrou, procurando explicação nos olhos de suas amigas. —Você está bem? — perguntou-lhe Délia. — Não. — respondeu Stephanie, sorrindo maliciosamente. — Você lê minha mente? — perguntou Anne, em pensamento para testá-lo, mesmo que a ideia parecesse ridícula.

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Ele nada respondeu. Logo ela pensou outra coisa, um insulto, um dos piores. — Pare com isso Bloonwold, é deselegante! — ordenou, confirmando as suspeitas. — Não estou entendendo nada. — Nem eu. — concordou Délia, enquanto trocavam olhares de indagação. Andaram até um salão de teto mais baixo, com cores claras nas paredes e um lustre enorme no centro do teto espelhado. Tudo parecia um castelo, um sonho. A calma era ensurdecedora, a luz era reconfortante e o clima era razoavelmente frio. Não havia canto que não estivesse decorado, ou parede sem janela. Na parede contrária a porta pela qual entraram, estava uma escada que dava acesso ao subterrâneo da escola, com espaço para comportar sete pessoas no mínimo, descendo-as uma ao lado da outra. Era feita de um mármore branco mais delicado do que o do chão, os corrimãos tinham detalhes em um metal dourado e havia uma estátua de anjo esculpida em gelo de cada lado. Não pareciam querer derreter, nem pareciam ser gelo mesmo. Talvez cristal. Desceram todos pela escada, dando de cara com uma esquina que ligava dois corredores quase idênticos; seguiram pelo

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esquerdo. Era um corredor de paredes altas e cinzas, cujos cantos dos tetos estavam cheios de anjos de tamanho real, esquivando-se contra a parede e olhando todos com uma expressão que faria qualquer um se sentir péssimo. Eram de pedra, entretanto mais vivos do que muitos alunos. Seguiram. Ligados ao corredor cinza estavam algumas salas de aula. Haviam muitos corredores menores ligados ao que pareia corredor-mãe ou a avenida principal, tudo era um labirinto de beleza infinita. A calma já não se fazia presente, alunos entravam e saiam de portas, professores andavam amontoados de papeis até o pescoço, inspetores gritavam “ordem!” sem parar e por fim o ar necessitava ser puxado com mais força, para adentrar tímido nos pulmões. Todas andaram por volta de trinta minutos, no mesmo corredor enorme. Olhavam-nas como indulgentes, a culpa devia ser o cheiro de Délia. — Não posso falar muito. De agora em diante vão ser todas da Torre do Lago, é uma das melhores. — admitiu, com uma pontada de inveja e rejeição nos lábios — O Mentor L vai cuidar muito bem de vocês. Se por acaso, precisarem salvar uma de vocês três... Salvem Anne! Digamos que muita coisa depende

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dela. Sem perguntas, guardem-nas para seu novo mentor. — soltou a mão de Anne e parou de arrastá-la pelo corredor. Pararam de frente para uma escada idêntica, pensaram ter andado em círculos, até que o homem mais sombrio dos quatro que estavam lá fora apareceu no topo da mesma. Ele e o Mentor C trocaram olhares aflitos e expressões sérias, até que ele desceu graciosamente pelo centro da escada, quase pairando. — O que significa isso? — perguntou ele. Aparentemente mais alto do que o Mentor C, sua voz era menos grave, menos melódica e mais firme. Seus olhos eram de um azul profundo e esverdeado, que entrava em conflito com seus cílios e cabelos negros. — Eu não tive outra escolha. Você sabe. Procure os céus do horizonte... — respondeu-lhe com tom de desespero, irritadiço. Com um medo crescente nos olhos, no segundo degrau. — Sua covardia me enoja, mas sua coragem já me salvou. Maldita seja minha gratidão. — retrucou com desdém nos olhos. — Devemos avisar a Sarakiel o mais rápido possível. — Creio que ele já tenha sentido. — puxou o cabelo para trás, encarando Anne.

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Sem entender nada, as três ouviam atentamente a conversa a quatro passos dos dois. Nenhum outro aluno dava-os importância. — O que quer que seja, ele já sabe. E, bem, eu também. E isso significa que elas têm que saber também. — impôs-se Anne, sendo ignorada com sucesso. — Marque uma reunião com Sarakiel e todos os mentores o mais rápido possível, as coisas estão diferentes do que eu pensava. — ordenou o Mentor L, como se estivesse num cargo acima do outro homem. — Claro. — logo depois do som da última letra ser ouvido, já não se tinha mais sinais do Mentor C, como se ele tivesse evaporado sem ninguém perceber. — Sejam benvindas a terceira torre. A torre do lago. – murmurou, num tom baixo e desprovido de empolgação. Era realmente um fardo ter que aceita-las, isso era visível em sua falta de vontade de lhes apresentar o ambiente, mas o motivo era tão obscuro e misterioso quanto desconhecido. — Ganharemos colares? — perguntou Stephanie, animada. — Sim, vocês têm cinco minutos até a cerimônia de abertura. Será no auditório da nossa torre. — disse ele com mistério e pressa. Como um animal inquieto, ele sofria e se

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agitava mais a cada segundo. Além dos muros, algo chegava mais perto e isso não era bom para ele, e despertava algo forte e adormecido dentro de Anne. — Essa escada imensa dá para o coração da Torre do Lago. Lá têm todas as entradas e não é possível se perder se você for uma pessoa sã.

Capítulo 9. Líder. 2 de agosto de 1952. RedShire, Durham, Inglaterra.

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As três seguiram pela escada onde o mentor havia descido. O Mentor L, por outro lado, seguiu pelos labirintos de corredores à esquerda. Chegando ao fim da última tecla do piano de degraus, a visão era exatamente à altura das expectativas: Um grande salão redondo, um teto abobadado, arcos e escadas em todo o perímetro, paredes altas e imponentes, janelas pontiagudas, lustres imponentes e extravagantes. Estátuas de anjos por toda parte, mas nesta torre não tinham anjos com instrumentos musicais como na anterior, e sim com armas de guerra. Anjos com espadas, anjos com lanças, escudos e bandeiras vermelhas-sangue com um punho saindo d’água estavam penduradas por todos os cantos. Grupos de alunos sentados em divãs vermelhos sorriam malignamente, vasos de flores enormes antes das entradas, quadros maiores e cortinas grossas de veludo faziam tudo aquilo junto parecer um covil nobre de reis tiranos. O ar era mais gelado e de alguma forma, mais denso. Depois de digerirem toda a informação visual bombardeada por todos os ângulos, conseguiram achar uma bandeira com a ponta inferior triangular, que tremulava as letras douradas em

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seu vermelho: Auditório. Apontava para uma das escadas mais notórias de lá. Subiram e enfim chegaram ao auditório da Torre do Lago. O nome se mostrava inapropriado, pois a arquibancada íngreme, o centro cheio de areia e os calabouços em lados opostos indicavam que aquilo era nada mais nada menos que uma arena, do modo mais rústico que se possa imaginar uma. — Rápido! Sentem-se todos. — gritava um inspetor, sem dar a menor importância a quem obedecia ou não. O trio varreu a multidão de alunos a procura de três cadeiras vazias consecutivas. Missão fracassada. — Bem, aquela fileira tem cadeiras próximas e as pessoas que as dividem parecem legais o bastante para mudarem de lugar e nos deixar sentar juntas. — propôs Anne, indicando com a cabeça a mais alta fileira de cadeiras. Parecia um camarote, e ao contrário do que Anne dissera, as pessoas de lá não pareciam nem um pouco amigáveis. As três seguiram, fingindo cordialmente que não perceberam os olhares de desdém para Délia, e a hostilidade no olhar dos alunos “amigáveis” que notavam sua proximidade crescente. — Olá! Podemos sentar aqui? — sorriu Anne.

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— Claro. — disse um menino loiro, indicando a cadeira ao seu lado. — Tanto faz. — grunhiu uma morena, pegando sua bolsa, que ocupava o lugar ao seu lado. O fato de ter que suportar alguns gramas de sua própria bolsa parecia aborrecê-la. Isso fez Stephanie

lhe

mostrar

seu

melhor

sorriso

e

esbarrar

“acidentalmente” em suas pernas. Por último, ninguém quis ceder um lugar a Délia, que exalava um cheiro forte de ervas e lama. — Bem, acho que eu vou procurar outro lugar... Talvez, sei lá, hum, lá embaixo. — gaguejou, numa saia justa que lhe corou o rosto por debaixo da camada de sujeira. Anne e Délia se mostraram desconfortáveis, mas as pessoas ao seus lados inibiram suas tentativas de falar algo direcionado a Délia, e seus direitos como cidadã Inglesa suja. O clima pesava e não era nada confortável ficar ali, ainda mais com Délia sendo hostilizada daquela maneira. Já que, havia um lugar vago que ninguém a oferecera. Na verdade, estava ocupado, pelos gramas da bolsa da morena rabugenta. Por um momento, Stephanie e Anne fizeram contato visual. Ambas expressavam o mesmo pedido de socorro por expressões vazias que só elas mesmas compreendiam. O silêncio parecia ser

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forçado, e eram ditas poucas palavras num longo período de tempo. Palavras rápidas, pequenas, ao pé do ouvido. Depois de analisarem as outras fileiras mais distantes, perceberam que todos conversavam e pareciam atar novos laços de amizade aos poucos. E, depois, olhando a volta numa curta distância, ficou claro que as duas tinham se metido com os populares metidos da Torre do Lago. Eram um grupo consideravelmente grande, mas nada comparado ao número total de alunos da torre. Sete meninas quase inacreditavelmente idênticas e quatorze meninos com físicos invejáveis. Ao lado de Anne, estava um loiro que parecia ser o menos antipático dos meninos. Seus cabelos eram vívidos, assim como seus olhos azuis. Sua mandíbula era definida e quadrada, o que dava ao seu rosto uma sensação de “realeza”. Seus traços eram angulosos e pareciam ter sido medidos. A simetria de esculturas era aplicada a ele, assim como a perfeição das mesmas. Matinha o olhar longe, e os sentidos perto. Parecia ouvir tudo, sentir tudo e não ver nada. Seu cheiro era forte e bom, algo viciante como drogas e marcante como ervas usadas em chás. Parecia ser alto, tinha um corpo esguio e atlético, embora seus músculos não saltassem pelas roupas como os dos demais

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meninos. Não aparentava irritação, como todos os outros e isso era algo que deixava Anne tranquila. Stephanie por outro lado não teve a mesma sorte, nem de longe na verdade. Estava com a morena das sete clones de cabelos distintos. Seus cabelos eram tão negros quanto seus olhos, à proporção que sua pele era lisa, reluzente e branca como porcelana. Seus esforços não estavam concentrados em hostilizar Stephanie. O cabelo de Stephanie também era negro, grande e liso, entretanto o da morena era mais liso, escorrido e quase intacto. Como se nada o abalasse. E, a cada movimento de sua cabeça, a cortina negra parecia se chacoalhar excessivamente, mas voltava para o lugar como se o momento não tivesse acontecido. Sua boca pequena se retorcia com seu nariz pontudo todas as vezes em que seu olhar cruzava com o de Anne, ou Stephanie. Em contrapartida, os outros pareciam indiferentes, como se não tivessem mais notando a presença das duas inquilinas. Délia permanecia oculta em algum canto da arena lotada. Anne e Stephanie varriam as cabeças, a procura de cabelos ruivos e sujos, mas não conseguiam identificar nada que chegasse perto.

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— Silêncio, por favor! — pediu o Mentor L, do centro da arena. Inesperadamente todos acataram o pedido. — Agradeço. — pigarreou — Vou ser bem direto na explicação. O Diretor Alston é um tanto tagarela. Não farei disso algo chato como foi na abertura mais cedo. Vamos ao ponto: Todos já sabem que temos quatro torres em quatro ambientes da floresta. — ao falar, quatro alunos apareceram no centro da arena. Em seus extremos, rondando o mentor. — E, bem, existem relações entre essas torres, pois elas sustentam essa escola. Duas torres são vermelhas, e as outras duas torres são azuis. São torres irmãs. Essas duas cores nunca se misturam, ou seja, torres rivais. — logo, os alunos exibiram suas mãos pintadas. Dois com mãos vermelhas, e dois com mãos azuis. Se entreolhavam com olhares que cortavam os ventos, e no fim, cada um desferiu um tapa no rosto do paralelo, deixando-o marcado no rosto com a cor oposta a de suas mãos. — As torres vermelhas são a Torre do Lago, que é a nossa, para quem ainda não viu o lago ao nosso redor, e a Torre do Penhasco. Cada torre domina uma arte. A nossa torre é a mestra das artes de guerra, lutas, estratégias, e trabalho pesado. A nossa torre irmã, a Torre do Penhasco, é mestra em artes da floresta, trabalhos medicinais, com ervas, segredos da terra e têm uma

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forte habilidade com animais. Nossos, rivais, as irmãs azuis, são: A Torre da Clareira, especialista em artes, música e filosofia. E, a Torre da Montanha, peritos em tecnologias, raciocínio lógico, intelectuais, astuciosos e sábios. — ao longo do discurso, cada aluno, que claramente representava uma torre, mostrava seu talento. Um fazia malabarismo com espadas e mostrava seus músculos, representando a Torre do Lago. Outro, demonstrava uma reação química luminosa, representando a Torre da Montanha. A outra, tocava um violino, simbolizando a arte da Torre da Clareira. E, por fim, uma menina orientava um cachorro em suas acrobacias e gracinhas por todo lado. Ele a obedecia sem hesitar. — Bem, ao longo do ano, as irmãs estarão em conflito. E, ao final, quem tiver vencido, ganhará “A influência”, que é um certificado que deixará o vencedor a frente das outras torres em várias competições no próximo ano. Um privilégio que todas as torres querem e matariam para ter. — ao narrar, os alunos começaram a usar seus artifícios uns contra os outros. As notas do violino ficaram ensurdecedoras, o cachorro começou a morder e rosnar, as experiências químicas exalavam um gás tóxico, e o menino malabarista acertava a mira de seu arco-eflecha na cabeça dos outros.

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— Obrigado meninos. — sorriu para os alunos, que deixaram a arena acompanhados de ondas de palmas cada vez maiores. — O que vocês ainda não sabem, é que a Torre do Lago é a torre que tem mais vitórias acumuladas. Mas, há dez anos, as vitórias estão sendo intercaladas entre as irmãs azuis, e nós, já estamos quase nos esquecendo do gosto doce da vitória. Vamos aproveitar que a escola mudou de cede, e agora temos estruturas melhores. Isso vai nos favorecer. Temos que honrar nossas gerações anteriores, acreditar na nossa força e em nós mesmos. Se os caminhos da floresta os trouxeram até aqui, é porque a mãe McWaverly viu em vocês o espírito de guerreiros. Não a decepcionem. Palmas e gritos encheram a arena, como se um nocaute tivesse acontecido. Pela primeira vez, foi visível algum tipo de empolgação nos “legais” em que Anne e Stephanie estavam incomodando. Era perceptível que eram veteranos na Torre do Lago, e seus rostos afiados e competitivos não negavam sua sede por vitória. — Agora é chegada a ora mais esperada desta cerimônia: Vamos escolher o representante da Torre do Lago. Essa pessoa será

o

nosso

símbolo,

e

terá

alguns

privilégios

e

responsabilidades a mais. Depositem sua confiança e esperança

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no nosso novo capitão. Pode ser qualquer um de vocês. O destino dirá. — o silêncio se fez, e o suspense tomou conta, junto com a ansiedade e em alguns casos, medo. — Vou sortear uma poltrona, e o dono da poltrona será nosso novo capitão! Os alunos voltaram ao centro da arena, trazendo juntos uma grande bacia negra, com papéis exatamente iguais. — Bem... — colocou a mão dentro da bacia e mexeu, mexeu até finalmente retirar um. Ele encarou o papel, e resmungou: — Não... — jogou-o para trás e todos suspiraram. — É ESSE! — exclamou. — Hum... É realmente esse? — perguntou aos alunos. Todos gritaram que não, entre risos que contrastavam com a expectativa matadora. Alguns dos populares pareciam nervosos, algo que Anne achara ser impossível, pois outrora eram as pessoas mais confiantes que já havia visto no mundo, quase imortais. — É esse... — sussurrou para si, e num gesto inesperado, levantou a mão com o papel. A multidão pirou, confirmando. — Bem, aqui está o mapa do assento. Nosso herói está... Na ala B. — houve um suspirar coletivo, junto com uma maré de sussurros. Todos os populares apertaram as mãos das pessoas ao

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lado. O que soou muito desconfortável para Anne, pois o menino ao seu lado parecia querer quebrar sua mão. Embora estivesse na ala B, Anne, nem Stephanie cogitavam a possibilidade de serem as escolhidas. Por outro lado, os jovens a sua volta almejavam petrificados, com dedos cruzados. — Ala B, quadrante dois. — anunciou. — Não acredito! Allie, é onde estamos! — gritou o menino, soltando a mão de Anne, para seu alívio e eventual tristeza. — Ala B, quadrante dois, fileira três... — continuou. — Alexander, é a sua fileira! — gritou Allie, seguida dos outros populares engomadinhos. — Isso, por favor! Acento quatro, por favor, acento quatro! — sussurrava o menino. — Bem, tomara que você consiga... Parece ser muito importante pra você. — disse Anne, se dirigindo a Alexander pela primeira vez. Ele a olhou torto e abriu um sorriso nervoso. — É. Você não faz ideia. — respondeu rapidamente. — Nosso líder está na Ala B, quadrante dois, fileira três, poltrona... cinco! — urrou, ecoando pelo silêncio. — Não pode ser... — sussurrou Anne, a nova heroína da Torre do Lago.

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Alexander se desfez de sua postura ereta e recaiu sobre a poltrona, decepcionado e desestimulado, sem acreditar no quão perto passou de conseguir realizar o sonho de sua vida. E, o pior, é que nada pior do que uma menina delicada e angelical para simbolizar a força, a voracidade e a brutalidade da Torre do Lago. Àquela altura, todos vaiavam, já sabendo que com Anne como representante, seria mais um ano de derrotas. — Lá está... ela! Deem as boas vindas a nossa nova heroína! — apontou o mentor, arrancando palmas nada calorosa de todos, que com rostos de decepção, aplaudiam desejando que aquilo fosse algum tipo de brincadeira. — Venha pra cá, e fale algumas palavras! Anne, com medo, e escondendo suas lágrimas, encarou a multidão e desceu até o campo de batalha da arena, onde estava o mentor, num pequeno palco redondo. Sua cabeça doía, e as expressões que a bombardeava eram mistas e ao mesmo tempo definidas entre descontentamento e raiva. Não sabia o que dizer, até que na porta da arena, o diretor apareceu. Ninguém pareceu notar, por incrível que pareça. Anne, fez contato visual, e depois de dez segundos encarando os alunos e suas caras de poucos amigos, as palavras fluíram perfeitamente de sua boca:

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— Depositem sua confiança em mim. Nossa vitória é certa, e certifico isso com meu sangue. Darei minha alma, e até a última gota de suor por esta causa. Eles que se preparem. Não há chances contra essa nova era. Quem não estiver satisfeito com a escolha do destino, é com gosto que informo que dentre as regras e restrições da escola, “não chorar” não está entre elas. Então, sintam-se a vontade para manifestar sua tristeza em prantos, mas tenham a decência de esconderem o sorriso quando a nossa vitória for consumada. É com honra e honestidade que os liderarei. — com voz firme e postura imponente, Anne bradou com graça e maestria. Aos poucos as vaias foram cessando, e no final, Bloonwold acabara ovacionada por dois minutos de aplausos, festa e gritarias de todos os alunos. E, assim a Torre do Lago saudou a nova líder. Alexander, Allie e os outros populares deixavam a arena sem uma expressão legível, mas terrivelmente inquietos. Pareciam colocar algum plano em prática, e Anne tinha medo do que podiam fazer.

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Capítulo 10. Subordinados. 28 de setembro de 1952. RedShire, Durham, Inglaterra.

— É isso. Não há o que discutir. Só ataquem ao meu sinal. — concluiu Anne, sussurrando gritos atrás da moita. — E, vocês, vão por trás da pedra e quando começarmos a atacar, façam o combinado. Os soldados azuis atiravam pedras, e poupavam suas flechas. Por outro lado, os vermelhos, sob o comando de Anne, já tinham menos da metade das flechas disponibilizada para a prova. Quem perdesse a batalha estaria fora do baile de inverno. Na verdade,

participaria

efetivamente,

mas

apenas

como

funcionários, garçons, cozinheiros, lavadores de prato e instrumentistas para o conforto dos vencedores.

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— Allie, deixe Alexander seguir por trás das pedras e fique aqui a espera do meu comando para o ataque. — alertou Anne. — Não! Eu vou junto com ele. Já perdemos mesmo... Se conforme. — retrucou irritadiça. Alexander grunhiu, mas não olhou para trás. — Eu sou a capitã e é uma ordem que você permaneça em posição de ataque. Pegue uma flecha e fique atenta ao meu próximo comando. — vociferou, encarando-a com o máximo de sua raiva concentrada no vermelho dos olhos. — Putinha gorda, está pra nascer o dia em que acatarei ordem que saiam dessa sua boca nojenta. — cuspiu nos pés de Anne e quebrou a flecha em sua mão, ferindo a honra de capitã perante seus subordinados e prejudicando toda a equipe vermelha, desperdiçando munição. Virou-se bufando e pôs-se a correr atrás de Alexander, que cumpria as ordens. Allie e Anne não se aturavam, pois Alexander era hipoteticamente namorado de Allie, mas não dispensava passar uma tarde de domingo com Anne e trocar cantadas, flertando com a mesma. Mas também não ignorava os chamados de Garve. Isso deixava ambas as feras enfurecidas. Todos ficaram calados, enquanto Anne processava o acontecimento. Era como uma bomba relógio, e os curiosos a

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volta gostariam de presenciar o impacto da explosão. O ambiente ficou pesado, e Anne engoliu a seco, voltando os olhos para o campo de batalha. — Ataquem! — bradou.

... — “Parece que o discurso da líder vermelha, Bloonwold, não está sendo vivido por seus companheiros de torre. Hoje, na Batalha das Flechas, perderam vergonhosa e desastrosamente, assinando assim um contrato de empregadinhos emburrados para o grande baile que as irmãs azuis realizaram.” É, Anne, quando a competência está apenas nas palavras, é isso que acontece. Seja mais humilde, e talvez nossos vexames não sejam tão polêmicos e zombados. — disse o Mentor M, no centro da arena, com o jornal da escola em mãos. Após o resultado da guerra, uma espécie de tribunal de acerto de contas foi rapidamente armado. Todos da Torre do Lago se reuniram, e até alguns representantes da irmã vermelha do penhasco.

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Todos fitavam Anne com decepção e raiva, inclusive o mentor, molhado em impaciência, forçando o controle sob sua própria voz. — O jornal da escola é redigido por azuis. Nunca teremos o apoio disso. — grunhiu Anne. — Mais um motivo para sermos implacáveis e não sermos manchetes ridículas na primeira página. — gritou. — Tudo corria bem, até que a senhorita Allie Garve desobedeceu minhas ordens e abandonou seu posto. As senhoritas Puritt e Bennet a seguiu, e então eu estava desfalcada. Fora que cada uma das três quebrou pelo menos quatro flechas em ataques histéricos, e ainda atrapalharam a manobra de Coweel e os outros. — retrucou com a voz mais alta e o rosto em

chamas,

arquibancadas.

direcionando-se

aos

demais

alunos

nas

— Não é mesmo? Todos sabem que Garve

segue Coweel por todos os lugares, como um cachorro fiel, mas isso não deveria interferir em coisas desse âmbito. Todos estamos humilhados e fora do baile por culpa delas. Todos fizeram que sim com a cabeça, inclusive Alexander. — Bem, isso é verdade senhoritas? — perguntou ele, virando-se para o trio na Ala C. — É. — admitiram Bennet e Puritt.

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— Não! — urrou Allie. — Já está bem claro. — concluiu o Mentor L. — Bem, Anne, desculpe-me. Da próxima vez, elas ficaram na confecção de flechas e espadas. Campo de batalha para essas três nunca mais. E, que isso sirva de exemplo. Aqui, estamos trabalhando como um quartel, e tomem a senhorita Bloonwold como a general disso tudo. Allie ficou boquiaberta, e suas amiguinhas acéfalas igualmente. Na Torre do Lago, só os melhores iam para o campo de batalha, eles eram o símbolo do tema da torre, enquanto os nerds ficavam com trabalhos menos pesados e nos bastidores. Era possível ver o descontentamento do grupinho dos legais, que junto com Alexander, sentavam longe das três julgadas. Ao ouvir a “sentença” de Allie, Alexander levantou-se e saiu da arena. O olhar de Garve o acompanhou, esfarelando-se de tristeza, juntando forças para segurar as lágrimas de humilhação. Anne, com o ego retocado, olhava firme para a multidão, que devolvia um olhar cordial de confiança. — Já é noite. Por hoje é só. Bem, espero que estejam felizes em lavar pratos amanhã. — dispensou, com voz abatida, assim como o semblante. — E, que a vida não os abandone.

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Capítulo 11. Oh, Alexander... 29 de setembro de 1952. RedShire, Durham, Inglaterra.

— Eu não aguento! Meus reservatórios de paciência estão vazios... — bufou Anne, caindo na cama. — Pegue eles e taque um por um na cabeça de Allie Garve. — sorriu Stephanie na poltrona. — Seja inteligente! Prenda-a dentro deles. — complementou Délia.

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— Tudo bem, senhoritas conotativas. Agora, eu quero uma solução real! Não aguento mais Allie pra cá, Allie pra lá... “Oh, senhorita Allie Garve está no salão dois com o senhor Alexander Coweel. Ah, a senhorita Garve está no banheiro masculino, com o senhor Coweel. Ah, Garve? Sim! Está tomando banho com o senhor Coweel.” — zombou Anne, imitando vários dos inspetores ao serem perguntados sobre Allie. — Hum... — Interessante... — saboreou Délia, olhando para Stephanie, numa espécie de comunicação por leitura facial. — Ciúmes! — gritaram as duas juntas. — Ciúmes crônicos... — sussurrou Délia. — Belos ciúmes. — gargalhou Stephanie. — Parem! — ordenou Anne, corada, atirando-lhes um travesseiro. — Nunca reparei no Coweel. — Então quer dizer, que, você fica fitando a boca dele durante um terço do café da manhã por puro acaso? — ironizou Stephanie. — E, você parece um lobo fitando um carneirinho quando faz isso. Eu, particularmente, fico com medo. — confessou Délia. — Está tão na cara? — gemeu. — É que ele é tão gentil, tão atencioso, tão educado...

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— E tão comprometido... — cortou Délia, imitando a pose de Anne, que se assemelhava a de uma princesa suspirante. — Não, não está. — corrigiu, tirando o sorriso do rosto. — Não está explicito, mas qualquer um com metade de um cérebro percebe que ele e Allie estão juntos. — argumentou. — Bem, é verdade. E, você sabe que eu não concordo com a Délia tão fácil. — completou Stephanie. — Meninas, temos apenas quinze minutos. — alertou Délia, quebrando o assunto para tentar desmembrar a decepção no rosto de Anne. — Anne, coloque seu uniforme e vamos descer logo! — E, seus grandes seios estão me deixando com vergonha dos meus limões prematuros. — gargalhou Stephanie. — Seios... Isso a Allie não tem. Vantagem! Allie, zero. Anne, dez. — urrou. — Mas, o uniforme iguala todos os nossos corpos. Ficamos igualmente barangas nele. — lembrou Délia, apressada, com a mão na maçaneta. — Falando em uniforme... Anne, vai se vestir ou nunca mais passamos no seu quarto para acordá-la! Sabe como é terrível ter que subir todos os degraus até chegar no quarto mais alto da torre? Parece uma ironia... Princesa Vermelha.

