Crônicas da Guerra dos Muitos Mundos - Volume 1

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© Os Autores, 2016 Capa

Nery Freitas Revisão

Ana Lúcia Merege Projeto Gráfico

Rochett Tavares Diagramação

Rochett Tavares Ilustrações

Nery Freitas Al Gomes Organização

Rita Maria Félix da Silva Todos os direitos desta edição estão reservados aos autores da antologia São Paulo - SP


Sumário Agradecimentos Introdução A Espada de E’Katorr Batalha na Terra Sem Males O Retorno de Drake Borny Inversões A Noviça Escarlate O Portão Sul de Hadyqah Tierrarouge Auto-Retrato de uma Natureza Morta Nicole’s Waiting A Espera de Nicole Tabula Rasa As Muitas Vidas de Robert E. Wells Perturbação Interdimensional Especular Em Kepler 443 As Cinzas de Viridiana O Exército Indestrutível de Wei Liang Tigre Branco Arlen Of The Sword Arlen da Espada Fire in the Darkness Fogo na Escuridão Famoso Coronel Apoloniano morre em Atentado na Terra 850 Glória Feita de Sangue! Rio de Janeiro se alia oficialmente ao Império Apoloniano Um Juramento dos Soldados Apolonianos Uma Breve Análise do Grito de Guerra da Resistência de Kendack Um dos Juramentos da Resistência de Kendack Mundos em Guerra Sobre os autores


Agradecimentos Agradecimentos são um instante muito especial, porque nele podemos reconhecer os méritos e esforços de todos que tornaram algo possível, no caso, este ebook. Primeiro quero agradecer a todos os autores que aceitaram participar deste projeto, que acreditaram nele, abraçaram o conceito e confiaram que seria realizado. Sem o talento de cada um de vocês, sem seus textos maravilhosos (cada um a sua maneira), este ebook nunca teria existido. Entre os autores, sem diminuir o mérito dos outros, chamo a atenção para cinco: Ana Lúcia Merege que me acompanhou, aconselhou e opinou desde o começo e foi quem se encarregou da segunda revisão da maioria dos textos. Sem Ana, não acredito que eu teria ido muito longe. Ana também escreveu um segundo texto para cobrir uma lacuna que tivemos com autores que não puderam participar. Daniel Folador Rossi também opinou e aconselhou e, inclusive, trabalhou para resolver uma carência que tivemos de ilutradores. Daniel também colaborou com um segundo texto para a antologia. Luiz Mendes Filho, que redigiu o juramento apoloniano e redigiu, comigo e Márcia, a introdução deste ebook. Marcia Tondello não apenas concordou em incluir um segundo texto seu no ebook, como também redigiu, com Luiz Mendes Filho e eu, a introdução deste ebook e redigiu sozinha o juramento da Resistência de Kendack. Rochett Tavares, além de ter escrito dois textos para a antologia, foi o nosso diagramador, criou cartazes e uma imagem para a Resistência, e fez tudo isso com uma dedicação e qualidade de dar gosto. Outro grande obrigada vai para os ilustradores Aurelio Gomes de Albuquerque Filho (Al Gomes), mentor e grande realizador da revista Nanquim Arretado, e Néry Freitas. Num momento de carência terrível que tivermos de desenhistas, esses dois caíram do céu e salvaram o dia, fornecendo ilustrações maravilhosas e de tirar o fôlego. Por exemplo, quem fica apático ou apática diante do símbolo apoloniano ou não é tocado por uma nota de tristeza quando vê a ilustração de Al Gomes para Garen Ordonax? De todos os americanos que convidei, apenas John Ostrander e Marjele Lister puderam participar. A você, John, agradeço por abrilhantar esta antologia, com seu talento, qualidade literária e profissionalismo, afinal você é um dos melhores escritores de sua geração. Quanto a Marjele, meu mais que muito obrigada por ter me dado a honra de escolher esta antologia como o primeiro lugar em que está publicando. Esse rapaz é talentoso e tem muito futuro.


A todos obrigada e que os deuses do multiverso protejam a todos e os iluminem sempre! Rita Maria Felix da Silva Organizadora


Introdução{1}

Rascunho para um artigo{2} de Lothar Gan Amon, historiador e bibliotecário nos domínios do Duque Sebastian Resniack III, do planeta Yun (nome local para a Terra nº 2100), aristocrata que, na época, era chamado de “O Justo”, mas que, adiante, seria registrado nas Crônicas do Reino como “O Duque Decapitado”: Protaclus{3}, o sábio, afirmava que não é a ciência, a fé ou a magia que governa a existência, mas a ignorância. Essa frase do velho louco (que morreu linchado pelos compatriotas) sempre me volta à memória quando lembro que, para o leigo, o mundo e o universo em que vive formam a soma de tudo que existe. Não há erro maior. O que levianamente chamamos de “Existência” é a soma de vários universos, que, em conjunto, formam o Multiverso. Portanto, ao contrário do que prega o leigo, não existe um universo, mas vários. Claro que, na era em que escrevo este artigo, ou desde Garen Ordonax, do Novo Império Apoloniano, da Resistência de Kendack e da Guerra dos Muitos Mundos, ninguém com bom senso defenderia a ideia do universo único, mas estou me adiantando. Melhor partirmos do início... Sabe-se que os apolonianos se originam de um dos vários planetas Terra do Multiverso, planeta este contido num universo em que humanos são a raça dominante, pois, como podemos presumir, humanos não são dominantes em todos os universos. Nesta Terra, como na nossa, havia um país chamado Estados Unidos da América. Durante um período semelhante ao da Guerra Fria, a URSS deste planeta vivenciou uma tragédia. Uma arma atômica experimental foi detonada acidentalmente em seu solo. Uma nuvem de radiação se espalhou e os padrões climáticos enlouqueceram. Essa URSS deixou de existir, metade de seu território ficou desabitado porque virou um deserto de radioatividade. Como consequência, milhões de refugiados invadiram a Ásia e o resto da Europa, provocando caos social e desordem. Enquanto isso, nos países do Ocidente, o Capitalismo sofria a maior crise de sua história, uma crise mais avassaladora que as de 1929 e 2008 em nosso mundo. Desemprego, fome e revoltas populares estenderam o caos da tragédia russa para dentro dos Estados Unidos e por todo o Ocidente. Neste clima apocalíptico, o general reformado Bruce "Apollonius" Henry Sanderson, de natureza cristã, conservadora, simpatizante do fascismo, com grande oratória e carisma, reuniu o estado-maior, conclamando as forças armadas do país para um golpe de estado e conseguiu. Teve início a Grande Marcha Sobre Washington,


quando os exércitos comandados por Sanderson invadiram a capital americana e o Presidente, senadores, deputados, governadores e centenas de políticos regionais foram executados ao vivo em rede nacional e via satélite para o resto do planeta. Sanderson colocou o país em lei marcial por tempo indeterminado e adotou um plano de austeridade para salvar a economia. Muitos reagiram, milhares foram mortos ou executados, ora publicamente, numa onda de expurgos jamais vista na história daquele mundo até então, ora em privado. Inspirando-se no Império Romano, que sempre venerou, Sanderson promulgou uma nova constituição que o tornava Imperador com poderes supremos. Ao mesmo tempo, adotou leis draconianas para disciplinar o comportamento de cidadãos e evitar levantes civis. A antiga Esparta foi seu eixo social, o modelo em que se baseou para refazer a “América”, tornando-a uma sociedade militarizada onde tanques e tropas vagam diariamente pelas ruas. Num fervor messiânico, unificou o Cristianismo do país, mesclando-o ao Estado, tornando-se Imperador e Pontífice. Dissolveu o Legislativo (assumindo pessoalmente o papel de legislador), iniciou uma campanha de conquista que, nos anos seguintes, estendeu seus domínios por toda a América do Norte, Central e do Sul. Alterou o nome do país, que passou a se chamar “Novo Império Apoloniano”{4}. Sob seu punho de ferro, o Império prosperou, avançando pelo Atlântico e conquistando a Europa, a Ásia e África. Via acordos, Sanderson também se apossou da Oceania. Mas essa história estava longe de acabar. Numa outra Terra do Multiverso, um cientista chamado Garen Ordonax fez algo que mudaria o destino de todos os mundos possíveis. Quando Ordonax construiu a Interface Dimensional, – permitindo um intercâmbio entre diferentes dimensões{5} e universos – Bruce "Apollonius" Sanderson já havia morrido{6} e seu Império era governado por sucessores. Idealista, Ordonax dedicou sua vida à construção da Interface. Queria provar a existência do Multiverso e disponibilizar uma sonhada interação entre humanos de diferentes dimensões, abrindo campo para trocas cooperativas inimagináveis. Num deserto de seu país, ergueu um complexo para abrigar a máquina mãe, a Interface Dimensional. Infelizmente, seu sonho transformou-se em pesadelo. O elo entre universos instigou a cobiça do Novo Império Apoloniano, que elaborou acordos com outros mundos para, sob sua liderança, atacar e se apossar da Interface Dimensional. Assim fizeram, com enorme sucesso. Em pouco tempo, a fatídica coalizão já aniquilava, pilhava ou cooptava povos de outros universos. Em termos comparativos, o Novo Império Apoloniano equivale a uma mistura de fascismo mussolínico, Império Romano e antiga Esparta de nosso universo. Paradoxal? Não para Apolônia{7}, que tortura inimigos, que cultua Cristo{8} e o Imperador, que escraviza povos,


que tem nas forças armadas sua instituição mais sólida, que extermina e faz transmissões públicas de execuções, como nos tempos de Bruce Sanderson. Apolonianos são treinados e focados, têm obsessão pela ordem. Veem-se no dever de espalhar seu modo de vida pelo Multiverso, “civilizar” povos que consideram inferiores, bem como escravizar os “incorrigíveis” ou exterminá-los. Creem que, se não mantiverem o Multiverso sob controle, cedo ou tarde um caos como o que ocorreu na Terra de Bruce Sanderson extinguirá tudo. Diante da ameaça que o Novo Império Apoloniano passou a representar, dissidentes de todo o Multiverso criaram coalizões que cresceram e se solidificaram como opositoras dos apolonianos. Com o tempo, uma delas se destacou, amealhando as demais numa frente conjunta, que ficou conhecida como “A Resistência de Kendack”{9}. Vendo seu sonho corrompido de forma indelével, Ordonax desesperou-se, sabotou e explodiu a Interface Dimensional, sacrificando sua própria vida, mas também aniquilando centenas de soldados apolonianos. Contudo, esse gesto não encerrou o conflito. A partir da tecnologia criada por Ordonax, o Império e a Resistência já tinham desenvolvido versões portáteis da Interface Dimensional, podendo cruzar universos com tropas, naves, provisões e armamento de grande porte. Para piorar, a Interface original, após ser destruída, tornou-se uma passagem seminatural permanente entre dimensões, com características similares às do portal anterior. Logo, os Apolonianos retomaram sua posse. Logovitz, como também era chamada a Terra de Ordonax (cuja população foi escravizada e relocada pelo Império para campos de trabalho forçado em outras dimensões) ficou conhecido como o “Distante Reino da Interface Dimensional”. A Resistência de Kendack tentou, em vão, e por diversas vezes, ter o controle do lugar. Ao longo do conflito, milhões de vidas têm sido perdidas na luta pelo portal dos portais. Assim, uma grande guerra entre universos, a Guerra dos Muitos Mundos, se desencadeou e se alastrou pelo Multiverso, afetando diferentes planetas, de diferentes modos, em diferentes tempos. Por toda parte, O Novo Império Apoloniano e a Resistência de Kendack conquistavam ou cooptavam mundos. Para operar a Interface no “Reino Distante”, os Apolonianos descobriram que podiam treinar e utilizar humanos ou outros seres sapientes que fossem dotados de grande inteligência, criatividade e imaginação (artistas, por exemplo, constituíam uma das categorias visadas pelos recrutadores apolonianos). Estes seres eram apelidados de “nemos”{10}). Pela mente dos nemos, é possível controlar os portais na Interface, mas o esforço, tanto físico quanto psíquico, deles exigido não permite que sobrevivam mais de um ano realizando a tarefa.


Cabe observar que cada mundo no Multiverso apresenta apenas um lugar específico em que a chegada de viajantes dimensionais pode ocorrer, ou seja, não é possível abrir um portal em qualquer ponto de um mundo, mas apenas em um lugar pré-determinado. No caso da Interface Dimensional, após a sabotagem de Ordonax, quando ela abre um portal para outra dimensão, a versão dele que lá aparece fica ativa por horas e inevitavelmente se fecha, podendo ser reaberta mais tarde. Em linhas gerais, a Guerra dos Muitos Mundos tem sido um conflito longo, lamentável e brutal. Muito consideram, eu por exemplo, que um fim discernível para essa guerra não pode, ao menos por enquanto, ser avistado{11}.

A Espada de E’Katorr Por Ana Lúcia Merege Os únicos legados que Balthazar recebeu de seu avô foram uma espada e uma história. A espada era admirável, feita de um metal desconhecido quer pelos artífices, quer pelos sábios e sacerdotes das terras que ele visitaria em suas viagens. Sua lâmina reluzia, gravada com inscrições indeléveis, que ninguém jamais pôde decifrar. O punho era leve e se ajustou à sua mão desde a primeira vez que a segurou, ainda um adolescente coberto do sangue do carneiro morto em sua honra no templo de Melkart. Seus pais o beijaram com orgulho; seus irmãos se esqueceram da implicância com o mano mais novo, sonhador e contador de bravatas, e admiraram a espada, não sem um pouco de inveja. Eles também, no dia de sua maioridade, tinham recebido presentes, mas não um tão esplêndido. Aquilo constrangeu o mais jovem, apesar do seu orgulho, mas o avô desfez a má impressão, abraçando os netos mais velhos pelos ombros e assegurando que vislumbrava para ambos um destino brilhante. - É seu irmão que me preocupa – disse, olhando-o com olhos estreitos. – É Balthazar, com esses sonhos de conquistar mares e terras, que precisa de proteção. A dos pais se encerra no momento em que ele cruzar os portais do templo como um homem adulto, a dos deuses depende de seus caprichos. Resta a que o rapaz pode levar consigo. E como a espada já está em sua mão, e antes que ele saia daqui às pressas para mostrá-la a seus amigos no porto de Tiro, deixem-me contar a vocês como ela chegou até mim. Eu era jovem – não tanto quanto vocês, mas bastante jovem – e pela primeira vez me aventurava em uma viagem que me levaria além dos Pilares de Melkart. Não era marinheiro, mas, como todos os homens desta terra, entendia do ofício o suficiente para me fazer útil


quando o barco, no qual eu transportava os vasos feitos nos tornos de minha fábrica, ameaçava soçobrar em meio a uma tempestade. Foi justamente num desses momentos que aconteceu. Os Pilares estavam próximos, aqueles grandes rochedos cercados de correntes traiçoeiras em que se perderam tantas tripulações. Nós, porém, confiávamos na destreza do capitão e do timoneiro, e o vinho e o azeite para o batismo dos novatos já estavam preparados quando, pouco faltando para chegarmos lá, uma chuva furiosa caiu inesperadamente sobre o mar. Os ventos pareciam soprar de todos os lados. O capitão mandou baixar a vela e remar no sentido contrário, buscando a proteção das cavernas existentes ao pé dos rochedos. Ali poderíamos nos abrigar enquanto não cessasse a tempestade. Estávamos assim, puxando e empurrando os remos como um só homem, quando um clarão pareceu cegar aqueles que tinham os rostos erguidos. Ergui também o meu, em meio aos gritos e ao terror dos marujos, e vi com espanto que as nuvens sobre nossas cabeças se haviam fendido. Em meio a elas, solto nos ares, surgira um estranho barco sem velas ou remos, todo feito de metal cintilante. O metal de sua nova arma, Balthazar – mas a própria espada, essa eu veria momentos depois, nas mãos de um guerreiro que, como por obra dos deuses, apareceu de pé, na proa do barco, a alguns passos de distância do capitão. Este, não há dúvida, era um homem destemido; mas ver aparecer aquele guerreiro assim do nada, coberto por uma armadura que só revelava um par de olhos dardejantes, era demais mesmo para quem já navegara todos os mares do mundo, e o terror calou as perguntas que poderia ter dirigido ao estranho. Assim, passados uns momentos, foi ele mesmo que falou – e, o que causou um espanto ainda maior, a língua que empregou foi a nossa, saindo distorcida e metálica do interior abafado do elmo. - Homens de Tiro – disse ele –, saudações! Minha passagem por este lugar é acidental, e espero, para o seu e o meu bem, que seja muito breve! Não tenho tempo de lhes dar explicações completas, mas sou o comandante E´Katorr, da Resistência de Kendack, que se empenha em combater os vis apolonianos. Estamos em meio à chamada Guerra de Muitos Mundos, e o objetivo deles é invadir diferentes universos e escravizar seus habitantes. Era o que estavam tentando fazer com este lugar, talvez ainda estejam, mas, por ora, meu grupo acaba de combatê-los e rechaçá-los. Infelizmente, nossa aparelhagem foi danificada, e a nave que me trouxe até aqui não tem como me alcançar, não a tempo de atravessarmos juntos os portais entre nossas dimensões. Assim, eu lhes disse para partirem sozinhos, é o que terão feito assim que passar esta tempestade; mas os portais ainda vão ficar abertos por alguns momentos, e, se o barco conseguir me levar até perto dos rochedos, talvez eu tenha tempo de alcançar o vórtice de energia que me devolverá a meu lugar de origem. Fez uma pausa, parecendo olhar nos olhos de cada um de nós, e então perguntou:


- Ousado capitão, bravos marujos: vocês me ajudarão a retornar para meus guerreiros e minha luta, assim salvando seu próprio mundo da tirania? Um silêncio tomou conta do barco, os homens se entreolhando sem saber o que dizer. A tempestade tinha amainado, os raios eram esparsos; estávamos igualmente longe dos rochedos e das cavernas, mas remar para diante significava um risco maior de sermos apanhados pelos ventos ainda caprichosos. O caminho inverso parecia mais seguro, contudo as palavras daquele homem – se é que havia um homem sob a armadura – haviam calado fundo em nossas mentes. E não à toa, pois o víramos surgir como por um passe de mágica, portando aquela arma magnífica, e víramos o barco metálico entre as nuvens e o ouvíramos falar sobre batalhas travadas nas estrelas. Éramos homens simples, mas tudo aquilo nos fizera saber que podíamos fazer algo grandioso. Assim, após alguns momentos, o capitão falou em nome de sua tripulação. - Estrangeiro, ouvimos suas palavras e nelas encontramos verdade. Estamos dispostos a correr o risco, mas este barco foi alugado para a viagem por Amílcar, o fabricante e mercador de cerâmica. – Apontou para mim, que estava sentado entre os remadores agora em descanso. – Estamos sob contrato, e só tentaremos passar pelo estreito em meio a esses ventos se ele concordar. - Entendo. Honrado comerciante – começou E´Katorr, mas eu já me convencera da importância de sua e de nossa missão, e não me fiz de rogado. Dei minha permissão. O capitão se dirigiu ao timoneiro, ordenando as manobras, e pouco depois voltávamos a remar em direção aos rochedos. Os céus se tornaram mais escuros à medida que nos aproximávamos dos Pilares de Melkart. Já não víamos o barco metálico, apenas nuvens que se adensavam ameaçadoras; estávamos encharcados, balançados pelas ondas que batiam no casco, nossos pulmões e músculos ameaçando se romper com o esforço exigido pelas remadas. O guerreiro não via nada disso, pois permanecia de pé, a espada em punho, olhando para a frente, onde encontraria a sua morte ou a sua glória. E lá, no espaço entre os rochedos, estava o portal. Era uma brecha no horizonte cinzento, em meio à qual podíamos ver um céu repleto de estrelas. Era belo, e era terrível, e comecei a sentir de novo o terror que me acometera com a aparição de E´Katorr. Não era apenas a visão, mas o fato de que eu podia perceber a energia emanada daquele portal: uma energia poderosa, a qual, a partir de dado momento, passou a atuar sobre o barco com uma espécie de magnetismo e a puxá-lo para dentro do vórtice. - Estamos sendo arrastados! – O capitão notara também. - Não temam! – exclamou E´Katorr, dirigindo-se a todos nós. – Em alguns momentos, deixarei o barco, e este será o sinal para que remem no sentido contrário. Deem tudo de si,


não se preocupem com o que será de mim, eu ficarei bem. O mesmo espero que aconteça a vocês, bravos homens de Tiro. Jamais me esquecerei do que fizeram pelo bem da Resistência de Kendack. E como prova da minha estima e gratidão, deixo aqui a minha espada, uma oferta para o generoso mercador Amílcar, que a legará ao mais temerário de seus descendentes. Que ele carregue consigo esta lâmina forjada nas estrelas – e saiba que, para além dessas mesmas estrelas, sempre haverá alguém que zele por ele, em nome do favor que me prestou seu avô. Dizendo isso, e vendo minhas mãos ocupadas com os remos, ele entregou sua espada ao capitão e se voltou mais uma vez para o portal aberto no horizonte. De costas para nós, ergueu o braço como numa despedida – e então, num salto espetacular para alguém tão carregado de metal, atirou-se da proa do barco, por cima da cabeça de cavalo que a decorava. Precipitou-se no vórtice, que o sugou para o seu interior e fechou sobre ele as suas bordas, exatamente como vi plantas carnívoras se fecharem sobre uma presa. E diante de nós, mais uma vez, só havia o horizonte cinzento entre os rochedos. Nós os cruzamos naquela mesma noite, como estava previsto. Azeite e vinho foram derramados em minha cabeça e na de outros que transpunham pela primeira vez os Pilares; nossa viagem foi lucrativa e quase livre de percalços, de forma que, com o tempo, o episódio vivido com E´Katorr foi-se desvanecendo em nossas memórias. Eu, no entanto, jamais o esqueci, nem às suas palavras; e agora as repito para vocês, especialmente você, meu jovem e inquieto Balthazar. Seja prudente, ouça seu coração, mas tente usar também a cabeça, foi assim que nossos antepassados chegaram a praias tranquilas e descobriram tesouros além dos mares bravios. E, se mesmo assim tudo falhar, lembre-se de que tem amigos poderosos entre as estrelas. Afagou o ombro do neto com ternura, mas também tristeza: a de não ser mais sua mão capaz de empunhar a arma, como fizera por tantos anos. Ele se lembrou de E´Katorr, que falava sua língua através de alguma estranha magia e cujos olhos dardejavam como chamas. Pensou se ainda estaria vivo, se seria ele a zelar por Balthazar, que embarcaria dentro de poucos dias em sua primeira viagem como marinheiro mercante. E sobretudo desejou ver aquele portal voltar a se abrir, deleitando-o com um último vislumbre dos universos ocultos por trás dos Pilares de Melkart. Assim se conta. Essa é uma história da Guerra dos Muitos Mundos.


Batalha na Terra Sem Males Por Ana Lúcia Merege O chamado veio à noite, como de costume. É a hora em que o nosso mundo fica mais quieto e o deles mais ativo. Da varanda, onde tomávamos um último chá com bolo de cenoura antes de ir para a cama, Fiona e eu vimos a revoada de vaga-lumes e logo compreendemos: os do outro lado queriam falar conosco. E, como sempre, sabíamos que não podíamos deixar de atendê-los. Munidos de lanternas, atravessamos o quintal e entramos na trilha que leva até a nascente. É o portal para o mundo deles, que só podemos ver quando nos permitem, mas que ainda assim faz do nosso sítio um dos lugares mais especiais do planeta. Por isso o batizamos de Terra Sem Males, uma espécie de paraíso na visão dos guaranis, e o nome parece ainda mais adequado quando a gente olha para os habitantes do outro lado do portal. Pois o Povo Pequeno, neste cantinho escondido do Estado do Rio de Janeiro, não se parece com as fadas e duendes que são seus primos da Europa, mas sim com os índios, de quem eles têm muito da aparência e um pouco dos costumes. O Senhor dos Cedros nos esperava junto à nascente. Isso nos fez saber que o problema era sério: dificilmente o líder do Povo Pequeno nestas matas aparece em pessoa. Ele estava de braços cruzados, uma pose meio de cacique, cercado por vários membros da tribo. Muitos eram guerreiros, segurando lanças e flechas feitas de gravetos, e os xamãs também estavam lá com seus tambores e roupas enfeitadas com penas. Pareciam agitados, mas mesmo assim esperaram a troca formal de saudações antes de começar a falar. Eles são bem solenes, embora o maior de todos não ultrapasse os dois palmos de altura. - Caçador, Artesã, estamos felizes por terem atendido. – O Senhor dos Cedros usava os nomes pelo qual o Povo Pequeno, em qualquer lugar do mundo, se dirige a mim e a Fiona. – Hoje tivemos uma notícia que muito nos abalou: um ataque iminente aos nossos portais vem sendo preparado em segredo por seres de outra dimensão, chamados apolonianos. O aviso partiu de nosso amigo da Irlanda, Michael Dunne, que vocês conheceram na sua primeira jornada. Como sabem, ele viaja livremente em seu corpo astral, e assim ficou sabendo das intenções dessa raça que invade diferentes planetas e universos com o fim de escravizar seus habitantes. Um grupo valoroso se levantou contra a ameaça de dominação, a Resistência de Kendack, e vários mundos estão envolvidos nessa guerra que já dura vários séculos terrestres. - Uma guerra de muitos mundos? – Aquilo parecia sério. - Sim, Caçador. Na verdade é assim que ela é chamada. Os apolonianos já tentaram, mais de uma vez, se apossar da Terra, e para isso se infiltraram entre vocês. Algumas vezes


estavam incógnitos, em outras se esconderam sob o manto de reis, imperadores, generais e estrategistas que tentaram promover a guerra. No entanto, seus planos sempre acabaram sendo frustrados por agentes da Resistência, e por isso eles mudaram de tática. Agora pretendem invadir a Terra através do nosso reino, embora seja invisível para a maioria dos humanos, e é provável que estejam pensando em nos usar para atingir vocês. De qualquer forma, isso representa um grande perigo para todos. - Sem dúvida! Isso é terrível – disse Fiona, impressionada. – Existe alguma coisa que possamos fazer? Ou estamos apenas sendo avisados, para saber que... - Não! Felizmente há uma chance de evitar a invasão – disse, não sem alguma satisfação, um dos xamãs da tribo, que parecia um índio velho com asas de mariposa brotando das costas. – Como sabem, nossos portais e nosso território estão cheios de magia, que ilude os olhos dos humanos. Com os apolonianos acontece a mesma coisa, e Dunne descobriu que eles sabem muito pouco a nosso respeito. Não sabem o que somos, e decidiram nos atacar porque supõem que, com nosso tamanho, não vamos opor resistência. Enfim, acham que somos fracos, o que não é e nunca foi verdade. - Claro, sabemos que são poderosos – concordei, e aproveitei para despejar meus conhecimentos históricos. – E sabemos das grandes batalhas, das guerras que duraram séculos, entre os reinos do Povo Pequeno. Como os gnomos quase foram extintos pelos trolls, como as fadas do inverno dominaram os reinos do Hemisfério Norte durante a Era do Gelo... - Isso mesmo – disse, grave, o Senhor dos Cedros. – E é pensando nisso que vimos lhes pedir ajuda. Queremos simular uma dessas batalhas, para que, ao se aproximar, os apolonianos tenham a impressão de que somos incrivelmente capazes e ferozes. Para isso, é claro, precisamos antes de tudo de magia, mas – seu rosto cor de tronco se animou, as feições se apertando – as criações da Artesã podem fornecer algo concreto, que eles poderão até tocar para se convencer de que não seremos uma presa tão fácil. - Se tiverem coragem de chegar tão perto! – acrescentou uma guerreira, que usava um chapéu feito de crânio de gambá. Toda a tribo aclamou a bravata, menos o próprio Senhor dos Cedros, que estava tão solene como sempre e não tinha tempo a perder. Logo soubemos que nós também não, pois o ataque seria dentro de dois dias, o que não nos dava muito tempo para aprontar tudo que eles nos pediram. Mas é claro que saímos dali decididos a fazer o possível e o impossível para ajudá-los. Em casa, chequei a caixa de e-mails, e, como esperava, achei um de Michael Dunne explicando com mais detalhes o que tínhamos acabado de ouvir. Ele também nos ajudaria, fazendo uma viagem astral pouco antes do ataque e transmitindo o que pudesse através de seus amigos, os duendes do condado de Mayo. Assim saberíamos se o plano tinha dado


certo. Por ora, no entanto, devíamos pôr mãos à obra – e assim fizemos, nos dois dias seguintes, eu ajudando Fiona o melhor que podia com as formas, a resina e a tinta a fim de produzir todo um exército de anões de jardim em tempo recorde. Ficaram meio mal-acabados, mas convincentes. Ou assim esperávamos. Ainda mais porque seriam vistos apenas de longe e através da ilusão do glamour. Horas antes do ataque, embalamos nosso pequeno exército numa caixa de papelão e a levamos direto da oficina para a nascente. Sabíamos que não encontraríamos a tribo naquele momento, assim como sabíamos que não íamos presenciar a batalha. Só depois que tudo terminasse teríamos notícias da vitória ou do fracasso. De fato, a madrugada já ia bem alta quando, após muitas horas tensas - mãos dadas na varanda, rock progressivo tocando baixinho para quebrar o silêncio denso e assustador -, o e-mail de Michael Dunne veio nos contar como tudo havia acontecido. E contou de um jeito bem irlandês, entusiasmado, pontilhado de exclamações e palavrões e invocações católicas. “Caros Fiona e Victor, Blooooody Jesus! Eu queria que vocês pudessem ter visto o que eu vi. Foi uma coisa de louco, estou tremendo até agora, apesar de já estar na quarta Guinness. E ainda bem que deu certo, porque, damn, não sei o que ia ser da gente se os tais apolonianos conseguissem passar pelo portal. Ainda bem que vocês aí do Brasil agiram rápido! Até agora não sei qual foi a maior sorte: eles não terem percebido que eu ouvi a conversa ou serem ainda mais ceguetas que os seres humanos para o glamour. Na hora marcada, assim que o portal se abriu, o pessoal do Senhor dos Cedros se concentrou e trabalhou direitinho, metade fazendo parecer que os duendes de resina estavam se mexendo e metade fingindo que acabava com eles na base do porrete. Eu estava lá do lado, me mijando de medo (claro que em sentido figurado, afinal estava fora do corpo, hahaha!) porque esperava que a qualquer momento aparecesse todo um exército de ETs pra dominar o campo de batalha. Qual o quê! Ficaram todos lá na navezinha deles, amontoados, comentando que o Povo Pequeno da Terra não era tão pacífico quanto pensavam e que talvez o Aglomerado de Centauro fosse mais fácil de dominar. Seja lá onde for essa porcaria. Holy crap! Como é que eles se chamam de megaconquistadores interdimensionais se desistem tão fácil? Mas talvez eu esteja sendo injusto com os nossos amigos do outro lado. O glamour, a magia deles, é de primeira classe, e o que eu vi como uma tribo de nanicos despedaçando anões de jardim deve ter parecido, para eles, uma carnificina digna de filme de terror. Ainda


mais porque aconteceu entre povos supostamente aparentados – quer dizer, se você espatifa o crânio do seu primo a pauladas, Jesus, o que não vai fazer com um invasor que está tentando tomar o seu reino e escravizar seus filhos? Seja como for, eles meteram o rabo entre as pernas (não que tenham rabo, pelo menos não vi) e se mandaram. Está tudo resolvido, ao menos por enquanto, e o amanhã a Deus pertence. Agora está amanhecendo, vou acabar a quinta cerveja e um sanduíche, depois tomar uma chuveirada e em seguida sair. Queria dormir umas vinte horas, mas a droga do escritório vai abrir cedo como sempre. Durmam vocês por aí, ou, ainda melhor, festejem bastante. E recebam os meus cumprimentos, porque, bloody hell! O mundo pode não saber, mas o dia foi salvo por um bando de tampinhas, um irlandês e um casal de hippies! Amor pra vocês, Mike” - Hippies, nós? – Fiona riu, sacudindo as tranças. – E Guinness de madrugada? Esse é o Mike que a gente conhece e ama! - E que nos deu um bom conselho – insinuei. – Salvamos o mundo, agora vamos comemorar! - Eu topo. – Ela fechou o laptop, beijou meu nariz. – Mas não vamos demorar muito a dormir, Victor, porque amanhã, já sabe, né? Os vizinhos que resolverem ir à nascente... - Eu sei, eu sei. Pode deixar, não demoramos – suspirei. Era verdade: com todo o meu alívio e a vontade que tinha de passar o dia seguinte celebrando nossa vitória sobre os apolonianos, devíamos ser fiéis às regras que estabelecemos para manter o segredo sobre o portal. E, como alguns dos nossos vizinhos humanos são madrugadores, tínhamos de ir à nascente antes que eles chegassem, para esconder os vestígios da batalha e recolher os cacos de nossos guerreiros de resina. Assim se conta. Essa é uma história da Guerra de Muitos Mundos.


O Retorno de Drake Borny Por Márcia Tondello Ryana tinha acabado de liberar as crianças para a escola. Ainda estava ali, apoiada na soleira da porta, com o pano de prato secando mãos que já não precisavam ser enxugadas, num ato mecânico, enquanto divagava apreensiva se aquele seria o dia em que a paz, que já durava alguns meses naquela parte do multiverso, acabaria. Se veria os filhos retornarem sãos e salvos mais uma vez, ou não. Olhava em volta e pensava em como era fácil seguir adiante, fingir que não havia uma guerra secular acontecendo e que a qualquer momento um vortex poderia se abrir em algum canto daquele universo, trazendo aqueles exércitos medonhos de Apolonianos e da resistência, combatendo e destruindo tudo o que viam pela frente. Ouvia os pássaros, as crianças andando de bicicleta, as senhoras reunidas conversando em frente à casa da Sra. Fronet – um aceno delicado demonstrara sua educação -, tudo parecia tão normal... Num gesto de espantar insetos afastou os pensamentos e voltou aos seus afazeres, antes que perdesse a hora numa crise de choro como da última vez. Não podia se dar ao luxo de perder o emprego. Não sem saber quando, ou se, Drake voltaria, enquanto o sustento da família ainda fosse por sua conta e daquela ajuda quase miserável que recebia do exército, para compensar a “boa vontade” de seu marido em servir na Guerra dos Muitos Mundos, para a qual tinha sido recrutado - apesar de toda sua clara resistência em ir - devidamente ignorada com uma arma dourada apontada para a cabeça de sua caçula. Será que ainda estava vivo? Voltou para dentro da casa, terminou de ordenar a cozinha e retirou a carne que faria para o jantar. Pendurou a roupa que a máquina tinha acabado de torcer e foi para seu quarto, buscar o uniforme do trabalho para uma ducha rápida antes de sair. Mal pegou no cabide em que ficava o uniforme e ouviu atrás de si aquela voz - que depois de três anos ainda reconhecia, pois a ouvia todas as noites em seus sonhos - chamar por seu nome. Suspendeu a respiração e arregalou os olhos, num misto de felicidade, surpresa e incredulidade. Era mesmo ele? Começou a virar devagar, e quando, pelo canto do olho, reconheceu seu marido, voou para seus braços rindo e chorando, tentando falar, mas só conseguindo emitir sons indecifráveis, tudo ao mesmo tempo. Ele a rodou e se beijaram e secaram suas lágrimas e se tocaram tentando comprovar que aquilo não era um sonho. - Você voltou? A guerra acabou, é isso? Estamos livres da Interface Dimensional? O que aconteceu? Drake tocou seus lábios com a ponta dos dedos e fez um sinal negativo com a cabeça. Depois a pegou nos braços e seguiu para o banheiro, onde tomaram banho juntos, um lavando


o outro com calma, acariciando cada pedaço um do outro, ignorando a urgência que emanava de seus corpos. Depois do que parecia uma eternidade seguiram para o quarto e mataram toda a saudade que sentiam. Ryana adormeceu nos braços fortes do marido, em meio às perguntas que tentava fazer e ele insistia em deixar para depois. Tudo podia ficar para depois. Foi seu último pensamento antes de adormecer. Quando despertou, assustada, pensando que tinha tido apenas um sonho, viu o marido deitado, adormecido na cama. Suspirou e levantou devagar para lhe preparar algo para comer. Não sabia há quanto tempo ele estava sem comer algo daquele universo, ou o que quer que fosse. Não sabia nada ainda. Lembrou que não tinha ido trabalhar, nem avisado que não iria, e pensou que isso poderia ficar para depois. Estava na cozinha, terminando de preparar um belo sanduiche com ovos, bacon e salada, como Drake gostava, quando ouviu a campainha. Viu, pelo vidro lateral da porta, que se tratava de algum agente do exército e ficou apreensiva, acreditando que tinham vindo buscar o marido novamente, que talvez ele tivesse fugido da guerra e agora eles iriam matá-lo, ou a ela e até mesmo seus filhos. Pensou em fugir pelos fundos, mas sabia que isso não seria possível, ele também a tinha visto e até cumprimentado com um aceno de cabeça. Aquela não parecia a expressão de alguém que vinha para prender ou matar. Resolveu abrir a porta. - Pois não? Posso ajudar? - Sra. Borny? Lamento não ter boas notícias. Podemos entrar? - Meus filhos! Não! O que houve com meus filhos? - Seus filhos estão bem, Sra. Borny. É sobre seu marido... - Meu... marido? - Houve uma batalha devastadora em Terráqua 3. Infelizmente ele estava nessa batalha. Terráqua 3 foi aniquilada e já não existe mais no multiverso, portanto todos que lá estavam estão mortos. Ryana já ia dizer que ele estava enganado, que seu marido estava lá em cima agora, adormecido, mas lembrou-se de que “ainda não sabia de nada” e resolveu levar aquilo adiante, pensando que talvez o marido tivesse aproveitado a tal batalha para fugir daquela guerra sem ser pego pelo exército. Talvez ele tivesse conseguido escapar antes da destruição de Terráqua 3 e aproveitado a oportunidade de que nunca seria procurado se achassem que ele estivesse morto... - Ninguém conseguiu escapar? - De nenhum exército. Foi tudo muito rápido. Ainda não temos os detalhes, talvez nunca os tenhamos, mas parece que um vortex explodiu. Não há mais acesso ao setor VXR8 da Interface. - Eu... gostaria de ficar sozinha agora. Preciso pensar em como dar a notícia para meus


filhos. - A senhora não precisa se preocupar em ir ao trabalho hoje, já avisamos que a senhora não poderia ir. Aliás, quando a procuramos lá disseram que a senhora estava atrasada e não havia comunicado sobre o atraso. O que aconteceu? - Estava indisposta e o telefone parecia estar com algum problema. Já ia ligar para lá, estava só tentando comer algo. - Certo. O exército vai assumir uma pensão vitalícia pela sua perda, Sra. Borny. Aqui está a documentação, tudo já foi providenciado e isso é uma pequena homenagem em honra de Drake Borny, por serviços prestados ao nosso universo. Ele lhe entregou uma caixa verde aveludada. Ryana abriu e viu uma placa prateada com dizeres de agradecimento e lamento pela grande perda. Grande perda... Assim que se viu sozinha Ryana subiu até seu quarto. Drake estava sentado na cama e ela levou para ele o sanduiche que tinha preparado. Ficou vendo-o comer até que tomou coragem e perguntou: - Você fugiu? - Não. Ela estendeu a caixa aveludada para ele. - Vieram me informar de sua morte. Ele pegou a caixa, abriu e leu os dizeres da placa. - Lamentam, não é? Só isso? - E pensão vitalícia... - Eu contava os dias em que estava longe de você e de meus filhos. Torcia todos os dias para que aquele fosse o último, para que aquela maldita guerra acabasse e eu pudesse voltar a ver a grama verde, o céu azul... Sabia que em alguns universos o céu é laranja? O tempo todo? - Não, eu não sab.. - Em alguns universos o ar é denso demais, a água é pegajosa... tem coisas horríveis lá fora... alguns estão muito atrasados em relação ao nosso, outros estão anos luz à frente... Nessa imensidão que é o multiverso deparamos com coisas que nunca poderíamos imaginar, nem explicar... No momento da explosão... - Então teve mesmo uma explosão? - Sim. Foi uma dessas coisas inexplicáveis com as quais me deparei. Primeiro o zumbido e então, numa fração de segundo entre ele e a explosão, minha mente fixou na sua imagem e só desejei estar com você, em nossa casa... Foi como se o tempo congelasse. Podia ver e tocar nos fragmentos de tudo que estava à minha volta parados no ar, inclusive os restos de meus companheiros... Implorei para que qualquer poder maior existisse, que me tirasse dali, que me


trouxesse para perto de você, mesmo que só para me despedir e para que não visse aquele terror em câmera lenta... Drake olhou para a esposa e viu as lágrimas silenciosas descerem pela sua face. - Você sentiu minha falta? - Todos os dias, cada minuto... - E as crianças? - Crescendo. Estudiosas, responsáveis... também sentiam muito sua falta... - Não poderei ficar para vê-las. - O que? Do que você está falando? Drake ergueu as mãos e Ryana notou que elas estavam desaparecendo. - Não consigo mais. Estou sendo sugado. - Drake, o que está acontecendo? Ele pegou suas mãos com a transparência em que as suas se transformavam e colocou nela a caixa aveludada. - Essa caixa é o que sobrou de mim para vocês agora. Aos poucos ele começava a desaparecer por completo. - Eu nunca voltaria. Essa guerra nunca terá fim. Foi rápido, uma explosão e fim, num piscar de olhos estava aqui com você. Eu não queria que fosse um sonho. - Drake, não... Ryana ficou ali, sentada com a caixa verde aveludada nas mãos vendo seu marido desaparecer à sua frente, sem saber o que tinha acabado de acontecer. Ainda ouviu um fiapo de voz dizendo: - Essa guerra nunca vai acabar... Assim se conta. Esta é uma história da Guerra dos Muitos Mundos.


