Livro Desconstruindo Amélia

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eminista, freira, lésbica, profissional do sexo, solteira convicta e transexual, essas são as vidas que você irá encontrar nas próximas páginas. Com suas trajetórias e especificidades, essas mulheres farão com que você chore, sofra, ria e viva com elas a cada linha. Mergulhe nas histórias e compreenda que não há uma única fórmula para ser mulher.


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2015 Copyright © by Larissa Zago Roncon; Mayara Castro; Renan Moraes Todos os direitos reservados. Projeto editorial, diagramação e capa: Lucas Yuji Honma Revisão: Larissa Zago Roncon, Mayara Castro e Renan Moraes Fotografia: Larissa Zago Roncon e Renan Moraes Orientação: Prof. Dr. Claudio Bertolli Filho

Castro, Mayara; Moraes, Renan; Roncon, Larissa Zago. Desconstruindo Amélia / Larissa Zago Roncon; Mayara Castro; Renan Moraes. 2015 Orientador: Claudio Bertolli Filho Trabalho de Conclusão de Curso, Modalidade de Produto – Universidade Estadual Paulista. Faculdade de Arquitetura, Artes e Comunicação, Bauru, 2015. 1. Jornalismo. 2. Livro-reportagem. 3. Feminismo. I. Universidade Estadual Paulista. Faculdade de Arquitetura, Artes e Comunicação. II. Título.

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Lislaine, assassinada tragicamente pelo machismo em 3 de abril de 2014. Que mais nenhuma gota de sangue escorra em nome da intolerância.

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agradecimentos

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os nossos pais, que propiciaram a nossa chegada atĂŠ aqui e estiveram presentes em todos os momentos obscuros de nossas vidas. A Felipe, LetĂ­cia, Rossley, Suelen, Ana e Tamyres, que tornaram esse caminho mais leve.

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Hoje, que seja esta ou aquela, pouco me importa. Quero apenas parecer bela, pois, seja qual for, estou morta. Já fui loura, já fui morena, já fui Margarida e Beatriz, já fui Maria e Madalena. Só não pude ser como quis. Cecília Meireles,“Mulher ao Espelho”

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Sumário

Introdução

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A Feminista

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A Freira

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A Lésbica

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A Profissional do Sexo

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A Solteira Convicta

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A Transexual

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A Marcha de Uma (Toda) Mulher

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Introdução

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o Brasil, um membro da comunidade LGBT morre a cada 28 horas vítima de homofobia. A cada uma hora e meia, uma mulher sofre violência doméstica e se junta a essa estatística. Ainda hoje, as mulheres ganham 30% a menos que um homem ao exercerem a mesma função ou cargo. Enquanto você lê este parágrafo, três mulheres foram brutalmente estupradas. Todas essas pessoas permanecem sem voz. Por qual razão, mesmo com essas estatísticas, elas continuam fadadas ao silêncio? Durante toda a sua história, a mulher sofreu com a pressão para se encaixar em um padrão préestabelecido. Não se pode ter opinião própria, apaixonar-se, viver as próprias ideologias. Segundo esse modelo, não cabe a ela ser nada que vá contra o modelo de pessoa cisgênera, esposa, mãe e cuidadora do lar. A imposição torna-se ainda mais forte e injusta quando tira o direito delas de se reconhecerem como pertencentes ao gênero feminino, mesmo quando sabemos que, segundo Simone de Beauvoir (1980), “não se nasce mulher, torna-se”.

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O ser mulher é um fenômeno que merece atenção. Desde os primórdios, a sociedade ensina que ela deve ser frágil e dependente como uma Amélia. Ataulfo Alves e Mário Lago, há mais de 70 anos, escreveram uma canção que exaltou o papel da mulher no imaginário da sociedade no século XX. Nela, diziam: “Amélia não tinha a menor vaidade Amélia é que era mulher de verdade Às vezes passava fome ao meu lado E achava bonito não ter o que comer E quando me via contrariado Dizia: Meu filho, que se há de fazer” Mesmo com todos os avanços conquistados, como o direito ao voto, à educação e ao trabalho, a sociedade ainda estabelece os limites que a mulher não deve ultrapassar. Nesse contexto, qualquer uma que fuja da linha traçada acaba sendo marginalizada, como se sua vida não tivesse o mesmo valor que a de todas aquelas que se encaixam no padrão. É por esse motivo que todas essas mulheres vítimas de opressão ainda não têm forças para levantar a voz, gritar ao mundo e legitimar sua identidade. Escolhemos, por isso, como tema do nosso Trabalho de Conclusão de Curso da graduação em Comunicação Social – Jornalismo, contar as histórias de vida de mulheres que destoam e transgridem as regras sociais vigentes, dando representatividade e mostrando que elas são tão mulheres e podem estar tão satisfeitas como a Amélia descrita pelos compositores. Nossas personagens podem ser encaradas como desdobramentos do

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Introdução

feminismo, mesmo que muitas delas sequer tenham conhecimento desse movimento. Afinal, ele não é composto apenas por teorias, mas também por ações que, por vezes, não estão muito claras na consciência das mulheres. Nosso objetivo não é propor um discurso moralista. Seria utopia acreditar que a sociedade não tem um pensamento próprio a respeito delas. Entretanto, o que deve prevalecer é o respeito às escolhas e às situações de vida de cada uma. Desconstrua-se!

Fontes dos Dados: Grupo Gay da Bahia (GGB), Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) e Secretaria de Políticas para as Mulheres.

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a feminista “Não estou mais aceitando as coisas que não posso mudar. Estou mudando as coisas que não posso aceitar” (Angela Davis)

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hamires, tá incrível o panfleto que vocês fizeram para a Marcha das Vadias, hein?! A arte tá sensacional”. “Sério que vocês gostaram? Que bacana... A gente pegou a arte de um cara de São Paulo. Poxa, que bom mesmo que vocês gostaram, fico muito feliz!”. Esse foi o nosso primeiro diálogo com Thamires Motta, e nos recordamos perfeitamente dele porque é impossível esquecer o brilho no olhar quando, muito orgulhosa, falava sobre o evento que estava organizando. O seu atraso de meia hora para a entrevista era compreensível, afinal, o transporte público de Bauru nunca foi lá aquelas coisas... Thamires Magalhães Motta, de 20 anos, é aluna de Jornalismo da Universidade Estadual Paulista (UNESP) de Bauru. Ingressou na instituição há dois anos, logo após abandonar o curso de Design Gráfico que cursava em uma faculdade particular de São Paulo, da qual era bolsista integral. O que a trouxe para o interior foi um motivo muito especial: ela precisava dar o primeiro passo para se tornar uma jornalista que dá voz às mulheres oprimidas. Thamires é militante feminista.

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a feminista

Nascida e criada em São Paulo, a estudante chegou a Bauru em 2013. Desde então, vem se tornando uma figura conhecida na comunidade universitária por sua luta diária no combate ao machismo. Suas publicações no Facebook, aliás, chamam atenção de qualquer um pela profundidade e pela pertinência. Cursava Design Gráfico apenas pela facilidade em desenhar, até que um infeliz acontecimento mudou os rumos de sua vida e a despertou para o novo mundo em que hoje está inserida. Com quatro irmãos, sendo a filha do meio, ela nos conta que a família nunca pode oferecer muitas coisas, apenas o mínimo de conforto para os filhos. Acredita que o pai, que é o que mais a cobra por resultados, projeta nela os sonhos que nunca pode realizar. A cobrança se tornou mais forte em 2012, época em que teve que decidir o futuro profissional ainda muito jovem. No desespero, aceitou a bolsa integral na universidade. Mas, aquilo não a satisfazia completamente. Precisava de algo mais. Violência Já era noite quando, após dois meses na faculdade, Thamires voltava para casa. O machismo, então, revelou apenas mais uma de suas terríveis e obscuras faces. A jovem foi assaltada e agredida com pedaços de pau por um homem, sem qualquer motivo ou explicação. Extremamente ferida e machucada, sabia que, após aquela demonstração de violência gratuita, já não seria mais a mesma. A insegurança tomou conta de sua mente, o medo de que acontecesse de novo a impedia de sair à noite com os amigos, o pânico não permitia que ela frequentasse regularmente as aulas. Debilitada, em crise e com o emocional em

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ruínas, a situação se estendeu até o momento em que conseguiu um tratamento psicológico gratuito no Hospital Pérola Byington, referência em saúde da mulher em São Paulo. O tratamento mudou a sua vida. O Pérola Byington foi o primeiro contato indireto da estudante com o feminismo. Por ser um centro de referência, a entidade recebe inúmeros casos de mulheres que sofreram algum tipo de violência ou que precisam se tratar de doenças específicas, entre outras pautas. Ali, o olhar aguçado de Thamires a fez perceber que o mundo era um lugar ainda mais injusto para quem não é homem. A própria psicóloga que cuidava do caso orientava o olhar de sua paciente para a violência que tinha sofrido: “Thamires, eles te bateram porque você era mulher”. Essa consciência foi tomando forma na medida em que via inúmeros casos de abuso e violência logo ali, ao seu lado. Com o tempo, o sentimento de impotência em auxiliar as vítimas só cresceu. A psicóloga também fez um teste vocacional com a estudante durante dois dias. O resultado foi uma grande aptidão para escrita, comunicação. Podia fazer algo relacionado à Letras, Ciências Sociais ou... Jornalismo. Eis que, como ela mesma nos disse, se acende uma luz em sua cabeça. “E foi engraçado, porque aquele era o último dia de inscrições para o vestibular da UNESP. Eu já ia prestar, mas ainda tinha a opção de mudar de curso”. Com o constante suporte da profissional, descobriu qual seria a sua função no mundo: através do jornalismo, dar representatividade às mulheres que tinham sofrido algum tipo de violência. Descobriu a sua missão. Era para isso que existia.

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“Bonita é a mulher que luta” A tatuagem com essa inscrição foi a primeira coisa que nos chamou atenção em Thamires. Em um mundo em que o patriarcado ainda é dominante e a luta por uma sociedade mais igualitária é muitas vezes invalidada pela grande mídia, ainda é preciso lutar. O tratamento no Pérola Byington durou cinco meses. Nesse período, foi incentivada a fazer tudo o que lhe fazia bem. Foi aí que o feminismo, até então pouco explorado, começou a ganhar espaço em sua vida. Em março de 2013, se deu alta para poder vir definitivamente para Bauru e começar as aulas no curso de Jornalismo. Nesse meio tempo, começou a participar de algumas manifestações feministas em São Paulo com o pretexto de fotografar, quando, na realidade, ia para “compor” e ver como tudo aquilo funcionava. Um dia inesquecível para ela foi quando participou do seu primeiro ato, o de 8 de março, ao lado de cinco mil mulheres. Estava chovendo demais e as manifestantes que ocupavam as ruas do movimentado centro de São Paulo contornaram uma travessa e pararam para ver se a manifestação terminaria ali ou não. De repente, alguns motociclistas começaram a surgir, querendo passar pela rua lotada. Começaram a ameaçar, tentando avançar em direção às manifestantes. “E então começou a rolar um escracho geral, as meninas cercaram os motoqueiros e começaram a gritar no ouvido deles. Eles ficaram tão chocados que pareciam não acreditar que aquilo estava acontecendo. Foi incrível. Olha, tô até arrepiada só de lembrar”. Aquilo a fez perceber o poder que as mulheres têm quando estão organizadas, já que certamente teria sido atropelada se estivesse sozinha cercando aqueles homens. “As mulheres, quando sozinhas, são só mulheres. Mas, juntas, nós temos poder”.

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Thamires chegou ao interior com a expectativa de viver intensamente a universidade, período que todos acreditam ser o melhor da vida. O feminismo novamente a tocou quando, em uma sala de 40 alunos, somente ela parecia se incomodar com comentários feitos por um professor sobre qual deveria ser o papel da mulher na sociedade. Sem medo de represálias, discutia de igual para igual. Afinal, era importantíssimo problematizar a questão em sala de aula para mostrar que mulher não deve ter a função de ficar em casa cuidando do marido e dos filhos. “Eu tenho uma característica: eu me incomodo muito fácil com as coisas. Como eu posso dizer... sou bem estourada, sabe?!”, diz, com um riso tímido. O seu incômodo era tanto que chegou a apresentar um trabalho sobre feminismo só para desconstruir as ideias machistas reproduzidas em sala de aula pelo docente. A partir desses episódios, outros alunos parecem ter se despertado para o feminismo, inclusive os homens. A passividade foi deixada um pouco de lado para, agora, dar lugar a estudantes que contestam quando alguém produz ou reproduz esse tipo de ideologia. A militância foi uma espécie de consequência na vida de Thamires. Adorava ensinar os significados dos termos utilizados no discurso feminista. Quando ensinava o que era patriarcado, então, o orgulho era grande e a satisfação maior ainda. Para ela, o feminismo está em toda mulher. Talvez esteja adormecido, mas pode ser despertado a qualquer momento, após qualquer circunstância. No caso dela, aconteceu da pior maneira, ao ser agredida em São Paulo, mas nem sempre é ou precisa ser assim. Quem a ajudou muito nesse primeiro contato com a ideologia foi a amiga Jéssica Ipólito, que hoje mantém o blog Gorda e Sapatão. Thamires conversava bastante com ela e lembra que, em algum momento, resolveu se reivindicar militante também.

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Quando participou do maior encontro feminista da América Latina, em Belo Horizonte no fim de 2013, veio a certeza de que estava no caminho certo. Com um brilho enorme no olhar e sem sombra de dúvidas, diz que o evento foi um divisor de águas e que aquilo mudou a sua vida. Thamires soube da reunião por meio de uma antiga professora do Ensino Médio, que começava a perceber seu envolvimento com o feminismo e orientou a estudante a procurar os integrantes do Movimento Mulheres em Luta (MML), que também estava organizado em Bauru. A professora, aliás, sempre orientou seus alunos a lutarem pelo que acreditam e, mesmo após estar há algum tempo afastada de Thamires, lembrou-se da ex-aluna quando tomou conhecimento do evento. O nível de identificação entre as duas era grande, já que ela também era fora dos padrões: usava alargador, tinha tatuagens, todo aquele estereótipo de contracultura. Se identificava com isso por também não corresponder ao que a sociedade insiste em ditar o que é correto para a mulher. Ela aconselhou Thamires a procurar o MML de Bauru e a vender rifas para poder arcar com os custos da viagem. No mesmo instante, a estudante se interessou pela ideia e foi atrás das integrantes do movimento. Ao final, conseguiu a quantia necessária. Uma amiga do MML, Fran, também chegou a lhe emprestar dinheiro. Foi com essa amiga, aliás, que Thamires diz ter aprendido muito sobre as lutas de classe e a sua relação com o feminismo. Afinal, o grau de opressão entre as mulheres não é unânime, já que quanto mais inferior é sua posição econômica e social, mais vitimizada é. O evento durou dois dias e foi fantástico, saiu de lá mudada. No primeiro dia, mesas sobre mulheres lésbicas, negras, transexuais, entre outras. Os debates propiciaram a discussão de pautas que cada segmento do feminismo tem em específico. Já no segundo dia, a meta era a criação do Estatuto do MML.