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— Você fala como se não usasse o elevador. — sorriu Anne. — É, mas... É cansativo! — contestou Délia, sem mais argumentos para a discussão boba. O uniforme das meninas consistia numa saia cinza plissada até os joelhos, um blazer escarlate com a logomarca da escola no peito — acima das medalhas conquistadas pelo aluno — meias três quartos brancas, e uma sapatilha negra e terrivelmente brilhante. O quarto do capitão da torre ficava no último dos cinquenta e três andares. No andar abaixo, ficava a sala do mentor da torre. Os outros andares serviam como sessões da grande biblioteca que eram as torres, também serviam como salas de conversa e recreação raramente. Os quartos-padrão eram médios, acolhiam duas pessoas do mesmo sexo e eram simples, confortáveis e personalizáveis. As paredes eram creme, com rodapés de mogno polido. Acomodavam duas camas iguais e confortáveis, dois guardaroupas, duas penteadeiras, dois armários e uma mesa de trabalho. Além disso, prateleiras e plantas eram distribuídas aleatoriamente nos quartos. Eram numerados em suas portas e ficavam no último subsolo, o terceiro sub. Os dormitórios eram

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separados por sexo e por cor. O dormitório das irmãs vermelhas era ao sul, de forma que o das irmãs azul, ao norte. O aposento de Anne, em sua condição de capitã, era grande e luxuoso. Contava com um banheiro só seu, uma sala de estar, uma lareira, closet, variados tipos de mobília de alta, tapetes, empregados, entradas e saídas secretas, que davam acesso ao exterior da torre e a sala do mentor, uma cama de casal, alguns divãs e sofás, uma sacada generosa e outros detalhes desnecessários. O quarto não perdia em nada para seu antigo, na mansão Bloonwold. Era grande, luxuoso e nada acolhedor, parecia até intimidador. Anne se sentia em casa.

... A rotina na McWaverly era bem balanceada e fazia os alunos engolirem seu ritmo exaustivo sem perceberem. O corpo docente era bem vasto e sobrenaturalmente sábios em suas áreas. O café da manhã era dado de oito da manhã às nove. Nove e quinze começava a bateria de aulas, que apenas cessava ao meio dia e meio. O almoço durava até às duas da tarde. Depois, outra bateria de aulas até as cinco. De cinco às seis, um lanche da tarde opcional. Às sete horas começavam as

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atividades com a torre, como reuniões e coisas do tipo, mas eram raras, então quase sempre era tempo livre. Às oito horas era servido o jantar e depois disso os alunos estavam livres. Todos deveriam estar na cama exatamente às dez da noite, mas era impossível fazer isso numa escola tão grande, então sempre aconteciam coisas além das dez. Eram dez professores, cinco dias de aula por semana, dois professores por dia. Cada professor era responsável por somente uma matéria, Riclle comandava as segundas de manhã com história, logo depois do almoço, a insuportável Sra. Jakeins torturava-os até às seis da tarde com Matemática. Na terça, tinham inglês com a Tchrusli e ciências com a Plaisny; na quarta-feira deliciavam-se com o bobo Sr. Troover na aula de geografia e depois com a cara de doida da Sra. Twortwin em artes. Depois de quarta feira, quase todos os professores eram impassíveis. A quinta-feira era conhecida por ser alegre: O Sr. Bootein em música só vivia rindo, depois o sotaque da Sra. Leinster em francês era tão cômico quanto ruim. Logo chegava a tão esperada sexta feira, com as aulas rígidas de etiqueta com a Sra. Loreffern e depois a morte em educação física ao ar livre, com a radiante Sra. Brevelyn.

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— Não disse? Está fitando ele durante o café da manhã... Como eu disse... — sussurrou Stephanie, com um sorriso malicioso no rosto. — E, eu estou com medo... Como eu disse... — completou Délia. — Não tem como não olhar. No fundo, estou protegendo ele da Allie. Olha pra ela... Ela vai comê-lo a qualquer instante! — grunhiu. — É! Imagina se ela o come antes de você... — soltou Délia. — É... — escapou de Anne. — Não, não, não é nada disso! — gaguejou, retomando seus sentidos ao ouvir o que acabara de dizer. — Não tenho tempo pra isso! A McWaverly nos enche de coisas pra fazer, e eu que sou capitã, não posso me dar ao luxo de ter uma distração dessas. Tenho até dez horas da noite pra elaborar algo que nos leve ao baile. — Mas já perdemos. Como iríamos ao baile? — indagou Stephanie. — Talvez uma revanche ou algo do tipo. Não sei ainda, mas temos que ir ao baile. — finalizou, ao som do alarme das nove e dez, que lembrava que os alunos tinham cinco minutos para achar sua sala de aula nos vários quilômetros quadrados da escola.

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Anne se levantou e acelerou o passo em direção a porta do refeitório, mas voltou atrás ao ouvir Stephanie: — Bem, você está atolada até às dez, mas o dia ainda tem mais duas horas... — sugeriu implicitamente que Anne se encontrasse com Alexander depois do toque de recolher, seus olhos semicerraram ao passo que os de Anne se arregalaram. Voltou-se para frente e preferiu não dar uma resposta sobre aquilo, ou tampouco dar a entender que compreendeu as entrelinhas. Andou setecentos metros no corredor B, dos quatro principais, até chegar na sala vinte e sete. Isso significa que é hora da aula de história da Srta. Riclle. Senhorita Riclle: Uma das únicas professoras que ninguém sabia o primeiro nome. Uma personalidade leve, mas nada contrariável. Tinha suas opiniões formadas — muito bem formadas, por sinal —, lançava um olhar crítico em tudo e quase sempre encontrava o lado negro do que parecia ser algo perfeito. Se revelava uma grande amiga e ótima conselheira. Brincalhona em alguns momentos, rígida em outros. Era uma mulher forte. A única professora negra, e mais do que isso, tinha orgulho de suas origens. Suas aulas de história faziam com que todos entendessem o extremo passado, o presente e tivessem até alguma ideia do futuro.

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Dona de um sorriso sincero e contido, sempre dava suas aulas sentada na mesa de um jeito despojado enquanto gesticulava três vezes a cada palavra. A professora um tanto enfezada e nada simpática mais legal da escola. Não é alguém que você olhe e diga “Que doce”, mas é alguém que você conheça e pense “Que brilhante”. Ela era aparentemente jovem, embora não falasse sua idade. Seus olhos eram absolutamente enormes e seus lábios eram escuros e grossos, seus cabelos eram enrolados e terminavam antes dos ombros. — Atrasada, Bloonwold. — anunciou Riclle, sem olhar Anne, assim que soltou a maçaneta. — Na verdade não. — protestou, com voz baixa. — Mas quase. Você é uma capitã, não pode se dar o luxo de chegar trinta segundos antes. — sorriu. — Na verdade, sim, eu posso! Estou certa, só não poderia chegar trinta segundos depois. — retrucou, sentando-se. — Eu sei que você está certa. Queria ver como reage a injustiças vindas de cima. — explicou, com um olhar cordial. Todas as salas de aula eram praticamente iguais: Carteiras de madeira escura enormes, luzes penduradas acima de todos os alunos, chão coberto por carpete cinza, um quadro negro enorme cobrindo toda uma parede, uma mesa num tablado ao lado do

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quadro com coisas do professor. No fundo da sala, alguns armários de vidro, com “materiais especiais”. Perto da porta, um bebedouro metalizado e uma placa com o nome do professor. Algumas salas eram mais alegres, com aquários e flores, outras eram mais enlouquecedoras como a sala de artes com aquela explosão de cores por todos os cantos. De alguma forma, tudo na McWaverly era muito igual e simétrico, até os alunos. Em contrapartida, cada sala tinha o cheiro e a aparência de seu professor e os alunos poderiam adivinhar de olhos fechados a sala em que estavam. Anne sentou-se no lugar marcado, ao lado do menino da meleca e da Sarah dançarina. De longe, dois pedaços de merda diante da hierarquia dos alunos. Dentro dela, Anne poderia ser descrita como um irritante pé no saco, pois tinham que aguentála e respeitá-la, o que era uma tortura para os que estavam no topo. Geralmente o capitão se tornava o mais popular e o topo era seu naturalmente, mas Anne era totalmente o contrário. A aula de história voou. Logo depois, as aulas de ciências foram a mesma tortura de sempre. E, por fim, finalmente, o almoço. Ao cruzar o portal do refeitório, avistou a mesa dos populares no segundo piso. Alexander estava lá, radiante.

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O refeitório não era nada mais nada menos que um grande pátio de pedra com teto de vidro, o que quebrava a sensação de “somos minhocas sufocadas” que os alunos sentiam durante todo o resto do dia. Fora que, era bom ter alguma luz natural e saber pelo céu e não pelo relógio se está de dia ou de noite. Coisas como essas não eram valorizadas pelos alunos, até a terceira semana de aula. O chão era de pedra polida, e as paredes eram altas. Mesas de carvalho negro e mármore, bancos coletivos nada confortáveis, que forçavam os alunos a se agruparem nas mesas para vinte. A cozinha ficava ao leste da entrada, era muito limpa e aparentava ser grande. A fila nunca estava cheia, pois o trabalho era muito eficiente. Os cardápios eram variados e muito gostosos. O segundo piso era muito disputado, pois abrigava as mesas de quatro pessoas. Eram mesas confortáveis, assim como os assentos. E, também ficava mais perto do teto de vidro. Fora que o ambiente era infinitamente mais agradável, pois era menor, mais limpo e tinha flores por todos os lados. Lá sentavam os populares das irmãs vermelhas, e ninguém ousava colar a bunda em quaisquer daqueles bancos, que pareciam ser reservados.

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Anne geralmente não passava por lá. Nunca nem havia subido as escadas. Mas, depois de ver de longe Allie sendo totalmente ignorada por Alexander, algo tomou conta de seus pés e sua confiança a levou até o segundo piso, na mesa trinta e dois. — Ei, Coweel. — cumprimentou, estendendo a mão. Alexander ficou de pé, para o espanto de todos e apertou a mão, com o sorriso cordial. — Olá, Anne. — abriu um sorriso sincero e tão inesperado quando chama-la pelo primeiro nome, tão inesperado quanto o fato dele saber o nome dela. — Preciso falar com você a sós. Poderia me acompanhar? — arriscou, com o estômago flamejante e as maçãs coradas. Não hesitou, nem gaguejou, mas suas pernas tremiam. — Sobre o que, exatamente, se é que eu posso saber? — intrometeu-se Allie. — Não, você não pode saber. Acho que ouviu quando ela disse que queria falar a sós comigo, não, Garve? — retrucou ríspido. Sua face mudou de tom ao olhá-la com repulsa. O fato de ele chamar Anne pelo primeiro nome e Allie pelo último também soou estranho, já que os níveis de contato indicavam que era pra ser o contrário.

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Allie se encolheu e todos os outros populares olharam torto para Alexander, antes de saírem batendo os pés. — Ah, não precisaremos sair daqui. Que ótimo! — comentou Alexander, indicando a cadeira de frente para a sua. Anne se sentou, imaginando o quão fácil, inimaginável e surreal tudo aquilo estava sendo. Estava sentada na mesa dos populares, a sós com Alexander, depois dele ter dado um fora em Allie Garve. — Bem, eu fiz algumas estratégias para nosso próximo ataque. Quero ir ao baile, quero poder levar as irmãs vermelhas ao baile e ver as siamesas azuis limpando o nosso cuspe. Mas, para isso preciso da sua ajuda. — explicou. — Seria bom se você passasse no meu quarto, hoje, às dez. — corada, as palavras atropelaram sua respiração e saíram esganiçadas. Alexander não demonstrou surpresa, o que para Anne não poderia ser melhor. — Está me chamando para ir ao seu quarto depois do toque de recolher? — sussurrou, com um sorriso malicioso no canto dos lábios. — Ah, na verdade... — engastou gaguejando, com o rosto vermelho e as pernas dormentes. Tentava não olhá-lo nos olhos,

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por se tratar de algo muito humilhante. Para ela, seu plano havia ido por água abaixo e agora viraria piada. — Vou adorar ir! — cortou, atropelando o desastre que saia pela boca de Anne. — Posso levar lago pra comermos? — Ah, bem, se você quiser... — gaguejou novamente, entre sorrisos e hesitações. — Fechado! Te vejo hoje de noite. — piscou. Anne Gemeu. Alexander riu. Logo ela levantou, deu um tchauzinhos e desceu as escadas correndo e euforicamente ofegante. Correu até a mesa de Stephanie e Délia, que a olhavam como uma completa estranha. — Tenho um encontro romântico com Alexander Coweel depois do toque de recolher! — anunciou entre suspiros e pulinhos. Logo depois explicou tudo, todos os mínimos detalhes. — Bem, não é um encontro romântico. — resmungou Délia, desiludida. — Ele vai levar algo para comer, então sim, é! Mais do que isso... Ele sabe que é, e concordou com a ideia. — estimulou Stephanie, em contrapartida. — Bem, agora você entra nessa história: O que eu faço? — indagou Anne, de mãos atadas e completamente perdido.

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— Você não tinha um plano? — lembrou. — Meu plano é você fazer o plano. — explicou. Délia e Stephanie bufaram. — Bem, vamos começar logo com isso... — estalou os dedos, e largou o prato de lado definitivamente. — Qual a roupa mais curta que você tem?

Capítulo 12. Equívocos. 26 de setembro de 1952.

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RedShire, Durham, Inglaterra.

Uma batida se ouviu na porta. O coração de Anne pulou, e logo, ela ascendeu as velas na mesa na sacada. Olhou-se no espelho uma última vez, e pôs-se a concertar a postura, para então deixar Alexander adentrar. Ao abrir a porta, lá estava Alexander, boquiaberto e abobado, como nunca antes Anne o vira. — Olá... Anne? — gaguejou, varrendo seu corpo com os olhos. — Entre, Alexander. — encorajou, tomando-lhe os braços com a voz mais sensual possível. — Você está diferente... — hesitou, com voz mirrada. — Ah, é. Costumo ser assim sem o uniforme. — explicou, conduzindo Alexander, que parecia um zumbi, até sua cadeira na mesa iluminada à luz de velas. Anne estava com um batom horrendamente vermelho e chamativo, olho marcado e maquiagem pesada. Seu cabelo

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estava preso e deixava cair alguns cachos por sua face, num tom sensual e provocativo. Usava um vestido decotado e justo, curto na mesma medida das outras características, o que significava, que àquela altura, Anne se assemelhava a uma prostituta de luxo de paris. — Bem, não íamos fazer algo sobre... É... Estratégias de coisas assim? — mudou de assunto, a fim de fugir das garras de Anne. Mas, era muito difícil falar, já que os seios intimidadores de Anne pareciam chama-lo para mais perto. — Bem... Vamos deixar isso pra outra hora, Alex. — sorriu, colocando-se ao seu lado, tentando despertar em Coweel algo mais interessante. — Acho que poderíamos comer agora. A atmosfera que provinha de Anne era vermelha, pesada e sedutora, seduzia Alexander profundamente e parecia fazer tudo parecer perfeito. O céu estrelado, a floresta silenciosa, a meia luz agradável. Todavia, Coweel parecia quebrar todo esse clima, mas já não importava, pois Anne não estava nem aí. Serviu-lhe uma taça de champanhe e o jantar seguiu com as investidas de Anne, e os desvios de Alexander. Terminado o jantar, Anne decidiu ataca-lo com tudo, pois segundo Stephanie, “álcool vai deixá-lo na sua mão”.

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— Alexander... — sussurrou em seu ouvido. Era possível sentir os calafrios por sua espinha, e ver sua pele ficando arrepiada aos poucos. Ele, no entanto, não se mexia e evitava olhá-la. — Acho que podemos avançar para o que estamos querendo desde que você chegou. — sorriu junto a seu pescoço, puxando sua mandíbula para si com a mão. — Não entendo. — cortou, em sussurro de total desconforto. — Me beije, Alexander. — ordenou Anne, passando a perna por cima de Alexander, ficando em seu colo e inclinando-se mais e mais, tentando alcançar o rosto do mesmo, que fugia de sua boca vermelha. De repente, a cadeira tomba para trás e os dois caem. Alexander cria coragem e levanta sem nem olhá-la, pondo-se para fora do quarto enquanto pedia desculpas aceleradas. Parecia um ratinho assustado, com medo, enquanto Anne permanecia no chão. Um vento gelado soprou e apagou as velas, um cobertor de nuvens tampou as estrelas e a lua, e o que era um clima de pura paixão e atração, se tornou algo melancólico. Olhando a sua volta, e fitando o próprio rosto com desdém no espelho, Anne se sentia uma idiota e mil coisas passavam por sua cabeça. Deitou-

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se no divã com o vestido aberto, pois a apertava, e era bom respirar, e a maquiagem porrada pelas lágrimas. Estava na cara que havia feito uma babaquice, e nem queria imaginar o que Alexander estava pensando uma hora daquelas. Não culpava Stephanie por ter se passado por uma louca, mas sim a si mesma por ter deixado um amor platônico virar algo doentio a esse ponto. Entretanto, Anne pôde passar a noite chorando, mas não se permitiria passar a madrugada como uma vadia bêbada e destruída. Tomou um banho, e pôs-se a planejar. Agora, seu foco seria única e exclusivamente o sucesso das irmãs vermelhas. E, Alexander, que antes atrapalhava, não seria um problema. Sua determinação era avassaladora, seu espírito de luta estava a flor da pele, assim como sua raiva, que era o combustível de toda sua genialidade e perspicácia. O plano era tecido com grande exatidão e não havia como dar errado.

Capítulo 13.

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Virada. 27 de setembro de 1952. RedShire, Durham, Inglaterra.

— Líder vermelha se aproximando! Chamem o capitão! — gritou um aluno, de uma das janelas baixas de guarita da Torre da Clareira. Após Anne e sua delegação esperarem por volta de vinte minutos, as portas da irmã azul se abriram e de lá saiu o capitão azul e sua delegação. A delegação estava sempre junto com o capitão da torre, e podia ter no máximo sete integrantes. Para ir a uma torre de outra cor, em ação oficial, o capitão tinha que ir acompanhado de sua delegação. Dois deles levam a bandeira e devem marchar pela floresta em formação de triângulo, com disciplina e um uniforme especial. Faziam parte da delegação de Anne: Stephanie e Délia — obviamente —, os gêmeos Klein — Pedro

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e Gaspar —, e a pequena Lisie Holliway. Todos escolhidos a dedo por Anne. Os gêmeos eram peritos em estratégias, e muito eficientes exatos. Lisie Holliway era uma diplomata nata e sabia muito bem usar as palavras, além de ser uma espiã de primeira. Tudo que se tinha para descobrir Lisie sabia, tudo que se tinha para esconder Lisie escondia. Nada estava escondido de seus pequenos olhos castanhos. Stephanie e Délia serviam como apoio moral e emocional, além de serem ótimas em colocar a mão na massa e fazer as ordens de Anne serem executadas. O capitão azul a frente era alto, branco, pálido e tinha os cabelos cheios, enrolados e negros. Olhos mel, corpo magro, alto e hostil. Atrás dele, três meninas e quatro meninos replicavam sua expressão mortífera. — Diga o que quer logo, pois o cheiro de derrota não combina com a nossa torre. — rosnou o capitão. — Revanche! — gritou o grupo vermelho. Os azuis gargalharam, e antes que um dos embaixadores azuis pudesse falar, Anne tomou a frente: — Bem, tivemos um contratempo em nosso ofício e vocês nos venceram em nossa especialidade. Não é surpresa. — palavras afiadas saltavam para fora de sua boca sem tropeçar.

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Astuta e esperta, cada sílaba continha o veneno para mata-los por sua ganância. — E agora gostaríamos de uma revanche. Mas, achamos justo que a batalha seja em seu ofício, então lutemos com arte. — Curioso. Mas, já vencemos. Não há como voltar atrás. Se, por acaso, e claro que isso não vai acontecer, vocês vencessem, ainda seríamos nós a ir ao baile. São as regras da escola. — respondeu o capitão. — Na verdade, não. — puxou um papel para sua frente. — Este documento diz que se vencermos o baile é nosso. Ele só precisa de sua assinatura e do carimbo de seu mentor. Vamos lá... Talvez por diversão... Você sabe que somos brutamontes e só sabemos bater, então nos dê uma chance de sermos gentis e sensíveis como vocês pelo menos uma vez. — Isso só pode ser uma piada! — caçoou, incrédulo. — Ah, já esperávamos isso. Coragem é uma característica vermelha... Confiança em seu próprio ofício também parece ser. — desdenhou Lisie, fingindo decepção, como o combinado. — Só nos ajude a escolher a manchete da primeira edição no nosso novo jornal, “A covardia da clareira azul” ou “Torre da Clareira sente o chão tremer de medo e recusa proposta vermelha”?

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— Acho que poderia ser “Torre do Lago é derrotada pela segunda vez consecutiva pela grande irmã azul.”. Sim, traga-me o papel. Aceitaremos! — urrou com o rosto em chamas. — Ótimo! Vejo vocês a noite, e por favor, sejam piedosos conosco. — sorriu Anne, acenando com o rosto levantado escorrendo sarcasmo. Anne e Lisie se entreolharam contendo um sorriso malicioso, enquanto Stephanie levava o documento para a delegação azul. O peixe mordeu a isca, exatamente como previsto! Metade do plano estava concluído. A outra metade ficou por conta de Lisie. Anne, enquanto bolava seu plano, lembrou-se de que uma de suas ajudantes, Lisie Holliway, sabia tudo de todos. E, isso era um grande trunfo em tudo. Os jurados da batalha de artes seriam o Sr. Troover e a Srta. Loreffern e por fim, o diretor Alston. Mas, o que assegurava a vitória vermelha, era a chantagem encima dos dois professores, que tinham um caso. Lisie sabia detalhes sortidos desse caso e tinha provas, como cartas trocadas, interceptadas por ela e coisas do tipo, além dos inúmeros flagras. Assim, fez os dois aceitarem a proposta sem hesitar, e prometeram dar seu voto à Torre do Lago, por mais que a superioridade artística dos azuis fosse evidente.

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... — Boa sorte, Anne! — sussurrou Délia, abraçando-lhe. — Está na sua hora, arrase! — avisou Délia, puxando-a de Stephanie e jogando-a para fora das cortinas que a separavam do auditório da escola, onde estavam todos os alunos da escola e também os professores, e os três jurados. Ao entrar no palco cambaleando, Anne fora cegada pela luz que o piano de calda refletia. Recompôs o rosto e pôs se a pairar com seu vestido esvoaçante pelo palco de madeira. A multidão era incontável, os jurados pareciam ansiosos e Alexander, em especial, babava ao ver Anne tão bonita e atraente, e não como um projeto de prostituta atropelada. Seu vestido era composto por recortes e retalhos de tecidos translúcidos de vários tons de rosa. Eram sobrepostos aos montes, até sua pele ser oculta por completo. A cada passo de Anne, as camadas reagiam com um movimento angelical, como se se juntasse ao ar e perfumasse os olhos, rebolando beleza e magia iluminado pelos canhões de luz. Na parte do busto era rendado, encrustado com pérolas negras. Seu cabelo estava solto e cheio, rebelde e cacheado para todos os lados.

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Com os pés descalços, andou lentamente até o piano e respirou fundo encarando a plateia antes de começar. Esperou os ruídos sessarem e tentou se concentrar em sua última aula de piano, mas o que inundava sua cabeça eram memórias de quatro anos de idade, quando tocava com a mãe. Isso a mantinha em um estado de anestesia e não nervosismo. A apresentação corria bem, seus dedos corriam pelas teclas sem hesitar, a confiança que a inundava era maior a cada segundo. Até que, suas memórias se tornaram tão forte, que se juntaram com as notas doces da melodia da música, formando uma nova canção melancólica, tendo como clave as lágrimas que saltavam de seu rosto. No ápice da música o piano começou a aquecer, e em pouco tempo as teclas flamejavam, logo, Anne não conseguia mais tocá-lo. E, quando abriu os olhos novamente, a melodia seguia mesmo sem suas mão pressionarem quaisquer uma das teclas. A música ficava cada vez mais rápida ao passo que o piano aquecia, até que uma chama brota de sua calda e começa a lambê-lo por completo, sem queimá-lo. Anne fecha os olhos novamente e se concentra na música, até que seu corpo aquece e sua mão é atraída para o piano, e logo são como um só. Tomada pela energia da melodia tempestuosa e totalmente nova, ela se

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derrama na música e em suas lembranças, no êxtase da sensação de que algo fluía de seu corpo e tomava todo o palco, que a essa altura já estava ornamentado com chamas em toda sua extensão. Num estrondo, gotas de água começam a cair sobre o palco, e logo uma chuva se instala por sobre a cabeça de Anne e sobre o piano, apagando toda a chama, a pequena tempestade vence sobre todo o fogo no piano, no palco e em Anne. O silêncio deixado pela última nota da música é quebrado com o som dos passos de Anne, que andava com dificuldade pelo palco, pois seu grande vestido com sua enorme calda estava molhado, e grudado sensual e poeticamente em seu corpo. Se dirigiu ao limite do palco e, quando já não podia mais andar, agradeceu o público com uma reverência, curvando-se. Ao levantar, o som das palmas e a imagem de todos de pé arrancou um sorriso tímido de seu rosto. Logo, o Mentor L entrou no palco com uma toalha e a levou para o camarim, quase arrastada. A luz que havia deixado o auditório durante a chuva voltou aos poucos, lâmpada por lâmpada. Para os alunos boquiabertos, que não paravam de aplaudir mesmo com o palco já vazio, aquilo só poderia ter sido uma vertigem. De longe, era o maior espetáculo solo que a McWaverly já havia presenciado.

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Capítulo 14. Sentimentos mágicos. 27 de setembro de 1952. RedShire, Durham, Inglaterra.

— Ei, você está me machucando! — grunhiu Anne. O mentor não deu ouvidos e continuou arrastando-a pelo corredor. — Longe... — murmurou irritado. Num estalar de dedos, o chão desapareceu do caminho num feixe de luz explosivo, e no momento seguinte Anne estava sentada na cadeira de maquiagem no camarim, enquanto o Mentor L a olhava sério. — Como viemos parar aqui? — questionou tonta, piscando compulsivamente,

para

tentar

acontecendo.

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entender

o

que

estava


— Sem perguntas, garota! Quem fala aqui sou eu. — trovejou, irritado. — Você deve saber o motivo de estar aqui. Mas, vou me dar ao ridículo trabalho de perguntar: Como vocês fez aquilo? — berrou, inclinando-se para ela em sua cadeira. Anne se encolhia a cada palavra, e arrastava a cadeira para trás a cada passo que ele dava sem sua direção. O Mentor L nunca parecera tão ameaçador e descontrolado, ao passo que Anne nunca tivera tanto medo de um homem. — Eu não sei... — gaguejou, com lágrimas nos olhos. — Claro que você sabe! Pra fazer algo tão... — berrou, ameaçador, em tom acusador, enquanto colocava o dedo da na cara de Anne. — Você sabe muito bem o que você fez! Você deve ter treinado, quem te ensinou? — Eu não faço ideia do que você está falando! Eu juro! — gritou, levantando-se com raiva da cadeira. — Não levante a sua voz para mim, bruxinha ridícula! — berrou com o rosto em chamas, ao passo que estendeu sua mão na direção de Anne, fazendo-a cair na cadeira com uma força sobrenatural. Cordas saíram do braço da cadeira e a amarraram sentada. Anne gritou e esperneou, mas as cordas entraram entre seus dentes, reduzindo seus esforços a gemidos abafados.

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— Eu vou falar uma vez só: Não estamos de brincadeira aqui. Você pode ter esquecido, mas estou aqui para lembrar que você está aqui esperando para morrer. Só isso. Cumpra o seu papel sem alarde, pois a nossa vida continua depois que você morrer. — intimidador e medonho, sua face era obscura e pesada, assim como a mensagem que trazia. Anne não sentia os calafrios de uma conversa sobre a profecia a um bom tempo, e havia até mesmo se esquecido sobre isso, ou preferiu esquecer. Mas, agora, percebeu que não era algo ignorável, e teve a certeza que não sabia nem a metade sobre o que estava sentenciada a fazer. — Não vou tolerar ameaças cínicas como as de hoje no palco. Sei muito bem que quer intimidar todos os anjos que sabem da profecia, como se você pudesse pará-la com seu poder. Mas você não pode. Sua avó morreu por isso. Sua mãe morreu por isso. Você morrerá por isso. Não há como fugir. — continuou, andando em círculos e gesticulando. — Não dê seu sangue pela torre. Eles querem mesmo é que você morra para ser substituída. Lembre-se do seu objetivo. — sua voz foi se acalmando e abaixando gradativamente, até virar um sussurro doce ao tirar as cordas da boca de Anne.