Inversões Por Márcia Tondello Histórias têm um poder transformador, devotas de Dionísio, certamente. O Massacre de Tualamei é uma história agora, e essa é a minha versão. Digo versão, pois eu mesmo já não sei se tudo de que me lembro aconteceu exatamente como me lembro, ou se partes dela são aqueles detalhes que nossa imaginação acrescenta à lembrança, tentando preencher lacunas. Mas vamos aos fatos, ou quase isso. Dois cães, que mais pareciam lobos, vinham em minha direção. Um amigável, outro rosnando . Eu estava paralisado, sem saber para onde fugir, afinal eles eram dois e poderiam me cercar. Eles se aproximaram e pararam, ambos a uma distância de três passos de mim. Cauteloso, me abaixei, sentando-me no gramado. Eles seguiram meus movimentos com a cabeça. O amistoso tentou se aproximar de mim, balançando o rabo, mas o outro mostrou os caninos com leves espasmos no focinho e rosnou. O amistoso então respondeu e rosnou também. Percebi que haveria uma briga sangrenta ali e rapidamente rolei para trás, um “milissegundo” antes que se atacassem. A luta ficou feroz e, em pouco tempo, centenas de outros cães surgiram de todos os lados. Logo estavam atacando e matando uns aos outros, enquanto eu assistia desolado àqueles cães se retalharem sem saberem bem por que o faziam. Acordei e me descobri num lugar todo branco. Ao tentar me mover, uma dor alucinante no lado direito do tórax me impediu de ir adiante. Em seguida ouvi uma voz de mulher chamar por Irmã Mirtes. Aos poucos fui percebendo que estava em um hospital e me lembrando de como tinha vindo parar ali. Como em meu sonho, a Guerra dos Muitos Mundos começou com duas grandes potências se digladiando pela centralização do poder do Multiverso. Logo tinham envolvido vários outros universos nessa guerra, todos se matando em nome mais da defesa do que por uma causa. E essa guerra já durava mais de uma década quando o Massacre de Tualamei aconteceu. Com a guerra, as irmãs da Ordem de Sant'Áquilla de Hyerokrene{12} se instalaram em um mundo neutro e passaram a atender os feridos no conflito, independentemente do lado para o qual lutavam. Isso acabou por torná-las alvo das duas grandes potências, afinal elas faziam campanhas contra a guerra e muitos dos que eram tratados lá acabavam desertando e pregando também o fim do confronto, bem como a limitação do uso dos vórtices de viagem interdimensional, tecnologia que tinha contribuído muito para que a guerra atingisse as proporções que alcançou.


Eu, como todo bom Apoloniano, fui educado para seguir as regras, para entendê-las não como cordas que prendem, mas como elásticos que permitem experimentar novos caminhos em segurança, como o bungee jump. As regras nos libertam, ao contrário do que pode parecer. Mas não pretendo doutrinar ninguém. Esse é um entendimento que passa pelo empírico, afinal de contas. Só explico isso para que entendam que não me orgulho do que vou contar e só o faço porque minha retidão de caráter assim me obriga. Estava em Tualamei, pois tinha sido ferido gravemente em batalha, e foram elas, as freiras, que me encontraram e me levaram para lá. Me contaram que fiquei uma semana em estado vegetativo, mas que nunca desistiram de mim, pois uma delas tinha sido avisada em sonho que minha sobrevivência dependia delas e também o contrário. Me reestabeleci muito lentamente, o que me fez conviver tempo suficiente com elas e com outros feridos que, como eu, tiveram a sorte de ir parar lá. Assim pude compreender melhor seus posicionamentos, que antes sequer conseguia entender. Na dor somos todos iguais, e acabei conhecendo e estreitando laços com Lucca, um membro da resistência. Orientados pela irmã Giulia, éramos responsáveis um pela massagem do outro, na busca por reestabelecer os movimentos, ele das pernas e eu da coluna. Passávamos muitas horas do dia no jardim e, para que os exercícios e massagens, geralmente muito dolorosos, passassem mais rápido e fossem menos traumáticos, nós conversávamos. No início eram conversas superficiais, cheias de desconfiança, mas, com o passar dos dias e dos meses, fomos gradativamente nos cativando. Logo sabíamos muito mais da vida um do outro do que eu sabia de muitos colegas de meus grupos de batalhas, ou que os deixava saber. Penso que, provavelmente, os grupos sempre eram escalados em rodízio justamente para evitar que nos aproximássemos o suficiente, de forma a colocar em risco as ações devido a sentimentalismo. Um dia, quando já estava havia oito meses em Tualamei e os rumores espalhavam que um vortex tinha surgido em Valhalla - uma praia paradisíaca que ficava a 4 quilômetros da estação de tratamento Pax, onde eu estava -, Mirtes, a freira do sonho que salvara minha vida, me levou até à capela e mostrou-me uma passagem secreta, que se abria no chão, embaixo de um tapete que ficava no altar. Para acessá-la era preciso empurrar a mesa do altar, que ficava em cima da entrada. Lá dentro, após passar por uma entrada apertada e escura, que levaria quase todos que não conheciam seu verdadeiro destino a desistir antes de chegar ao final, chegávamos numa sala estreita com três corredores. Seguimos pelo da esquerda. Passando aquele tubo claustrofóbico e o corredor não muito diferente em declive – percurso que demorou mais que o esperado, dado que minhas costas ainda tinham limitações de movimento -, chegamos a uma parede, na qual parecia que nosso caminho tinha terminado. Pensei que talvez tivéssemos seguido pelo corredor errado. Então vi Mirtes empurrar uma pedra no sentido do sinal da cruz e a parede se moveu, abrindo espaço para entrarmos em


outro ambiente. Mirtes iluminou o local ao tocar num interruptor e pude ver uma sala ampla com pé direito triplo - até aonde eu pude calcular, pois devia ter mais de nove metros de altura. As paredes, cobertas por prateleiras, tinham de um lado medicamentos, de outro alimentos não perecíveis; numa terceira prateleira havia livros e roupa de cama. Tudo o que precisariam para manter algumas centenas de pessoas alojadas durante dois meses pelo menos. Bem do alto, via-se uma linha de cada lado do teto com pequenos feixes de luz, uma claridade que não seria suficiente para iluminar uma sala tão grande, mas Mirtes me explicou que eram os respiradores. Mais tarde, lá em cima, identifiquei a origem deles, muito bem escondidos, para somente um olhar que sabia o que estava procurando encontrá-los. Ela explicou que cada uma das estações de tratamento tinha uma entrada como aquela para uma área igual e que os mantimentos eram periodicamente trocados para garantir que estivessem com prazo de validade adequado quando fosse necessário. - Nós contamos com você para ajudar a trazer os doentes de nossa estação para cá quando chegar a hora. - Sou um soldado Apoloniano, tenho um chip implantado em mim e, quando souberem que estou novamente em condições, receberei alguma missão e terei que partir... desertar é uma sentença de morte. - Eu sei. Nós retiramos seu chip. Instalamos ele num robô e estamos monitorando... - Vocês retiraram o chip? Era para eu estar morto! - Você estava praticamente morto. O chip se descolou devido aos ferimentos. Por sorte temos aqui conosco alguém que entende profundamente desses chips e nos ajudou a fazer o transplante. - Eles já fizeram algum contato? Quer dizer, vocês conseguem receber as mensagens? - Sim, conseguimos receber as mensagens. Foi o que disse Ramires, pois o robô simula um organismo humano e foi programado para parecer estar em coma, até que soubéssemos se você iria sobreviver... - E agora? - Bem, agora você decide se quer se libertar ou se quer que reimplantemos o chip para que volte ao exército que o abandonou em campo de batalha. Para que continue lutando por uma guerra sem sentido. - Nunca duvidei de meu exército e de suas razões. Só a ordem nos permite viver em igualdade e harmonia, mas... Esse tempo aqui me mostrou que a ordem não precisa ser dura e que o amor, a compaixão e a colaboração são muito mais eficientes que a guerra. Estou cansado de lutar numa guerra que parece que nunca terá fim... Mas... Abandoná-los não seria honroso. Na verdade parece um ato de covardia...


- Covardia... não penso que seja muito honroso ameaçar e atacar freiras que só fazem ajudar e pedir pela paz. Tem ideia de quantas vezes recebemos nossas irmãs assustadas e trazendo bilhetes para que parassem as transmissões de nossa rádio? Ou para que tomássemos cuidado com tráfico de informações aos seus oponentes, “afinal um aviso é um aviso”? - Como assim? - Fazemos viagens interdimensionais com esses aparelhos também. Conseguimos quatro deles. Vamos em busca de feridos abandonados, como você. Descobrimos que os aparelhos eram rastreados quando fomos pegas pela segunda vez. Ramires conseguiu alterar os outros aparelhos e depois disso nunca mais nos encontraram em nossas viagens de busca. - Por que foram acusadas de tráfico de informações? - Tratamos de todos aqui. Alguns acabam desertando ao perceberem que estão lutando do lado errado. E me entenda bem, não me refiro ao exército errado, mas à causa errada. Muitos preferem ficar nos ajudando depois que se curam. Como Ramires. - Os “recados” vieram de onde? - Não eram assinados, mas pela lógica acreditamos que vinham dos Apolonianos, afinal foram os primeiros a utilizarem a tecnologia. Acreditamos que tenham adaptado rastreadores nos aparelhos de seus soldados. E já tivemos ameaças deles feitas claramente em nossa cara. - Nunca foram ameaçadas pelos Kendackianos? - Sim. Em forma de “aviso amigo”. Não há nenhuma consideração, de nenhuma parte, pelo que fazemos. Nos resta que aqueles que passam por aqui acordem... E é a esse momento que me referi no início desse relato. Apesar de acreditar ter feito a escolha acertada, minha educação apoloniana tornou-a bem difícil. - Estou acordado agora. Vivo. E quero ajudá-las daqui para a frente. Ela deu um suspiro de alívio e o sorriso mais lindo que já vi. - Ainda bem. Houve uma batalha sangrenta em Quasimon hoje, nela dois líderes se feriram gravemente. Ronald, da resistência, e Amlor... - O General Amlor?? - Exatamente. Nossa equipe já os resgatou e estão sendo trazidos para cá. Sabe o que isso significa? - Que a guerra está vindo. - Pior. Que não sabemos qual das partes vai atacar primeiro para se livrar de alguém tão poderoso quanto esses dois. E que eles não pouparão nem mesmo os seus que estão aqui para aproveitar a oportunidade de matar peças chaves de seus “inimigos”.


Olhei em volta e entendi porque tudo aquilo. Éramos centenas, senão mais lá em cima, e nem todos conseguiriam sobreviver ao ataque quase certo e iminente. - Estamos perdendo tempo aqui. Coloquem o robô em melhora de saúde de 80%, isso deverá fazer com que tentem me usar para acabar com Ronald e... - Ainda teremos um outro lado com que nos preocupar. - Temos que trazer a maior quantidade possível de gente para cá. - Já estão sendo preparados. Precisamos de toda ajuda possível para trazer os que não conseguem se mover, você viu o caminho e temos poucos homens com alguma condição. Sei que ainda não está com suas costas curadas, mas... - Consigo ajudar. Foram horas terríveis. Superei como pude a dor ajudando a descer os convalescentes. Decidimos dar prioridade aos que tinham mais chances de sobreviver. Antes de conhecer meu eu Robô, passei no quarto de Lucca. Precisava saber dele quais medidas preventivas poderíamos ter em relação à Resistência. E também queria que ele descesse logo, visto que suas pernas ainda não respondiam e continuava preso à cadeira de rodas. O encontro foi muito diferente do que eu esperava. Lucca se recusava a descer e insistia que a Resistência jamais atacaria Tualamei. Ele ficou muito agitado e agora, olhando para trás, tenho uma outra visão sobre sua agitação. Ele exigiu que o deixasse sozinho, que fosse evitar um ataque dos Apolonianos. Tentei argumentar, mas frente à sua irredutibilidade cedi, pois tinha muita gente para tentar salvar. Fui para a sala onde se encontrava o meu eu robô. Sua saúde já vinha sendo restaurada aos poucos, conforme Ramires me explicou. E agora estava finalmente chegando aos 80%. Sentamos e esperamos contato. E esperar naquele momento era algo angustiante, posso afirmar. Perdi as contas de quantas vezes levantei e andei pela sala. Finalmente ouvimos o bip característico e o código da missão. Para minha surpresa ela não ordenava nenhum ataque, mas o resgate do General, assim que ele chegasse. Fiquei olhando para a tela, sem saber o que responder, pois não tinha me preparado para aquilo. Por fim dei o aceite da missão. Sabendo que tínhamos a câmara de segurança, pensei logo que levá-lo para lá seria a melhor alternativa, pois transportá-lo de volta em condições críticas só seria uma opção se não houvesse outra saída. Já tínhamos colocado cerca de cento e trinta pessoas na câmera de segurança quando ouvimos as naves de resgate se aproximando. Ainda restavam mais mil e quinhentas nos alojamentos de nossa estação e só tínhamos quatro entradas. Àquela altura eu já andava encurvado, pois a dor nas costas não me permitia ficar ereto. Lucca tinha desaparecido e naquela confusão ninguém sabia dizer onde tinha se enfiado.


Eu estava preparando a descida de Yo Chei, um menino de quinze anos que estava em coma havia mais de duas semanas. Fora escolhido por ser jovem e porque só assim conseguiram convencer seu pai, que também estava ali se recuperando, a descer; afinal ninguém sabia se ele um dia acordaria do coma. No momento em que colocamos seu corpo, preso a uma espécie de maca por lençóis, na vertical para que pudéssemos descê-lo pelo buraco, ele abriu os olhos. Retiramos o tubo que auxiliava sua respiração, pois ele tentava falar e sufocava. Ele tossiu fortemente e Mirtes o acalmou, orientando para que expirasse devagar antes de inspirar o ar novamente e que o fizesse pelo nariz. Ele conseguiu controlar assim a tosse e balbuciou com voz rouca uma única frase. - Estou vivo? - Sim, você está vivo. E vai continuar. Mantenha a calma agora, precisamos descê-lo para um lugar seguro. Trocamos olhares cúmplices. Nada precisava ser dito, estávamos aliviados por termos feito uma escolha acertada, afinal muitos não desceriam. E esse momento é o que mais me aflige em meus pesadelos atuais. As sirenes soaram avisando da aproximação das naves. Perguntei se Mirtes e Ramires conseguiriam terminar de transportá-lo sozinhos, pois iria procurar Lucca antes de cumprir minha missão. Eles concordaram e Mirtes lançou-me um olhar de compaixão, imagino que pela curvatura de meu corpo. Tentei um sorriso, mas a dor o deve ter transformado em uma careta, pois Mirtes insistiu para que eu descesse. - Vá. Eu procuro o Lucca. - Não posso. O General... Tenho uma missão. - Eu faço isso. - Não. Desçam. Ainda tenho forças. Não sabia se tinha mesmo, mas a adrenalina não me deixava pensar. Fui treinado para suportar a dor, para lutar. Mirtes me entregou uma ampola automática de DX-CNT, advertindo que só usasse no caso de ficar impossibilitado de me mover, pois iria dar força e energia por cerca de vinte minutos, mas que se aplicasse o remédio deveria descer imediatamente, pois os efeitos colaterais em seguida sem acompanhamento médico poderiam me matar. Assim saí correndo, aos tropeços em direção ao local onde imaginava que poderia encontrar Lucca. Cheguei ao jardim onde fazíamos nossos exercícios puxando a perna esquerda para aliviar a dor. Fui até a área central, onde tinha um chafariz e um grande espaço. Era ali que costumávamos ficar, mas ele não estava lá. Segui para o vestiário próximo dali, pois já o tinha encontrado algumas vezes lá, quando queria ficar sozinho. Em algumas dessas vezes tive que fingir que não tinha percebido que ele andara chorando. Ele também não estava lá. Minhas opções mais óbvias estavam acabando e meu tempo também. Logo as naves estariam


aterrissando e teria que ser rápido o bastante para dar conta da minha missão. E forte também. Enfiei a mão no bolso da jaqueta e senti o contorno da ampola. Ah, Mirtes! Segui o corredor que dava para o alojamento literalmente me arrastando pela parede. Na rampa que dava em nossos aposentos minhas pernas travaram e eu caí. Fiquei estirado no chão, com uma dor alucinante. Levei a mão até o bolso e puxei a ampola. Não pretendia usá-la antes da chegada das naves, mas não tinha outra escolha. Estava quase aplicando a injeção quando ouvi o som que parecia um uivo; era um vento daqueles que amedrontam qualquer um, que dão a impressão de que chegou a hora da natureza acabar com tudo o que foi criado pelo homem. Uma nuvem de areia encheu o corredor e foi quando vi dois homens parados na saída que dava para a área de pouso e decolagem das naves. Não sabia se estava tendo algum tipo de alucinação devido à dor, se a pouca visibilidade me confundia, mas, naquele momento, estava certo de que um deles era Lucca. Tentei gritar por seu nome, mas só saiu um som que mais parecia um gargarejo de minha garganta. Ele pareceu ouvir, pois olhou para trás e foi quando tive certeza de que era mesmo ele. O vento ficou ainda mais forte e já não conseguia enxergar nem um palmo à frente de meu rosto. Ouvi ao longe o que parecia ser o som de naves pousando. Apliquei a injeção e na mesma hora senti as costas destravarem e minhas pernas voltarem a ter movimentos. Pulei do chão e corri na direção da pista. Quando cheguei lá vi ao longe, por entre uma cortina de areia, uma fileira de homens com trajes de proteção pretos. Não percebi naquela hora o que eles estavam fazendo, pois a cortina de areia confundiu minha noção de espaço; não notei que eles estavam em cima dos respiradores e que se dirigiam para a capela. Corri para uma das naves e vi Lucca e o outro homem embarcando nela. Então, o instinto fez com que me escondesse, afinal andávamos desarmados em Tualamei e eu não sabia o que esperar do Lucca que andava. Pensei naquele momento que estava lidando com um agente duplo. Mas isso é mera suposição minha. Podia ser simplesmente um Kendackiano seguindo ordens, querendo fazer parecer que era um ataque Apoloniano. Afastei aqueles pensamentos, pois não queria mais viver com dúvidas sobre quem era o culpado. A guerra era culpada por estarmos uns contra os outros. Eu não queria mais estar contra ninguém. Assim, me esgueirei até a outra nave, na qual, pressupus, estaria o general Almor. Entrei na nave e encontrei todos mortos. Corpos retalhados, entre eles pude reconhecer o do General pela conhecida tatuagem em sua mão esquerda. Seu corpo sem a cabeça estava numa poça de sangue. Saí imediatamente dali e comecei a correr de volta à entrada da câmara de segurança, me guiando muito mais pelo instinto de quem fez aquele caminho dezenas de vezes naquele dia. Sabem quando um lugar muda para uma sensação familiar depois de um tempo frequentando o ambiente? Era quase a sensação da segurança do lar. Mas algo me fazia mal e pensei que poderia ser o efeito colateral da ampola de DX-


CNT de que Mirtes me avisara. Então sabia que teria que chegar lá rápido o suficiente para que me tratassem. Ouvi mais naves pousando e pelotões desciam delas. Tentei correr mais rápido. Minhas esperanças foram aniquiladas quando cheguei à entrada da câmara. O que encontrei lá foi a coisa mais medonha que já vi em toda minha vida. Corpos espalhados, totalmente despedaçados, e um, com as pernas ainda penduradas no buraco, era Yo Chei. Tinha dito aele que viveria. Entendi imediatamente que aqueles homens que vi de trajes de proteção descobriram os respiradores e a câmara secreta. O pelotão tinha entrado e lá embaixo agora era provavelmente um cemitério. Então desfaleci. Segundo soube foi Mirtes, que tinha saído para me ajudar, que me achou e mais uma vez salvou minha vida. Ela confirmou que todos lá embaixo haviam sido mortos e que de todos os cinco alojamentos somente oito freiras tinham sobrevivido, pois tinham se oferecido para cuidar dos pacientes mais críticos que não seriam levados para o abrigo. Ao, ouvirem as primeiras rajadas das metralhadoras esconderam-se em armários camuflados nas escadarias, tendo encontrado os pacientes todos mortos quando tudo acabou. Da estação Pax, entre os sobreviventes estávamos eu, ela, Lucca – que até aonde sei embarcou numa das naves - e uma outra freira. Eu tive uma infecção causada pelo uso da injeção de DX-CNT, e Mirtes disse que se tivesse me encontrado dez minutos depois eu não teria sobrevivido. Ela acionou o vortex de viagem interdimensional e me levou por ele para um lugar seguro. Fiquei com sequelas. Pedi o braço esquerdo. Mirtes providenciou uma prótese. Ninguém poderia saber que eu tinha sobrevivido, então tratamos de “matar” meu eu robô para garantir minha liberdade. Eu e Mirtes juntamos outras pessoas que vieram em auxílio quando souberam do massacre e retomamos o trabalho de Tualamei. Cada alojamento de nossa estação leva o nome de uma das irmãs da Pax mortas naquela tragédia agora. Não havia tempo para chorar por elas. Continuamos ajudando a todos sem discriminação, mas temos uma regra nova por aqui. Não resgatamos líderes. Não, não sei quem eram aqueles homens de traje de proteção pretos, nem tampouco posso afirmar ou negar o envolvimento do Apolonianos, nem da Resistência no massacre de Tualamei. Mas sei que a imprensa também não sabe. E na verdade isso já não importa, já que na guerra somos todos iguais. Na dor, na tristeza, na alegria, quando apaixonados... somos todos iguais. Ponto. E é muito mais gratificante salvar do que matar. Mirtes não é mais uma irmã. Estamos juntos e, apesar de dizerem que relacionamentos que surgem em meio às tempestades normalmente não perduram, acredito que o que nos uniu é muito maior do que aquela tragédia. O amor e a solidariedade nos acompanham. Acredito


que estaremos juntos, ajudando a todos que quiserem e precisarem ser ajudados, lutando pela paz, sem armas letais. Assim se conta. Esta 茅 uma hist贸ria da Guerra dos Muitos Mundos.


A Noviça Escarlate Por Luiz Felipe Vasques Tontura, tontura. Gritos, desespero, fumaça, radiação. Carne queimada, rostos derretendo. Preces trocadas por berros e dor. Braços estendidos ao alto, por misericórdia. E as mãos. Mãos tintas, exangues. Luz cegante. — Zamira, acorde! Piscou e evitou a luz cegante do sol quase a pino. Quando focalizou os olhos, estava de volta à estrada asfaltada com florestas ao redor, o entroncamento e o homem ajoelhado sobre uma das pernas, diante de duas placas com nomes de cidades. Era chamado de Redentor pelos poucos que o conheciam, embora não gostasse do nome, e era o protetor daquele mundo. Brilhando forte em branco e amarelo, ele parecia feito de luz. Com os braços estendidos à frente e mãos espalmadas, parecia querer deter o ar. Zamira estava enjoada, esperou o mundo parar de girar, antes de se levantar. — Outra visão. – O homem mais afirmou do que perguntou. Havia o tom de preocupação na voz, não somente pela situação geral que os havia trazido ali, mas em âmbito pessoal. A sensação, marcada por ouvir direto em sua mente, era mais forte. — São inevitáveis. – Ela acabou por se levantar, bateu a palma das mãos, para limpálas. Alisou o traje, embora pouca diferença fizesse. As gotas de suor desciam pela têmpora, descendo sobre a pele oliva. Estreitou as pálpebras, o sol agredia as íris cor de gelo. – Por favor, continue. O Novo Império Apoloniano invadiu também este mundo, mas algo deu errado, correto? — Sim. A base de lançamento do ataque deles foi um asteroide, até onde pude ver, mas o portal dimensional deles se desestabilizou completamente, resultando na total obliteração do asteroide… e desestabilizou uma área com um raio de vários quilômetros neste universo. Ela olhou adiante. Tudo parecia normal. Do céu com poucas nuvens até o zumbido dos insetos. Alguns pios. — Não se deixe levar pelas aparências. A partir do entroncamento, tudo o que existe está a meio caminho de não existir. Eu… eu cheguei tarde demais. Por uma margem de tempo


muito, muito pequena. É o que estou conseguindo fazer: manter as coisas de pé ainda. Mas a zona de aniquilação irá, em breve, colapsar por si mesma e levar todos embora. A tudo e a todos. Dentro do que posso fazer, estou retardando o efeito dessa anomalia, tentando ganhar algum tempo, mas… Eu preciso de alguém para entrar lá e resgatá-los. Ainda há bastante gente… mas a cada segundo, há menos um pouco de tudo. — Eu ajudarei – por fim, concordou –, meus votos me compelem a isto. — Fiquei feliz quando atendeste ao chamado. A obra da Ordem de Sant'Áquila de Hyerokrene é conhecida e apreciada por muitos. — Eu sou o que restou da Ordem – comentou ela, seca. — Então, faça o seu melhor – ele rebateu. Normalmente não lidava bem com formas de autopiedade, especialmente em um momento como aquele. – Seguindo pela esquerda, o Arraial de Matinhos é uma pequena cidade ribeirinha, a primeira de outras duas adiante que, pelo que sinto, já quase não existem. À direita, mais distante, você vai chegar em Seriema. Mais gente para poder salvar, mas requer mais tempo para ir e voltar. A decisão é sua. Sem responder, ela assentiu. Com uma prece rápida e silenciosa nos lábios, elevou-se aos ares e voou dali, carregada por forças invisíveis. O homem permaneceu onde estava, com uma prece nos lábios: orava pelo sucesso da noviça e por todos os que disto dependiam – assim como por aquilo que julgou ter visto no coração dela. Quanto a Zamira, os primeiros quilômetros passaram rápido, o vento ajudava com o calor. Por um instante lembrou do hábito que usava em Tualamei, de cores diferentes, no trabalho que fazia com as outras freiras: cuidar de feridos dessa guerra maldita, a Guerra dos Muitos Mundos. Sentia falta daquele tempo. *** Nenhum dado no visor. Nenhuma comunicação. O inimigo devia ter, afinal, mais contramedidas do que a avaliação preliminar julgara: mato e fazendas somente, em um mundo atrasado tecnologicamente em todos os sentidos. Ou talvez um fenômeno natural? Isso explicaria o bloqueio remoto, mas dificilmente o sumiço da cidade grande que deviam invadir – assim como da tropa inteira da qual ele fazia parte. Quatrocentos homens em 10 divisões de exoinfantaria para incursão e controle de terreno hostil, mais equipamento e veículos de apoio, transporte e acesso rápido. Simplesmente não estavam lá. Nada, em qualquer frequência de comunicação oficial. Havia apenas a floresta. Medida por seus sons naquele momento, até onde sua tecnologia permitia captar. Notou que Tiri não estava mais lá e nem o havia procurado, mas sacudiu a cabeça e resolveu se concentrar na missão – que em nada tinha a ver com Tiri. Foco.


Detectou sons de origem artificial longe dali, sugerindo primitivos geradores elétricos talvez a diesel, conforme o antevisto. Mas não havia pista melhor a seguir. Com a holocamuflagem ligada, o Apoloniano seguiu com sua armadura de combate. *** Poucas ruas, prédios baixos, casas e alguns armazéns. Seriema podia ser a maior cidade da região, mas não era nada impressionante. Nenhuma rua asfaltada, e iluminação pública somente pela rua principal, onde imperavam caminhões e caminhonetes. Mas não havia tráfego, agora. Ninguém na rua. Nenhuma testemunha quando ela pousou, e temeu ter chegado tarde demais. Orientou-se pelo barulho de uma serraria, mas encontrou a igreja local, um pouco fora da rota principal. De portas abertas e bancos lotados. – … oremos, meus irmãos! Pois estamos em provação… – orientava uma voz tentando ocultar o próprio medo – … logo neste que é o fim dos tempos. Aquilo que não podemos explicar, temos que responder com nossa fé no Senhor, que irá nos mandar um sinal!… Entrou na igreja e viu a luz. *** Sentiu o gosto do próprio sangue na boca. Isso não era bom. O Apoloniano ordenou uma varredura médica e estranhou a lentidão do resultado, assim como de certos sistemas. Que a exoinfantaria estava comprometida já sabia, mas acreditava que ele pudesse ter se safado. A varredura indicou contágio por radioatividade de táquions baixos – o mesmo tipo de radiação liberada quando se rompe as dimensões. Algo dera definitivamente de errado. Alcançara a cidade, afinal. Um alvo civil menor. Podia conquistá-la sozinho. Talvez tivesse que fizer isso – nem sinal ainda do resto da tropa. Bem que Tiri o alertara antes de mais aquela expedição, poucas semanas atrás. Ela não entendia. Franzia o nariz, preocupada, e ficava muda, apreensiva, por horas. Por isso a amava. Em meio às distorções de origem incerta – era um soldado, afinal de contas, não um físico –, obteve imagens de outros pontos do espectro eletromagnético que confirmavam a concentração da população local em um único prédio, e quase em nenhum outro lugar. Identificou a cruz no topo do prédio. Prosseguiu em aproximação silenciosa. Se ao menos Tiri parasse de falar e o deixasse se concentrar… *** Os fiéis haviam corrido para resgatar a irmã que havia surgido do nada e colapsado dentro da igreja – mas imediatamente se afastaram, surpresos, ao perceber a inusitada cor de pele de seu rosto. Coube ao padre e alguns mais valentes o exercício do acolhimento aos necessitados, fosse qual fosse seu tom de pele. Puseram-na em um banco. O padre procurou,


incerto, pelo pulso da jovem. No pescoço daquela mulher encontrou uma corrente que segurava um pequeno medalhão, no qual pôde ler em Latim “Irmã Zamira, noviça da Ordem de Sant'Áquila de Hyerokrene”. Jamais ouvira falar em tal Ordem. Ponderou rapidamente sobre o assunto, mas antes que concluíssem algo, a comoção geral se fez com uma segunda presença na Casa de Deus, porta adentro. Se o primeiro estranho parecia vindo Dele, o segundo certamente deveria ser do outro lado. *** Os mais jovens se lembrariam de algum filme ou game tendo uma noção do que aquilo era, os mais velhos achariam que era da parte do Tinhoso: igualmente, todos o temeriam. A súbita aparição surpreendeu a todos e ninguém procurou se opor. Não havia ninguém armado ali a não ser ele – e uma exoarmadura de combate com 2, 20 m era algo impressionante. Pelo megafone, em brados altos, ordenou a todos que fossem para o chão. O rifle era diferente de tudo que já tinham visto, mas ainda era reconhecido como uma arma, e apontá-la costumava dar qualquer recado. Foi quando notou a mulher deitada em um dos bancos compridos. Monitorou-a sem se aproximar. Não havia materiais com ela ou dentro dela que ameaçassem sua integridade, sequer algo reconhecível como uma faca. De repente, um sensor de sua armadura começou a bipar: não era um Homo Sapiens como deveria ser. Foi quando lhe notou o rosto e seu tom esverdeado. Apontou imediatamente o rifle para a mulher e se aproximou o suficiente para a exo capturar seu rosto. Outro sensor começou a apitar, em alerta mais intenso. Em seu visor era projetado o rosto flagrado, nome e status: Zamira Ismene – Ordem de Sant´Áquila de Hyerokrene – Terrorista procurada – Eliminar ao avistar – Extrema periculosidade. O coração do soldado saltou dentro do peito: uma das terroristas mais procuradas do Império ali, à sua mercê: aquela cujo codinome era Noviça Escarlate! Apontou o rifle, mas não era mais a terrorista que estava ali deitava. Lutou contra todos os alertas da exo e a compulsão de seu medo e treinamento. Mas era Tiri. Dormindo, nos trajes da outra. *** Dor. Ferimentos, silêncio. O campo de morte se estendia ao redor, quietude tumular. Mesmo as aves de rapina não celebravam, quietas em expectativa. Só seu choro, contido, baixinho, poderia ser ouvido. Pelo amor dos seus. A quem cuidava. Sua vocação. Tudo perdido. Ela sobrevivera. Renascera. Só não sabia por quê. Abriu os olhos.


E deu de cara com um rifle apontado para ela. Mesmo a enxaqueca não a impediu de perceber o inimigo ou entender que era já para estar morta, e também que havia algo de errado com ele – fosse mau funcionamento da arma ou indecisão, não passaria mais outro segundo assim. Sem base de apoio física, elevou-se, mesmo assim, em um salto por cima e para trás do inimigo blindado que tardiamente apertara o gatilho e transformou dois bancos da igreja em lascas de madeira microscópicas. Os fiéis gritaram. Ela cerrou seus punhos, de delicadas mãos de enfermeira, descarregando a fúria de mil golpes na lataria da armadura. Avariado o campo de força típico do modelo, a exo cambaleou para frente em três passos, com o piloto e os giroservos lutando para se manter de pé. Firmou-se e girou o corpanzil, ejetando as duas baionetas de ambos os braços, golpeando feroz e certeiramente o ar e o vazio. Girou sobre a perna esquerda para trás, esperando nova saraivada, procurando por ela como pudesse. Quase desmaiou com a vertigem resultante. Forçou-se a focalizar os olhos, notou que os fiéis não mais estavam ali. Pairando a três metros de altura, mãos unidas sob as mangas do hábito, a Noviça Escarlate o punha sob severo olhar. Era a vez dele se perguntar por que não aproveitara a vantagem tática. — Você está ferido – ouviu-o declarar, antes que apertasse o gatilho. – A mancha negra o envolve como uma mortalha. Táquions baixos. Estou lutando com um homem morto. — Quando eu me juntar ao Regimento, vamos ver isto! – berrou de volta, a voz sintetizada reproduzindo a indignação, fúria… e o medo. Afinal, ele sabia ler o relatório médico da exo. Sua inimiga estreitou os olhos. — Eu posso me render. Mas há uma condição. — O Império não negocia com terroristas! – Célere com o rifle, e o teto da igreja perdeu uma das duas águas. Mas só. — Minha preocupação é com os feridos. Os doentes. As vítimas desta guerra insana de vocês. Permita-me ajudá-los… E eu me rendo a você. Os sensores não revelavam a terrorista, apesar da proximidade da voz, e seu cérebro não processava direito as informações. Não ia durar muito. Por outro lado, percebia que ela não tinha interesse em acabar com ele ali – embora pudesse, e disso sabia: sentira aqueles golpes pelas costas, através de toda a proteção. — O que você quer?! Em algum canto, escondida, Zamira sorriu. ***


Arranjar um ônibus e juntar o máximo de pessoas possíveis fora fácil. Arranjar correntes, também. Convencer a todos de que o “robô” não era mais perigo havia sido quase tão difícil quanto convencê-lo a levá-los para um ponto de extração – não, não estou te levando para uma armadilha, use seus sensores, você vai ver que não tem ninguém lá à espera – e fazê-lo voando. Aquela exo não era o melhor modelo para voar, mas era possível. Mas voar era contra todo o plano, naquela fase de implementação, fora o risco da segurança oferecido. – Estarei sob sua mira, não o atacarão. Aquilo era menos reconfortante do que o normal. Por três vezes a Noviça Escarlate se esquivara de seus ataques, sem dificuldade. Portanto, satisfez-se com sua inimiga arregalando os olhos, quando ele lhe impôs uma correia com diversas granadas. – Vista. Se você voar para longe, elas explodem. Se tentar algo, elas explodem. Se eu morrer, elas explodem. Ela se enrodilhou pelos ombros e cintura com a faixa cheia de explosivos, visivelmente incomodada com aquilo. Saboreie as vitórias que conseguir, pensou seu captor. A armadura já não era mais a mesma. Ainda assim, vacilando um pouco, ergueu-se trazendo o veículo lotado dois metros abaixo de si, com a firmeza das correntes. A orientação da prisioneira parecia simples: por uma estrada de terra e, depois, uma rodovia. Avançou com os repulsores, e tomou velocidade. Pôde, acima da cobertura das árvores, notar o grande verde ao redor, aumentando a sensação de algo errado com as coordenadas. Mas a estranheza não era nada, próxima à constatação da ausência de largas partes da floresta – ou do céu. Seu cérebro não conseguia processar corretamente o que via. — O que é aquilo?! — O motivo pelo qual você tem que focar os olhos na estrada e ser rápido! – Ela respondeu, segurando-se em uma corrente, de pé no teto do ônibus. Não voar também fora uma condição imposta, sempre sob a mira do rifle. O soldado odiava quando aquela mulher tinha razão. Tiri sabia ser uma pentelha, quando queria. Avançaram tanto quanto possível, asfalto afora. Aproximados e contínuos 90 km/h levariam rapidamente aqueles sobreviventes à zona segura, bem melhor que o ônibus velho faria – mas o problema seria convencer seu inimigo a resgatar mais alguém depois, disto sabia no fundo de sua mente, enquanto rezava. Mas a prece contínua da Noviça Escarlate transformou-se em berro quando algo falhou acima dela, máquina ou homem, e todos se espatifaram metros abaixo. Não sendo preparadas para detonar sob aquele tipo de impacto, das granadas Zamira nada sofreu. Mas, quando abriu os olhos e tentou se levantar, a dor logo a pôs deitada


novamente. Com seus gemidos, ouviu os de outros, em maior ou menor desgraça. Focou os olhos. Até onde pôde ver, não havia ninguém de pé. Alguns sequer se mexiam. O ônibus estava de ponta-cabeça, as janelas espatifadas, marcas de sangue. Passadas pesadas e trôpegas se aproximaram, e a sombra cresceu sobre a noviça, tapando-lhe o sol. Estava sob a mira de um rifle pesado de munição explosiva, e munição explosiva lhe fez perguntar, se iria matá-la por que apenas não detonou as granadas? Um nome lhe foi sussurrado, antes de qualquer coisa. — Quem é Tiri? – Perguntou-lhe, revelando a dor ao falar. — Onde ouviu esse nome?! – Respondeu, revelando a raiva. — Ouço em você. – Arfava. – Ouço ao meu lado. Ouço seu arrependimento. Há muita dor aqui, soldado… se quiser ajudá-la, componha-se! Odiava aquele homem, com todas forças que tinha. Era mais que repreensível, dado sua vocação, sua crença, sua posição. Mas demoraria para perdoar qualquer elemento do Novo Império Apoloniano, ainda lhe sendo caro. Mesmo assim, não estava feliz de manipular a loucura do soldado daquela maneira. Fim do mundo, ou não. Mas faltava tão pouco para sair de lá…! Não sabia, mas seu inimigo apertara o gatilho várias vezes. A arma, mais dependente de circuitos eletrônicos do que componentes mecânicos, estava arruinada o bastante. Em pânico, procurou o comando que detonaria as granadas, ainda sinalizando verde. Pelo monitor, olhou para a mulher deitada e indefesa, segurando um braço provavelmente quebrado uma última vez. Ela não tinha a pele verde, mas aquele tom de jabuticaba, ligeiramente azulado, contrastando contra o globo com suas íris negras. Tão bela quanto da primeira vez que conhecera, antes da guerra chegar. Antes de divergirem de lado. Antes de tudo. — Perdão, minha Tiri…! A explosão das granadas conjuntas foi o bastante para matar quem vivo ainda estivesse ali. A exo absorveu parte do impacto, mas o soldado caiu, inconsciente. Não se recuperaria, até que a zona de aniquilação tivesse levado tudo. *** Zamira abriu os olhos, o sol interrompido pelo rosto de quem cuidava dela. — Você está bem? – perguntou o Redentor, gentilmente segurando sua mão. Ela se sentou, olhando ao redor. O mato e a floresta haviam tomado o lugar da estrada logo adiante, subitamente, como se nunca antes tivesse sido construída. Atrás, mais estrada, e ninguém por ali. — Onde estão todos? – quis saber, angustiada.


O homem sorria com certa simpatia, mas havia sofrimento. — Às vezes a única vitória que conseguimos é a de ter tentado e… sobrevivido. — Por que você me salvou?! Tinha tanta gente indefesa lá! — Não fui que salvei você – respondeu, sem se alterar pelo rompante. – Eu não podia sair daqui. Quem salvou você foi a divindade a quem você responde. Eu acredito. Isto… eu testemunhei – acrescentou, com ar ominoso. Envergonhada pela acusação que fizera, ou pelo fracasso que deixara ocorrer, não disse mais nada. Levantou-se. Qualquer dor que sentira antes já a deixara. Caminharam em silêncio, digerindo o evento, pelo asfalto sob o céu azul e o dia quente. Uma brisa pouco fez para aliviar, formou um rodamoinho de folhas e ramos próximo ao encostamento. Dali um novo portal dimensional se abriu – mas não era outra invasão. Era uma convocação e uma despedida. Virou-se para o Redentor com um olhar pesaroso, e de lá desapareceu. Assim se conta. Essa é uma história da Guerra de Muitos Mundos.