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“Nesse estatuto estão as reivindicações dirigidas ao Poder Público sobre as necessidades específicas que uma mulher lésbica tem ao se consultar com um médico, por exemplo. Então, exigimos aulas específicas nos cursos de Medicina para que os profissionais estejam realmente aptos a lidar com a gente”. Foi nessa ocasião que se deu conta de que sofria algumas das opressões ali citadas, mas que antes enxergava com uma certa normalidade. Uma delas, como lembra, tem a ver com o uso de preservativos para mulher lésbica, já que o anticoncepcional quase sempre receitado não fazia sentido algum. Além desse encontro em Belo Horizonte, a estudante também já participou de eventos como as duas Marchas das Vadias de São Paulo e do Um Bilhão Que Se Ergue, todos de caráter feminista. Militante organizada A militância organizada teve início após o evento na capital mineira. Estava impressionada com os discursos das feministas que haviam participado do encontro, inclusive com o da esposa do pedreiro Amarildo, na época desaparecido recentemente após ser detido em frente à sua casa, na Favela da Rocinha (RJ), por policias da Unidade de Polícia Pacificadora (UPP). Decidida a mudar o foco, procurou novamente o MML, dessa vez para integrar o movimento. Mas Fran explicou que a organização estava desativada, já que não havia pessoas suficientes para compô-la. A amiga aproveitou a oportunidade para convidá-la a se filiar ao Partido Socialista dos Trabalhadores Unificado (PSTU), também sediado em Bauru. Thamires aceitou. Se identificava com a ideologia e aquele era o momento para fazer algo efetivo na militância socialista.

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A permanência no PSTU durou um tempo considerável, basicamente até o término das eleições presidenciais de 2014. Thamires se manteve ativa, fazendo campanhas de conscientização para mostrar que havia alternativa aos dois vencedores em potencial. Mas, nos últimos meses, sua participação ali não estava lhe soando tão atrativa. Ao dizer isso, logo ressalta: “Claro que eu ainda me identifico com a ideologia, me interesso pelas pautas. Na realidade, é o partido que eu mais me identifico, mas não é o momento de estar na luta partidária”. Grande parte desse sentimento está ligado a uma declaração de uma militante do PSTU que, em uma discussão no Facebook, afirmou que mulheres transexuais, negras e burguesas deveriam ser mortas. O caso teve muita repercussão, levando militantes negras a escreverem uma moção de repúdio dirigida ao partido. A declaração foi erroneamente interpretada como uma opinião oficial da organização. O PSTU lidou individualmente com a militante e a orientou a rever seus posicionamentos, mas aquilo foi a gota d’água. Também já estava incomodada com as escalas hierárquicas do partido e com o fato de uma declaração pessoal sempre ser levada como oficial, como o que ocorreu nesse caso. Pode ser que ela volte, mas, no momento, não se sente confortável. No fim de 2014, Thamires compareceu à audiência pública da CPI das Universidades. Ao notar que USP, UNICAMP e outras instituições expunham problemas relacionados ao machismo no âmbito acadêmico, se questionou: “Mas, cadê a UNESP nesse debate?”. Coletivos de São Paulo e outras cidades estavam lá para denunciar casos de abuso no espaço universitário silenciados por anos, mas sua própria universidade não estava representada ali. Ela afirma que em Bauru isso não é diferente. Não é como se esse tipo de violência não ocorresse, mas sim que a direção é conivente com casos de abusos ao fingir que está

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tudo bem, que nada anormal está acontecendo, quando, na verdade, as vítimas são invisibilizadas e as coisas estão indo de mal a pior. Aquele era o momento de fortalecer o Coletivo Feminista da UNESP de Bauru, do qual foi uma das idealizadoras. O Coletivo começou a nascer em 2014, após o surgimento do Programa de Interação dos Calouros da UNESP (P.I.C.U.), uma iniciativa do Movimento Estudantil da universidade. O propósito do Programa era problematizar a forma como os calouros são recepcionados por seus veteranos, para assim coibir os trotes violentos. Thamires foi chamada por uma amiga para compor uma das ações do grupo, mas que no fim acabou não ocorrendo. Mesmo assim, a equipe se manteve unida pelas redes sociais no grupo do Facebook, que começou a se tornar um espaço em que as garotas relatavam ideias e posições sobre feminismo e machismo, além de desabafar sobre opressões que tinham sofrido por docentes e/ou outros alunos. Era a deixa perfeita para criar um movimento organizado sobre feminismo na UNESP. “Pensei: Ué, se o P.I.C.U. não deu certo, por que não aproveitamos o momento para criar um Coletivo Feminista?”. E foi assim que, no primeiro semestre de 2014, ele surgiu. “A primeira reunião foi num sentido de: Bom, temos um Coletivo Feminista, mas o que fazer agora?”, relembra. Thamires sentia que, no começo, o grupo ainda pautava muito as questões estudantis e que o Coletivo era, na verdade, um apêndice do Movimento Estudantil. A situação começou a mudar quando a organização se envolveu em sua primeira ação. Inconformadas com a popular festa Vírgula, do curso de Engenharia Mecânica da UNESP, as meninas começaram a questionar os organizadores sobre por que homens pagavam R$20,00 e mulheres apenas R$2,00. “Fiz

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um cartaz ridículo sobre isso até e publiquei no evento. Fomos muito rechaçadas. É claro que teve muito apoio, mas o pessoal não entendia que aquele tipo de atitude influenciava a cultura do estupro nas universidades. Tentei explicar que não estava chamando ninguém especificamente de estuprador, mas sim que aquilo facilitava. E eles não entendiam”. Depois disso, o grupo se fortaleceu bastante e foi deixando as raízes do Movimento Estudantil de lado. O segundo ápice foi quando questionaram, nas eleições de 2014, um post de um integrante da Torcida Organizada Febre Amarela com a seguinte afirmação: “Sobre quem votou no PT, só uma coisa a dizer: às vezes a vagabunda se apaixona pelo estuprador“. Novamente, ao questionarem a publicação, as meninas foram, nas palavras dela, “pisadas, rechaçadas, humilhadas”. A discussão começou por volta das 21h e, à meia noite, Thamires já não tinha mais forças para argumentar. Aquilo remetia demais à agressão que havia sofrido em 2012. Para a amiga, disse: “Júlia, tô saindo da discussão. Isso tá me fazendo muito mal. Amanhã de manhã me manda uma mensagem para ver se eu estou bem, posso ter um ataque de pânico a qualquer momento”. Felizmente, isso não aconteceu. No dia seguinte, as militantes espalharam cartazes pelo campus para conscientizar os estudantes. O retorno foi bom. A recém-criada página do Coletivo no Facebook obteve mais de 800 curtidas e a procura pelas reuniões semanais aumentou. Ela sente que, quanto mais o grupo se fortalece, mais as pessoas vêm procurá-lo. Outra organização em que ela está inserida é o Comitê de Combate ao Machismo de Bauru. A associação surgiu com

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Fran (novamente ela!) e Thamires foi se envolvendo com o grupo ao frequentar as reuniões. Uma das primeiras ações foi mapear o machismo em Bauru. A ideia era fazer um questionário que seria distribuído em vários pontos da cidade. No documento, constavam perguntas como “Você conhece a Lei Maria da Penha?” ou, então, “Você é uma pessoa cisgênera ou transgênera?”. O objetivo era detectar a situação da cidade para propor novas ações. Sempre engajada, ela estava animada com a ideia, que acabou não vingando pela dificuldade de se locomoverem pela cidade. “Não tivemos pernas suficientes”, diz, um pouco frustrada. A ideia do Comitê para este ano era exclusivamente marcar a data da Marcha das Vadias, que ocorreu no último dia 7 de fevereiro. Não tinham a pretensão de fazer nada muito além disso. Mas, depois, as coisas foram crescendo. Queriam fazer algo maior, chamando todas as faculdades. Foram acionando todos os contatos em outras instituições. O slogan da edição deste ano, “A culpa não é da vítima”, foi proposto por ela, para fazer uma ligação com o caso de estupro em Bauru em que uma adolescente foi violentada por um grupo de 10 rapazes. Na primeira reunião sobre o evento, aproximadamente 40 pessoas estavam em sua casa. O Comitê está se fortalecendo agora e são várias as entidades que o compõem. “Muita força, filha!” Bauru é uma das cidades em que mais ocorrem estupros no país. Em uma entrevista, uma advogada feminista que coordena a Comissão da Mulher na OAB disse à Thamires que, das cidades do interior, é a que mais tem casos registrados de violência contra a mulher. Não podemos permanecer calados.

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Os pais de Thamires ainda se envolvem pouco com a militância, mas hoje entendem o quão necessário é o papel da filha na luta para romper com as barreiras de gênero e com o machismo. “Minha mãe sempre comenta ‘Muita força, filha’ nas minhas postagens e eu sinto que hoje eles entendem melhor a importância de problematizar essas questões, mas pedem que eu tenha cuidado”. Apesar de ter se consolidado como militante no meio virtual, hoje ela acredita que a internet não é o melhor lugar para se atuar. Sempre didática, nos explica que esse meio não é tão efetivo porque a revolução ocorre, de fato, na rua. “É claro que essa plataforma auxilia na formação política e social das pessoas, mas não é suficiente. Apesar de encontramos uma gama enorme de opiniões, da possibilidade de se aprofundar em diversos assuntos, algumas ainda se fecham em discursos reducionistas. E reproduzir somente esses discursos é extremamente maléfico. Tudo que fomenta a discussão é realmente importante, mas para que as coisas realmente mudem é necessário entrar em contato com a luta organizada, mesmo que na rua”. “E quais são seus próximos passos, Thamires? O que o feminismo pode esperar de você nos próximos meses?”. Ela nos responde que a “fritação” do momento é a Marcha das Vadias, pela qual tem deixado as tarefas acadêmicas um pouco de lado. Nosso tempo acabou, ela tinha mais uma reunião do Coletivo Feminista, que ocorre sempre às quartas-feiras, por volta das 17h30, no bosque da UNESP. Segundo dados de 2013 da Secretaria de Políticas para Mulheres, a cada 12 segundos uma mulher é estuprada e, em cinco anos, os registros desse tipo de crime aumentaram em 168%. Em

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um país como esse, a luta de pessoas como Thamires é mais que importante: é essencial. Essa jovem militante, que apesar da pouca idade se mostra muito convicta em suas ideologias e tem garra de sobra para lutar pelo que acredita, nos convida a sair de nossa zona de conforto para enxergar a dor e a violência que muitas sofrem caladas, já que, se levantarem a voz, são rapidamente silenciadas e estigmatizadas. E, por isso, reafirmamos aqui a frase de sua mãe, Thamires: Muita, mas muita força!

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“Eu vos amo, ó Senhor, sois vós a minha força” (Salmo 18:1)

“V

ocê se sente feliz aqui?”, perguntamos. “Muito feliz. Eu sempre digo que, se eu tivesse descoberto esse lugar antes, teria entrado antes”, sorri. “E a senhora acha que não conseguiria essa felicidade se estivesse num casamento, por exemplo?”. “Eu acredito que não”, responde rapidamente. E continua: “Porque, no casamento, eu seria exclusivamente de uma pessoa. Na vida religiosa, eu sou de todas as pessoas e todas as pessoas me pertencem. Então, eu posso ter todos os filhos que eu quiser ter. Espirituais, né?! Todos são meus filhos, todos são meus irmãos. O nosso coração não é de uma só pessoa, mas sim de toda a humanidade”. Esse foi o ponto alto da entrevista com Irmã Francisca, monja do Mosteiro Imaculada Conceição, em Piratininga (SP), que nos chamou atenção pela suavidade em sua voz. Extremamente calma, comedida e com uma eloquência de causar inveja a muitos, ela nos concedeu um pouco do seu tempo para mostrar o porquê destoava do que a sociedade espera de uma mulher comum. O nosso contato com a freira já tinha começado há cerca

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de um mês. Ligamos seis vezes perguntando sobre a possibilidade de marcar uma entrevista, todas sem sucesso. “Olha, a gente precisa de uma autorização da Madre Inês, que é a responsável pelo convento, mas no momento ela está cumprindo suas obrigações religiosas”, dizia a até então desconhecida Francisca. E assim foi, sucessivamente, até que na sétima tentativa conseguimos: fomos autorizados e a entrevista ficou marcada para um sábado, às 15h. Madre Inês designaria uma das irmãs a falar conosco, a que mais tivesse vocação para isso. Chegamos à pequena Piratininga, de aproximadamente 13 mil habitantes e a 13 quilômetros de Bauru, embaixo de um sol escaldante. O calor era tanto que pensamos em parar em um convidativo parque aquático localizado no meio do trajeto para o mosteiro, mas restavam apenas 40 minutos para o início do nosso encontro. Optamos, então, por chegar um pouco antes, a fim de ter mais tempo para observar o lugar, que logo se mostrou surpreendente. Uma construção nova, espaçosa, que chamou nossa atenção pela sua paz. Borboletas de todas as cores e tamanhos sobrevoavam livremente o extenso jardim que circunda o prédio, ao som do canto de vários pássaros. O Mosteiro Imaculada Conceição nos remete àqueles lugares típicos do interior, onde o tempo parece não passar e a calmaria domina. Já ali fora pudemos perceber o que nos esperava: paz, resignação e simplicidade. Chegamos à porta juntamente com um frade, que estava acompanhado de duas mulheres. Para chamar a atendente, tínhamos que tocar um pequeno sino, localizado ao lado esquerdo da portaria. As badaladas romperam com aquele silêncio extremo. Enquanto aguardávamos na sala de espera, um aroma doce, leve, que remetia à limpeza, invadiu nosso olfato. Entreolhamo-nos, admirados com a organização e quietude daquele espaço. Fomos atendidos por uma freira, que nos orientou a entrar pela porta à nossa direi-

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a freira

ta. “A irmã Francisca já vai receber vocês”, ela disse. Entramos ressabiados. Ora, Irmã Francisca não era a que nos tinha atendido ao telefone? Na certa, ela teria muito a contar, já que, a julgar pela voz, aparentava ter mais idade e, logicamente, mais histórias a serem compartilhadas. Olhávamos todos os cantos para não perder nenhum detalhe daquela que já começava a se tornar uma grande experiência. A sala era espaçosa, abrigava uma mesa no centro, algumas cadeiras extras na lateral e uma imagem de Santa Beatriz. Mas, o que mais nos chamou atenção ali foi a grade que distanciava a sala de um pequeno corredor, uma espécie de barreira que separava dois mundos. Foi pela porta desse corredor que, cinco minutos após a nossa chegada, Irmã Francisca entrou. Surpresa. Estávamos enganados. Francisca, apesar da voz, era uma mulher jovem, bonita, que aparentava ter 30 anos ou até menos, talvez. Sem delongas, nos apresentamos, explicamos os objetivos daquela entrevista e já começamos a gravar. Simone Lopes nasceu há 30 anos na pequena Simões, no Piauí, cidade com pouco mais de 14 mil habitantes. Lá permaneceu até os seis anos de idade, quando o pai, que trabalhava no ramo da construção civil no interior de São Paulo, a trouxe juntamente com a família. Simone morreu com o nascimento de Francisca Beatriz de Maria há pouco mais de cinco anos. Logo quando se ingressa na entidade, o nome civil é abandonado. “É como se morrêssemos para a vida antiga e nascêssemos para uma nova, agora em Cristo”. Francisca Beatriz de Maria é uma homenagem a, respectivamente, São Francisco de Assis (que dá nome à ordem que o mosteiro pertence), à Santa Beatriz (padroeira da entidade) e à Virgem Maria, em quem todas se inspiram. O nome antigo ainda permanece no RG e em outros documentos. A única

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mudança é a foto, que agora é a com as vestes típicas. Já na infância, Francisca teve uma educação religiosa piedosa, como ela mesma diz. A mãe ensinou os oito irmãos a rezarem e orientava-os a sempre frequentar a Igreja. O contato com Deus começou aí. A formação educacional foi toda feita no Estado de São Paulo. Francisca concluiu o Ensino Médio e chegou até a prestar alguns vestibulares, mas nem procurou saber o resultado. Antes do mosteiro, tinha outra vocação: a de cuidar da mãe, que faleceu em 2003, quando ela tinha 18 anos. A partir daí, passou a trabalhar no Hospital Estadual de Bauru. Até então, pensava em viver uma vida comum: cursar uma graduação, ter uma profissão e constituir uma família tradicional. Mas, aquilo não bastava. Começou a frequentar grupos de oração e se envolver em questões missionárias, sempre buscando dar mais sentido à vida. O chamado para a vida religiosa foi se tornando cada vez mais forte a partir de então. “A vida foi me guiando por outros rumos. Fui deixando de lado essa questão da faculdade, tinha sempre uma desculpa para não correr atrás”. O primeiro contato com o Mosteiro Imaculada Conceição ocorreu quando ela compareceu a uma missa da Ordem. Ao conhecer de perto o trabalho das irmãs, se interessou pela vida monástica. As coisas foram acontecendo naturalmente. Quando completou 24 anos, os questionamentos sobre o futuro começaram a surgir. “O que eu quero para minha vida? Isso que tenho hoje basta?”. E foi então que percebeu que uma rotina ao lado da família e amigos não era o suficiente. Precisava de algo maior. Precisava servir a Deus. Como já vinha se comunicando com as religiosas há algum tempo, decidiu ingressar definitivamente na entidade. O ingresso ocorreu sem grandes turbulências, mas foi