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— E, se eu não cumprir? — perguntou maliciosa e ameaçadora. — Além de viver num mundo horrível, você vai poder assistir de camarote a morte de Edward Stocke, Délia Collins, Stephanie Jhonson e... — fez uma pausa, com um meio sorriso amarelo e ambíguo. — Alexander Cowell. Anne engoliu a seco e prendeu uma lágrima. Estava presa e sem escolha. Mesmo que o mundo não afundasse no caos e na desordem, ela não aguentaria mais perdas em seu próprio mundo. Entre tantas outras alternativas, decidiu blefar e arriscar. Tentou revirar dentro de si a procura de emoções fortes e levá-las a seu ápice. Concentrou as energias no Mentor L e em suas próprias mãos. Não sabia o que queria, mas esperava que algo mágico e inexplicável acontecesse. Não estava dando certo. Durante todo o discurso do mentor, Anne se concentrou em tentar explodir alguma coisa, mas simplesmente não funcionou. Mas, ao inesperadamente receber um tapa na cara, algo flamejante ascendeu em seus olhos. — Presta atenção em mim enquanto eu falo, porra! — berrou, ao estapeá-la. O rosto de Anne abruptamente com a força do golpe. Com isso, abaixou a cabeça e se concentrou, deixando fluir sua fúria

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por meios que não sabia bem onde iam parar, tampouco se iam parar. As cordas a sua volta se desfiaram num pequeno feixe de luz rocha, e com um movimento de mãos e dedos ao ar Anne jogou o mentor na parede. A luz no camarim sumira, e os únicos focos luminosos presentes na escuridão eram os olhos de Anne, seu cabelo cintilando ao pairar no ar e as lâmpadas que oscilavam piscando aleatoriamente com menos da metade de sua potência. — Eu sou a guardiã dos sete véus, a escolhida para morrer pelo equilíbrio. Isso significa que seus insultos não vão ser tolerados e sua língua não será poupada. Curve-se diante da salvadora suprema, ou abrace sua morte. — trovejou, abalando as paredes. Sua voz soava mais encorpada e cheia, como se mais de uma voz saísse de sua boca. Era quase ensurdecedora de tão aguda e grave ao mesmo tempo. Seus cabelos e pele brilhavam como se uma chama violeta estivesse acessa em cada célula. Anne flutuava como se não houvesse gravidade, e estava parada perfeitamente, como se o tempo estivesse congelado. O Mentor L permanecia assustado, surpreso e colado na parede. Sua boca não abria, seus membros não se mexiam e a dor pungente em todos os seus ossos o deixava entre a lucidez e

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um desmaio. Anne, impiedosa, aumentava a dose de agonia a cada segundo, observando o mentor agonizar pelas lågrimas acumuladas em seus olhos. Depois de longos segundos estatelados no ambiente sobrenatural, Anne perdeu o controle do que quer que fosse aquilo e caiu no chão sem forças, assim como o mentor.

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Capítulo 15. Rédeas. 3 de outubro de 1952. RedShire, Durham, Inglaterra.

— Ela acordou! — avisou Stephanie, esmurrando o ombro de Délia, que dormia. — Meu corpo dói. — gemeu, desgrudando as pálpebras com dificuldade. — Levei uma surra? — indagou, com voz fraca. — Não sabemos. Você foi encontrada desmaiada no camarim. — explicou Délia, acariciando seu cabelo.

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— Bem... Hoje já é sexta-feira. E, preciso atualizá-la de tudo. — interrompeu Stephanie, entrando em seu papel de ministra azul. — Conte-me exatamente tudo. — ordenou Anne, sentando-se na maca. — Bem, vencemos o duelo artístico, com a sua performance, no mínimo curiosa. Vencemos também mais duas revanches ao longo da semana, e os preparativos do baile seguem no comando de Lisie, que por sinal, é ótima com isso. — informou, lendo o bloquinho em mãos. — O Mentor L está doente e por isso se ausentou, assim como você. Isso significa que a Torre do Lago tem estado um caos, e nunca mais tivemos reuniões. — Sua professora de administração mandou esses trabalhos pra você. — disse, entregando-lhe uma pasta pesada. — É tão injusto que só eu tenha essa matéria. — murmurou Anne. — Não, não é. — discordou. — Pode até ser, mas eu não preciso de mais uma aula. — Bem, avise aos professores que hoje eu vou tirar o dia de descanso e que amanhã estarei de volta. — bufou, recaindo sobre a maca.

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— Eu sinto inveja do quão livre você é. Você não tem horários... — queixou-se Délia. — Eu tenho quatro aulas a mais do que todos vocês: Administração, filosofia de liderança, política e estratégias. Tenho responsabilidades exorbitantes e sou cobrada o tempo todo, e culpada por tudo. Não sou livre. Apenas posso me livrar de algumas coisas por estar presa a outras. — explicou, com um sorriso de cansaço, enquanto fechava os olhos lentamente. — Mas, você tem um banheiro no seu quarto, e parece que é da família real, tanto você, quanto o banheiro. Sinto que a qualquer momento, o Rei George vai entrar por aquela porta pra ver como você está. — Bem, agora vamos ao que realmente interessa: O que fez você vir parar aqui? E, está rolando um boato que você e a repentina “doença” do Mentor L tem algo a ver. Realmente é algo estranho. Ele saiu te arrastando palco afora, e depois de horas sumidos, os dois estão em condições deploráveis. — argumentou Délia. — Eu não me sinto em condições de responder nada agora. Mas, acreditem ou não, eu acho que ele me prendeu numa cadeira com cordas vivas. E, depois o joguei na parede com magia. — contou, fazendo um grande esforço para se lembrar.

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— Você só pode estar de brincadeira. — grunhiu Stephanie, boquiaberta. — Bem, não é o que essas marcas dizem. — deslizou a camisola até o ombro, revelando marcas rochas e cortes de cordas. Stephanie e Délia saltaram e se entreolharam, pasmas e geladas. — Não é possível. — sussurrou Délia, para si mesma. — Bem, está tudo muito vago na minha mente, mas uma coisa é certa: Eu tenho algo especial, e vou aperfeiçoar isso. Justamente, porque eles não querem que eu faça isso. Eu só preciso de respostas e fontes. — disse determinada. — Eu não consigo digerir isso tudo agora. — comentou Délia, boquiaberta. — Nem eu, mas temos que ir agora, senão um certo professor vai nos digerir. — interrompeu Stephanie, despedindo-se com um abraço. — Até mais. Temos aula agora, e estamos com fome, já que gastamos nosso café da manhã aqui com você, como o resto de nossos tempos livres na semana toda. — Meninas, vocês são muito doces. Não sei se mereço. — acenou, enquanto elas partiam.

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Anne permaneceu deitada até o almoço, até decidir que era a hora de tomar seu lugar como a menina da profecia e começar a exigir algumas coisas para seus últimos meses de vida. Passou pelo quarto, e ao olhar o guarda-roupas, decidiu que não iria mais suar o uniforme cafona da escola. Colocou um vestido rodado negro até a canela, com rendas e flores brancas. Prendeu o cabelo num rabo de cavalo alto, passando um laço vermelho por ele, assim como seu batom. Determinada e destemida, todos a olhavam com um misto de admiração, medo e estranheza no rosto, enquanto a explosão da colisão contínua entre seus saltos e o chão polido anunciava sua entrada triunfal com antecedência, pompa e louvor. Com todos os olhos grudados em si, Anne cruzou o refeitório com postura e classe, desfilando como uma assassina, até entrar na cozinha sem ser impedida — proeza essa que nem um aluno realizou antes. — Licença, eu poderia saber onde os mentores têm sua refeição? — perguntou sorridente, no meio da cozinha, atraindo todos os olhares e expressões abobadas para si. — Menina, saia já da minha cozinha! — gritou o chef barrigudo, com o rosto em chamas, mexendo sua grande pochete de carne e gordura em direção à Anne.

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— Você não está me entendendo... — insistiu, desviando de suas mãos, acalmando a voz antes de explodir na próxima frase. — Eu preciso saber onde estão os mentores! — exigiu, impondo a voz. — Você precisa sair da minha cozinha antes que seja expulsa dessa escola e ainda afunde sua torre! Saia já daqui! E, trate de colocar um uniforme! — berrou, pegando em seu braço e arrastando-a para fora. — Escute-me seu porco gordo! Quem fala aqui não é você. Sou eu! Eu sou a última Guardiã dos Sete Véus, e espero que você me respeite, caso contrário, espero que goste de sopa de meteoros com pitadas de catástrofes. — trovejou, estapeando seu rosto e descarregando um pouco de energia em suas têmporas. Anne, havia tentado praticar magia, usando suas emoções a seu favor. E, também, tentando coisas menores e mais controláveis. Tudo sem grandes êxitos, mas ao menos alguma evolução aconteceu. — Leve-me até eles, ou frito seus miolos. — rosnou, por fim, enquanto o homem se recompunha do choque. Todos na cozinha se entreolharam, e o chefe levantou do chão com vergonha e raiva, retorcendo o rosto de dor.

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— Eles fazem suas refeições na Torre da Administração... — pigarreou, falando baixo e com dificuldade. Anne tossiu e levantou as sobrancelhas. — Senhora. — finalizou. — Muito obrigada! — sorriu acenando com a cabeça, enquanto saia do refeitório feito uma borboleta. Todo o caminho até a Torre da Administração, ou Quinta Torre, foi assistido por olhares curiosos, de professores e alunos, que não ousavam dirigi-la a palavra, ou até mesmo um olhar muito diretor. A Torre da Administração era a mais espetacular. Era impossível não se comover com sua beleza e presença avassaladora. Entretanto, não tinha sentinelas ou vigias externos. O portão estava sempre fechado e ninguém sabia o que tinha lá dentro. Anne esperou a floresta se calar, e quando a brisa não mais soprava, gritou com os pulmões: — Sarakiel Alston! Eu exijo sua presença! — com as mãos na cintura, os pés afastados e a postura ereta, Anne esbanjava autoridade.

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As folhas reverberaram suas palavras e pareceram espalhá-las por toda a floresta, e entrega-las ao vento, para que chegasse aos ouvidos do Diretor Alston. Um longo silêncio se ouviu, os céus escureceram e num forte clarão repentino, acompanhado de um ribombo ensurdecedor, caíram o diretor e os quatro mentores do topo da torre, com suas asas abertas. A luz que emanava deles refletia nas águas e em tudo que tivesse cor, talvez até no ar. Os cinco seres brilhavam mais que o sol, e a energia vinda deles deixava os sentidos embargados em êxtase. O brilho foi se apagando aos poucos e, por fim, as asas perderem opacidade até se tornarem ocultas. Anne permaneceu imóvel em seu lugar, mesmo com a graça e a ventania dos vários pares de asas. — Fui chamado. — anunciou. — Sim! — retrucou. — Na verdade evocado. — O que quer, menina? — rosnou o Mentor L. — Temos muito o que conversar... — começou. — Acho melhor nos sentarmos. Eu, você e o Mentor L. — “Você”? — repetiu. — Sim, você. — reforçou, dando ênfase à falta de respeito na palavra.

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— Bem, vamos conversar... — sugeriu o Mentor L, num gesto abrupto e inesperado, pegando Anne pela cintura e alçando voo no mesmo segundo, em direção ao topo da torre. Anne gritava, enquanto era jogada de um mentor para outro, sem nenhuma segurança. Subiam rapidamente, como se na velocidade do som, ao mesmo tempo que brincavam de pingpong com o corpo de Anne nas alturas. Ao chegarem no topo, o que havia era um conjunto harmonioso de pilastras, tecidos e metais preciosos por todas as partes. Como uma imitação bem-sucedida de um paraíso grecoromano. Colocaram-na sentada numa almofada três vezes maior que seu corpo, ligada a um círculo de semelhantes de outras cores. Todos planaram e aterrissaram graciosamente numa almofada do círculo. O ambiente era de paz, e por todo lado havia luxo e glória. Anne permaneceu hipnotizada por alguns minutos, mas quando a perguntaram sobre o assunto, voltou à postura anterior. A cobertura da torre era como um terraço decagonal. O piso era de porcelana e as bancadas que limitavam o terraço, de mármore, com cantos revestidos de metais como ouro branco e ouro vermelho.

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As dez quinas de mármore das muretas sustentavam mastros bronze, com tecidos brancos quase translúcidos que se moviam conforme a brisa, e se interligavam, cercando o ambiente, como paredes. Por toda a extensão da cobertura, haviam divãs, grandes almofadas, fontes de água, plantas, frutas, flores e todo o tipo de luxo que se pode imaginar num paraíso. A claridade e o frescor estavam em tudo, o ambiente poderia abrigar deuses em guerra e ainda assim acalmar seus ânimos. Pilastras e mezaninos também tinham sua atenção e completavam o que parecia ser um spa. — Chega de brincadeirinhas! — vociferou. — Tenho perguntas, e exijo que sejam respondidas. Pois, se vou morrer por vocês, o mínimo que mereço é respeito e sinceridade. — Você é um tanto atrevida pra uma menininha dessa idade, não? — zombou um dos mentores. — Minhas perguntas não são direcionadas à você. Cale-se. — cortou, arrancando suspiros de surpresa de todo o círculo. — Agora, eu necessito de respostas. Ele — apontou para o Mentor L — me chamou de “bruxinha”. Eu sou uma bruxa? Bem, já tenho plena certeza de meus poderes sobrenaturais. Mas, quero uma resposta definitiva.

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— É. Bem, vimos que a mistura de anjos e humanos origina bruxos. — respondeu Sarakiel, com pesar. — E, existem mais pessoas como eu? Todos os mentores se entreolharam, e Sarakiel saiu na frente: — Sim. Existem. São numerosos. — admitiu, torcendo a testa, como se não soubesse que estava fazendo certo. — Então, por que só eu faço o sacrifício? — indagou, indignada. — Pois sua linhagem é... a primeira. É como se seus ancestrais fossem os primeiros bruxos. E, por isso o sacrifícil da sua família é necessário. É simbólico. — justificou. — O que eram aquelas coisas no trem? — referiu-se ao ataque de coisas estranhas em seu vagão. — Manifestações dos mercenários. Assim como nós almejamos o cumprimento da profecia, outros querem que isso não se cumpra de maneira alguma. E, por isso, eles tentam matala. — explicou, gesticulando. — Temos protegido você. E, mas do que nunca, agora. Muitas pessoas querem mata-la agora que a profecia está quase concluída. — Perdi a conta de quantas brigas entrei pra salvar a sua pele. — rosnou o Mentor L.

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— E que continue sendo assim, já que salvar a minha pele significa salvar a pele do mundo. — retalhou. — Bem, conte-me como tudo acontecerá. — Ao final do tempo, você será sacrificada na presença da A Ordem dos Anjos. A profecia estará consumada ao final do ritual. O ritual é cheio de protocolos, então treinaremos isso com você ainda. — informou o Mentor C. — Quais poderes eu tenho, e quais vocês têm? — Você precisa de feitiços, que são como fórmulas prédefinidas para suas magias acontecerem, são palavras... Apenas algumas magias acontecem sem os feitiços, mas são esses fiascos espontâneos que você anda aprontando. Já, nós, realizamos tudo através de nossa vontade e glória, que está conectada ao mundo e toda a criação. — gabou-se. — Mas, sabemos que, digamos que, a minha magia é mais forte que a de vocês. Certo? — supôs. — Errado. Somos de patentes muito altas em nossa hierarquia. Não somos apenas anjos. Você não faz ideia do que somos capazes. — gargalhou Sarakiel, afrontando Anne com olhares de desdém.

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— Bem, o Mentor L não parecia capaz de muita coisa colado na parede e gemendo de dor sob o meu controle. — retrucou, revirando os olhos com um sorriso fugindo pelo canto da boca. Houve um silêncio desconfortável. — Bem, gostaria de anunciar que... Eu não vou mais usar uniformes, e que eu e minha delegação teremos privilégios. Isso não é um pedido. Ah, quais são os nomes de vocês? — Eu sou Sarakiel, ele é Metratron, ele é... — começou o diretor. — Não, os outros não importam. “Mentor L” é melhor... Metratron... Nossa, que nome horrendo. Pior que isso só Sarakiel. — cuspiu as palavras com desdém. — Você já terminou? — indagou o Mentor L, ou, Metratron. — Ah, claro. — respondeu com a voz embargada, ao comer uma uva. — Só... Quem eram aqueles homens esquisitos que desapareceram do nada? Eles saíram de dentro da torre... Sarakiel pareceu assustado e fez um sinal com a cabeça para Metratron, que num pulo, puxou Anne pela cintura e mergulhou em queda livre. Metratron caiu em pé, no mesmo lugar de onde tinha “roubado” Anne. Olhou-a de cima a abaixo e abriu as asas para subir de volta ao topo da torre, mas voltou atrás:

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— Não precisa ser assim. Vai gastar o pouco tempo de vida que tem com ódio? — estendeu a mão. — As pessoas fazem isso o tempo todo, só não percebem. — recusou o aperto e deu de costas. Era possível sentir o vento de suas asas, mas Anne não olhou.

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Capítulo 16. Proteção. 3 de outubro de 1952. RedShire, Durham, Inglaterra.

— Juntem-se aqui, fofinhos! — acenou a Srta. Brevelyn, de cima de uma pedra enorme, perto das árvores já se preparando para serem coloridas pelo outono. — Estão todos aqui? Espero que sim. — Anne não está! — gritou uma “Maria ninguém” sem importância. — Ela deve estar quebrando vidros a grito, ou fazendo chover dentro de alguma sala. — complementou outro “Zé ninguém”. — Alguns boatos dizem que ela deu a alma ao

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demônio e em troca, ele faz o que ela pede. E, que está renovando seu pacto, por isso está ausente. — Anne ainda está se recuperando com o acidente. Pra quem ainda não sabe, ela escorregou no camarim. E, seria ótimo se parassem de falar besteiras, feito grandes imbecis. — explicou, lançando um olhar frio para os dois, ao enfatizar “imbecis”. — Ruth e James, para a informação de vocês, andei conversando com o diabo sobre vocês. Ele mandou eu dar veneno de rato. Mas acho que não vai funcionar, pois, embora tenham hilária semelhança com tal animal, são piores, mais sujos e mais asquerosos do que o mesmo. — Anne projetava a voz como sua mãe nas árias italianas. Soprano, com certeza. Ela saia por trás das árvores, sendo ouvida por todos. E, claro, Délia e Stephanie a seguiam. Alguns bateram palmas com a volta de Anne, outros até foram cumprimenta-la e mostraram preocupação. Ela não era tão odiada quanto pensava. No caminho, contara tudo a Délia e a Stephanie. Não gostava de ter segredos com elas. — Chega! Já que se amam tanto, vão fazer a próxima prova juntos. — ela não levantou a voz no resto da frase, o que lhe deu menos créditos no sermão.

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— Prefiro engolir mil coroas de espinhos. — murmurou James, um religioso incorrigível. — Eu adoraria ver. — sibilou Stephanie. James e Ruth, ninguém sabia muito sobre eles, embora fossem os nerds mais odiados da escola, ou pelo menos do oitavo ano. Ruth era uma pescoçuda sem graça, seus cabelos eram crespos e usava uns óculos-fundo-de-garrafa, com armação rosa. James era um gordinho rosa, com os cabelos quase brancos de tão loiros. Seus comentários eram sempre baseados nas palavras de Ruth. Media bem menos do que ela, e também bem menos do que Anne. Era famoso por ter acesso total aos arquivos da escola, vende gabaritos de provas e coisas do tipo nos banheiros. Os boatos dizem que eles namoram, mas ninguém consegue imaginar coisas tão repugnantes juntas. — Hoje terão duas tarefas: Duelo de corpos e traga-me a bandeira. Vamos começar pelo duelo... Vou sortear os nomes. — anunciou a professora, logo, pegou uma sacola preta de tecido que estava pendurada num galho, e sorteou o primeiro: — Lucas Sandervarro! — todos de seu grupinho aplaudiram e fizeram um mini carnaval, até que ele se apresentou sorridente. — Vejamos... Stephanie Jhonson! — logo todos os alunos gritaram, uns porque eram “Team Teph” e outros porque se

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lembraram da situação no trem e logo gritaram “Vingança” para ambos. — É, acho que agora você arranca os olhos dele fora. — sorriu Anne, massageando as costas de Stephanie, como se ela fosse uma lutadora. — Boa sorte. — seca como sempre, desejou-lhe Délia, sem olhar ao menos no rosto. — Prontos? — perguntou Brevelyn, do alto da pedra. — Sim. — mentiu Lucas, com expressão de quem esconde medo nas fraldas. — Mais pronta impossível. — respondeu Stephanie, estalando os dedos, encarando-o como um urubu faminto. — Lutem! — sua voz soou como um alerta perfeito, como se dissesse “Corra Sandervarro” e foi exatamente o que ele fez. Com a velocidade com que o sorriso maléfico de Stephanie se fez, Lucas correu mata à dentro. Todos ficaram cochichando e rindo, antes da professora soltar o que para muitos soou como uma piada: — Capturem o Sandervarro e tragam-me vivo! Recompensa: três aulas livres. Grupos de três! Vamos, vamos, vamos! Ele é a nova bandeira. — gritou ela, sentando-se na pedra, provocando

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risadas em si e em todos os outros que partiram imediatamente atrás dele. — Grandes amigos... Estavam gritando “Quebre a cara da negra” e agora gritam “O Lucas tem medo de escuro, peguem ele!” — comentou Délia. — Que seja, vamos pegá-lo! Rápido, antes que peguem-no primeiro! — disse Stephanie correndo na frente, enquanto Anne caia na gargalhada atrás. Depois de trinta minutos caminhando na floresta, a chuva que ameaçava cair desde o primeiro tempo da aula de etiqueta, finalmente caíra. Trovões e raios, ventos fortes e um frio de rasgar a alma. — Ele está ali! — gritou Anne, tirando do rosto o cabelo molhado. — Agora você não me escapa, e é melhor você descer dessa árvore antes que eu te tire daí pela orelha. — ameaçou Stephanie, quebrando um galho perfeito para ser usado como taco de baseball. — Cuidado! — alertou ele de cima da árvore, que estava do outro lado do riacho. — Não temos medo de você! — retrucou Délia, falhando na tarefa de levantar a voz.

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— Ali, preto! — o medo estava estampado em seu rosto, suas palavras saiam com dificuldade. — Preta vai ficar a situação pra você! — respondeu Stephanie, equilibrando-se numa das pedras do riacho. — Chega de piadinhas, desce logo e não te bato tanto. A chuva estava muito forte e os trovões eram tão intensos quanto numerosos. Os relâmpagos pintavam de prata a pele das meninas, três deidades lutando contra as águas numa tempestade devastadora. As gotas de chuva perfuravam a pele, os ventos eram gelados e arrancavam lágrimas dos olhos, o céu era escuro e copiava o misticismo da noite. — Anne, acorda! — gritou-lhe Délia. — O que está acontecendo? — perguntou num estado de dormência e dor. — Coisas estranhas nos encurralaram! Levaram Stephanie e Lucas. Anne, por favor, você tem que fazer alguma coisa! Rápido, temos que alcança-los! Eles levaram Stephanie! — gritou apavorada, com as lágrimas em seus olhos se camuflando entre as gotas de chuva. Não demorou muito até Délia estar em prantos. — Mercenários... — sussurrou.

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Anne se recompôs num pulo e rasgou as anáguas do vestido que a deixavam pesada e lenta. Usou o trapo para prender o cabelo num rabo de cavalo e fez o mesmo com as madeixas incontroláveis de Délia. — Pra onde eles foram? — perguntou, com voz firme, para acalmar Délia, que ainda soluçava. — Por ali! — apontou para um amontoado de árvores altas ao sul. Seguiram por lá, correndo, mais eficientes e focadas do que nunca. Com as vestes rasgadas, o corpo molhado e sujo, coberto de folhas, as duas pareciam sobreviventes na floresta. Carregavam galhos com espinhos nas pontas, por mais que não soubessem ao certo se teriam a chance de usá-lo. Estavam determinadas e decididas, não olhavam para trás e concentravam seus pensamentos no controle de suas emoções, para que, com a cabeça fria, pudessem encontrar e achar um jeito de livrar Stephanie, e talvez, Lucas. Continuavam em linha reta, ininterruptas. Não tinham a mínima noção de onde iam, mas os instintos de Anne diziam que estavam no caminho certo, assim como o cheio de podre que ia ficando cada vez mais forte, que, segundo Délia, vinha das escamas deles.

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Os caminhos das florestas as levaram até uma caverna disforme, onde o odor era insuportável. Anne e Délia trocaram olhares para se certificarem da coragem uma da outra. Deram as mãos e seguiram em frente no que parecia ser a boca do diabo. Depois de quinhentos metros andando no total escuro, o medo já não mais fazia efeito algum sobre as duas meninas, que eram movidas pela bravura e também pelo amor. O trio de Délia, Anne e Stephanie não era o mais popular, mas era o símbolo de uma amizade perfeita, já que nas irmãs vermelhas, a sinceridade, fidelidade e honestidade não eram uma característica comum. Todos sabiam, que, no trio, uma daria a vida pela outra, e era exatamente isso que Délia e Anne estavam provando no momento. No vazio molhado e rochoso da caverna, um gemido abafado e contido ecoou pelas pedras. Era Stephanie chorando. Anne e Délia se abraçaram ao ouvir, mas tiveram medo de responder e estragar tudo. Seguiram cautelosas, sabendo que, felizmente, a excursão no escuro estava próxima do fim. — Como vamos encontra-la? Não dá pra ver nada! — cochichou Délia.

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— Eu sou uma bruxa. Devo conseguir fazer alguma coisa... — respondeu, sem confiança no que dissera. — Luz... Deve ser fácil fazer luz. Ficaram paradas, enquanto Anne se concentrava e tentava “fazer luz”. Quarenta minutos depois, o que havia era uma Anne de lingerie, e seu vestido sendo usado como combustível de uma tocha de galho. Pelo menos a magia necessária para colocar fogo num tecido molhado Anne dominava, ou quase isso. Trinta metros depois, encolhida entre duas grandes rochas, encontraram Stephanie, amarrada. Anne, seminua, era aquecida apenas pelo fogo da tocha. Ao perceberem Stephanie, Délia e Anne contiveram seus gritos de alegria e contentaram-se em compartilhar apenas algumas lágrimas de felicidade e abraços apertados. Desfizeram as cordas que a amarrava, e o primeiro instinto de liberdade que a tomou foi pular nos braços de Délia. As duas cochichavam algo embargado por conta das lágrimas. Anne se sentira um pouco injustiçada, pois Stephanie parecia grata somente à Délia, mas no fim das contas, quem estava morrendo de frio e sem roupas não era a ruiva.

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Todo o sentimento de ciúmes se desfez quando recebeu o abraço apertado de Stephanie, e pôde ouvir as palavras de carinho e gratidão. — Acho que você é minha protetora. — fungou Stephanie, ainda abraçando-a. — Sou sua amiga. É o meu dever. — assentiu, secando suas lágrimas. — Bem, agora... Quem vai tirar a roupa? A tocha está quase apagada. — Eu. — ofereceu-se Délia. No fim das contas, seu corpo revelou mais curvas do que aparentava ter. Délia era alta e reta, esguia e pálida, mas sem toda aquela roupa, e com as madeixas presas, parecia mais feminina e bonita. Não era como Anne, que ostentava seios fartos e um bumbum empinado, mas tinha um corpo formoso. — Meninas, eu não sei como agradecer vocês. — repetiu Stephanie, se desfazendo dos últimos pedaços de corda, para finalmente partirem. — Ei, e Lucas? — lembrou Anne. Stephanie engoliu a seco e apontou o olhar para cima de uma pedra na parede paralela da caverna. Lá estava Lucas. Ao chegar mais perto para iluminá-lo Délia teve que soltar a tocha nas mãos de Stephanie as pressas, para vomitar.