O Portão Sul de Hadyqah Por Daniel Folador Rossi (do universo de Aera, o mundo dos Deuses Ventos) (história dos reinos do deserto, Āsh-Sharq) O mago ergueu a orbe de jade acima de seu turbante. Espalhadas na superfície da esfera, fórmulas mágicas se desenrolavam, pintadas de negro numa caligrafia fluida. Faziam laços ondulantes que se cruzavam, formando arabescos variados que contrastavam com o tom verde escuro da orbe. Eram números e letras matemáticas que o mago não compreendia – ele não era versado nas artes algébricas –, mas sua magia não exigia que soubesse. Ao seu lado, duas mulheres. Sem véus para cobrir-lhes o rosto, erguiam uma relíquia cada uma: a da esquerda portava um pergaminho de pele de cabra, a da direita um cetro de bronze, ambos tão antigos quanto as próprias ruínas onde se encontravam. O papel das mulheres incomodava ao xeique, mas o mago fora incisivo. Para que a magia surtisse efeito, precisavam refazer os antigos rituais do modo mais fiel possível, e nos tempos antigos, o mago explicara, o papel das mulheres era muito diferente dos dias de hoje. Paciência. E o mago era detalhista. Não bastavam apenas mulheres comuns, às quais eram negadas educação formal – menos ainda educação magicientífica. Afinal, muitos dos rituais ancestrais nas terras arruinadas de Ārḍ Kharāb foram promovidos por mulheres, e em sua escola de magia, a Arqueosofia, quanto mais fiel ao passado, mais efetivo o resultado. Por alguns anos ele procurou moças que tivessem sido instruídas em alguma das escolas mágicas, fato que, apesar de raro nas cidades do deserto, não era impossível. Durante a última década ele as treinou como suas pupilas. A sua escola, a Arqueosofia, devia ser levada a sério, dizia, e, apesar das críticas dos seus colegas, recusou-se a usar mulheres apenas como servas. Por isso ele ensinou às duas, Aisha e Kalila, como teria ensinado a um aprendiz homem, o que causou horror entre os praticantes não só da Arqueosofia, mas de todas as quatro escolas mágicas do deserto. Apesar das críticas, Aisha e Kalila aprenderam e se tornaram tão eficientes quanto a maioria dos aprendizes homens – melhores até do que grande parte deles. O sol brilhou através do grande arco de pedra. A construção, reerguida das ruínas na areia e devidamente restaurada nos locais onde o material faltara, fora terminada uma semana antes pelos servos do xeique. Em alguns dos blocos de pedra ainda se podiam ver as mesmas


fórmulas negras da orbe, do pergaminho e do cetro, gravadas eras atrás, mas a maioria do arco era áspero devido ao atrito da areia, ou liso onde novos blocos foram inseridos. Algumas das fórmulas apagadas foram completadas por estudiosos da escola de Algebria, contratados justamente para este fim, mas o papel principal fora reservado ao mago e suas pupilas. Hoje, eles finalmente abririam uma das portas da antiga cidade de Ḥadyqah. Esperavam, com as relíquias erguidas, o momento exato. Abd Āl-Jābiri Ibn Mas'ud, xeique da cidade de Tasra, estava impaciente. Fora ele quem organizara e financiara a comitiva que levou o mago e suas pupilas pelo deserto das terras desoladas. Uma empreitada custosa, que durara meses de preparação e um risco alto, já que a região era a terra de tribos beduínas que nem sempre aceitavam a presença de estranhos. Além disso, teve de impedir que outras caravanas se dirigissem para lá, e uma grande quantia fora paga a mercenários do deserto para atacar quem se aproximasse. Já tivera maiores esperanças no sucesso da excursão, mas agora estava irritado com a demora: o mago pagaria caro se sua descoberta não desse em nada. A localização das ruínas era conhecida, perdida entre dunas de areia nos limites das terras desoladas, e já fora local de peregrinação de estudiosos de todo o deserto para adquirir seus conhecimentos antigos. Hoje, porém, poucos achavam que poderiam extrair mais alguma coisa de Ḥadyqah. Ibn Fahim, o mago, era um deles. – Quanto tempo mais devemos esperar, mago? – gritou o xeique, de sua posição. – Ao cair do sol, grande Āl-Jābiri, como já discutimos antes – respondeu o mago, esforçando-se para não soar desrespeitoso. – E precisávamos começar tão cedo? – resmungou o outro. – Sim... precisávamos – assentiu o mago, ainda com os braços erguidos. – O grande xeique certamente sabe que a Arqueosofia retira poder do passado, ecoando os rituais que já tiveram lugar no mundo para extrair a energia mágica do fluxo do tempo. Para abrir o Portão à nossa frente, os antigos habitantes de Ḥadyqah começavam seus rituais cedo e os prolongavam até o fim do dia. Certamente o grande Āl-Jābiri deseja abrir o Portão com sucesso. – É... Faça como tiver que fazer – assentiu o xeique, cruzando os braços. Aisha, do lado esquerdo do mago, exibiu um sorriso no canto da boca. Dinheiro era a língua dos poderosos e o mago sabia conversar bem nesse idioma. Ḥadyqah fora uma cidade muito rica no passado, mas o fabuloso tesouro dos regentes desaparecera pouco antes da invasão dos conquistadores. Dizia-se que o sultão fugira por um dos muitos portais dimensionais da cidade, levando todo o ouro consigo e destruindo os Portões no processo. Mais tarde, os historiadores concordariam que muito provavelmente o sultão fugira disfarçado,


meses antes do ataque, levando todo o ouro consigo. Mas a ideia de um tesouro escondido sempre mexera com o imaginário do povo. – "Os que só olham para baixo nunca veem o céu" – recitou Kalila, à direita do mago, por entre lábios. – Ainda não acredito que ele só tem olhos para o ouro. – Ele não entende que, se tivermos sucesso, teremos feito uma das maiores descobertas das últimas décadas? – sussurrou Aisha – Abriremos um dos Portões Dimensionais das Terras Desoladas! Quem já conseguiu isso antes? – Silêncio, vocês duas – sibilou Ibn Fahim. – Mentes pequenas não enxergam longe, mas se não fosse a sede de dinheiro não teríamos obtido patrocínio. Elas assentiram. – Vejam, o sol se põe. É chegada a hora. Aisha e Kalila entoaram um cântico, como sabiam que devia ser feito. Nada mudou nos primeiros segundos, mas, tão logo o céu se tingiu de rosa, por dentro do arco de pedra ele se tingiu de violeta. O xeique quase caiu de seu camelo. À medida que o sol se punha, a orbe do mago começou a brilhar, e as letras do pergaminho e do cetro se iluminavam também. A noite chegava, mas o crepúsculo violeta dentro do arco permanecia estático. A imagem então começou a borrar como uma miragem do deserto. Os olhos do mago exultavam. Aisha tremia, o pergaminho em suas mãos. Kalila segurou o cetro com força, mal contendo um sorriso de vitória. Nada podia prepará-los para o que viria quando a porta se abriu. <<<>>> O assobio da queda de uma ogiva. Uma explosão fez tremer a terra. A soldado Juliana Silva se ergueu da trincheira e disparou vinte e sete tiros com sua submetralhadora. Derrubou um ou dois inimigos. O tenente José Carvalho lançou uma granada de kharma e eles se abaixaram. A explosão negra lançou raios escuros até o céu, o que significava que as almas dos oponentes foram carbonizadas. – Vai, Silva, vai, vai! – gritou Carvalho. Silva se levantou e correu até a trincheira inimiga, passando pelo zumbido de balas e disparando a esmo pelo caminho. Ao alcançar a depressão na terra rochosa, jogou-se sobre os corpos queimados dos soldados apolonianos. Logo em seguida Carvalho surgiu sobre a borda e aterrissou ao seu lado.


– Filhos da puta! – arfou o tenente, cuspindo sobre um dos cadáveres. – Guerra filha da puta! Carvalho tinha 37 anos, brasileiro de uma das inúmeras Terras do Multiverso, onde o Brasil se aliou à Resistência de Kendack, uma coalizão de mundos contra o Novo Império Apoloniano, o qual ameaçava conquistar todas as realidades que pudesse alcançar. Ele era já um veterano naquela guerra, tendo lutado por quase duas décadas contra o Novo Império – formado por humanos de outra Terra do Multiverso e de outros mundos. Tinha cicatrizes de balas e cortes de armas estranhas – perdera uma das orelhas numa luta contra uma fera yygtraniana – e carregava o rancor e frieza que só a guerra pode moldar. – Já estamos perto? – perguntou ele, sobre o barulho dos tiros lá fora. – Quase lá – arfou Silva, ainda abraçada à submetralhadora. – O mapa dizia que a passagem deveria ser aberta mais uns quinhentos metros à frente. – ...puta que o pariu – arfou o tenente. Um assobio lá fora e eles se abaixaram. O chão tremeu com a explosão. Silva tinha 26 anos e entrara na guerra havia poucos meses. Tinha cabelos curtos, com mechas brancas apesar da idade, e um olhar resoluto. Era da mesma realidade de Carvalho – talvez por isso nutrissem um certo ar fraternal –, mas nem de longe possuía a mesma experiência que o primeiro. Ainda tremia um pouco diante dos tiros e explosões, mas entrara na guerra por vontade própria. O mundo deles ainda não tinha sido dominado, e eles já haviam estado em mundos nos quais isso ocorrera. Sabiam do horror contra o qual lutavam. O objetivo agora era invadir as linhas inimigas nas terras da Interface Dimensional, um deserto que servia de lugar comum a vários universos. O plano era criar uma passagem dimensional e atrair reforços de dentro do território do inimigo. Apesar de novata, Silva era essencial, era uma nemo. Possuía uma mente extremamente criativa, atributo que lhe permitia abrir e fechar portais dimensionais no deserto da Interface, o "corredor entre os mundos", como os soldados a chamavam. Carvalho fora designado como sua escolta; ambos deveriam se infiltrar na linha inimiga e abrir um portal no ponto específico, que interligaria a Interface ao planalto tibetano de seu mundo. De lá, um grande exército inundaria o campo de batalha por trás do inimigo. O plano fora composto por três pares nesta investida, três nemos e seus guarda– costas. Um dos pares morreu numa das explosões e eles não tinham ideia de como estava se saindo o outro. Um apoloniano pulou dentro da trincheira atirando raios de plasma, mas os tiros de Carvalho o lançaram para trás. Logo ouviram o barulho de mais deles se aproximando e o tenente lançou outra granada de kharma. Abaixaram-se. O chão tremeu e mais almas queimaram.


– Mais quantas granadas? – perguntou Silva, com a submetralhadora apontada para as bordas da trincheira. – Três – respondeu o tenente, sério. – O próximo passo tem que ser certeiro. Entreolharam-se. – Me dê as granadas – disse Silva, resoluta. Apesar da idade, as mechas de cabelo branco não mentiam: devido ao esforço mental, a vida de um nemo não durava mais do que um ano em atividade, e ela já passara oito meses na guerra. – Eu posso abrir caminho sozinha até o ponto marcado. Só preciso abrir a fenda dimensional. Você se junta ao exército quando eles vierem. – Nem fodendo, soldado – respondeu Albuquerque. – Minha missão é escoltá-la até o ponto marcado. Você tem mais chance com uma escolta, e já perdemos contato com o outro nemo. Se não trouxermos o exército do Tibet hoje... – continuou, mas não teve coragem de continuar. Silva suspirou. – No três? Albuquerque puxou o pequeno explosivo do cinto. Inspirou. – Um, dois... vai! Lançou outra granada. Logo após a explosão, Silva subiu atirando. <<<>>> A imagem sob o arco tremeu e mudou. Uma explosão de luz atravessou o pórtico e, antes que Aisha pudesse recuperar o foco, o som de três, quatro, sete pequenos estouros encheu o ar. Ibn Fahim, o mago, caiu a seus pés. A orbe verde tombou pesadamente na areia, enquanto outros projéteis atravessaram o Portão; dois acertaram o peito do xeique, cujo camelo saiu em disparada. Outro barulho fez Kalila sentir a coxa esquerda estourar. Ela gritou e caiu, agarrada à perna. – Sagrado Leste, o que está...? – berrou Aisha, e então olhou para o Portão. Atrás do arco de pedra, um deserto rochoso se espraiava sob um céu de cor vermelhosangue, onde várias colunas de fumaça negra eram espalhadas pelo vento. Relâmpagos de explosões tremiam aqui e ali. Soldados corriam sob o zunido de balas, avançando, atirando e tombando. Portavam armas estranhas – claramente armas de fogo, como os rifles das nações do Norte. Mas incrivelmente mais numerosas.


Um exército assim poderia subjugar todos os reinos do deserto! Não... Todo o continente do Leste! Ouviu o barulho de mais balas. Ela se jogou no chão, ao lado de Kalila. – Vamos sair da frente, irmã! – disse ela, tentando puxar uma Kalila paralisada pela dor. – Mestre, venha também, vamos sa... – mas os olhos de Ibn Fahim estavam vidrados, contemplando o Portão, seu último feito em vida. Ela guardou as lágrimas e puxou a irmã para uma depressão na areia. Mais uma explosão, dessa vez de cor escura. Enquanto procurava uma poção para cessar a dor de Kalila e tentava estancar seu sangue com uma tira do manto, Aisha vigiava, temerosa, o Portão infernal. Dois soldados haviam parado diante dele, momentaneamente esquecidos do desastre à sua volta. Ela pôde ouvir suas vozes, mas não entendeu aquela língua. – F-foi você que abriu esse...?! – berrou Albuquerque, recobrando a consciência e distribuindo tiros como quem regava plantas. – Eu não... Ele abriu sozinho! – respondeu Silva, atônita. – Não para, então! – berrou ele, empurrando-a para recomeçarem a correr. – Vamos para o ponto marc... O barulho de uma explosão de plasma aqueceu o ar atrás de Silva e a arremessou ao chão. Ao se voltar, encontrou o corpo de Albuquerque estirado, a submetralhadora longe, os olhos vidrados. Mordeu os lábios e recomeçou a correr. Aisha viu o raio que derrubou um dos soldados e viu quando a soldado mulher correu para um espaço vazio, bateu as palmas das mãos e as deitou no chão. Imediatamente o ar acima dela rachou e se abriu como uma cortina, revelando um grande exército, um dos maiores que Aisha já vira. Portavam armas de fogo e lanças estranhas, usavam mantos de frio, gorros e luvas, e jorraram da fenda dimensional para o campo de batalha com o grito de milhares de vozes. Uma explosão negra, um tremor de terra. – Abrimos um portal para o inferno! – gritou ela entre lágrimas e desespero. Kalila desfalecera de dor, mas o sangramento havia parado. – Tenho que fechá-lo rápido! Deixou a irmã no abrigo e se arrastou até o corpo do mago. Diante dele, a orbe de jade ainda fulgia com a estranha luz mágica. Tomou o cetro de bronze que Kalila derrubara e o ergueu acima da cabeça. – Eu invoco os Ritos de Destruição das antigas tribos de Āl-Khatyr! – berrou, e desceu o cetro sobre a orbe. Uma explosão mais forte do que as anteriores estourou a jade e o cetro em milhares de pedaços, jogando Aisha para trás. Um clangor de metal partindo fez-se ouvir acima de todos


os sons, vindo do Portão de pedra: as imagens da guerra vacilaram, como num espelho embaçado, e desapareceram, e todos os blocos do arco se partiram e vieram ao chão. Silêncio. Aisha se arrastou de volta para a irmã. O xeique estava morto, seu mestre estava morto e seu sonho também. Ela jurou para a Brisa do Outono que nunca falaria sobre o que vira do outro lado do Portão, nem ensinaria a ninguém como abri-lo. A partir daquele dia, ela e a irmã abandonariam os estudos dimensionais da magia. Ela olhou para o oeste, para as dunas a perder de vista. Os servos debandaram, juntamente com a caravana. Com os olhos ardendo, abraçou a irmã. Os registros não contam, mas esta é também uma história da Guerra dos Muitos Mundos.


Tierrarouge Por Daniel Folador Rossi As luzes começaram no meio do dia, primeiro tingindo o céu azul de tons de violeta, verde e azul escuro. Em pouco tempo as cores ganharam força, filamentos amarelos, rosáceos, brancos, que se espalhavam até os horizontes do deserto vermelho como nuvens multicoloridas. Logo se tornaram tão brilhantes que venceram até mesmo o sol, senhor absoluto dos dias áridos. Uma aurora boreal tão forte que brilhou em pleno dia. Em pleno deserto. Os oficiais da área do grande complexo – aqueles de patrulha sobre as muralhas ou os que estavam de continência nos pátios internos – foram os que puderam vislumbrar a beleza daquele espetáculo, tão belo quanto improvável. As cortinas de cores se desfraldaram num brilho tão intenso que já não havia mais dia, mas sim uma profusão fluorescente se descortinando por toda a parte, tal qual o devaneio psicodélico da droga mais surreal. Os soldados baixaram as armas e olharam o céu, deslumbrados. E então vieram os gritos. Os que estavam totalmente expostos foram consumidos imediatamente, e estes tiveram sorte. Os urros agonizantes dos que estavam na penumbra serviram de aviso, e os que se encontravam na sombra tiveram algum tempo para se salvar. Correram para os corredores interiores assim que notaram o aumento súbito de temperatura, fechando as pesadas portas pressurizadas atrás de si, sob o grito desesperado dos que queimavam com a radiação. Os que se encontravam no primeiro subsolo do complexo não entenderam o que acontecia a princípio, mas então, mesmo ali e nos níveis abaixo, a temperatura subiu rápida e vertiginosamente, causando desmaios e ataques cardíacos. Enfim, todos os equipamentos eletrônicos do complexo penitenciário estouraram, permitindo apenas que os circuitos antiincêndio acionassem os esguichadores de água antes do desligamento total. A água salvou a maioria do inferno. Durante algumas horas, a temperatura interna do complexo ficou acima dos 40º Celsius, mas os termômetros analógicos – apenas os que não estouraram – registravam que a temperatura exterior beirava os 150º. <<<>>>


– Jean, você precisa separar as coisas – começou, mais uma vez, o Major, enquanto avançava sua torre e colocava o rei do outro em cheque – O que aconteceu em Tualamei não pode interferir em nosso trabalho. – Tualamei tem tudo a ver com nosso trabalho, Aurélio – respondeu o outro, após coçar a espessa barba castanha, movendo um bispo para proteger o rei. Em seguida levantou os olhos do tabuleiro e encarou o rosto jovem do Major. – Os filhos da puta massacraram... – Um hospital de freiras, eu sei. E Inês estava lá. – A simples menção do nome fez o Coronel Jean de Castro Álamo tremer de raiva, balançando levemente as peças do jogo, tombando um peão. O Major Aurélio Gomes Albuquerque Filho suspirou fundo e recolocou a peça em seu lugar – Mas isso já faz três meses, e nossa situação atual já deveria tê-lo posto em alerta com o presente, e não com o passado. Além do mais, aqueles não são os mesmos filhos da puta que mantemos presos. Dizendo isso, moveu um cavalo e recolocou o rei em xeque. – São apolonianos, cacete! – disse o Coronel, esmurrando a mesa, derrubando todas as peças e lançando algumas ao chão – Esses desgraçados agem como se fôssemos descartáveis, não têm consideração alguma por ninguém que não eles próprios. – Você está se exaltando de novo – suspirou o Major, levantando-se e recolhendo as peças da mesa e as que caíram no chão. – Mesmo que isso fosse totalmente verdade, e duvido que seja totalmente mentira, é nosso dever dar tratamento digno aos prisioneiros de guerra. – Qual dignidade, Aurélio? Você diz que eu que não me atenho ao nosso problema atual, mas parece que é você que não entende a gravidade de nossa situação. O Major Aurélio Albuquerque ergueu-se do chão e guardou as peças dentro do tabuleiro dobrável. Essa discussão já levava dias, desde a anomalia eletromagnética que incinerou dezenove de seus soldados, levou a vida de outros sete e destruiu todos os circuitos do complexo, isolando–os do restante do Multiverso. Baixou a voz: – Pela última vez, Jean, não podemos executar os prisioneiros. A anomalia cortou nossa comunicação com a central, mas logo, logo a nave de provisões chegará. E um novo grupo de batedores partiu hoje com ordens para... – Os batedores não vão encontrar nada! – gritou o Coronel, pondo-se de pé. O Major se reprimiu por permitir que o amigo tivesse bebido aquele último copo de vinho - um luxo diante das provisões de que dispunham. – Aurélio, eu trabalho nesse deserto desde antes de você entrar para a Resistência. Não há vida de qualquer tipo em todo o planeta! Mesmo a água doce é difícil de encontrar. – Eu sei, e parece que finalmente descobrimos o motivo...


A mudança de assunto abrandou o ânimo do Coronel, que voltou a se sentar e segurou a cabeça entre as mãos. – Em quase vinte anos trabalhando aqui, nunca vi uma anomalia magnética sequer próxima a essa magnitude – suspirou – E elas não são incomuns em meu mundo. – Seu mundo... – A Terra 333. – Isso. Nós nunca tivemos nada nem parecido no meu, na Terra 18 – comentou o Major, voltando a se sentar com o tabuleiro fechado em mãos. Ao ver que o amigo se acalmara, abriu–o e recomeçou a arrumar as peças para uma nova partida. Desde o ataque inimigo ao hospital onde a ex-esposa do amigo fora executada, evitava – ou melhor, temia – deixa-lo sozinho com seus pensamentos. – Aquele monstro é uma coisa comum em seu mundo? –As anomalias são ejeções de massa coronal do Sol, que induzem uma explosão eletromagnética. O campo magnético do planeta costuma ser capaz de protegê-lo, mas em meu mundo esse campo é mais fraco do que em outras Terras em que estive. Mas não é nada comparado ao daqui; o campo deve ser bem mais fraco. – Sei... Se aquilo acontece com frequência aqui, com certeza foi o responsável por ter exterminado a vida de todo este planeta – concluiu o Major, terminando de arrumar as peças e fazendo o sinal para que o amigo começasse. – Mas pelo menos os batedores podem encontrar mais água. – Eu não diria difícil, está mais para impossível – sentenciou o Coronel. – Mas temos quase oito mil prisioneiros, quase sete mil acima de nossa capacidade, Aurélio. Não é justo que os apolonianos... – Comece, Jean. O Coronel se calou, esfregando os olhos para a raiva passar. Aurélio era teimoso, mas ele retomaria aquela discussão outra noite. Voltou-se para o tabuleiro, coçando a barba, e moveu o peão diante do rei. O Major não se furtou a um sorriso; por mais experiente que Jean fosse com o xadrez, ele sempre começava com o movimento para o xeque pastor. <<<>>> – Major Albuquerque. – Pois não, soldado? Quem lhe dirigia a palavra era uma soldado jovem, pelos seus vinte e poucos, pele negra e cabelos em dreadlocks, presos num cacho sobre o ombro do uniforme. O Major Aurélio Albuquerque, apesar de ter sido alocado em Tierrarouge mais recentemente que o


coronel, já conhecia o rosto de cada um dos 256 oficiais kendackianos sob seu comando – 230 após o incidente com a anomalia – e se lembrava do modo como aquela soldado se dirigia com excessivo respeito a ele e com uma cautela que beirava a hesitação com o Coronel. – Oficial Céline Bouclier, da patrulha das celas inferiores – disse, fazendo continência. – À vontade, soldado. Bouclier desfez a continência, mas demorou a falar, olhos fixos no semblante calmo do Major, sem saber como prosseguir. – Gostaria... – começou ela, lançando um olhar desconfiado para os soldados que passavam pelos corredores. – Gostaria de conversar com monsieur a sós. É importante. O Major ergueu uma sobrancelha e franziu o cenho, imaginando o que seria agora. Os ânimos estavam agitados desde a aparição da anomalia e a morte de 26 soldados kendackianos, e, apesar da temperatura ter voltado ao normal, a nave com provisões – que já eram parcas no complexo pelas convenções da guerra – estava atrasada já havia algum tempo. Sem contato com a central, alguns soldados começavam a duvidar que viesse. – Venha comigo ao meu escritório. – Sim, monsieur. Seguiram pelos corredores iluminados do complexo presidiário – a anomalia havia danificado os circuitos elétricos, mas, por um golpe de sorte, fora possível reparar alguns. Outros oficiais passavam por eles em suas rondas rotineiras, indo render seus colegas ou conferir o estado das celas superlotadas dos níveis inferiores. Mesmo nesse pequeno trajeto até o escritório do segundo em comando de Tierrarouge, era possível notar a atmosfera de ansiedade nos rostos dos que passavam. Por fim, o Major parou diante de uma porta de metal, abriu–a e fez menção para que Bouclier o seguisse. A sala era simples, com um armário de arquivos e uma mesa de trabalho com um grande mapa da Europa – a cartografia era um das paixões do Major. Fecharam a porta e Bouclier se sentou diante dele. Ia começar, mas o mapa chamou sua atenção por alguns segundos. O Major, que se orgulhava do mapa, voltou-se para ele. – É um retrato do que temos mapeado ou deduzido desta Terra – explicou – Quando a Resistência Kendackiana abriu o portal deste mundo, todos ficaram surpresos com a aridez do planeta. Tudo é um grande deserto. Não existe vida nem vegetação de espécie alguma; nenhum dos voos de pesquisa pôde detectar nada nesse sentido. E a falta de vida muda o relevo. Por isso a Europa que você está vendo parece desfigurada. – Eu... Eu sou nativa da França da Terra 18 – respondeu Bouclier – É a primeira vez que me alocaram fora de meu mundo. Esperava ao menos reconhecer mon pays...


O Major sorriu. Então a soldado era uma conterrânea de seu próprio mundo, onde iniciara sua carreira militar. – Tierrarouge está entre o que seria a região francesa da Aquitânia e a região espanhola de Navarra, no limite dos dois países, mas que, nesta Terra, é um grande deserto. Os vales são diferentes, os campos são planícies rochosas ou campos de dunas. Eu sinceramente duvido que vá reconhecer mesmo as montanhas daqui... – disse ele, se perdendo por alguns segundos nas bordas recortadas da França–Espanha, no Mediterrâneo com quase metade do tamanho que conhecia, no Estreito de Gibraltar que ali era uma ponte de terra entre a Europa e a África. Mas os problemas atuais voltaram. - Ele balançou a cabeça, voltou-se. – Mas... Acredito que não viemos discutir geografia. – Pardon, monsieur – e a preocupação retomou o rosto da soldado. – Como eu disse, sou da patrulha das celas inferiores. Monsieur deve saber que os soldados estão agitados desde l'anomalie, e o modo como o Coronel vem tratando os prisioneiros está influenciando os demais... O Major mordeu o lábio inferior. – Monsieur sabe que estamos operando acima da capacidade, já há algum tempo. O estoque está baixo e a nave de provisões está atrasada há quase um mês... Os soldados já não veem com bons olhos... Bem, já começam a achar uma ideia ruim gastarmos nossa comida com os prisioneiros. Alguns já externaram isso e alguns prisioneiros estão revidando com insultos e alguma résistance. Estamos correndo o risco de termos uma rebelião dos presos, que são muitos, ou então um motim dos soldados. O Major ficou em silêncio, sério. Esperava por um ou o outro problema havia alguns dias, mas não esperava que viessem os dois de uma vez. Repreendeu-se por permitir que os pensamentos vingativos do Coronel tivessem infectado os soldados. – Monsieur... Eu vim aqui lhe contar para que saiba que existem muitos do seu lado. Os soldados comentam... é visível como o Coronel está desestabilizado depois que ele perdeu a ex-esposa no ataque a Tualamei. Eu e meus colegas acreditamos na sua capacidade de controlar a situação, muito mais do que confiamos no Coronel. Eu pedi minha alocação em Tierrarouge para que pudesse trabalhar com monsieur. Monsieur é um grande herói em mon pays, depois que impediu a invasão apoloniana de oito anos atrás – disse ela, levantando-se. – Quero que saiba que pode contar conosco. O major continuou sentado, olhando sério para os olhos negros da oficial. Se a situação estava ruim como ela descrevera, iria precisar de todo apoio que tivesse, se quisesse – e mordeu o lábio quando pensou – enfrentar o Coronel. Mas ainda confiava que Jean mudasse de ideia.


– Estou muito grato pela informação e apoio, oficial Bouclier. Vou pensar a situação. Por ora, dispensada. – Sim, monsieur. <<<>>> – Jean! O que você...? Atônito, o major encarava o Coronel Álamo, o qual segurava um cassetete que pingava sangue, sangue de um prisioneiro. O Coronel estava rodeado por oficiais de sua confiança, e todos sorriam ante a face deformada e o corpo inchado do apoloniano. O prisioneiro não estava inconsciente, mas evitava se mover para não receber mais golpes ou chutes. – Major Albuquerque – cumprimentou. – Há algum tempo que não o vejo. Percebo que está sem a companhia dos seus... Partidários. Veio me ajudar a disciplinar esse apoloniano desgraçado? Ele estava insultando a Resistência de Kendack, acusando–nos de oferecer pouca comida aos presos – e sorriu em deboche. Muita coisa foi dita naquela frase: as tensões do racionamento de comida, a dúvida sobre a vinda de suprimentos e os ânimos agitados tinham mantido o Major ocupado demais para as tradicionais partidas com o amigo, nas quais conversavam e ele poderia tentar colocar alguma razão na cabeça de Jean. Dado o ânimo do Coronel, porém, o próprio Major evitou este contato, embora não tivesse admitido até aquele momento. Já o sorriso debochado era quase uma confirmação do que Albuquerque já ouvira, contado a ele por subordinados de sua confiança: oficiais de confiança do major estariam negando comida aos prisioneiros. Por fim, o rancor na palavra que o Coronel usara – "partidários" – denunciava um sentimento de suspeita de traição. De fato, fora oferecido ao Major a opção de organizar um motim contra os desmandos do Coronel, mas ele se negara veementemente a trair o amigo. Ouvir a suspeita da boca do outro, porém, o fez se sentir, ele mesmo, o traído – e repensar se talvez não tivesse rejeitado uma escolha sábia. O prisioneiro se permitiu abrir os olhos e lançou uma súplica velada ao Major. Aquilo estava fugindo ao controle. Albuquerque afastou de sua mente a imagem do amigo e se concentrou para enxergar em Jean apenas seu oficial superior. – Coronel Álamo, devo lembrá-lo que tortura e punições físicas não fazem parte do procedimento de tratamento aos presos de guerra da Resistência de Kendack. Você, como oficial mais antigo e chefe dessa repartição, não deveria permitir tais atos e menos ainda praticá-los!


– Cale-se, Major Albuquerque – respondeu ele, enquanto entregava o cassetete ensanguentado a um dos oficiais ao seu lado e enxugava as mãos num pano que outro lhe oferecera. – Nossa situação está muito além do procedimento padrão e pede medidas proporcionais. Não vou permitir qualquer insinuação caluniosa que possa acirrar os ânimos já agitados deste complexo. – Coronel Álamo, isso é exatamente o que vai acirrar os ânimos dos prisioneiros. – Cale-se, Major, isso é uma ordem! A partir de agora, quem insultar nossos métodos terá a mesma punição que esse desgraçado – disse, cuspindo no prisioneiro, que não pôde evitar um gemido. – É preciso mão de ferro para controlar situações extremas, e medidas mais drásticas poderão ser tomadas caso seja necessário. Quem se opuser receberá o mesmo tratamento. Dizendo isso, mirou o Major no fundo dos olhos, para desafiá-lo. Ele devolveu o olhar, tão obstinado quanto pôde. Medidas mais drásticas. Enquanto o Coronel se afastava com seus oficiais, o Major Jean Albuquerque temeu pela decisão que teria que tomar. O rádio em sua cintura – um dos únicos equipamentos de comunicação que ainda funcionava – apitou. – Major Albuquerque, favor vir imediatamente ao refeitório. Repito, vir imediatamente ao refeitório. <<<>>> – Pardon, monsieur, por perder a cabeça... – Não podemos dar espaço para provocações, soldado – respondeu o Major, e suspirou. – A situação já está complicada demais com a falta de comida e as ações do Coronel... – Mas o tenente disse que pretendiam subjugá-lo, monsieur! – Os ânimos estão acirrados e... – ...disseram que o Coronel concordava – sussurrou ela. Aurélio Albuquerque ficou um tempo sem palavras, olhando atônito para a oficial. Estavam na enfermaria do complexo. Houvera um desentendimento no refeitório durante o dia, e a soldado Céline Bouclier e um oficial defensor das ideias do Coronel se atracaram. Bouclier recebeu um corte de faca no braço esquerdo, pelo que tivera de ser socorrida – recebera cinco pontos –, não sem antes fazer o outro oficial cair inconsciente.


O Major sabia que outros desentendimentos viriam. As ideias do Coronel sobre hostilizar os prisioneiros e negar-lhes os escassos suprimentos ganharam popularidade entre os oficiais kendackianos. Já fazia três meses que a nave de suprimentos devia ter chegado, os batedores só puderam encontrar água doce suficiente para outros dois meses, nenhum alimento, e, sem contato com a central, estavam abandonados à própria sorte. – As coisas estão saindo do controle. O Coronel... O Coronel está realmente negando comida aos prisioneiros? Bouclier inspirou fundo com o peso do que tinha pra contar. Fechou os olhos negros por um tempo. – Major... Um amigo próximo está infiltrado entre os homens de confiança do Coronel... Informou–me que o Coronel deseja executar os prisioneiros – e inspirou fundo antes de continuar – daqui a duas semanas. <<<>>> – Há quanto tempo você está planejando isso, Jean?! O Major Aurélio Albuquerque gritava contra seu superior, ignorando todos os protocolos. O Coronel estava em sua poltrona, na sala escura, bebendo o último copo de vinho que restara em todo o complexo. Por causa do horário, o uniforme estava pendurado na parede – ao lado, o cassetete ainda sujo de sangue – e ele vestia uma camiseta branca e uma calça de lona. A pose, porém, ainda era altiva, e os olhos traíam um orgulho ferido e um rancor agitado. Estava voltado para a parede quando o Major entrou, as luzes apagadas, apenas com a iluminação de um abajur a lançar penumbras na sala. A mesa parecia vazia sem o tabuleiro de xadrez. – Saia da minha sala, Major Albuquerque – respondeu o Coronel, sério, com um ódio incontido na voz. – Eu sei de seus planos. Eu sei que você não enxerga que nossa sobrevivência está ameaçada por esses... Esses filhos da puta. Eu sei que você defende os prisioneiros mais do que seus subordinados. E eu sei que vocês – você e seus partidários – pretendem se amotinar. Isso não vai acontecer, Major. – O que... o que você?... Jean, você ficou maluco? – CALE A BOCA, oficial. Saia da minha sala, agora, ou chamarei os tenentes e te jogarei nas celas por insubordinação. Nas celas junto com aqueles desgraçados que você defende. – Jean, você... – Saia – e fez menção de pegar o rádio sobre o braço da poltrona. O Coronel enlouquecera. Estava louco e enlouqueceria a todos com ele.


O Major fechou a porta com força, tentando se livrar da frustração, do sentimento de traição, da ansiedade e do estresse das últimas semanas. A força foi tanta que a porta fez tremer o armário de arquivos do coronel, derrubando o tabuleiro dobrável. As peças se espalharam por todo chão da sala. O Major disparou pelos corredores. <<<>>> A comida desceu com dificuldade pela garganta; tinha gosto de decisões difíceis. Era a noite do dia seguinte à confusão com a oficial Bouclier e dos gritos com o Coronel. O Major e os oficiais que o apoiavam marcaram uma reunião após o jantar, na biblioteca do terceiro subsolo. Iriam iniciar um motim. Não podiam deixar que o rancor e loucura do Coronel Álamo contaminasse a todos. O Coronel seria destituído e preso junto com seus apoiadores, até que o contato com a Resistência fosse restabelecido. Até lá, o Major comandaria Tierrarouge. A reunião seguiria em segredo. Os oficiais partidários do Major estavam espalhados pelo refeitório e se dirigiriam à biblioteca meia hora após o jantar, um a um, para que não levantassem suspeitas. O Major terminava seu prato enquanto remoía as últimas semanas e encarava, com tristeza, suas próximas ações. Alguém surgiu ofegante pela porta principal. – A soldado Céline Bouclier está morta!! Assassinaram Céline na enfermaria! Em seguida ouviram um tiro, e o soldado que gritara caiu para a frente, inerte. O Major se ergueu com urgência, seguido por quase todos do refeitório. Tateou pela arma na cintura, mas o peito ardeu e um acesso violento de tosse o impediu de agir. Protegeu a boca com as mãos, tentado recuperar o fôlego, e viu que tossia sangue. Veneno. A comida fora envenenada. Todos os partidários do Major se dobraram sobre as mesas com fortes acessos de tosse, enquanto oficiais próximos, que apenas tinham fingido tocar na comida, puxavam suas armas. Por sobre a convulsão que o acometia, o Major ouviu o clique de uma pistola próxima de sua cabeça. Ergueu os olhos e viu um dos tenentes que seguiram o Coronel no outro dia, e entre uma tosse e outra, sua própria pistola tendo caído no chão por baixo da mesa, ele viu o Coronel surgir na entrada do refeitório, por atrás do oficial morto. Sua pistola fumegava, e ele tinha os olhos vermelhos e injetados de ódio. Sem uma palavra, sem que emitisse um som sequer, o Major Aurélio Albuquerque o viu erguer e depois baixar a mão direita. Cento e duas pistolas dispararam. Nem mais uma tosse foi ouvida.


<<<>>> Sob o sol do deserto, o anil do céu se dobrou para os lados como uma cortina, e, quase cinco meses após a anomalia eletromagnética, a nave de suprimentos surgiu diante do Complexo Penitenciário de Tierrarouge. A anomalia daquele mundo tinha não só destruído os comunicadores transdimensionais, mas impedido a própria viagem interdimensional para aquela realidade. A nave com suprimentos da Resistência de Kendack teve que esperar até que os distúrbios residuais tivessem cessado, para que pudesse viajar com segurança. Pousaram no pátio central do complexo, ao lado do que parecia os restos de uma grande fogueira, queimada havia alguns dias. Nenhum oficial veio recebê-los, e os recém-chegados deixaram a nave e se dirigiram para as entradas. Ao atravessarem as portas de ferro, o complexo foi avisado de sua presença. O primeiro subsolo estava vazio. Quando alcançaram o segundo nível, cada um dos oito oficiais foi recebido com uma ou mais balas na cabeça. O Coronel Jean de Castro Álamo e cerca de cento e vinte oficiais saquearam o que sobrara do complexo e tomaram a nave transdimensional. Os quase oito mil prisioneiros tinham sido executados algumas semanas antes. Os corpos nas celas dos níveis menos profundos foram levados para a fogueira do pátio, onde foram incinerados juntamente aos kendackianos mortos. Os corpos nos subsolos mais distantes foram abandonados, e as portas de acesso trancadas. Tierrarouge foi deixada como um complexo fantasma, lotada de corpos dos que não foram queimados e enterrada com as histórias de seus mortos. O Coronel e os seus seguidores abandonaram aquele mundo como abandonaram a Resistência de Kendack. Tornaram-se um batalhão desgarrado, atacando naves e estações apolonianas por conta própria. Os que sobreviviam aos seus ataques relataram sobre o sadismo e a crueldade desproporcional com que o Coronel tratava seus inimigos. Todos temiam aqueles olhos vermelhos, que irradiavam um rancor e uma loucura que só podiam vir dos níveis mais inomináveis do inferno. Não se tem notícias deles há pelo menos um ano. Esta é uma – e não será a última – das tragédias que permearam e permeiam os últimos acontecimentos do Multiverso, na terrível Guerra dos Muitos Mundos.


Auto-Retrato de uma Natureza Morta Por Octavio Aragão Arremessei o quadro de meu pai ao fogo pouco antes de os soldados arrombarem a porta. Apesar das chamas altas, a tela não foi completamente consumida e um dos invasores conseguiu resgatar os restos mortais de uma promissora imitação de Seurat. Já percebeu como todo mundo acha que consegue imitar os impressionistas? Um dia gostaria de ver uma obra psicografada de Velásquez ou de Rubens. Se for verdade essa conversa de vida após a morte, dois pontos precisariam de resposta urgente: primeiro, por que os renascentistas não produzem nada e, segundo, por que os modernistas não mudam de estilo. Tenho cá as minhas respostas, mas, como são um pouco ofensivas aos autoproclamados médiuns que afirmam contatar o além, prefiro voltar ao tópico principal deste relato, que é o fato de minha família estar sendo agredida pelas forças armadas. O irônico é que meu pai era militar. O tempo do verbo está correto, era militar, não é mais. Se bem que agora nem mesmo um ser humano ele é, mas divirjo. Meu pai era militar e a ironia acaba aí. O resto é apenas fumaça e dor. O quadro era uma festa de vermelhos e laranjas explodindo de camadas de verdes. Não, eu não gostava, mas isso não vem ao caso. O que importa é que era uma obra pontilhista que flertava com as distorções cubistas, e todo mundo sabe que ditaduras odeiam essas coisas. A arte em tempos de governos fortes é preferencialmente realista - evito o termo "acadêmico" porque a academia deveria estudar toda e qualquer coisa - já que a técnica encobre o significado. O "não-realismo" obriga a sentir, a pensar... e pensar é tudo que o Estado não quer que você faça. O Estado exige dedicação total, corações e mentes. Em consequência, vivemos escorraçados e com medo. Claro que todo mundo sonha em dar um tiro na cara dos tais Apolonianos, mas estávamos todos muito ocupados nos divertindo com os brinquedos de alta tecnologia que eles nos deram de presente. Vivíamos uma Era das Maravilhas nos anos 70, com telefones portáteis movidos a baterias, televisores do tamanho de paredes, computadores de pulso e até videofones. A verdade é que os Apolonianos eram o problema menor. A raiz dos males sempre foi a própria humanidade, principalmente no Brasil, com destaque para o Rio de Janeiro, e focando no meu bairro. Só faltou dizer que minha rua é a mais mal-afamada do mundo, mas seria um exagero mesmo para a pobre Nossa Senhora de Copacabana, coalhada de igrejas e prostíbulos, supermercados e bocas de fumo. É isso aí. Há quem pense que em ditaduras não há lugar para o tráfico de drogas. Bah, conversa fiada. Todo mundo precisa lavar dinheiro.


Mas toda essa merda - que resultou na queima do maldito quadro - começou com a descoberta da tortura, pelas mãos do exército, do filho de um amigo de meu pai. E o velho não era muito bom em deixar essas coisas passarem batidas sem alguém ouvir algum tipo de espinafração, mesmo em que esse alguém fosse uma pessoa completamente por fora das paradas, como, por exemplo, eu. Nesse caso, porém, ele sabia exatamente no rabo de quem deveria enfiar a perna mecânica. E dessa vez ele enfiou tão fundo que o sujeito ainda deve estar sentindo gosto de alumínio e óleo de máquina na úvula. Ah, não contei como o velho perdeu a perna, contei? Pois é, ele estava em um treino com as novas tecnologias fornecidas pelos Apolonianos e, bem, só preciso dizer que ninguém sabia mexer direito com aquilo, certo? Alguém apontou um desintegrador sem a trava de foco de segurança (é, trava de foco de segurança. É um projetor de luz, logo, precisa de foco, não perguntem) e um monte de gente se machucou. Meu pai deu sorte, ficou sem a perna. Muita gente ficou sem cabeça. Mas voltemos ao que interessa. Meu pai, adepto de uma noção talvez antiquada do conceito de militar, não gostou de saber que o filho do amigo dele era torturado por um bando de animais usando uniforme. É aquela coisa: o velho dizia que seu sonho seria encontrar o Guevara frente a frente, passar bala nele e depois bater continência para o moribundo. Esse era o tipo de ação militar na qual o velho acreditava, nada de salas escuras, luzes bruxuleantes ou farpas de bambu nos dedos. Uma vez pensei em dizer a ele que bombardear pessoas a distância também não era sinal de grande coragem, mas acho que seria uma discussão inútil. O fato é que ele pegou um telefone das antigas e ligou para outro amigo no Ministério do Exército. O sujeito era um figurão e combinou um almoço com papai para o dia seguinte, onde poderiam discutir toda essa confusão sobre tortura. O velho virou aquela noite pintando. Como era alérgico a tinta a óleo, usava têmpera e, como acabamento, uma demão de veniz. Isso afetava as tonalidades das cores, tornando-as mais escuras, e o obrigava a pintar fazendo testes e mais testes para antecipar a tonalidade correta antes de partir para a versão final. Depois de anos imitando os expressionistas abstratos, tentou voltar às origens, esboçando uma natureza morta que deixou minha mãe desesperada ao juntar uma galinha morta, algumas frutas podres e, para minha surpresa, um de meus telefones portáteis sobre uma baixela de prata. Perguntei o que diabos era aquilo e ele foi peremptório: - É um auto-retrato. Durante qualquer ditadura, há dois caminhos para os artistas: ser relevante e morrer de fome ou usar metáforas. Quanto mais complexas as relações entre o Poder e a paleta, melhor. E isso vale para tudo, desde a pintura até a música, passando pelo teatro e a literatura. Fale o que pensa e, na melhor das opções, você vai em cana. Como um paradoxo


ambulante, milico e pintor modernista, o velho passeava pelos dois mundos, conversando tanto com os milicos quanto com a vanguarda. A decepção com os primeiros era cada vez maior e culminou com o acordo firmado entre o governo e os alienígenas, por volta de 1974. Diziam que os Apolonianos queriam buchas de canhão para uma suposta guerra interdimensional, uma "Guerra dos Muitos Mundos", e que países como Brasil e Índia forneciam o tipo de soldado ideal para tais incursões, mais valiosos pela quantidade que pela qualidade. Os milicos toparam em troca de auxílio e tecnologia para mantê-los na vanguarda do combate aos subversivos de esquerda. Papai era da opinião que dez anos de intervenção militar eram mais do que qualquer democracia poderia tolerar, mesmo diante da tal "ameaça comunista". No dia seguinte, acordei com o barulho do chuveiro. O velho decidiu se preparar cedo para o tal almoço e escolheu seu melhor terno. Às onze horas, pousou a mão em meu ombro e me mandou ficar de olho na instalação, impedindo a todo custo qualquer intervenção de mamãe e sua brigada de faxineiras suicidas, mesmo que as moscas estivessem disputando uma final de campeonato sobre a carcaça da galinha. Jurei que assim seria. Ao meio dia, sobre os detritos que deveriam ser a obra de arte de meu pai, o celular começou a falar. Era a voz de meu pai, rouca por culpa de uma sucessão infinita de cigarros, mas ainda assim clara. Ele não perdeu tempo, foi direto ao ponto, perguntando o que havia acontecido com o rapaz filho do amigo em comum. A outra voz, mais distante, mas reconhecível, respondeu com detalhes que na época me pareciam ininteligíveis. Tinha a ver com os Apolonianos, sim, mas com detalhes que do alto de meus quatorze anos não tinha condições de entender. Parecia que os alienígenas (sei que não gostam desse nome, mas fodam-se, é o que eles são, certo?) do alto de seu monte olimpo particular haviam detectado movimentação suspeita no meio de Goiás e solicitaram ação imediata das forças armadas, que imediatamente saíram por aí assuntando. Descobriram em um dos bairros de classe média de São Paulo o núcleo do partido político que ajudava os guerrilheiros, exterminaram todos depois de um longo interrogatório e logo depois capturaram alguns jovens - sim, todos os presos tinham menos de trinta anos. Usaram as táticas de sempre, cortando alguns dedos dos rapazes e moças no Rio, na Bahia e em São Paulo, até descobrirem que, sim, havia uma célula de guerrilheiros atuando próxima ao rio Araguaia, com o possível auxílio de uma tal Resistência de Kendack. Não sei do que se trata essa tal Resistência, mas o nome é assustador o suficiente para convencer o povaréu que os meninos estavam aliados ao demônio em pessoa. Porém, como toda guerra tem dois lados, acho que esses tais kendackianos devem ser algum povo que resolveu combater os invasores ou são os inimigos naturais dos apolonianos. Se isso é verdade, eles contam com a minha simpatia, ao menos por enquanto.