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difícil para boa parte dos familiares. Muitos não entendiam a vocação. “Vida religiosa tudo bem, mas por que ser monástica?” Entre a ideia de ingressar e a decisão definitiva, passaram-se seis meses. Precisava resolver questões trabalhistas, conversar com a família e se preparar para a clausura. A distância dos entes queridos é algo que mexe com ela até hoje, mesmo após cinco anos no mosteiro. Os olhos ficam tímidos quando perguntamos deles. Os oito irmãos, dos quais dois moram no Nordeste, ficaram assustados na época, não aceitaram, principalmente por Francisca ser a caçula. Brigaram bastante com ela no início, pois queriam que cursasse uma faculdade antes de tomar qualquer decisão, mas a vocação era maior que tudo. Vocação, aliás, que não dá para ser explicada, apenas surge ao longo da caminhada. “Hoje, eles respeitam a minha vocação, mas você pode apostar que, se eu perguntar se eles querem que eu volte pra casa, vão dizer que sim”. A relação com a família atualmente é muito boa. Todos são unidos e se respeitam mutuamente. É uma relação de reverência e de amizade uns com os outros. O pai, viúvo há 11 anos, voltou para o Nordeste e vive próximo aos dois irmãos. Não se casou novamente. A clausura é necessária justamente para a monja se conectar com Deus em um ambiente livre de interferências externas. Talvez seja ela que choque aqueles que têm a receita da felicidade para a mulher na ponta da língua: casar-se antes dos 30, ter filhos antes dos 35 e alcançar um alto posto no trabalho até os 40. Entretanto, Francisca nos mostra que isso nem sempre funciona. A felicidade pode estar fora dessas amarras sociais. Ela até tentou se encaixar nesse padrão quando teve um relacionamento com um membro do grupo de jovens que frequentava. O namo-

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ro durou um ano e meio, até que, em determinado momento, surgiu a consciência de que não era aquilo o que queria para a sua vida. “Eu não conseguiria ser uma boa esposa, uma boa mãe. Então, foi cada um para o seu lado”. Quando entram no mosteiro, as monjas podem ter contato com os entes mais próximos com frequência de, mais ou menos, três em três meses. Já os que moram mais distantes, Francisca conta que os viu há quase sete anos. Os encontros ocorrem sempre no mosteiro. A rigidez impressiona. As monjas podem sair de, aproximadamente, cinco em cinco anos para visitar algum familiar. Se o motivo for saúde, saem quando precisam. A clausura é, realmente, algo intrigante. Para quem não está acostumado com a ideia, não é fácil compreender como alguém deixa de lado todos os bens, sejam eles materiais ou não, e entes queridos para viver uma vida baseada no voto de pobreza e na simplicidade. A vocação e a fé se mostram fenômenos transformadores. Ingresso na vida monástica Francisca ingressou no mosteiro aos 25 anos. Em contato com a Madre Inês, ela, já decidida a seguir a sua vocação, pediu-lhe para viver uma experiência monástica. “Nunca ninguém nos oferece, somos sempre nós que pedimos para participar”. Os caminhos que a levaram até ali são os mesmos que a mantêm convicta em suas escolhas até hoje. A felicidade em falar sobre a sua vida é notável até mesmo na voz que mantinha sempre o mesmo timbre. A certeza de estar no caminho certo pode ser percebida quando diz que se sente feliz e que, apesar de ter abdicado totalmente de sua vida no mundo exterior, enxerga tudo aquilo como algo maior, uma obra de Deus.

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Quando uma mulher passa a integrar o Imaculada Conceição, vivencia várias fases que a levam, em aproximadamente cinco anos, a fazer os votos solenes, que significam a certeza de que o mosteiro é o seu lugar. As fases são quatro: Postulantado, Noviciado, Profissão Religiosa e Hábito definitivo da Ordem da Imaculada. Apesar de nunca ter tido dúvidas sobre suas escolhas, Francisca revela que, no começo, se assustou com o novo estilo de vida completamente oposto ao que levava. É preciso certo tempo para se ajustar à nova realidade e por fim às antigas lutas interiores. A formação é de responsabilidade de Madre Inês, veterana do convento, que também é administradora da entidade. No Postulantado, a jovem entra, conhece a comunidade, seu funcionamento e seu carisma. Interrompemos: “Irmã Francisca, o que seria carisma, nesse caso?” Ela explica: carisma é o modo de vida de cada mosteiro. Cada Ordem tem normas diferentes em relação, por exemplo, ao comportamento, ao mundo exterior, à formação, entre outras particularidades. O noviciado é a fase em que a iniciante fica por um ano sem nenhuma comunicação externa, para ter certeza de que é aquilo o que quer para sua vida. Essa fase também serve para interiorizar a espiritualidade da obra de Deus. A renúncia de liberdades individuais parece ser a maior abdicação para as jovens ingressantes. “Tem horas que faz falta? Sim”, confessa. “Esse é um processo que dura a vida toda. Não se chega pronta, mas na convivência diária vamos aprendendo”. A Irmã nos conta que muitos não enxergam valor no ingresso de jovens na vida monástica, mas é uma vocação tão importante quanto qualquer outra. Francisca percebe isso no seu cotidiano, quando pessoas vêm até o mosteiro para compartilhar suas alegrias e

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suas dores, e ela pode auxiliá-las por meio do aconselhamento, das orações. Sua maior realização está no outro. Ela se projeta na obra de Deus, abrindo mão de toda e qualquer individualidade. Tudo em prol de um bem maior. O atendimento ao público externo é geralmente feito por Madre Inês. Quando não, ela designa outra Irmã para assumir essa responsabilidade. A ordem Imaculada Conceição é uma das responsáveis pela produção das famosas pílulas de Frei Galvão no Brasil. O produto ganhou visibilidade nacional quando o Frei, que é natural de Guaratinguetá (SP), escreveu alguns versículos bíblicos em um pequeno pedaço de papel, os dobrou delicadamente em partes tão pequenas que pareciam pílulas e os entregou a um marido aflito com o longo trabalho de parto da esposa, que corria risco de vida. A criança, segundo contam, nasceu normalmente. O mesmo ocorreu com um jovem, que foi curado de cálculo renal ao ingerir os pequenos papeizinhos. Irmã Francisca já presenciou os efeitos milagrosos da pílula. Ela nos conta o caso de uma criança que nasceu com hidrocefalia e que foi curada após a sua ingestão. Hoje, ela é, inclusive, coroinha do mosteiro. Outro caso comum é o de esposas que não conseguiam engravidar até tomarem o “comprimido” santo. São vários os casos atribuídos às pílulas de Frei Galvão, mas a fé, conforme salienta Irmã Francisca, é o ingrediente principal. No Mosteiro O Mosteiro Imaculada Conceição é uma instituição antiga que chegou há pouco tempo a Piratininga. Permaneceu em Bauru por 43 anos, quando o crescimento da cidade e a falta de segurança começaram a atrapalhar a rotina das monjas, que têm um estilo de vida contemplativo baseado no silêncio. A clausura

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nos impediu de conhecer suas dependências. Somente uma vez ao ano, no feriado de Corpus Christi, é que as Irmãs abrem as portas de sua casa - ou do seu mundo - para a comunidade. Embora estivéssemos restritos àquela sala, pudemos ainda assim sentir o clima do lugar. As monjas se levantam às 4h45 da manhã, sete dias por semana, quando todas têm seu primeiro momento de oração comunitária e contato com Deus. Baseadas na Sagrada Escritura, contemplam as obras divinas. Depois, é chegado o momento da missa, que é celebrada cada dia da semana por um padre diferente na própria capela da entidade. Chega, enfim, a hora do café da manhã, que também é momento de oração. A partir de então, ela explica que todas partem para o trabalho. As funções de trabalho são rotativas. Em uma semana se cuida da portaria, na outra da cozinha, depois da lavanderia, e assim sucessivamente. Todas têm uma função. O dia é dividido entre momentos de oração e momentos de trabalho. Francisca nos lembra que não se trata de um trabalho comum, em que se cumprem horários e funções específicas. Há também os momentos de estudo, em que elas podem se dedicar ao aperfeiçoamento de algumas atividades. Algumas aproveitam para tocar um instrumento, outras para fazer alguma leitura. “E qual é o seu momento favorito do dia, Irmã Francisca?”. Timidamente, responde que é o recreio, momento em que todas se unem em comunidade para brincar, conversar, “para ter aquela convivência fraterna”. Ela afirma que gosta muito de ler e do momento de oração em particular, em que faz suas próprias preces. Ao longo do dia, são sete os momentos de oração em comunidade, em que costumam rezar ou cantar salmos. Pessoas de todo o Brasil pedem orações para as freiras e elas têm como um dos

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objetivos da vida em clausura rogar a Deus pelos pedidos que chegam dos lugares mais longínquos. As atividades se encerram por volta das 20h30, quando retornam às suas celas para dormir. Cela, no caso, remete a céu. Intrigados, perguntamos se assistem TV. Para nossa surpresa, ela responde afirmativamente. Não com muita frequência, para não se desviarem de seu foco, mas, esporadicamente, acompanham alguns canais como Rede Vida e Canção Nova para se inteirarem da realidade exterior. Ela explica que não podem ficar alienadas, pois precisam ver o que acontece com a sociedade para saber pelo que orar. Vez ou outra, assistem a algum filme, quase sempre sobre a história de algum santo. Todas gostam e ouvem bastante música clássica também. A surpresa é ainda maior quando Francisca diz que elas têm acesso à internet, mas o uso é restrito e sempre para fins religiosos. Para justificar a permanência no mosteiro, imagina-se que todas tenham dentro de si a consciência de que devem cumprir uma missão divina na Terra. Nesse sentido, Francisca acredita que a missão de todo religioso é mostrar o verdadeiro valor da vida e que existe algo mais importante do que o ter ou o ser. “Nada disso traz a verdadeira felicidade se nós não tivermos dentro de nós um motivo maior, que é Deus. Nós estamos aqui para testemunhar esse Deus, que dá um novo significado e sentido à vida. Nós nos realizamos nisso, servindo a Ele”. A realização, então, vem de um lugar bem diferente do que a sociedade espera para a mulher. Para Francisca, a felicidade está em servir a algo superior, buscando o bem de toda a humanidade. O sustento do mosteiro é de inteira responsabilidade das monjas, sem qualquer vínculo com a Igreja Católica. Alguns

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benfeitores colaboram com algumas atividades, mas a renda vem basicamente dos produtos que vendem na portaria. Lá, é possível comprar pães de mel, bolos, licores, doces artesanais, além de artigos religiosos como dezeninhas, terços, biografias de Santa Beatriz, entre outros. Tudo é produzido pelas próprias Irmãs. O delicioso pão de mel é, talvez, o que faça mais sucesso. Vaidade No dia a dia do mosteiro, as monjas buscam viver de acordo com o estilo de Maria. A contemplação das obras de Deus é o elemento principal desse cotidiano. A vaidade é deixada de lado em detrimento da adoração, da oração e da clausura. Não há cuidados em excesso com o corpo. Maquiagens são deixadas de lado, unhas não são pintadas; para o cabelo, só o corte, feito somente por motivos de higiene. Cabelo este que, de acordo com Francisca, é a maior vaidade da mulher. Parte da figura de qualquer freira, os hábitos sempre chamam atenção. E, conosco, não foi diferente. Durante a entrevista, Francisca estava com uma veste branca, que cobria todo o seu corpo. O véu preto indicava um estágio avançado na formação religiosa. Para cada tipo de atividade, uma veste diferente é usada, inclusive para dormir. “Qual a importância de usar este hábito para a senhora?”. Rapidamente, ela responde: “É a vida oculta pra Deus, eu me cubro e me guardo para Ele. É como se somente Ele tivesse acesso a mim”. A vida religiosa não impede que Irmã Francisca se veja livre de arrependimentos. Ela nos conta que, vez ou outra, se pega pensando se não deveria ter entrado antes no mosteiro. Contudo, explica que ali é justamente um espaço em que

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todas são sempre convidadas a repensar sobre si, sobre suas atitudes. Ser uma religiosa também não impede que elas cometam falhas, mas o importante é sempre reavaliar as decisões e posturas tomadas. E será que Francisca sempre foi assim? Ela define o seu eu no passado como um meio termo. Sempre foi silenciosa, mas gostava muito de brincar com os amigos, de marcar programas na casa um do outro, de ir ao cinema. “Sinto saudades, sim”. Se fosse se definir em uma palavra, seria impetuosa. Mas, no Imaculada Conceição, hoje controla melhor essa característica. Alguns de seus amigos também seguiram a vida religiosa. A melhor amiga se tornou freira como ela, mas na Ordem das Carmelitas. Outro amigo agora é seminarista. O contato é mantido com aqueles que ainda frequentam o mosteiro, mas não são todos, já que a maioria teve que seguir com a sua própria vida e não tem como fazer visitas frequentemente. Contudo, Francisca parece ter se acostumado com a ideia. Comunica-se com eles por cartas ou telefonemas e conversa pessoalmente com aqueles que estão mais próximos e que a procuram ao final da missa. O importante, segundo ela, é que saibam que ali ela está feliz, está bem e orando por todos que estão no mundo exterior. E ela também sabe que, lá fora, está tudo bem. Com um estilo de vida baseado em tantas restrições para aqueles que estão acostumados a inúmeras liberdades, é comum que muitas jovens ingressantes desistam da vida monástica. A última desistência ocorreu há cinco anos. Um caso que chamou atenção foi o de uma ex-monja que desistiu após ter permanecido 16 anos em clausura. “Com o convívio diário, nós nos apegamos, então, é difícil quando esse tipo de situação acontece. Mas, queremos que a pessoa seja feliz, então não a

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prendemos. Felizmente, não é comum que isso aconteça”. Este ano Irmã Francisca faz seus votos definitivos. Se, por ventura, desistir da vida monástica e quiser contrair o matrimônio católico, será impedida. Os votos solenes anulam essa possibilidade. Mas, isso não é um problema, dada a convicção de que fez a escolha certa. “Não me resta nenhuma dúvida sobre a minha vocação”. Com seu trecho preferido da Bíblia, o versículo do Salmo 18 “Eu vos amo, ó Senhor, sois vós a minha força”, ela nos conta que os Salmos são os trechos da Bíblia que elas mais rezam no dia a dia. Outra parte que gosta bastante são as cartas de São Paulo. “O que é Deus para você?”, perguntamos, incisivamente. “Deus é essência, é motivo de alegria, é minha felicidade. Não sei como seria a minha vida sem Ele. Eu acredito que não teria sentido. Eu, com certeza, não seria tão feliz como sou. Ele é tudo o que eu sempre quis ter”, responde, sorrindo e emocionada. Francisca provou que a felicidade e a realização pessoal podem estar em lugares distintos para as pessoas. “É comum que as pessoas estranhem, mas, somos mulheres como quaisquer outras”. É verdade, Irmã Francisca. A lição que você deixa, além da humildade e da simplicidade, é a de que não existe apenas uma única fórmula para alcançar a felicidade.