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— Eles fizeram coisas terríveis com ele. — comentou Stephanie, solenemente. — Eu vi tudo. A imagem era aterrorizante. Lucas estava pálido, suas veias estavam roxas e transpareciam como se sua pele não tivesse cor. Sua boca estava rasgada nos cantos e da mesma saiam variados tipos de formigas, vermes e vespas. No lugar de olhos, haviam dois buracos profundos onde não havia nada além de morte. Suas feições eram de alívio, talvez tivesse agonizado horrores antes de morrer. Seus braços e pernas estavam cortados profundamente e sua língua arrastava no chão. Ele estava sentado encostado numa árvore e nu. Enquanto Anne encarava o corpo num estado de fragilidade e espanto, Délia fazia uma observação: — Se ele está desse jeito... Por que você não? — Eu não sei. — respondeu com medo, com os olhos grudados em Anne. Uma lágrima rolou dos olhos de Anne, que sem pensar, foi em direção ao corpo. Ela realmente não tinha afinidade, tampouco

simpatizava

com

ele.

Mas

um

instinto

de

inconformidade tomou conta de seus membros, afogando sua alma em tristeza. Logo, tomou o corpo em seus braços, mesmo com o cheiro podre que exalava de Lucas, queimando seus

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pulmões, mesmo com todas as criaturas asquerosas saindo por suas narinas e boca, mesmo com os cortes, mesmo com a aparência mórbida... O que falava em seu coração era a dor de ter que responder a um chamado que não aceitara responder. Era a culpa por uma vida ter sido sacrificada por sua culpa, e seu chamado. — É tudo culpa minha! — gritou Anne, tomando Lucas em seus braços. Mesmo com toda a repugnância em seus aspectos. O eco de sua voz rasgada atravessou as pedras e correu por toda a vastidão negra da caverna. Era possível sentir a dor em suas palavras. — Anne, pare de gritar! — repreendeu Délia, sem coragem de chegar perto. Bloonwold gritava e soluçava em seu prato. Descontrolada e aterrorizada, Anne agarrava o corpo desfigurado de Lucas como se ele pudesse voltar e ressarcir sua paz, levando sua culpa. Não demorou até pequenos olhos brilhantes começarem a aparecer na escuridão, e logo a luz dourada da tocha começou a revelar que não estavam sozinhos. Os mercenários haviam voltado para, talvez, fazer com Stephanie o que fizeram com Lucas.

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— Morderam a isca. — sussurrou um deles. Seu rosnar grave anunciara problemas, e logo risadas ensurdecedoras encheram a caverna. Quando deram por si, estavam cercadas de dezenas deles. Os Mercenários tinham a pele azul-marinho e resistente, formada por losangos, comparável à pele de crocodilo em textura e espessura. Sempre tinham cabelos longos presos num rabo de cabalo no alto da cabeça, e unhas brancas afiadas. Eram fortes e não usavam roupas, apenas pinturas brancas de símbolos por todos os cantos. Não tinham sexo e tampouco órgãos reprodutores, eram criaturas altas e extremamente rápidas. Seus olhos eram negros, completamente negros e seus dentes afiados. Passavam um sentimento de morte e tristeza, como se parte de tudo que você ama tivesse enterrado lá... Anne desconectou-se de Lucas por alguns segundos e quando olhou a sua volta, pareceu não se importar com as criaturas. Voltou os olhos para o cadáver e continuou a chorar. — A garota é nossa! — rugiu o maior deles, saindo das sombras e entrando na área iluminada pela tocha. Délia e Stephanie gritaram. Anne permaneceu em silêncio, era questão se segundos até estarem mortas.

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O primeiro colocou as mãos no braço de Anne, e logo gritou, e quando percebeu, seu braço estava se despedaçando aos poucos. A esmeralda central do colar de Anne brilhava em lampejos verdes consecutivos, e então ao perceber que alguma propriedade nela a protegia dos matadores, Anne correu em direção a Délia e Stephanie, sem medo, e todos que a tocavam no tumulto, começavam, de alguma maneira, a se dissolver. Assim, um círculo se abriu em volta delas, e o medo agora havia mudado de lado. — Não toquem-na! — gritou o líder deles. — Me deem as mãos e estarão protegidas. — estendeu uma mão para as duas e com a outra pegou a tocha. Aparentemente, tudo que estivesse em contato direto ou indireto com a esmeralda estava protegido. A esmeralda estava em Anne, que por sua vez estava em contato com as meninas, estendendo assim, a proteção da pedra à elas. Mas, infelizmente, era apenas questão de tempo até os Mercenários começarem a atirar pedras ou acharem uma maneira de acabar com elas. Quando tudo parecia perdido, uma luz inundou a caverna e pareceu desacelerar o tempo. Da grande luz circular, seis

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grandes asas se abriram

e Anne soube o que estava

acontecendo. Enquanto sobrevoara acima delas, Délia e Stephanie puderam sentir a paz que inundava seus corações. Sua luz era tão forte e tão reconfortante, que elas chegavam a brilhar também. Levantaram os olhos, já agachadas e puderam ver as asas dele. Ele aterrissou e agachou também, e com quatro de suas asas, formou uma esfera em volta das três, protegendo-as como uma cúpula impenetrável e acomodando-as em círculo. A temperatura de suas asas era anestésica, uma sensação de estar em casa as deixou em êxtase. Suas penas eram como o mais macio veludo, sua roupa era como a mais fina ceda, ele era... Ele era... Glorioso! Seu cheiro era como a brisa do mar, sua voz era como o som de mil corais celestiais. Nenhum lugar era melhor do que debaixo de suas asas. Os olhos de Anne tremeram, Délia estava com os seus tão arregalados que pareciam saltar para fora de seu rosto, e Stephanie estava muito ocupada acariciando suas penas. Todos os problemas tinham sumido, até que no meio delas, debaixo das asas, uma esfera de luz começou a crescer, então foram instantaneamente obrigadas a fecharem os olhos. Foi ficando maior, maior, maior. Nada mais se via ou se ouvia.

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A esfera de energia debaixo de suas asas pareceu sugar as três meninas, fazendo-as viajar pelo cosmos numa velocidade exorbitante. Metratron, quando percebeu que as meninas já estavam longe e em segurança, rodopiou com suas asas esticadas quatro vezes. O que foi mais que necessário para decepar as cabeças de metade dos Mercenários. Depois, finalizou todos os outros em menos de dois minutos, com uma espada em cada mão.

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Capítulo 17. Culpa e desconfiança. 3 de outubro de 1952. RedShire, Durham, Inglaterra.

Literalmente

encantadas

pelos

poderes

angelicais

de

Metratron, as três haviam acabado de sofrer seu primeiro tele transporte. Apareceram anestesiadas na cobertura ao ar livre da Torre da Administração, logo, caíram num profundo sono de, por volta de três horas, nos divãs dourados super confortáveis e convidativos. Quando acordaram, trocaram detalhes sobre o acontecido, e já estavam mais calmas. Estavam, também, com medo, mas sabiam que tinham que se preparar. Anne, particularmente, se

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sentia monstruosamente culpada, e afundava cada vez mais em pensamentos obscuros que a deixavam paranoica e calavam sua boca. Ela permanecia em choque, com calafrios, tremedeiras, soluços e lágrimas constantes. — Quase fomos mortas! — gritou Délia, socando sua perna. — Estamos vivas! — encorajou. — Estamos vivendo uma aventura! Eu quase morri. Mas se isso não tivesse acontecido, eu não teria a certeza de que sou amada por vocês. Délia, abra seu coração. Ninguém mais tem a chance de viver isso. Temos que ser gratas à Anne, por... Bem... — coçou o queixo, a procura da expressão correta. — Nos permitir viver coisas como esta. Olhe para

esse

lugar!

Estamos

na

cobertura

da Torre

da

Administração, vestindo roupas de anjos, num lugar que parece o céu. Délia a abraçou e assentiu com a cabeça. — Eu só não suportaria te perder. — fungou. — Eu me sinto péssima. Se algo acontecesse a Stephanie, eu nunca me perdoaria. Vocês estão em perigo constante por minha causa. — comentou Anne, com a voz rouca e lágrimas nas maçãs do rosto. — Eu deveria ser grata, por aceitarem a ideia de eu ser anormal melhor do que eu.

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Anne era a única que conseguia parecer sombria e melancólica, mesma vestida com uma toga prateada e luminescente daquela. Era de um tecido leve e fino, mas muito resistente e com um caimento mole. O tecido parecia refletir todo e qualquer raio de luz, e abraçar o corpo como uma segunda pele, por mais que fosse largo. Cada movimento provocava nele um remelexo gracioso, com tamanha elegância. — Você é especial, Anne. — lembrou Délia, abraçando-a. — Bem... Chega de chorar! — interrompeu Stephanie, elevando o tom da conversa. — Precisamos ser inteligentes e descobrir como nos manter seguras, afinal, estamos... — fora interrompida por uma voz solene e trágica. — No meio de uma guerra. — intrometeu-se o Mentor P, que comandava a Torre do Penhasco. — Bem, o que aconteceu hoje, foi a invasão de mercenários. Eles atacaram a Torre do Lago enquanto vocês estavam em Educação Física. O alvo, claro, era a Srta. Bloonwold. Vocês deram sorte, pois não estavam lá e foram apenas surpreendidos por uma tropa de mercenários que sobraram, pois não tinham armas. — Algum aluno foi ferido? — indagou Délia, de súbito.

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— Quero que veja com seus próprios olhos... — indicou a sacada da torre, em direção à Torre do Lago. Anne, Délia e Stephanie se aproximavam lentamente. Tinham medo do que seus olhos podiam impô-las. Principalmente Anne, que, fragilizada, ainda soluçava sua culpa, segurando as lágrimas que não mais tinha. Do alto da Torre da Administração, todas as outras eram visíveis, por serem mais baixas. Entretanto, no lugar de uma imponente torre com bandeira vermelha, havia ruínas em queda, fogo, fumaça e criaturas de pele azul, bravejando sua vitória. Anne ficou sem ar e cambaleou para trás, seu pranto soava mudo, sua boca se abria pondo para fora um choro engasgado e silencioso, enquanto mais lágrimas irrigavam-na até o pescoço. Stephanie e Délia permaneceram paradas, estateladas, abobadas. Não se moviam, e tentavam não acreditar. Provavelmente a ficha ainda não caíra. Analisando melhor a floresta, era possível ver centenas deles em todos os lugares. Suas lanças pontiagudas, suas bandeiras negras, e seus rugidos animais eram notórios e inquietantes. — Não tivemos escolha. Fomos obrigados que deixar todos os alunos que tiveram algum contato com os Mercenários morrer. Caso contrário, não teríamos como explicar algo dessa

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magnitude sem quebrar algumas de nossas leis. Ou seja, todos os alunos que tiveram conhecimento dessas criaturas, estão mortos. Os outros foram encaminhados para os dormitórios. — explicou o Mentor P. — Como assim foram obrigados? Quem obrigou? Como uma lei pode ser mais importante do que tantas vidas? — vociferou Stephanie, sendo segurada por Délia, para não agredir o anjo a sua frente. O Mentor P, ao contrário de Metratron, era um homem calmo, com voz baixa e sempre muito impassível. Era negro, tinha olhos igualmente negros, como seus cabelos. Alto, forte e com um olhar misterioso, tímido e convidativo. Quando os mentores se transformavam em anjos, todos ostentavam a mesma armadura prateada reluzente. Era uma armadura completa, dos pés a cabeça, com um brilho azulado e escrituras em latim, escritos em dourado. O peitoral, as ombreiras e luvas, continham espinhos metálicos pontiagudos, em fileiras crescentes em toda a extensão. Também tinham suas armas. O Mentor P empunhava uma besta de aço negro e flechas de múltiplas e danosas pontas. Metratron exibia suas duas longas espadas de lâmina-espelho. O

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Mentor C trabalhava com sua lança de ponta dourada. E, por fim, o Mentor M brandia seu machado negro de duas cabeças. — Vocês vão deixar eles tomarem conta da escola desse jeito? Metratron! Faça alguma coisa! — suplicou Anne, com gritos embargados. — Temos que deixar que eles eliminem todos os que os viram. Desculpe, Anne, mas não os pararemos agora e isso não está sob o seu controle. — sentenciou ele. — Não! — berrou Anne, atirando nele um vaso de flores de vidro, com as narinas dilatadas e os olhos esbugalhados. Metratron se protegeu rapidamente com apenas uma de suas asas, que entrou na frente de seu rosto. O recipiente cristalino explodiu em mil pedaços, que, logo depois, todos observaram boquiabertos a reconstrução instantânea do objeto, que flutuava em linha reta para seu lugar, intacto. — Não adianta fazer isso. — uma voz branda como uma marola num espelho d’água invadiu o clima tenso de olhares entre o anjo e a bruxa. Era o Diretor Alston. — Bloonwold, venha cá, vamos conversar. — estendeu a mão, com o palmar virado para cima, na altura no umbigo de Anne. Seu tom era convidativo, assim como o pequeno sorriso em seus lábios.

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Anne assentou a mão hesitante por cima da dele, e então ele a conduziu pelos outros cantos do terraço, que era grande o bastante para perde-lo de vista. Depois de um tempo andando lentamente, começou: — Você tem um grande papel. Talvez não apareça em livros de história, mas canções serão cantadas sobre o seu sacrifício. Você está salvando três raças, anjos, humanos e bruxos. — explicou. — Mas, o sacrifício era pra ser só meu. Mas não é o que acontece. Pessoas estão morrendo por mim. Minhas amigas estão em perigo... — soluçou. — Nada vai acontece-las. Metratron, que foi encobrido da missão de cuidar de você, e também das outras duas, é o anjo mais forte que temos. Fora que, todos estão trabalhando em prol da sua segurança. E, a morte dos jovens não será esquecida. Indiretamente, eles estão fazendo a parte deles nesse sacrifício. Eles também estão se sacrificando por isso. — tranquilizou. — O seu dever é apenas honrá-los fazendo a sua parte. Desse modo, essas mortes não terão sido em vão. — Até lá, o que devo fazer? — perguntou, fungando. — Se manter segura de todas as formas. Mesmo que para isso tenha que usar seus poderes. Use-os somente quando necessário.

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Isso é de extrema importância. — alertou, arregalando os olhos, com o olhar distante. — É. Mas, eu gostaria de poder usá-los quando eu quero, e não só quando minhas emoções se sobrepõem a mim. — confidenciou. — Chega a doer. — Eu não posso ajuda-la nisso. Desculpe, pequena. E aconselharia que não tentasse aperfeiçoar esses poderes. Eles são uma arma apontada para a cabeça das pessoas, e duas apontadas para a sua cabeça. Anne se sentiu ameaçada e desconfiada com a declaração de Sarakiel, mas decidiu não demonstrar. — Claro... — murmurou. — Quero que fique tranquila e deixe tudo por nossa conta. Essa que eu vejo choramingando não é a Anne revoltada, mandona, ameaçadora e confiante que interrompeu uma reunião importante para fazer um interrogatório. — incentivou. — Era um almoço. — exibiu um sorriso amarelo. — Anjos não comem. — gargalhou. No final das contas, Anne fingia estar calma, mas a desconfiança em todas as declarações de Sarakiel a corroía por dentro. Por segurança, preferiu não contar sobre o colar para os

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anjos. Na verdade, não contaria mais anda que não fosse necessário. Pensando melhor sobre a profecia, algumas coisas soavam um tanto convenientes demais, e ao fim da conversa, já quase não acreditava mais no que estava fazendo. Especialmente depois das contradições numa conversa com o Mentor C.

... Ao cair da noite, o corpo docente e os mentores tomaram suas formas de anjos e limparam a floresta de todos os invasores. As três dormiam no terraço enquanto o massacre acontecia. Os anjos tinham combinado que o que seria divulgado era que a construção ruíra por ser sustentada numa ilhota no meio de um lago. E, por tal, estava enfraquecida e bamba. Desculpa ridícula.

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Capítulo 18. Recepção. 4 de outubro de 1952. RedShire, Durham, Inglaterra.

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Com a queda da grande irmã vermelha, todos os alunos órfãos se concentravam na única irmã que sobrara: A Torre do Penhasco. Era uma instalação menor, pois não era a irmã mais velha das gêmeas, e ficava perto da parte mais sombria da floresta. O sábado foi cinza. Luto e muito trabalho. Entulho, escombros e corpos para todos os lados. O ar soprava com um cheiro podre, a floresta estava irreconhecível e o espírito dos alunos apagado, entre lágrimas e laços destruídos. Agora, os quartos deveriam abrigar quatro alunos, e Anne teria que dividir sua suíte com o capitão da Torre do Penhasco, ou melhor, ele que teria que dividir sua suíte com Anne. Seu anfitrião, Logan Sparks, era do segundo ano. Era perito em artes marciais, muito popular entre todos os alunos vermelhos, simpático, educado e tímido. Tinha a pele morena, cabelos loiro-escuro até os ombros e olhos verdes. Sua boca era carnuda, seu nariz pequeno e anguloso, suas maçãs altas e cheias, seu rosto redondo e seu cabelo ondulado e rebeldemente sensual. Se assemelhava a uma escultura greco-romana do Cupido, ou Apolo.

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— Desculpa fazê-lo passar por isso. — reforçou Anne, enquanto os funcionários terminavam de colocar suas coisas no quarto. Algo que ninguém percebeu foi que, como a escola é regida por anjos, nem mesmo uma cadeira foi perdida na queda da torre. Tudo fora “recuperado”, essencialmente as coisas de Anne. — Bloonwold, você poderia colocar sua cama aqui mesmo? — apontou para o cômodo do apartamento onde ficava sua cama. — Eu gosto muito da sala. — justificou. Anne assentiu com a cabeça. — Bem... Poderíamos conversar na varanda enquanto arrumam suas coisas. — sugeriu, apontando para a sacada, com o livro. — Claro. — segui na frente. A varanda tinha uma vista privilegiada para a dama vermelha em ruínas. O que era péssimo e desconcentrava Anne durante as apresentações formais. Conversaram da maneira mais clichê possível, falando sobre tudo que poderiam falar em seu grau de intimidade. Embora tímido e reservado, Logan não era introvertido e mal educado a ponto de ter uma nova pessoa em seu quarto, sem ao menos saber quem é.

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Por serem líderes vermelhos, o convívio e a aproximação estava fluindo rápida e facilmente, já que tinham reuniões juntos algumas vezes. Mas, nada nem perto de algo em que pudessem expor sua personalidade. No meio da conversa, Logan percebeu que Anne estava quase chorando ao olhar sua antiga “casa ao fundo”. Ele, logo, puxoua para dentro com uma desculpa esfarrapada e fritaram marshmallows na lareira, enquanto trocavam opiniões sobre canções que sabiam tocar no piano. Assim como o quarto de Anne, o de Logan também tinha um piano negro de calda no meio da sala, que serviu como um pontapé inicial no que parecia ser uma promissora amizade. — Já tem par para o baile de inverno? — indagou, pausando a música que tocava, rodopiando na banqueta, até estar de olhos grudados em Anne. — Na verdade não. — bufou, recaindo sobre o sofá, e lembrando de Alexander. — Todos juravam que você iria com Alexander, acharam até que vocês seriam escolhidos para reis do baile. — gargalhou, forçadamente, pois claramente, falar de Anne e Alexander como sendo um casal não lhe era confortável. — Gostaria de ir comigo, só pra... Você sabe... Fazer uma alusão à realeza.

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Porque, bem, somos como a realeza vermelha. — gargalhou, jogando compulsivamente o cabelo para trás. — Somente por isso? — instigou, sorridente, brincando com o nervosismo aparente de Logan. — Ah, não. — gaguejou. — Seria ótimo ter sua companhia também, claro. — Então, a rainha vermelha aceita. — estendeu a mão, na esperança de que ele a beijasse, completando o cenário de alusões reais. Logan pareceu nervoso e a surpreendeu com um aperto de mãos suado e gelado, rápido e afobado. Anne gargalhou e corou ao mesmo tempo, depois se encararam por alguns minutos e a porta bateu, fazendo ambos pularem de susto. Anne esperou Logan adormecer antes de começar seu ritual diário de banho. Não é um hábito muito comum entre os ingleses e europeus em geral, mas Anne tomava banho todos os dias antes de dormir. Logo entrou no banheiro e ascendeu as velas. Achava ela, que luz elétrica no banheiro tirava a beleza do momento. Começou seu ritual de toda noite: Tirava peça por peça, sem amarrota-las e jogava no lixo. Isso, ela desfrutava de alguns luxos por ser a

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Sétima Guardiã do Véu e a Capitã da grande irmã vermelha, mesmo que em ruínas. Depois, ela limpava o corpo de todas as impurezas com um pedaço de tecido umedecido em leite, deitada num divã branco. E antes de entrar na banheira, massageava os cabelos com extrato de musgo de orquídea. Por fim, relaxava e aproveitava seu banho quente na banheira de porcelana. Ficava por volta de quarenta minutos quase totalmente imersa, pensando, refletindo e devaneando. Por fim, saia e retirava a pasta de seu cabelo com água gelada, escovava os dentes e se vestia. Ainda por volta da meia-noite, sentava na em qualquer canto e escrevia seu diário: 04/10/52 Não tão querido diário, sinto que estou vendo as coisas um pouco mais claramente. Algumas áreas da minha vida, como sempre, continuam conturbadas. Com a minha torre em ruínas, sinto-me novamente órfã. Naquelas ruínas pode estar o corpo de Lisie, ou qualquer outra pessoa com quem eu me importe minimamente. Na verdade, sinto-me desolada em saber que meu império está esfolado e desonrado.

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Afoguei toda a minha tristeza em trabalho pelos vermelhos, e lutei para que nunca mais tivéssemos que cair. Dei suor e lágrimas, e talvez sangue por aquela torre, que hoje não passa de escombros. Por outro lado, para piorar, a profecia me parece cada vez mais mentirosa. Os mentores se contradizem e fogem de perguntas. Mas, o que ainda me prende a acreditar nisso tudo, é o fato de que quase fui morta por seres nojentos e mais que assustadores, e pessoas morreram por mim, pessoas inocentes. Falando nisso, descobri que Stephanie e Délia são mais que amigas para mim. São verdadeiras irmãs e eu nunca as abandonaria. E isso é horrível, pois nunca me perdoaria se algo acontecesse a elas, elas são minha nova fraqueza. Tudo isso só me leva a tentar descobrir com meus próprios pés onde estou pisando e o porquê de tanto receio no desenvolvimento dos meus poderes. Alexander tem me evitado, e agora, com Logan, consigo perceber o contraste entre um príncipe de sangue e um duque com título comprado. Logan tem inseguranças e passa por cima delas por

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mim. Alexander tem Alie, e por ela, ele cuspiria em mim. Sinto que tudo que Logan fala é genuíno, e que ele realmente se importa comigo. Algo que nunca senti com Alexander. Eu sei que é loucura, — Eu me interessar por Logan no dia que o conheci — nós não temos tanta intimidade assim, e parece precipitado, mas temos os mesmos gostos e hoje ele me fez esquecer de coisas que a tempo me assombram. Eu não estou apaixonada, mas quero ficar e abraçaria essa nova paixão por Logan. Isso tudo ainda se torna pequeno diante da culpa que eu sinto. Eu não aguento mais e não sei se minha sanidade me acompanhará até o dia do sacrifício. Estou de luto pela minha mãe, pela minha torre, pelas pessoas que morreram por mim, e por mim mesma daqui a algum tempo. Tento me manter alegre e viva, mas não dá pra viver de aparências. Jurei que nunca mais choraria na frente das pessoas, e passei quase um dia inteiro em prantos. Eu não sei mais quem eu sou. Preciso de forças e não sei de onde tirá-las.

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Deitando-se na cama, sem demora o sono veio e levou embora seus problemas, colocando-a num outro mundo. Seu sono era profundo e livre de incômodos, se revirava para cá e pra lá, mas o conforto estava presente em todos os cantos do colchão. Era bom saber que não estava sozinha, ainda mais depois de um incidente daqueles com os mercenários. Mas, ainda assim, a janela, por pedido de Anne, continuava aberta, pois quando aberta, o cheiro da floresta trago pela brisa fria da noite, era na verdade, o melhor dos cobertores, embora não aquecesse, pois trazia Diana, de alguma maneira. Como de costume, exatamente às três da manhã, Anne levantara para beber água. Enquanto atravessava a sala em direção a semi-cozinha do apartamento, ouviu três batidas secas na porta. Desacelerou o passo até parar por completo, até que ouviu passos atrás e quando virou, deu de cara com um Logan descabelado. — Quer que eu atenda? — perguntou ele, com a voz escura por conta no sono, coçando os olhos. — Por favor. — pediu.

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Logan andou sonolento até a porta, virou as chaves duas vezes para destrancá-la, e a escancarou. — Logan? — perguntou Alexander, surpreso. — Coweel. — cumprimentou, com um aceno de cabeça. — Desculpe-me por acordá-lo a essa hora. Me disseram que esse é o quarto de Anne. — justificou, ainda confuso. — Deve ter sido um engano. — Não, não foi um engano. É o quarto dela, mas não deixou de ser o meu. — retrucou irritadiço, sentindo uma pontada de ciúmes. — O que te deu pra vir aqui a essa hora? — Eu sei que ela levanta para beber água todas as madrugadas exatamente a essa hora. Só quis falar com ela. — justificou. — Entendi tudo. Obrigado e boa noite. — disseram os dois juntos, em uníssono, compartilhando da mesma ira e ciúme. Coweel saiu batendo os pés, tão irritado quanto Logan, no mesmo nível de birra e ciúmes. Ao passo que Sparks bateu a porta com força o suficiente para acordar todo o andar, se houvesse mais algum quarto nele. — Quem era? — perguntou Anne, recolocando o copo no balcão de mármore da cozinha. — Coweel. — grunhiu.

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— O que ele queria? — disparou de súbito. — Falar com você, mas pareceu desistir. — respondeu, jogando-se na cama e apagando a abajur que era responsável por toda a luz que iluminava a conversa. — Está bem... — conformou-se, desconfiada da versão de Logan, pois estava visivelmente irritado. Mas, a ideia de que os dois tivessem ciúmes dela era algo muito egocêntrico para se levar a sério. Era insano semi-apaixonar-se num dia, e mais

insano ainda, era ser correspondida nesse mesmo dia.

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Capítulo 19. Sem noção. 5 de outubro de 1952. RedShire, Durham, Inglaterra.

Domingo de manhã. Geralmente domingo era um dia chato, pois era o único dia em que não havia nada para fazer, nem mesmo clubes e atividades extracurriculares opcionais. O dia do xadrez, bibliotecas cheias, deitar no gramado, comer, dormir, acordar tarde e relaxar. Anne era a única a ter aulas nesse dia, assim como os outros capitães de torres, mas somente pela manhã. Ela tinha Estratégias Militares por três horas, desde às sete. Depois, Filosofia Profunda até o meio dia. Essas matérias aguçavam seu poder de liderar, sua astúcia, inteligência e técnica. Pensando em sua segurança, Anne decidiu pedir mais aulas durante o domingo, para se aperfeiçoar em áreas que pudessem ajuda-las em momentos difíceis. Preencheu a tarde com Luta,

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Sobrevivência e Resistência física e mental. Tudo a deixava na correria, com trinta minutos de almoço, até as quatro da tarde. Todas as aulas eram dadas em particular, e com um alto nível de cobrança e rendimento. Anne tendia a afogar suas inseguranças e angústias em trabalho duro. O que não era comum entre suas colegas da alta sociedade, patricinhas mimadas. Entretanto, Edward sempre fora muito rígido e sempre foi exigido muito de Anne desde que tinha pouca idade. Por isso ela tinha destreza, eficiência e disciplina o suficiente para dar conta do ensino pesado de todas as matérias da McWaverly, e ainda assim se afundar em extracurriculares mais complicadas e cansativas. Anne sempre se perguntava o porquê de nunca ter tido ciência do que aconteceria aos seus quatorze anos, mas, agora, ela percebia que sua vida sempre fora moldada para isso. Durante a aula de Resistência Mental, com a Srta. Loreffern, que titularmente, dá aulas de etiqueta, algo a chamou atenção: — Srta. Bloonwold, eu, tenho a habilidade de penetrar na mente dos humanos. Mas, infelizmente essa minha habilidade, por algum motivo, parece não funcionar quanto a sua mente. Poderia me explicar? — intimidadora e astuta, cada palavra que

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saía de sua boca estava coberta de ambiguidade, tudo poderia ser um teste. — Eu estou me empenhando muito na tarefa de te bloquear todo esse tempo. Não há chances. — respondeu fria, sem hesitar. — Errado. Você tem que fazer o inimigo sentir duas coisas: A fraqueza dele e a sua força. Você poderia falar algo como “Senti algo tentando violar minha mente, mas decidi que não deixaria isso acontecer. Não há chances. Muito fraco.” Se responder assim, você está colocando-o em uma duvida cruel: Ele é muito fraco ou você é muito forte? Geralmente as pessoas se perguntam isso sem saber, e no final, estão perdidas e com suas estratégias atrapalhadas. — estapeou-a no rosto, corrigindo-a logo em seguida. Sua voz reverberava firme pelas penumbras em volta do centro iluminado da sala. Geralmente, as aulas de Resistência Mental aconteciam numa sala escura, com apenas duas cadeiras e uma mesa. Bloonwold e Loreffern ocupavam as duas cadeiras, compartilhando a mesma mesa limpa. As sessões eram longas e os minutos pareciam não passar. A cada acerto, um pouco de água, a cada erro, um tapa no rosto. Anne sempre vomitava ou desmaiava depois das sessões, pois geralmente, também eram cheias de torturas psicológicas, ainda

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mais com os poderes sobrenaturais da rígida e oca, sem coração, Srta. Loreffern. — Pode ir, Bloonwold. Está ficando melhor a cada aula. — parabenizou-a, exibindo um sorriso amarelo e rápido pela primeira vez desde as apresentações formais. — Sinto-me agradecida, senhorita Loreffern. Até mais ver! — acenou com a cabeça, retribuindo um sorrido verdadeiro e grande, perguntando-se internamente se estava dando um “tchau” educado o bastante. Saiu da pequena sala na Avenida PC, indo em direção ao seu merecido descanso, no último andar da Torre do Penhasco. As quatro torres formavam as quinas de um grande quadrado, em que a Torre da Administração ficava no meio. Quatro corredores principais ligavam as quatro irmãs, que agora, eram três. Esses grandes corredores eram chamados de Avenidas, pois eram largos, extensos e davam origem a todos os outros, chamados de ruas. Seus nomes eram as iniciais das torres que eles ligavam. Um corredor que ligava a Torre do Penhasco, à Torre da Clareira, tinha o nome de Avenida PC, e assim por diante.