Em dois dias cerca de vinte e dois guerrilheiros foram pulverizados por raios vindo do céu; eles e diversas comunidades vizinhas, incluindo uma aldeia indígena, foram fazer companhia à perna de meu pai, devidamente pulverizadas. O som que se seguiu foi de uma quebradeira, como se as pessoas do outro lado da linha estivessem brigando, e logo depois a ligação caiu. Nesse momento eu estava pasmo, mas ainda não tinha compreendido o horror, até que minha mãe, que havia entrado no quarto sem eu perceber e ouvira tudo, chorou. Fui arrastado contra minha vontade, ainda gritando que tinha de cuidar da obra de arte do papai, e arremessado no centro da sala, enquanto mamãe zanzava de um lado para o outro sussurrando coisas como "na casa da Zulmira não dá" e "vão matar todo mundo, todo mundo!". Depois jogou uma mochila no meu colo e berrou "faça as malas, faça alguma coisa! Anda". Meia hora depois, a polícia militar arrombou a porta. Ainda estávamos no quintal queimando documentos e eu acabara de jogar o quadro de papai no fogo, mas deu tempo de escalar o muro até a venda do seu Eugênio e escapar de fininho antes que os milicos percebessem que havia mais alguém na casa além de minha mãe e as empregadas. Corri até a rodoviária com o dinheiro da passagem para Minas e, por milagre, consegui escapar, talvez porque, de certa maneira, todos os adolescentes se pareçam. Cheguei ao sítio do padrinho de mamãe e passei um ano escondido, sem dar as caras. Depois recomecei a vida, outro nome, outra história. Tornei-me pesquisador e artista plástico. Sabe aquele segundo tipo de artista? Pois é. Ganhei a vida servindo aos meus mecenas, esculpindo peças cheias de metáforas sobre o sucesso da ditadora e de seus patronos. Hoje, porém, é um dia especial. Preparei uma peça especial que será inaugurada depois do desfile de Sete de Setembro, no Aterro do Flamengo, diante da comitiva dos aliens (é, eu sei). Ela é composta por uma carcaça de frango medindo três metros - milagres da genética apoloniana -, algumas frutas gigantes apodrecidas, mas sem cheiro, das quais sou particularmente orgulhoso pela perfeição dos detalhes, e uma réplica em escala de meu velho celular. O mais legal é que esse aparelho enorme, vejam só, funciona, e, caso eu queira fazer uma ligação daqui de casa, ele vai dar sinal e até reproduzir pelos alto-falantes qualquer mensagem. Pena que não vou poder ver as caras de meus patrocinadores quando as bananas explodirem, mas tenho certeza que meu pai, de onde quer que esteja, dará boas gargalhadas. Assim se conta. Esta é uma história da Guerra dos Muitos Mundos.


Nicole’s Waiting Por Rita Maria Felix da Silva On that fateful day when her husband, Guillaume, departed to join the War of Many Worlds (in the distant realm of the Dimensional Intersection), Nicole went to her window and stayed there waiting for her spouse's return. Every day after she did the same, waiting anxiously, with tears flooding her eyes, until exhaustion and despair pulled her to her bed. Sometimes a few shocked combatants would come home from the great war among the dimensions. They returned weary and haggard, lines of skin-and-bone soldiers, their expressions desolate and pained, like madmen. They brought stories of war that chilled Nicole's blood. She always asked them about Guillaume, but none of those battle survivors ever had any news of him. Nicole waited for Guillame until time devoured her youth and old-age overcame her. Her health withered, like a dark spell does in the Sun. Eventually, she could no longer get out of bed by herself, and it was only her looks of hope that now went to the window. One rainy morning, after many despairing years, Death, that lady of pity, came after her and took Nicole away—maybe to some mythical heaven, perhaps to oblivion; who really can know? It is said Nicole still waited for Guillaume until her final breath, and that, before she closed her eyes for the last time, she whispered her lover's name... The War of Many Worlds has numerous legends. This is just one of them. Dedicated to Irina Voronina


A Espera de Nicole Por Rita Maria Felix da Silva Por todos os dias, a partir do momento fatídico em que seu marido Guillaume partiu para a Guerra dos Muitos Mundos (no distante Reino da Intersecção Interdimensional), Nicole corria à janela e esperava por sua volta. Esperava com o coração ansioso, enquanto lágrimas lhe ocupavam os olhos, até o cansaço, o sono e o desespero a arrastarem à cama. Às vezes, alguns retornavam do conflito entre as dimensões: vinham em fileiras de maltrapilhos, com o olhar penoso de um louco ou a face dolorida de um mutilado, e traziam consigo histórias da Guerra. Nicole sempre lhes indagava sobre Guillaume. Notícias dele, porém, os sobreviventes da batalha nunca souberam dizer. Nicole o esperou até que sua juventude foi devorada pelo tempo, a velhice tomou conta dela e sua saúde desapareceu como um encanto desfeito sob a luz do sol. Breve, não era mais capaz de se levantar da cama e dela apenas seu olhar esperançoso ainda chegava até a janela. Certo dia, depois de muitos anos, a Morte, piedosa dama, veio no meio de uma tarde chuvosa e levou Nicole, talvez para algum paraíso mítico ou para o esquecimento. Quem realmente pode saber? Dizem apenas que Nicole esperou Guillaume até o último momento e, antes de fechar os olhos pela última vez, sussurrou seu nome... Assim se conta. Esta é uma história da Guerra dos Muitos Mundos.

Dedicado a Irina Voronina.


Tabula Rasa Por Rochett Tavares - Rápido, meninas! O inimigo não vai estender um tapete vermelho! – a voz do sargento Gary Williams ecoa nos psicolinks do pelotão. - Alinhem os pensamentos, idiotas! Lembremse do que aprenderam durante o treinamento ou eu mesmo atiro em vocês! Cortez, pare de pensar na Baldwin nua! Maldição! Jones, não sabemos o que vai sair da fenda mas, com certeza, não serão zumbis! O transporte estava à iminência de atravessar a intersecção, levando-os ao palco onde sua coragem e habilidades seriam testadas. Segundo as instruções enviadas diretamente aos implantes em seus cérebros, o desembarque ocorreria numa extra-terra, com seis vezes sua massa, duas vezes o diâmetro e, aproximadamente, 50% a mais de gravidade em relação a seu mundo natal. O planeta, localizado a 3 E.L. da brecha entre seu universo e o alvo, consistia num posto avançado vital para o sucesso na invasão e posterior colonização daquele aglomerado de matéria entregue ao caos. O ataque deveria ser o mais preciso e rápido o possível, pois sabia-se que em breve, os malditos Kendackianos tentariam anexar aquela realidade ao movimento de resistência, cuja ideologia anárquica havia infestado centenas de mundos saudáveis com suas promessas vazias de “libertatis” e “demoscraktia”. Cada vitória, cada novo universo sob a proteção do Novo Império Apoloniano representava um local a menos do Multiverso entregue à barbárie socioinstitucional promovida pela famigerada Resistência de Kendack e seus “intelectuais”. A missão de Gary “Bonecrusher” Williams era garantir a instalação da linha neural entre a nova base e a armada, na extremidade oposta do evento. Durante seus quinze anos no ECI (Exército de Colonização Interdimensional), ele já havia combatido as mais diversas representações do que poderia entender-se como humanidade, bem como travara contato com espécies dominantes, cuja única semelhança com sua gente era o intelecto desenvolvido. Em alguns mundos, os maian haviam conquistado a América, unificando tribos e formando um vasto império. Noutros, os mouros do norte da África dominaram a Europa até o século XX. Suas experiências mais bizarras ocorreram ao ser destacado para uma realidade na qual a terra havia sido colonizada por uma raça alienígena humanoide, cuja dieta se baseava no fluido espinhal de suas presas. Para o velho sargento, pouco importavam as equações e teorias acerca do que fazia o transporte entre os universos acontecer ou como os nemos podiam manipular tais energias.


Gary estava interessado apenas em cumprir seu dever e esmagar a resistência do adversário no processo. Os homens e mulheres sob seu comando especularam, ao curso dos anos, sobre as origens do Sgt. Bonecrusher e de como ele se tornou uma das máquinas de combate mais perfeitas em todo o Império. Para uns, ele foi montado a partir dos cadáveres de grandes soldados apolonianos mortos em batalha; para outros, ele estaria tentando fugir ou esquecer de algo em sua vida pregressa. Ninguém jamais descobriu. - Salto dimensional em 30 niecs. – uma voz metálica soa nos links da tropa. - Vocês ouviram, meninos e meninas! Ajustem suas armas para desintegração e preparem-se! Todos aqui são carne nova e estão prestes a entrar no moedor! Eu sou o cara que vai meter vocês nele, até não sobrar nada! Os transportes alinham-se nas coordenadas definidas pelos sensitivos, à beira da interface dimensional. Para Williams e os milhares de soldados nas outras naves, nada se vê além do espaço comum a seu próprio universo a partir do ponto no qual estavam. - O comando tem certeza de que o lugar é esse mesmo? – um jovem recruta deixa escapar a pergunta através do link com o pelotão. - É o lance com a mecatinia quártica ou como os cérebros lá em cima chamam isso, garoto! – Gary retruca. - Salto dimensional em 3... 2... 1... A matéria perde o significado, enquanto a essência das naves é transfigurada através da fenda. Por um instante cuja duração é a de uma eternidade para os indivíduos submetidos ao processo, a tropa sente os átomos de seu corpo se revolverem, como se fossem arrancados um a um e reconstruídos em algo semelhante e, ao mesmo tempo, completamente diverso do original. A maioria se recorda das palestras nas quais o deslocamento era-lhes explicado: “(...) cada universo tem suas leis, seu próprio arranjo e estrutura (...) os nemos, com o auxílio de nossas máquinas, convertem a base nativa em um algoritmo aceitável e plausível à realidade para qual estão sendo enviados, aproveitando a matéria presente no meio ao qual serão enxertados (...)” Alguns cedem e acabam por inundar o psicolink com uma torrente caótica e avassaladora de memórias, enquanto os mais afortunados conseguem, de fato, “zerar” suas mentes, mantendo-se no estado alpha necessário a uma transição segura. Não é raro emergirem indivíduos loucos ou em estado vegetativo nas realidades adjacentes, por haver perdido o controle de suas psiques durante a passagem. Pontos azul-neon brilham no lado oposto da fenda, anunciando àquele universo a chegada dos invasores. Os transportes à retaguarda são escoltados por dezenas de


caçadores, prontos a reagir ao mais ínfimo sinal do inimigo. Dando-lhes cobertura e apoio tático, estão os saltadores SIE-U (Saltador Imperial Extra-Universal) Benedict Arnold, George IX e James Cook. As naves contendo milhares de soldados apolonianos avançam, aproximando-se do alvo com incrível velocidade. Conforme previsto nos memorandos e planos de batalha da inteligência, o inimigo despeja sua armada contra a horda alienígena. Os veículos desse universo não são muito diferentes dos seus, indicando tratar-se, provavelmente, de uma raça humanoide ou uma “cópia negativa” da sua. Através das telas fixas no interior do transporte, Bonecrusher e o pelotão assistem a sua armada dizimar os oponentes, como já havia feito em dezenas de outros universos. Cada adversário batido é saudado com gritos de comemoração. - Grande N’ahra’ith! Essa missão será um passeio! – um jovem recruta deixa escapar seu entusiasmo através do psicolink. - Jamais subestime o inimigo, garoto! Ele pode estar escondendo o jogo para, depois, acabar conosco em solo! Isso vale para todos vocês, pedaços de carne! Poderiam ser mandriacks com estilingues! Se estamos lutando contra eles, são perigosos e merecem respeito! - Entendido, senhor! – a onda se espalha através da conexão neural. As naves do inimigo possuem entalhes curiosos nas carenagens: floreios com ramos, faces e galhos. Figuras estranhas que provavelmente são de animais também estão marcadas nos cascos. A camuflagem de batalha foi substituída por detalhes prateados e dourados, dando-lhes um ar antigo. - Espaço limpo. Repito: espaço limpo. Preparem-se para acesso à atmosferia do alvo. - Vocês ouviram, meninos e meninas! A guerra começou! Sirenes ecoam no interior da nave, enquanto as luzes assumem um tom azul-cobalto. Os transportes deslizam através do vácuo, abrindo caminho no oceano de destroços abandonado pelo combate na véspera. Uma leve náusea, seguida por um zumbido breve, indica aos membros do grupo o carregamento dos dados de topografia, telemetria e informes acerca do mundo no qual, em poucos zatics, desembarcarão. - Como será a aparência deles? - Não estamos aqui para ser jurados num concurso de beleza, soldado! O que posso dizer é: não merecem compaixão! Viemos para matá-los e é o que faremos! - Entendido, senhor! – as respostas soam em uníssono através dos psicolinks, novamente.


Um tranco violento, seguido pela repentina desaceleração, sacode o transporte e seus ocupantes. “Chegamos! Preparem-se! Hoje, veremos do que vocês são feitos!” São as palavras do velho sargento, enquanto a comporta de acesso ao exterior abre-se lentamente. *** O mundo batizado pela Inteligência como MI-PA 001 ou N’or Mhan D’yiat orbita a borda da zona habitável de uma estrela anã laranja, com idade estimada em 3,5 lovags. A composição de sua atmosferia é, em muito, semelhante à do planeta de origem das tropas coloniais; tão semelhante que eles poderiam respirar a mistura de gases sem o auxílio dos filtros instalados nos elmos de suas armaduras de batalha. Os trajes compensavam os rigores da gravidade superior, bem como acresciam em 200% sua força e mobilidade naturais. No campo de visão do olho esquerdo, dados acerca da topografia, fauna e flora daquele mundo alienígena flutuavam, enquanto as diretrizes da missão eram relembradas pela I.A. das vestimentas. Gary dividiu o pelotão em grupos de quatro indivíduos: três formariam a infantaria a pé e os restantes ocupariam os veículos nos quais havia artilharia pesada e o material necessário para a instalação do posto de comunicações. Ao contrário das centenas de grupamentos participantes da operação, Bonecrusher ganhou o direito de comandar seu próprio pelotão ao derrotar o líder anterior num julgamento por combate. A hierarquia militar de seu mundo permitia a qualquer subordinado desafiar o comandante quando este pusesse em risco as vidas de seus homens e mulheres ao tomar decisões erráticas e/ou fatais em campo. Desde então, nenhum Tenente foi destacado para assumir o pelotão “M’rr Mhi D’ann”; a inteligência sabia que o experiente Gary Williams não acataria ordens de alguém capaz de despachar soldados valorosos para a morte sob a égide da incompetência ou ego. O céu de MI-PA 001 apresentava um matiz de cor diferente de tudo que ele já tinha visto em sua longa carreira no ECI: a luz da estrela próxima salientava nuances que iam do verde ao laranja, banhando a vegetação azul-marinho. Árvores das mais variadas formas e tamanhos espalhavam-se até o horizonte, enquanto os sensores do traje captavam toda sorte de guinchos e ruídos que denotassem vida ao seu redor. MI-PA 001 era habitado - e não somente pelo inimigo. A vida floresceu naquela esfera; e isso poderia ser um obstáculo à missão, pois as leituras indicavam predadores de tamanho muito maior do que os extintos ursatis, lorieos e teigrils de sua terra natal. Pedaços de naves abatidas caíam do céu como uma chuva intermitente de fogo e metal; o verde da abóbada sobre suas cabeças era constantemente tingido pelo rubor das


explosões ocorridas no limite da atmosferia, inflamando os ânimos dos guerreiros no solo. Suas naves e pilotos eram superiores às do adversário, e isso preocupa o sargento. Ele se recorda de, num dos mundos visitados pela máquina expansionista do Império Apoloniano, ter ouvido algo sobre um “elefantho” (tempos depois, descobriu tratar-se do análogo daquele universo aos mannimonts de seu planeta), de mármore, deixado como presente na entrada de uma base sitiada, recheado por soldados armados até os dentes. - O Elefantho de Cartago! – um sorriso se forma por baixo do elmo. Imediatamente, suas impressões sobre a provável armadilha engendrada pelo exército adversário espalham-se através dos links. Algo que ele havia observado em sua carreira era a similaridade linguística entre os mundos “negativos”. Com ligeiras diferenças, as raças humanas ocupando o multiverso desenvolviam idiomas compatíveis; para a inteligência, tratava-se de um ponto vital para o andamento da colonização e a absorção da tecnológica desses povos. A cada mundo conquistado, o Império tornava-se mais evoluído. Seus computantes, mais e mais rápidos; seus trajes, armas e veículos, exponencialmente superiores. Naquele ritmo, a paz sobrepujaria o caos em seis ou sete gerações - e seu nome estaria lá, no Salão dos Valorosos, inscrito numa placa de cobrestânio ao lado dos heróis da máquina imperial. - Contato com o inimigo, senhor! – os pensamentos do líder do grupo de batedores arrebatam-no de suas divagações. Com experiência e treino, um membro do ECI era capaz de manter os pensamentos superficiais numa linha diferente às dos impulsos navegando através dos psicolinks. - Aguarde reforço, Otomo! Chegamos aí em 2 mi-zatics. – as imagens captadas pelo audiovisio, no traje da jovem cabo, chegam junto a dados sobre armamento e demais itens carregados pelo destacamento inimigo. - É um grupo pequeno, senhor! Podemos abatê-los sem dificuldade! – Miyuki Otomo retruca. - EU, estou aqui para pensar, e você, para obedecer! Mantenha posição e aguarde reforços! Algo não está certo! Os instintos de Williams advertiam-no para movimentar suas tropas com toda a cautela; a missão, até ali, havia sido extremamente fácil. Sua experiência dizia-lhe que um ponto vital como aquele, tão próximo à fenda, não devia ser guarnecido por uma resistência tão frágil. Os informes em seu link anunciavam que o avanço das tropas ocorria sem maiores problemas. As bases inimigas caíam ante o poderio do ECI, esmagadas pela superioridade técnica e militar do Império Apoloniano. - Preparem-se para atacar! – Williams deixa a ordem espalhar-se através das mentes de seus comandados. Com o auxílio dos psicolinks, ele podia coordenar os grupos em tempo


real, certo de que a estratégia para o combate seria obedecida à risca. O pelotão avança, vencendo uma elevação cujo sopé abria-se numa clareira. O VAP (Veículo de Artilharia Pesada), à retaguarda, dava-lhes o fogo de cobertura necessário, enquanto a infantaria, equipada com o melhor produzido pelos científices da inteligência, acuava as forças do adversário com disparos certeiros. - Não façam prisioneiros! Quero apenas um em condições de falar! Façam o que quiserem com o resto! - Entendido, senhor! - Otomo e Juarez, levem seus grupos aos flancos esquerdo e direito! Vamos cercar esses infelizes e fritá-los! A indumentária do inimigo era atravessada, com extrema facilidade, pelos disruptores nas mãos dos soldados imperiais. O cheiro de ozônio e carne queimada espalhava-se no campo, enquanto os alienígenas eram massacrados. Eles trajavam uma versão de qualidade inferior das ARAI (ARmaduras de Assalto e Invasão), com detalhes em dourado e prata semelhantes aos de suas naves. Estavam, também, armados com indutores laser, cuja amplitude de onda era absurdamente fraca, incapaz de arranhar a blindagem da camada superficial do equipamento fornecido pelo Império aos seus guerreiros. Os elmos de suas armaduras possuíam quatro pares de olhos, deixando suas faces com aparência semelhante à de uma tracnize. Alguns tentaram a sorte em combate corpo a corpo. No entanto, a eficiência das ARAI provou-se mais uma vez inigualável. Mesmo sobrepujando as forças invasoras em número, o oponente não foi páreo para a habilidade e perícia dos combatentes de além da fenda. Em poucos minutos, cento e trinta indivíduos tombaram, enquanto os apolonianos, sob o comando de Gary Williams, comemoravam a vitória; um recruta chamado Nakebari gabavase de ter, sozinho, dado cabo das vidas de sete oponentes. O velho sargento, todavia, estava inquieto. Algo se contrapunha totalmente a tudo que aprendera sobre táticas militares e disposição de forças em batalha. Os informes dos demais pelotões sinalizavam o mesmo: a resistência inimiga havia capitulado em poucos minutos, deixando-os livres para estabelecer uma base segura naquele mundo. - Seguimos com a Fase II do plano, senhor? - Deixe-me pensar, Otomo! Algum desses hatticks miseráveis sobreviveu? - Tenho um aqui ainda com vida, senhor! Ele está meio morto, mas deve ser capaz de falar! - Excelente, Juarez! Traga-o! Acelerado!


Com sua força ampliada pelo traje, o soldado carrega o inimigo de forma semelhante a uma criança levando um animal de estimação ao seu quarto. - Vamos saber se essa é, realmente, uma “cópia negativa” do nosso universo ou um lugar onde coisas estranhas tomaram o lugar da humanidade! Ao pressionar um botão junto ao gatilho do fuzil em suas mãos, uma baioneta-laser é sacada logo abaixo do cano. Com habilidade, Bonecrusher transforma o elmo do prisioneiro em tiras metálicas, cujo material reflete a luz do astro laranja como um espelho de navitrix. Seus olhos encontram os do inimigo, causando-lhe uma sensação desconhecida. - É melhor se apressar, senhor! Viu o buraco no ombro esquerdo dele? – Bowman assumiu um tom grave ao passar a informação acerca do estado daquele desconhecido. - Buraco? Dá pra passar até o braço por ali. – um soldado veterano chamado Curtis Marshall ria, fazendo um círculo no ar com a mão direita e enfiando o braço esquerdo na abertura improvisada. - Silêncio! Preciso vocalizar com esse hattick! Ao que indica, eles não possuem links ou qualquer tecnológica semelhante! O soldado observa, curioso, seus captores. A dor em seu corpo ia além do físico; um disruptor havia lhe atingido o ombro direito, deixando o braço pendurado por uma fina tira de carne, e, apesar do raio cauterizar a lesão, o homem sabia tratar-se de uma questão de tempo até seu sistema circulatório entrar em colapso. - Bem, hattick, diga quantos batalhões vocês têm, posicionados nesse planeta! Quantas naves e armas de solo possuem? Quais são seus planos para esse mundo? Estão preparando uma invasão extra-dimensional? O silêncio é a resposta obtida pelo sargento Gary Williams às suas indagações. - Você é durão, hein, hattick? Vamos ver o que acha de um pouco de dor. – Williams pisa no ombro ferido do prisioneiro. Um urro de dor ecoa na clareira, enquanto o inimigo leva a mão direita ao pé do algoz, tentando força-lo para cima. - Vai ficar cada vez pior, miserável! Vamos! Responda! Quantos batalhões vocês têm, posicionados nesse planeta? Quantas naves e armas de solo possuem? Quais são seus planos para esse mundo? Estão preparando uma invasão extra-dimensional? O jovem encara o interrogador, com uma expressão de sofrimento e, ao mesmo tempo, confusão. - Não posso acreditar que, de todos os universos, encontramos uma “cópia negativa” onde os humanos falam diferente de nós? Que N’ahra’ith me amaldiçoe! Você vai falar, hattick, você vai falar! Os próximos zatics transcorrem como uma eternidade para Williams e o prisioneiro. Ossos quebrados, membros arrancados e nenhuma resposta, além de guinchos e lamentos


fora extraída. - Desgraçado! Se tivéssemos tempo de transportá-lo à Inteligência, eles espremeriam esse infeliz como uma gahath madura! – o velho sargento sabia que o tempo era algo vital em campo e, portanto, um interrogatório sem respostas era-lhe tão útil quanto nadadeiras em um planeta desértico. - Podemos usar as drogas, senhor! - Não vejo nisso uma saída viável, Otomo! A dor é mais eficaz que produtos alquímicos. - A resistência deste é muito grande, sargento! Não seria melhor aplicar uma dose do preparado nele? - Não, Otomo! Os efeitos colaterais podem inutilizar esse saco de carne mais do que já está! Vou tentar mais algumas coisas com ele! O scanner em seu traje indicava que o prisioneiro possuía esqueleto, órgãos e sistemas nervoso/circulatório idênticos aos dele. Bonecrusher havia tentado quase tudo para arrancar respostas do indivíduo à mercê de seu jugo, sem qualquer resultado. No entanto, quando estava próximo de abandonar o interrogatório e despachar o inimigo para onde quer que seus deuses o esperassem, algumas sílabas escorreram através dos lábios intumescidos. - Eu... Eu... Haath Nayam, do Otorcan ././. Esse... Nós chamamos esse lugar... Caleh ././...// Chega... Misericórdia... Eu não aguento mais... – um largo sorriso se forma sob o elmo de Gary Williams. Ele havia, finalmente, quebrado a resistência do adversário. *** Após um breve interrogatório, Williams deu ordem a seus comandados para iniciar a construção do posto avançado a partir do qual a armada colonizaria aquela realidade. Enquanto os soldados concentravam-se na instalação dos módulos necessários ao funcionamento do aparato, o sargento repassava todos os eventos até aquele ponto. Seus pensamentos voltavam-se, quase sempre, à história do “Elefantho de Cartago”, criada por tragicômicos de um universo do qual o aglomerado de matéria caótica onde desembarcara jamais teve notícia. Vasculhando o amontoado de cadáveres abandonado na clareira onde se dera o combate, ele não encontra evidências de que o destacamento inimigo iria construir ou implantar qualquer estrutura, e se indaga quanto à possibilidade de um batalhão estar vagando a esmo, quase implorando para ser interceptado. - Estamos quase prontos para transmitir, senhor! - Excelente, Otomo! Se tudo correr conforme a Inteligência previu, estaremos no Benedict Arnold a tempo para o hackar! – e isso o inquietava cada vez mais. Era quase como


se o inimigo os houvesse convidado àquele planeta, permitindo-lhes estabelecer uma base e revelar o objetivo da missão. Mas com qual objetivo? Quando a linha entre MI-PA 001 e a armada estivesse completa, as tropas de ocupação atravessariam a fenda, prontas para dizimar qualquer resistência. Ele observava, a partir de um rochedo, o vale onde um rio púrpura serpenteava através da densa vegetação nativa. Bandos de ganitacs (ou seus correspondentes naquele mundo) sobrevoavam a paisagem, voando para cima e para baixo, sob o sol laranja. O velho sargento suspira, imaginando como seria estar com ela naquele lugar. No entanto, algo em seu íntimo recusa-se a ceder à paz que emanava da cena, como se aquilo se tratasse, apenas, do momento anterior a uma tempestia. - Senhor! Estamos sendo atacados! Williams se prepara para retornar ao P-0 (Ponto-0) quando o link é inundado por gritos e pedidos de socorro, vindos de todos os grupos no planeta. - Disparos chegando de lugar nenhum! - As armas deles estão atravessando nossas armaduras! - Socorro! - Não quero morrer! Socorro! - Fomos emboscados! Repito! Fomos emboscados! - Não temos como resistir! Contatem os caçadores! Rápi... Ele corre o mais rápido que os servo-motores em sua armadura permitem, avançando cautelosamente através da massa verde cercando a clareira. Os sensores no traje não encontram coisa alguma; apenas os soldados tombando, impotentes contra as salvas de um adversário invisível. - Maldição! Sangue de N’ahra’ith! Eu estava certo! Alinhem os pensamentos, idiotas! Recuem e agrupem-se! Acelerado! Acelerado! – Gary Williams tenta debelar a confusão instaurada entre os homens e mulheres sob seu comando. - Estamos cercados, senhor! Não podemos sair do P-0! - Resistam, Juarez! Preciso saber de onde vem o fogo inimigo pra saber como quebrar sua linha de tiro! - Entendido, senhor! - Onde vocês estão, hatticks desgraçados? Devem estar usando um sistema de camuflagem! Os malditos kendackianos chegaram primeiro! - os sensores em seu ARAI não mostram nada além das leituras da tropa e o campo eletromagnético gerado pelo equipamento de comunicação.


Alguns tentam saltar para longe, sendo abatidos em pleno ar por armas ocultas em algum ponto além da tecnológica fornecida pelo Império. Outros, alvejados na primeira onda, jazem próximo ao aparato de comunicação. O grupo responde ao fogo adversário com bravura, disparando em direção aos locais de onde partem as rajadas verde-musgo. Eles veem, atônitos, a salva dos disruptores resvalar em algo impossível de ser detectado por seus trajes e campos de visão. - Não vou morrer sem lutar! Engulam isso, hatticks! – um recruta chamado P. Jones prepara-se para lançar uma ON (Ovilacka-Neutronimica), ignorando o efeito da detonação do artefato em tão curta distância. - Não faça isso, idiota! Não sabe que... – a voz de Miyuki Otomo silencia de forma abrupta. O estrondo infrassônico derruba os apolonianos ainda vivos, desfolhando as árvores do bosque a rodeá-los, além de provocar fissuras no solo coberto por uma relva tão púrpura quanto as copas outrora vicejantes. Mesmo com a proteção da armadura, os doze soldados restantes sangram através dos olhos e ouvidos, além de sentir um gosto metálico em suas bocas. A radiação daquela arma é terrível, capaz de devastar centenas de lanacks cônicos com isótópicos extremamente carregados. Algo, no entanto, havia protegido Gary “Bonecrusher” dos efeitos da bomba lançada pelo recruta desesperado. “Espere... Não senti o impacto da explosão! N’ahra’ith seja louvado! O que aconteceu? Devo estar bem atrás de uma das unidades inimigas! Os hatticks possuem blindagem para suportar um ataque ON direto!” Antes que o sargento pudesse informar aos companheiros, algo estranho ocorre diante dele. Um sibilo elétrico, seguido por fachos onde se veem estruturas mecânicas enormes alternando-se à paisagem. A detonação neutronimica havia danificado os sistemas de camuflagem dos adversários, forçando-os a abandonar o recurso que lhes dera vantagem inicial no combate. Todavia, apesar de poderem vê-los, a blindagem à prova de disruptores ainda constituía um grave obstáculo. Aturdidos, os membros remanescentes do pelotão observam armaduras metálicas, semelhantes a tanques com braços e pernas, cercarem-nos como se fossem lannackes na entrada para o matadouro. Cada unidade possuía entalhes idênticos aos dos caçadores e uniformes dos combatentes derrotados na escaramuça de horas antes, excetuando-se a imagem de um crânio alienígena com dois pares de olhos, cercado por quatro raios estilizados. As estruturas refletiam os raios assumindo uma tonalidade avermelhada, anunciando que o crepúsculo se encontrava próximo naquele planeta. A “cabeça” dos guerreiros de metal


estava coberta por um “elmo” semelhante aos dos comandos batidos em sua chegada, e a pintura, arranhada, ostentava marcas de batalhas anteriores. - Os sensores do ARAI continuam “ignorando” essas coisas! Maldição! Sua tecnológica é superior à nossa! – Williams divaga, enquanto observa o maquinário diante de si. - Senhor, pedimos reforços, mas não estamos conseguindo falar com o apoio em orbital! - Estamos sozinhos, Juarez! Esses hatticks miseráveis conseguem bloquear links externos! - O que faremos, senhor? - Eles estão confusos! Não imaginavam que uma ON fosse capaz de causar algum estrago em suas armaduras! Vão para... - sem aviso, os blindados avançam sobre o grupo. - É o golpe final! Seremos dizimados! – enquanto divaga, Bonecrusher observa uma escada semelhante às presentes nas laterais dos caçadores, para acesso dos pilotos ao cockpit. - Resistam como puderem, soldados! Vou resolver isso de uma vez por todas! Saltando nas costas do inimigo em movimento, ele imagina como poderia dar um fim àquela ameaça. Sem dificuldade, Williams escala os degraus, enquanto lança mão de toda a experiência no uso do psicolink para ignorar os gritos dos homens e mulheres na clareira. Próximo ao topo, localiza uma porta de acesso, grande o suficiente para um homem adulto. “Entrada para manutenção? Não, essas coisas devem ser consertadas de fora pra dentro! Deve haver um humanick aí e irei descobrir isso agora!” Encaixando as granadas de mão junto à maçaneta do pórtico, ele se pergunta se o poder dos artefatos seria o bastante para arrebentar a tranca do portal. Descendo para os primeiros degraus no dorso do blindado, Bonecrusher programa o disruptor para potência máxima e dispara. A explosão mal arranha o metal da armadura, mas é suficiente para enfraquecer a trava. Enquanto isso, o grupo de assalto inimigo dizima os apolonianos sobreviventes. Bonecrusher procura não dar atenção ao desespero dos companheiros; “Eles sabiam dos riscos quando se alistaram no ECI!” Jansen, o último a tombar, detona outra ON, berrando: “Vou levar o máximo deles que puder comigo! Longa vida ao Império Apolonia...” A detonação atordoa os oponentes. Para Gary significa que, em próximos combates, o ECI deverá utilizar somente força de devastação contra as hordas de resistência neste universo. Quase imediatamente após Williams aproximar-se do acesso, junto à nuca do blindado, mãos gigantescas voltam-se para trás, tentando alcançá-lo. O construto girava o tronco, à


semelhança de um hattick sacudindo as packis em seu pelo. - Você não vai me pegar, desgraçado! Vou entrar e saber o que tem aí! Ah, se vou! – o sargento dobra o portal com a mão esquerda, enquanto luta para segurar-se. A placa de metal é atirada longe, e o soldado encara a face do inimigo: um garoto, pouco mais velho que os membros do seu pelotão, operava o equipamento. Sem hesitar, o apoloniano dispara contra o adversário, reduzindo-o a cinzas (seu disruptor estava em potência máxima). Tomando o lugar do piloto, ele examina a cabine de controle, em busca de um meio para controlar aquela arma. Havia, apenas, luvas e botas com circuitóides na superfície e uma “coroa” pendurada por dezenas de fios. - Deve ser assim que eles controlam essas coisas! – acomodando-se, ele observa, na tela à sua frente, os demais membros do grupo de assalto voltarem-se contra o blindado. Ao colocar o estranho objeto em sua cabeça, o sargento é acometido por uma vertigem terrível. Espasmos percorrem seu corpo, sacudindo-o com violência. Sente algo morno e pegajoso verter de suas narinas e ouvidos, acompanhado por uma dor lancinante. O cérebro arde enquanto suas ondas alpha se alinham às do equipamento. Levando as mãos ao crânio, o apoloniano agarra o item, tentando removê-lo. Contudo, se o fizer, abdicará de qualquer chance contra o inimigo. Após instantes (para ele tão longos quanto a eternidade), os pensamentos começam a surgir da cacofonia surreal instaurada em sua mente e espírito. No entanto, algo foi silenciado em seu íntimo. Não escuta mais as vozes dos outros pelotões ou qualquer sinal de comunicação entre ele e o ECI. - Vamos! Anda! Mexa-se, máquina desgraçada! – irritado, Williams berra as instruções, sem obter qualquer resultado. Enquanto isso, os oponentes marcham em sua direção, erguendo braços dos quais surgem lança-foguetes e algo com desenho semelhante ao dos disruptores. Os pilotos das outras máquinas tentam estabelecer contato, mas ele pouco compreende daquela língua. A maioria de suas expressões lhe são tão estranhas quanto o seu idioma seria para um “nãopacificado”. - Renda-se... ./.../././.. Venha conosco... ./././//////...././... Você está derrotado! – as vozes repetem o ultimato, sem imaginar que o adversário considera a derrota a pior das vergonhas. - Funciona, coisa maldita! Funciona! – furioso, ele pensa em desferir um golpe contra o blindado inimigo mais próximo de si. Estupefato, Bonecrusher Williams sente o braço da armadura gigantesca erguer-se, atingindo o ar.


- Agora estou de volta ao jogo, hatticks miseráveis! – com um sorriso perverso, o apoloniano endireita a armadura, assumindo posição de combate. A batalha entre as forças adversárias e o último soldado imperial é terrível. O sargento usa toda a experiência amealhada em inúmeras campanhas ao longo dos quinze anos no ECI para dar cabo das máquinas lançadas contra ele. A cada minuto, mais ele se acostuma aos controles do blindado, utilizando-o para esmagar cabines, arrancar braços e explodir células de combustível. É só imaginar e a armadura obedece a seus comandos. “Com uma coisa assim, o Império seria invencível!” Ignorando a dor (quando alvejado, o cérebro interpreta os dados de avarias obtidos como ferimentos), ele segue destruindo os gigantes de metal à sua frente. Logo restam apenas ele e um derradeiro oponente no campo de batalha. Ambos estão exauridos pela luta. Enquanto o último obstáculo entre ele e a sobrevivência mal foi arranhado, seu blindado ostenta as marcas da vitória honrada contra seis unidades adversárias. - É sua última chance, /....//././././...//... desista. Não há como me vencer! Mesmo distorcida pelas avarias no sistema de comunicação do aparelho, há algo de estranho naquela voz... Era como se ele já a houvesse escutado antes, em algum ponto distante de seu passado. Sua mente se perde nos labirintos da memória e ele se recorda de Irina... Seus olhos eram tão verdes quanto o céu daquele mundo e ele a perdeu... Ambos eram jovens e impetuosos, cheios de desejos em seus corações sonhadores. Ela planejava ser extra-biofisicista, para estudar as formas de vida dos universos além da fenda, e ele queria apenas uma vida tranquila (e segura), como funcionário de alguma das instituições do Império Apoloniano. Mesmo sabendo que o relacionamento estaria fadado a extinguir-se como a chama de uma jatirba quando exposta ao vácuam, eles uniram seus destinos. Por três anos, Gary Williams experimentou a felicidade; por três anos, ele sonhou. No entanto, Irina conseguiu a posição pela qual se empenhara arduamente desde que havia começado os estudos na Academia de Cientificismo, Alquímica e Biofisicismo: havia sido convocada para formar uma das equipes despachadas a uma realidade onde a forma de vida dominante eram vegetais inteligentes. Nesse momento, o sonho de Williams tornou-se lágrimas e ela partiu. Meses depois, Irina se tornou mais uma das vítimas na longa guerra entre o Império Apoloniano e a (maldita) Resistência de Kendack. Furioso e incapaz de aceitar a perda, o jovem decidiu alistar-se como voluntário no ECI, com o objetivo de vingar sua amada e, no processo, banhar-se no sangue do tão odiado inimigo.


Um golpe violento no tórax do blindado sob seu controle o arrebata de seus pensamentos. O adversário havia aproveitado o momento de hesitação para empreender seu ataque. Esquivando-se de outra investida, Williams revida, disparando contra o joelho exposto da armadura inimiga. Sem deixar o oponente recuperar o fôlego, ele avança, atingindo tórax, braços, “cabeça” e quaisquer pontos visíveis com todo o armamento disponível. O piloto do blindado à sua frente executa manobras de contra-ataque com absolutas precisão e equivalência; para Bonecrusher, é quase como lutar contra seu próprio reflexo. A munição de ambos terminou; para Williams, está claro que apenas o melhor homem sairá vivo do combate. Não há mais armas às quais recorrer. É apenas soldado contra soldado; vontade contra vontade. Ele desfere um violento soco na altura do tórax do adversário, num ponto onde o “tronco” se liga à parte inferior da máquina. Em resposta, dois fortíssimos punhos batem contra a “cabeça” de sua armadura. O impacto foi tão violento que o obrigou a cerrar os maxilares, quase trincando-os. Golpeando mais duas vezes o mesmo ponto, Williams é informado pelos sensores da máquina sob seu comando de que a região do ataque logo cederá sob a incrível pressão. Contudo, para obter sucesso, deve expor-se ao inimigo por um tempo demasiadamente perigoso. Um longo suspiro escapa de seus lábios enquanto o velho soldado avalia suas opções: manter o ataque e se tornar vulnerável aos contragolpes do oponente ou abandonar o estratagema e tentar uma nova abordagem. “Não! A derrota não é uma opção! Nunca foi e jamais será! Se vou cair, que seja lutando como um guerreiro apoloniano!” Pedaços da “cabeça” de seu blindado voam através da clareira, destroçados pelos punhos cada vez mais próximos do maquinário inimigo. Bonecrusher, no entanto, se mantém firme, atingindo a região danificada da armadura sob o controle do oponente, em golpes sucessivos. - Você vai ceder, hattick miserável! Vai ceder! Os olhos de Williams estão injetados de sangue e fogo. Ele sente uma fúria animalesca apossar-se de seu espírito enquanto tenta abrir caminho através das entranhas do inimigo. - Finalmente! Hoje, EU vivo, e você morre, hattick! O fluido circulatório do engenho se espalha em suas mãos e sobre a relva abaixo deles. O blindado adversário se ajoelha, incapaz de manter a posição de luta. Cravando fundo a mão direita no interior do construto adversário, ele segura cabos e metal, arrastando-os para cima e para fora, à semelhança de um pescador estripando um salamack recém-fisgado. O ataque havia obtido êxito inesperado, pois uma boa quantidade de


peças e material do “tórax” é arrancada, além de partes da câmara onde o piloto estaria acomodado. Assaltado pela febre do combate, Bonecrusher transforma a armadura inimiga num amontoado em desalinho de fios e aço, golpeando até o maquinário alienígena desmontar-se, espalhando seus módulos sobre a relva. Ofegante, o sargento vislumbra o resultado da batalha, gritando as palavras de ordem do Império em comemoração: “Paz e ordem acima do caos! Minha força é a força dos que lutam ao meu lado! Longa vida ao Império Apoloniano!” Abandonando o blindado, Gary Williams observa, orgulhoso, o campo no qual jaziam os corpos de seus ex-comandados junto às armaduras do inimigo. Exaurido, senta sobre um dos pés da estrutura, desejando uma boa taniit, cheia, até a borda, com fadask morno. Todavia, uma curiosidade maior que o bom-senso o força a descobrir quem é o valoroso soldado que, por pouco, não lhe antecipou o encontro com N’ahra’ith. Afastando os destroços, ele busca pelo corpo do adversário. O Império Apoloniano era famoso por não cultivar a misericórdia, assim como por respeitar aqueles que travavam lutas honradas, mesmo estando nas fileiras do inimigo; pernas e uma parte do tronco haviam sido arrancadas junto às entranhas do maquinário. Pouco havia restado do oponente para ser processado nas câmaras de renovação. Retirando pedaços de metal do tórax ainda preso ao cockpit, Bonecrusher sente o sangue fugir de seus membros. Incrédulo, ele dá três passos para trás, antes de tropeçar num dos braços mutilados da armadura. “Não pode ser! Não pode ser! Sangue de N’ahra’ith! Não!” Aproximando-se do corpo, Williams observa, trêmulo, a face do inimigo: é como olharse num espelho. Os mesmos olhos, a mesma boca, o nariz idêntico ao do, há muito falecido, avô materno... Ele havia encontrado um universo chamado, pelos científices, de “paradoxal negativo”; uma cópia perfeita, em quase todos os aspectos, de outro universo. Agora, Gary entende por qual motivo o inimigo lutara com tanta ferocidade e possuía armamento capaz de superar até mesmo o seu: está diante de uma “versão paradoxal” do Império Apoloniano! Isso deveria ser imediatamente reportado a seus superiores. Enfrentar aquela gente sem a preparação adequada seria, no mínimo, suicídio. Ele está prestes a verificar se a interferência no link entre o planeta e a frota em órbita havia cessado quando vê um objeto projetando uma das extremidades para fora do uniforme da vítima. Puxando a coisa sem dificuldade, Gary Williams tem uma vertigem. - N’ahra’ith seja louvado! Nesse universo, Irina sobreviveu! Não posso acreditar! Eu... Ele... Nós temos um filho! O Sargento Bonecrusher desta realidade tem um filho! Um filho! Com lágrimas nos olhos, Williams vislumbra tudo o que poderia ter sido em sua vida, realizado por aquele outro.