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a lÉsbica “I’m criticized, but all your bullets ricochet. You shoot me down, but I get up. I’m bulletproof, nothing to lose. Fire away, fire away. Ricochets, you take your aim. Fire away, fire away. You shoot me down, but I won’t fall. I am titanium” (Titanium - David Guetta feat. Sia)

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xistem coisas na vida que simplesmente acontecem, são porque têm que ser. Quando algo dá errado, é difícil entender o motivo, não é mesmo?! Tivemos a mesma sensação ao procurar uma mulher lésbica que pudesse contribuir com o nosso projeto. Na primeira tentativa, encontramos uma jovem de São Paulo que topou contar mais de sua vida para nós, mas a distância e a incompatibilidade de horários fizeram com que nosso encontro acabasse não dando certo. Achávamos que essa seria uma fonte fácil de encontrar. Erro nosso. Na segunda tentativa, entramos em contato com uma adolescente de Itapuí (SP), que se mostrou bastante interessada, mas logo deixou de responder às nossas insistentes mensagens e ligações. Sabíamos que o preconceito social ainda era grande e que isso poderia atrapalhar o desenvolvimento da nossa entrevista, mas não imaginávamos que o medo poderia estar tão presente na vida dessas pessoas a ponto de elas se assustarem com a proposta de três estudantes, por mais que o nosso intuito fosse dar voz a quem é marginalizado pela sociedade. Resolvemos não insistir, não queríamos invadir o seu espaço e muito menos

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deixá-la mais desconfortável do que provavelmente já estava. Partimos para outra. Foi assim que um de nós se lembrou de Nana, uma quase personagem da vida universitária de Bauru. Se você é ou já foi estudante de alguma das faculdades da cidade e região na última década, com certeza já foi revistado por ela ou, simplesmente, ouviu falar da figura. Nana é segurança há mais de dez anos e conquistou seu espaço junto aos estudantes. Decidimos entrar em contato com ela, que, sem hesitar, topou conversar. Marcamos uma data e um horário que não atrapalhasse sua rotina maluca de quem dorme quando clareia o dia e acorda quando o sol se põe. Tentamos convencê-la para que pudéssemos ir até a sua casa, mas percebemos que a ideia não era muito agradável a ela. Talvez por não querer expor sua família ou simplesmente para preservar sua própria segurança, já que inimizades não faltam devido à sua profissão. Não sabemos afirmar, mas achamos melhor respeitar. “Na minha casa, então”, disse um de nós. E a tensão se dissipou, dando lugar ao bom humor de Nana. Cerca de 20 minutos antes do horário combinado, estávamos todos reunidos aguardando sua chegada. Não há como negar que Bauru é realmente uma cidade quente, chegamos cansados e sedentos por um copo d’água. Os minutos foram passando e nada de ela aparecer. Foi então que um dos nossos celulares vibrou. “Tive um problema e não vou poder ir. Podemos remarcar?”. Entreolhamo-nos, sabendo de quem era o texto e cientes de que nosso prazo para as entrevistas estava acabando. Preocupados com nosso cronograma, insistimos. Explicamos a situação e pedimos para que ela nos encontrasse, mesmo que precisasse se atrasar. Muito solícita, não pensou

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duas vezes. “Fiquem tranquilos, vou correr aqui e farei de tudo para estar aí o mais rápido possível”. Não demorou muito para que ela chegasse, uns 30 minutos, talvez. Sem as vestes pretas que costumamos encontrar enquanto trabalha, Nana entrou no apartamento de bermuda, camiseta e chinelo. Foi a primeira vez que a vimos durante o dia e ela parecia bastante tímida. Após trocarmos algumas amenidades, demos início à conversa. Queríamos tirar fotos durante a entrevista, mas a timidez crescia a cada flash. “Não podemos fazer as fotos depois? Aí eu venho arrumadinha, passo um gel no cabelinho”. Deixamos as fotos para outro dia. Suzana de Oliveira é a caçula de dois filhos, tem 30 anos e nasceu em Bauru. Durante sua infância e adolescência, estudou em três grandes colégios públicos da cidade e depois ingressou no curso de Educação Física. Não chegou a terminar a graduação, tendo trancado há cerca de um ano e meio. Os pais, um segurança e uma dona de casa, nunca tiveram condições financeiras de dar grandes luxos aos filhos, mas também nunca deixaram faltar o essencial. Como o pai trabalhava à noite e a mãe tinha uma deficiência física que dificultava sua locomoção, Nana sempre fez o possível para se virar sozinha. Aos 19 anos, seguiu a carreira do pai e se aventurou pelas noites bauruenses. “Era muito engraçado, eu era a mais nova da equipe. Com pele de bebê e carinha de menina, ninguém botava fé em mim”, riu. Foi ainda na escola que Nana se reconheceu lésbica. “Não me lembro de ter olhado para um homem de forma diferente, mas foi aos 10 anos que eu comecei a perceber que as meninas me chamavam a atenção”. De lá para cá, o caminho foi longo.

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Nunca tinha conversado sobre o assunto com os pais, mas, aos 23 anos, saiu de casa para morar com outra mulher. “Eu não avisei ninguém. Simplesmente peguei minhas coisas e saí. Como eu dormia pouco em casa, minha mãe só foi perceber dois dias depois”. E assim começou a luta para conquistar a aceitação da família. Ela conta que o pai aceitou a notícia mais facilmente, tendo em vista que ela nunca foi muito feminina. “Quando eu era pequena, minha mãe me vestia com vestidos e eu saia correndo para jogar bola na rua. Acho que, no fundo, ele já sabia”. Já a mãe não gostou nem um pouco do jeito com que ela deixou a casa e muito menos de estar se relacionando com alguém do mesmo sexo. Ficaram seis meses sem se ver, Nana morando com a namorada e a mãe em sua casa. O relacionamento só melhorou quando a dona do apartamento em que Nana morava teve um problema com a Justiça e ela precisou deixar o imóvel de repente. “Nós não tínhamos para onde ir e acabamos indo parar na casa dos meus pais. Minha ex, que na época ainda era atual, nunca tinha entrado lá, não conhecia minha mãe, mas dessa vez entrou pra ficar”. E foi assim, meio sem escolha, que a mãe acabou aceitando a filha de volta. Lá ficaram por mais um mês, até conseguirem alugar outro apartamento e se mudarem. O relacionamento durou oito anos, mas uma nova mulher apareceu em sua vida. Nana e a então namorada já não estavam se dando muito bem. As brigas haviam desgastado o relacionamento, que ia de mal a pior. Na mesma época, uma amiga começou a namorar uma moça de Maceió e pediu sua ajuda para convencê-la a mudar-se para Bauru. Nana entrou na conversa para mostrar que era possível viver na cidade, conseguir um emprego etc. A namorada da amiga realmente veio conhecer o município, mas para ficar com Nana. As duas se envolveram, dando fim a ami-

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zade e ao casamento de anos. O relacionamento engrenou rapidamente. O intervalo entre conhecer Bauru e se mudar para cá durou pouquíssimo tempo. Hoje, Nana mora com os pais e a companheira com o filho de 18 anos, fruto do casamento com um homem. A atual não frequenta a casa dos seus pais e casamento não está nos planos. “Nós estamos juntas há apenas nove meses. Eu estou com outra pessoa agora, então acho melhor não misturar meus pais nisso. Cada uma no seu canto funciona melhor para nós”. Ao ser questionada sobre o relacionamento com a família da atual namorada, Nana só fala a respeito do filho. Eles não se dão bem e, até por isso, fica difícil pensar em dividirem um teto. “Na minha casa, nós nunca tivemos nada do bom e do melhor. Meu pai ensinou que precisaríamos trabalhar pra termos o que nós queríamos ou então só ganharíamos quando ele tivesse condições de dar. Nós entendíamos e vivíamos felizes assim. Já ele, o filho dela, é filho único e tem tudo na mão. Ele quer e no minuto seguinte ele tem que ter. Não sabe dar valor e eu não consigo entender e nem aceitar esse mundo em que ele vive”. Os conflitos, diferentemente do que esperávamos, não se dão pelo motivo de a mãe ter se separado do pai e agora viver um relacionamento homossexual, mas, sim, pela divergência de pensamentos e opiniões em relação à criação do jovem, o que pode acontecer em qualquer relacionamento. Conflitos esses, inclusive, que atrapalham a relação. Nana conta que inúmeras são as brigas que já tiveram por essa razão. Apesar de pertencer a uma minoria, Nana também se considera preconceituosa. Segundo ela, a atual namorada é uma verdadeira exceção em sua vida. Nunca antes havia se envolvido com alguém que já tivesse tido relacionamentos heterossexuais e,

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muito menos, que tivesse um filho. “Ficar, beijar, ok. Até aí, eu não me envolvia com a vida da pessoa. Agora, namorar, ter um relacionamento sério com alguém com esse tipo de passado é novidade pra mim”. Questionamos se esse preconceito poderia ser, na verdade, medo. Medo de que ela pudesse não ter certeza do amor dela por alguém do mesmo sexo ou que ela pudesse voltar com o ex-marido. Nana não soube explicar com certeza, convicção, mas assumiu que essa é uma possibilidade bastante válida. Buscando o seu lugar no mundo “Eu posso dizer que só não sofri mais preconceito porque sempre soube o meu lugar. Eu respeitava o outro para poder merecer respeito também”. É assim que Nana descreve a sua infância e adolescência. Na escola, sempre escutou piadinhas e brincadeiras, mas nada que a tirasse do sério ou perturbasse sua paz. Sempre teve amigas heterossexuais e aprendeu a conviver com elas de maneira harmoniosa. “O preconceito existe exatamente por isso. Muitos homossexuais querem tirar proveito da situação, não entendem que se cada um ficar no seu quadrado, fica tudo bem”, diz, como quem acredita que o preconceito depende do comportamento da vítima e não da ignorância do agressor. Fã do conforto, as calças mais largas e camisetas masculinas já a fizeram ser confundida com um homem muitas vezes. “Direto alguém me chama de mano, parceiro, cara”. Apesar de não ser um homem e não ter vontade de se transformar em um, conta que as confusões não a incomodam. O que a tira do sério, na realidade, é quando colocam sua moral em dúvida simplesmente por ter um estilo mais despojado. Certa vez, enquanto acompanhava a namorada nas compras, começou a ser

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seguida por um segurança. “O dia estava muito frio e eu estava vestindo calças, uma blusa de frio preta e touca. Minha namorada estava escolhendo algumas roupas quando eu percebi que um dos seguranças da loja estava de olho em mim. Para tirar a dúvida, atravessei o lugar e ele me seguiu. Fiquei muito brava e perguntei a ele qual o motivo de ele estar me seguindo. Pedi para chamar o chefe de segurança e, por acaso, era um amigo meu. O cara veio me pedir desculpas, quis apertar a minha mão. Acabei com ele. Quem ele pensa que é pra me seguir dentro da loja?!”, conta, com detalhes impressionantes. Ainda nessa ocasião, Nana presenciou um homem entrar na loja e furtar uma camisa, justamente enquanto o segurança perdia seu tempo analisando seus passos. Ela chegou a mostrar para o chefe da segurança em qual lugar da loja o verdadeiro ladrão havia escondido o sensor do alarme que é anexado às roupas desse tipo de estabelecimento. No trabalho, Nana conta que os padrões mudaram de 10 anos para cá. “Antigamente, ter uma postura e um visual masculinizado poderia trazer algum tipo de prejuízo, mas hoje não. Muitos patrões preferem contratar uma mulher homossexual a uma heterossexual porque não vamos dar gastos como licença maternidade ou chegar tarde porque o filho adoeceu. É duro pensar, mas é real”. É impressionante como a falta de aceitação da sociedade ainda é muito frequente, mas, ao mesmo tempo, o capitalismo usufrui até da especificidade do marginalizado. A vida nas noites bauruenses A noite em Bauru costuma ser bastante agitada. Nana chega a fazer duas ou três festas por noite e nelas enfrenta o mau-humor de muitas meninas que se recusam a serem revis-

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tadas por ela. “Tem muita menina que acha que eu estou ali para passar a mão no corpo dela. Não estou dizendo que isso não existe, já vi muitas seguranças passando dos limites, mas não eu. Se eu estou te apalpando, é porque estou procurando lugares onde você poderia esconder um canivete, um estilete, algo que possa atrapalhar o andamento pacífico da festa. Esse é o meu trabalho e nada mais”. Quando isso acontece, porém, mantém a calma e é bastante direta. Sem revista, ninguém entra. “Ainda na fila, só de olhar, eu já sei se fulano vai ou não dar trabalho, independente de ser homem, mulher, estar bem vestido ou não”, conta, experiente. Principalmente com a quantidade de bebida alcoólica que é oferecida nas festas de hoje em dia. “Já encontrei um 38 escondido na bota de uma menina linda, super patricinha”, emenda. Nana conta que a incidência das drogas também cresceu com o passar dos anos. “Eu nunca usei nada, mas posso dizer que a maioria dos estudantes usa ou já usou alguma coisa”. Os anos já trouxeram tanta vivência que ela é capaz de saber em qual faculdade o usuário estuda só pelo nível da droga que usa. A farinha, como ela chama a cocaína, é uma droga mais cara e, portanto, mais frequente nas faculdades particulares da cidade. Já a maconha é facilmente encontrada entre os alunos das universidades públicas. “Sempre tem muita droga porque a maioria das meninas e dos meninos embala num saquinho e coloca no órgão genital. Como que eu vou barrar isso? Não tem como”. Hoje, o relacionamento com os estudantes é bastante sadio. Nana não é vista apenas como segurança, mas como amiga e parceira de balada. O vínculo de respeito criado é tão grande que é difícil encontrar algum responsável por festa que não conte com ela e sua equipe. Ela tenta ao máximo não se meter em

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brigas e discussões e tenta ser o mais imparcial possível. “Não adianta o dono da festa dizer que é pra deixar o amigo sair com copo de cerveja, mas o resto não. Aqui é oito ou oitenta. Ou todo mundo sai, ou ninguém sai. É seu parceiro? Todo mundo que tá dentro da festa é meu parceiro também. E aí?”. Nana não usa nenhum tipo de acessório para sua segurança. “Vou usar colete à prova de balas pra que, se tem a minha cabeça pra atingir? Se alguém quiser me matar, me machucar, não vou ter o que fazer”. Apesar da aparente vulnerabilidade, pratica artes marciais desde muito cedo. Algumas vezes, inclusive, precisou usar da própria força para se defender e chegou a perder as estribeiras. Era sábado e a festa seria realizada em uma das mais conhecidas chácaras da região. O evento estava no fim e os ânimos de quem lá estava já estavam um pouco alterados tanto pela bebida quanto pela demora dos ônibus que eram responsáveis por levar o público de volta ao centro da cidade. Em determinado momento, um segurança da equipe expulsou um jovem por arrumar briga e atrapalhar a paz da festa. Enquanto isso, Nana guardava o lugar de um outro segurança enquanto o mesmo ia ao banheiro. Expulso, o jovem deu de cara com ela na porteira da chácara e começou a provocá-la. “Ele, muito macho, começou a dizer que eu não o enfrentaria. Eu só esperei e não fiz nada até ele tentar dar o primeiro soco”. E foi assim que os dois, no breu, começaram a rolar na estrada até a chácara vizinha, distribuindo socos e pontapés. Nana não se recorda de detalhes, mas conta que dois homens separaram a briga, pedindo, por favor, para que ela parasse se não quisesse matar o menino. Algumas horas se passaram até que ela pudesse retomar o juízo e finalizar a festa. Já o homem que resolveu