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Andando nos dois quilômetros e trinta metros de corredores, era impossível não esbarrar com alguém, mesmo no domingo, o dia em que ficavam quase vazios. Anne fingiu não perceber ou na verdade não queria aceitar o fato de que o Capitão Azul, Thomas Watson. Andava como uma serpente, acompanhado do outro Capitão Azul, da clareira. Um artista admirável, mas muito desonesto e antiético, Luke Fitzsimmons. Grande nariz, grande ego, olhos pequenos, cabelo espichado para cima. — Olha lá, Tom, é a Bloonwold. — berrou Luke, como se não estivesse a um metro e meio de Anne. — Bloonwold. — cumprimentou com a cabeça, reprimindo uma gargalhada. — Watson. — retrucou, seca. — Parece que você tem o poder de deixar as coisas em ruínas. Primeiro a torre, agora os corações de Coweel e Sparks. — comentou Thomas. — Como? — semicerrou os olhos. — Neste exato momento, Alexander Coweel e Logan Sparks estão se atracando com unhas e dentes na Avenida LM, por você. — gargalhou Luke, ficando vermelho de tanto rir.

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— Achei que estariam lá, para ver a desgraça. — olhou-os com desdém e nojo. — Na verdade, estamos indo chamar um inspetor para que a desgraça esteja completa. — justificou Thomas, acenando, enquanto partia com seu amigo. Anne se certificou de que eles não olhariam para trás e começou a correr para a Avenida LM. Tudo aquilo deveria pesar na conta das irmãs vermelhas, e seria um prato cheio para o jornal azul da escola. Chegando no corredor, em frente a sala da Srta. Riclle, que estava ausente, uma aglomeração de vinte pessoas gritava estímulos para abriga. No centro da rodinha, claro, estavam Alexander e Logan. Anne tentou gritar, mas não conseguiu ser ouvida por eles e quem ouviu decidiu ignorar. Stephanie e Délia saíram da rodinha e foram em direção à Anne: — Tentamos separar. — disse Délia, cabisbaixa, como se tivesse falhado numa missão importante dada por Anne. — Eu não acredito que isso está acontecendo! — bufou, com o rosto em chamas.

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— Eles já estão na briga a dez minutos. Você tem que fazêlos parar! E, Alexander está vencendo, só pra saber. — comentou Stephanie, gesticulando socos. — Eu vou acabar com isso agora. — trovejou, domando suas madeixas bronze-ouro num rabo de cavalo alto. Desfilou confiante e rápida até um metro da aglomeração, e subitamente, puxou uma pistola de dentro da saia e deu três tiros para cima, com o braço totalmente esticado. Os ribombos secos dos tiros calaram a todos e apartaram a briga. Logo, a pequena multidão se abriu e Anne pôde caminhar lentamente em direção aos moleques, girando a arma no dedo indicador, depois, manobrando-a no ar com as duas mãos para guarda-la no segundo seguinte. Alexander sangrava na boca, e Logan no nariz. Ambos apresentavam o mesmo olhar de crianças inconsequentes e amedrontadas, perante a postura de Anne com sua pistola. O silêncio reinou absoluto. — Eu... Não achei que fosse tão idiota, Alexander. — declarou, encarando-o com uma expressão confusa e a boca torta de cinismo. — E, Logan, eu não sei o que pensar. Não esperava isso de você. Achei que você diferente. — abaixou o olhar gradualmente, virou as costas e saiu desfilando da mesma

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maneira. Dois metros à diante, Délia e Stephanie se juntaram e as três viraram o corredor em direção à Torre do Penhasco. No caminho, encontrou Thomas e Luke, conduzindo um inspetor bravo em direção a briga, para pegá-los no flagra. Anne, irritadiça, virou-se para o inspetor e gritou, em tom de ordem: — Você não vai fazer nada! O inspetor se sentiu desconfortável com a ordem tão explícita e logo deu meia volta, obedecendo relutante. Thomas e Luke ficaram boquiabertos e indignados com a submissão do homem, sem ter ideia do que estava acontecendo. Pararam e ficaram gritando-o para voltar a tempo de suspendê-los, mas o homem fingiu não ouvir e sumiu entre os corredores como um zumbi. Subiu para o quarto soltando chamas pelas narinas. Délia e Stephanie tentavam acalmá-la, como sempre. Geralmente, domingo, era o dia mais estressante para Anne, e mais relaxante para todos os outros alunos, e por isso, Stephanie e Délia se sentiam na obrigação de tirar um tempo sozinhas com Anne. — Eu não acredito nisso! — berrou Anne, jogando-se em sua cama como um meteoro. — O que aconteceu? Você tem alguma coisa com Logan? – indagou. — Não! Ele é meu amigo. — respondeu.

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— Então porque Alexander se irritou tanto? Porque, ele que chegou falando coisas horríveis para Logan. — disse Délia. — Ele não tem o direito de se irritar com nada. Mesmo se eu estivesse aos beijos com Logan. Alexander não é nada meu. Ele deveria se preocupar com Allie. — trovejou, desfazendo o rabode-cavalo com um movimento abrupto de cabeça. — Bem, sabemos que não é assim. Por favor... Vocês têm algo como um quase não-semi-relacionamento-quase-sério. — ponderou Délia. — O que? — perguntou sem entender. — Não temos nada! E mesmo se tivéssemos, isso não é cabível. Acho que é bom a minha vida acabar daqui a algumas semanas, porque do jeito que está, eu não aguentaria chegar ao final dela, se fosse mais longa. E vocês? Não me avisaram por que? Estavam adorando o vexame, não? — Não diga isso! Como você é ingrata, Anne! — explodiu Stephanie. — Temos vivido por você, e você nem nos pergunta sobre nossos problemas ou algo do tipo. Se é que ainda temos problemas só nossos. Eu e Délia temos famas de “amas da patricinha vermelha” pois o apoio que nós te damos só se consegue com pagamento mensal. Pare de se fazer de coitada e forte ao mesmo tempo! Veja as coisas com outros olhos. Você

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não é a vítima da vida. Milionária, com dois gatos atrás de você, uma vida fantástica, poderes mágicos, e todo um batalhão de super anjos aos seus pés. É a líder de uma das torres mais importantes da escola, recebe aulas especiais e particulares que vão fazer de você uma assassina profissional, ou talvez uma general do exército. Você é mimada! Não aguento mais ouvir sua ladainha de que é forte, e que não vai abaixar a cabeça, e depois passa dias chorando por qualquer motivo. Vai chorar? — descontrolada e gritando, descabelava-se ao falar, com os olhos esbugalhados e o fôlego precário, o discurso parecia tão real quanto ameaçador. Finalizou com a indagação, batendo a porta e varando pelo corredor. — Délia... — gemeu Anne, com os olhos marejados. — Stephanie tem razão, Anne. — declarou, com voz grave. — Tenho que ir. Tem uma amiga minha que precisa de mim, de verdade. E, não de uma empregada. — finalizou, matadora, repetindo o caminho de Stephanie. Sozinha, Anne desabou em lágrimas, mais uma vez. Não por não aceitar o que lhe fora escancarado, mas sim por saber que é a verdade. Na verdade, parcialmente verdade. A vida de Anne poderia ser definida como uma vida rica em emoções fortes. Totalmente órfã, com seus dias contados, sua torre em ruínas, o

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perigo constante de ser atacada por demônios azuis e etc. Por outro lado, as coisas que Stephanie citara apaziguavam um pouco a situação, transformando tudo num chocolate amargo.

Capítulo 20 O retorno das respostas. 6 de outubro de 1952. RedShire, Durham, Inglaterra.

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Anne não fora à reunião da torre, nem mesmo ao jantar, e acabou perdendo um grande comunicado: Os alunos voltariam para casa por uma semana, para a Torre de Lago ser reconstruída. Isso também funcionaria como um período de luto, ou algo assim. Fora avisada por Logan, e o mesmo pediu desculpas sinceras. Ao contrário de Alexander, que preferiu assumir um namoro com Allie e deixar bem claro para toda a escola que nunca sentira nada por Anne, e que ela que o assediava. Ela aceitou as desculpas, e um dos motivos foi que Alexander não havia pedido. Estava convicta que iria se apaixonar por Logan, talvez apenas só para fazer ciúmes em Coweel, mas nem ela mesma sabia se era isso. — Bem, Logan... Isso é bom. Precisamos pensar. — concluiu, enquanto sua única mala era retirada do quarto por Jhon. O trem partiu exatamente às quatorze horas, e a previsão de chegada era para o meio dia do dia seguinte. Stephanie e Délia não se sentaram com Anne. Talvez na volta. De qualquer forma, não iriam para Londres. Decidiram

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passar essa semana na casa da tia de Stephanie, pois era próxima a escola, em York, então o desgaste das viagens seria menor. A viagem toda passou debaixo de chuva, ou seja, cinza, depressiva e monótona. Entretanto, era o clima preferido de Anne, e a deixava calma o bastante para pensar sem a interferência de sentimentos. Até que estar sozinha era uma boa, já que Stephanie e Délia poderiam ser grandes tagarelas quando queriam. Passou grande parte da viagem analisando o livro que achara em sua bagagem de mão, colocado por Metratron, com um bilhete: Estude as páginas 85 e 86. É o roteiro do ritual. A pronuncia das palavras está escrito em vermelho, de lápis. É só treinar e esteja pronta, o dia se aproxima. Anne congelara ao ler o bilhete, mas não resistiu ao instinto de curiosidade que a puxava para as páginas do livro. Mais do que em outra língua, o livro estava escrito com outras letras, nunca vistas antes por Anne.

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... Chegando lá, Edward a recebeu com um forte abraço e levou suas malas para o carro. Dirigia com cuidado, pois a chuva se mostrava como um prelúdio de uma tempestade apocalíptica. — Eu precisei tanto de você, Edward. Você não estava lá. — comentou, batendo a cabeça no vidro. — Estou orgulhoso. — declarou. — É. Sua ausência me ensinou tanto quanto sua presença. — complementou, e pôde ver um esboço de sorriso em seus lábios finos pelo retrovisor. Anne descansou em seu quarto, após longas conversas com Edward — claro, sem mencionar as experiências fora do normal — e passeios pela casa. Trocaram detalhes sobre suas vidas sem o outro, falaram sobre o quanto de suas vidas tinha mudado e discutiram sobre Anne finalmente estar mais magra, porém, com um corpo “Um pouco forte demais para uma dama.” Segundo Edward. Era bom para Anne revê-lo, já que em meio a crises sobre sua identidade, olhar para Edward a lembrava de ser acima de tudo, uma Bloonwold.

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Almoçou em silêncio, sozinha, pois Edward Stocke, o novo diretor das empresas Bloonwold teve que voltar ao trabalho. A última Bloonwold, depois, pediu para que o motorista a deixasse numa rua especial, em Belgravia. A campainha anunciara Anne por volta das cinco da tarde, chovia e o termômetro marcava por volta de dezessete graus. Uma ruiva alta, esbranquiçada e descabelada abrira a porta. Era Jane Collins, mãe de Délia. — Anne? — soltou, surpresa. — Veio marcar hora no salão? — Na verdade não, senhorita Collins. — o tom de sua voz indicava que era um assunto sério, a expressão facial de Jane acompanhou. — É um assunto muito extenso. — Entre, Anne. Por favor, aceite um chá. — convidou-a escancarando a porta e indicando o interior da sala com as mãos. Parecia estar ocupada, mas, ao mesmo tempo, disposta a largar sua ocupação atual para ouvir Anne. A casa dos Collins era uma típica residência inglesa de classe média alta. A decoração era um pouco incomum, com pouca tecnologia, cores escuras e luzes fracas, móveis pesados também. Um cheiro de ervas mistas circundava toda a casa, do jardim até o mais remoto recanto.

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Sentaram-se na sala, em frente a lareira. Anne numa poltrona, Jane Collins no sofá. Servidas de chá e scones, a conversa não começou sutil, até porque não haviam sido nem um pouco sutis com Anne ao tratar do mesmo assunto: — Você é uma bruxa. — declarou Anne, colocando a xícara no pires. A Srta. Collins enrijeceu, esbugalhou os olhos e engasgou com seu chá. — O que disse, menina? — indagou em tom defensivo, como se tivesse sido acusada de um crime. — Sabemos disso. Por favor, facilite as coisas para mim. Eu sempre desconfiei que tinha algo diferente em você, na perfeição de seus tratamentos capilares, conhecimento de ervas e etc. Bem, Délia me confirmou algumas coisas. — explicou. — Eu também sou uma bruxa. Ou pelo menos é o que eu acho. — Délia não sabe de nada. — contrapôs. — É. Ela não sabe, mas o que ela fala sobre você já foi mais que suficiente para eu tirar minhas conclusões. — sorriu, pegando a mão de Jane, e olhando em seus olhos redondos idênticos aos de Délia, passando o máximo de confiança possível. Somos grandes amigas. — Pode confiar em mim. Pode

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parecer que sou jovem para deter tanto poder e responsabilidade, mas sempre foi assim em outros contextos. — Ei, menina, eu sei. — sorriu, com o rosto ainda tensionado. — Se Délia confia em você, eu confio também. — É bom saber que tem esse relacionamento com a sua filha, eu nunca tive algo tão próximo com a minha mãe. — confidenciou ao parabenizar. — Eu tenho certeza que ela te amava muito, só era ocupada na mesma medida. — acariciou seu ombro, confortando-a. — Sei que já faz tempo, mas, meus pêsames. — Obrigada. — agradeceu cordialmente. — Imagino que não tenha vindo aqui para falar de relacionamentos entre mães e filhas. Vamos ao ponto. — direta e firme como Délia, retomou o rumo inicial da conversa, como se estivesse mais interessada que Bloonwold. — Estão escondendo alguma coisa de mim. E, acho que você pode me ajudar com isso. — começou, abandonando a xícara de vez. — Quem? Que tipo de coisas? — indagou, parecendo minimamente interessada. — Anjos. — disse como se estivesse xingando. — Anjos... — saboreou a palavra. — Na McWaverly?

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— Sim. É como se todos os funcionários e professores fossem anjos, de um mesmo, é... grupo... — explicou, confusa. — Curioso, e perigoso. — disse ela, com os olhos semicerrados, como se filmes passassem em sua mente. — Provavelmente não, mas me ajudaria muito se você soubesse o nome de pelo menos um deles. — Metratron e Sarakiel. — rebateu, na hora, derrubando as expectativas negativas de Jane quanto a ciência de Anne sobre detalhes sobre os anjos. — Não pode ser! — exclamou de súbito, levando as duas mãos a boca. — Garota, você está em perigo! Você... Você corre muito perigo! — Não... Eles estão me protegendo dos Mercenários! — explicou. — Anne, — fez uma pausa dramática, engolindo a seco. — Eles são os mercenários! Eles matam bruxas... bruxas especiais. Você está lidando com Os Mercenários da Alvorada Negra. Um grupo de anjos altamente perigosos. — Por favor, conte-me mais! — suplicou Anne. — Não tenho muito o que falar. Eu que deveria dizer “conteme mais” a você. O que sabe sobre eles e as intenções deles? —

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perguntou parecendo sedenta por informações, como se tudo dependesse dos dados cedidos por Anne. — Bem, eles me disseram que faço parte da Profecia dos Sete Véus. E, que, devo me sacrificar num ritual daqui a algum tempo. Eles não encorajam que eu use meus poderes, na verdade, não gostam da ideia. Jane escutava atenta. — Parecem esconder muitas coisas de mim, e se contradizem o tempo todo, como se sustentassem uma grande mentira mal disseminada entre eles. — continuou. — A escola sempre é atacada por Mercenários, que têm a pele azul e grossa, com inscrições em branco. Dentes grandes, cabelos negros e tudo mais.” — contou. — Nunca ouvi falar sobre essa profecia. Venha comigo, e confirmaremos se tudo isso é uma grande mentira ou não. — levantou-se, puxando Anne escadas acima. A conduziu pela casa até o sótão. Era grande e escuro, como todo sótão. Ao adentrarem, o cheio de mofo e cosias velhas fizera Anne espirrar, ao mesmo tempo que Jane ascendeu as luzes, revelando um lugar claro e bem organizado. Percebendo o desconforto de Anne com a poeira, Jane se permitiu dar sua primeira demonstração de uma magia bem

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feita: estendeu as mãos a frente de seu corpo, movimentou os dedos como se tocasse piano, e disse algumas palavras incompreensíveis. No mesmo momento toda a poeira se juntou numa grande esfera no meio do local e se consumiu por dentro, até não existir mais impurezas no lugar. Anne ficou boquiaberta e a agradeceu, ainda com um sorriso besta cravejado no rosto. O lugar era grande e totalmente feito de madeira. Tinha muitas estantes e armários, e uma pequena mesa redonda no final da sala, perto da única janela do local. Jane revirou alguns armários e prateleiras, procurando por algo, e a cada armário aberto Anne se espantava mais com os artefatos curiosos guardados neles. De flores que se mechem à chifres de animais diversos. Finalmente, no último armário, achara o que procurava. Um livro grande e curiosa e misteriosamente... normal. Anne se sentiu

desapontada,

pois

depois

de

ver

tantas

coisas

extraordinárias, esperava algo à altura. Jane apoiou o livro na mesinha bamba, e Anne chegou mais perto. Tinha uma capa marrom, desgastada e espessa. E, escrito em letras grandes “Livros das Profecias”.

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Jane revirou algumas páginas, até encontrar o que queria: Uma página amarelada e em branco. — Coloque sua mão na página, toda a sua mão. — indicou o livro. Anne fez o que fora sugerido a ela. Ao colocar a mão esquerda sobre a página em branco, ela começou a se encher de letras brilhantes, que iam girando em espiral em volta de seus dedos. Logo, as letras construíram uma imagem de seu rosto, depois seu nome, e por último, nada. — Agora, tire a mão de cima e vejamos o que tem aí. — orientou Collins. Anne obedeceu, mas nada estava escrito no lugar ocupado por sua mão. — Isso é ruim e bom. — soltou Jane, suspirando e caindo para trás, até que uma cadeira apareceu e a impediu de cair no chão. Ela parecia tranquila ao cair, como se já soubesse que a cadeira apareceria misteriosamente. — Bem, você não vai ter que se sacrificar num ritual por uma profecia, pois você simplesmente não está em nenhuma profecia, caso contrário, o livro acusaria. — Entendo. — disse cabisbaixa, sem saber o que sentir.

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— Ou seja, eles estão mentindo sobre a profecia, ela simplesmente não existe. Mas, temos que saber o porquê de eles quererem matar você num ritual. E, também temos que saber que ritual é esse. — inferiu Collins. — E isso me deixa novamente sem explicação sobre o suicídio da minha mãe. — sussurrou Anne, consigo mesma, tentando esconder a tristeza que surgia no rosto. — Qual a finalidade de fazerem um espetáculo teatral tão extenso? Por que não fizeram o ritual antes? Sabe algo sobre isso? Eles parecem muito empenhados nisso, e não é qualquer coisa que toma o tempo deles dessa maneira. — continuou Jane, indagando em círculos, ignorando Anne por completo. — Disseram que teríamos que ensaiar, e deram um livro com algumas páginas marcadas para eu estudar durante esse recesso. Está em outra língua, o meu trabalho é aprender a pronuncia das palavras e fala-las no momento certo do ritual. — explicou Anne. — Pegue o livro, e traga-me. — mandou. Anne foi ao carro e pegou o livro, depois o entregou a Jane, que assim que bateu nos olhos dele, soltou um suspiro preocupado e afundou o rosto numa expressão de medo.

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— Anne, isso é um antigo ritual élfico para drenagem de poderes. Eles querem roubar seus poderes, e estão apenas esperando o dia certo, descrito pelo livro. — disse largando o livro no chão, como se ele a queimasse. — E o que eu posso fazer? — perguntou assustada. — Se você for esperta, pode drenar o poder deles, fazendo com que te deixem em paz pra sempre, além de prestar um serviço a bruxas que já sofreram com eles. — sugeriu, olhando pela janela. — E como faço isso? — Esteja aqui amanhã de manhã. Vamos estudar, garota. — virou-se, com os olhos negros, sem diferença entre pupila e íris. — Vou te ensinar magia. — sorriu. Anne agradeceu e foi para casa conversando com a lua pelo vidro embaçado do carro. Dormiu tarde da noite, pensando sobre tudo que Jane dissera. Anne tinha sorte por Jane ser calma e acolhedora, e não tão reservada como o resto dos ingleses. O assunto que poderia ser compreensivelmente

cortado

nas

primeiras

frases,

fora

encorajado e abraçado por Collins, assim como a causa de Anne. Era bom saber que tinha uma aliada e que pela primeira vez em meses, não estava sozinha neste assunto.

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Capítulo 21. O treinamento: A bruxa que se levanta. 8 de outubro de 1952. Londres, Inglaterra.

— O que você sabe sobre bruxas? — perguntou Jane, colocando o último livro da sua pilha de “materiais necessários sobre a mesa”. Para as aulas, Collins construíra um pequeno canto no sótão, como uma sala de aula convencional, só que com uma só

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carteira. A mesa de Jane era grande como a de um professor, e a de Anne era uma carteira velha. Ficavam perto da janela. — Sei que... Fazemos magia com feitiços, e que tem mais de nós. Isso é tudo. — concluiu, corando de vergonha. — Vejo que você não sabe absolutamente nada! — bufou, recaindo sobre a poltrona. — Bem, mãos à obra! Vou começar do início: A Trindade Maior: Segundo os livros mágicos milenares, Cronos, Universo e Caos são a origem de tudo. Tudo que existe, existiu e existirá. São conhecidos como a Trindade Maior. — É pra anotar? — perguntou, clamando aos céus para que não, já que Jane falava muito rápido. — Sim, é. — lançou lhe um olhar de incredulidade perante a pergunta estúpida. — Bem... Cronos representa o bem e sua cor é o mais imáculo branco. Universo representa o equilíbrio e a justiça, e sua cor é o cinza. Por fim, Caos representa o mal e as trevas, sua cor é o preto. “Juntos, eles são o andamento do universo, o tempo, a natureza, as leis da física... Regem tudo que tem vida, tudo que é inanimado e tudo que ainda não existe. Está neles o início e o fim, os meios e os acréscimos. Não se sabe quem os criou, já que tudo que conhecemos, todas as filosofias e tudo que existe

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ou não, é obra deles, mesmo que indiretamente. São chamados de Deuses ou Titãs algumas vezes” — Isso é fascinante! — deixou escapar. — Você ainda não viu nada, menina. Bem, as aulas vão ser sempre assim: História na primeira parte, prática de feitiços na outra. Estou te ensinando o básico para ser chamada de bruxa. — disse Collins, levantando-se da cadeira. — Ótimo. — assentiu. — Agora vamos para a parte prática! — anunciou, estalando os dedos. — Anne, você deve tomar algumas precauções. Eu não sou professora de magia, e por isso talvez eu não te ensine algumas cosias corretamente. Isso é um risco, mas vamos tentar ignorá-lo, pois outro risco maior ameaça você. Anne engoliu a seco. — Vamos começar pelos feitiços instintivos, ou seja, partem de dentro e não necessitam de palavras. Não são feitiços inventados. Feitiços instintivos são simples e se não souber realizar um, não saberá realizar os outros — explicou. — Já fez algum? — Ah, sim. Taquei Metratron na parede e fiz ele sentir dor. Meus cabelos flutuaram e eu também. — contou, rindo.

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— Você seria uma prodígio, menina. Fale a verdade. — sorriu, em tom de brincadeira. — Estou falando a verdade. — respondeu, séria. — Então acho que meu trabalho com você vai ser fácil. Pelo que vejo, você herdou a facilidade e destreza para a magia de sua mãe. — elogiou, colocando as mãos na cintura. — Minha mãe era uma bruxa também? — entusiasmou-se. — Das grandes. — respondeu, com um ar de admiração. — Mas, não vamos falar disso agora! Quero que você seja uma das grandes, pois, se você realmente faz o que disse, tem potencial para ser. Durante aquele dia, Jane ensinou Anne a dominar os quatro elementos através de feitiços instintivos. Uma aluna normal demoraria o mesmo período para aprender a controlar apenas um dos elementos da mesma forma. Anne, com todo seu potencial, percebia cada vez mais seu talento para artes mágicas e quando mais aprendia, mais queria saber.

... As aulas começavam às nove e terminavam ao pôr do sol. Assim, Jane tivera que deixar o J.C’s Hair de lado. Anne,

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percebendo a generosidade de Jane, decidiu reformar o salão, para que tivesse uma desculpa para estar fechado, e ajuda-la com uma quantia em dinheiro ao final do treino, o que mais tarde, seria o suficiente para deixa-la sem trabalhar por mais dois meses. Longe dos afazeres profissionais, toda a atenção de Collins estava voltada para o treinamento de Anne. — O mundo: Quando Cronos concluiu seu planeta habitável, Universo ofereceu seu “espaço” intitulado com seu próprio nome, uma imensidão chamada Universo. Este era o maior projeto da trindade, já que todos os outros não tinham vida. Assim, o planeta terra foi colocado no universo, e em seu sistema solar, pensado por Caos, o mais maligno e inteligente da Trindade Maior. “Então, a esperada hora de escolher os herdeiros da maior criação dos tempos fora chegada. Cada titã criou uma raça para povoar o planeta, de acordo com a sua contribuição. Cronos criou então os Dopocri (dotados do poder da criação), que é a um conjunto de taças que possui um milésimo dos poderes de seu criador, podendo assim realizar criações através de poderes naturais ou das palavras em latim deixadas por ele.