- Irina... Aqui, ela se chama Irinova, eu... Ele é Guy Williamson e o garoto... Peter... Esse era o nome do meu pai, em meu próprio mundo! As semelhanças não param aí? Revistando o traje do duplo, ele vê gravado o apelido “Bonesmasher” em sua identificação de combate. O choro irrompe, sem controle. Williams poderia esperar qualquer coisa, menos encontrar um duplo negativo naquele mundo alienígena. Confuso, seus pensamentos oscilam entre o dever e o coração. Ali estava a vida que sempre havia desejado com Irina. Naquele universo, ele havia se alistado e continuava com ela. Haviam-no advertido quanto a partilhar informações com paradoxos, duplos ou como os científices da Inteligência chamavam tais ocorrências. Contudo, ele havia sido assaltado pela mais terrível combinação de palavras: “e se...” Gary sabia que a deserção era punida com disrupção em praça pública; a família, desonrada, seria considerada indigna e passaria a viver à margem da sócio-comunidade, junto aos párias e descontentes. No entanto, havia um modo. Ele poderia forjar a própria morte e, assim, estaria livre para encontrar sua amada Irina e o pequeno Peter. Sua falta de domínio quanto a certos detalhes na língua falada no mundo deles poderia ser explicada por um BTC (Bloqueio Traumático do Combatente) ou pelo nome que tratem essa síndrome nessa realidade. A razão gritava-lhe para desistir daquele plano insano. No entanto, seu coração dizia-lhe ser o correto a fazer. Ele havia abatido um marido e pai; a honra exigia reparação pelo mal causado àquela família. Decidido, Gary Williams despe o ARAI, metendo-se nos farrapos do traje utilizado pelo duplo para, a seguir, desfigurar terrivelmente os restos do inimigo. A gravidade daquele planeta castiga suas fibras, pois, sem quaisquer aparatos (o equivalente alienígena estava danificado além de qualquer reparo), tudo ganha quase duas vezes mais peso em relação ao seu mundo natal. Quando e se as tropas do Império Apoloniano fixarem uma base naquela esfera, encontrariam um genoma compatível ao seu (uma varredura dos sistemas em sua armadura confirmaram 99,99999999999999% de compatibilidade genética com o indivíduo de quem tomaria o lugar), declarando-o morto em ação. Seu nome iria para o Salão dos Valorosos e tudo acabaria bem. Algo na tecnológica daquela versão do império interferia no funcionamento de seu psicolink. Com um pouco de sorte, poderia viver entre eles, sem delatar sua verdadeira origem aos novos comandantes. - Dei uma vida pelo Império Apoloniano. É hora de eu ter a minha própria. As horas passam, até o céu noturno ser coberto pelas luzes das naves de resgate das forças vitoriosas. Com um sorriso nos lábios, ele acena para o transporte com as insígnias do


antigo inimigo. Agora, ela seria a bandeira sob a qual marcharia em sua nova e, com a benção de N’ahra’ith, feliz existência. Assim se conta. Essa é uma história da Guerra dos Muitos Mundos.


As Muitas Vidas de Robert E. Wells Por Rochett Tavares - Acabou! Estamos cercados! – Número 26 exclama, num misto de apreensão e pavor. - Não seja pessimista, 26! Já saímos de situações ruins antes – Robert Edgar Wells retruca, enquanto brinca de abrir e fechar o porta-chalk em suas mãos. - Milhares de universos lá fora e o sabor dessas coisas é sempre o mesmo. Tajachry, Fr´taui, Lacamant... Não importa como chamem; a humanidade só usa isso pra fazer chalks. Bom, teve aquele mundo onde uns alienígenas estranhos ocupavam a Terrania, no qual eles fumavam pó de osso misturado a cabelos! Aquela coisa tinha um gosto horrível, mas fazia um sucesso danado entre eles! - Estão fazendo contato, g’aanar’th! - 39, quantas vezes disse para você evitar usar expressões dessa sua língua bizarra? - Perdoe-me, g’a... latartn! A Frota está fazendo contato! Querem um link imediatamente! - É a praxe deles. Vão nos avisar de que estamos sob a “custódia” do “Império” ou, nesse caso, da “Resistência”. A seguir, nos dirão que nossa carga será “confiscada” e passaremos os próximos 50 jatargs em algum campo de prisioneiros repelente, numa das realidades mais miseráveis onde puderem nos meter! Robert suspira, imaginando uma forma para safar-se daquilo. Em seus anos como facilitador de acesso, jamais havia deixado seus contratantes tão irritados. No entanto, como ele saberia que os disruptores importados treze universos atrás se tornariam instáveis quando submetidos às leis da físicatia desse aglomerado de matéria inútil? - Mantenho o link fechado, latarn? - Vamos nos divertir um pouco, 39. Deixe o comandante dessa frota extravasar a tensão. – Com um sorriso cínico, o capitão da Mar´Shyll recosta-se confortavelmente em sua cadeira no centro do deck de comando. - Transmissão Oficial da Resistência de Kendack. General Omar N´Bantho – uma delicada e feminina voz artificial dá início ao contato. - Eles melhoraram as I.A.s deles. Quase fiquei excitado só de ouvir. - Seu karanath miserável! Filho de uma nagelan sem nome! Sabe o que fez? Sabe o prejuízo que trouxe à causa da Resistência? - Olá, General. O que posso fazer por você? - O que você pode fazer por mim? Vou pendurá-lo pelos hutanids, karanath!


- É uma oferta tentadora, meu amigo. Passo. Já disse que não tinha como saber que os disruptores iriam se comportar daquele jeito. Os seus cientificistas, alquímicos ou sei lá como se chamam os dareths nesse universo não poderiam ter verificado isso antes? - Você, karanath infeliz, nos assegurou que iriam funcionar perfeitamente! - Que iriam funcionar, sim. O “perfeitamente” se referia ao universo de onde vieram. Não seria quem sou se perdesse tempo testando tudo que chega às minhas mãos. Sou um comerciante, não um technativo. - Em breve, será um prisioneiro! - Sinto decepcioná-lo, General. Ouvi dizer que as Minas de Sarn’aath são muito quentes nessa época. - Karanath insolente! Eu... Eu... - EU, nada, General. Sabe por qual motivo não pode me vaporizar? Por eu ter as fontes. Sem mim, como abastecer a Resistência em inúmeros universos com technologiante importada? - Podemos tomar sua nave e decodificar seus bancos de memória! - Mesmo, General? E eu não os destruiria assim que desse a ordem para abordar? Estamos num impasse: você quer me matar, e não pode. Eu quero sair desse universo e não posso. A vida é cheia de surpresas, concorda? - Você tem 3 garjits. É minha oferta final! - Transmissão Oficial da Resistência de Kendack encerrada. Link fechado. - 3 garjits... 3 garjits... Quanto isso dá em minha escala de tempo, 15? - Aproximadamente 1 fatig e ¾ haluc. - Bem menos do que pensei! Preciso pensar! Preciso pensar! É obvio que, nesse tempo, o nahaik infeliz vai tentar ou conseguirá invadir meus sistemas... Por isso esse miserável deu-nos esse tempo! Ele está tentando nos letafyr! – Wells divaga, apreensivo, enquanto traga o chalk em seus lábios. - Agora você nos meteu numa bela enrascada, querido! – Dedos finos apertam seus ombros. - Guarde seu sarcasmo pra depois, Rob’ertha! Por Gakaranand! - Blasfemar não vai ajuda-lo, Robert. Seu deus está a muitos universos daqui. – Sorrindo, a mulher senta-se em seu colo. - Eu sabia que aqueles disruptores do Império Apoloniano, usados na batalha de MI-PA 001 seriam problema! O que eu poderia esperar de armas que não eram utilizadas há mais de 60 taraniks? - Esse é o seu problema, querido. Por que você não faz como os outros contrabandistas e importa peças de artha, biblos, perganitos e ge’na’ths?


- Quantas vezes vou ter de repetir, mulher? Não use sua língua estranha comigo! – Levantando-se de súbito, Robert derruba a companheira no assoalho da nave. - Você pode ter viajado por mais universos que qualquer outro sapientich, e jamais deixará de ser um o’par’kh grosseiro! Onde eu estava com a cabeça quando decidi me unir a você? - Se não fosse por mim, querida, você e os demais nahaiks nessa nave ainda estariam... - Não se atreva a continuar essa frase, ka’lh’r ono’par’the há’tha’natii! - Já disse que, nessa língua, não! - Você não achou o som das minhas palavras tão ruim, quando me encontrou, o’par’kh! Ou melhor, nahaik, já que isso te faz se sentir melhor! - Saia da minha frente, mulher! Antes que eu... – Robert silencia; seus olhos exibem um brilho sobrenatural. - O que aconteceu, querido? Você está bem? - Deixem-me a sós por um tempo! Preciso pensar! Retirando-se da ponte, o capitão da Mar´Shyll se dirige aos seus aposentos, no deck logo abaixo do centro de comando. *** - Olhem! O céu! - Gakaranand nos ajude! Alienígenas! - Será que eles vieram em paz? - Olhem aquelas naves! Parece narração cientológica. Robert Wells se recorda da primeira vez na qual pôs os olhos numa nave em sua vida. Ele tinha apenas 6 jatargs quando tudo aconteceu. As tropas do Novo Império Apoloniano aterraram em seu mundo, com a promessa de livrá-los de uma epidemia disseminada através dos universos por uma organização chamada “Resistência de Kendack”. No começo, todos ficaram maravilhados em saber da existência de mundos alternativos, onde as “cópias negativas” de sua espécie também dominavam versões do planeta Terrania e exploravam o gakaranaid com veículos que, para eles, só existiam na imaginação dos tragicômicos. Todavia, pouco depois da chegada, os Apolonianos revelaram a verdadeira natureza de suas intenções: governos foram depostos, cidades inteiras arrasadas e os idiomas nativos de suas etnias, proibidos. Tudo em nome de uma “paz” e “ordem” muito diferentes das palavras do Grande e Sábio Gakaranand.


Ele, assim como os milhares de sobreviventes cujo valor prático não contemplava os interesses dos colonizadores, foi remanejado para uma das sedes imperiais, em um universo distante. Submetido aos mais degradantes trabalhos, Robert viu seu povo definhar, até não restar mais de uma centena após uma década ou duas sob o jugo dos Apolonianos. Sem esperança, Wells guardou suas origens e língua no fundo de sua mente. Ele sonhava, todas as noites, com os campos verdes de sua terra natal, e ainda podia sentir o cheiro das japicks de olarã que sua mãe cozia nos verões. Recordava-se de seus irmãos e de como perderam suas vidas lutando contra armas impossivelmente superiores. Sentia saudades de seu mundo. Com todas as suas imperfeitas maravilhas. Ao despertar, entre lágrimas, amaldiçoava o “grandioso” Gakaranand por sua terrível sorte. Não havia conforto em sua existência. A cada dia, ele conhecia mais e mais exilados; a grande maioria exatamente igual à sua espécie. Alguns, apresentavam diferenças anatômicas interessantes: seis dedos, testas estufadas, mais altos, mais baixos, muitos eram semelhantes aos hadenrasais que havia visto em seus livros de histologia. O desenvolvimento intelectual também variava: enquanto uns não compreendiam as máquinas, acidentando-se constantemente, outros se viam num pesadelo de primitivismo e barbárie. Wells recorda, com pesar, o processo de esterilização ao qual ele e qualquer escravo era submetido quando os cientólogos do Império detectavam seu amadurecimento sexual ou aplicado aos capturados na idade adulta. Todos possuíam uma característica em comum: eram vítimas da máquina expansionista de um Império cujo poderio se estendia além das fronteiras de seu gakaranaid original. Robert, no entanto, se agarrava à ideia de sobrevivência como um náufrago aos restos do navio recém-naufragado, recusando-se a ceder. Ele ouvia os outros falando de seus mundos e aprendia; cada um dos infelizes consigo era um pedaço de informação; uma parte de um gakaranaid que poderia ser-lhe útil, de algum modo. Robert Edgar Wells fez as pazes com seus deuses quando, destacado para uma missão de limpeza em uma Terrania há muito desabitada (provavelmente devastada por uma catástrofe natural ou um conflito entre as nações daquela realidade), encontrou a nave que seria batizada em homenagem a uma história, a qual lhe fora narrada por um nativo de um mundo no qual os tragicômicos falavam de monstros e coisas assustadoras na escuridão. Convencendo os membros de seu grupo, foi capaz de manejar o artefato e experimentar algo há muito desconhecido: “libertatia”. Apesar de ter estado por décadas (ou séculos) sem funcionar, a nave era um aparelho dotado de tecnologia avançadíssima, capaz de viajar através da fenda sem ser detectada por quaisquer dos lados em guerra. Fugindo para além dos domínios Apolonianos naquele garakanaid, Robert e seus companheiros se tornaram piratas, saltando de universo em universo com o objetivo de


espoliar o famigerado Império. Percebendo ser mais lucrativo importar do que saquear, tornouse o maior contrabandista no conflito entre Império e Resistência. Capturado após uma traição e conseguindo escapar novamente, decidiu que formaria sua nova tripulação com os únicos indivíduos nos quais poderia confiar: seus “duplos negativos”. - O tempo está acabando, querido. 22, 19 e 73 reportaram tentativas de violação dos links internos. Disseram que os latanarks defensivos só aguentarão mais duas ou três tentativas! – A voz de Rob’ertha soa, apreensiva, através do intercom. O capitão da Mar’Shyll havia tomado sua decisão. Iria escapar novamente das garras do inimigo, não importando o custo de seus atos. *** - Latartn, a frota Kendackiana exige um link imediatamente! - Eles estão apressados. 26, qual a situação dos nossos latanarks? - 22 e 19 reescreveram as rotinas de proteção e conseguiram mais algum tempo. ½ haluc, para ser exato. - Não é o que eu gostaria, mas é o melhor que temos. Está bem! Abra um link! Vamos acabar logo com isso! - Tem certeza de que isso vai dar certo, Robert? Temo pelo que farão conosco caso caiamos nas mãos deles... - Só o fato de navegar através dos gakaranaids com uma tripulação formada por “duplos negativos” já é o suficiente para me tornar uma das criaturas mais perigosas de toda a existência, minha querida. Imagina o que farão caso descubram a natureza de minha companheira? - Há’tha’natii! - Eu já disse, nessa... - Eis os termos de sua rendição, Wells! - General, General. Não é muito educado tentar quebrar a segurança dos links internos de uma nave em trégua... Mas, como sempre tivemos boas relações, vou fingir que isso não ocorreu. - Os termos de sua rendição foram transmitidos através desse link, karanath insolente! - Latartn, não vamos aguentar muito tempo! – Número 22 envia uma mensagem diretamente ao console na cadeira de seu comandante. - Está bem, General. Está bem. Você venceu. Eu me rendo! - Não acredito em você, karanath! - N´Bantho retruca.


- Você me pegou, General. Vou até aí pessoalmente e, como um bônus, levarei uma cópia dos bancos de memória da ´Shyll. - Queremos a nave, carga e tripulação. - Posso dar a ordem de autodestruição, General. Ninguém vence todas. Com os dados, vocês, Kendackianos, podem construir uma Mar’Shyll nova em folha. - Quando você estiver sob meu poder, e os dados confirmados, reduzirei sua nave a cinzas após tomar sua carga, karanath miserável! – o General sorri, enquanto divaga acerca de seus planos. - Aceito seus termos. Coordunidades enviadas. - Transmissão Oficial da Resistência de Kendack encerrada. Link fechado. - Preparem a cápsula! Rápido! - Você não pode fazer isso, Robert! Yo’nova’aath kah’astath há’tha’natii! - Não adianta grunhir nessa língua estranha, mulher! Está decidido! 22, carregue os arquivos! Agora! - Entendido, latartn! - Não! Eu o proíbo! - Quem é você para me dar ordens, Rob’ertha? Abandonando a ponte, Robert Wells segue rumo ao seu destino. *** O deck de lançamento ficava sete níveis abaixo da ponte de comando; o trajeto deu-lhe tempo mais que suficiente para considerar acerca do curso de ação a ser tomado contra as forças do General N’Bantho. - Você não pode fazer isso comigo, hattick miserável! - Não posso? Não posso? 53, meu caro, posso e vou! - Como você é capaz de sacrificar um de nós? - Da mesma forma que você teve coragem de me trair com ela! – Wells fitava o interlocutor, como se estivesse observando o próprio reflexo. - Eu tenho um nome, hattick! Todos nós temos um nome! Vocês, aí fora com ele! São... somos... indivíduos e não apenas coisas numeradas! Como... Como podem se curvar desse jeito? - Eles são gratos, nahaik. Estendi minha mão a você e qual foi minha contrapartida? Traição. E, Gakaranand sabe, odeio traidores! - E quanto a ela? Ela também o traiu!


- A diferença, caro 53, é a de que ela é única. Viajamos por mais gakaranaids que se possa contar e Rob’ertha foi a única versão feminina de nós que encontramos. Seu mundo, também, apresentava peculiaridades interessantes em relação aos demais. É algo muito valioso para ser desperdiçado. - Tenho um nome, hattick! Tenho um... - Selem essa maldita cápsula e cortem a comunicação. 53 me entedia com suas ameaças vazias. Obedecendo ao comando, 78 e 17 executam os preparativos finais ao lançamento. Robert sorri ao retornar à ponte. Os Kendackianos costumam manter um registro genotímico dos... Associados. Mal sabiam que seu principal fornecedor viajava com uma nave cheia de “duplos negativos”, cujas impressões genotímicas eram indistinguíveis. Isso, aliado ao sistema de embaralhamento com o qual Mar’Shyll foi equipada, tornava praticamente impossível a qualquer um descobrir seu segredo. - A primeira parte do engodo está feita. Agora, o grande final. – Retomando o assento no deck de comando, Wells se prepara para dar a ordem de fuga. - Nossa surpresa deve chegar em breve ao General N´Bantho. Gostaria de ver seu rosto quando descobrir nosso plano. - Motores energizados! Estamos prontos. - Aguardem mais um pouco. Assim que a onda de energia for detectada, inicie o salto. Em seus aposentos, Rob’ertha se espreme contra a escotilha. Desse ponto, é capaz de observar o destino de seu amante. Conforme previsto por Robert Wells, a cápsula explode, levando consigo metade do cruzador Kendackiano consigo. A seguir, o espaço ao redor de Mar´Shyll torna-se um borrão multicolorido; é o salto. Seu companheiro havia, mais uma vez, escapado, pronto pra navegar através das realidades como um ras’tht corta o orl´wyd ao sabor do vento. No entanto, mesmo sabendo que tal sacrifício fora realizado pelo bem de todos ali, ela sussurra o nome do herói, seu herói, enquanto lágrimas de ódio escorrem por uma face em cujos olhos cintila o brilho da vingança. Assim se conta. Essa é uma história da Guerra dos Muitos Mundos.


Perturbação Interdimensional Especular Em Kepler 443 Por Roberto de Sousa Causo Muitos o chamavam de “Carniceiro de Anagit”, cidade que sofrera um dos mais infames massacres da Guerra dos Muitos Mundos. Mas o nome dele era na verdade Mantaro Pohrei e em Farex, um dos principais planetas da Resistência de Kendack, ele era um herói. Por que Pohrei emigrou para Kepler 443 foi um mistério para a maioria – embora não para mim, é claro, pois eu fazia parte do pequeno número daqueles que partilhavam de sua intimidade. Se é que se poderia chamar qualquer relacionamento com Pohrei de “íntimo”. Eu o acompanhava a partir da distância imposta por ele, apesar de nossas semelhanças sugerirem uma proximidade maior do que proporcional. Ambos estivemos na Batalha de Anagit, na qual o então Coronel Mantaro Pohrei, no comando da única unidade da Resistência de Kendack no sistema, obteve a vitória arrasadora que o tornou famoso e infame. Ambos, certamente, tínhamos partilhado das difíceis decisões a que ele se impusera. Conhecer suas razões significa que também sei por que ele abandonou suas próteses, tornando-se uma aberração no distante Kepler 433, uma aberração em uma época em que não existiam mais deformidades físicas visíveis. A capital de Kepler 443 e suas dezenas de torres e galerias de aço polido e vidro, eis o motivo. Ou a imagem que ele entrevia nos reflexos dos reflexos dos reflexos. O Carniceiro de Anagit. Para diferenciar-se dele – de sua fria competência, das duras decisões tomadas por ele, das terríveis consequências dos seus atos –, Pohrei se despiu do braço artificial, e então da perna. A muleta precisou ser feita em uma oficina de impressão três D, porque se tratava de um acessório não disponível nesse tempo e lugar. Mas, mesmo com essa abdicação radical, a figura altiva era entrevista nos painéis e nas colunas espelhadas das construções da capital, nos reflexos dos reflexos dos reflexos. Mais tarde, também nos espelhos e nas superfícies da própria residência de Pohrei, longe, nas fronteiras da metrópole com a área rural... Você acredita que Mantaro Pohrei era assombrado pelo Carniceiro de Anagit? Não são poucos os relatos que falam desse tipo de perturbação interdimensional, especialmente como resultado de viagens interplanares que percorriam vinte e dois ou mais planos em poucos segundos, embora os estudos oficiais sobre o fenômeno ainda sejam inconclusos... Mas não foi assim que Pohrei conquistou sua vitória? Percorrendo verticalmente 111 planos dimensionais sucessivos, utilizando, a um grande custo cobrado da sanidade dos


homens e mulheres ao seu comando, o desvio temporal resultante da criação do vórtice, para retornar à sua posição momentos antes da Manobra Canas dos apolonianos e então bombardear o seu gerador de interferência eletromagnética – que havia confundido os sensores das naves da Resistência de Kendack, permitindo que fossem cercadas pelos apolonianos? O que importa que o emissor estivesse instalado nos subterrâneos da zona civil da cidade superpovoada de Anagit? Foi apenas ao infligir essa derrota aos odiados invasores que Farex não foi ocupado... O holocausto dos civis alimentou o mito de que a energia que alimentava a Interface Dimensional vinha das almas dos mortos na guerra, e logo surgiram acusações de que tínhamos utilizado os métodos do inimigo, em Anagit... Eu mesmo não acredito no mito. Creio que as explicações serão encontradas na física, e lamento a sua ausência até aqui... e não na metafísica. Muitos membros das tropas de Pohrei enlouqueceram, é verdade. Em razão da penetração interplanar sucessiva, ou com os horrores testemunhados quando Anagit ardeu com o fogo atômico até transformar-se em um turbilhão de cinzas negras?... Faz diferença? Sabe-se que Pohrei saiu ileso o bastante da travessia dos 111 planos para ler perfeitamente a situação tática e ordenar o bombardeio que resultou na vitória. Por que acreditar que ele teria enlouquecido tanto tempo depois, já na reserva e afastado dos grandes centros? Em Kepler 433, as aparições de sua figura mutilada tornaram-se assunto de análise nos noticiários e de fofocas maliciosas nas redes sociais – comentários que ele e eu ignorávamos solenemente. A decisão de isolar-se em sua propriedade veio com naturalidade para ele, pois ainda o assombravam as imagens fugidias, percebidas nos reflexos dos reflexos dos reflexos por toda a parte, nos recessos, refrações de luz e sombras da cidade, e isso era tudo o que lhe importava. Mas Pohrei ainda reconhecia o vulto ereto e com todos os membros, agora nas sombras trançadas pelos troncos das árvores esguias que cresciam no vale e nas colinas. E logo o vulto avançava para confrontá-lo, perfeito e de olhos brilhantes. Pohrei então deixou de renovar os tratamentos de bioskin que cobriam suas cicatrizes, expondo os cortes fundos em sua face esquerda, revelando os dentes mesmo quando ele cerrava os lábios, e repuxando as pálpebras do olho esquerdo. Pohrei não seria aquela figura de rosto e membros perfeitos, sorrindo com charme e saúde para ele, dentro e fora da casa... Quando o outro insistiu em manifestar-se diante dele, Pohrei pensou que, se ainda ferido não tivesse guiado suas naves pela jornada interplanar pelo tempo, a morte teria sido o resultado final dos seus ferimentos. Pensou em deixar-se morrer, então. Seria esse o fim dele e do Carniceiro de Anagit? Difícil dizer. Onde estavam os estudos a respeito? As estatísticas?


O próprio Garen Ordonax, criador da Interface Dimensional e iniciador inadvertido da Guerra dos Muitos Mundos, pouco nos legou de reflexões a esse respeito antes do seu suicídio, nem minhas consultas ao famoso bibliotecário Lothar Gan Amon lograram obter qualquer informação valiosa... O fato é que eu não queria correr o risco. Vejam, eu era tão próximo dos dois, que se qualquer um deles deixasse de existir, eu também morreria. Disso estou certo, embora neste caso também não existam pesquisas em que me apoiar. Sei disso porque sinto a pressão do eclipse de nossa existência em todos os instantes. É por isso que fui forçado a agir para impedir a nossa desintegração conjunta. Com a minha intervenção decisiva, Pohrei renovou sua bioskin e recuperou sua fisionomia. Depois voltaram para seus lugares a prótese inferior e superior. Um pouco mais de tempo ainda para que ele endireitasse as costas diante do espelho. Se a perturbação interdimensional foi resolvida? Saibam que também isso não é importante. O que importa de fato é que o General de Brigada Mantaro Pohrei pediu para sair da reserva e passou nos testes psicológicos de reincorporação, e os relatórios acerca de transtornos dissociativos de identidade foram abafados com muito cuidado sob uma cortina de segredos – sinal de que a Resistência de Kendack realmente precisava dele. Mais uma vez como um coronel das forças espaciais, mas agora no comando de um batalhão reforçado, recebeu uma incumbência crucial que indicava exatamente isso – seus superiores sabiam muito bem em que missão ele seria melhor utilizado, uma para qual não haveria candidato melhor: localizar e assumir o controle da Interface Dimensional. A ameaça de destrui-la bastaria para terminar a guerra? O problema era que a missão mais importante implicava nos maiores perigos. As bordas do Império Apoloniano já haviam sido mapeadas, e os planos dimensionais mais estáveis, visitados e reconhecidos. A expedição de Pohrei se destinaria às zonas centrais e melhor defendidas do império e aos planos dimensionais mais secretos, menos visitados e mais perigosos... Um colega disse a ele que era preciso ser louco para aceitar uma tarefa como essa, para a qual foram alistados apenas os dispensáveis. A essa hipótese, Pohrei respondera apenas com um sorriso distante... Sim, admito que continuo temendo por minha vida, mas desta vez por essas razões militares, descritas acima. São elas menos angustiantes do que a perspectiva da autodestruição de Pohrei? Sim, pois todo ser humano anseia por uma vida e uma morte com significado, e era isso que haviam oferecido a ele. No meu caso, há ainda o fascínio daquele turbilhão de cinzas nas quais pareciam brilhar palidamente as almas de centenas de milhares de mortos... Pela chance, por mais remota, de


testemunhar um outro holocausto como aquele?... Sim, estava aí algo que alegrava nossos corações unidos, mesmo que eles parassem segundos depois da visão. Foi com essa alegria que partimos. Assim se conta. Esta é uma história da Guerra dos Muitos Mundos.


As Cinzas de Viridiana Por Bruno Eleres Gritos no corredor despertam Viridiana dos seus pensamentos. Ela olha, assustada, do berço para o corredor escuro. Quadros e um vaso com flores mortas fazem contraste com a luz que vem da janela e formam uma paisagem melancólica. Ela se levanta e atravessa o caminho sombrio até alcançar a porta. Pelo olho mágico, vê a porta do apartamento da frente escancarada e Jaime, o vizinho, com uma grande mochila de acampar atada às costas. Ele grita com alguém, provavelmente o noivo, Sebastian. Viridiana não é dada a observar a vida dos outros. No dia-a-dia, definitivamente não separa tempo para fofocas, mas esta é uma situação excepcional. - We need to go, Sebastian! Right now! - Just wait! A discussão entre os dois prossegue. Eles querem enfrentar as ruas conturbadas, talvez encontrar um avião ou uma lancha e zarpar para bem longe dali. São os únicos caminhos para sair da cidade, o céu e o mar, e, mesmo assim, ela duvida que seja possível escapar rápido o suficiente. Eles têm um pouco mais de duas horas, e mais cedo o jornal mostrara, minutos antes das transmissões desaparecerem por completo, as ruas repletas de carros abandonados e as estradas congestionadas de automóveis e pessoas que se amontoavam por quilômetros sem fim. Mais à frente, uma imensa barreira de tanques e militares - metralhadoras e megafones a postos fazia frente à multidão. Sebastian aparece na porta. Raiva e choro se confundem no seu rosto, dando-lhe cor. Ele encara Jaime e parece prestes a desabar em pranto, mas o noivo o abraça. Viridiana cogita abrir a porta e pedir para que a levem junto. Mas não. As últimas horas lhe mostraram coisas horríveis por uma vida inteira, e não irá permitir que o mesmo aconteça com ela e com o seu pequeno Miguel. Recordações a atormentam. Dois homens brigando por uma bicicleta até que um deles teve o crânio arrebentado na quina da calçada. Outro homem transtornado agarrou uma mulher à força e ela lhe arrancou um dos olhos com a mão nua – e então correu para longe, as unhas manchadas de sangue sobre o esmalte branco. Um motorista ensandecido numa caminhonete apertou o acelerador sem medir as consequências e abriu caminho entre carros cheios e vazios, até que o amontoado de veículos o impediu de ir adiante e ele se esgoelou sobre o volante. Não há saída do labirinto urbano. Mesmo que pudesse criar asas, seu destino não seria tão diferente quanto o de Ícaro: se não fosse detida pelo sol, como no mito, certamente as tropas do governo a derrubariam dos céus.


Viridiana balança a cabeça e espanta as ideias e lágrimas. A decisão já foi tomada. Assim que os dois se separam e andam em direção à escada, Miguel irrompe num berreiro. Merda. Merda. Ela corre até o berço na sala e, assim que pega o bebê no colo, ouve as batidas na porta. Jaime chama pelo seu nome e as batidas ecoam cada vez mais forte, somando-se ao choro agudo da criança. Ela balança Miguel devagar: - Shhh... Calma, meu menino, está tudo bem... Jaime soca a porta e chama mais alto por Viridiana. Ela entreouve a voz de Sebastian, baixa demais para que possa entender algo – especialmente em inglês. - Viridiana! Você ‘tá aí? Ela não quer ser incomodada. Já se conformou com o destino. Seus olhos marejam e a voz embarga enquanto nina o bebê, a melodia tristonha. - Viridiana, preciso que você abra! Estou ouvindo o Miguel chorar! Se você não abrir, vou arrombar a porta! Ela permanece em silêncio. Traz Miguel para junto do rosto, beija sua cabeça com poucos fios de cabelo preto e sente o cheiro de bebê. Dali, junta toda a coragem que precisa. Anda até a entrada do apartamento e, quando sua mão se aproxima da maçaneta, um soco na porta faz com que ela estremeça junto à madeira. - Estou aqui. Do outro lado, Jaime permanece em silêncio por uns segundos e depois troca algumas palavras com o noivo. Ela não entende o que acontece e, por fim, abre a porta. Miguel já não chora mais, curioso com a confusão, e observa os vizinhos com seus grandes olhos negros. - Viridiana, você sabe o que está acontecendo, né? Ela assente. - Então, você precisa vir com a gente! Pega as coisas dele, rápido! - Não. - Não?! Viridiana, você não ‘tá entendendo! – Ele estende a mão para segurá-la, mas ela recua. - Já disse que não, Jaime. Vai embora. Ela o encara impassível e ele permanece parado no hall escuro, confuso. Sebastian pede que ela vá pegar as coisas em um português enrolado e sua voz se mistura à de Jaime, que também tenta convencê-la a ir com eles, em um discurso caótico e incômodo. Eles não percebem que os olhos de Viridiana encaram a parede atrás deles. O vazio em seus olhos flerta com a loucura e sua consciência se esvai.


Para ela, as vozes se transformam em um som ininteligível, sem ritmo, que não é mais do que o background para os seus pensamentos conturbados. Ela abraça Miguel mais forte, segurando-o como a um ursinho de pelúcia, Vicky, o mesmo da sua infância. Por um instante, ouve a voz do irmão mais velho dizer que a mãe tem medo de aranhas e sua própria voz responde: que bobagem, Chico, todo mundo sabe que adultos não têm medo de nada! Viridiana se sente criança de novo, porque tem medo. Fecha a porta na cara dos dois homens que não param de falar e anda pelo corredor à meia-luz. Passa pelo imenso espelho e vê a imagem de uma mãe com o seu bebê. Ela mesmo, no futuro. Ou no presente. Lágrimas escorrem e ardem no rosto. Ainda se sente a mesma menina de duas décadas atrás, mesmo que por trás dos primeiros cabelos brancos, por trás de um filho no colo, por trás das rugas no canto dos olhos. A verdade é que nunca ficamos adultos. Apenas somos nós, o que sempre fomos e o que sempre seremos, mas o espelho reflete outra imagem. Como eu queria a minha mãe agora. Afunda as unhas nos próprios braços e a dor afasta os pensamentos confusos que a atordoam. Ao passar pelo berço, Viridiana pega uma bola colorida e a entrega para Miguel, que se diverte com o objeto. Ela anda até a varanda. A rua está intransitável – carros estão parados tanto na via quanto nas calçadas, muitos deles colidiram uns contra ou outros ou contra postes e muros. Lá embaixo, Jaime e Sebastian saem do prédio em uma moto. Eles desviam com habilidade dos carros abalroados e a esperança palpita no coração de Viridiana, como uma simples flor que teimasse em desabrochar em um campo destruído pelo fogo. Ela se inclina para ver melhor a fuga do casal, que é, porém, logo interrompida. Na esquina da rua, três homens surgem aos berros e um deles se joga sobre a moto em movimento. Jaime e Sebastian caem para o lado e a moto ainda se move por uns segundos, até colidir com um carro. Os três agressores se esmurram pela posse da moto. Jaime se levanta e corre até o veículo caído, tenta levantá-lo, mas um dos homens se afasta do grupo e acerta uma série de socos em suas costas. Sebastian assiste à briga atônito e se arrasta para trás. A boca de Viridiana tremula e lágrimas abundam sobre o rosto. Ela balança o filho - que é todo o seu mundo naquele instante. A criança ainda se diverte com a bola vermelha e ignora o universo que a ela não pertence. Afasta-se da janela e se senta em uma grande cadeira de balanço, herança da avó Esmeralda. Ainda bem que não fomos. Ainda bem. As lágrimas continuam a escorrer pelo rosto alvo e caem sobre o bebê, que para de balançar o brinquedo e olha para a mãe. Ele balbucia algo, como se conversasse com ela. - Sua mãe é uma boba, meu filhote. Não é nada, não... – responde, olhando-o nos olhos, inteiramente encantada com o pequenino nos seus braços.


Seu rosto se contorce em uma careta de raiva, que sempre a faz rir – e o choro de Viridiana se mistura a um riso desajeitado. Miguel gargalha, mostrando as gengivas vermelhas, e a gargalhada disputa espaço com os gritos que ecoam pela rua. O riso de Viridiana entra na equação e vacila pelo ar, experimenta-o, incerto da própria concretude, como um filhote recém-nascido de zebra que ainda não sabe se anda ou se corre. Ah, meu bebê! Ela olha para o rosto inocente de Miguel, que alterna entre careta e risada, e gargalha junto. Lembra-se da primeira vez que pegou o filho no colo e conversou com ele. Não se lembra das palavras exatas da primeira conversa olhos nos olhos, mas sabe que a primeira vez que o pegou no colo foi transcendental, como se finalmente encarasse a parte de si que sempre fora ausência. A felicidade era tanta que transbordou e fez com que ela nem notasse as dores e o cansaço do parto. Meses depois, ainda se sente da mesma forma. Fala com o bebê com a voz anasalada e aperta sua bochecha gorducha. - Mamãe te ama muito, você sabe? O filho responde com um gritinho agudo de felicidade. - Já faz muitos anos que mamãe queria te conhecer, Miguelito. Ela te esperou muito e te amou muito, mesmo antes de você nascer. É, amou sim, meu bebê. Por muito tempo, Viridiana achou que não teria filhos. Os médicos por onde passou haviam-na despido de todas as esperanças. O marido, insatisfeito, afastara-se aos poucos – mais tempo em reuniões, começou a esconder o extrato do cartão de crédito, até que finalmente foi embora com uma mulher dez anos mais nova do que a esposa. Para ela, foram meses horríveis. Chorou todas as noites por meses, sem exceções, lembrando-se de cada detalhe do rosto do marido ao longo dos anos em que haviam envelhecido juntos, dos dezenove aos trinta. As rugas que se acentuaram gradualmente, os cabelos brancos que surgiram sem aviso numa manhã fria de dezembro, a barriga que se avolumava frente ao espelho. Lembrava-se de todos os detalhes ao longo do multiverso que foram os seus anos com ele, uma dimensão tão própria, construída pedaço por pedaço com memórias, pernas entrecruzadas na cama, carícias ao amanhecer. Mas a dor se amenizou com o tempo. Ainda se escondia nas sombras do apartamento e nos móveis antigos que haviam perdurado – e as cicatrizes voltavam a arder como se ela ainda fosse adolescente. Dois anos depois, essas noites ainda aconteciam. Estava deitada em sua cama de casal e algo nas sombras do quarto a lembrava do mesmo cômodo meia década antes, e tudo vinha à tona. Mas, no geral, havia seguido em frente. Saíra com alguns homens e até namorara com um, mas não sentia o mesmo que durante os anos com o ex-marido. Ainda sentia que algo estava faltando, o que sempre faltara. Um filho.


Relutou com a ideia de criar um filho sozinha por meses. Sabia que mulheres não precisam de filhos ou de marido para ser felizes, nem de qualquer uma dessas bobagens cristalizadas pelos milênios. Mas ela realmente queria ter um filho. Sempre quisera. E também não achava que havia problemas em querê-lo. Por fim, aceitou a ideia e foi à clínica. Depois de um longo tratamento, os médicos fizeram sua última tentativa e foram bem-sucedidos. Balança Miguel e beija seu rosto. O calor do bebê nos braços e o balbucio de quem conversa a maravilham. Ela responde para ele, incentivando-o a falar mais. Viridiana quer ser recortada de todas as dimensões e ser colada noutra, livro próprio construído só para ela e para Miguel, onde possa ouvi-lo para todo o sempre. Para todo o sempre, se é que existe tal espaço-tempo. Talvez só exista o vazio do outro lado desse muro rígido e cheio de espinhos ao qual deram o nome de Deus, de Buda, de Krishna. De Vida. - Mamãe ficou tão feliz quando soube que você ia vir, meu anjinho. Ela achou que você nunca ia vir, mas aí, quando ela já estava triste, você veio! Meu milagre. Meu milagrezinho. E mamãe não vai deixar nada acontecer com você, meu filhote. Ela vê algo atravessando o céu sem nuvens. A figura preta arranha os céus e perverte a tela azul de Baker{13}, e tudo o que sobrava do que é natural se esvai. No chão, as valas, carros e prédios. No céu, a morte escrita na fumaça branca dos artífices apolonianos. Meses antes, noticiários informaram que o Novo Império Apoloniano, vindo de outro Universo, iria bombardear os países do mundo dela que não se aliassem a ele. O Governo, no entanto, alegou que eram boatos – que as negociações existiam e eram profícuas, que estavam chegando a um ponto em comum. Sem motivos para deslegitimar o governo, ela acreditou. O míssil se aproxima pelo céu, como o arauto de um futuro terrível. Ou inexistente. Nós não nos curvaremos aos Apolonianos, lembra-se do discurso da Governadora, mesmo que muitos mundos e universos já o tenham feito; nós não toleraremos mais ditadores e imperadores, opressores e exploradores; nós somos sobreviventes, nós somos os escravos que se libertaram, as mulheres que levantaram a voz, os jovens que não se deixaram robotizar, então sim, nós continuaremos a apoiar a resistência de Kendack, porque nós SOMOS A RESISTÊNCIA. Nós somos a Resistência. Eu sou a Resistência. Eu sou. Sou? Está na hora. Ela se levanta com Miguel no colo e vai até a janela. O míssil inicia o processo de descida em direção aos arranha-céus. Eu não sou a Resistência. Eu não me aliei a ela. O


Governo fez isso, não eu. Eu sou só Viridiana. Mãe de um menino lindo chamado Miguel. Viridiana que adora tocar violino. Que adora cantar no chuveiro. Que adora mergulhar. Que ama Miguel. Eu não me aliei à Resistência, foi o Estado, eu juro! Por que a retaliação vem pra mim e pro meu menino, então? Por quê? Porém, segundo os blogs informavam, nem bem a ameaça se tornou palpável, o Governo recuou e se curvou em obediência ao Novo Império; mas com uma condição, de acordo com os boatos que rondavam as redes. Eles deveriam transformar a capital da nação no exemplo do que acontece àqueles que negam a supremacia apoloniana. O Governo concordou. Os pensamentos reacendem sua revolta. Um grito animalesco fica preso em sua garganta, ansioso por ganhar o mundo. Ela o contém para que Miguel não se assuste, e o admira em seus braços: - Mamãe ama você muito, meu bebê. Muito, muito mesmo. Mamãe vai amar você para todo o sempre, meu pequeno milagre... O estômago de Viridiana se retorce e o seu corpo ferve com a iminência da tela vazia, das promessas de telas eternamente inexistentes ou de telas preenchidas com nuvens ou fogo. Está abraçada com a única certeza: o amor da sua vida. E seu corpo parece estar em chamas com os entremeios de tristeza, dor e felicidade. Ela se desfaz em lágrimas e um pingo salgado escorre do seu rosto e cai na boca de Miguel, e o menino faz uma careta por causa do gosto amargo e amargurado que o fim deixa. - Ma-man-man E um clarão azul-claro feito o céu toma conta da metrópole. Assim se conta. Essa é uma história da Guerra dos Muitos Mundos.