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desafiá-la, esse não passa perto dela até hoje, amedrontado. Responsabilidade e escolhas Ser segurança é muito mais do que zelar pelo próprio bem-estar. Nana conta que muitas foram as vezes em que precisou tomar decisões difíceis para garantir o melhor andamento possível de uma festa e, até mesmo, proteger sua equipe. Apesar disso, nunca “levou ninguém para o abate”, como ela mesma diz, com exceção de uma vez. A Tijuca é uma república bastante conhecida, principalmente entre os alunos da UNESP. O único problema do local é um bar localizado no quarteirão de baixo, que é muito frequentado por pessoas de má índole. Certa vez, em uma festa, um estudante tentou fazer amizade com um grupo de jovens barra pesada que estava na porta da casa. Nana não sabe contar ao certo o que aconteceu, mas relata que a briga começou ali. “O cara quis pagar de vagabundo para o próprio vagabundo. Não se pode mexer com esse pessoal. A lei deles é na base da porrada, do tiro”. O envolvido conseguiu fugir para dentro da festa e Nana só se inteirou da situação quando viu três de seus seguranças segurando fortemente o portão de entrada, enquanto o mesmo recebia chutes e pontapés. Ela saiu para entender o que estava acontecendo e, por coincidência, conhecia um dos cinco homens que estavam do lado de fora tentando entrar. Ele foi muito claro: ou ela entregava o cara que eles queriam, ou os cinco entrariam armados para procurá-lo. “O que eu ia fazer?! Minha equipe não ia conseguir conter cinco homens armados tentando entrar. Chamar a polícia também não ia resolver. Tive que escolher entre entregar um jovem ou colocar todas as centenas de pessoas que estavam dentro da festa em risco. Se eles

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entrassem, iriam atirar para todos os lados e, com certeza, alguém que não tinha nada a ver com a história iria se machucar”. E foi assim a primeira vez que ela entregou uma pessoa em uma briga. “Não deu nem tempo de ver. Foi tirar o cara da festa e os cinco já se juntaram em volta dele”, relembra. Apesar dos pesares e das situações difíceis, Nana pode dizer que é uma mulher bem-sucedida. Dentro do ramo de segurança, cresceu a ponto de, hoje, comandar sua própria equipe, função que, majoritariamente, é assumida por homens. “Não tenho uma empresa, mas trabalho como se fosse chefe. As pessoas me procuram para que eu monte uma equipe de segurança e eu tenho colegas que trabalham comigo há anos. O pagamento é feito diretamente a mim, e eu pago o resto da equipe”, explica. Ciente dos perigos e do ritmo frenético da vida como segurança, não para porque é completamente apaixonada pelo que faz. Planos para o futuro Nana é uma mulher muito bem-resolvida. Nem as contas para pagar e as dívidas que às vezes se acumulam atrapalham sua felicidade. Quando questionada a respeito do corpo, ela é firme ao dizer que não mudaria nada. “Não faria a cirurgia de troca de sexo e também não tiraria meus seios. Eu nasci assim e gosto do que sou”. Bastante descontraída, brinca que, se pudesse, apenas perderia alguns quilinhos. A faculdade ela pretende continuar. Faltando apenas algumas matérias, um de seus sonhos é terminar a graduação e, quem sabe, seguir carreira na área de Educação Física. Sem deixar a atual profissão de lado, é claro.

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Ao fim da entrevista, não é possível enxergar aquela mulher tímida de antes. Ela deu lugar a uma mulher humilde, responsável, forte, destemida, sonhadora e cheia de histórias para contar. Perguntamos o porquê de ela achar que não se encaixava no perfil que a sociedade insiste em impor para as mulheres e a reação dela foi apenas de sorrir. Não por não se incomodar com a pressão ou por não sofrer com o preconceito. Simplesmente porque é convicta demais de quem é para responder na lata, cara a cara conosco. “Eu não sou Amélia porque eu não quero e não preciso ser. Mais do que qualquer padrão, ser mulher de verdade pra mim é ser guerreira”.

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a profissional do sexo “Se acaso me quiseres, sou dessas mulheres que só dizem sim (...) E eu te farei as vontades, direi meias verdades, sempre à meia luz (...) Mas na manhã seguinte, não conta até vinte. Te afasta de mim, pois já não vales nada” (Folhetim/Chico Buarque)

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eu nome é Helen*, e eu sou, é, profissional do sexo”. Foi assim que, depois de quase uma hora pelas ruas bauruenses, entre gotas de chuva e olhares suspeitos, encontramos a personagem que nos ajudaria a conhecer um mundo novo, carregado de preconceito, tabus e histórias impressionantes. Em um discurso nem tanto polissêmico, Helen se descreve: “Eu sou travesti, eu sou mulher, eu sou prostituta”. A imagem à nossa frente nada mais era do que uma fatídica representação do imaginário popular: à meia luz, no meio fio da calçada, estava a sombra daquela que espera o que a noite tem a lhe oferecer. Porém, o que encontramos ao ouvir sua história era muito mais do que a maioria das pessoas pode imaginar de uma prostituta: o dia a dia de uma mulher comum, com hábitos comuns e que sonha em ser Amélia, mas que não pode, porque a sociedade não a aceita assim. Antes de encontrarmos Helen, conversamos com outras duas mulheres. A primeira, uma senhora de meia idade

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que estava próxima à Avenida Nações Unidas e mal aceitou falar conosco. Ressabiada e agressiva, nos colocou para correr, principalmente no momento em que nos apresentamos como jornalistas. Ao contrário do que muitos poderiam pensar, isso não nos causou raiva ou nenhum outro sentimento ruim. Ficamos atônitos por, na verdade, imaginar todas as dificuldades e barreiras que aquela mulher já passou. Em tempos em que o machismo e a violência gratuita e banalizada mandam, mulheres com profissões marginalizadas como a prostituição já devem ter passado todo o tipo de provação e sofrimento. Não é possível julgar aquela atitude e muito menos condená-la. Se ela está lá apenas para ganhar o que lhe é preciso, não somos nós quem devemos atrapalhar. Na segunda tentativa, estávamos mais conscientes de como essa experiência poderia ser difícil. Se durante todo tempo a sociedade só tende a esconder essas mulheres e ignorá-las, por que agora elas não responderiam da mesma forma? Autopreservação é algo que todos, humanos e animais, aprendemos a desenvolver em ambientes inóspitos. A próxima tentativa foi mais positiva. Após nos apresentarmos e explicarmos os nossos objetivos, de forma monossilábica, a mulher aceitou conversar sobre sua vida. “100 reais”, ela impôs. Mas, isso criou uma grande dúvida. “Será que o correto seria pagar? Afinal, estamos atrapalhando o seu horário de trabalho”. “Mas, se estamos pagando, ela vai falar o que realmente ocorre ou o que nós queremos ouvir?”. “É ético pagar por uma entrevista?”. Em meio a tantos conflitos, resolvemos deixá-la como uma opção segura, mas não única. Novamente fomos à busca de outra personagem, que desta vez seria bem mais certeira.

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Já eram cerca de 22h de uma quinta-feira e a chuva insistia em ficar mais forte. Estabelecemos uma meta: se na próxima hora não conseguíssemos nada, mudaríamos nosso método de abordagem e procuraríamos nos classificados dos jornais. Também resolvemos nos apresentar como estudantes e não como jornalistas, já que poderia soar como prepotência. Parece que essa palavra assusta um pouco, o que pode ser considerado engraçado, para não dizer trágico. Quase todo estudante que entra no curso de Jornalismo tem o desejo de mudar o mundo. Alguma coisa acontece nesse caminho para que, no fim, a população mais carente não se sinta representada por essa classe. Na esquina da Avenida Duque de Caxias com a Rua Raposo Tavares, encontramos Helen Cristina, de 27 anos e, como prefere ser chamada, profissional do sexo há 10 anos. Inicialmente meio tímida, ela aceita conversar conosco, desde que seja breve. Entreolhamo-nos, pois sabíamos que, se tudo desse certo, aquela seria uma longa conversa. Em nenhum momento ela mencionou limites ou estipulou um preço. Só pediu para que seu rosto não fosse mostrado integralmente. Por isso, cada foto tirada por nós era mostrada, não por uma imposição, mas para que ela se sentisse segura e tivesse a certeza que, desta vez, não teria sua imagem usada indevidamente. Com uma vida difícil e sem muitas escolhas, Helen começou a se prostituir assim que resolveu viver de acordo com sua identidade de gênero e orientação sexual. “A gente não tem muita escolha, né?! E o dinheiro aqui vem mais fácil do que em qualquer outro lugar para pessoas como nós”. Além disso, devido à resistência encontrada na família, entre os amigos e na

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sociedade, não sobram muitas opções para o contato humano que não por meio do “mundo da noite”, já que, segundo ela, “homem só vê a travesti como objeto de prazer. Só quer sexo e mais nada”. E há, ainda, o alto custo para, fisicamente, se “tornar” mulher. Procedimentos estéticos e cirúrgicos não clandestinos são caros e ela precisou viajar o mundo para, hoje, ter o corpo que sempre desejou, ou quase. Tudo isso contribuiu para que Helen, aos 17 anos, começasse a se prostituir. Estar em uma profissão como esta não é fácil. Totalmente silenciada pelo Estado e abandonada pela sociedade, é necessário criar um próprio código de conduta e esperar o melhor. Helen reza diariamente pedindo proteção. Na maioria do tempo, sente-se como se estivesse apenas “ela e Deus”. Muitas amigas já ficaram para trás por diversos motivos: implantes de silicone industrial que deram errado, abusos de clientes e uso de drogas. Mesmo com todos esses riscos, ao definir sua profissão em uma palavra, Helen escolhe “satisfatória”. Principalmente porque as transformações necessárias para se tornar a mulher que queria ser vieram de sua dedicação à profissão. Vaidosíssima, adora se cuidar e ir à academia. “Não adianta você estar em um corpo e não se sentir bem. Eu não me sentia bem. Me olhava e me sentia mal. Agora tenho o que sempre quis e, então, me cuido muito”. Seu próximo sonho? Embarcar para a Tailândia e conseguir fazer a cirurgia íntima que eliminará de uma vez por todas o único motivo que alguns ainda têm para chamá-la de homem.

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Carreira “Meu interesse pela prostituição aconteceu logo de cara. Fiz amizade com as meninas (outras travestis) e fiquei empolgada para viajar. O dinheiro vai rendendo. E você sabe que o dinheiro sobe à cabeça, né?!” Helen tem um vasto currículo quando o assunto é experiência de trabalho. Na prostituição há uma década, ela já viveu de tudo um pouco e, inclusive, morou por mais de dois anos na Europa, em países como Portugal, Espanha e Suíça, de onde foi deportada há dois anos ao ser pega como imigrante ilegal. A oportunidade de ir para o exterior surgiu logo nos primeiros anos de prostituição, enquanto trabalhava para uma cafetina em Londrina (PR). A proposta, segundo Helen, surgiu de uma amiga de sua empregadora que, ao conhecê-la, ficou surpresa com tamanha beleza e feminilidade. Mas, para atingir o sucesso, era necessário, antes, fazer o implante de prótese nos seios bancado pela agenciadora e pago em várias parcelas. Ao término da primeira dívida, uma nova com os custos da viagem foi contraída e, durante um bom período, Helen atuou em Portugal para pagá-la. A partir daí, trabalhava por conta própria e o lucro, agora, era todo seu. Em países da Europa, segundo ela, a busca por profissionais do sexo é feita quase que exclusivamente on-line. Não há pontos em ruas estratégicas como no Brasil, o que garante muito mais segurança para os envolvidos. Foi lá que a garota de programa teve a experiência mais estranha de toda a sua carreira. “O cliente me encheu de pren-

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dedores nos seios, na boca e em vários lugares, e queria me ver sentir dor, o louco. Teve um momento em que ele queria derreter vela em cima de mim. Daí eu disse: ‘Ai já é demais, né, querido?!’”, conta, entre gargalhadas. Apesar do bom humor e da facilidade com que fala no assunto, Helen deixa claro que fazer da rua o seu ofício é como brincar diariamente de roleta russa. Alguns dos clientes a procuram para conversar, para relações sexuais mais brandas, um toque, um carinho. Já outros, para fazê-la sofrer, para ser sua perdição. É assim que muitas prostitutas acabam entrando em contato com as drogas e, nesse caso, Helen não foi exceção. Usuária de cocaína por anos, não teve muita escolha ao entrar nesse mundo. “Eu aprendi a me destruir com os clientes, porque, na verdade, são eles que destroem a gente. Nos forçam a usar, oferecem mais dinheiro para ficarmos loucas com eles. E prostituta não sabe falar não para dinheiro”. Limpa há cerca de sete meses, para ela só há um meio de nunca mais cair em tentação: parando de se prostituir. Outra violência constantemente sofrida pelas “filhas da noite” é a homofobia. Alguns homens procuram prostitutas, travestis e transexuais apenas para ofendê-las e lhes infringir o mal. Helen se sente sortuda por nada de grave ter lhe acontecido até hoje, atribuindo esse privilégio a Deus, seu maior protetor. Ser profissional do sexo é, automaticamente, ser uma pessoa nômade. Apesar de ter casa fixa, que divide com uma amiga numa pequena cidade do interior paulista, a cada período de dois ou três meses as prostitutas costumam mudar o município onde trabalham para garantir a alta lucratividade e, como explica, não

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se tornar “carne de vaca”. Para isso, é preciso cumprir uma espécie de Código de Conduta e entrar em contato com as cafetinas que comandam a prostituição no próximo ponto. Caso essa permissão não seja previamente solicitada, os riscos corridos são muitos. “Ao mesmo tempo em que é uma profissão em que há união, você sempre precisa ter alguém para te amparar no lugar onde você está, ou ninguém garante o que pode acontecer”. A prostituição é uma profissão solitária. Apesar de viajarem para vários locais diferentes e sempre conviverem com pessoas novas, nunca se pode confiar cegamente em absolutamente ninguém. Helen está em Bauru há aproximadamente um mês e chega a ganhar R$ 500 por noite. Com uma jornada que dura cerca de 9h e programas de R$ 80 que variam entre 20 e 30 minutos, ela não tem do que reclamar da clientela bauruense. Ela atua como autônoma no município e apenas divide as despesas do apartamento em que está hospedada. Mesmo assim, já tem data de partida, dentro de um mês ou dois. Ao solicitarmos um perfil de seus clientes, ela é objetiva com a resposta: casados, de classe média e heterossexuais. Quanto à idade, a profissional do sexo não soube especificar, já que, apesar de preferir os experientes, há todo o tipo de procura. “Eu gosto de seduzir os homens, de chamar atenção, porque eles olham e param”. Apesar disso, sua única motivação para continuar na profissão é o retorno financeiro. Se fosse trabalhar por prazer, seria em um salão de beleza, mas sabe que sua remuneração seria muito diferente da atual e, por isso, nunca procurou qualquer outro tipo de ocupação profissional.

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A grande dificuldade de seu trabalho, além das violências rotineiras sofridas, é a marginalização. Não há quem faça justiça às injustiças cometidas contra prostitutas, sejam elas mulheres cisgêneras, transexuais ou travestis. “Você tem que receber adiantado, porque depois que o programa acaba tem muita gente que não quer pagar. E é assim, se a gente for roubada e fizer um boletim de ocorrência, não dá em nada, porque a gente é travesti e prostituta. Agora, se a gente quebrar um carro porque o cliente não quer pagar, a gente vai presa. A polícia está do lado deles”. Não há também um seguro de vida, uma previdência social ou qualquer tipo de amparo a essas profissionais. Caso algum acidente ocorra, não há nenhum respaldo e elas ficam à mercê da própria sorte. Ao questioná-la sobre o que o Estado poderia fazer para que ela se sentisse mais pertencente à sociedade, a resposta saiu como sendo um assunto que há tempos passa pela sua cabeça e na de suas companheiras de trabalho. “Eu acho que o Estado poderia nos dar mais segurança e também ajudar a acabar com o preconceito para quem quer sair dessa vida, porque tem muita travesti que tenta, mas não consegue arrumar outro emprego. Como eu, que sou feminina, levo meu RG e lá tem um homem? Eles veem e dizem: ‘Não tem vaga’. Para nós, nunca tem. Se o documento fosse feminino, não teria esse problema”. Fazer programas tem prazo de validade. Com o passar do tempo, o interesse dos contratantes vai deixando de existir. Até lá, são necessários planos para garantir a aposentadoria. Pensando nisso, apesar dos desafios, ela já tem um próximo objetivo profissional bem delimitado. Irá voltar este ano para a Europa para conseguir juntar dinheiro e realizar a cirurgia que, para ela, é mais do que um sonho, é o passaporte para uma vida que sempre sonhou ter e nunca pode.