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Dentre vários povos Dopocri, como vampiros, sereias e muitos outros, o governo de todos os foi dado a uma família de bruxos, os Coweel, que são como um canal entre Cronos e os Dopocri. Assim como a raça que governavam, os Coweel possuíam o livre arbítrio absoluto, podendo agir contra os mandamentos de Cronos, embora nunca o fizesse. Concisamente falando, os Coweel são para os Dopocri, como o papa é para os cristãos. Só que ao invés de líder religioso supremo, o povo mágico vê um rei. Suas leis devem ser cumpridas e respeitadas acima de tudo. Universo, como teve seu mérito na realização deste novo projeto, criou uma raça forte e semelhante aos Dopocri: Os humanos. Não eram dotados de nenhuma parcela de seus poderes, mas possuíam a inteligência para criação de tecnologias e desvendamento de todos os tipos de ciências. Como eram tão diferentes dos Dopocri, Universo criou um governo para estes homens, a Trindade Menor. Doou à trindade um terço de seus poderes, deu-lhes a permissão para criarem seu próprio reino e seu próprio exército. Assim, o governo dos humanos é de total responsabilidade da Trindade Menor, que necessita de suas preces para se manter forte. Os humanos também dispunham do livre arbítrio, entretanto, pagariam mais tarde por suas

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desobediências. Tal condição imposta pela Trindade Menor, chamada de arbítrio pago. Universo não intervia nisso, o destino das almas dos humanos era apenas responsabilidade da Trindade Menor. Todos viviam em plena harmonia. As duas raças e seus governos, até que Caos decide usar seu direito de hospedar uma criação sua na terra. Criou então a raça que pulsa no coração de cada ser vivente, a raça maligna. Consiste na fúria, a inveja, a cobiça, a malícia, a mentira, a ganância e seus derivados. Tal raça se infiltrou em todas as outas. Instalou-se nos humanos, criando guerras e ensinando-os a usar sua inteligência para o mal. E, nos Dopocri, dando origem as ciências sujas, ou magia negra. O problema teve seu ápice quando tal raça maligna se infiltrou nos governantes dos humanos, ou seja, infectou a Trindade Menor. Dessa infecção, nasceram os demônios, e consequentemente, quando expulsos do céu, o inferno.” — Bem, isso é muito interessante, mas eu ainda não consegui separar algumas coisas. Quantas raças vivem no planeta? — perguntou Anne, com a caneta pronta. — Então, as raças que pisavam sobre o planeta, e ainda pisam, podem ser dividas em três categorias primordiais:

224


Dopocris — fadas, bruxos, elfos, vampiros —, Seres Espirituais — fantasmas, anjos e demônios — e humanos. No momento, somos Dopocris fingindo ser humanos, na dimensão humana. — Então quer dizer, que existe outro mundo só nosso? Com fadas, elfos... Por toda parte? — perguntou, entusiasmada, gesticulando. — Sim! — respondeu, sorrindo. — E, por quê você não está lá? — Eu fugi. — admitiu, recaindo o olhar para a mesa e fechando o livro de “História do Mundo: Nível Intermediário”, para não ter que olhar Anne nos olhos enquanto admitia algo tão vergonhoso. — O governo dos Coweel não é abraçado por nenhuma raça, de bruxos à centauros. — Minha mãe também fugiu? — perguntou, chegando mais perto. — Anne, não sei se sou a pessoa correta para te contar isso tudo. Espere até ter mais idade, e você saberá de tudo. Sua mãe era o símbolo de uma revolução. — pegou suas mãos, acariciou seu rosto e com três tapinhas em seu ombro esquerdo, finalizou o assunto que claramente a deixava desconcertada. — O suicídio dela pode ter ligação com o outro mundo?

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— Anne... Eu... Eu não sei. Provavelmente sim. Por favor, não me pergunte muitas coisas sobre sua mãe. Não sou a pessoa indicada para responder essas perguntas. — respondeu confusa, como se omitisse coisas para o bem da pequena. — Agora, vamos à prática! — mudou a expressão do rosto abruptamente, enxotando o clima pesado que inflava entre elas. — Ah, claro. — assentiu desanimada. — Uma das habilidades mais interessantes e exploráveis de uma bruxa é sua capacidade no domínio da levitação. É um feitiço instintivo, mas não tão simples, pois requer uma carga maior de concentração e destreza. Geralmente, as bruxas aprendem isso aos dezessete anos, e é uma irresponsabilidade minha ensinar pra você agora, mas não tenho escolha. Você tem que sair daqui sabendo o básico. — explicou. Anne aprendera a lição do dia com um pouco mais de dificuldade, mas com o trabalho de casa, conseguiu aprender a técnica e dominar a arte da levitação. O trabalho era desmontar e montar uma rosa, pétala a pétala, apenas com a levitação. Entretanto, ao passo que algumas dúvidas eram sanadas, outras maiores surgiam: O que ocasionara o suicídio de Diana? Qual seria a relação entre Jane e Diana? Por que ela não poderia falar tudo o que sabe?

O que ela sabia? Essas perguntas

226


enfestavam a cabeça de Anne, todavia, ela era grata pela sinceridade de Collins em admitir suas omissões.

Capítulo 22. A última aula. 19 de outubro de 1952. Londres, Inglaterra.

227


— Covens: Em termos humanos, um coven é como uma faculdade

para

bruxas.

Uma

escola

que

não

ensina

necessariamente, mas que faz o aluno aprender por si só, como uma faculdade que forma autodidatas. — iniciou a aula, abrindo o último da sua pilha de livros. — Qual é a importância disso para as bruxas? Fundamental, dispensável... ? — perguntou Anne. — Fundamental. Nenhuma bruxa é poderosa sem passar por um bom coven. A formação de uma bruxa pode levar uma década ou um ano. Tudo depende da evolução individual dela. Os covens são como facções, clãs ou famílias para as bruxas, onde a potência mundial é o KAV da Lua, o mais poderoso coven. “A organização é bem simples, é praticamente uma hierarquia: Três bruxos supremos, que são chamados de maestros (o termo se espalhou pelo meio mágico, já certa vez, declarou uma bruxa famosa “Um Coven grande, saudável e poderoso é como uma orquestra, onde a melodia é o reflexo do esforço dos maestros e afinação dos instrumentos”), cinco juízes e sete conselheiros, os demais são irmãos.”

228


— Como são escolhidos os cargos? — Qualquer um pode subir de cargo, é simples: Desafie a pessoa que ocupa o cargo acima para um duelo, se você vencer, tem por direito o cargo da pessoa. Mas a pessoa só pode desafiar alguém com apenas um cargo hierárquico acima do seu atual, ou seja, um irmão nunca poderá desafiar um supremo diretamente. “As funções são bem definidas. A palavra dos supremos é ordem, mas para criar leis e decisões muito importantes em que os três supremos não entram num acordo entre si, é convocado o conselho. Tudo funciona como uma monarquia constitucional quase absoluta. Cabe aos juízes julgar os que não cumprem as leis, e aos irmãos, denunciar os criminosos.” — Por hoje é só. E, não teremos prática. Já ensinei tudo que tinha planejado na sétima aula, e o resto foi detalhe que acrescentei, pois sobrou tempo. — disse Collins, fechando o livro e mandando-o para o armário através da levitação. — Eu nunca vou conseguir te agradecer o bastante por isso. O conhecimento e instrução que ganhei aqui foram a coisa mais preciosa que aprendi. Obrigado, Jane. — abraçou-a. — Você pode me agradecer me mandando uma carta quando estiver aprovada pra entrar no KAV da Lua. Além de ser o melhor coven, lá estão as respostas para as perguntas que eu não

229


posso responder. — acariciou seu rosto, deslizando as mãos dedos de Anne. — Eu prometo que vou entrar lá. Isso é por você. — prometeu com os olhos brilhando. — Vou sentir saudades da sua voz lendo livros pra mim. Essas duas semanas de puro trabalho duro foram ótimas. — Falando em livros... — estendeu a mão para o alto e o livro-manual do ritual de Anne alçou voo de dentro de um armário, pousando sobre seu palmar. — Fiz anotações aqui. Você confunde muito as frases. Caso ocorra um erro durante o ritual, as consequências são aleatórias e terríveis. Por favor, treine mais e mais essas palavras. — entregou o livro a ela. — Eu não sei como dizer isso, mas não me sinto preparada para virar o ritual contra Sarakiel. — admitiu Anne, tomando o livro para si. — Não é culpa sua, você é uma ótima professora, mas eu... — Anne, ou você acaba com eles, ou eles te perseguem pelo resto da sua vida. Esse ritual significava a sua morte, mas, agora, é a sua única chance contra a maior gangue de anjos das duas dimensões. Não há como fugir. — sentenciou Jane. — Treine e não erre. — E depois, o que eu faço?

230


— Se você quer suas respostas, vá para o KAV da Lua e entre lá com outro nome. — respondeu com um ar sombrio. — Quando você descobrir tudo, espero que ainda volte nesse sótão. Estarei esperando, menina. — Voltarei. Prometo. — sorriu. — Lembre-se: Eles têm que abrir os portões deles antes de você abrir o seu, só assim tudo dará certo. — lembrou Collins. — Eles vão ensaiar o ritual com você, mas lembre-se de que apenas a nossa versão do ritual deve ser repetida na hora. — Está bem. — assentiu cordialmente. — Obrigada, Jane. Ah, esse cheque deve ser o bastante para cobrir os dias que o J.C’s ficou parado. E, ele está lindo agora. — Anne, você é tão generosa. Eu realmente não posso aceitar. — devolveu-o, colocando na mão de Anne. — Tudo bem. Eu já tinha previsto. E é por isso que tem uma mala com a mesma quantia lá embaixo. E, não vou leva-la daqui. Se está aqui dentro deve ser sua. — deu uma piscadela. — Você vai levar aquilo sim! — insistiu, sorrindo. — Não, não vou. — retrucou. — Você merece. — Obrigada, Anne. — agradeceu, finalmente aceitando. — Sei que falo muito de Délia, mas diga a ela que eu a amo mais que tudo e que estarei esperando ela para o natal.

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— Certo. Aliás, Délia também não é uma bruxa? — perguntou. — Na verdade não. Ela nasceu na dimensão humana e isso revogou todos os poderes dela. Chamamos de “Nulos”. E, é por isso que ela não sabe sobre nada disso. — seu rosto entristeceu, e sua voz ficou baixa ao explicar. Por um momento, Anne quis não ter perguntado. — Ela é muito feliz do jeito que é. Não se culpe. — consolou. — Bem, lutamos contra demônios azuis, ou, Ogrosserpente. Ela lutou como uma verdadeira bruxa, para salvar Stephanie. Me orgulho muito dela. — Falando em Ogros-serpente, eles vão aparecer mais. Não são só Os Mercenários da Alvorada Negra que querem colocar as mãos em seus poderes, pelo visto. — É. Parece que nada pode ser totalmente bom. Essa carga sempre vai me acompanhar, assim como meus poderes. — Fique atenta, e deixe seu nome para trás. Drená-los será uma medida provisória. Eles ainda vão ir atrás de você. Metratron não desiste fácil. Provavelmente mais monstros virão ao seu encontro, mas, com o que você aprendeu, está segura. — recomendou. — Me sinto segura. — respondeu confiante.

232


Depois de duas semanas aprendendo e praticando, Anne sentia-se como se estivesse deixando uma amiga de anos para trás. Mas, algo a dizia que aqui era apenas um “até mais”. A convivência com Edward era pouca. Mas as duas semanas foram o bastante para deixa-la com saudades durante a viagem de volta. Por mais que não passassem o dia juntos por conta dos afazeres dos dois, os jantares e conversas dos dois eram algo que Anne tinha novamente e não queria perder outra vez. Encarar toda a pressão da McWaverly, o clima com Alexander, Logan, Délia e Stephanie seria algo fácil, pois agora, decidida e segura, uma nova Anne se erguia. Com o descobrimento dos planos de Sarakiel e Metratron, tudo parecia mais claro. Todos a tratavam como uma rainha e se submetiam a suas vontades, pois no final de tudo, é como se engordassem um peru para a ceia de natal. Seria razoavelmente fácil aguentar as vontades de Anne sabendo que depois ela estaria morta, e eles, com o poder dela. Perguntas ainda martelavam em sua mente, como “O que há de especial em mim? Por que não sou como as outras bruxas?”. Mas, estas perguntas eram leves e mais tarde seriam respondidas. As dúvidas eram ofuscadas pelo alívio de ter respostas que salvariam sua vida.

233


Tudo estava explicado: As contradições, o receio de que Anne explorasse seus poderes, as omissões... Agora, Anne virara o jogo. As mentiras partiriam dela, e no final, o peru sairia voando sobre o cadáver do fazendeiro. Seu plano seria imbatível.

Capítulo 23. Voltando com outros olhos. 234


20 de outubro de 1952. RedShire, Durham, Inglaterra.

McWaverly sob a mão de Bloonwold. 20/10 A

Blue Daily

capitã

parece regras.

ser

vermelha a

Ane

exceção

Desde

Segunda-feira. Rose

viva

sempre

de

Bloonwold todas

percebemos

as que

protocolos não fazem o seu tipo, e que sua irritante capacidade de nos mostrar que não tem limites está sempre presente e não se enfraquece nunca. Seja

desfilando

sem

o

uniforme,

com

roupas e maquiagens provocativas, ou dando

235


tiros no teto, Ane faz o que quer na escola e

nenhuma

providência

é

tomada,

como

se

tudo e todos estivessem em suas mãos. As inúmeras infrações da Senhorita Bloonwold já

lhe

teriam

rendido

suspenções

e

consequências mais graves, entretanto, as autoridades parecem fechar os olhos para suas “travessuras”. Na sexta-feira trágica de 3 de outubro, testemunhas dizem que Bloonwold gritou e agrediu

o

Chef

Gousteau

dentro

de

sua

própria cozinha. Dois

dias

depois,

decidiu

dar

uma

de

heroína, mas acabou sendo uma justiceira que só vê os próprios interesses. Bloonwold separou a briga de Alexander Coweel e do capitão está

vermelho

namorando

Logan e

Sparks,

morando

na

com Torre

quem do

Penhasco atualmente. Separou a briga dos galãs, imagem.

pois Mas

era

algo

pareceu

que nem

afetava

sua

perceber

que

Stephanie Jhonson, sua amiga e ministra, se

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atracara

mais

cedo

com

Allie

Grave,

por

motivos desconhecidos. O motivo da briga entre os dois touros vermelhos

seria,

claro,

Ane.

Alexander,

segundo fontes, teria tido uma discussão séria com Alexander de madrugada, no dia anterior, também por Anne. No

mesmo

dia,

na

presença

dos

líderes

azuis Luke Fitzsimmons e de Thomas Watson, Rose Bloonwold repreendeu um inspetor que estava a caminho do foco da confusão entre Logan e Alexander. Segundo as testemunhas, apenas um “Você não vai fazer absolutamente nada!” rugido pela capitã foi o suficiente para

fazer

fugir,

o

feito

inspetor um

dar

meia

subordinado.

Ou

volta

e

seja,

a

justiça só deve ser aplicada aos que não são protegidos pela indomável milionária. Como se não bastasse todo o alvoroço, a direção da McWaverly não mediu esforços ao reconstruir, semana,

a

no

incrível

torre,

outrora

período em

de

ruínas,

uma da

rebelde de Londres. Entretanto, Bloonwold

237


pareceu não ligar, e anunciou por meio de um telefonema que retornaria à escola com uma semana de atraso. O que deixa todos os alunos de ambas as irmãs

aborrecidos

e

indignados

é

a

impunidade da novata, que não se repete em nenhum outro aluno. Qual seria a explicação para

tantos

Diana

privilégios

Bloonwold

dona

para da

a

filha

maior

de

fortuna

feminina europeia, falecida em 30/09 - ? Tire suas conclusões. Agora, ninguém mais sabe o que esperar do projeto de diva que cisma em dobrar o mundo e calar as bocas. — É ótimo saber que ainda tenho aliados fortes. — comentou Anne, amassando o jornal. Poderia xingar meia dúzia de palavrões, mas seu recente contato com Edward retocara sua classe. Ao invés disso, apenas suspirou e vestiu sua expressão de assassina. — Eu não poderia ter deixado isso acontecer. Isso é o mínimo que eu poderia fazer. — desculpou-se, com seus olhos grandes cheios de culpa e o olhar voltado para o tapete.

238


— Você não tem culpa de nada, Lisie. Sua fidelidade já é o bastante. — levantou seu rosto, puxando-a delicadamente pelo queixo. — Eu tenho sido um pouco chata, reconheço. Mas, eu sinto que posso fazer isso por alguns motivos pessoais. — Você é demais, Anne. Pode tudo. — sorriu. — Bem, como foi a viagem? — Tranquila. O Expresso MW vazio é o paraíso sobre trilhos. Além disso, pedi que dobrassem a velocidade, por isso cheguei tão cedo. — contou, jogando-se para trás na cama. — Pediu? — pontuou, levantando uma sobrancelha. — É. Meio que isso... Eu não perguntei. Apenas informei que eles deveriam aumentar a velocidade. — gargalhou, admitindo. — É mais o seu estilo. Gosto disso em você. — contou. Depois de chegar da viagem, Anne descansou, para assistir as aulas da parte da tarde. Toda a escola a hostilizava, mas isso não mais importava para ela. Agora, estava decidida a largar sua carreira acadêmica brilhante, por uma carreira de bruxa no maior coven do planeta, se é que ser bruxa é uma carreira. Sendo assim, estava completamente livre. Anne colocou seu batom vermelho, seu vestido dourado de quatro anáguas, seu sapato de bolinhas, e desceu para as aulas da tardes, que voaram. Não houve nada de especial, entretanto, os

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olhares gélidos que a perfuravam, agora não se limitavam a ter Allie e sua turma como remetentes, agora, todos a olhavam com desprezo. Délia e Stephanie seguiram com palavras curtas trocadas com Anne ao longo da tarde. Pelo jeito, guardavam rancor. Anne, por sua vez, apagava tais sentimentos do coração com muita facilidade. Não é característico da loira pedir perdão, mas, decidiu que era o certo a se fazer. E, precisou de um dia completo para reunir coragem para consumar o ato. O fez na reunião da torre. — Eu não sei como agradecer ao Diretor Alston por ter conseguido a proeza de reconstruir a nossa torre num período de tempo tão curto. — virou-se para ele, no palanque, e puxou uma salva de palmas. — Bem, estive ocupada com um grande projeto para essa nova era. E, não posso revelar muitas coisas, mas venceremos a disputa final. Eu prometo. Esse ano é vermelho! — bradou com os pulmões, esperando a empolgação típica da plateia vermelha. O que se ouviu foi apenas uma pequena onda de palmas fracas. — Sei que a escola não está muito feliz comigo. Mas, prometo que farei o melhor enquanto eu estiver por aqui. —

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redimiu-se, solene, no silêncio pesado do novo auditório da Torre do Lago. A reunião terminou, e Anne pôde voltar para seu quarto. A Torre, embora fosse nova, não era nem um pouco diferente da antiga. A única mudança era que a nova Torre do Lago era mais bem equipada, maior e tudo era novo e limpo. — Délia, Stephanie... Podem vir comigo? — perguntou Anne, sem graça, apontando para seu quarto. As duas se entreolharam e assentiram com rosto impassível. Seguiram Anne pelas escadas até o primeiro saguão, entraram no elevador e o silêncio desconfortável ainda se fazia presente. Ao chegar ao novo quarto de Anne, ela pediu para que Stephanie o abrisse na frente, seguida por Délia. — Surpresa! — exclamou Anne, abrindo os braços. — É. Eles nem fizeram questão de mudar pra tentar parecer real. Dá pra ver que reergueram a torre com brilho, magia e aquelas luzes fortes que saem das nuvens. — notou Délia. — Realmente... Mas, não é isso. — estalou os dedos e ficou na frente de sua cama, que tinha mais duas idênticas ao lado. — Mandei colocarem mais duas camas aqui! — Alexander e Logan? — ironizou Délia.

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— Se fosse para eles seria uma cama de casal. — comentou Stephanie. — É pra vocês. E, me desculpa. Eu tinha pirado. Talvez eu pire mais que isso, mas eu realmente me arrependi. — desabafou. — Talvez aceitemos. — murmurou Stephanie, virando para o lado de braços cruzados. — Ah, Anne, que saudade! — disparou Délia, jogando-se nos braços

da

loira.

Desculpe-me,

sério,

eu

estava

sobrecarregada. E, quando estou assim, viro uma megera mandona. — Eu deveria ter sido compreensiva, ou então neutra. Mas, o que importa é que estamos de volta. — comentou, saindo do abraço. — E você Stephanie, vai continuar assim? Você falou o dia todo do quanto você queria se reaproximar de Anne... — instigou Délia. Anne olhou-a surpresa. Stephanie virou e sorriu. — Bocuda desgraçada. — empurrou Délia na cama e na mesma corrida abraçou Anne, por longos minutos. — Você me perdoa?

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— Eu que deveria perguntar isso. Perdão Stephanie, eu tenho sido uma péssima amiga... E vocês têm sido mais que amigas. — desculpou-se com a mão no coração, para enfatizar suas palavras e de onde elas fluíam. — Eu não quero te perder. — disse Stephanie. — Eu também não. — incluiu-se Délia. — Não quero perder vocês também. E, para isso, tomei uma decisão. — estendeu a mão direita para cima, e algo começou a estalar com baques secos e contínuos. Depois de algumas batidas, o colar de esmeraldas de Anne pulou de dentro da gaveta e se acomodou em sua mão. — É, eu andei treinando. — sorriu, fechando as bocas de Stephanie e Délia com a mão. — O que vai fazer? — perguntou Stephanie. — Isso! — jogou o colar para o alto e fez movimentos cruzados com os braços, depois abrindo-os como se empurrasse pessoas ao seu lado. Um lampejo verde cegou todos por um momento, e quando suas vozões se estabilizaram, de um lado estava o colar, sem sua esmeralda principal. Do outro, estava a pedra que faltava, partida em três pedaços. — Isso vai proteger vocês. — pegou as três pedras do chão. Délia e Stephanie assistiam boquiabertas.

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Anne colocou duas pedras na penteadeira e escondeu uma fazendo uma cúpula com as mãos. Houve um brilho branco e forte escapando pelas frestas entre seus dedos, com ruídos secos acompanhando. Ao abrir a mão, um par de brincos de esmeralda num aro de ouro branco cintilava. — É pra você, Délia. — estendeu a mão aberta com os brincos. — Prometa-me que nunca vai se separar disso. — Prometo. — pegou os brincos, colocando-os logo na sequência. Logo, Anne pegou a segunda pedra na penteadeira e repetiu o feito, apresentando à Stephanie um anel de prata com a esmeralda em destaque. — É lindo, Anne. — aceitou boquiaberta. Por último, repetiu mais uma vez o processo com a última parte da grande esmeralda. Ela deu origem a um colar simples, com um fino cordão de platina sustentando um pingente em forma de olho, tendo a pupila como a esmeralda. O olho, claramente era de Anne, por ser verde e ser exatamente como o seus. — Me sinto um pouco mais segura sabendo que vocês estão protegidas. Esse colar só defende de raças da Grande Floresta, mas é o que temos agora. — informou, caindo na cama.

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— O que são essas raças? — perguntou Stephanie, entortando a boca com uma expressão incerta sobre o que queria ouvir. — A grande floresta ocupa a área do continente africano na segunda dimensão, e é cheia de monstros e todo tipo de criatura. — explicou. Depois da pequena explicação, as duas quiseram saber mais. Ficaram conversando a noite toda sobre o que Anne havia aprendido e sobre como seus poderes eram legais. Não puderam ficar naquela noite para dormir no quarto da capitã, mas na noite seguinte suas coisas já estariam lá. Aparentemente uma ótima noite de sono, contudo, por volta das duas e meia da manhã, algo se agitara na calma da noite. Sem perceber, Anne acordava assustada com os olhos tampados por um tecido grosseiro e as mãos amarradas na cabeceira de sua cama. Ela só ouvia alguns passos desengonçados, e uma respiração acelerada. Depois de alguns minutos exclamando notas na sétima oitava, ela percebera que era inútil gritar. — O que você quer? — exclamou ela, chorando. Deduziu que não era um Mercenário, ele já a teria matado. As mãos começaram a tocar seus pés, que logo foram acorrentados de maneira fria por dedos ágeis e fortes. Com o

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corpo praticamente imóvel, tudo poderia acontecer. Ela realmente esperava que uma sessão de tortura antecedesse seu fim, seu corpo já estava preparado para adagas e alicates até que um toque diferente queimou sua pele. As mãos do homem começaram a percorrer suas pernas, logo ele já acariciava seu rosto e massageava seus seios. Anne gritava cada vez mais, pedindo para que parasse e que preferia a morte, mas ele continuou. Cada toque era molhado de fanatismo e o homem de voz irreconhecível sussurrava “minha preciosa” de forma familiar e doentia. Ele a beijou a força, depois cortou suas roupas com algum instrumento gelado. O nojo gritava mais alto do que tudo dentro de Anne, a vontade dela era de se isolar e tirar fora sua pele. Suas entranhas queimavam e lutavam umas contra as outras, àquela altura seu rins devia estar estrangulando seu útero. Tudo dentro dela se revirava e revoltava, como se a qualquer momento pudesse ocorrer uma erupção humana, ou bruxa. Seu cheiro lembrava a o Expresso MW, e de alguma forma a floresta, Redshire. Embora fossem cheiros que Anne gostava, ou quase, agora lhe traziam ânsia de vômito e vontade de parar de espirar.

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Ela se rebatia na cama, tentava se soltar, mas o homem não parava. Cuspia, mordia, gritava, agonizava, gemia e almejava a morte acima de tudo. Não seria mais a mesma. O que corria pela sua pele era uma essência nova, repugnante, luxuriosa, podre, e problemática, covarde. A madrugada se arrastara lentamente, como se os minutos escorressem pelas paredes como gotas grossas e lentas de sangue. Sangue que manchava os lençóis e as pernas de Anne. Quando sua voz desaparecera junto com suas esperanças, a “coisa” saiu de cima dela, deixando-a minimamente mais aliviada e com o dobro de medo do que viria a seguir. — O que? — sussurrou a voz, com tom de surpresa e desagrado. Um grunhido se ouviu. O coração de Anne palpitou. Ruídos e estrondos sucederam-se durante alguns minutos. Eram barulhos fortes e misturados, que sugeriam a Anne que seu quarto estava sendo destruído por uma briga entre uma fera e um homem. Minutos passados, um último baque alto e seco finalizou a luta. Anne não sabia o vencedor, e tampouco tentava descobrir. Sua cabeça e seu corpo doíam, e estava a um passo de um desmaio.

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Sentiu um bafo quente em seu rosto, e logo a boca da fera arrancou as vendas em seus olhos e as amarras em suas mãos e pés. Sua visão embaçada revelou um cervo de chifres imponentes e espalhados. Ao vasculhar o quarto, percebeu uma criatura enrolada numa capa negra de capuz aos pés da janela. Era o corpo de um homem e havia sangue perto dele, o que relatava a vitória do cervo. Não é preciso enfatizar o quanto o momento foi confuso. Anne já não mais sabia quanto do que via era delírio ou realidade. O cervo permanecia a frente de sua cama, como se estivesse em posição de protege-la do homem embolado na capa. O corvo grunhiu e ciscou com a pata traseira, abaixando a cabeça como se estivesse prestes a chifrar o homem caído e encolhido. Surpreendentemente, de súbito, asas majestosas cortaram as capas e o homem se atirou pela janela, voando. Anne encarava a lua e o par de asas batendo em direção a ela. O corpo não era identificável por conta da capa e do capuz. Isso lhe renderia muitas dores de cabeça. Estava confirmado: Não poderia ser um aluno. Os principais suspeitos eram os mentores e o diretor, mas poderia ser, curiosamente, qualquer um dos professores.

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Quase caindo, Anne se esforçava para permanecer sentada e controlar seu choro, na esperança de conseguir tecer algum pensamento claro. Enquanto isso, o cervo ao seu lado a acariciava com o focinho.

... Vinte minutos depois, estavam Stephanie e Délia no quarto de Anne, ajudando-a nesse momento tão difícil. — Eu não sei o que pensar. — disse Stephanie, transtornada. — Anne, você tem que fugir. Ou, mate-os com seus poderes. — sugeriu Stephanie, tomando sua mão. — Eu não posso! Eles são muito fortes pra eu dar um jeito, e eu não sei se conseguiria matar alguém. Não posso fugir, pois eles vão me achar de qualquer jeito. Minha única chance é o ritual. — explicou, contendo suas lágrimas, entre Délia e Stephanie. — Estaremos com você, até o fim. — abraçou-a Délia. — Temos que ser frias. Estamos contra tudo e todos. Meninas, sejam fortes. Até a segunda semana de novembro, temos que nos manter unidas. — encorajou Stephanie.

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Capítulo 24. Nova pele. 21 de outubro de 1952. RedShire, Durham, Inglaterra.