O Exército Indestrutível de Wei Liang Por Heitor V. Serpa Antes da Guerra dos Muitos Mundos, apenas uma raça era capaz de viajar entre as dimensões. Eram tão raros quanto pacíficos; seu ciclo vital se iniciava no despertar dos poderes, passava pela busca por um planeta ideal para constituir família e, como viviam mais do que os sóis, acabava no falecimento de todos que conheceram no passar dos anos. Eles podiam lamentar pela eternidade, tirar a própria vida ou recomeçar em outro universo. Com o chegar da Guerra, no entanto, alguns destes seres tomaram rumos obscuros, consagrando-se generais e imperadores do Multiverso. Seu nome original se perdeu no tempo: agora eram conhecidos como “Conquistadores”. Wei Liang, um dos primeiros a abraçar o front, tinha experiência suficiente para carregar uma vida dupla – líder de exércitos na maior parte do tempo, nas férias era o senhor João Carlos Yamada, o “seu Joca”, pai de dois filhos e marido da moça mais linda da vizinhança (ao menos na sua visão). Dizia-se marinheiro mercante, justificando as temporadas longe de casa, mas não o jeito estressado e distante de seus amados ignorantes durante a folga. Claro, não podia contar as sucessivas derrotas de suas tropas, nem como seus aliados cortaram os reforços para o Reino Distante da Intersecção Dimensional. Era questão de tempo até o derrotarem, então Wei Liang tomou medidas drásticas. Recuou da Intersecção, reforçou a defesa dos mundos sob sua bandeira e iniciou uma jornada pelo Multiverso em busca da solução. Milhares de planos visitados diariamente; nenhuma arma, nenhum milagre para salvá-lo. Quem poderia culpar a frustração de seu Joca, voltando sem nada nas mãos noite após noite? Até aquela em que “chegou do bar” pela madrugada e ouviu o grito de seu filho mais velho na cama. Carlinhos Yamada estava na fase em que os poderes de viagem interdimensional começavam a se manifestar, pendurando-o na teia entre os universos enquanto sonhava. Para os leigos, tinha o nome de terror noturno, aflição comum de toda criança. A senhora Beatriz Soares (milênios de vida, e ele ainda não entendeu em que ponto as mulheres abriram mão dos sobrenomes de casada), descabelada, veio em seu socorro, pegando no colo o bebê que se incomodava com o alarde enquanto seu Joca acalmava o outro, puxando-o de volta para o Mundo Onírico Padrão. Para os observadores externos, ele fechou os olhos e rezou até o menino se aquietar. Minutos depois, estava diante da televisão na sala, o volume inversamente proporcional à sua luminosidade cegante. Não tivesse ele deixado Beatriz descansar, ouvindo como Carlinhos precisava de um médico e outras questões de casal pelo tempo que o sono demorou


a bater, não tivesse ele prometido vigiá-lo pelo resto da noite, não encontraria a solução de seu dilema. Não foram as viagens interplanares, mas um simples surfar de canais que lhe trouxe a resposta na reprise de um filme. “Who Framed Roger Rabbit” era um clássico daquela realidade, misturando atores e desenhos animados com tecnologia pioneira de sua época, recheado de piadas e referências adultas que, de algum modo, driblaram a censura. A história envolvia um detetive particular, mergulhado no vício depois que o irmão foi assassinado com um piano na cabeça por um cartum psicótico; depois de fotografar a traição de Jessica Rabbit, cantora de jazz feita em riscos perturbadoramente sensuais e namorada de Roger, se envolveu numa conspiração que o obrigou a encarar os fantasmas do passado. Desenhos cometendo crimes, desenhos abusando da violência com pretexto de risadas. Seres antropomórficos ou não, capazes de dobrar a realidade ao seu bel-prazer, de resistir a ferimentos além da imaginação. Seres que, apesar de tudo, derretiam até a morte com uma mistura de aguarrás, acetona e benzina, facilmente subjugáveis diante da morte lenta e excruciante. Como não pensou naquele lado do Multiverso antes? Em uma semana, as tropas conquistaram os Planetas Desenhados e extraíram seus segredos. Logo as hostes inimigas foram engolidas por buracos portáteis, esmagadas por chuvas de bigornas ao coro de risos ensandecidos. Carbonizadas, explodidas por dinamites, pintadas de vermelho e então destroçadas por touros. O Exército Indestrutível de Wei Liang retomou a Intersecção Dimensional e, por um longo tempo, espalhou sua tirania. Assim se conta. Esta é uma história da Guerra dos Muitos Mundos.


Tigre Branco Por Luiz Mendes Junior Pela enésima vez, meus visores frontais os captaram. Uma vanguarda de interceptadores em formação “V”, escoltada por ornitópteros* numa área de 2600 milhas cúbicas, com cargueiros e refinarias móveis seguindo atrás, flutuando lentamente a poucos metros do solo. Outros interceptadores fechavam o comboio em modo híbrido e baixa altitude. Cinco. Logo, todos nos veriam, por isso dividi nossa esquadrilha em três grupos de quatro, sendo o meu responsável por penetrar a nuvem de ornitópteros em direção aos cargueiros. Ordem dada, não havia como retroceder. Guiei meu interceptador em modo caça por sobre uma meseta rumo ao comboio, dando sinal para que meu grupo assumisse formação de combate enquanto os demais se mantinham voando para dispersar a “nuvem”. Pela enésima vez, minhas asas deslizaram para a parte traseira da fuselagem, esta se abriu e se ramificou em seções móveis subdivisíveis, iniciando o balé que transformava minha nave na carapaça antropomórfica mais sofisticada do Novo Império, o RT-3, ou Deptor, robômecha* movido a comandos físicos e mentais do piloto. Minha esquadrilha tinha quinze deles, meu esquadrão trinta e sete, cada um com um apelido. Pierre Lafontaine era meu nome. Major. Líder do primeiro esquadrão e piloto do “Tigre Branco”, o Mecha mais mortífero que aquela guerra tinha visto. Nossa ação, rápida, confundiu o comboio inteiro. A vanguarda quebrou sua formação. Os ornitópteros se dispersaram atrás dela pelo ar feito moscas. Abaixo, cargueiros e refinarias flutuantes paravam de avançar, protegidos que estavam pelos interceptadores da retaguarda, que de “híbridos” se transformaram em robôs-mecha antropomórficos como o meu, mas de sofisticação inferior. Com a vanguarda adversária no ar e dispersa, desci até perto dos cargueiros, deixando que meus grupos de apoio perseguissem o bando enquanto meu Tigre lançava três mísseis numa refinaria. Cada veículo do comboio era dirigido por Nendrons*, humanoides do planeta Ahtemir com habilidade e disciplina questionáveis, aquém da elite Kendack, muito aquém, por isso o equipamento de segunda. Sua ousadia, no entanto, a índole de morrer pelo dever que fez um mecha tomar a frente de meu alvo, receber três mísseis e explodir, eram úteis demais para a resistência dispensá-los. Um segundo mecha correu em minha direção, disparando seu canhão de 90 milímetros. Tigre Branco dobrou um braço para cobrir o plexo, correu de encontro ao inimigo e saltou por cima dele numa meia cambalhota. A couraça do RT-3 é de titânio, revestida por ligas de grafeno temperado. Quatro anos aprendendo a pilotá-lo... dois trabalhando mente e corpo para que meu Deptor e eu nos tornássemos um quando juntos. O


Mecha inimigo quis se virar, no que Tigre desferiu um pontapé em sua junta inferior e desmontou seu reator com um soco nas costas. Ele caiu, e o piloto, em vez de ejetar, permaneceu tentando recuperar sua máquina. Não havia tempo para matá-lo. Apontei meus foguetes para as refinarias e as transformei num lindíssimo vulcão de horror. – Parabéns, Pierre! Parabéns! Mas, em campo, seu flanco direito estaria exposto. Seu primeiro ala saiu de posição, ficando a mais de cento e cinquenta metros do líder. Com todo o respeito, Major, uma formação em losango evitaria esse deslize. Pela enésima vez, aquela voz interrompia minha guerra. sargento Dandier, engenheira das divisões de suporte por nove anos até, sabe-se lá porque, trocar os fiordes de Darcob por uma ala no centro tecnológico do quinto exército em Ahtemir, mundo desértico onde servi no primeiro esquadrão Deptor por quinze anos. Se a vida fosse justa, era lá que eu estaria, ou então morto, mas uma junta de burocratas concluiu que meus conhecimentos seriam melhor aplicados dando instrução e consultoria, afinal, meu novo corpo não era mais compatível com o RT-3, e mechas inferiores seriam um desperdício para tanto know-how. Em três anos, dariam um jeito, mesmo sendo arriscado, desde que eu cooperasse, mas os três anos viraram cinco, depois seis, sete, até o fim do próximo projeto, até que os riscos do que implorei diminuíssem. Até eu me habituar à eletrizante vida daquele centro tecnológico. Meus dedos tocaram o capacete holovisor, pausando e “salvando” minha guerra. Ela podia esperar. Ergui o capacete, despluguei os sensores do macacão especial, desliguei o simulador da cabine 8, troquei de roupa e desci as escadas da plataforma com cuidado, seguindo até a parte baixa do galpão de análise. Próxima a um monitor, Ilana Dandier me aguardava com um sorriso menos convidativo que o usual, vestindo aquele macacão de brim que era quase uma segunda pele, de tão usado e surrado. – Sabe, Ilana? Às vezes é preciso aumentar o risco para que um combate fique vibrante. Principalmente com Nendrons representando a resistência. Na vida real, meu primeiro ala, aquele que eu escolhesse como primeiro ala, não cometeria esse erro. Se cometesse, eu mesmo trataria de matá-lo. – Claro, Major. Claro. Nosso equipamento não é capaz de emular o jeito que você, digo... Que o senhor treinava seus pilotos. Ainda não. Mas um novo pacote I.A.* está a caminho. Teremos o triplo de trabalho nos próximos meses, acredite. – Mas não foi para falar disso que você me interrompeu, certo? Seu sorriso se desfez, assumindo aquele tom prudente de quando a prosa tira a máscara antes de dar suas más notícias. – Não, Pierre. É aquele pessoal novo. Os caras que se juntaram à segurança interna e vinham andando pelos setores E e F. – O que têm eles?


– Estão aqui fazendo um monte de perguntas. Querem falar com você. – Ok. Já falaram com o major Wilkins, pelo menos? Ele é o chefe do setor. – Provavelmente. Não estive com Wilkins. Mas tiveram uma breve conversa com Belidorm. – E Belidorm? – Disse que é assunto confidencial. – Claro. Mas você está contando com nossa camaradagem para que deixe de ser confidencial. Mesmo que isso me leve a uma cela. Certo? Ela passou a mão pelos fios ondulados dos cabelos, reavivando um pouco o sorriso de antes, numa mescla de traquinice e preocupação. – Vou ver o que dá para fazer – completei. – Esse lugar tem um código de patentes; nós temos outro, de confiança. Mas aquele seu amigo do laboratório... o Dalton... ele vai ter que me vender a lítase pura, a mesma que vende para os nômades, não o lixo do instituto, e pelo preço antigo. Não aguento mais aquela água turva. Posso contar com você? Ela não teve a reação prevista. Desfez o fiapo de sorriso e nada disse, preocupada, expressando-se mais com os olhos que com as palavras. Num solavanco, a ficha caiu. – Ah! Peraí! Você não acha que... – Por que não, Pierre? Você conhece a política do Império com drogas ilícitas. Por que outro motivo estariam aqui? – Não sei. Mil motivos. Todos os motivos. Esse lugar inteiro é uma droga ilícita, e da pior qualidade. Por que trariam agentes de, sei lá, Galviran, atrás da nossa litase? Estão sentindo falta? Devem ser só novatos querendo mostrar empenho, achar pelo em ovo. Se estiverem mesmo atrás disso, tenha certeza: Pierre Lafontaine e seus protegidos não serão tocados. A não ser que esses idiotas queiram arrumar problema. – Tudo bem. Eles não podem com você, “o poderoso Lafontaine e seu Tigre Branco”, mas quem garante que querem a ponta da lança? Você é a isca, Pierre. Eles querem o fornecedor, descobrir de onde vem, como vem. Dalton é reincidente. Se o pegarem de novo, vão extrair o que puderem e do jeito que bem entenderem. E não vai ser só ele. Vai cair um monte de gente. – Em outras palavras, todo cuidado é pouco. Pode deixar, moça. Não ouvi nada, não vi nada, não sei de nada. Mas não esqueça de falar com o Dalton. Quero a pura. Onde eles estão? – Na antiga sala de auditoria. Tenha cuidado. – Relaxe. Deve ser outra coisa. Você devia experimentar um dia, misturada com cristal. Faz a gente ter uma visão mais clara da realidade.


– Imagino. – E não fale assim do Tigre Branco. Podia não parecer, mas ele tinha sentimentos. – Vai logo, vai. *** Do galpão de análise aos elevadores no andar térreo, percorre-se aproximadamente oitenta metros, passando por duas galerias e três corredores. Deles, só um tem esteira rolante, que, por sinal, estava quebrada. Se minhas mãos e pernas fossem tecido vivo como outrora, eu levaria menos de um minuto para fazer o trajeto e mal pensaria nele. Quando ganhei minhas próteses de titânio, implantadas na Terra-Sede, perdi velocidade nas caminhadas, mas ganhei um bocado nas corridas. Dispensei a esteira. Eu levaria um terço do tempo correndo. Só que sete anos sem reimplantação de fábrica num planeta próspero podem tornar essas próteses um estorvo para coisas simples como pular, agachar, subir e descer degraus, por exemplo. Tocar guitarra, o que era chato com elas novas, ficou quase impossível. Dançar, só no modo “olhe como finjo bem”. Andar mais de três minutos incomodava, e correr, só se muito necessário. As articuletas estavam descalibradas. Rangiam. Um movimento busco, eu podia cair. Claro que em sete anos você se acostuma com qualquer coisa, acha um ponto de equilíbrio, um jeito de encarar a merda com naturalidade. Era isso que eu detestava. O ponto de equilíbrio remoldando conceitos, olhares, desejos e expectativas. Ponto de desequilíbrio. Felizmente, eu ainda conseguia ter uma visão clara da vida. De vez em quando, pelo menos. A sala que eu procurava ficava no décimo quinto andar do prédio principal do complexo que formava nosso centro. O hall de espera dos elevadores no andar térreo era amplo, e meu setor, o D, contava com um número significativo de civis ligados às armas do Império. Partilhei um elevador de vista panorâmica com três deles, além de dois cabos pertencentes à equipe auxiliar, que aproveitavam para falar do colega que perdeu a mão numa prensa mal regulada, embora ainda pudesse senti-la. Se aquele centro tecnológico funcionasse como mandam as regras, importar material e expertise não seria problema; cada departamento definiria suas necessidades e receberia de acordo. Nosso rendimento se compararia ao dos centros do primeiro e segundo exércitos, talvez ao da matriz, na Terra-Sede. Mas colônias como Ahtemir têm regras complexas, regras que dependem de imbróglios lá fora e aqui dentro. As taxas das guildas mercantes, por exemplo. Variavam segundo a rota, segundo a carga, segundo os riscos de pirataria e sabe-se lá o que mais, incluindo o humor e a índole dos desgraçados. Portais dimensionais só eram possíveis a mais de 10 mil milhas da atmosfera, e, mesmo nessas condições, implicavam risco


e custo. Nossa guerra pelo nitrofosfolito contra Kendack traçava prioridades. “O que enviar”, “quando”, “para quem”. “Que projetos desenvolver primeiro”. O fluxo de mercadorias rumo à Ahtemir e nosso centro se moldava por esses fatores, fora, claro, a influência de cada oficial e cada setor junto ao estado-maior. Mesmo assim, minha reimplantação poderia teria ocorrido há dois ou três anos, se eu pelo menos aceitasse trabalhar outros cinco por aqui. Minha insistência num novo corpo biológico para voltar ao Deptor criou esse impasse. “Ano que vem”. “Talvez no próximo”. Em vez de reimplantar minhas partes falhas do modo ideal, fui dando um jeito de remontá-las ou consertá-las em Ahtemir, usando material disponível ou com um pedido a alguém que visitaria a Terra-Sede. O colega dos cabos não teria um terço disso. Para reeducar suas sinapses, ele entraria na fila de nosso hospital, que todo oficial achava um jeito de furar. Viajar para a Terra, só com licença permanente, e depois de um ano. Sua licença provisória seria cumprida em Ahtemir, onde, com sorte, ganharia uma prótese de baixa qualidade e se entupiria de remédios para fazer a mão “sumir”. Doses semanais de lítase fariam bem para ele. No fim, talvez fosse um sortudo; talvez eu devesse achar um jeito de ajudá-lo. Segui pensando nesse João Ninguém, ouvindo mais sobre ele, fitando o vidro do elevador e a frota estacionada na fachada do prédio. Logo acima, delineando o horizonte, desenhos pareciam ganhar vida na poeira. Atrás de mim, o papo mudava para jogos de tenobol; desenhos se remodelavam ao som de cada palavra. Provocações sobre quem ganhou na última semana... interpretadas por uma poeira dançante que parecia querer falar, se eu estivesse disposto a ouvi-la. Em meio àquelas formas em mutação, rostos insinuavam revelar-se; verdades sussurravam. Nisso, alguém tocou meu ombro, perguntando-me se estava bem. Era um dos militares, cujo diálogo dera uma pausa. Dois dos civis já haviam tomado seus andares. Só um permanecia conosco. Surpreso, respondi que sim, que estava bem. Voltei meus olhos para o horizonte e vi que não havia mais desenhos na poeira. Só o deserto. Pedi o nome do sujeito que perdeu a mão, mas não havia caneta. Memorizei-o. Chegando ao décimo quinto, segui por corredores rumo à sala procurada e vi que a coisa era séria. Homens da unidade policial pipocavam ao longo do trajeto, onde civis e militares também se faziam notar, conversando em pequenos grupos. Num desses grupos, o sargento Okwongo e um casal em trajes escuros me viram, pararam de dialogar e me cumprimentaram. Okwongo, protocolar. A mulher, séria, com uma daquelas pranchas gráficas digitais nas mãos e óculos com lentes finas delineando o rosto sem auxílio de armações. Seu parceiro me abordou com um sorriso. Os três se aproximaram.


– Major Lafontaine, uma honra – disse o parceiro, apertando minha mão. – Estávamos a sua espera. Gostaríamos que nos acompanhasse à antiga auditoria. – Major – disse a moça, empertigando-se, apertando minha mão e passando a prancha para o outro braço. – Major – repetiu Okwongo, prestando continência, no que respondi com um aceno. – Bom vê-lo. – ele completou, antes de fitar seus dois colegas. – Qualquer coisa, estou no quinto andar. Foi um prazer. – e se retirou pelo mesmo caminho que tracei. Os outros dois não eram de Ahtemir, não eram do exército, nem das forças de segurança. Vinham de Galviran, terceira colônia imperial, e eram agentes da PPZA, polícia secreta apoloniana. Tinham chegado há duas semanas num grupo de cinco, com um punhado oficiais e especialistas. O homem era Ternu Obstin, ou 185, seu código de agente. Usava base no rosto e nas mãos para suavizar o tom alaranjado da pele, comum entre os naturais de Marte II. Tinha ombros largos, um e oitenta de altura e uma disposição que me fez temê-lo, porque me fazia lembrar de mim em outros tempos. Havia rigor em sua postura. Disciplina. Um corpo pronto para responder do modo necessário. Com Obstin, vinha a agente 273, ou Juljana Waltz, um e setenta, pele rosada, cabelos meio rubros. Não fazia questão de sorrir, o que para mim era uma bênção. Disciplinada no andar, tinha o rigor do colega, mas não o amor pela porrada que emanava nos gestos dele. Juljana devia gostar de golpes discretos, dos que matam uma luta de primeira. Troquei palavras com “185” no trajeto que restava até a antiga sala de auditoria. Lá entrando, vi que outros agentes me esperavam em trajes semelhantes, além de dois oficiais – um coronel e um capitão – que me ofereceram café enquanto uma mesa de fórmica era deslocada do canto do recinto para o centro. Após cumprimentos e formalidades, Ternu, Juljana, outro agente, o coronel e eu nos instalamos ao redor da mesa. O capitão e os dois agentes restantes saíram pela mesma porta que entrei. – Uau! Tudo para mim? – exclamei. – E olha que não é nem meu aniversário, hein? – Para ver como somos zelosos – completou Ternu – E o café? Bom? – Maravilhoso. Pena que aqui é um luxo. Em Ahtemir, quem gosta de café tem que aprender a beber chá de rimônia. A não ser que se queira gastar uma baba comprando grãos nos jardins de Orbilen. – Estou ciente – ele disse. – O Império tem projetos para um horto perto de Portsmith, mas a guerra... Se eles soubessem como ganhariam se juntando a nós... – Pois é. Nendrons cultivam o sofrimento – completei. – Veem sentido nisso. Por isso... Kendack. Ternu riu, deu uma olhada para o outro agente, para o coronel, Juljana acomodou sua prancha sobre a mesa e Ternu seguiu com as apresentações.


– Aqui a meu lado, o agente Alberto Comolini e este é o coronel Vlad Murmissen, assuntos especiais. – Prazer em conhecê-lo, Major – disse o coronel, no que Comolini emendou com um “igualmente”, seguido de “o prazer é todo meu” de minha parte. Ao contrário da moça e de Ternu, Comolini não tinha desenvoltura para agente de campo, tampouco investigador. Especialista, sim, mas em que? E o coronel? Assuntos especiais? De onde? Um talismã para garantir minha cooperação, isso sim. Sobrepor minhas divisas. Ternu e Juljana deviam ser major e capitão, ou capitão e tenente. Fiquei tentando adivinhar. Juljana, de suas lentes, também me observava. Fitou sua prancha digital e retornou o olhar para mim, tomando a palavra. – Major Pierre Lafontaine, 46 anos, natural da Terra-Sede, segundo de três irmãos, solteiro, alistou-se na academia de pilotos de Alawede em 285, ano imperial. Confere? – Claro – respondi, um pouco embaraçado, sem saber o que ela queria com “confere”, já que devia ter acesso a minha ficha. Ela prosseguiu. – Quinze anos no primeiro esquadrão. Quatro como líder de grupamento e três como oficial comandante. Pilotou a última versão do RT-2 por dois anos e unidades RT-3 outros dez. Teve como veículo principal o Deptor 303-80, conhecido como “Tigre Branco”, abatido na ofensiva de Zarzov com dezoito Deptors do primeiro esquadrão e vinte e cinco RT-2 do segundo. – Um erro de planejamento que vocês jogaram nas minhas costas. Perdi meu tigre e 80% do meu corpo. Vocês me fizeram assinar papéis. Me transformaram numa máquina! – Investigações concluíram que, além do equívoco mencionado, seu nome esteve envolvido em dezoito operações irregulares entre 118 e 124, ano de Ahtemir, incluindo incursões a vilas, caravanas nômades e assentamentos Nendrons fora da área vermelha, em alguns casos listados como alvo neutro ou aliado. Oito passagens pela corte marcial, quatro por insubordinação. Cinco suspen... – Com todo o respeito, senhorita, duvido que esteja a par dos rumos que a guerra tomou neste planeta. Talvez tenha os dados, talvez tenha os números, mas se estivesse aqui lutando em vez de viajar pela galáxia atrás de subversivos, saberia que o coronel Wakalassi fez o que pôde em nome do Novo Império, cujo interesse pelo que se passa nessa parte do Multiverso é, no mínimo, dúbio, para não dizer coisa pior. Murmissen intercedeu. Fui longe demais. De novo. Que diabos eles queriam? – Major. Acalme-se. Desconsiderarei seu último comentário, tudo bem? Estamos cientes de seus esforços, de suas cruzes de bravura e da brilhante carreira que trilhou. Brilhante e controversa. Sabemos da coragem que inspira entre os jovens, dos aliados e


inimigos que fez, muitos em postos-chave, alguns no estado-maior. Só que hoje, Major, os inimigos estão mais numerosos, inimigos que adorariam depenar os últimos resquícios do seu nome. Não queremos isso. Estamos do seu lado, não contra você. Peço que coopere. Tudo bem? Respirei, segurei a raiva, procurei esquecer as novecentas vezes que me disseram qualquer coisa parecida e ordenei as ideias para emiti-las adequadamente. – Cooperarei, senhor. Mas peço que, sem delongas, me digam o que desejam saber. Por que me chamaram aqui? – Acalme-se, Major. Tudo a seu tempo. E tempo é o que mais temos. *** Os minutos subsequentes à intromissão do coronel começaram com perguntas corriqueiras, aparentemente despretensiosas, com alternância entre os interrogadores. Ora Obstin, ora Waltz, ora Murmissen e até Comolini tomava as rédeas da conversa. E era isso que parecia. Uma conversa. Gradualmente, as perguntas se aprofundaram, a maioria focada na rotina de meu setor, projetos em andamento e subordinados. Fiz meu papel. Retive dados, atraindo o mínimo de suspeita, mantendo em mente o alerta de Ilana sobre a rota da lítase, assunto do qual poderiam ou não estar cientes, porque, do outro lado, nesse pôquer de quatro contra um, meus adversários também escondiam cartas. A cada três minutos, Murmissen relançava a carta da cooperação, mas foi Obstin quem quis trocar peças, ou apostar alto, dependendo da referência. Àquela altura, boa parte das perguntas não dizia respeito a mim, e sim a colegas de setor, no que Ternu deu seu cheque – ou blefe – para abrir nosso jogo. – Bom, Major, chegando agora ao ponto que queria – ninguém mais chamava ninguém de “senhor” àquela altura – é importante que entenda porque estamos aqui. Sabemos que delitos, pequenos e grandes, são acobertados neste lugar. Muitos. Sabemos que contam com a conivência de oficiais superiores, o que talvez justifique suas reticências em revelar dados relevantes. Para nós, Major, esses crimes, que devem ocorrer há muito tempo nesse complexo, são menos importantes do que imagina. Extravio, contrabando, extorsão, drogas, pequenos crimes de guerra, cometidos na surdina, tudo tem seu lugar em nossas investigações, mas por trás desse emaranhado há uma coisa maior, uma coisa que define nossa chegada e, de acordo com nossos dados e suas respostas, está longe de incluir seu nome. Uma coisa sobre a qual pode desconfiar, mas decerto não tem muita noção. Fale-me, Ternu. Banhe-me com seus segredos. – Análises de nossas frentes de combate revelam um aumento, gradual e considerável, na capacidade inimiga de antecipar nossas ações nos teatros mais importantes desta guerra,


rendendo um prejuízo colossal em vidas, tempo e recursos. Além disso, projetos como o Tonaron-IV, secreto e em fase de testes, já circulam pelos centros de informação da resistência. Casual? Um olhar desatento pode associar tudo a meia dúzia de naves capturadas na hora errada, a um punhado de hackers e de desertores. Não, Major. As leis dos grandes números provam que esses fenômenos, quando ficam sistemáticos, não podem mais ser tratados como exceção. – Em outras palavras, vocês procuram espiões – completei. Juljana libertou um sorriso breve. Mordaz. Preocupante. – Sim, Major – confirmou Ternu. – Caçamos espiões. Uma grande rede deles. É por isso que estamos aqui. Nosso parceiro, o coronel Murmissen, é um membro das divisões de contraespionagem, assunto mais do que especial, não é mesmo? – Especialíssimo – repliquei. – Mas minhas respostas já certificaram vocês de que não faço parte dessa rede, certo? – Sabíamos que não fazia. Mas todo cuidado é pouco – admitiu Murmissen. – Sendo assim, acho que já cumpri meu papel – conclui. – A não ser que tenham mais alguma pergunta. Têm? Juljana se encarregou de responder. – Não, Sr. Lafontane. Por ora, não temos perguntas. Se quiser deixar essa sala com a consciência tranquila, nada vai impedi-lo, e, mesmo que achemos um jeito de forçá-lo, nada garante que cooperará. Você é um homem treinado, sabe despistar interrogadores. É impulsivo, indolente, desconfiado, apegado à vida que construiu aqui em sete anos, apesar das reclamações. Também é fraco e manipulável, mas inteligente o bastante para a Resistência utilizar. – “Utilizar”? Pensei terem dito que eu não era um espião. – Não é, Major. Não de forma consciente. – Seja direta. Ela foi. Pressionou um botão na borda daquela prancha, cujas letras e imagens, então restritas à bidimensionalidade de sua superfície, projetaram-se para fora como um holograma pairando acima do aparelho, holograma que, após novo apertar de botões, ganhou os contornos de um rosto jovem, feminino, de cabelos ondulados. – Reconhece? – perguntou-me Juljana. – Sargento Dandier, imagino. – Ilana Yesniva Dandier, engenheira aeronáutica, então com 25 anos, quando servia em Darcob nas divisões de suporte técnico e logístico. Hoje tem 36. Trabalha no setor de sistemas automatizados desse centro, o mesmo onde você trabalha. Vocês atuam juntos, não? Há quanto tempo?


– Se pensam que ela é uma espiã, por que não a trazem aqui? – Porque arriscaria o elo com os outros membros da rede – respondeu Ternu. – Queremos todos. Queremos saber onde começa, onde acaba... – Por isso, precisam de mim – admiti. – Que bom que estamos nos entendendo, Major. Balela. Até onde podiam provar? Até onde não emitiam um engodo para me fazer desbaratar a rota da lítase como Ilana temia, colocando-me contra ela? Palhaços! – E se eu disser “não”? – cogitei. – Se disser “não”, estará obstruindo um inquérito classe A – disse Murmissen – Mas, como falei, estamos do seu lado. Relutância em delatar companheiros é um ato compreensível para alguém de sua índole, o que será levado em conta, desde que não interfira em nosso trabalho. Infelizmente, nossas amizades nem sempre são verdadeiras, não é? Devia pensar nisso antes de dar sua resposta. Pensar em cada gota de suor dedicada, sem que percebesse, a sabotar nossos melhores projetos, aniquilar nossos melhores homens. Não acha que isso merece uma investigação? Não acha que traidores merecem ser expostos e punidos? Ilana não faria isso. Era um truque. Ou então, só estavam enganados. – Ela não é espiã – insisti. – Um ponto forte da rede opera em seu setor – afirmou Ternu. – Há 80% de chances de ser ela. Sendo ou não, é importante que nos ajude a saber. Você é o melhor e mais confiável homem do setor D para isso. Sem sua participação, podemos seguir em frente, mas precisaremos achar outra maneira de “entrar”, talvez menos eficaz. Se Dandier é inocente como alega, não quer ao menos protegê-la? Não quer descobrir quem o está usando? – Vocês estão me usando. Mas e se... Mas e se, por acaso, eu dissesse “sim”? O que viria depois? – Que bom que perguntou – disse Juljana. – Se dissesse “sim”, a alta cúpula do Império se comprometeria a realizar a intervenção Modorun em seu corpo, procedimento que transferirá sua cabeça a um novo corpo biológico, como tantas vezes requisitou no passado. E isso num prazo máximo de dois anos. Se não houver complicações – era uma operação arriscada, eu podia morrer – voltará a seu antigo esquadrão num novo Deptor em menos de quatro anos, num corpo jovem, perdoado de todos os processos envolvendo seu nome. Tudo garantido por este documento com a assinatura e o carimbo do General Dewerin, chefe de informações do estado-maior, e do General Rineaud, comandante do quinto exército. – Ela me mostrou uma via do documento impressa em folha de celulose timbrada, enquanto um texto, o mesmo (supus), flutuava no holograma junto ao selo do Império acima da prancha gráfica. – Fique com esta via – Ela apontou para o papel. – Leia-a com atenção. Confira os códigos para


checar se é autêntica. Se oficiais lá em cima o estão impedindo de deixar este lugar... de voltar para o seu lugar, não conseguirão passar por essa declaração,, Sr. Lafontaine. Isso eu asseguro. Os quatro, incluindo o calado Comolini, me dispararam olhares condescendentes. – Como eu disse, Major, estamos do seu lado. E você? De que lado está? – inquiriu-me o coronel. Respirei fundo, li o documento, reli... Respirei fundo. – Qual o papel de Belidorm? – indaguei. – Por que eu? Por que não Wilkins? Como podem ter certeza de que Ilana... Eles tinham. Tinham muitas certezas. “Oitenta por cento”, dissera Ternu. Cinco anos investigando e torturando suspeitos para chegar a Ahtemir e meu setor. Uma rede de espiões... Uma rede me usando e me mantendo fora do jogo... Era isso? O documento parecia autêntico. Seria fácil averiguar. Mas meu pessoal? Não! Havia algo errado. Ilana me alertara. Juljana me chamara de fraco. Manipulável. E Belidorm? Outra marionete? “Um jogador menor”, me disseram. Logo eu saberia mais, caso topasse colaborar. Foram me explicando. Como eu agiria, como teria acesso a dados sigilosos, como seriam as três fases da operação que me faria, gradativamente, um espião entre espiões. E a lítase? Não sabiam que eu inalava? Se descobrissem, não seria seguro eu estar incorporado? Receber um perdão? Vista grossa? Como ficariam minhas doses? Era fácil dizer “não”, mesmo com os riscos. Manter-me seguro. Afetos e ilusão intocados. Eu também podia dizer sim e entrar no jogo... perceber onde a toca do coelho ia acabar. Em algum momento, eu saberia, perceberia quem estava, de fato, me manipulando. O documento parecia legítimo. Voltar a um Deptor em quatro anos num corpo jovem... sem adiamentos sem sentido... Meu “sim” nem precisava ser final. Era provisório, pois o “não” fechava o jogo, me impedindo de saber. O “sim” só abriria a toca. Traidor. Não. Traidor. Espião entre espiões. Ilana não merecia. Eu precisava saber... voltar ao primeiro esquadrão, saber se estava sendo usado e por quem... não podia entregar Dalton... Minha lítase. Não! – Podem me dar um tempo para pensar? – Claro, Major. Pense. Fique à vontade. É uma oportunidade sem precedentes. Em dois ou três dias, o encontraremos e ouviremos sua resposta. Sei que tomará a melhor decisão. Assim, me despedi dos quatro, daquela sala e talvez de uma vida à qual me apeguei por sete longos anos. Ilana viria cheia de perguntas e medos pelo colega. O que dizer? “Confidencial”? Inventar uma história? E se depois ela descobrisse? E se desconfiasse? E eu dissesse “sim”?


Sozinho na alma, ansioso, temeroso, precisando esmaecer, segui por corredores e elevadores até um certo galpão de análise. Uma cabine me esperava, um simulador, uma guerra mais lógica que qualquer intriga entre espiões. Vesti meu macacão, pus o capacete e assumi minha verdadeira identidade. Major Pierre Lafontaine, líder do primeiro esquadrão e piloto do Tigre Branco, o “mecha” mais mortífero que aquela guerra tinha visto. Assim se conta. Essa é uma história da Guerra de Muitos Mundos. Glossário dos termos utilizados no conto: *ornitópteros – veículo voador que obtém propulsão e sustentação por intermédio do movimento alternativo de suas asas, como ocorre com aves, morcegos e insetos voadores. * robô-mecha ou mecha – pronuncia-se “meka”. É um robô gigante controlado por um piloto ou controlador, projetado para combate, muito presente em obras de ficção científica e animes. O RT-3 é um mecha capaz de se transformar numa nave de caça, chamada “interceptador”. *Nendrons – criaturas bípedes e inteligentes, de característica humanoide, que são parte das espécies nativas do planeta Ahtemir. *I.A. - sigla para Inteligência Artificial.



Arlen Of The Sword By John Ostrader She was a hero. She was a whore. She was a martyr. She was a terrorist. She was a leader. She was a pawn. It all depends on who is telling the story. To the balladeers and mythweavers of the Resistance of Kendack, she was Arlen of the Sword, who rose up on the planet Jerom when things seemed darkest and with her valor lit a beacon of hope that inspired the people to throw off the attackers of the New Apolonian Empire and send them reeling back into the Dimensional Interface. In the New Apolonian Empire, they tell of Arlen the prostitute who slept with the whole cadre of officers of the army on Jerom – fools all – and learned their secrets. These she then sold to the generals of the Resistance who used it to trap and defeat the Apolonians at the Rout at Hagmaner. The Resistance had that Arlen led the armies herself; the Apolonians said that she was sleeping off a drunken debauch and was nowhere near the Hagmaner Defile when the battle took place. The songs began and the stories spread on both sides of the Interface. Her fame or infamy spread through clusters of worlds. The She-Sword was seen or reported at scores of battles. Arlen’s legend grew. She fought in a silver battlesuit without a helmet so that her long red hair could be seen by all who followed her into battle. Her troops adored her; the enemy troops hated and feared her. The people of the Resistance sang of the Passion of Arlen, of her reckless courage. She defied her own generals and led from the front. Of course she had to die. Arlen lingered too long at the planet D’Nybo. The Imperial spies brought word to their masters of her presence. The Apolonian generals mustered several fleets and ringed the bluegreen world and said if Arlen did not surrender herself to them, they would incinerate D’Nybo and all who stood upon it. That’s how determined they were to kill Arlen. That’s how dangerous they thought she was. People later said that Arlen could not allow it; all those deaths for her? (They did not mention all the deaths that occurred in previous battles.) She surrendered herself and the Apolonians made a short and showy trial. They wanted her death to be gruesome and to break her so they burned her alive. They broadcasted so those on both sides could see it. It was quite a spectacle.


For a while, she still defied her enemies as the flames leapt higher but then her hair caught fire and the tongues of flame licked her skin and, by the end, Arlen cried out as she was consumed. What her words were could not be understood over the roar of the inferno. Her skin melted and turned to ash; the Imperial generals were satisfied they had killed the whore and ended her threat. But they had not. As a martyr, Arlen was stronger than ever. As a symbol, she continued to defy the Apolonians and her soldiers fought ever harder in her memory. Being dead, she could never die again. The memory of her inspired those who loved her. Every now and then, the question still rises – who was Arlen really? The compassionate warrior, the besotted whore – which story was true? I know the answer. All the stories are true and none of them. I know because I am – I was – Arlen, the Sword of Jerom. All I ever wanted to do was to protect my village and save my people, my friends and family. I was willing to do whatever it took. I infiltrated the enemy camp playing a prostitute; the Apolonians had little enough respect for women and, thus, in my guise, I was invisible. And they were all fools. I learned their plans and took them to the leaders of the Resistance; I could show them where the enemy would be and when. At first, the leadership gave me little credence, for they had fools as well. One of their generals, however, was a woman, Evangela Stodder, and she listened. She heeded my conviction and my passion and led her forces on the attack. I came with them for I wanted those who had used me to know it was I who was the author of their defeat. The other Resistance generals followed later when they saw that victory was certain. I loved Evangela. She was my friend and my mentor; she was the one who was the compassionate warrior, not I.. I grieved her deeply when she died in a later battle. A cunning weasel, Horace Denalon, made me into the symbol I became. He was a cunning man, adept at selling things to people. Not a warrior, not a general, and yet within his field deenalon was a genius of tactics and strategy. He forged the idea of me as Arlen of the Sword. He imbued me with Evangela’s qualities and dressed me in silver and red, her colors. He found doubles of me and dressed them also in Evangela’s colors so that his Arlen seemed to appear at every battle. It was one of those doubles who was caught, who died, on D’Nybo. Beah was her first name; I never knew her second. After her trial, I secreted myself in a trawler and went to D’Nybo. I had wanted to reveal myself during her trial but Denalon forbade it; it would not save the girl and he could make better use of her dead. I had already seen too much death; too many warriors had died believing in me or fighting against me. The idea of me. Denalon’s idea of me. So I stole away. I don’t even know


what my intention was – to rescue the girl, to proclaim myself, to die with her? What I do know is that I was close enough as the flames consumed Beah to hear her screams. She was shouting out her true name at the end until agony claimed her and she died and I did nothing. I crept away afterwards, shattered, weeping. My nerve failed me. I cropped my hair short and dyed it black and fled as far from the war as I could. Arlen of the Sword was dead; Arlen of the Sword lived on. I saw Denalon’s fine touch in all that followed; one of the other Arlens would show up at different battles, as though Arlen’s spirit fought on. No matter how often Arlen died; she lived. I personally believe that it was Denalon who leaked word to the Apolonians that Arlen was on D’Nybo, who choreographed her capture and death. I was always difficult; Denalon always claimed that his idea of me was more important than my reality. I guess he was right. Even now I look at you and see the doubt in your eyes. Am I telling you the truth? Am I mad? What you believe in up to you. All I can tell you is that I was once Arlen of the Sword and I was never Arlen of the Sword. Everything else is but a story.