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Após a mudança definitiva de sexo, Helen quer voltar a estudar para poder trabalhar em algo que considere digno de uma “verdadeira mulher” - como ela define a mulher biológica. Família, Infância e aceitação A infância e a adolescência costumam ser períodos de difíceis descobertas e aceitações para aqueles que não correspondem ao esperado pela sociedade. Nem sempre famílias e amigos estão prontos para lidar com a diferença. Fechar uma porta ou ignorar o outro é sempre a saída mais fácil, mas não para quem sofre. Helen não foi exceção. Durante anos, teve seus sentimentos e vontades silenciados pela família tradicionalmente opressora. Nascida como o único homem entre quatro mulheres, foi criada para corresponder às expectativas que um pai tem para um filho: a do menino que gosta de futebol, “pegador” de mulher e futuro pai de família. Segundo Helen, não há como marcar um momento de descoberta de sua sexualidade, mas, sim, um de se assumir publicamente. “Eu sempre soube que não seria aquele menino que meus pais esperavam, mas eles fechavam os olhos aos meus sinais e eu, envergonhada, me calava”. Apesar da certeza de que não tinha interesse pelo sexo oposto, ela ainda se aventurou a tentar descobrir sabores, digamos, menos amargos nas mulheres, se relacionando com várias meninas e até namorando uma delas. Definitivamente não era ali que encontraria sua felicidade. Quando se assumiu gay, um novo ambiente para enfren-

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tamentos e dificuldades surgiu instantaneamente: a escola. “Só de chegar na porta eu já ficava arrepiada, me vinha uma dor de barriga. Eu sabia que eu iria sofrer perseguições o ano todo”. Cercada pela realidade sufocante causada pela escola, sociedade e família, Helen ficou encantada ao descobrir o mundo das travestis. Enquanto conta, seus olhos chegam a brilhar, tamanha é a sensação de pertencimento a essa nova e desejada realidade. Logo começou a tomar hormônios e, junto com eles, uma decisão definitiva: “É isso o que eu sou”. As mudanças foram feitas inicialmente com o uso de anticoncepcionais que provocam transformações no corpo masculino quando se está na puberdade. Os medicamentos eram facilmente conseguidos pelas outras travestis em postos de saúde. Os problemas só aumentaram com as mudanças físicas que passaram a ocorrer. Seu pai, que já não aceitava sua homossexualidade, passou a travar incessantes batalhas contra a nova forma de vida de “seu filho”. Não houve amparo para Helen que não nos braços de amigas iguais a ela. Ela conta que a própria instituição escolar passou a persegui-la após as visíveis mudanças corporais. A prostituição foi a saída para dois problemas que enfrentava. O primeiro, conforme aprendia diariamente, é que não há emprego dentro de linhas consideradas normais para quem está fora do molde. Estava totalmente excluída devido à sua nova identidade. O segundo era que o grande investimento necessário para alcançar o corpo desejado não seria pago com qualquer emprego ralado e de pouca recompensa. Helen fez cirurgia nos seios, coxas e nariz. Tirando pelas barreiras familiares e sociais, não houve outros grandes impedimentos

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que a fizessem duvidar daquela nova profissão. Quando se revelou definitivamente como uma travesti prostituta, não teve mais espaço em seu ambiente familiar. E já que ela não podia ficar ali, por que precisaria se contentar em ficar em um lugar qualquer? “Daquela pequena cidade eu saí e conheci o mundo todo. Eu tenho que tirar o chapéu para mim”, diz, orgulhosa. Como diz a sabedoria popular, o tempo acalma tudo, ou quase tudo. Aos poucos, Helen pode voltar a conversar com a família e até se relacionar com a mãe e uma das irmãs. O pai, que não a aceitava desde criança, quis conversar com ela em seu leito de morte. “Uma semana antes de morrer, meu pai me chamou para me dizer que me amava e sempre havia me amado e que não havia nada de errado comigo. Eu sinto muito a falta dele”, conta, com lágrimas nos olhos. Hoje, a família aceita sua profissão e Helen, inclusive, contribui mensalmente com a renda da casa materna, a qual visita em períodos de 3 ou 4 meses. Mesmo assim, ainda é chamada pelos familiares por seu nome masculino. “É doloroso pra mim, mas o que é que eu vou fazer?! O que me dói mesmo é que eu acho que minha mãe tem um pouco de vergonha, porque eu era homem e do nada me transformei em uma mulher”. Talvez, a sonhada alegria e o aconchego familiar não estejam na família em que nasceu com um corpo em que não se reconhecia, mas sim na que vai formar com o corpo que escolheu. Ela não quer ter filhos, mas quer constituir família. “Ninguém quer passar pela vida sozinho, né?!”.

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O processo de transformação ocorreu durante cerca de três anos e mais de sete já se passaram desde então, mas, até hoje, a mãe ainda guarda roupas masculinas para ela, esperando que “Deus faça uma obra em sua vida” e a torne novamente o homem que, na verdade, nunca foi. “Ah, eu queria ser Amélia, sim, mas não dá” “Nós, travestis, somos pessoas muito sozinhas, muito carentes, principalmente de família”. Apesar disso, Helen namora há oito meses e está intensamente apaixonada. O alvo de todo esse amor também é garoto de programa, o que, segundo ela, facilita a convivência, já que um entende as dificuldades e peculiaridades da profissão do outro. A relação deles é muito tranquila e afetuosa, deixando as dificuldades do trabalho fora da rotina do relacionamento. Antes do atual companheiro, ela já teve relacionamentos mais duradouros, mas sempre houve dificuldades. No seu último romance, tentou largar a prostituição após ser pressionada, mas a atrativa facilidade construída pelo hábito falou mais alto. O namoro acabou e os programas continuaram. Porém, se prostituir, para Helen, nada mais é do que um meio fácil de ganhar dinheiro. Não envolve desejos, sonhos, realização profissional ou nada disso. Se pudesse escolher outra vida, mas com o corpo que tem, ela gostaria de ser “Amélia”. Se dedicar exclusivamente a um marido, cuidar do lar. Ter como obrigações a roupa para lavar e o alimento para cozinhar. “Ia adorar ser sustentada pelo marido, ficar em casa o dia todo enquanto ele trabalha. Na vida que eu levo, eu sofro demais”. “E você aceitaria ser aquela mulher submissa?”, perguntamos. “Ah, eu ia adorar!”

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Entretanto, se tivesse sido designada mulher ao nascer ou, então, já tivesse conseguido a tão almejada cirurgia de transgenitalização, ela sente que sua percepção de mundo seria outra. “Se eu tivesse nascido com corpo de mulher ou até mesmo se eu fosse operada, seria diferente. Como eu iria ter muito mais oportunidades, conquistaria minhas coisas por mim mesma. Daí, eu ia pensar mais em mim e poder viver por mim. Eu não seguiria esse padrão de Amélia, mas, como eu vim nesse corpo pra esse mundo, não tenho muito o que querer, né?!”.

*Helen é um nome fictício para preservar a identidade da fonte.

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a solteira convicta “Jamais deixe que sua felicidade dependa dos outros. Ninguém deixaria de ser feliz por você” (Autor desconhecido)

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ncontrá-la foi uma saga realmente digna de um livro. Não queríamos defini-la, muito menos enquadrá-la em algo que imaginávamos que pudesse ser antes mesmo de conhecê-la. E, por isso, não sabíamos como ou onde procurar. Só havia uma certeza: estávamos sedentos por histórias, por vidas que transgridem. Chegamos a entrar em contato com algumas outras mulheres que também afirmavam não querer casar e ter filhos, mas, por ainda serem muito jovens, não haviam vivenciado de fato o discurso que reproduziam. Após várias tentativas frustradas e já com uma preocupação latente que nos tirava o sono, uma publicação em uma rede social chegou até Karina Rofato. “Procura-se mulher solteira que não pretenda se casar e ter filhos para uma entrevista”, escrevemos e, pacientemente, aguardamos. Não demorou muito até que ela se manifestasse. “Sério que vou ajudar vocês?”, foi assim nosso primeiro contato, ainda via Internet. O espanto e a surpresa estampados na pergunta nada tinham a ver com a mulher que encontramos dias depois em sua própria casa. Parecia ser difícil para ela acreditar que suas peculiaridades e diferenças fossem tão importantes para

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nós, já que muito foi julgada por simplesmente ter outros planos que não constituir uma família tradicional. Apesar de ter sua vida estampada ali naquela página do Facebook e vários amigos em comum conosco, evitamos vasculhar as fotos e demais dados ou até mesmo perguntar sobre ela para alguém. Queríamos conhecê-la pessoalmente e compreender os motivos que a fizeram acreditar que poderia nos ajudar. Enfim o dia chegou e o sol resolveu nos presentear com seu calor quase insuportável. Não conhecíamos o caminho até o condomínio em que ela mora e, portanto, saímos do Centro de Bauru por volta de 40 minutos antes do horário combinado. Chegamos adiantados e ela se atrasou. Estava fazendo algo que era novidade: cuidando das responsabilidades de uma casa. Supermercado, decoração, limpeza, enfim, um novo mundo que se abriu há pouco. Após quase uma hora esperando no carro, fomos recebidos por uma Karina de vestido longo e os cabelos curtos ainda molhados de um banho rápido, num desprendimento de causar inveja com os quase quarenta graus que fazia lá fora. Muito educada, nos serviu água gelada e se desculpou pelo atraso. “Não sabia que ser dona de casa dava tanto trabalho”, disse, tentando quebrar o gelo em meio a algumas risadas. A casa, que há pouco ela chama de lar, ainda destacava a recente mudança. Morava ali há apenas dois meses. Bem no meio da sala, havia uma geladeira que ainda não havia ganhado lugar fixo. Os móveis, em geral, ainda não estavam organizados e o pequeno cachorro havia feito a maior bagunça na ausência de Karina e Vivianne, a amiga e ex -professora com quem divide a casa de dois quartos. Distribuímonos em dois pequenos sofás e ela puxou uma cadeira bem a nossa frente. Na cozinha, a amiga começava a guardar as compras do supermercado e, muito simpática, pedia desculpas pela bagunça. “A gente tinha se programado para chegar com tempo de dar

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uma geral na casa, mas perdemos a noção do tempo lá no Centro, tínhamos tanta coisa para resolver. Não reparem a bagunça e fiquem à vontade, por favor”. Estávamos ali, no lugar mais íntimo da vida de um ser humano, prestes a conhecer mais daquela mulher. Começamos nos apresentando e pedimos que ela fizesse o mesmo. “Meu nome é Karina, tenho 35 anos e nunca sonhei com um príncipe encantado, casar e ter filhos”, foi assim que ela se descreveu, bastante direta. Mostrou, inclusive, um corte na mão, proveniente de uma aventura na cozinha. “Lavo, passo, cozinho, mas faço porque preciso, não estou lavando cueca de ninguém”, afirmou, em meio a risos. Realmente, Karina é uma mulher de causar inveja a muitos que sofrem por amor. Ela diz com todas as letras que é muito mais feliz sozinha do que com qualquer homem que já passou por sua vida. Decidida, confiante e impetuosa, não titubeou em momento algum e muito menos abaixou a cabeça para nenhuma das perguntas que fizemos, por mais invasivas que tenham sido. E não foram poucas. Namoros, noivado e... não, casamento não! Quem pensa que ela está solteira há muito tempo se engana. Sua vida foi repleta de namoros longos e envolvimentos sérios. Nossa surpresa foi grande quando Karina começou a nos contar. Muito nova, ainda aos 15 anos, começou a frequentar uma Igreja Batista da cidade. Sua família não era evangélica, mas ela foi convidada um dia a conhecer a religião e acabou se identificando. Lá mesmo engatou um romance com o então filho do pastor. Apesar de gostar do menino, se via muito nova, tinha outras prioridades, ainda gostava de brincar na rua, era uma verdadeira moleca. O namoro não durou muito tempo, cerca de

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sete meses, e logo terminaram. Anos depois, Karina se envolveu com um grande amigo e com ele ficou por cinco anos. Não por vontade própria, mas por ter cedido às insistentes investidas dele. “Nós éramos aquele tipo de amigo que chora as dores no ombro um do outro. Eu contava sobre os meus peguetes e ele contava das peguetes dele. Até que um dia ele virou pra mim e disse ‘Viu, será que você ainda não percebeu que eu gosto de você?’. Eu fiquei sem reação na hora. Como assim vou namorar meu melhor amigo?”. Os dois se davam muito bem e o romance acabou engatando. As crises, porém, iniciaram-se quando ele começou a demonstrar posturas que a deixavam extremamente consternada. Ele fazia faculdade e acreditava que isso era o suficiente para eles, não aceitava que ela tivesse vontade de estudar e crescer profissionalmente. O fim chegou quando ele resolveu falar em casamento. “Sabe aquele papo de que já estávamos juntos há anos e precisávamos tomar um rumo na vida? Então, eu pulei fora na hora”. Separados, o então ex-namorado começou a persegui-la e ameaçá-la. Esse complexo de Cinderela, inclusive, que romantiza a perseguição desenfreada da mulher e afirma que, sim, o homem deve correr atrás, pode deixar marcas irreparáveis. Não a vimos chorar, mas fica claro que o assunto traz lembranças tristes de uma amizade que poderia ter perdurado até hoje. Desse ex-amor, se é que podemos nomeá-lo assim, só restam os processos que ainda correm na Justiça. Os próximos anos seguiram-se bastante tranquilos, até que ela conheceu seu último namorado: um homem separado, pai de duas meninas e consideravelmente mais velho. Devido a sua história, ele dizia não querer uma nova responsabilidade, um novo casamento, o que casava perfeitamente com as preferências de Karina. O relacionamento durou oito anos e foi regado com muita confiança, respeito e liberdade. Ambos saiam desacompanhados, visitavam amigos e sabiam aceitar o espaço um do outro. As coisas estavam

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indo muito bem até que Karina começou a trabalhar em uma multinacional de renome. Assim como a maioria das empresas desse porte, o quadro de funcionários era composto majoritariamente por homens que, para o então parceiro, eram possíveis concorrentes. O ciúme começou a tomar conta do relacionamento, fazendo com que o namorado tomasse uma decisão inesperada: considerar a hipótese de constituir uma nova família e pedir Karina em casamento. Sem saber de nada, ela passava alguns dias no Rio de Janeiro ao lado de uma prima e foi surpreendida com as alianças quando retornou. Contrariada e, mesmo assim, noiva, viu que precisava tomar uma atitude em relação à sua vida. Simplesmente não estava satisfeita com os rumos que sua vida pessoal e profissional haviam tomado. Karina é uma mulher de alta qualificação profissional. Apesar das dificuldades, formou-se em Administração, cursou MBA em Gestão de Recursos Humanos e hoje estuda Produção Audiovisual. Sempre trabalhou na área administrativa, visto o longo currículo que tem, mas seu grande sonho é ser jornalista. Ao falar sobre o assunto, percebemos certa empatia. É como se Karina visse em nós o seu futuro. Ela chegou, inclusive, a iniciar os estudos, mas precisou parar por não ter condições financeiras de pagar a graduação e todos os outros custos que um curso superior acaba gerando. O pedido de casamento, então, foi a gota d’água para que começasse do zero. Terminou o noivado, largou o emprego que a proporcionava a estabilidade de um bom cargo e um ótimo salário, deixou a casa da mãe e foi se aventurar como vendedora em uma loja de bolsas de um dos grandes shoppings de Bauru. Segundo ela, cargo provisório até que tenha condições de cumprir suas metas e planos já traçados. “Voltar a engatinhar não foi