— Délia, Stephanie... Acordem! Temos um longo dia pela frente. — gritou Anne, puxando seus cobertores com seus dotes de levitação. — Ainda temos quarenta minutos. — grunhiu Stephanie, colocando a cabeça debaixo do travesseiro.

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— Anne, por favor. Você deveria estar cansada e eu entenderia se não fosse à aula hoje, mas essa empolgação não tem explicação. — reclamou Délia, cobrindo-se com o lençol. — Temos coisas a resolver, vamos meninas, levantem-se! — bradou radiante, abrindo as janelas. — Como entrou aqui? — perguntou Délia, esfregando os olhos e emergindo de seus cachos ruivos. — Magia. — sibilou estalando os dedos em faíscas brilhantes. Anne esperou as duas se arrumarem e partiu pelas escadas até o saguão da torre. — Portana. — sussurrou, tocando o nariz na madeira do grande portão principal da torre. Logo, de mãos dadas com as outras duas impetrantes do trio, atravessou a porta como se ela fosse algum tipo de material líquido que não a molhasse. — Brilhante. — deixou escapar Stephanie. — Mas, o que vamos fazer? — Vamos calar a boca de alguém que fala demais. — respondeu com a voz sombria e escura, assim como seus olhos, tomados por sombras.

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Anne fitou o horizonte, sentiu as árvores e pôs se a assobiar junto com o vento. Dois minutos depois, o cervo que estava em seu quarto sobrevoou o emaranhado ruivo de Délia e estacionou na frente de Anne. — Boa menina... — acariciou-a. — Garotas, essa é Dian, nossa nova montaria. E, ela voa. Subam! — indicou a coluna do animal, que se curvou para facilitar. Stephanie subiu, juntamente com Anne. — Eu tenho medo de altura, e animais, e... — gaguejou Délia. Anne e Stephanie se entreolharam com um sorriso malicioso no rosto. — Pode, eu deixo. — estimulou Stephanie. Anne fixou seu olhar na ruiva, jogou os braços em sua direção, contorceu os dedos e seus olhos se encheram de escuridão e sombras. Logo, Délia já não controlava mais seu corpo, que flutuava rapidamente até o animal, como se tivesse sido arremessada. — Anne, você não tem o direi... — fora cortada pelo impacto da decolagem dinâmica do animal. A viagem durou cerca de cinco minutos, até aterrissarem na cobertura da Torre da Montanha.

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Logo, as três grudaram seus corpos ao chão por três motivos diferentes: Délia por seu medo de altura, Stephanie por um tombo, Anne para tatear o chão neblinado a procura de uma alça de alçapão. — Finne trenger! — gritou Anne, com as unhas fincadas no chão. Em resposta, a maçaneta brilhou como o fogo e o alçapão voou longe provocando impacto em Stephanie, que recém levantada, voltara ao chão. — Por aqui! As duas seguiram a orientação, e desceram as escadas em caracol, chegando a um ambiente totalmente sem luz, onde apenas vultos disformes eram identificáveis por conta da luz cinza do céu nublado. — Lett Stonce! — sussurrou com convicção. A luz natural pareceu se agrupar e ficar mais brilhante, numa esfera quase sólida, logo, pôs-se a iluminar o caminho a frente das três, como um guia. — Anne? — chamou Lisie, ao passo que a esfera se dividiu em duas e a iluminou do outro lado da sala. Era um lugar fétido, com ratos mortos, caixas, cadeiras quebradas, papeis ilegíveis e todo tipo de quinquilharia velha.

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Anne cruzou o salão ao seu encontro, e estava ansiosa a ponto de dar corridinhas para chegar mais rápido. Délia e Stephanie seguiam desconfiadas, cochichando atrás. — Onde está ele? — perguntou, trocando olhares diretos mesmo sob a penumbra. — Aqui. — disse Lisie, puxando um lençol encardido, revelando um guarda-roupas negro, velho e torto. Anne tomou a frente e abriu as portas do guarda-roupas com seus poderes, zunindo longe as duas portas. Dentro do guarda-roupas, tinha uma cadeira, com um menino amarrado. Anne fez a cadeira flutuar lentamente até ela, em linha reta. O menino se debatia e gemia, mas sua boca estava amarrada, assim como suas mãos e pés. — Anne, o que significa isso? — perguntou Stephanie, num misto de nervosismo e irritação. — Significa que nosso querido redator chefe não vai mais publicar uma mísera notinha negativa sobre mim. — respondeu estapeando o vendado, ao som de uma gargalhada. Quem estava amarrado a cadeira era Joshua Bloom, redatorchefe do Blue Daily, e também autor da matéria “McWaverly sob a mão de Bloonwold.” — Obrigada Lisie, agora é comigo. — dispensou-a.

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— Foi um imenso prazer. — sorriu de volta, fechando a porta e levando consigo o feixe de luz forte que iluminava as expressões atônitas da ruiva e da negra. — Está ouvindo isso? É uma ventania, raios... Tempestade talvez... Vamos lá pra fora, Josh? — cantarolou cínica como uma psicopata doentia. — Anne, o que você vai fazer? — gaguejou Délia. — Me vingar. E, talvez me divertir. — estalou os dedos, e como um foguete, a cadeira subiu em direção ao alçapão. Anne saiu correndo para a cobertura, onde Joshua já a esperava. Como sempre, as outras duas demoraram para digerir e foram atrás. La encima a neblina havia sumido, entretanto, a ventania ameaçava arremessar em Bloom coisas que Anne pensara, mas não tivera coragem. — Josh, está vendo aqueles raios? Eu aprendi a “capturar, direcionar e carregar” eles. — sorriu, gritando para ser ouvida, ao passo que soprou chamas que desintegraram o pedaço de pano que calava Josh. — Por favor! O que você... Você... — suplicou entre soluços.

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— Vamos dar um passeio. — tomou-o em seus braços e se jogou da torre, caindo uns quatro metros, até ser pega por Dian. — Vamos voar, querido. Cortaram os ventos dentre as nuvens, lado a lado com os raios e trovões, enquanto Anne os atiçava mais e mais, influenciando a tempestade. Suas manobras eram violentas e íngremes, seus mergulho eram arriscados e insanos. Voava como uma águia feliz e determinada a mostrar seu poder. Arremessava o pequeno nerd para um lado, e Dian o capturava no outro. Ao fim dos quinze minutos de terror para Joshua e diversão para Anne, ela o colocou nos braços das nuvens, a vinte mil pés e altura. Enquanto o jovem caia desengonçado gastando seu fôlego com gritos esganiçados, Dian mergulhava graciosamente, com uma agulha. Como resultado, Anne chegara ao solo quarenta segundos adiantada, bem a tempo de fazer o apavorado Bloom parar por completo a dois palmos do chão. — Gostou? — perguntou, retirando o feitiço que o mantinha parado flutuando, fazendo-o cair deitado no chão. — Pense duas vezes antes de escrever meu nome com um “N” só. Sugiro que não mais escreva sobre mim, a menos que queira um final diferente para a queda livre no final do passeio.

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Joshua saiu correndo para dentro da torre, logo, Délia e Stephanie apareceram correndo no sentindo contrario. — Você não tem escrúpulos! — exclamou Délia. — Obrigada. — sorriu sarcasticamente. — Anne... Por quê? — questionou Stephanie, incrédula. — Cansei de ser boazinha. Ele me detonou, e eu ainda assim só brinquei com ele. — respondeu sem olhá-las, lançando-se floresta a dentro lado a lado com Dian. — Não sejam velhas, foram raios de menos de 50 volts. — Ela está insana. — comentou Stephanie, virando-se para Délia com um rosto franzido e preocupado. — Ela está com medo, e esse é o jeito dela de matar esse medo. Eu, no fim de tudo, a admiro. — respondeu. — E, cale a boca, você quebrou o nariz de Allie Grave.

... O céu ficou negro e pesado, e aquela manhã ficou roxa. A temperatura só fez cair, o vento parou de soprar como se acariciasse sua testa e começou a soar como um empurrão. De repente cinco jovens mulheres vestidas de branco saíram de trás das árvores que rodeavam o local. Eram todas loiras, suas

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feições faziam qualquer mulher repensar seus cuidados com a beleza, seus corpos eram esculturais, seus cabelos brilhavam quase que luminosamente. Estavam descalças e com vestidos de noiva. Eram todos cheios e com rendas por todos os cantos. O buquê que elas seguravam não era repleto de flores e sim de espinhos. Descalças, elas chegavam mais perto de Anne fazendo um círculo em volta dela, e a cada passo seus vestidos ficavam mais escuros, a cada passo a aura de beleza que as rodeava ficava mais escassa, mostrando rugas, que de longe era o menor dos outros defeitos repugnantes que surgiam aos poucos. Já a três metros de Anne, as noivas tinham se transformado em aparentemente viúvas velhas amargas. Os buquês tinham virado velas e os fios dourados camuflaram-se de branco e prata entre si. Seus pés tocavam o chão como se a terra tivesse nojo de acolhê-los, o ar a volta delas era de alguma forma pior. Os vestidos continuavam cheios e majestosos, só que negros. Juntas, elas falaram uma única frase, suas vozes eram ensurdecedoras e masculinas, demoníacas e perturbadoras. — A cabeça preciosa na bandeja. O poder temível domado. A coroa não sustentará, o cetro não segurará, a revolução morre com teu sangue no chão. — cada letra pronunciada perfurava a

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pele de Anne como navalhas. Já de pé, ela se desesperava no meio do círculo. De repente, por debaixo das saias cheias de anáguas dos vestidos cobertos de noite, oito patas monstruosas de aranhas se estenderam. Eram viúvas negras, um trocadilho mortal. Seus rostos angelicais agora tinham mais olhos, vermelhos e redondos. A luta se mostrou intensa, ela desviava com graça dos golpes e usava o ambiente a seu favor. Já não dava mais para continuar apenas se defendendo, então quando um dos demônios a envolveu numa teia, Anne resolveu usar o que estava tentando evitar, pois feitiços de ataque não eram tão fáceis. Seu corpo ficou totalmente tenso. Energia se acumulava em todas as suas articulações, até que ao liberar, todos os pelos de seu corpo se arrepiam brilhantes, transformando seus cachos num verdadeiro espetáculo. Ela estava como em uma foto com efeito negativo, brilhava como uma deusa em tons cintilantes de azul e branco. — Wybuck Feny! — conjurou. A liberação fora sucedida, uma aura branca em volta de seu corpo se expandiu até aniquilar todas as viúvas de uma vez só.

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Seus corpos caíram ocos, secos e desidratados no chão, totalmente murchos. Quase que mortalmente cansada, ela preferiu não levantar e esperar o sono chegar para renovar suas forças. Fora a maior liberação de energia mágica de sua vida até aquele dia, o que a faz desabar sem forças nas pernas. O sono pairava sobre Anne, numa dança sem música aonde o silêncio conduzia o espírito. A noite caíra e ela continuara lá, a luz iluminava seu rosto de uma maneira mágica e surreal, prateando a beleza e escurecendo os defeitos, dentre as árvores. O sangue em seus lábios, o cabelo molhado grudando em seu rosto, seus olhos verdes brilhando mais do que as estrelas... Tudo parecia se despedir dela, num “adeus” simples, seco e mesquinho. Cada minuto era um passo em direção à morte, cada hora era um grau diferente de desespero. Depois de um dia todo dormindo exausta no chão, uma vibração estremeceu o chão, acordando-a assustada. Levantou num pulo, abruptamente, e passando as mãos pelo pescoço, percebeu que havia perdido seu cordão durante a libertação do feitiço, e também que já era noite.

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Desesperou-se furiosamente, lançando raios por todos os lados enquanto se desembaraçava da teia pegajosa, até que Dian apareceu, trazendo em seus galhos uma fruta oca servindo de recipiente para um pouco de água e outra fruta um tanto estranha, para acompanhar. Anne, faminta do jeito que estava, aceitou a fruta sem ao menos saber o que era, na sequência, engoliu a água e subiu em Dian para retornar à torre. No caminho, viu que o “estádio” da escola estava cheio e que o alvoroço que a acordara era a torcida azul diante do treino de seus atletas, para o Torneio de Inverno, no sábado. Anne espiou e decidiu que não tinha tempo a perder. Conseguiu chegar três minutos adiantada para a reunião do fim do dia da torre. Colocou o uniforme, tomou um banho e alegou que esteve o dia todo doente. As pessoas não acreditavam, mas se sentiam melhores por ver que ela ainda se preocupava em inventar desculpas. — Peço ao nosso time de atletas titulares que se apresente. — disse Anne, depois de ter resolvido as outras partes mais burocráticas da reunião. Sete meninos fortes e másculos apareceram, fazendo uma fila perfeita na frente de Anne, no centro do auditório, cinco deles

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eram do grupo de Alexander, os populares. O sexto deles era o próprio Alexander e o último, o humilde e brincalhão Jason Corey. — Não temos meninas no time? — pontuou. — Não. — responderam todos os sete, em uníssono. — Sente-se, Alexander. Está dispensado. — ordenou. — Agora vocês têm uma menina no time. Eu. O clima pesou por um instante e Alexander virou as costas furioso. Allie o recebeu com um sorriso, como se tivesse gostado do fracasso de seu namoradinho. — Nossas reuniões serão às quatro horas da tarde durante toda a semana, seguidas do trino até às oito. A cozinha já está avisada de que jantaremos mais tarde. Meninos, vamos vencer! — anunciou, batendo na mão de cada um deles. Eles sorriram e voltaram aos seus lugares. Anne já se preparava para encerrar a reunião. — E, novidade! O baile de inverno caiu exatamente junto com o Halloween, então será um baile-fantasia. — todos bateram palmas e mostraram empolgação, como se fosse uma reunião de setembro. Com o som alegre da empolgação dos alunos, a reunião sonolenta teve seu fim.

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— Ei, meninas! — gritou Anne, correndo até Délia e Stephanie. — Por onde esteve, sua louca? — estapeou-a Stephanie. — Eu fui surpreendida por monstros horríveis na floresta. Viúvas negras. São feias, como se fossem aranhas e mulheres com vestidos negros ao mesmo tempo. Para livrar minha pele fiz um feitiço muito forte e acabei desmaiando, só acordei a noite. — explicou. — Isso está ficando pior, Anne. Algo está atraindo essas coisas. — inferiu Délia. — Meus poderes. Eles chamam os inimigos, como uma afronta, ou como o cheiro de carne fresca. Eu estou me preparando para o pior, pois o feitiço que fiz hoje a noite nos trará muitas coisas imprevisíveis. Cuidado. Amo vocês. — abraçou-as ao mesmo tempo. — Te esperamos no quarto. — gritou Stephanie. — Chego lá em duas horas! — respondeu já de longe. Anne passou no quarto de Lisie e lhe pediu que conseguisse a lista dos desafios dos Jogos de Inverno. Nos Jogos de Inverno, os alunos eram jogados num trajeto mortal surpresa pela floresta durante um dia completo. Nunca se

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sabia quais seriam os obstáculos, e por isso, muito treino às vezes era jogado no lixo. Pensando nisso, Anne estava decidida a vencer de lavada, e para isso, queria a lista dos obstáculos. Coisa que para Lisie era fácil de conseguir. Entretanto, enquanto desfilava pelos corredores até chegar ao dormitório feminino, fora surpreendida por alguém que realmente não queria ver, mas que não rejeitaria: — Isso já está passando dos limites. — sussurrou Alexander, aos seus ouvidos, apertando seus braços para que não andasse. — Me solte agora, e acho que você ainda não percebeu que eu não tenho limites. — retrucou sussurrando em sua nuca. — Eu colocarei limites em você, garota. Pois você está destruindo os meus. — virou-a de frente, apertando-o contra seu corpo, prensando-a contra a parede. — Chega de guerra. Cansei de ser tão infantil quando você. Não finja que não existe algo entre nós. Anne pensou em usar seus poderes e tacá-lo na outra extremidade do corredor, mas pensou bem e percebeu que seria muito idiota se o fizesse. — Alexander, eu... — gemeu, pateticamente, enquanto ele passava a mão por seu cabelo e deslizava a outra por sua cintura.

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Quando ele tentou beijá-la, Bloonwold sentiu seu hálito fresco em seu pescoço, o que remeteu ao episódio traumático na noite anterior. Assim, ela o esbofeteou no lado direito do rosto e saiu correndo desesperada. Com dificuldade, concluiu o caminho até o quarto de Lisie e deixou o recado. Por volta das nove e quinze da noite, chegou em seu quarto e como de rotina, as três meninas conversaram bastante sobre os assuntos que as aterrorizavam antes de dormir, mas o que fechou a noite foi o relato das sensações misturadas e confusas de Anne ao quase ser beijada por Alexander. Cansada, Anne caiu no sono e dormiu entre Stephanie e Délia, numa mesma cama, pois tinha medo de que algo acontecesse novamente.

Capítulo 25.

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Nascimento e morte. 29 de outubro de 1952. RedShire, Durham, Inglaterra.

Anne passara a semana tentando se aproximar de Alexander, trocando olhares furiosos com Allie, fugindo dos olhares do resto da escola, certificando-se da segurança de suas amigas e se preparando para os Jogos de Inverno e também para o que viria no dia seguinte, o baile. Entretanto, nada disso a deixava tão nervosa quanto o que viria no dia do baile, ao ápice da lua cheia: O ritual. Durante a semana, também ensaiara todos procedimentos doentios e exatos do ritual. Era difícil passar todo aquele tempo com Sarakiel, Metratron e os outros anjos, pois Anne agora nutria um sentimento de medo e raiva deles, por vários motivos. Mas, também sentia nojo de todos, por não saber o dono do par de asas que voou na noite apavoradora que tivera. Isso a deixava doentiamente desconfiada.

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Outra coisa curiosa intrigante, e no mínimo inconveniente, é que durante a semana, algo cresceu dentro de Anne. Um bebê. Não crescia como os bebês normais, não causava efeitos de uma gravidez normal. Apenas crescia numa velocidade alarmante, fazendo com que todos na escola a olhassem com repulsa. Anne não acreditava que poderia estar gravida de um anjo, de um anjo estuprador. A ideia de que a cada dia sua barriga dobrasse de tamanho a assustava, mas era esse o ritmo do crescimento do feto. Na escola, opiniões se dividiam sobre a paternidade do bebê. Logan, Alexander e até Metratron eram os favoritos do povo. Isso afastara Logan, seu grande amigo e Alexander, seu quase pretendente a namorado. Era incrível que como de uma hora pra outra, por conta de uma barriga, Anne deixara de ser confiante e indomável para se reduzir a uma pessoa depressiva, obediente, indiferente e complexada. Tem tomado remédios, e a felicidade pareceu esquecer-se da existência desta menina que chora todos os dias, por todos os cantos, por qualquer coisa. Uma hora, geralmente à noite, Anne parecia radiante e confiante, e de repente, seu humor a colocava novamente num

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estado deplorável. Isso começou a partir do momento que caiu em si e de repente se viu grávida. Sobrenaturalmente gravida. — Professor! — Exclamou Anne, com voz falhada. —Diga. — ele não colocou os olhos nela, apenas continuou escrevendo, assim como todos os outros. —Talvez a piranha esteja em trabalho de parto. — cochichou alguém, entre risinhos. — Fale isso mais uma vez e talvez a minha mão arranque seu intestino grosso pela boca! — ameaçou Délia. — Repita e talvez eu arranque o seu intestino começando pelo final dele. — complementou Stephanie. — Não meninas. É exatamente isso. — confirmou Anne, para o espanto de todos. — Está nascendo. — Como? Você está em trabalho de parto? Tem certeza? — ele logo, afastou as carteiras a sua volta e a olhou nos olhos, com a voz alta. Era bem difícil ver o Sr. Troover daquele jeito. — Tenho! Tire-me logo daqui! — implorou ela, com o rosto vermelho e o corpo contraído. O Sr. Troover era um homem jovem, alto e bem afeiçoado. Seu cabelo era ruivo, sua pele era pálida e metalicamente branca. Sempre estava bem vestido e usava uns óculos cafonas.

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Ele correu com ela por todos os corredores numa velocidade inacreditável, gritando para que se afastassem. Foi em direção à enfermaria da torre mais próxima, a Torre do Penhasco. — Ela está em trabalho de parto! É prematuro! — anunciou o professor ao entrar na enfermaria. — A coloque nessa cama. — orientou a enfermeira puxando a cortina. — Por favor, termine logo isso. — ela estava completamente suada e tremia de um jeito quase convulsivo. A porta se abriu, e lá estava ele acompanhado de Délia e Stephanie. — Força Anne. — disse ele segurando sua mão. — Não me deseje forças. Tem um demônio dentro de mim. – gaguejou ela, com voz sombria entre gritos. — Cale a boca e abra as pernas! — gritou a enfermeira enfiando-lhe um pedaço de pano na boca e tirando suas roupas de baixo, afastando suas pernas com força. Os gritos aumentavam à medida que a menina ia obedecendo às orientações da mulher. Agora, a luz oscilava a cada vez que Anne emitia um som.

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— Troover, não podemos ficar aqui! — alertou Metratron, invadindo a sala. — Precisamos de você lá fora. Eu cuido dela daqui pra frente, sou mais forte. — Sério? Logo agora? — disse ele olhando as rachaduras na parede e deduzindo que esta era a segunda torre a cair. — Passem ela para uma maca, agora! — Troover! — gritou Metratron, ao ouvir outro estrondo. — Eu não vou sair de perto dela agora! Vá para lá e eu prometo proteger ela. — explodiu, com os olhos em chamas. Metratron grunhiu e lançou um olhar confuso para Anne. — Você vai ficar bem, garota. Vou tentar ganhar tempo pra vocês, mas evacuem a torre. Um exército está lá fora. Eles vão derrubar isso aqui em dez minutos. — contou, acariciando-a. — Não me toque, seu idiota. — retrucou, estapeando sua mão. Ele virou as costas e partiu. — Délia e Stephanie. Evacuem a torre! Avisem a todos os alunos. — ordenou o Sr. Troover. Assim fizeram. Délia e Stephanie correram na frente anunciando a queda da torre, a enfermeira juntamente com o professor colocou Anne na maca, e o caos só estava no início.

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— Temos que sair daqui, agora! — anunciou o professor tirando fora sua gravata. — Ela está em trabalho de parto! Não tem como sair agora! — justificou a enfermeira. — A torre está caindo! — rebateu ele. — Garota, você tem que ser forte. — ela acariciou Anne e subiu na maca, perto das pernas da mesma, para continuar o trabalho, mesmo em movimento. — Pode empurrar. O professor logo providenciou algo melhor: Dois leões albinos, acorrentados à maca puxavam-nas por todo o corredor, enquanto ele se transformava na sua forma angelical e se preparava para lutar lá fora. — Perpedrux e Esferafux, levem-nas para a torre da administração. — ordenou, fazendo os olhos dos leões pegarem fogo. Um rugido anunciava a presença dos dois, e logo começaram a tirá-las do local. Os leões eram imparáveis e rugiam ferozes durante todo o percurso pela Avenida PL. Os corredores subterrâneos em volta da torre já estavam vazios, Délia e Stephanie fizeram seu trabalho.

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Ao olhar para o lado, Anne pôde perceber que suas amigas estavam correndo contra o tempo para fugir do desmoronamento que aconteceria em todos os túneis ao redor. — Pare os leões! — ordenou Anne, com voz rouca e baixa. — Não podemos parar, temos que sair daqui rápido! — Pare os leões. — insistiu, séria. O desabamento era gradual e àquela altura, a Torre da Montanha já era ruínas. O que tornava tudo alarmante, mesmo depois da queda da torre, é que seu desabamento causava um efeito dominó e suas amigas estavam quase sendo pegas por eles. — Não posso. — retrucou, com mais pedaços do teto caindo atrás dela. — Se não parar esses leões eu te juro que nunca mais verá o verde de uma árvore. — ela levantou a voz e fez mais força para expulsar o feto. A

enfermeira

ordenou,

com

algumas

palavras

incompreensíveis em latim. — Corram! — gritou Anne, para Délia e Stephanie, para que alcançassem na maca.

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Mas, infelizmente, o desabamento alcançou-as, a nuvem de poeira de mármore tomara conta do ar e as lágrimas de Anne já tinham esgotado. — Temos que sair daqui! — Não se atreva, imunda! — repreendeu Anne. — Não saio daqui sem elas. — Você é complicada! A sua vida está em risco, e com isso a do planeta! — Eu sei que a profecia é mentira, sua idiota. Sei que estão de olhos nos meus poderes. Pare com esse teatro e tenha a decência de me deixar em paz pelo menos agora. Logo, a enfermeira pulou da maca e aspirou com a boca toda a nuvem de poeira, deixando o ar quase como antes. Para o choque da mulher, a imagem que se revelou não foi tão boa. Lá estava Délia, com apenas a cabeça pra fora dos destroços e Stephanie, que chorava enquanto tentava puxar a ruiva para fora, sem sucesso. — A ruiva está soterrada! — gritou a enfermeira para Anne, indo em direção às meninas e deixando a loira sozinha. — O que? — sua voz não saia, então ela rolara para o lado, caindo no chão empoeirado para conseguir ver a cena e tentar chegar lá. Arrastou-se e se debateu com agonia fervente, mas

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seu pranto era maior que tudo. Mesmo assim ela não desistiu. Não conseguia ficar em pé, e a gravidade parecia funcionar dobrada sobre ela. —Volte agora! Não saia de perto da maca! Anne me obedeça! — gritou a enfermeira olhando para trás, chegando mais perto das meninas. — Me deixe com ela, volte! Leve Anne! — implorou Stephanie entre soluços, para a surpresa da quase-mãe. O pranto das duas era igual ao olharem os fios ruivos de Délia soterras por escombros brutos, e não mais areia movediça. A enfermeira assentiu e voltou. — Fuja, sua idiota! — ordenou Délia, por debaixo dos entulhos. — Não! Eu vou ficar aqui com você, até o final. — prometeu Stephanie, segurando nas mãos de Délia. — Eu te amo! — gritou. Sua dor podia ser sentida por qualquer um, porque era algo maior do que tudo naquele momento. — Fuja agora ou eu vou te jogar a minha magia negra, vaca. — sorriu ela, o brilho já deixava seus olhos. Stephanie chegou mais perto, e as duas compartilharam um beijo. O último beijo. Seus lábios pareciam não querer se

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desgrudar, até que a morte possui completamente um deles, tornando-o gelado e morto. Stephanie cai no chão e não larga o corpo de Délia, até que a enfermeira a puxa pelos pés sobrenaturalmente e a coloca encima de um dos leões. Logo, Anne já estava presa à maca num estado irreconhecível, e Stephanie agarrada à juba do leão, que se chocava com a parede usando a mesma como um portal que dava acesso a Torre da administração. As duas choravam tanto que nenhum som saia de suas bocas, estavam sem fôlego e sem vontade de tê-lo. Todos os músculos de ambas estavam igualmente contraídos e incontroláveis, seus pulmões vazios expulsavam o ar com força, mas suas cordas vocais não produziam mais que gemidos fracos. O buraco que a morte de Délia causava em suas amigas não cabia em palavras. A revelação de um romance escondido entre as duas era como agulhas nas feridas de Anne, além do fato de perder sua nariguda favorita. Délia Collins morreu numa quartafeira chuvosa, em 29 de outubro de 1952. — Faça, força! — gritou a enfermeira. — As minhas morreram junto com Délia, pois uma filha de puta não me obedeceu. — retrucou Anne.

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— Pare de falar e continue! — ordenou ela, enfiando um pedaço de tecido em sua boca. Estavam na Torre da Administração, o que seria o lugar mais seguro. Definitivamente não era uma torre, suas dimensões internas eram absurdas. Tudo era totalmente branco e claro, era apenas um salão vazio com algumas pilastras e bandeiras penduradas. Não havia portas, paredes nem escadas. Não havia início nem fim. Logo, a mulher colocou as mãos na barriga da menina e falou para fazer um pouco mais de força, e tudo se iluminou em algo quente, até que o neném finalmente nasceu. Eu não diria que Anne deu a luz, muito pelo contrário. — Meu Deus! — espantou-se a enfermeira caindo para trás. — O que é? — perguntou Anne, um pouco mais aliviada, ainda soluçando. Um círculo de fogo se faz no ar, rodeou a sala e se materializou em Metratron. — Tome seu bebê. — a enfermeira rasgou um pedaço de seu jaleco e enrolou a criatura nele e depois ajustou a maca para que Anne pudesse ficar sentada. Ao olhar para a face da criança, Anne o joga contra a pilastra mais próxima e grita.