Arlen da Espada Por John Ostrader Ela foi uma heroína. Uma prostituta. Um mártir. Uma terrorista. Uma líder. Ela foi um peão. Tudo depende de quem estiver contando sua história. Para os bardos e tecedores de mitos da Resistência de Kendack, ela era Arlen da Espada, que surgiu no planeta Jerom quando tudo parecia mais sombrio e, com seu valor, lançou uma farol de esperança que inspirou o povo a expulsar os invasores do Novo Império Apoloniano e enviá-los de volta pela Interface Dimensional. No Novo Império Apoloniano, contavam que Arlen era uma prostituta que dormiu com um regimento inteiro de oficiais do exército em Jerom — tolos todos — e descobriu seus segredos, que ela vendeu aos generais da Resistência, os mesmos que usaram essas informações para montar uma armadilha e vencer os Apolonianos em Hagmaner. A Resistência afirmava que a própria Arlen liderou os exércitos. Os Apolonianos diziam que ela estava ocupada numa orgia, de sexo e bebedeira, e não esteve nem perto do Vale de Hagmaner quando a batalha aconteceu. As canções começaram e as histórias espelhavam-se por ambos os lados da Interface. A fama ou infâmia dela se estendia por vários mundos. A Espadachim era vista ou havia relatos sobre ela em muitas batalhas. A lenda de Arlen crescia. Ela lutava em um traje de batalha prateado, sem um elmo, para que seus longos cabelos ruivos pudessem ser vistos por todos que a seguissemm em combate. Suas tropas a adoravam. Os exércitos inimigos a odiavam e temiam. As pessoa da Resistência cantavam sobre a Paixão de Arlen e sobre sua coragem que não conhecia prudência. Ela desafiava seus próprios generais e os afastava do front. É claro que ela tinha que morrer. Arlen demorou-se demais no planeta D’Nybo. Os espiões do Império avisaram a seus mestres sobre a presença dela. Os generais Apolonianos reuniram diversas frotas de naves espaciais, cercaram o planeta verde azulado e avisaram qeu se Arlen não se redessem, incinerariam D’Nybo e todos que estivessem nele. Isso mostra o quão determinado estavam para matar Arlen e o quão perigosa eles a consideravam. Mais tarde, as pessoas diriam que Arlen não poderia permitir isso: todas aquelas mortes por causa dela? (eles não mencionavam todas as mortes que ocorreram nas batalhas anteriores). Ela se entregou e os Apolonianos realizaram um julgamento rápido e espalhafatoso. Eles desejavam que a morte dela fosse horrível e, para dobrar sua vontade,


queimaram-na viva. Transmitiram a execução dela para que todos, de ambos os lados, pudessem ver. Foi realmente um espetáculo. Por um momento, ela continuou a desafiar seus inimigos enquanto as chamas cresciam, mas, quando seu cabelo pegou fogo e as labaredas acariciaram sua ele, nof im, Arlen gritou enquanto era consumida. Quais foram exatamente suas palavras, não se pôde saber diante do rugido daquele Inferno. Sua pele derreteu e tornou-se cinza. Os generais do Império estava satisfeitos: haviam matado a prostituta e terminado com a ameaça. Eles estavam enganados. Como um mártir, Arlen era mais forte que nunca. Como um símbolo, continuava a desafiar os Apolonianos e os soldados dela lutavam ainda com mais vigor em sua memória. Estando morta, ela nunca poderia morrer novamente. Sua memória inspirava aqueles que a amavam. Ocasionalmente, a pergunta reaparece – quem realmente era Arlen? A guerreira cheia de compaixão, a prostituta bêbada – qual história era a verdadeira? Eu sei a resposta. Todas as histórias são verdadeiras e nenhuma delas é. Eu sei porque eu sou – eu fui – Arlen, a Espada de Jerom. Tudo o que eu sempre quis foi proteger minha vila e salvar meu povo, meus amigos e minha família. Estava disposta a fazer o que fosse necessário. Eu me infiltrei no campo inimigo, fingindo ser uma prostituta. Os Apolonianos tinha pouco respeito por mulheres, portanto, em meu disfarce, eu era invisível. E eles todos eram tolos. Eu descobri os planos deles e levei informação para os líderes da Resistência. Eu podia mostrar a eles onde e quando o inimigo estaria. No começo, não me deram credibilidade, pois eram tolos também. Um dos generais, todavia, era uma mulher, Evangela Stodder, e ela escutou. Ela deu atenção a minha convicção e paixão e liderou suas forças no ataque. Eu fui com eles pois queria que os Apolonianos soubessem que, aquela que eles tinham usado, era a responsável pela derrota deles. Os outros generais da Resistência vieram depois, quando viram que a vitória era certa. Eu amava Evangela. Ela era minha amiga e mentora. Era a guerreira cheia de compaixão, não eu... Eu sofri em luto profundo por ela quando morreu em uma batalha posterior. Um trapaceiro espertalhão, Horace Denalon, fez de mim o símbolo que eu me tornei. Ele era uma homem astuto, adepto de vender coisas as pessoas. Não era um guerreiro, nem um general, e, contudo, dentro de seu campo de ação, Denalon era um gênio em tática e estratégia. Ele forjou a ideia de mim como Arlen da Espada. Ele me imbuiu com as qualidades de Evangela e vestiu-me em vermelho e prata, as cores dela. Ele encontrou sósias de mim e vestiu-as também na cores de Evangela para que a Arlen que ele criara parecesse estar em todas as batalhas.


Foi um destes sósias que foi capturada, que morreu em D’Nybo. Beah era seu primeiro nome. Nunca soube qual era o segundo. Depois do julgamento, eu me escondi num cargueiro e fui até D’Nybo. Eu pretendia revelar-me durante o julgamento mas Denalon proibiu. Não salvaria a garota e ela serviria melhor para ele morta. Eu já tinha visto mortes demais. Tantos guerreiros haviam morrido acreditando em mim ou lutando contra mim. A ideia de mim. A ideia de mim que Denalon criou. Então, parti. Eu nem mesmo sabia qual era minha intenção – resgatar a garota, revelar-me ou morrer com ela? O que sei é que eu estive perto o bastante, enquanto as chamas consumiam Beah, para ouvir seus gritos. Ela gritou seu verdadeiro nome no fim, até que a agonia a levou, e ela morreu. Eu não fiz nada. E me arrastei para longe logo depois, o coração despedaçado, chorando. Minha coragem havia me traído. Eu cortei meu cabelo bem curto, tingi-o de preto e fugi para tão longe da guerra quanto pude. Arlen da Espada estava morta. Arlen da Espada continuava a viver. Eu vi o sutil toque de Denalon no que se seguiu. Uma das outras Arlens apareceria em diferentes batalhas, como se o espírito de Arlen continuasse a lutar. Não importava quantas vezes Arlen morresse. Ela continuava viva. Pessoalmente acredito que foi Denalon quem deixou escapar a informação para os Apolonianos de que Arlen estava em D’Nybo, e coreografou a captura e morte dela. Sempre fui uma pessoa difícil. Denalon sempre afirmou que sua idéia de mim era mais importante que meu eu real. Eu acho que ele estava certo. Mesmo agora, olho para você e vejo a dúvida em seus olhos. Estou dizendo a verdade? Estou louca? Acreditar ou não é algo que cabe apenas a você decidir. Tudo que posso dizer é que, uma vez, eu fui Arlen da Espada e eu nunca fui Arlen da Espada. Todo o resto é nada mais que uma história.


Fire in the Darkness Por Majerle Lister Solitude Miles woke up. Silence surrounded him. A wave of relief sweep over him yet he did not know why. He stared at the cosmic ceiling above him. All but his sense of sight were paralyzed and he gazed at the stars above him. He could make out clusters of stars but he could recognize them. He was so little and irrelevant yet he was aware of something inside of him. A tiny wave crashed against his outer exterior hoping to escape. His heart began to race yet he stayed in place witnessing the spectacle above him. Then an object flew across his makeshift ceiling. A ship, a battle cruiser with steel metal plates that could stop a rocket fired at 100 feet capable of eliminating entire communities with its multiple mini gun system enhanced to pierce the alien armor. It came back to him in flutters of emotions and memories; anger, fear, and the tiny wave that was there with his awakening. He felt himself coming back to his existence. Miles remembered his occupation. He was a soldier on the brink of an invasion. He felt the grass beneath him and he began to move his hands to grip onto sensations hoping to pull himself closer to his situation. He felt the cool air on his left side but turned right to find himself laying a few meters from wreckage. Parts of the cruiser littered the field he was currently laying in. Bodies and debris lay everywhere. The screams of the engines radiated from the crash site. Flames licked at the sky; they were dancing for a crippled battle squadron of fresh young men who never got a chance to fight. The scenery of the sky changed. Blue plasma bolts cut across the sky leaving a white hot trail. They were hurled at the battle cruisers who were loaded with young men hoping to touch down upon soil safely. The battle cruisers zigzagged like drunken fallen angels as they maneuvered away from the dangerous volleys. The hissing from the plasma could be heard if one filter out the other horrors of war and death. He pulled himself up. Pain erupted in his body but he knew nothing was damaged to keep him moving. He found a rifle next to a young cadet he went to military training with, Riley. The surprise on his face reminded Miles of how fast the ship went down. His body was contorted in an ungodly position and a metal spike protruded from his neck. “I’m sorry riley”, he thought. Anger rose in him as he tore himself from the bloody visage. Miles turned away and quickly scanned for survivors. He crouched low to creep around hoping not to draw attention to his lanky body. “Blair, Edgar, Qwarr, Melissa, Sankron, Bernard, Alexis. None of them survived”, Miles thought. Friends he had trained with now lay among the field. No goodbyes and instantaneous.


A space that occupied his mind now remained empty and cold. A void was left. Miles felt something he had not felt in a while. A disconnect from the world. The world began to spin and his thoughts crashed against this feeling. Trees blurred into flames and sky became land. He knelt lower to the ground to recover himself. His vision regained balanced and the world stopped spinning. He caught his breath and slowed it down. He needed his body to function properly or he was going to end up as a lifeless corpse. Miles forced himself to focus on his original orders. “Duties over feelings” he thought. He was unsure of the location and the amount of enemies in the area and he didn’t want to draw any gunfire. He knelt on one knee feeling for more ammunition that lay on the ground while never taking his eyes off the scenery. In every direction woodland surrounded him but to the west of the field was a cliff that cut knifed through the woods. The plasma bolts were coming from the west while the ships flew towards them. “Simple logic”, he thought. He remembered what his commander jokingly said before the liftoff, “If you get lost, follow the plasma source there’s a good chance your sorry ass was meant to there”. He scanned the field, one last time, for any survivors hoping to catch sight of one. No one had survived. Miles reminded himself of the reality he was living in and the ever encroaching danger. His position in the world came back. The light from the wreckage casted shadows that danced in every direction but the adrenaline in Miles body has kicked in and evolution started to work its way in. The training began to move him fluidly and his senses heightened. He needed to find a medic for painkillers. He found the medic laying facedown with his leg still burning. Miles removed the medi-pack and found the syringes. He injected and prepared for his trek westward. The tiny wave that crashed inside of him earlier to escape now propelled him to move quickly. It flooded his mind with rage and anger. He remembered his purpose for being in a field full of debris and dead comrades. His body reacted to reason why he was on a different planet hoping to defeat the new enemy, revenge. He felt the emotion mixed with his training and adrenaline. He moved quickly into woods. *** Finally Part of Something Again Blood spurted from the alien’s chest as the bullet burst out of its back. The agony on its face did not end as it fell dead to ground. Miles took aim at another that ducked behind a wall. The aliens called themselves Kendacks. He does not mind about it: for him, Kendacks are aliens because he hated all them) but this no longer mattered to Miles. They all assume one


hostile form in his eyes, the enemy. He scanned the wall hoping to catch a glimpse of the other. He began to move, sticking to shadows and timing his movements to the surrounding noise of war. He heard battle cruisers crash and the hissing of plasma rifles and bolts. He had realized that he had crashed 5 kilometers east of his destination and the heavy fighting was nowhere near him but he could see the explosions. The New Apolonian Battle Troops were trained rigorously to deal with the new threat. Miles knew these aliens were just as human as he was but he could pull the trigger easier when he thought of them as alien. Miles reached the wall and crept slowly listening for any signs of the other but only heard battle sounds from the west. He crouched in the darkness; he knew he had to move. The wall looked to be a means to divide up the farm land. Miles looked upon the aliens face one more time. His sandy hair covered his face and the blood trailed down towards the crops. “No sympathy, you bastards started this”, He thought looking at the corpse. Miles ran with his rifle aimed at the woods before him. The road was too dangerous to travel on alone. He ran quietly but at a pace that would allow him to stop quickly if necessary. The explosions grew louder and the ground began to tremble. He was getting closer to the battle. He would need to regroup. This was an unknown planet, maps and data were very limited on this. The peaceful ties between the Kendacks{14} and New Apolonians allowed for information to flow freely. After the Kendacks blew themselves up trying to destroy the Dimensional Interface the data connections between both universes became severed. Peace was no longer an option and war spread. Some alien terrorist named Garen Ordonax blew himself out to strike first at the New Apolonians. The blast had killed many NAI soldiers and civilians. Miles felt the world close as he reflected on the subject while he ran through the woods. Anger broke through his stoic presence. “Stop, focus”, he reminded himself. He stopped. His lungs burned and his legs raged with pain. The painkillers were beginning to wear off. The woods were a standstill. Despite the chaos only a kilometer away he felt an odd sensation of calmness enter his mind. The pain dulled and faded away and the night air began to bite at his exposed arm. Something felt wrong. Miles learned to trust his gut and every instinct screamed for him to move. The hairs rose at attention but Miles was unsure if it was the chilled air or the instincts. He kneeled beside a tree beneath the canopy he listened and watched the surrounding area. Then he heard it, a low rumbling coming from his left, spot lights blasted through the thick the woods. Shadows came alive as the lights scanned the area; Miles ducked and watched the search party walk through the brush. They were most likely looking for him, a sweat bead rolled down his left cheek. Miles aimed his rifle at the first alien; his armor reflected the light with a blue dull glare. The first alien made sounds and signaled for the others to stop. Miles didn’t move. He did not want his movement to betray him. The front alien motioned with his hands for three others to


step forward from behind the convoy. The armor clanked as they marched forward, guns drawn awaiting orders. Miles looked through his sight directly at the leader’s chest. “Two rounds”. “Then aim for the closest, followed up by the third”, he thought. The weight of the trigger could be felt as he slightly added more pressure. He watched as the soldiers scanned. He was unsure of how hidden he was, he struggled as his body began to get weak from staying still for so long. The convoy was comprised of three other vehicles and he was not match for a single firefight. His sight never left the leaders chest. Then the leaders head exploded in a crimson mist and gun fire erupted. Thud! The leader went down headless. The other two reacted slowly and the chest of the nearest alien was pumped in by more gunfire while the third fired in any direction, frantically hoping to hit the ambushers. Miles opened up fire on the third, watching as his bullets find their place in the thigh, neck, and head. More soldiers exited the vehicles, each forming a defense for the cargo as bullets ricocheted around them. Miles found the source of the gunfire to the front of him and to the left. Based on the gun sounds, they were silenced MAC guns that were specifically used by NAI commandos. Miles had reconnected with his fellow soldiers. He crouched forward aiming at the five new enemies, he aimed his rifle and switched to automatic. He sprayed the enemies managing to wipe out two while the nicking the other three. Their blood painted the vehicles he stood by. The spotlights were shot out until one remained. They fired in his direction, sand and tree bark flew all around him as plasma rounds landed everywhere. The smell of burning organic matter rose with the smoke. Miles quickly ducked behind another tree, slapping in a fresh magazine. He heard one other soldier cry in pain and drop. “Good one more” he thought. “The drivers though, they had yet to exit the vehicles. At least ten other possible enemies”, he thought. He spun around the tree with his rifle aimed; the Kendack soldier was prepared with his weapon aimed at him already. Miles fired, maiming the soldier while the soldier’s head exploded into a fleshy mess. He was picked off by the sniper from the other side. Miles was now thirty feet and closing when the convoy was hit by battle cruiser mini guns. Each vehicle was torn to shreds as the rounds carved away, none would survive such an onslaught. The flames of vehicles lit up the surround area and Miles could see the commandos emerge from the edge of the woods. They were tall with heavy dark armor and green visors. Miles quickly turned his attention to his fellow soldiers, “Hello, my name is Miles Tangem. I am with the 402nd battalion”, he paused. “Or was with the 402nd battalion”, he thought as the image of the burning field came into mind. “We read you soldier, I am captain Largo Salis of the 23rd command squad”, a husky voice said from the leading the commando. His armor has a burn mark across the chest area


and his forearm gauntlet was missing. “I’m curious are you related to…never mind”, said Salis as he shook his head. Miles knew what he was referring to but decided not to answer the unasked questioned. The anger of such thoughts would only distract him. “We saw what happened to your battle cruiser, such a waste of potential. You are more than welcomed to join us as we head to the city”, Salis said. “This is Clarissa Errage, our sharpshooter. You may want to thank her for saving your skin”, Salis pointed to a commando reloading her sniper rifle. She gave thumbs up to signal her attention but returned to maintaining her weapon. Another commando quietly rose from the darkness on the other side. “That is Westin Qual. Demolition expert. Quiet until he is around things that go boom”, Salis chuckled. “We had one more but he lost his life in the firefight”, said Salis followed by a sigh. “Thank you sir, I am looking to give the enemies a fight”. “Fall in private” said Salis. “The Kendacks are defending Ultar. As of now, we need to take the city. We are a kilometer east. Hostiles are sweeping the country area for more downed battle cruisers and possible survivors”. Salis spoke to each soldier looking directly into each soldier’s visor even though he could not see their eyes. Miles felt the glare of the man’s eyes even though he could not see the captain’s eyes. A chill raced down his back, he knew he was in the presence of a battle harden fighter. “We must move quickly and quietly. Switch your comm-link to secure link 35E”. By habit Miles switched to the intra-link and begun his ritual of reloading weapons and injecting painkillers. The pain came back after the fighting died down and he knew he would need to sustain it if he were to keep up with the commandos. “I will lead, Clarissa will move on our six. Westin has tail. Miles stay in the middle. Move out”. With that, Clarissa and Westin moved into formation, they extensive training showed in their movements. Miles knew he was no longer part of regular command but of a specialized squadron. His battalion was dead but he felt part of something again. He felt reconnected and repurposed. Salis patted his back, “Welcome to Arlyte Squadron”. *** The city was in ruins. Plasma burn marks laced the walls and smoke lingered over fallen temples. The walls were riddled with bullets and vehicles lay as potential shields for more definite firefights. The skeletal remains of houses haunted the invading soldiers as they walked


through the once great city. Roofless buildings exposed any fly by to the horrors of mangled bodies and other casualties of war. The soldiers walked passed houses looking inside for enemies who had yet fled or decided to stay to inflict more damage. They were greeted with desolate homes with broken furniture and charred walls. They stood as monuments for the families and their happy memories that would not create for a long time. The bodies of enemies and fellow soldiers provided evidence to the consuming conflict that had just occurred. Little did any of the soldiers know but this was just the beginning of the all-out war that would lead to the struggle of victory and power in the name of peace. The sky was darkened by the black smoke and burning star fleets. Debris from the looming star fleets crashed onto the surface further adding to the chaos at hand. Among the soldiers was the Arlyte squadron with their new member. Miles found a spot to sit on a blown out piece of furniture that he interpreted as a couch; his arm was bleeding and he had not bandaged it. Lyle, the squadron medic, did not survive the landing and Miles was left to tend to his own wounds. Lyle Farin, was the missing member of the Arlyte squadron, the spot left open for Miles to fill. Miles was told he was gunned down by a plasma turret. Miles bandaged his arm while Clarissa watched from the second story of their post. He watched her through a hole that had been blown through the first story roof. She studied the horizon through her sniper rifle. To Miles’ right, Westin fumbled with the new explosives he had gathered from the supply drop. Miles watched as the man prepared the explosive like a kid preparing a firework. His smirk made him look boyish and his dark hair dangled in front of his eyes. A mysterious scar ran down his left cheek. This was the first time he had seen the man without his helmet and it reminded him of the humanity that existed under his armor. Miles smiled at the thought of Westin finding joy in such deadly weapons and retreated to his own actions. “Here, you are going to need this”, said Salis tossing him the bottle of alcohol. “Clean your wound, I would hate to see Clarissa amputate your arm due to infection”. Miles caught the bottle and looked at the captain to find an aged face looking back at him. White hair dangled from his head and a white five o’clock shadow was beginning to occur. His blue eyes looked weary and yet his movements expressed an undying youth. His thin lips parted, “Not what you expected”? “Ha, at this point in my life, I don’t know what to expect. Multi-dimensional travel didn’t exist a year ago and war is breaking out. I’m keeping my mind open” said Miles. “I understand”, replied the captain as he sat down. His armor clanked and his body remained rigid, a sign of a lifelong soldier. Miles applied the Styrofoam alcohol to his wound and wrapped his arm. He studied the room and its content. It seemed like it was abandoned long before the


war begun but reports said it was a very populated city. Very little sign of human life, by earth’s standard it was bare and minimalist. As Miles scanned the room to confirm his senses, he found a toy like object of some life form he had yet to encounter. The animal looked like a cross between an elephant and a large alligator and it caused a little fear in the man. “This is their version of a teddy bear I suppose”, he thought. “Crazy how similar they are to us”, Westin said breaking the silence. “It almost seems irresponsible to attack them. Intergalactic cousins in a sense”, he said as if reading the expressions of Miles’ studious face. “No, they started this. Peace was on the table and they denied us that”, said Miles never looking up. The anger in his voice could be heard. “We had an agreement. A contractual agreement and everything was settled. Peace was insured and that bastard lit himself up killing a lot of innocent people. Their government attacked us after we demanded punishment”. Salis looked up. Miles felt the man’s eyes peek into his past and uncover something the captain was unsure about. “You’re Lincoln’s brother. Lincoln Tangem”, he said in a soft voice. Miles felt his barrier break at the sound of his brother’s name, his older brother who had raised him when his parents abandoned them as children. “Yes, he was there that day. He was a pilot for the scientist. He spoke highly of the Kendacks. He was the first victim of the war”, said Miles stoically hoping to cover his sadness. “I’m sorry for your last. I knew of the pilot. I was there when we flew in to make contact. A bright lad and even better pilot”, said Salis. “He had faith in the people. He spoke long about his dreams of exploring the news dimensions. He regarded them as innovators fare beyond us. He looked upon the creation of the Dimensional Interface as a miracle and the solution to many social ills” said Salis with his glare never leaving Miles’ face. “And they killed him and many others. This war will solve all that”, said Miles. “Deep down, you and I both know your brother would disapprove of such war. Despite his death, he would have sought a means of compromise. If he didn’t die that day, this war would have killed in internally”, said Salis. “War distorts so many. The first to die in war is love and truth”. “Things are not simple in war”, said Salis. “Why do you fight if your convictions are not in the war” asked Miles? “My convictions lay in another place, duty to my people and brothers and sisters in arms”, said Salis.


“I fight for them hoping I can keep them alive and maybe seeing the end of this war. I may not be able to save the Kendacks but I can save my own. Fighting for revenge will wear you out faster than any other weapon they throw at you”, said Salis. “Captain look at this”! Shouted Clarissa from the second floor. The sky lit up with blue as the plasma jetted towards the battle fleets. They crashed into the hull destroying the underside. Ships burned and debris fell from the heavens. “Get ready, we’re moving out. We need to take out those super tanks”! The group prepared for the ensuing battle. Miles felt the anger build up in him as he tried to calculate the number of casualties in each blast. He was not his brother and peace was won through force. He would accept it no other way. He grabbed his rifle and pushed in a new clip. Clarissa and Westin left following Salis. Miles rushed afterwards with the full intention of bringing violence to the people who killed his brother. He recognized what that tiny wave that crashed inside of him was and its essence. It was purpose.


Uma nota de Explicação... O conto a seguir, "Fogo na Escuridão", é a tradução para o Português de "Fire in the Darkness", do escritor estaunindese Marjele Lister. Você irá notar que a versão da Guerra dos Muitos Mundos usada por Lister diverge daquela que foi utilizada pelos demais autores desta coletânea, especialmente se considerarmos, no contexto do multiverso desta antologia, como verdadeiras as memórias e afirmações dos personagens de "Fogo na Escuridão". Conversei com Marjele e ele me explicou que trata-se da interpretação pessoal do personagem Miles para a Guerra dos Muitos Mundos. Sim, é uma possibilidade. Outra é que, segundo afirmam os kendackianos, o Império alimenta e doutrina seus soldados com propaganda enganosa e revisionismos históricos. Contudo mesmo essas duas justificativas não preenchem o questionamento levantado pela história. Bem, Marjele pode ser um escritor iniciante, porém é brilhante também e creio que ele acabou deduzindo uma questão delicada do multiverso da Guerra dos Muitos Mundos: Sabe-se que foi Garen Ordonax o criador da Interface dimensional que tornou possível viajar entre os universos... E lembramos o que houve com ele. De qualquer forma, mesmo não sendo bem visto pelo Império (Marjele tem razão ao afimar que os apolonianos classificam Ordonax como terrorista) seu trabalho serviu de base para tudo o que foi desenvolvido no que concerne a viagens interdimensionais e seu trabalho no campo, tanto o teórico quanto o prático, até hoje não foi superado. Fato é, porém, que as equações deixadas por ele abrem espaço para curiosas insinuações sobre o Multiverso. Uma das mais interessantes diz respeito a possibilidade de que haja um "espaço exterior" ao Multiverso. O que seria esse espaço, contudo, Ordonax não soube determinar. Talvez se tratasse de um grande vazio (opinião defendida por muitos dos cientistas que prosseguiram o trabalho dele),mas há um segmento que interpreta de forma diferente essa lacuna: Talvez o enigmático "espaço exterior" ao Multiverso seja, na verdade, outros Multiversos! A veracidade dessa idéia jamais foi provada, no entanto, se a aceitarmos como válida, é concebível entender que o conto de Marjele não ocorre no Multiverso onde se passaram as demais histórias desta antologia, mas sim, em outro Multiverso, onde uma outra Guerra dos Muitos Mundos pode está acontecendo. Isto explicaria as discrepâncias entre a versão de personagem Miles, e as outras histórias. É uma possibilidade instigante? Sim, embora seja também algo capaz de "dobrar sua mente" se você imaginar as chances de escrever novas histórias... E as consequências para


este Multiverso! Marjele, você é genial. Bem, leitor ou leitora, vá em frente, leia o conto dele é muito bom. Rita Maria Felix da Silva Organizadora P.S. Na verdade, um dos contos desta antologia, escrito por Rochett Tavares, também insinua algo que se parece com a idéia de Marjele, porém, num âmbito menor.


Fogo na Escuridão Por Majerle Lister Solidão Miles despertou. Silêncio o rodeava. Um onda de alívio tomou conta dele, embora não soubesse o motivo. Ele encarou o teto cósmico acima. Tudo, exceto sua visão, estava paralisado, e ele contemplou as estrelas. Podia perceber os agrupamentos estelares, mas não reconhecê-los. Diante daquilo, sentia-se reduzido e irrelevante, mas estava consciente de algo dentro de si. Uma pequena onda colidia contra seu exterior tencionando escapar. Seu coração começou a acelerar, contudo ele permaneceu onde estava, testemunhando o espetáculo acima. Então um objeto voou através daquele teto transitório. Uma nave, um cruzador de batalha armado com uma couraça que poderia deter um foguete disparado a cem pés e capaz de eliminar comunidades inteiras com seu sistema múltiplo de miniarmas aprimorado para atravessar armaduras alienígenas. Então, tudo voltou a ele num fluxo de emoções e memórias: fúria, medo, e a pequena onda que estava lá com ele desde seu despertar. Miles se sentia voltando à realidade. Assim lembrou qual era seu trabalho. Ele era um soldado na iminência de uma invasão. Sentia a grama debaixo de si e começou a mover as mãos, desejando pôr sua cabeça em ordem e inteirar-se de sua situação. Ele sentia o ar frio à sua esquerda, mas virou-se para a direita e descobriu que estava caído a poucos metros dos destroços. Partes do cruzador se espalhavam pelo campo em que ele se encontrava. Corpos destroçados jaziam por toda a parte. Os gritos agudos dos motores emanavam do local da queda. Chamas acariciavam o céu e dançavam em celebração a um malogrado esquadrão de batalha composto por jovens inexperientes e que nunca tiveram uma chance de vencer. O cenário do céu mudou. Raios de plasma azul cruzavam o firmamento deixando uma trilha quente e branca. Eram disparados contra os cruzadores de batalha, os quais continham jovens animados pela esperança de que tocariam o solo em segurança. Os cruzadores moviam-se em ziguezague, como anjos bêbados, enquanto manobravam para longe, tentando evitar os disparos. O sibilar do plasma podia ser ouvido se você se desconcentrasse dos horrores da guerra e da morte. Ele se ergueu. Dor brotava de seu corpo, mas ele sabia que nada fora danificado que o impedisse de se mover. Encontrou um rifle perto de um jovem cadete com quem fora enviado ao treinamento militar: Riley. A surpresa na face do rapaz lembrou a Miles do quão rápido a


nave caiu. O corpo do jovem estava contorcido numa posição antinatural e um fragmento metálico saía de seu pescoço. “Sinto muito, Riley”, ele pensou. A fúria tomou conta dele, enquanto afastava os olhos daquele semblante ensanguentado. Miles se afastou e, ligeiro, procurou por sobreviventes. Ele se abaixou e se arrastou, esperando não chamar a atenção para seu corpo debilitado. “Blair, Edgar, Qwarr, Melissa, Sankron, Bernard, Alexis. nenhum deles sobreviveu”, Miles pensou. Amigos com quem treinara agora jaziam naquele campo. Instantaneamente, sem chance de adeus. Um espaço em sua mente agora permanecia vazio e frio. Um vácuo fora deixado no lugar. Miles sentia algo que não experimentava fazia algum tempo. Um sentimento de desconexão com o mundo. Tudo começou a girar e seus pensamentos lutavam contra essa sensação. As árvores se transformaram num borrão e o céu se confundia com a terra. Ele se abaixou até o solo para se recuperar. Sua visão retomou o equilíbrio e a realidade parou de rodopiar. Ele prendeu o fôlego e desacelerou. Necessitava que seu corpo funcionasse adequadamente ou terminaria como um cadáver. Miles se forçou a se focar nas suas ordens originais. “O dever acima dos sentimentos” ele pensou. Ele não tinha certeza da localização ou quantidade de inimigos na área e não queria começar um tiroteio. Ajoelhou-se e procurou por mais munição, que jazia no solo, sem tirar os olhos daquele cenário. A floresta o cercava por todos os lados, mas, a oeste do campo, havia um penhasco que atravessava a floresta. Os raios de plasma vinham do Oeste, pois as naves voavam em direção a eles. “Lógica simples”, ele pensou. Ele se lembrou do que seu comandante dissera jocosamente antes de chegarem ao ponto de salto, “Se se perder, siga a fonte do plasma: há uma boa chance de ser onde o teu traseiro azarado deveria estar”. Ele vasculhou o campo, uma última vez, esperando ver algum sobrevivente. Não havia nenhum. Miles se lembrou da realidade em que estava vivendo e do perigo que o espreitava. Recordou-se de sua posição no mundo. A luz que tocava os destroços lançava sombras que dançavam em todas as direções, mas a adrenalina no copo de Miles estava num pico e a evolução começou a fazer seu trabalho. O treinamento começou a movê-lo fluidamente e seus sentidos se ampliaram. Ele precisava de um paramédico que lhe desse analgésicos. Ele encontrou o paramédico caído no chão, o rosto virado para baixo, a perna ainda em chamas. Miles removeu a mochila do cadáver e encontrou as seringas. Injetou-se e se preparou para sua jornada ao oeste. A pequena onda, que se debatia dentro dele para escapar, agora o impulsionava a mover-se mais rápido. Sua mente se inundou de fúria. Ele se


lembrou do motivo de estar num campo cheio de destroços e companheiros mortos. Seu corpo reagiu à razão porque estava num planeta diferente ansiando derrotar o novo inimigo: vingança. Sentiu a emoção misturada com o treinamento e a adrenalina. Ele se moveu rapidamente para dentro da floresta. *** Finalmente parte de algo de novo Sangue jorrou do peito do alienígena enquanto a bala saía pelas costas. A agonia na face não terminou quando ele caiu morto no solo. Miles fez mira em outro que se abaixava atrás de uma parede. Os alienígenas chamavam a si mesmo de Kendackianos. Mas isso não interessava a ele. Eles os considerava hostis diante de seus olhos, eram o inimigo. Ele vasculhou a parede na expectativa de vislumbrar outro oponente. Ouviu os cruzadores de batalha colidindo e o sibilar de rifles de plasma e dos raios. Ele percebera que sua nave havia caído a cinco quilômetros a leste de onde deveria ter chegado e nenhum combate intenso estava acontecendo perto dele, mas era possível ver as explosões. As Novas Tropas de Batalha Apolonianas foram treinadas rigorosamente para lidar com a nova ameaça. Miles sabia que esses alienígenas eram tão humanos quanto ele, mas era mais fácil puxar o gatilho quando pensava neles como sendo alienígenas. Miles alcançou a parede e se arrastou vagarosamente procurando escutar qualquer sinal de outros, mas apenas ouvia os sons da batalha a Oeste. Ele se agachou na escuridão. Sabia que tinha de se mover. A parede parecida ser um meio de dividir a terra cultivável. Miles olhou mais uma vez no rosto do alienígena: o cabelo cor de areia cobria a face e sangue escorria em direção às plantações. "Eu não tenho pena! Foram vocês, bastardos, que começaram isso", ele pensou enquanto olhava para o cadáver. Miles correu com o rifle apontado em direção à floresta que tinha à sua frente. A estrada era perigosa demais para se viajar sozinho. Ele corria em silêncio, mas em um passo que lhe permitiria parar tão logo fosse necessário. As explosões aumentaram e o solo começou a tremer. Ele estava cada vez mais perto da batalha. Ele precisava voltar a seu grupo. Este era um planeta desconhecido. Os mapas e informações eram muito limitados sobre o assunto. Os laços de paz entre Kendackianos e os Novos Apolonianos permitiram a informação fluir livremente, mas, depois que os Kendacks se explodiram tentando destruir a Interface Dimensional, a conexão de dados entre ambos os universos ficara abalada. A paz não era mais uma opção e a guerra se espalhou. Um terrorista


alienígena chamado Garen Ordonax detonou a si mesmo para atingir os Apolonianos. A explosão matou muitos soldados do NIA e civis. Miles sentia o mundo se fechar enquanto refletia sobre o assunto no caminho para a floresta. A fúria abalava a figura estóica daquele soldado. "Pare, foque", ele lembrava a si mesmo. Então parou. Seus pulmões ardiam e suas pernas tremiam de dor. Os tranquilizantes começavam a perder o efeito. A floresta estava à frente dele. a despeito do caos, apenas um quilômetro a separava dele, e ele sentia uma estranha sensação de calma. A dor se reduziu e definhou e o ar noturno começou a morder seu braço exposto. Algo estava errado. Miles aprendera a confiar em confiar em sua intuição e cada um de seus instintos gritava para que se movesse. Os pelos se eriçaram em alerta, porém Miles não tinha certeza se era o ar frio ou seus instintos. Ele se ajoelhou embaixo da cobertura de uma árvore e observou a área ao redor. Então, ouviu um estrondo que vinha de sua esquerda. Pontos de luz apareceram na escuridão da floresta. Sombras ganharam vida enquanto as luzes escaneavam a área. Miles se abaixou e prestou atenção ao caminho entre os arbustos. Eles estavam provavelmente procurando por ele. Uma gota de suor rolou pelo lado esquerdo de seu queixo. Miles apontou o rifle para o primeiro alienígena, cuja. armadura refletia a luz com grande claridade. O primeiro alienígena emitiu sons e sinalizou para que os outros parassem. Miles não se movia. Não queria que seus movimentos o traíssem. O alienígena que vinha à frente gesticulou para que os outros três saíssem de trás da cobertura. As armaduras deles faziam ruídos metálicos enquanto eles se moviam para a frente. Armas foram preparadas e aguardavam apenas ordens. Miles olhou diretamente para o peito do líder. "Dois tiros". "Então mire no mais próximo e depois no terceiro", pensou ele. Miles podia sentir o peso do gatilho enquanto o pressionava. Ele ficou atento enquanto os soldados procuravam por ele, que não tinha certeza se estava bem escondido e teve de lutar contra si mesmo quando seu corpo começou a fraquejar por ter ficado imóvel tanto tempo. A proteção era composta de três outros veículos e não seria páreo para um tiroteio. Ele não tirou os olhos do peito do líder. Então a cabeça do líder explodiu numa névoa carmesim e um outro tiro ecoou. Tump! O líder caiu sem cabeça. Os outros dois reagiram vagarosamente e o peito do alienígena mais próximo foi atingido enquanto o terceiro atirava em todas as direções, frenético, esperando atingir quem os emboscava. Miles abriu fogo sobre o terceiro, observando enquanto suas balas atingiam coxa, pescoço e cabeça do inimigo. Mais soldados alinharam os veículos, formando uma defesa para as balas que ricocheteavam ao redor deles. Miles percebeu que a fonte do tiroteio estava


à sua frente, à esquerda. Guiando-se pelo som dos rifles, os soldados inimigos foram silenciados pelas armas MAC, que eram especificamente usadas por soldados do NIA. Miles havia se reconectado com seus companheiros soldados. Ele se agachou e mirou nos cinco novos inimigos, apontou seu rifle e mudou para o modo automático. Disparou contra os inimigos. Conseguiu abater dois e ferir outros três. O sangue se espalhou como tinta no veículo próximo. Ele atirou nos pontos de luz até que só um restou. Eles atiraram na direção dele, areia e pedaços de árvores voaram enquanto rajadas de plasma caiam por toda a parte O odor de matéria orgânica queimada se ergueu junto com a fumaça. Miles rapidamente se abaixou por trás de outra árvore e recarregou a arma. Ele ouviu outro soldado gritar de dor e cair. "Bom, mais um" ele pensou. “Nós captamos você, soldado. Eu sou o Capitão Largo Salis do 23º Esquadrão de Comando”, uma voz rude saiu da boca daquele soldado. Sua armadura tinha uma marca de queimado no peito e a manopla do antebraço estava faltando. “Estou curioso: você tem parentesco com... Deixa para lá"”, disse Salis e balançou a cabea. Miles sabia a que ele estava se referindo, mas decidiu não responder. A fúria que tais pensamentos provocariam servia apenas para distraí-lo. “Nós vimos o que aconteceu a seu cruzador de batalha, que desperdício de potencial. Você é mais do que bem-vindo a juntar-se a nós enquanto marchamos em direção à cidade”, Salis disse. “Esta é Clarissa Errage, nossa sniper. Você devia agradecer a ela por salvar sua pele”, Salis apontou para um soldado que recarregava o rifle. Ela cumprimentou erguendo o polegar, para demonstrar que prestava atenção, mas voltou à manutenção da arma. Outro soldado, silenciosamente, saiu da escuridão próxima. “Aquele é Westin Qual. Expert em Demolição. Quando ele chega, as coisas começam a explodir.”, Salis riu. “Nós tínhamos outro expert, mas ele perdeu a vida num tiroteio”, Salis completou com um soluço. “Obrigado, senhor, eu quero dar aos inimigos uma boa luta”. “Boa sorte” disse Salis. “Os Kendackianos estão defendendo Ultar. Neste momento, precisamos capturar aquela cidade. Estamos um quilômetro a leste. Forças hostis estão vasculhando essa terra em busca de mais cruzadores de batalha caídos e possíveis sobreviventes". Salis falou para cada soldado olhando diretamente no visor deles, embora não pudesse ver seus olhos. Miles sentiu o olhar do homem, embora, igualmente, não pudesse ver os olhos do capitão. Um


calafrio percorreu sua espinha. Ele sabia que estava na presença de um veterano de muitas batalhas, alguém que fora embrutecido pela guerra. "Devemos nos mover rapidamente e em silêncio. Troque seu link comum para o link seguro 35E". Por hábito, Miles trocou para o intralink e começou o ritual de recarregar armas e injetar analgésicos. A dor voltara depois que a luta havia acabado e ele tinha consciência de que iria precisar aguentar se pretendia continuar com esses soldados. Salis deu um tapinha no seu ombro. "Eu vou na frente, Clarissa vai para o sul. Westin no fim da fila. Miles fica no meio. Movam-se". Com isso, Clarissa e Westin avançaram para suas formações. O extensivo treinamento deles era mostrado claramente pela forma com que se movimentavam. Miles sabia que não era mais parte de uma tropa comum, mas sim de um esquadrão especializado. Seu batalhão estava morto, mas ele se sentia parte de algo novamente. Sentia-se reconectado e com propósito renovado. “Bem-vindo ao Esquadrão Arlyte”, disse Salis. *** A cidade estava em ruínas. Queimaduras de plasma manchavam as paredes e fumaça erguia-se de templos caídos. As paredes estavam perfuradas de balas e os veículos serviriam como escudos em potencial para futuros tiroteios. O que restara das casas, como esqueletos, assombravam os soldados invasores enquanto eles caminhavam pelo que já fora uma grande cidade. Edifícios sem teto expunham, a quem os sobrevoasse, o horror de corpos mutilados e outras baixas da guerra. Os soldados passavam pelas casas e olhavam para dentro procurando por inimigos que tinham, contudo, fugido ou decidido ficar para infligir mais danos. Eles eram saudados por casas desoladas, mobília quebrada e paredes queimadas. Essas casas permaneciam de pé como monumentos às famílias e as memórias felizes que lá tiveram, mas demorariam muito a ter novamente. Os corpos dos inimigos e aliados forneciam a evidência do conflito devastador que tinha acabado de ocorrer. Mal sabia qualquer desses soldados, porém, que isto era só o começo da guerra total que levaria ao grande esforço pela vitória e o poder em nome da paz. O céu havia escurecido por causa da fumaça e das chamas das naves estelares caídas. Destroços da frota estelar despencaram na superfície aumentando o caos que já existia. Entre os soldados estava o esquadrão Arlyte com seu novo membro. Miles achou um lugar para sentar numa peça de mobília danificada, que ele acreditou ser um sofá. Seu braço estava sangrando e ele não havia cuidado do ferimento. Lyle, o paramédico do esquadrão, não sobrevivera à aterrissagem e Miles fora deixado para cuidar de


seus próprios ferimentos. Lyle Farin, o membro que o Esquadrão Arlyte perdera, o espaço deixado para Miles ocupar. Disseram a ele que Lyle fora derrubado por uma arma de plasma. Miles enfaixou o braço enquanto Clarisssa o observava do segundo andar de onde estavam. Ele a olhou através de um buraco que tinha sido aberto no teto do primeiro andar. Ela estudava o horizonte através da mira de seu rifle. À direita de Miles, Westin tratava desajeitadamente os novos explosivos que tinha reunido depois da queda da nave. Miles observou enquanto o homem preparava os explosivos, como uma criança arrumando fogos de artifício. Seu sorriso o fazia parecer jovial e seu cabelo preto pendia diante de seus olhos. Uma misteriosa cicatriz descia pelo lado esquerdo de seu queixo. Miles sorriu diante do pensamento de que Westin encontrava alegria em tais armas mortíferas e voltou para seus próprios afazeres. “Pega, você vai precisar disso”, disse Salis enquanto jogava a garrafa de álcool para ele. “Limpe seu ferimento. Eu odiaria ver Clarissa ter de amputar seu braço por causa da infecção.”. Miles pegou a garrafa, olhou para o capitão e uma face envelhecida olhou de volta para ele. Cabelos brancos pendiam de sua cabeça e a barba estava por fazer. Seus olhos azuis pareciam cansados e, ainda assim, seus movimentos expressavam uma juventude permanente. Seus lábios finos se moveram. “Não é o que você esperava”? "Ha, neste ponto de minha vida, não sei mais o que esperar. A viagem multidimensional nem mesmo existia alguns anos atrás e a guerra está piorando. Tento manter minha mente aberta", disse Miles. “Eu entendo”, respondeu o capitão enquanto se sentava. Sua armadura rangeu e seu corpo permaneceu rígido, um sinal de que era um soldado veterano de muitas batalhas. Miles aplicou o álcool espumante ao ferimento dele e lhe enfaixou o braço. Ele analisou a sala e o conteúdo dela. Parecia ter sido abandonada muito antes do começo da guerra, mas os relatórios diziam que era uma cidade populosa. Muitos poucos sinais de vida humana: para os padrões da Terra aquilo seria quase vazio e minimalista. Enquanto Miles escaneava a sala para confirmar o que lhe diziam seus sentidos, encontrou o que parecia o brinquedo de alguma forma de vida que ele nunca tinha visto antes. O animal parecia um cruzamento entre um elefante e um grande jacaré, e isso deixou o homem com um pouco de medo. “Isso aqui deve ser a versão deles para um ursinho de pelúcia”, ele pensou. “Esquisito como eram parecidos com a gente”, disse Westin quebrando o silêncio. “Parece até irresponsabilidade atacá-los. Nós somos, tipo, primos intergaláticos deles ou coisa parecida”, disse ele, como se pudesse ler a expressão pensativa no rosto de Miles.