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fácil, não está sendo fácil”, diz ela, que sentiu que era hora de, mais do que nunca, viver para si. “Não vivo nem para a minha mãe, como vou viver para outra pessoa? Casamento está bem longe dos meus planos”, afirma. Questionada a respeito da família, Karina é só sorrisos. Ela foi criada pela mãe, já que o pai morreu aos 27 anos após descobrir e não aceitar que havia sido adotado. “Ele era um rebelde sem causa. Praticamente se matou de tanto beber”. Por conta disso, sempre foi muito apegada à mãe, apesar de nunca ter sido dependente dela. Viúva aos 28, foi uma verdadeira guerreira. Karina conta que ela nunca deixou nada faltar e a educou como uma verdadeira princesa. O tempo passou e sua mãe se envolveu novamente com outro homem, se casou e dessa relação nasceu um menino, hoje com 24 anos. Desse relacionamento, a mãe também não tem boas lembranças, já que descobriu que o companheiro a traía. Muito calma, foi juntando as peças, guardando provas e só terminou a relação quando realmente pegou o marido com outra mulher. Separada, ainda jovem – apenas 59 anos - e bem resolvida, Dona Elvira é categórica ao afirmar que não quer outro casamento. Namorar e dar uns beijos, segundo ela, é uma delícia, mas cada um em sua casa. Talvez seja mesmo verdade o que o velho ditado diz: “Filho de peixe, peixinho é”. Karina tem certeza que acompanhar a trajetória da mãe a fez reafirmar sua independência. Com toda a sua história de vida, a mãe de Karina não a cobra em relação a constituir uma família. “Ela adora o fato de eu não ter filhos ainda. Diz que é muito nova para ser avó”, revela. Mesmo depois de ter ido morar fora, convive diariamente com a mãe e sempre que podem estão juntas. A maior cobrança vem de algumas tias. Uma delas, inclusive, tem 65 anos e nunca

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se casou. Por sentir falta de uma companhia na velhice, sempre diz que é melhor estar mal acompanhada do que só. Frase essa que Karina bate o pé e discorda veementemente. “Não, não e não! Prefiro mil vezes estar só do que mal acompanhada!”. Já a sociedade, essa parece não ter jeito. Muitas foram as vezes em que se sentiu menos valorizada simplesmente por não ter um marido para cuidar e um filho para criar. “As pessoas acham que não sou responsável”, desabafa, com um ar de quem não suporta mais lidar com a situação. Dificuldade que ela encontra até em entrevistas de emprego. “Ainda estava noiva quando fiz a entrevista para trabalhar na loja em que estou hoje. Já quando comecei, não estava mais. Minha gerente achou um absurdo, chegou a ficar com dó e queria arranjar um marido para mim. Mas, quem disse que eu quero casar? Houve também um processo seletivo para uma vaga na gerência e eu tenho certeza que o fato de eu não ser casada contou muito para que eu não fosse promovida. Afinal, meu currículo é ótimo, tenho experiência e, mesmo assim, preferiram contratar alguém de fora”. Se os relacionamentos amorosos não são seu forte, por outro lado as amizades vão de vento em poupa. Karina conta que algumas delas existem há mais de 30 anos. “Sabe aquela amiga de infância que às vezes você fica meses sem ver, mas quando encontra uma sabe o que a outra está pensando? Pois é, eu tenho várias!”. Nesse momento, é visível o entusiasmo que ela imprime em cada uma das palavras que diz. Aliás, naquele mesmo dia receberia amigos de longa data que ainda não conheciam a casa nova. Em seu quarto, que conhecemos depois, havia também um quadro cheio de fotos de companheiros de vida, sempre com sorrisos fáceis e, muitas vezes, copo cheio na mão, costume que não tem mais. “Eu já bebi muito nessa vida. Já passei mal,

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já dei bafão e já fui parar no hospital. Hoje, tento levar uma vida mais saudável, não bebo mais e só como alimentos que fazem bem para o meu corpo. Perdi 17 quilos”, relembra. Karina é realmente uma mulher divertida. “Sou uma pessoa difícil de conviver, tem que saber me levar...”, nos adverte. Segundo ela, com o passar dos anos, as pessoas tendem a ficar mais seletivas e chatas. Se antes via primeiro as qualidades para depois perceber os defeitos, hoje a situação se inverte. Mas, se ela consegue, mesmo com a distância e o tempo, manter as amizades, por que tem tanta dificuldade em se envolver amorosamente? “Porque meus amigos não me prendem e não me cobram. Eu sou do mundo, não sirvo pra isso”, afirma, sem nenhum tom de pesar na voz. Coragem estampada na cara – ou na careca? Que Karina é uma mulher de coragem, já deu para perceber. Mas os poucos que ainda tinham dúvidas a respeito de sua personalidade deixaram de ter em maio de 2014. Uma de suas professoras do curso de Audiovisual propôs aos alunos da turma que produzissem um comercial sobre um tema de sua escolha. Karina e os outros colegas resolveram fazer uma campanha de incentivo à doação de cabelos para instituições que os destinassem às vítimas de câncer. Até aí, não imaginávamos o que estava por vir, mas ficamos deslumbrados com o que nos foi revelado em seguida: Karina resolveu raspar os cabelos durante as gravações. “Eu sempre tive cabelo comprido, sempre fui vaidosa, mas fazia um tempo que eu queria mudar meu visual e senti que essa era a minha chance de radicalizar e ainda ajudar quem precisa. Para doar, eu precisava ter no mínimo 15 cm de fio, então o jeito foi raspar”. Nessa época, Karina ainda trabalhava na multinacional e, por isso, avisou aos chefes que faria a transformação. Ninguém

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botou fé no que dizia e o espanto foi geral quando entrou no ambiente de trabalho na segunda-feira após o grande feito. Na faculdade, muitos pensaram que estava realmente doente. Sua professora, inclusive, só acreditou porque assistiu ao procedimento. Em um abraço apertado, confessou que não esperava que Karina fosse capaz de tanto. Mas, o pior aconteceu nas ruas e percebemos certa dor enquanto relata. Não por ela, mas sim por ter sentido na pele um pouco do que as reais vítimas da doença encaram diariamente. “Vi muitas pessoas olhando torto, atravessando a rua ou simplesmente não sentando perto de mim porque eu não tinha cabelo”. Mas, se muitos foram os comentários sobre ela e os julgamentos sobre sua atitude, pouco Karina se importava. “Eu não estou nem aí para o que falam ou pensam de mim. Eu sou completamente feliz assim”, e sorri. Futuro, relacionamentos e filhos A possibilidade de ter um filho não é novidade na vida de Karina. Em seu último namoro, seu companheiro chegou a sonhar com um fruto da relação. Na época, sua maior vontade era fazer uma grande tatuagem e ele, tentando negociar, chegou a propor que daria o desenho de presente se ela topasse dar a ele um filho. “Primeiro ele ficou muito bravo, depois disse que até pagaria o procedimento, mas que queria um filho em troca”. A proposta foi encarada com escárnio e Karina jamais aceitou. Fica claro em seu olhar que ela jamais daria vida a um bebê em troca de algo tão banal. Não que a tatuagem não fosse importante, mas ela seria incapaz de compará-la com a responsabilidade de gerar, criar e educar um filho.

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Apesar da recusa e de não querer se casar, a possibilidade de criar uma criança não está fora de cogitação. “Eu não queria um filho com ele, naquela situação de troca, mas tenho vontade de adotar um bebê”. O sonho, inclusive, independe de Karina estar casada ou não. De acordo com ela, isso somaria à sua felicidade, mas jamais seria responsável por ela. “Se der certo, ótimo. Se não der, ótimo também!”. Já sobre relacionamentos futuros, Karina não fecha as portas do coração. “Eu não suporto a solidão. Preciso sempre ter alguém por perto. Costumo brincar com a Vivianne dizendo que se eu tivesse ido morar sozinha, não teria sobrevivido à primeira semana. Por isso, não digo que não quero me envolver. Adoro sair, curtir junto, ir ao cinema ou simplesmente ficar em casa assistindo besteira na televisão... Só não quero depender de ninguém. Quero viver pra mim e por mim. Casamento jamais. Morar junto? Poderia pensar sobre o assunto, mas não agora. Daqui uns 10 ou 15 anos, quem sabe?!”, cogita. E emenda: “E olha que eu já tô velha, hein?!”. Quando o assunto é a vida profissional, Karina se anima e afirma com todas as letras “Vou terminar meu curso de Audiovisual e voltar pro Jornalismo, sim”. Sua certeza e determinação são contagiantes. Ela sabe o que quer e, se depender de sua autoconfiança, terá tudo o que sempre sonhou. Sua história de vida deve ser exemplo de questionamento e renovação. Afinal, até quando a sociedade vai interferir nos sonhos e nas vontades de tantas mulheres? De tudo o que querem, o que é realmente fruto da própria personalidade e o que acaba sendo imposto? “Depois de tudo o que eu contei para vocês, como eu vou ser Amélia?”, questiona, com a paz de quem já encontrou o seu lugar no mundo.

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4 anos. O que você fazia aos seus 14 anos? Gina se revelava transexual, assumia um novo corpo, um novo sonho, uma nova identidade. Deixava para trás um pai alcoólatra e homofóbico que não a aceitava, a escola e os padrões conservadores impostos pela sociedade. Agora, definitivamente, Gina conectava ao mundo a menina que sempre foi, mas escondia para si. Antes de encontrarmos Gina, que foi totalmente solícita em aceitar falar sobre sua vida, procuramos várias mulheres transexuais, mas nenhuma concordou em nos ajudar. Apesar de, no começo, algumas se mostrarem interessadas, em um segundo momento criavam resistência e acabavam desistindo. Qual era o motivo? Medo. Só poderia ser medo. Ser transexual, para a maioria, é travar diariamente uma batalha com a sociedade, que, apesar de todas as características externas e psicológicas possíveis, não a aceita como mulher. Ela pode ter cabelos longos, corpo escultural, seios grandes, falar fino e andar de salto alto, atender todos os pré-requisitos do imaginário masculino do que

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é ser mulher e, mesmo assim, a sociedade não a vê como tal. Mas o que é ser mulher, então? Aliás, o que é necessário para ser mulher? Por que a sociedade cria resistência ou se importa em não aceitar algo que está ali, visível e até óbvio? Não é compreensível que, ainda hoje, o ser humano, com tantos avanços tecnológicos e tantas descobertas acerca das mais diversas áreas do conhecimento, se resuma em definir o gênero de outra pessoa apenas por questões biológicas, que sequer estão aparentes em detrimento àquilo que está à frente de seus olhos. Mas, essa resistência, esse preconceito, é o que impera. É o que marca a vida de quase todas as transexuais e, inclusive, a de Gina. O mais intrigante no preconceito contra as transexuais é que, quando elas não estão cientes de seu papel, direitos e valores, acabam aceitando a discriminação como se fosse algo normal, algo merecido devido ao tamanho desconforto que pensam causar. É um peso a se carregar e nada mais pode ou deve ser feito. Sobre preconceito, aliás, Gina disse que nunca sofreu, “porque sempre soube qual é o seu lugar”. Sabia se calar, se esconder, se anular. Apesar de todas as violências silenciosas que sofreu, ela não as reconhece, porque, no fundo, imagina que as merece. É como se, para ter direito a ser quem é, ela precisasse abrir mão de parte de sua liberdade. Parte que inclui não usar as roupas que gosta porque as considera chamativas ou ter coragem de andar de mãos dadas com o próprio marido. Segundo ela, essas atitudes são evitadas para resguardá-lo, já que é ele quem mais sofre preconceito dentro da relação,. Gina pouco conhece a respeito das teorias sobre a transexualidade, pouco tem noção de seus direitos e, definitivamente,

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não é uma mulher empoderada. A simplicidade com que conduz sua vida, também consequência da sua libertação, a impede de requisitar diversos direitos e perceber que todas as desventuras que teve são frutos de um machismo estrutural - mas silencioso - que perpetua e ecoa em sua história. Para entender completamente o contexto de suas escolhas e vivências, também é necessário conhecer o ambiente em que foi criada. Gina nasceu e ainda reside em Itapuí (SP), município de 12 mil habitantes que, em alguns aspectos, parece ter parado no tempo. Apesar do grande desenvolvimento industrial e de dispor de todas as tecnologias que qualquer outro município do Estado de São Paulo tem, alguns costumes seculares ainda imperam e o patriarcado continua presente. Coincidência ou não, por muito tempo a cidade foi considerada a Capital Nacional do Calmante, devido ao número de pessoas que apresentavam um quadro de depressão. Quando a maioria acaba por tentar corresponder a um padrão social inatingível, como, por exemplo, ser heterossexual, cisgênera, bem sucedida, bem relacionada e com índole e histórico impecáveis, algumas pessoas, ou a maioria delas, pode não se sentir confortável pelo caminho. Foi nesse intenso contexto de cobrança social que, há 10 anos, Gina foi a primeira mulher do município a assumir um gênero diferente do que lhe foi estipulado ao nascer. Isso, pelo menos, é o que se tem notícia. Na década de 40, há relatos de uma garota que, ao se definir como homem, foi expulsa e nunca mais voltou para a cidade. É nesse clima quase cinematográfico que Gina se aceitou.

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Infância, libertação e vida Olhando de fora, Gina Beltrame é uma mulher de 24 anos, feliz, satisfeita e completa. Com um bom humor inalterável e uma simplicidade quase poética, somente enxergando o fundo de seus olhos e entendendo as entrelinhas de suas frases é possível compreender o doloroso peso que carrega nas costas, principalmente quando fala sobre o seu passado. Para ela, nunca houve sequer uma parte de si que fosse de um homem, a não ser a física. Desde criança, seu comportamento, desejos, brincadeiras e ações são de menina. “Nunca gostei das coisas que meus irmãos gostavam. Quando eu ganhava um carrinho, eu quebrava para não ter que brincar com ele. Eu odiava. Queria brincar de boneca”. Não houve um momento de descoberta de sua identidade de gênero ou de crise por conta dela. “Eu sempre soube, desde pequenininha, três ou quatro anos, que eu era uma menina”. Seu comportamento destoava ainda mais quando comparado ao de seu irmão gêmeo idêntico. Ele gostava de tudo o que um menino tradicionalmente gosta, e ela, de tudo que uma menina gosta. A discrepância era tanta que, desde o começo, o pai nunca a tratou bem. Gina nos conta que houve muitos momentos de violência quando ele estava alcoolizado e, até mesmo, de inanição. “Quando ele não bebia, era um ‘coitado’. Agora, quando estava bêbado, ele me tratava mal e deixava claro que não me aceitava, mesmo antes de eu me assumir”. O pai morreu em 2004, vítima de cirrose. Conforme os anos foram passando, mais insustentável se tornou para Gina aquela conformidade com o gênero atribuído

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a ela. “Aquilo não me representava e eu não aguentava mais ter que fingir algo que não era real”. As idas às lojas de roupa eram um drama. Ter que colocar camisetas largas era um verdadeiro sofrimento. Dizem que mãe sempre sabe das coisas e a de Gina nunca precisou ser avisada sobre quem a filha, de fato, era. Ela sempre soube, aceitou e a amou como tal, sem cobranças, insultos ou violências. O período entre 13 e 14 anos foi um momento decisivo em sua vida. Sem aguentar mais aquela situação de não pertencimento, Gina se abriu para sua sexualidade. Tentou ficar com garotas, experiência que descreve como “nojenta”. O que ela queria mesmo eram os garotos. Quanto ao seu gênero, a adaptação e aceitação foram mais complicadas e tiveram a intervenção da mãe, que a fez prometer que só faria a transição definitiva quando seu pai falecesse. “Como meu pai já estava muito doente, eu aceitei esperar. Eu já tinha vivido daquele jeito até ali e não ia causar esse desgosto a um homem que estava morrendo”. Gina fala do pai sem nenhum sentimento de perda ou dor. Para ela, ele nada mais era que seu progenitor. Meses depois, o pai faleceu. Não houve um choque para nenhuma das pessoas que a conheciam de forma mais íntima. Todos os sete irmãos até esperavam por aquilo e, dentro de casa, o assunto foi tratado de forma muito natural. Perguntamos a ela como havia sido a reação do irmão gêmeo ao se ver projetado em um corpo de mulher. “Ele já sabia e me apoiou muito. Minha relação com ele sempre foi ótima. Hoje, tenho um sobrinho que adoro”.