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— É um demônio! — O que você fez? — perguntou Metratron, correndo em direção à criança que não fazia barulho. Era uma criatura roxa e não tinha braços. Seu cabelo era de uma cor entre o marrom e o verde e saiam dedos de seus olhos. Sua boca era repleta de fileiras de dentes afiados e vermelhos, suas pernas eram como patas de touro e no centro de seu tronco havia um buraco. Ele tinha três chifres, dois curvos e um reto no meio da testa e não respirava. — É a semente do perdido que se faz no ventre. Esse bebê é de uma fruta e não de um aluno. A mulher que come a fruta fica grávida disso, e dentro dele vem o objeto que ela perdeu. — disse ele, colocando a mão dentro do bebê e tirando de suas entranhas o colar de Anne. — Era pra eu ter adivinhado. Nenhum bebê cresce em uma semana. — Eu comi uma fruta estranha. — lembrou Anne. — Seu colar. — colocou em suas mãos, depois de lima-lo do sangue da criatura. — E, quem te deu essa fruta? — Pode ficar tranquilo, não foi nenhuma bruxa. Um cervo empurrou a fruta até mim, na floresta. — vociferou.

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— Esse cervo resolveu os seus problemas. Você não deixou de usar o colar, ele estava com você. Dentro de você, por isso nenhum Mercenário te tocou. — Melhor do que qualquer colar, seria você me protegendo, mas a verdade é que você nunca estava lá quando eu mais precisava. — disparou ela, enquanto a enfermeira recompunha suas estruturas com algumas palavras de cura, passando a mão em seu corpo. — O melhor amigo não é o que está lá pra você, isso se chama cachorro. Eu estava lutando contra o conselho esse tempo todo para anular a profecia, mas não consegui. — ele levantou a voz, mas vacilou. — desculpe, eu queria ser mais presente nesse processo. Ao falar da profecia, a enfermeira encarou Anne como se fosse entregar a Metratron que ela já sabia de tudo, o que certamente resultaria em sua morte, mas, surpreendentemente, ela sussurrou em seu ouvido: Estou torcendo por você. — Anne, eu descobri quem fez aquilo com você. — afirmou Stephanie, abrindo os olhos e se levantando da posição fetal em que estava. — Foi o Jhon. — “Aquilo” o que? — perguntou Metratron.

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— Cale-se, anjo. — ordenou Anne. — Como sabe, Stephanie? — Eu estava indo para o dormitório quando ouvi ruídos. Segui os sons e eles me levaram à Jhon. Eram como gemidos e suspiros, risadas e gargalhadas. Ele estava radiante e parecia um maníaco, ele cheirava as roupas de Anne e depois as mãos, compulsivamente. Usava uma capa negra, mas depois mostrou o rosto quando o capuz caiu. — admitiu ela, dentro de soluços e gaguejos. — Ele não me viu. Eu apenas fiquei calada observando enquanto ele não me notava. — E por que você não me contou? — gritou ela, andando em direção a Stephanie com passos mais firmes do que o possível para uma adolescente que acabara de sair de um parto. O que possibilitara isso era a cura que a enfermeira estava exercendo sobre seu corpo. Os feitiços internos de regeneração que Anne mesmo conjurava sobre si ajudaram. — Eu fiquei com medo, você está tão estranha... — admitiu ela, ainda no chão, encostada numa pilastra. — Estranha? Você é realmente é a Stephanie? Acho que não. Stephanie... Você não é a Stephanie. — ela estava com algum desequilíbrio mental, era muita coisa para uma menina de quatorze anos. Seus olhos piscavam dessincronizados e suas

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palavras saíam com velocidades diferentes. Suas pupilas estavam dilatas e as lágrimas desciam sobre um sorriso maligno. — Você está louca! — gritou a negra correndo para longe. — Louca? Não, estou bem pior! — sua voz era grave e limpa e tomava conta de todo o salão, embora o mesmo não tivesse limites. Anne levantou as mãos e colocou os braços para frente, entortando os dedos. Seus cabelos começaram a flutuar e seus olhos estavam tomados de um brilho negro. Todo seu corpo estava tomado por magia e logo as luzes mudavam de coloração com as palavras ditas por ela. — Suffocatos! — tais palavras fizeram Stephanie cair no chão. — O que você está fazendo? — gritou Metratron correndo para pará-la. — Estou tirando o ar dos pulmões do Mercenário, por favor, não me atrapalhe. — ela sorria e seus olhos se arregalavam a cada onda nova de cores. — Ela não é um Mercenário! Ela é sua amiga, Anne! — insistiu ele. Ele tentou chegar mais perto, mas ela se desconcentrou da menina e o jogou contra a pilastra sul.

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— Patético Metratron. Eu esperava mais. — ela gargalhou, voltando-se para a menina. Num súbito, ela estendeu as mãos para trás com os dedos esticados em uma só direção e Stephanie começou a deslizar pelo chão, até parar na frente de Anne, de cabeça para baixo. — É melhor confessar agora. — sussurrou ela, rindo doentiamente. — Onde está Stephanie? E, por que Délia não está aqui? De repente uma escada se fez á esquerda da maca. Era uma escada com o meio estreito, com o topo e o último degrau largos, que conforme chegavam mais perto do meio diminuam gradualmente. Era branca, e seu corrimão era dourado, talvez ouro. No meio dela, descendo sem tocar os pés na mesma, descia Sarakiel. — Menina, você tem mais conhecimento do que pode. — alertou ele, ainda calmo. — Avisei que era pra não desenvolver esses poderes. — É melhor se afastar! — Não, você não me fará mal. — soou impassível. — Veremos. — ela jogou Stephanie contra Metratron, que amorteceu sua queda. E, se virou para o velho.

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Logo começou a dedilhar suas têmporas e dar tapas na cabeça, repetindo títulos de livros e páginas: “Bruxaria, terceira classe, página 50... Não, página 201!” —Flammae Vinculo! Uma corrente de fogo se expandiu das mãos de Anne, rodeando o local até chegar a Sarakiel. O homem ficou em chamas, mas logo depois as chamas ficaram azuis e se condensaram, formando novamente seu corpo. —Fraco! — olhou-a de cima. — Bruxaria, quinta classe, página 32,75,28! — ela tremia e entortava os dedos a cada palavra. — Lacarnum Inflammare! Abaixo de Sarakiel, uma chama começou a se se formar. Se estendendo por seus membros. A chama ficou maior, maior e maior. Até que seu corpo não era mais visível. Todavia, duas asas com penas flamejantes libertaram-se para fora da chama, e depois uma fênix completa alçou voo e sobrevoou todo o salão. Logo a mesma explodiu no ar, e num pulo Sarakiel sai do fogo com as seis asas abertas impondo sua luz a todos. — Patética! — cuspiu ele, colocando a mão com a palma pra cima, para frente abaixo do queixo e assoprando. Deste assopro saíam mil vespas negras e entravam na boca de Anne, que caía de joelhos, calada e imobilizada.

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Ela desmaiou, e logo ele tratou de enfiá-la numa camisa de força. Era cheia de espinhos, negra e pegava parte das pernas. — O que você fez com ela? — gritou Metratron, enquanto a enfermeira cuidava de Stephanie. — Como você a deixou ter contato com a magia? Estúpido! Sabe o risco que isso significa para nós. — deu um tapa na cara de Metratron. — Não deveria ter subestimado a garota. Nem consigo ler mais a mente dela, embora eu penetre na sua com uma facilidade absurda. — Não sei como isso aconteceu. Ela não teve contato com a área restrita da biblioteca. — mentiu. — E, não achei que ela executasse essas coisas... — Ela é uma bruxa! Claro que ela executa. Os feitiços foram muito bem executados, eu realmente estou desgastado depois desse evento. — reclamou. — Ela vai ficar aqui, não posso deixa-la fora de nossos olhos. “Você sabe muito bem o porquê da profecia ter sido criada, sabe muito bem que ela não é qualquer bruxa, sabe muito bem que ela não é a mistura de um humano e um anjo. Ela é uma ameaça, todas do tipo dela morreram, mas apenas ela... Ela ainda é uma ameaça! — O medo era visível em seus dedos trêmulos, ele gritava enquanto Metratron encarava o chão.”

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Capítulo 26. Decisão. 31 de outubro de 1952. RedShire, Durham, Inglaterra.

Querido diário, o dia se aproxima. Sarakiel me mandou ficar longe de bruxaria e disse que isso consumiria minha alma. Não acredito, mas vou ficar longe esses últimos momentos porque quase matei minha melhor amiga. Quando executo muitos feitiços, algum tipo de criatividade macabra toma conta de mim, não sei explicar. Fora que quanto mais pratico magia, mais tropas chegam do exército de ogros-serpente. Realmente andei lendo muitas coisas, livros muito antigos com um conhecimento mais poderoso do que eu. Não me arrependo, mas não quero saber mais. Ainda não estou conseguindo comer, e muito menos dormir porque perdi uma parte de mim recentemente. Estou completamente sozinha, Stephanie não

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pode ficar aqui dentro, caso contrário teriam que apagar sua mente. Meus sentimentos estavam embaralhados, eu estava tentando driblar a profecia e acordar minha bruxa poderosa interior que teria o mundo em suas mãos; não é bem assim. Hoje é o dia em que me despeço deste planeta. Depois de presenciar tantas despedidas, é hora de me despedir. Espero que a humanidade agradeça, espero estar em pelo menos um livro de história. Estive louca essas últimas semanas, e até perdi o controle de mim mesma em alguns casos, me tratei com um profissional que me ajudou a quebrar barreiras e construir uma nova versão melhorada de mim mesma. Mãe, pai, Délia... Vejo vocês essa noite. —Anne, se prepare. Eles estão vindo! — empolgou-se o diretor, passando por um arco florido no terraço da Torre da Administração. — Eles quem? — perguntou ela, fechando o diário e levantando-se do divã. Deixando-o aberto, para que suas mentiras fossem lidas com sucesso. — A Ordem dos Anjos! — exclamou ele. — Eles também viram galinhas que pegam fogo? — brincou ela, sem sorrir, soando como uma afronta.

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—Vou fingir que não ouvi isso, em respeito à onipotência e onisciência deles. — sentou-se do lado de Anne. — Quando eles chegam? — perguntou sem demonstrar tanto interesse. — Assim que você estiver pronta. — apontou ele para uma cesta prateada. — Vista o que tem lá dentro. —Vestir exatamente o que? —Você vai saber. Quando a tampa foram abertas, lá estava, um vestido se ergueu, ficando parado no ar. Ele tinha um decote coração, era como de uma princesa e as mangas eram longas e transparentes, numa tela rendada. Era branco e ornamentado com alguns detalhes vermelhos, como pedras e mais rendas. Embora fosse cheio, era extremamente leve e sensível ao vento, sua barra arrastava levemente pelo chão e suas mangas ficavam mais largas ao chegar mais perto das mãos. Acompanhava uma tiara de flores prateadas, com detalhes em diamantes. E o detalhe que fazia tudo ser perfeito, era o colar de esmeraldas que dava o toque final, puxando tudo e transformando em parte de dela. Desceu as escadas até o primeiro nível do terraço, usando todos os aspectos da leveza do vestido, mas não radiante como

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ficaria quando morava na verdadeira casa, e sim melancólica por estar caminhando para a própria morte, pois, embora tivesse tudo em mente, não sabia ao certo como quebrar o ritual e coloca-lo a seu favor. É como se fosse andar de bicicleta numa avenida movimentada apenas por ter lido um manual explicativo. A teoria estava lá, mas a prática não. —Você está realmente linda. Mas, vamos ao que interessa. Suba nessa carruagem, e lembre-se de tudo. Se você fizer errado... — Eu sei. — cortou, segurando-se para não se estressar além da conta. Logo, uma carruagem branca com detalhes em prata, puxada por uma infinidades de pombas imáculas “estacionou” na frente da Torre. Anne a encarou com desdém. — Eu não vou subir nisso. É ridículo. — grunhiu. — Vamos de outro jeito, tipo esse. — jogou-se de cima da torre, esperando que Sarakiel a tomasse no ar. Foi exatamente o que aconteceu. Os cinco anjos formaram um círculo a sua volta, no ar, e então, todos foram sugados para o centro, num tele transporte em queda livre, que fora consumado a dois metros do chão e de uma morte terrível.

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A sensação deveria ser de glória e paz, mas na verdade era que a melancolia de Anne a deixava imersa em indiferença. Tão absurda que nada podia impressioná-la naquele momento. Metratron abriu as asas, logo ela pôde sair. Sentiu os destroços em pés descalços, sentiu Délia de alguma forma, sentiu as vidas que foram perdidas dois dias atrás para que naquela noite aquilo viesse a acontecer. A noite estava fresca e o céu estava coberto por nuvens, com apenas alguns buracos que possibilitavam ver as estrelas. As arvores dançavam com o vento, e tudo lembrava a noite em que Diana se foi. A tristeza era mórbida e coletiva, a imagem não poderia ser mais dramática: Duas jovens lindas, uma vestida de preto e a outra com vestes brancas ao vento, cinco anjos com suas seis asas ao vento e o coral das folhas de outono, que se despendiam das arvores caindo como neve. Stephanie estava lá por pedido de Anne, mas nenhuma palavra ousava sair de sua boca, já era algum tipo de luto antecipado. Ela estava linda num vestido negro, rodado e com listras douradas finas. Era um vestido de Anne. —Stephanie... — ela chegou mais perto, a negra não expressou qualquer reação, mas logo as duas se abraçaram

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abruptamente por alguns minutos. Não houve histeria como de costume, apenas duas lágrimas solitárias. — Sabe o que fazer, não é? — sussurrou. Stephanie assentiu com a cabeça. — Se posicione, Anne. Está chegando a hora. — alertou Sarakiel. — A hora vai chegar quando eu estiver pronta. E, ainda não acredito que esse foi o lugar escolhido para o ritual. — grunhiu, limpando as lágrimas. Sarakiel se calou. Estavam exatamente sobre os destroços e ruínas da Torre do Penhasco. Havia um pátio circular em meio aos escombros, todo encrustado de pedras, formando desenhos em espiral a sua volta. Cinco elevações com púlpitos circundavam os limites do pátio circular. Os mentores e Sarakiel tomaram seus púlpitos e deram início. Logo, anjos começaram a surgir de toda a parte. Eram os funcionários e professores da escola. Não tomaram lugares nos púlpitos, o que sugerira que seriam ocupados por coisas mais importantes. Em questão de cinco minutos, o local estava cercado por terra e por ar de anjos dos mais variados tipos. O centro da

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grande aglomeração era Anne, e era exatamente isso que fazia seu coração palpitar. Todos a encaravam calados, fúnebres e solenes. Era loucura pensar que um espetáculo como aquele era algo secreto, que todos fingiam não saber da ocorrência, até um dia atrás. A Sra. Riclle parecia petrificada e triste, ao passo que o Sr. Bootein exalava confiança e ansiedade. Stephanie permanecia impassível, indiferente e imóvel. Chegaram. Eram eles. As maiores deidades que a terra já presenciou se materializavam do ar. Eram sete. Todos idênticos, com exceção de uma coroa na cabeça do ser do meio. Vestiam túnicas prateadas com detalhes dourados, suas barras lambiam o chão assim como suas mangas. Seus cabelos eram brilhantes das mesmas cores das roupas, seus olhos eram desprovidos de íris e pupilas, sobrando apenas uma imensidão brilhante. Eram pálidos e altos, todos do mesmo tamanho. Não tinham asa, mas seus pés não tocavam o chão. A lua cheia revelara por trás das nuvens, assim que A Ordem chegara. Olhando para o lado, Anne pôde perceber Metratron e Sarakiel se curvando, e Stephanie fazendo o mesmo. Todos repetiram a posição, dando um show de esplendor, com suas asas brilhando acima.

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— Curve-se! — sussurrou Sarakiel, com o canto da boca. — Nunca. — retrucou ela, em voz alta. — Coberta de petulância, desprovida de razão. Filha da lua, nos despimos de metade de nossa divindade para estar aqui no encerramento, a princípio bem sucedido, da profecia dos sete véus. — falaram todos juntos, como se lessem em jogral. — Como prova de que o sangue dos seres vindos do céu, não se deixa enfraquecer com o fruto da mistura repugnante com sangue dos pecadores fracos, toma-lhe a profecia para tu e tua descendência. “Antes das trinta e seis primaveras, a mulher descendente do pecado deverá se sacrificar, sendo na véspera da tata de aniversário de treze primaveras de sua primogênita.” Só com o sangue será provada a pureza do mesmo que corre nas veias angelicais. Perigoso é o poder nas mãos do falho, errado é o pecado no coração do divino. — o coroado, logo desenrolou um pergaminho de um metro e meio, e começou a ler. Sua boca não se mexia, mas sim a de seus companheiros, contudo eram seus olhos que liam o que estava escrito e o som partia deles” Houve um grande silêncio. Na sequência, ao olhar para cima, percebeu que aproximadamente cinquenta anjos alinhados

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perfeitamente em círculo preparavam-se para tocar os tambores a sua frente. As mãos estavam acima de suas cabeças, fechadas com força desnecessária. Logo, todas caíram ao mesmo tempo, fazendo-se ribombar aos quatro ventos os trovões secos que saiam de seus instrumentos. — Anne Rose Bloonwold, Megnyitja a szívet, kroppen din, låser opp din sjel og gir oss tilgang til skattene? (Anne Rose Bloonwold, você abre seu coração, seu corpo, destranca sua alma, e nos permite acesso aos seus tesouros?) — disseram todos juntos, soando como rugidos ao vento. — Jeg tillater. (Eu permito) — respondeu, com convicção. — Wy, istoty z nieba nyílnak meg egy kapcsolat? (Vocês, seres dos céus, abrem seus portões para uma conexão?) — Megnyitjuk. (Abrimos.) — responderam todos. Numa segunda olhada para o céu, percebeu que os tambores haviam sumido, e em seus lugares, estavam trombetas douradas e prateadas. Soaram todas as trombetas ao mesmo tempo, reverberando pelas pedras. — Kinyitom a testem, mój umysł, min sjel. Vedd el, amit akarsz. (Eu abro o meu corpo, minha mente, minha alma. Pegue o que quiser.) — nem todos os anjos terminaram a frase ou a

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disseram corretamente. Logo, um cochicho começou a se espalhar, e os únicos que pareciam realmente conectados ao ritual eram Anne, A Ordem dos Anjos e os Mentores. O resto questionava o aparecimento da frase, que nunca constara no texto original do livro. “Isso está errado.”, “Isso não está conforme o livro”, “Tem algo de errado acontecendo, estão nos enganando”. O ritual era em élfico, e nem todos sabiam tal língua, mas de tanto decorarem o roteiro, sabiam que a última frase dita, era surpresa. O que estava acontecendo era simples: Anne tinha adaptado as falas, de modo que o ritual a favorecesse e drenasse a “Alma mística” — poderes — dos anjos, e não dela. Como o ritual seguia uma linha de diálogo grande e com palavras difíceis, todos os envolvidos, tinham para si uma cópia do roteiro. O que ninguém sabia, era que Lisie Holliway havia cumprido com êxito a última ordem de Anne: Trocar os roteiros originais do ritual, para os roteiros modificados que Anne imprimira. Desse modo, os anjos estavam lendo e consumando aos poucos o ritual de Anne. — Isso está errado, parem esse ritual! Parem! — gritou Sarakiel, saindo de seu púlpito. Os demais anjos não lhe deram

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ouvidos, pois assim como e A Ordem e os mentores, já estavam numa conexão profunda e inconsciente. — O roteiro está errado! Isso é um golpe! Ninguém deu ouvidos, pois quando ele acordou, os demais anjos desconfiados já se encontravam em sintonia com o ritual. — Gondolom nekem hans mystiske sjel, dets skatter, og vil jeg redusere et menneske. Fogyaszt hittel? (Eu tomo para mim, sua alma mística, seus tesouros, e o reduzo a um humano. Consuma com fé?) — disse Anne, enquanto sua pele se ascendia num brilho azul e seus pés começavam a deixar o chão. — Igen. (Sim.) — responderam os conectados. No momento, os corpos foram ao ar sem o trabalho das asas. Todos brilhavam em tons de roxo e cinza, com exceção de Anne, que rodopiava no ar em volta de si mesma, imersa no ritual, brilhando em tons de azul e verde. Parecia uma convenção de possuídos num lugar sem gravidade. Correntes e rios de luz saiam de dentro das bocas e olhos dos anjos, se juntando numa esfera multicolor, mais brilhante que o sol, acima da cabeça de Anne. Isso significa que todo o poder místico estava sendo drenado de seus corpos, e colocado na esfera, que mais tarde, seria colocada em Anne, tornando-a dona de um poder monstruoso.

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O chão sacudia e as nuvens rodavam em espiral acima de suas cabeças, com um brilho interno dentro delas. Raios e trovões enfeitavam o momento, chicoteando os escombros a sua volta. O vento rugia cada vez mais forte e coisas voavam descontroladas por todos os cantos. Anne continuava rodando no ar como um brinquedo, totalmente inconsciente, abaixo da orbe, assim como os anjos permaneciam totalmente petrificados no ar, com suas asas abertas e seu poder fluindo numa correnteza até a orbe. Sarakiel continuava enlouquecendo ao tentar parar o ritual, mas em dois minutos tudo estaria acabado. — Não! Parem, parem! — suplicava, vendo seu plano ir por água abaixo. — Era pra ser ao contrário! Percebendo que gritar não adiantava, partiu para a algo mais bruto e decidiu por um fim nos planos de Anne de uma vez por todas. — Eu não queria que fosse assim, garota. Não consegui colocar a mão nos seus poderes, mas vou terminar o que fui pago para fazer. Adeus, garotinha mimada. Ser prepotente não é ser invencível. — alçou voo e quebrou o campo de força que a protegia com alguns raios.

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Sacou uma adaga de dentro de seu casaco, posicionou-se na altura de Anne. Logo, mirou e lançou a faca, que cortou o vento entre piruetas a caminho de seu coração. Enquanto a faca prescrevia seu caminho, a loira abrira os olhos a tempo de vê-la acertando abaixo de sua garganta, entre seus seios. Soltou um grito alto e rasgado, como de uma pantera, e caiu no chão de joelhos, com as mãos no chão e uma imensa nuvem de poeira atrás. A esfera se consumiu e explodiu, mas o poder dos anjos não fora devolvido, assim como também não estava dentro de Anne, simplesmente se dissipou pelos céus e nuvens afora. As dezenas de anjos despencaram desmaiados no chão, enquanto suas asas se separavam de seus corpos, torando-se pó, espalhado penas ao vento entre as pedras, num contraste entre texturas. Caíram no chão, seu esplendor e graça haviam sido retirados. Seu brilho tinha se apagado por completo, agora suas peles pareciam cinzentas e seus cabelos de cores feias entre o grisalho e o castanho. Suas vestes eram agora de um tecido pardo, grosseiro e sem cor. Seus rostos estavam sujos de poeira dos escombros, liricamente só Anne permanecia lutando contra a morte, prostrada, mas não caída.

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— Missão cumprida. — sussurrou ele, para si mesmo, enquanto caminhava até uma Anne prostrada, com o vestido destruído, cabeça baixa e quase como se estivesse curvada. Sarakiel a olhava de cima, com nojo e repulsa, e um certo orgulho de ter vencido alguém tão “difícil” quanto ela. Ele sentia a respiração ofegante dela, sentia o piscar de seus olhos, sentia o calor de seu rosto, por mais que este estivesse ocultado e virado para o chão. A sua volta, apenas destruição e tragédia. Anjos desmaiados, pedaços inteiros de asas por todos cantos, penas ente escombros, e a fabulosa Ordem dos Anjos reduzida a apenas velhotes caquéticos. — Vai ser rápido e indolor... Mas no inferno não. — desembainhou uma espada branca e reluzente, rodou-a no ar e a fez cair sobre o pescoço de Anne. — Adeus, Bloonwold. — Missão incompleta. — disse ao passo que desaparecia num tele transporte instantâneo. A espada cortou o vento e atingiu o chão. — O que? — sussurrou para si mesmo, atônito. — A vida não me abandonou. — apareceu novamente a três metros, exibindo a adaga limpa, sem sangue e a esmeralda de seu cordão danificada, o que sugeria que fora salva pelo colar.

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— Não pode ser! — praguejou, voando para cima de Anne. Anne novamente desaparecera num piscar de olhos, reaparecendo atrás de Sarakiel, e golpeando-o com a adaga em sua nuca. Empurrou-a até ver sair pela garganta, e então, na sequência, tomou a espada de sua mão e finalizou amputando suas asas. — Ser prepotente não é ser invencível. — sorriu, cuspindo em seu corpo caído. E quando ninguém mais percebia, a recém-liberta começou a correr para o ponto mais alto do penhasco, bem na beirada. Olhando para trás, com lágrimas nos olhos, deu um último tchau para Stephanie. A negra tentava correr atrás dela, mas Dian a impedia. Pois era seu dever leva-la para um lugar seguro assim que o ritual acabasse. Ao chegar à ponta, do ponto mais alto do penhasco, ela olha para trás. — Que a vida não te abandone. — disse sorrindo, para Stephanie, logo depois deu o último passo em direção ao vazio de uma queda mortal. Com o rosto um pouco abaixo do nível de inclinação de seu corpo, com os olhos fechados e os braços abertos ela se deitou nos lençóis da morte. Ao percorrer a queda, seu esvoaçante

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vestido branco ornamentou a hora fúnebre, juntando-se ao vento e dançando a música dos anjos com graça. No vestido de Anne, uma chama começou a se se formar, se estendendo por seu corpo. A chama ficou maior, maior e maior. Até que a própria não era mais visível. Todavia, duas asas com penas flamejantes desdobraram-se, e depois uma fênix completa alçou voo e sobrevoou toda a floresta. Logo, a mesma explodiu no ar, e num pulo Anne sai do fogo com vestes negras e olhos flamejantes, impondo seu poder a todos, sobre o ponto mais alto do terraço da Torre da Administração em chamas. De cima do penhasco, eles não puderam ver o espetáculo. Estavam todos pensando que Anne realmente morrera. Contudo um último indício de que ela ainda seria petulante com outros velhos, longe dali, foi uma risada alta e extravagante, que ecoou por toda a floresta. A McWaverly foi fechada e as lembranças de todos os alunos modificadas de forma que não se lembrassem de nenhum acontecimento sobrenatural. Os boatos que corriam pela região é que um grupo de homens estava se juntando para recriar um grupo secreto de caça às bruxas da idade medieval. Apelidados de “Nova Alvorada”.

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Epílogo. Querido diário, forjar minha morte, ou nascer de novo foi a melhor coisa que já fiz. Eu estava insegura, mas no momento em que via a adaga vindo na minha direção, soube que o destino interviria. Os anjos agora são apenas humanos, e estão fervendo em raiva. Isso foi ótimo para mim. Já eu, me sinto mais poderosa do que nunca. É como se eu tivesse o mundo em minhas mãos.

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Agora, preciso tirar um tempo de descanso. Emoções muito fortes me tomaram nesses últimos meses, e o que eu preciso é apenas tempo. Algo que nunca tive o luxo de ter. Vou viver meu luto e minhas alegrias de uma forma plena e normal. Aprendi esse nos que sempre temos escolhas, mesmo que as pessoas pensem que podem toma-las por nós. Você tem que ser forte o bastante pra ser o que quer, e mais forte ainda pra ser o que é. Eu escolho ser uma bruxa, escolho sofrer por isso. E, Délia... Eu vou chorar sua morte todas as noites, para sempre, a não ser que de alguma forma você esteja comigo de novo. Sim, eu ainda estou secretamente na MacWaverly, tenho que acertar umas coisas com Jhon. Feitiços de tortura física ou mental? Eu não sei. Agora tenho que ir. Londres me espera. Eu poderia ir de trem, num feitiço de invisibilidade, mas minha mais nova montaria é um cervo voador, Dian. E acabou de chegar, depois de deixar Stephanie em sua casa. Isso é um adeus. Tenho que construir uma nova versão de mim, e para isso tenho que matar Anne.

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