“Não, eles começaram isso. A paz estava na mesa e eles nos negaram isso", disse Miles sem nem mesmo olhar para cima. Era possível ouvir a fúria em sua voz. “Nós tínhamos um acordo. Um tratado e tudo estava acertado. A paz estava assegurada, mas aquele bastardo se adiantou e matou muitos inocentes. O governo deles nos atacou depois que exigimos punição para ele”. Salis olhou para cima. Miles sentiu os olhos do homem olhando para ele direto do passado e percebeu algo de que não tinha certeza. “Você é o irmão de Lincoln. Lincoln Tangem”, Salis disse com voz suave. Miles sentiu a barreira entre os dois se quebrar ao som do nome do outro homem, o irmão mais velho que o criara quando os pais os abandonaram ainda crianças. “Sim, ele estava lá naquele dia. Ele era o piloto daquele cientista. Ele falava muito bem dos Kendackianos. Ele foi a primeira vítima da guerra”, disse Miles, estoicamente, esperando aliviar a tristeza dentro de si. “Eu lamento. Eu o conhecia como piloto. Eu estava lá quando nós voávamos para fazermos contato. Um rapaz brilhante e um piloto excepcional”, disse Salis. “Ele tinha fé nas pessoas. Falava com entusiasmo sobre seus sonhos de explorar a nova dimensão. Ele os considerava como inovadores bem além de nós. Considerava a criação da Interface Dimensional como um milagre e a solução para muitos problemas sociais” disse Salis, sem desviar os olhos da face de Miles. “E eles o mataram e a muitos outros. Esta guerra resolverá tudo isso”, disse Miles. “Na verdade, você e eu sabemos que seu irmão desaprovaria essa guerra. A despeito da morte dele, ele teria buscado uma forma de trégua. Se ele não tivesse morrido naquele dia, esta guerra o teria matado por dentro”, disse Salis. “A guerra distorce tudo. Os primeiros a morrer na guerra são o amor e a verdade”. “As coisas não são simples numa guerra.”, disse Salis. "Por que você luta se suas convicções não estão na guerra?", perguntou Miles "Minhas convicções repousam em outro lugar. Meu dever para com meu povo, irmãos e irmãs em batalha", disse Salis "Eu luto por eles esperando que possa mantê-los vivos e talvez acabar com essa guerra. Talvez eu não consiga salvar os Kendackianos, mas posso salvar a mim mesmo. Lutar por vingança acabará com contigo mais rápido do que qualquer arma que eles lancem contra você.", disse Salis "Capitão, olha isso!", gritou Clarissa do segundo andar. O céu brilhou num azul intenso enquanto o plasma fluiu na direção das naves, rompendo o casco, destruindo o interior. Naves queimaram e destroços caíram dos céus. "Fiquem preparado. Precisamos deter aqueles supertanques"


O grupo se preparou para a batalha que se aproximava. Miles sentiu a fúria dentro dele, enquanto tentava calcular o número de baixas de cada explosão. Ele não era seu irmão e a paz deveria ser conquistada através da força. Ele não aceitaria de outro jeito. Ele pegou seu rifle e colocou um novo cartucho. Clarissa e Westin partiram seguindo Salis. Miles prosseguiu com o firme desejo de trazer violência ao povo que matara seu irmão. Ele reconheceu aquela pequena onda que colidia dentro dele e o que significava: era um propósito.


Símbolo do Novo Império Apoloniano

“With faith, order and courage we’ll conquer everything”


Famoso Coronel Apoloniano morre em Atentado na Terra 850 Matéria extraida do jornal Correio Expresso, Rio de Janeiro, RJ, Terra nº 851, 16/03/2014 Por Rita Maria Felix da Silva Uma nota de Explicação... Na noite de ontem, 15/04, às 21:30 h, o Coronel Mário Quintino Borba Prado, mais conhecido como Coronel Prado, 77 anos, morreu durante explosão no restaurante Champs Verts, em Nova São Paulo (NSP), capital da Terra 850. Além do coronel, também pereceram sua esposa, Bárbara, 72 anos, e vinte outras pessoas presentes ao local. Trinta e cinco feridos, alguns em estado grave, foram recolhidos aos hospitais. As autoridades confirmam que se tratou de explosão criminosa: peritos acharam fragmentos de um aparato terrorista plantado por membros da Resistência de Kendack, que, nos últimos cincos anos, tem conduzido uma guerrilha sangrenta, imoral e desumana contra as forças apolonianas fixadas em NSP após a adesão da Terra 850 ao Novo Império Apoloniano. Herói de guerra e profissional respeitado por todos, amigo pessoal do Imperador e pessoa das mais bem quistas nos altos círculos apolonianos, o Coronel Prado afastou-se há alguns meses dos campos de batalha, vitimado por ferimentos graves em combate, e mudouse para NSP onde se dedicava a lecionar na prestigiosa Academia Militar da Ordem do Espírito Santo, conceituada instituição de formação de oficiais para o Império, nas cátedras de Ética; Táticas e Estratégias; e Tiro ao Alvo. O General Jerod Kristovos, Governador-Geral da Terra 850, assegura que as devidas investigações estão sendo conduzidas e os terroristas de Kendack serão punidos “com todo o rigor que o Imperador e Deus nos permitem”, afirmou. Kristovos anunciou a captura de cinco suspeitos que foram entregues aos melhores torturadores disponíveis: “logo teremos toda essa quadrilha aprisionada”, garantiu ele. Como medida sócio-educativa, o Governador-Geral ordenou a execução diária de um prisioneiro político, entre os confinados na Penintenciária para Criminosos Políticos General George Washigton, em NSP, até que os culpados se entreguem à Justiça apoloniana. Antes de afastar-se dos campos de luta, o Coronel Prado esteve à frente de sua unidade na gloriosa Batalha de Saint Solomon, na Terra 456 - a qual os terroristas de Kendack, equivocada e maliciosamente, chamam de Massacre de Saint Solomon, o que levanta suspeitas sobre o atentado ter como motivação a vingança.


O corpo do heróico Coronel Prado foi transportado à capital apoloniana, na Terra 001, onde será sepultado, com todas as honras permitidas pelo Império, no Cemitério da Ordem e Graça de Nosso Senhor Jesus Cristo, solo sagrado em que descansam apenas os mais nobres soldados imperiais já falecidos.


Glória Feita de Sangue! Por Clinton Davisson Este domingo foi recheado de sangue, suor e muito chumbo. Soldados apolonianos da 9ª Divisão de Infantaria de Ocupação marcharam hoje pelas ruas de Patos, cidade do estado da Paraíba, numa ação que busca expulsar as forças kendackianas alojadas no Brasil desde que o Governo Federal psdebista oficializou a adesão deste país à Resistência de Kendack, cedendo, assim, à pressão das forças oposicionistas lideradas pelo PT. Estimativas das ONGs de apoio humanitário estimam que as mortes chegam a 1000 pessoas, entre soldados e civis, incluindo mulheres e crianças. De acordo com a enfermeira Roberta Nunes, muitas famílias fugiram da cidade na semana anterior. “Muitos ficaram com idosos e doentes. Essas pessoas não foram poupadas pelos tiroteios, infelizmente”, contou a enfermeira. Nossa redação também ficou para cobrir a ocupação. Vários membros de tropas entraram em nosso escritório ontem, mas resolveram respeitar a nossa isenção. Nosso repórter, Roberto Jader, entretanto, morreu ontem enquanto fazia a cobertura da ocupação, por forças apolonianas, da fortaleza pertencente à Resistência de Kendack, em Santa Gertrudes, distrito de Patos, onde se situa o portal dimensional entre a nossa Terra e as demais do Multiverso. Nosso editor, Mauro Saganelli, está desaparecido desde ontem à tarde. Comunico que eu, Myllena Brandão, e nosso fotógrafo, Guilherme Zambronne, vamos permanecer cobrindo a ocupação enquanto estivermos vivos. (Nota extraída do jornal Correio Patoense, edição de 13/03/2016, Terra nº 72)


Rio de Janeiro se alia oficialmente ao Império Apoloniano Por Luiz Vasques “A Copa, as Olimpíadas e agora, o Império! É o caminho natural do Rio para a glória”, afirmou neste domingo o ex-prefeito do Rio de Janeiro e autoproclamado governador da Nova Guanabara, Arnaldo Maris. Como é de conhecimento de todos, na sexta-feira, 11/03, Maris foi vitorioso no golpe de estado que separou a cidade do Rio de Janeiro do restante do Brasil. O pior, todavia, é que Maris agora fez nosso município jurar aliança a uma potência militarista alienígena: “Eles não são alienígenas!”, rebateu Maris quando questionado em entrevista coletiva, “Os Apolonianos são uma superpotência multidimensional!”, disse ele com o entusiasmo juvenil característico. Desde a meia-noite do sábado, a cidade do Rio de Janeiro oficialmente é parte do Novo Império Apoloniano, segundo o teor da declaração pessoalmente lida por Maris no palácio da Guanabara, atual sede do governo do Município, uma vez que o governador e o vice foram afastados por se oporem ao novo regime, seguido da dissolução da ALERJ. “Não precisamos de uma redundância assim”, acrescentou, em uma nota mais pessoal, referindo-se à Câmara dos Vereadores. Que a maioria na ALERJ fosse oposicionista também ao novo regime, disto o governador Maris preferiu não comentar. O portal interdimensional que se abriu na praia de Ipanema, na sexta-feira, por onde vieram tropas apolonianas, entre as ruas Teixeira de Melo e Farme de Amoedo, pegou a todos de surpresa: civis, militares e membros da Resistência de Kendack. O inesperado ataque de drones supersônicos despedaçou o vidro de janelas e fulminou quartéis da Resistência. O resultado foi o pânico na população carioca. Especulações sobre traição e infiltração imperam nas redes sociais, pois o lugar do portal era vigiado dia e noite por militares cariosas supostamente leais aos kendackianos. Maris assegura que as tropas apolonianas, que desembarcaram em veículos flutuadores e anfíbios, mostraram-se, após o choque inicial, amistosas e comprometidas com a restauração da liberdade, paz e ordem pública. Conflitos com kendackianos ou simpatizantes foram tidos como “inevitáveis”, porém “abaixo dos números aguardados.” Segundo o novo governo, denúncias de abusos contra a população desarmada estão sob investigação, mas o governador aposta em “mentiras, rumores e desinformação espalhados por traidores e subversivos locais, instigados por influência externa”, sem porém, fornecer nomes específicos.


O governo federal brasileiro, aliado da Resistência de Kendack, ainda não se pronunciou sobre a declaração de independência de Nova Guanabara ou a aliança com os apolonianos. Fontes afirmam que Brasília “ainda estuda uma forma de resposta ideal.” A representação da Resistência de Kendack disse que “o sequestro de uma das maiores cidades brasileiras não ficará sem resposta.” Nota-se que o portal de Ipanema fica aproximadamente a 300 metros da praia, o que, junto com o endereço, logo traz à memória do carioca o antigo Píer de Ipanema, nos anos 70. Se por coincidência ou “destino, em prol de um futuro melhor”, como o governador Maris antecipa, não se sabe. Mas também é a localização do emissário oceânico de Ipanema, que leva embora o esgoto do bairro. Extraído do jornal A Crônica Fluminense, 13/03/2016 – Terra nº 720 Nota: O jornal A Crônica Fluminense foi fechado na terça, 15/03/20016, por ordem do Governador Arnaldo Maris, baseado na Lei de Controle da Informação, promulgada por ele na segunda, 14/03. O proprietário do jornal e grande parte da equipe jornalística estão detidos para responder às acusações de traição e sedição.


Um Juramento dos Soldados Apolonianos Criado por Luiz Mendes Junior Pelo sangue de Jesus Cristo, pela honra do Imperador e do Espírito Santo, juro, na pureza do coração, entregar minha vida e vontade à Glória do Império jamais hesitando e duvidando pois sou a mão do salvador, minha alma é eterna, e meus inimigos perecerão sob nossas botas. Sem recuar, com disciplina e vigor, lutarei o quanto for, em qualquer tempo, lugar, até que chegue minha hora e eu faça história, porque a guerra é longa, a vigília é eterna, a vitória é nossa. Paz, ordem, prosperidade, disciplina e amor no Multiverso e além, até que toda a resistência, que toda a existência, se curve diante de nossa bandeira, Glória, Apolônia, Glória, Deus. Amém.



SĂ­mbolo da ResistĂŞncia de Kendack


Uma Breve Análise do Grito de Guerra da Resistência de Kendack Por Anne Louise Bright{15} "Pela liberdade e pelo Multiverso! Sem Recuar! Até que o último homem caia!"{16} Ao contrário da crença popular, o famoso grito de guerra da Resistência de Kendack não é o único de seu tipo. Há variações dele, além de versões do mesmo teor, mas completamente distintas. De mesma forma, é um equívoco acreditar que foi criado pelo quase mítico Alexei Ivanovitch E’Katorr, um dos quatro lendários fundadores da Resistência. Tudo que se sabe é que, a julgar pelo testemunho de outra fundadora, Ana Maria Castañeda{17}, E’Katorr foi de fato o primeiro a pronunciar o lema da Resistência (Nosotros Desafiamos la Tiranía!), mas a origem do grito de guerra se perdeu em algum lugar dos sangrentos campos de batalha da Guerra dos Muitos Mundos. Possivelmente se originou de alguma das muitas viagens de E ´Katorr e dos contatos que fez com outras civilizações, várias das quais lutavam contra regimes cruéis e avanços imperialistas semelhantes ao dos apolonianos. Em muitos lugares, esse grito de guerra é mais apreciado e usado que o lema da Resistência, mas há várias polêmicas que o envolvem, a começar por aquela que o acusa de reforçar o patriarcado. Para determinados setores feministas vinculados à Resistência, o trecho “Até que o último homem caia!” provoca comoção negativa e insinuações sobre machismo, conquanto a maioria dos estudiosos defenda que, por tradição, o termo “homem” no texto serviria para enquadrar tantos os homens quanto as mulheres que lutam contra o Império Apoloniano. Por esse motivo, e por pressões desses segmentos, nunca se conseguiu que O Alto Conselho da Resistência de Kendack{18}, órgão governativo, situado na Terra 555, que administra os assuntos kendackianos, tornasse obrigatória a mudança da frase “até que o último homem caia!” para até que “cada homem ou mulher caia!”. Já para outras facções da Resistência, especialmente as que advogam a pacificação como objetivo final, esse trecho causa desconforto por indicar um caráter suicida ou belicista que não se encaixaria na índole kendackiana. Os intelectuais que pensam dessa forma até mesmo questionam a possibilidade de frase deixar implícito perante o Multiverso que Kendack não quer a paz, mas sim o extermínio dos apolonianos. Os mais radicais dentre os que


defendem essa hipótese afirmam que os “homens” nesse verso do grito de guerra seriam os apolonianos - ou seja, para eles não se trataria de uma conclamação para a luta, mas de uma sentença de extermínio genocida contra as forças imperiais. Do outro lado da história, eruditos apolonianos concordam com o ponto de vista do parágrafo anterior e consideram a frase ofensiva aos imperiais. Fazem, inclusive, um paralelo com dois versos do Juramento da Resistência de Kendack, que desaprovam fortemente, por entendê-los como insinuação de genocídio contra os imperiais: Até que o Novo Império seja extinguido. Que dele só restem lembranças. Além disso, a frase “Pela Liberdade e pelo Multiverso!” incita a celeuma em setores de intelectuais apolonianos e, mesmo, entre eruditos nos mundos aliados à Resistência. Questiona-se que a “liberdade” citada no grito de guerra seria apenas o ponto de vista ou modo de vida kendackiano e, portanto, uma imposição a povos que deveriam viver segundo sua própria cultura, sem intervenções externas. Por fim, os imperiais também afirmam que a “liberdade” supostamente defendida pelos kendackianos é um anarquismo elevado à mais alta escala, que, a curto prazo, apenas levará o Multiverso ao caos.


Um dos Juramentos da Resistência de Kendack Eu resistirei. Como E'katorr, que em Kendack ergueu seu punho em desafio à tirania Apoloniana. Eu lutarei. Com coragem e perseverança, pela liberdade dos muitos mundos. Mesmo no pior campo de batalha, Nunca cederei a qualquer temor ou ameaça. Não me dobrarei à ira de nossos inimigos. Não me corromperei e não hesitarei em defender os necessitados. Meu corpo é um escudo, Minha alma uma espada Contra o mal que tentar atingi-los. Eu juro. Entrego meu coração à luta. Até que o Novo Império seja extinguido. Que dele só restem lembranças. Que os Deuses do Multiverso não nos permitam repetir seus erros. Que nunca nos enfeitice o poder. (Como citado por CHAMPLONI, Luiz Felipe O., A Cultura da Guerra dos Muitos Mundos. Terra 2525, Ano 1985, p. 23)



Mundos em Guerra Lista de Mundos que aparecem ou são citados no primeiro volume das Crônicas da Guerra dos Muitos Mundos A numeração abaixo é a usada pelo Novo Império Apoloniano para a classificação das Terra paralelas. Ao longo da guerra, as numerações foram revistas por mais uma vez. Apesar de um certo desconforto, acabou sendo adotada também pela Resistência de Kendack. Terra Descrição 0001 Mundo sede do Império Apoloniano, lar do Imperador e sua corte. Nesse universo também se situa o Planeta Ahtemir, onde ocorreu a história “Tigre Branco” de Luiz Mendes Junior. 0002 Nome local Logovitz ou Planeta Logovitz, mundo de Garen Ordonax, o criador da Interface Dimensional 0003 Sede do 8º Exército Apoloniano, conforme ilustração de Luiz Mendes Júnior e Néry Freitas. 0009 Onde o 8º Exército Apoloniano, conforme ilustração de Luiz Mendes Júnior e Néry Freitas, ocupou reservas de petróleo em Falujah, Iraque. 0011 Terra onde E’Katorr encontrou Amílcar, avô de Balthazar, o fenício, na história “A Espada de E’Katorr”, bem como no conto “Batalha na Terra Sem Males” escritas por Ana Lúcia Merege. 0012 Terra onde acontece a história “O Retorno de Drake Borny”. 0013 Uma Terra que parece quase uma cópia da Terra 0012, uma das diferenças é que lá os Apolonianos alcançaram o Brasil na época da Ditadura Militar e aliaram-se com o governo, conforme vimos no conto “Retrato de uma Natureza Morta”, de Octávio Aragão. 0018 Mundo natal do Major Aurelio Albuquerque Gomes Filho, conforme a história Tierrarouge, de Daniel Folador. Também é a Terra natal da estudiosa Anne Louise Bright, que publicou o artigo “Breve Análise do Grito de Guerra Apoloniano” no site da universidade Pierre Jacques Dubois (http://www.universitépierredubois.fr/) 0054 Terra onde a 9º Divisão de Infantaria Apoloniana de Ocupação derrotou e capturou uma fortaleza kendackiana na Batalha de Bougaville, Ilha Salomão 0057 Terra onde a 10ª Divisão de Infantaria Apoloniana de Ocupação capturou uma base kendackiana em Dortmund, Alemanha. O ataque foi planejado e comandado pelo Príncipe James, filho mais velho do Imperador, e herdeiro do trono. 0072 Terra da matéria de Clinton Davisson "Glória Feita de Sangue"


0100 Nesta Terra, como resultado de uma grave crise política, a presidenta do Brasil foi assassinada por um radical de direita e o país foi atirado numa violenta guerra civil entre esquerdistas e direitistas. Aproveitando-se do caos e interessado nos recursos hídricos brasileiro, o Imperador ordenou que o 5ª Exército Apoloniano invadisse e ocupasse aquela nação. O comando da invasão ficou a cargo do Príncipe James, filho mais velho do Imperador. 0150 Também chamado de Terráqua3, um mundo onde a superfície terrestre é inteiramente coberta pelo oceano. Conforme a história “O Retorno de Drake Borny”, de Marcia Tondello, foi destruído quando um portal interdimensional lá explodiu durante combate entre apolonianos e kendackianos. 0202 Terra onde se situava a prisão militar de Tierrarouge, mantida pela Resistência de Kendack, mundo em que o Desastre/Massacre/Tragédia de Tierrarouge aconteceu. 0205 Onde se situava a Ilha de Los Santos. Lá Benito Castañeda combateu na 13ª Unidade do Exército da Resistência de Kendack, na história em quadrinhos “Capitão Vogel”. 0333 Mundo natal do Coronel Jean Gabriel de Castro Álamo, conforme a história Tierrarouge, de Daniel Folador 0339 Terra de orignem do Sgt. Gary “Bonecrusher” Williams e das tropas de invasão mortas na Batalha de MI-PA 001 (também conhecido por N’or Mhan D’yiat). 0438 Terra de origem do 232ª Batalhão de Libertação da Resistência de Kendack, conforme a história "Capitão Vogel". 0456 Citada na matéria sobre a morte do Coronel Prado, militar apoloniano, na Terra 850. Foi onde ocorreu a Batalha ou Massacre de Saint Solomon 0555 Terra onde se situa a Ilha de Kendack, origem e posterior sede da Resistência. 0720 Terra da matéria de Luiz Felipe Vasquez "Rio de Janeiro se alia oficialmente ao Império Apoloniano" 0753 Onde uma versão de Clinton Davisson publicou o livro A História da Filosofia, pela Editora Logos. 0815 Onde uma versão de Luiz Mendes Junior publicou o livro Cultura e Sociedade Apolonianas. 0850 Terra onde o Coronel Prado foi morto em atentado, conforme matéria "Famoso Coronel Apoloniano Morre em Atentado na Terra 850. 0851 Citada na matéria da Terra 850. Nela se localizava a sede do jornal Correio Expresso e a metrópole do conto As Cinzas de Viridiana, de Bruno Eleres 0905 Terra onde uma versão de Luiz Felipe Vasques publicou História da Resistência de Kendack 0915 Onde uma versão de Ana Lúcia Merege publicou História do Multiverso para Jovens


0923 Terra em que uma das versões de Rochett Tavares publicou A Religião e o Modo de Vida Apoloniano. 0936 Terra onde Anderson Loguidel publicou o livro Tecnologia criativa. 1014 Onde era publicada a Revista Acadêmica de História da Universidade de Santo Octávio, em Guimarães, Portugal, na qual o artigo em que se baseia a introdução do primeiro volume das Crônicas da Guerra dos Muitos Mundos. 1015 Nesta terra, uma versão de Rochett Tavares publicou o livro Lógica e Física Aplicadas às Viagens Interdimensionais 1152 Onde ocorre a história "Capitão Vogel", contada por Benito Castañeda, descendente de Ana Maria Castañeda. Foi também onde ocorreu uma campanha da qual participou o 232ª Batalhão de Libertação da Resistência de Kendack, originário da Terra nº 438 1759 Nesta Terra, a Décima Divisão de infantaria de Libertação, da Resistência de Kendack, após vitória sobre forças apolonianas, tiraram a famosa e criticada foto zombando da bandeira do Império 1900 Terra onde onde João Carlos Yamada, alter-ego do general Wei Liang, vive com sua esposa humana e filhos, como visto na história O Exército Indestrutível de Wei Liang, de Heitor V. Serpa. 1972 Terra onde aconteceu o Massacre de Tualamei. 2100 Chamada por seus habitantes de Planeta Yun. Terra de Lothar Gan Amon e do Duque Sebastian Resniack III, depois conhecido como o Duque decapitado. Citada na introdução do primeiro volume de Crônicas da Guerra dos Muitos Mundos 2525 Terra onde Luiz Champloni publicou A Cultura da Guerra dos Muitos Mundos 2751 Terra de Nicole Olivier, da história "A Espera de Nicole" 4515 Nesta Terra, Daniel Folador publicou o livro O Ancestral do Império Apoloniano: Vida e Morte de Jonas “Apollonius” Bryan Sanderson 7624 Terra paralela onde se passa a aventura da Noviça Escarlate, de Luiz Vasques. 7859 Mundo natal de Robert Wells, contrabandista mutiuniversal que partiipa do conto “As muitas vidas de Robert E. Wells” mostrado no primeiro volume das Crônicas da Guerra dos Muitos Mundos OBSERVAÇÃO D’Nybo Planeta onde ocorre a história "Arlen da Espada", escrita por John Ostrander Planeta ? Planeta não nomeado onde ocorrea história “Fogo na Escuridão” de Majerle Lister. Planeta Ahtemir Situado no mesmo universo da Terra 1. Mundo onde ocorre a história “Tigre Branco” de Luiz Mendes Junior


Planeta MI-PA 001 Planeta no qual ocorre a batalha doconto Tabula Rasa: MI-PA 001


Sobre os autores ANA LÚCIA MEREGE Ana Lúcia Merege trabalha com manuscritos históricos e literários na Biblioteca Nacional. Publica pela Draco a série de fantasia épica iniciada com "O Castelo das Águias", cuja sequência é "A Ilha dos Ossos", além do infantojuvenil "Anna e a Trilha Secreta" e vários contos e novelas no universo fantástico de Athelgard. Na mesma editora, organizou a coletânea arturiana "Excalibur". Publicou também os romances "O Caçador" e "Pão e Arte" e o ensaio "Os Contos de Fadas" bem Blog: http://www.estantemagica.blogspot.com

como

vários

contos

e

artigos.

AURELIO GOMES ALBUQUERQUE FILHO Policial militar, ilustrador e quadrinista, Aurelio Gomes Albuquerque Filho (Al Gomes) é natural de Campina Grande, PB, mas reside em Patos, no mesmo estado. Com 50 anos de idade, desenha desde os dezoito anos e já publicou na revista Livro da AQC e na Spektro. Dedica-se a ilustrações de livros e publicações independentes. É o mentor e organizador do "Nanquim Arretado", que, em sua segunda edição, consagra-se como uma respeitada antologia nordestina de quadrinhos alternativos. Emprestou seu nome para batizar o protagonista heroico e trágico de "Tierrarouge", presente nesta coletânea.

BRUNO ELERES Além de biólogo, Bruno Eleres se considera um quase-escritor. Se não por legado, por tentativa. Tem publicado contos em antologias de diversas editoras, entre as quais Andross, Regência, Ornitorrinco e Multifoco. Pelos interesses múltiplos, experimenta um pouco de gêneros, personagens, histórias no seu processo de autodescoberta. Em geral, escreve contos de terror, fantasia, eróticos e intimistas, tendo um portfólio variado. Saiba mais do autor em: bruno-eleres.flavors.me

CLINTON DAVISSON FIALHO Jornalista e escritor, Presidente do Clube dos Leitores de Ficção Científica (CLFC) e, atualmente, mestrando em comunicação. Sonha em se mudar para alguma terra paralela, se a situação deste país não melhorar.

DANIEL FOLADOR ROSSI


Daniel Folador Rossi, capixaba nascido na capital e criado no interior, é capaz de discutir etimologia em festas e de rir de piadas estúpidas. Esta é a quinta antologia da qual participa. Mais em eisoptron.blogspot.com.br

JOHN OSTRANDER Escritor americano, nascido em 1949, em Evanston, Illinois, mas cresceu em Chicago. Escritor veterano e um dos maiores expoentes artísticos de sua geração, Ostrander é o criador da versão moderna do Esquadrão Suicida e escreveu vários outros quadrinhos de grande sucesso, entre eles, The Spectre, The Kents, Martian Manhunter, várias hqs de Star Wars, Blaze of Glory: The Last Ride of the Western Heroese, principalmente, aquela que é considerada uma de suas obras-primas: Grim Jack.No momento, com o artista Tom Mandrake, Ostrander está prestes a lançar a muito aguardada Kros: Hallowed Ground, um conto de horror em quadrinhos, mostrando um caçador de vampiros no meio da Batalha de Gettysburg.

JOHN OSTRANDER American writer, born in 1949 in Evanston, Illinois, but raised in Chicago, Ostrander is a veteran writer and one of the greatest artistic exponents of his generation. He wrote the modern version of Suicide Squad (where he created the character Amanda Waller), The Spectre, The Kents, Martian Manhunter, Blaze of Glory: The Last Ride of the Western Heroes, and, specially, one of the his masterpieces: Grim Jack. Presently, Ostrander, along with the artist Tom Mandrake, is about to publish Kros: Hallowed Ground, a horror short story in form of graphic novell about a vampire hunter in the middle of the Battle of Gettysburg.

HEITOR V. SERPA Heitor V. Serpa é um escritor de fantasia nascido e criado no Rio de Janeiro. Publicou contos nas antologias "Fiat Voluntas Tua" e "Pacto de Monstros", da Editora Multifoco, publicou e gerenciou fanfictions de League of Legends no domínio http://icathia.com, além de diversas participações em outras plataformas virtuais. No momento presente, Heitor trabalha em “Lança e Gancho”, um romance situado no Mundo-Prisão, seu universo de fantasia original. Em paralelo, desenvolve "Por uma Espada Mágica", uma coletânea de contos inéditos de sua autoria.

LUIZ FELIPE VASQUES Luiz Felipe Vasques tem formação em design gráfico por formação, especialização em animação e dispersão em história, arqueologia, astronomia, paleontologia e outros bichos. Co-


organizador e autor nas antologias de literatura fantástica Super-Heróis (2013) e Monstros Gigantes – Kaiju (2015), ambas pela editora Draco.

LUIZ MENDES JUNIOR Luiz Mendes Junior nasceu em 1974 no Rio de Janeiro. Formou-se em Comunicação Social pela UFRJ, aventurando-se no teatro, dublagem, em tradução, até se descobrir na literatura. Publicou o Romance de mistério “O Enigma da Face Oculta” (2012), disponível no site do Clube dos Autores. Participou de coletâneas, redige artigos e ganha a vida guiando turistas pelo Rio de Janeiro. Também escreve para o blog galpao12.blogspot.com, para o zine “A Broca Literária” e para o portal “Scifitupiniquim”.

MÁRCIA TONDELLO Com a alma multitarefa de um artista renascentista, Márcia Tondello é atriz, Bacharel em teatro e dramaturga, com cinco peças escritas, das quais duas já foram encenadas no Brasil e em Portugal. Sua primeira participação em Concursos literários lhe rendeu o 10º lugar com o Conto “Virando o Jogo” no Prêmio Carioquinha de literatura de 2002. Escreve para o site/Blog A Arte Que Me Move (http://mtondello.wordpress),crônicas e minicontos, onde é possível fazer o download de seu e-book de contos, escritos durante a participação de um desafio de escrita (500 palavras diárias). É diretora/encenadora, com três peças sob sua direção já encenadas; cantora e compositora, ex-vocalista e letrista da Banda Vide Bula de 1991 a 1997, dubladora. Atualmente estuda Violoncelo.

MAJERLE LISTER Hello, my name is Majerle Lister. I am a student at Arizona State University studying political science and a minor in Philosophy. The love for writing was a product of sci-fi and western movies consumed as a kid. Growing in the Arizona desert on the Navajo Nation gave me unlimited amounts of time to day dream stories and adventures. My time as child exploring caves in isolated areas let my mind wander and think of new worlds and possible futures. The rugged landscape very reminiscent of the Wild West made me nostalgic for a time I was never a part of. Now days I spend my time consuming political philosophy, hiking, and daydreaming.

MAJERLE LISTER Olá, meu nome é Majerle Lister. Sou um aluno na Universidade do Estado do Arizona, onde estudo principalmente Ciências Políticas e, em grau menor, Filosofia. Meu amor pela escrita foi um produto dos filmes de sci-fi e westerns que consumi quando era garoto. Crescer no


deserto do Arizona, na Nação Navajo, permitiu-me uma quantidade ilimitada de tempo para sonhar com histórias e aventuras. Minha época de criança explorando cavernas em áreas isoladas, permitiram a minha mente vagar e pensar em novos mundos e possíveis futuros. A paisagem rude, verdadeira lembrança do Velho Oeste, tornou-me nostálgico por um tempo do qual nunca fiz parte. Atualmente, passo meu tempo consumindo filosofia política, caminhadas e sonhar acordado.

NERY FREITAS Meu nome é Néry Freitas, tenho 38 anos natural do Rio de Janeiro. Lembro de começar a desenhar nos cantos dos cadernos e folhas soltas, onde tinha espaço, estava lá mais um desenho. Até o dia que me deparei com a arte de John Buscema, que mudou minha vida.

OCTAVIO ARAGÃO Octavio Aragão é designer por formação, acadêmico por destino e quadrinista por paixão. Autor dos romances A Mão Que Cria (Mercuryo, 2006) e Reis de Todos os Mundos Possíveis (Draco, 2013), criou a série Intempol em 2000, que já deu origem a diversos contos e HQ, incluindo Até Que Enfim É Quarta-feira (Draco, 2011), que produziu em parceira com Manoel Ricardo. Também é professor da ECO UFRJ, traduziu a HQ Promethea, de Alan Moore (Panini, 2015), e capitaneou diversos eventos de cultura pop, como a SpaceBlooks e a Semana de Quadrinhos da UFRJ, mas sem descuidar dos filhos, Pedro e Gui, e da esposa, Luciana.

RITA MARIA FELIX DA SILVA Pernambucana, 44 anos, professora de Matemática, Química e Física, ama literatura, computação, Internet e escrever. Devido a um perfil bastante anticomercial (em conformidade com suas crenças ideológicas), não tem ainda livros publicados em papel, mas diversos textos seus podem ser encontrados na Internet e em alguns fanzines. Além de prosa, também produz poesias e roteiros para quadrinhos. riteando.worpress.com

ROBERTO DE SOUSA CAUSO Roberto de Sousa Causo é autor dos livros de contos A dança das sombras (Caminho, 1999) e A sombra dos homens (Devir, 2004), e dos romances A corrida do rinoceronte (Devir, 2006) e Anjo de Dor (2009), além do estudo Ficção científica, fantasia e horror no Brasil (Editora UFMG, 2003), que recebeu o Prêmio da Sociedade Brasileira de Arte Fantástica. O Par: uma novela amazônica ganhou o 11.º Projeto Nascente, da Universidade de São Paulo e do Grupo


Abril. Glória Sombria, o primeiro livro da série de space opera As Lições do Matador (Devir) foi lançado em abril de 2013, e foi um dos indicados para o Prêmio Argos 2014 (do Clube de Leitores de Ficção Científica). A série tem sítio próprio na Internet, GalAxis: conflito e intriga no século 25 (galaxis.aquart.com.br), também lar da série Shiroma, Matadora Ciborgue - cujo primeiro livro foi lançado em fins de 2015.

ROCHETT TAVARES Nascido em 1975, na cidade do Rio de Janeiro, trabalha como profissional da área de T.I. (Tecnologia da Informação). Foi um dos selecionados no Prêmio Autor Cearense de 2010, na categoria Otacílio de Azevedo (reedição) com a obra “Criaturas”. Lançou seu segundo livro, “Abismo”, em outubro de 2011 (Editors RHS). O terceiro, Nefastos (Editors Literata), foi lançado em junho de 2012, no evento Confraria Fantástica.". Em Bienais (X e XI Bienais Internacionais do Livro do Estado do Ceará), ministrou as palestras “O Horror Sobrenatural na Literatura” e “A Síndrome d eJeckill e Hyde: Onde termina a Obra e Começa o Autor?”. No momento, dedica-se a produção de artigos, roteiros, contos e outros projetos autorais.


{1}

Esta introdução foi escrita por Márcia Tondello e Rita Maria Felix

{2}

Este artigo, em sua fase concluída e revisada, foi publicado originalmente na edição nº 100 da Revista Acadêmica de História da Universidade de Santo Octávio, em Guimarães, Portugal, Terra 1014 .

{3}

DAVISSON, Clinton. A História da Filosofia. 2 ed. Rio de Janeiro, RJ, Terra 753: Editora Logos LTDA, ano 2005, p. 77.

{4}

Segundo ROSSI (Terra 4515, Ano 2012), Jonas “Apollonius” Bryan Sanderson, avô de Bruce, era idolatrado pelo neto. Jonas foi um militar desapontado com sua pátria. Na década de 20, montou uma seita cristã extremista e isolou-se com um grupo de seguidores num rancho em Nevada, armando devotos e preparando-os para tomar a sociedade após um suposto apocalipse que esperava acontecer em meses. Denúncias chegaram ao governo, que enviou agentes federais, os quais foram recebidos a tiros. Durante o confronto, Jonas e a maioria de seus devotos foram eliminados. Como este império pósapocalíptico seria chamado de “Império Apoloniano”, Bruce, julgando-se herdeiro do legado do avô, criou uma segunda versão usando o mesmo nome. Vide ROSSI, Daniel Folador. O Ancestral do Império Apoloniano: Vida e Morte de Jonas “Apollonius” Bryan Sanderson. 3 ed. Vitória, ES. Terra 4515, Ano 2012. {5} “O que houve de mais revolucionário em Ordonax e sua Interface Dimensional foi o aspecto filosófico envolvido: antes dele já existiam rumores de pessoas que viajavam entre dimensões, porém, a maioria desses relatos ou eram apenas lendas urbanas ou afirmações que nunca puderam ser cientificamente comprovadas. Ordonax, porém, tornou a viagem interdimensional plausível” (MEREGE, Ana Lúcia. História do Multiverso para Jovens. Vol. 1. 2 ed. São Paulo, SP. Terra 915.p. 85). {6}

Conforme nos lembra Rochett Tavares (in TAVARES, Rochett. Lógica e Física Aplicadas às Viagens Interdimensionais. 4 Ed. Belo Horizonte, MG. Terra 1015, Ano 1997, p. 92), o tempo no Multiverso não é simultâneo para todos os mundos. Por exemplo, quando a Terra de Sanderson atravessava a Guerra Fria, a nossa ainda estava séculos atrás. Por isso, a tecnologia deles é bem mais avançada do que a nossa.

{7}

Apôlonia é uma alcunha para o Novo Império Apoloniano, vide JUNIOR, Luiz Mendes. Cultura e Sociedades Apolonianas. Manaus, AM. Terra 815. Ano 1990, p. 33.

{8}

Semelhante ao Império Romano, os apolonianos, embora levem sua religião (o Cristianismo) para os mundos conquistados, tendem a ser tolerantes com outras práticas religiosas nas colônias, uma estratégia adotada desde os tempos de seu primeiro imperador, Bruce Sanderson. Vide TAVARES, Rochett. A Religião e o Modo de Vida Apoloniano. 2 ed. Belo Horizonte, MG. Terra 923. Ano 2003.

{9}

“De forma resumida, a Resistência de Kendack surgiu na Ilha de Kendack, na Polinésia da Terra 555, onde funcionava uma base militar apoloniana que foi, temporariamente, utilizada como prisão de dissidentes políticos. Um desses prisioneiros foi o hoje famoso E’Katorr. Junto a outros três, ele liderou uma revolta na qual oficiais e soldados apolonianos foram mortos e os revoltosos tomaram a base. Kendack acabou se tornando a primeira instalação do que viria a ser a Resistência. Até os dias atuais, é chamada de Resistência de Kendack, pois foi lá que se iniciou”. (VASQUES, Felipe. História da Resistência de Kendack. 7 ed. Vitória, ES. Terra 905. Ano 2001, P. 10).

{10}

LOGUIDEL, Anderson. Tecnologia Criativa. 5 ed. Porto Alegre, RS, Terra Sanus 936: Editora Tecfia LTDA, 2012, p. 33.

{11}

Esta introdução foi escrita por Luiz Mendes Junior, Márcia Tondello e Rita Maria Felix e revisada por Luiz Felipe Vasques e Roberto de Sousa Causo.

{12}

Criada pelo escritor Luiz Vasques William Bliss Baker, pintor naturalista estadounidense {14} These thoughts of Miles are a little different from the version about the beginning of the War of Many Worlds (At least, the one most known). It is possible, as the Kendacks say, which Apolonian authorities make "distortions" and "misinformation" for their soldiers. {15} Doutora em Filosofia e professora de Literatura na Universidade Pierre Jacques Dubois, França da Terra nº 18, o mesmo mundo do qual o Major Aurelio Gomes Albuquerque Filho é originado, conforme a história “Tierrarouge”, publicada no primeiro volume de Crônicas da Guerra dos Muitos Mundos. Este artigo foi publicado no site da universidade http://www.universitépierredubois.fr/ . Esta renomada instituição de ensino superior foi erigida em homenagem ao Professor Pierre Jacques Dubois, um dos quatro fundadores da Resistência de Kendack. {16} Famoso grito de guerra da Resistência de Kendack, conforme citado em MEREGE, Ana Lúcia. História do Multiverso para Jovens. Vol. 1. 2 ed. São Paulo, SP. Terra 915.p. 85 {17} CASTAÑEDA, Ana Maria. O Início da Resistência de Kendack. Vol 2. 3 Ed. Paris. Terra 555. P. 58. {18} Como se sabe, nos mundos que se aliam à Resistência, os kendackianos instalam conselhos que ou irão gerir aquele mundo em conjunto com o governo local - atuando como observadores, conselheiros ou representantes da Resistência -, ou, em alguns casos mais sérios, substituir esse governo. Todos esses conselhos respondem ao Alto Conselho da Resistência de {13}


Kendack. Em contrapartida, nos mundos conquistados ou aliados, o Novo Império Apoloniano costuma nomear governadoresgerais ou interventores ou, ainda, implantar o governo de um chefe aliado local que atuará como líder fantoche do Império.


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