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Porém, se o vínculo familiar ou de amizade é um pouco mais aberto, a opinião alheia acaba se manifestando. Alguns amigos e principalmente as amigas permaneceram, mas a maioria se afastou por vergonha ou por desconhecimento. Ela não se importa. “Acho até bom, a maioria das amizades que tive tinham algum interesse. Hoje, sei que só é realmente meu amigo quem gosta de mim de verdade”. A rejeição mais difícil veio de dentro da própria família. Alguns se afastaram por, como dizem, não aceitar seu novo “estilo” de vida. Apesar de dizer não se importar, nas entrelinhas ela deixa claro que isso é, sim, um incômodo. Seu nome surgiu a partir de uma brincadeira com uma amiga enquanto jogavam “taco” na rua. “Vai, Gina”. Entre risos, o nome ganhou espaço e nunca mais mudou. A sua primeira aparição pública já foi em grande estilo. Ela, ainda com roupas masculinas, foi até uma loja e comprou uma saia rodada e de pregas e uma blusinha colada para seu primeiro baile. Lá, não havia como não chamar atenção. O sentimento de Gina foi um misto de euforia e medo para essa nova vida que agora surgia. O inferno são os outros Apesar de enaltecer o lado calmo e feliz de sua vida, com um pouco mais de conversa e convivência, ela, sem saber, sutilmente parafraseia Jean-Paul Sartre: “O inferno são os outros”. Quando Gina se exalta, ela se dirige principalmente à comunidade evangélica de onde mora, inclusive a dois tios, sendo que um deles é pastor de uma igreja ultraconservadora. “Eles tentam me converter o tempo todo e, quando não estão fazendo isso, estão me ignorando. Eles sentem vergonha de me ter na família e, às vezes, até atravessam de calçada quando me veem.

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Parece que eu sou o próprio diabo”. Ela ainda conta sobre o momento em que, definitivamente, rompeu com o tio pastor. “Ele chegou até mim e me disse que se eu não voltasse a ser homem eu iria para o inferno. Mal ele terminou de falar e eu já respondi que quem vai para o inferno é ele, já que eu cuido da minha vida e não fico enganando ninguém”. Apesar de soar como preconceito, todas as experiências que teve em sua vida com evangélicos a levaram a criar um conceito bem sólido sobre os adeptos de religiões dessa matriz. “Eles me olham com nojo na rua e são os que mais se incomodam com minha presença. Eu nem ligo, não mexo com ninguém e não aceito que mexam comigo”. Esse preconceito se manifestou, inclusive, em ambientes de trabalho. Em uma empresa em que trabalhou anos atrás era tratada como homem e seu encarregado lhe dava tarefas masculinas, como a de descarregar caminhões. Categoricamente, afirmava: “Aqui você é homem e será tratado como tal”. Essa foi a única experiência desse tipo, já que as demais empresas sempre deram à Gina oportunidades em empregos considerados femininos. O único momento de dificuldade era o do banheiro. “Antes de me casar, eu tinha que usar o banheiro masculino. Era terrível e eu sempre precisava esperar ele ficar vazio ou chegar antes de todo mundo. Eu tinha que me prevenir, pois sempre havia um engraçadinho”. Até numa situação fora do comum, o machismo acha uma brecha para mostrar seu poder. Enquanto Gina era solteira, ainda era tratada como homem, mas, no momento em que um homem “a aceitou” como mulher e esposa, a sociedade mudou a forma como a enxergava. Antes de ser operária em fábricas de móveis e abatedouros

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de frango, Gina seguiu um caminho que parece fadado à maioria das transexuais e travestis: a prostituição. Dos 15 aos 17 anos, diariamente, fazia programas em Jaú, cidade vizinha à Itapuí. Lá, passou por situações difíceis, como a de ter uma arma colocada em sua cabeça. “Eu não aconselho. É uma vida muito difícil e você tem que esperar sempre o pior”. A mãe, que faleceu há três anos, sabia de tudo e não dormia até que a filha retornasse para casa. Quando fala da mãe, ela se descreve como “sortuda” por ter tido também uma amiga. “Ela sempre me aconselhou, pedia sempre para eu me proteger e dizia que nenhum dinheiro que eu conseguisse me prostituindo pagaria as consequências que eu poderia enfrentar. Sinto muita saudade dela”. Durante esse período conturbado de sua vida, ela testou todos os limites possíveis, inclusive o das drogas. Segundo ela, com exceção da heroína, todos os outros tipos de entorpecentes foram usados. Não gostou de nenhum e, felizmente, tudo não passou de uma experiência de adolescente. Apesar de afirmar ter sofrido pouco preconceito, suas histórias se contradizem em alguns pontos. Várias vezes ela “ficou” com garotos e não lhes contou sobre o sexo atribuído a ela na maternidade, o que já lhe gerou problemas. “Uma vez, eu estava em uma balada que chamava ‘Cala boca e me beija’ e um garoto já chegou me beijando. Eu o beijei de volta e quase não conversamos. Minutos depois, ele voltou querendo me bater porque eu não havia lhe contado que eu era homem. Várias pessoas me defenderam e foi ele que acabou apanhando”, ri, enquanto conta. Na época, Gina ainda usava vestidos, saias e roupas justas, costume que aboliu desde que casou para evitar que seu marido

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seja constrangido na rua. Ela não quer chamar atenção de forma negativa. “Já sou o que sou e ainda vou colocar roupa curta?! Ainda mais sendo casada?!”. Porém, a grande vergonha de Gina está em seu nome de nascença. Em situações como consultas médicas ou em órgãos públicos, quando ele é chamado, ela sempre espera para atender, acreditando que assim ninguém fará a ligação dos fatos. Já tentou fazer a mudança, mas acha o processo muito burocrático e, por isso, acabou desistindo. Além da vergonha, já enfrentou algumas complicações devido aos documentos. Como não tem praticamente nenhum traço masculino, muitas vezes já foi acusada de apresentar documentação falsa. Em determinada ocasião, teve que mostrar seu órgão sexual a um médico para que ele acreditasse que o nome Willians era seu. Para ela, todo esse constrangimento poderia ser evitado se o Estado facilitasse o processo de modificação de nome para pessoas transexuais. Mesmo sendo juridicamente homem e psicologicamente uma mulher, o que ela afirma nunca ter sido é travesti: “Travesti é seu passado”, brinca. Casamento “Fui a um sítio buscar manga com uma amiga, antes mesmo de eu me assumir mulher e o Renan estava lá. Eu gostei dele de cara, mas só voltei a vê-lo quase um ano depois, quando eu já estava transformada”. É assim que, entre risos e com brilho nos olhos, Gina conta como conheceu seu marido. Casados há seis anos e juntos, entre idas e vindas, há nove, ela

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parece ter encontrado no casamento a segurança e a felicidade como mulher que esperava desde criança. O que não significa que seu relacionamento é ou foi fácil, pelo menos para os outros. Após o interesse súbito que sentiu por Renan, Gina esperou por quase um ano para, de fato, ficarem juntos pela primeira vez. Ela nos conta que ela e uma amiga o dividiram: a amiga ficou com ele durante o dia e ela durante a noite. Mas, para ele, não foi necessário escolher: era Gina que faria parte de sua vida a partir dali. Devido a todas as barreiras sociais enfrentadas e, além de tudo, ela como prostituta e ele traficante e usuário de drogas, os dois mantiveram o relacionamento às escondidas por cerca de três anos. Até que houve um basta. Gina, que aparenta ser muito decidida em todas as ações de sua vida, colocou o namorado secreto contra a parede. “Ou a gente vai ficar junto pra valer ou não vamos ficar mais, não quero mais ficar assim. Ninguém tem nada a ver com nossa vida e ninguém vai pagar nossas contas”. Ele, calmo e sucinto, não titubeou: “Eu topo!”. Essas palavras garantem a harmonia do casal e as diversas batalhas que travam juntos até hoje. Quando tornaram o relacionamento público, Gina tinha 19 anos e Renan 17. Segundo ela, a pequena cidade foi tomada por um enorme clima de “bochicho”. Quem mais sofreu foi ele. Todos os amigos lhe viraram as costas e o preconceito foi muito pior do que com ela. Para Gina, ninguém disse absolutamente nada. “Os amigos dele nunca conseguiram entender que ele não deixou de ser heterossexual. Eles não entendem porque não conseguem enxergar que eu, na verdade, sou uma mulher”.

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A família, principalmente a mãe do rapaz, foi a que mais causou problemas ao novo casal. A relação foi tão insustentável que, com menos de três meses de relacionamento sério, os dois já foram morar juntos. O casamento foi construído gradativamente e, aos poucos, conquistou sua estabilidade. Ela conta que, quando mudaram para a primeira casa, levaram apenas um colchão, duas panelas, dois copos, dois conjuntos de talheres e dois pratos. O resto foi garantido com muita luta. Hoje, moram em uma casa alugada que, com orgulho, pagam R$ 400. Têm dois cachorros e móveis extremamente organizados. Eles dividem as tarefas domésticas e ambos cozinham e cuidam do lar. A lavagem das roupas fica sempre por conta do marido, enquanto que a limpeza dos móveis é a esposa quem assume. O próximo passo do relacionamento é o casamento civil. Em setembro, eles assinarão os documentos para, enfim, garantir uma comprovação de sua união mais do que estável. Essa será a primeira relação considerada juridicamente homossexual registrada em cartório no município. Quando perguntamos as principais características na convivência diária, Gina é clara. “Tenho em meu casamento tudo o que uma mulher de sorte tem ou gostaria de ter. Não brigamos e nos respeitamos muito. Ele é muito centrado e faz de tudo para dar o que eu quero. Ele me protege e não deixa que ninguém fale de mim. Apesar de um pouco ciumento, ele é um excelente marido”. Mesmo com essa enorme cumplicidade dentro de casa, Gina não aceita, em nenhuma hipótese, andar de mãos dadas

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com Renan. Ela, de todas as formas possíveis, tenta preservá-lo do preconceito que, como ela conhece na pele, pode ser doloroso. Para ele, tanto faz se ela quer ou não dar as mãos em público. Ele a aceita de qualquer maneira e em qualquer situação. Cirurgias Gina nunca precisou ou desejou grandes transformações corporais para si. Para ela, os seios conquistados por meio de anticoncepcionais e injeções de Perlotan são mais que suficientes. Até cogitou colocar próteses mamárias, mas, como é fumante há cerca de 10 anos, segundo os médicos, a chance de complicações pós-operatórias são grandes. Acabou deixando isso de lado, afinal, não era um grande problema. Hoje, ela gosta do que vê quando se olha no espelho - desde que esteja de calcinha. Quando começou a passar pelo processo de transformação e antes mesmo de começar a tomar hormônios, a mãe a orientou a procurar um endocrinologista. Ela queria ter mais garantias sobre a saúde da filha e também ter certeza de que sua decisão pelo gênero oposto ao de nascença não era um momento de devaneio. O médico que a atendeu pediu uma série de exames e, junto com o resultado, veio a surpresa. Gina conta que, naturalmente, apresentou a testosterona em níveis mais baixos que o estrogênio, por exemplo. Nem mesmo o médico soube explicar o motivo dessa hormonização oposta ao esperado, mas, com uma rápida busca na internet, encontramos artigos que dizem que a psique humana pode influenciar, inclusive, na produção hormonal. Os exames vieram para confirmar o que Gina já sabia. Ela era uma mulher, inclusive em seu corpo biológico. Essa constatação no início da

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adolescência só fez crescer em Gina um sonho e um objetivo que ela repetia para si quase como um mantra: “Quando eu for maior de idade, eu vou ‘tirar’. Quando eu for maior de idade, eu vou ‘tirar’”. Isso a motivou para, há cerca de um ano, procurar o Sistema Único de Saúde (SUS) e dar entrada ao processo para a cirurgia de transgenitalização (ou cirurgia de mudança de sexo). Logo no início, ela foi informada de que 12 etapas teriam que ser cumpridas em um longo processo de avaliação até que ela, de fato, conseguisse fazer a operação. Gina estava animada e a espera valeria a pena. A primeira etapa foi bem simples e consistia em consultar um médico que lhe pediu diversos exames clínicos. Como estava tudo em ordem com seu corpo, ela foi encaminhada para a segunda fase, que também era uma consulta com um médico, dessa vez endocrinologista. Até ai, tudo certo, e Gina, contente, foi encaminhada para a terceira fase. Mal sabia que a maior decepção de sua vida viria em seguida. A etapa de numero três é a de atendimento e avaliação permanente de uma psicóloga, que, entre outras funções, deve fazer o acompanhamento do paciente por cerca de dois anos e, ao final do período, dar um laudo favorável ou não à cirurgia. Gina frequentou as sessões por três vezes e, como diz, desistiu pela forma como as conversas “pesavam em sua cabeça”. Para ela, o que qualquer profissional lhe dissesse seria tomado como verdade absoluta, já que, sem condições de buscar informações em outros meios, não lhe restava opções a não ser a de acreditar neles.

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Apesar de o psicólogo não ser um médico, a população menos instruída ainda o vê assim. As experiências contadas por Gina, inclusive, mostram claramente que o ambiente da Saúde, em geral, é apenas mais um entre os vários que não estão preparados para lidar com situações e pessoas como ela. Logo na primeira sessão, o contato com a psicóloga já foi desconfortável. “Ela me fazia contar tudo. Ficava me perguntando umas coisas que, ah, não sei, eu nem sabia responder. Tem coisa que a gente sente que não sabe falar”. Daí por diante, o que Gina nos conta parece fazer parte de uma conspiração ou, até mesmo, de um filme de terror. Insistentemente, a psicóloga colocou em sua vida uma situação que a faria mudar de opinião em relação à tão sonhada cirurgia. “Da última vez que eu fui atendida, ela me disse que assim que eu ‘cortasse’ fora, eu nunca mais sentiria nenhum tipo de prazer. Nada mais. Outra coisa que ela me disse é que quando eu fizesse a cirurgia, isso acabaria afetando minha cabeça. Eu iria ficar louca. É lógico que eu desisti”. Ao ouvirmos isso, vimos o despedaçar de um sonho em seus olhos. É óbvio que o prazer e a sanidade são essenciais na vida de qualquer pessoa e qualquer um que acreditasse nisso mudaria de ideia. Apesar de ter que conviver com um sentimento de insatisfação para o resto de sua vida, essa ainda era a melhor opção entre ficar frígida e mentalmente instável. Após ouvirmos esse relato por alguns segundos, um profundo silêncio dominou o cômodo em que estávamos. Não sabíamos, ao certo, o que fazer e como dizer a ela que estava sendo vítima, novamente, de um preconceito estrutural que não havia percebido por sua falta de informação e conhecimento. Ten-

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tamos, por meio de perguntas, cavar uma possível consciência ou, pelo menos, criar uma dúvida se aquilo tudo estava correto. Nada. Ela continuou totalmente crente que não queria mais a cirurgia porque, logicamente, gostava de como era psicologicamente e de tudo o que sentia. E se um “médico” havia dito aquilo, então, era verdade e ponto final. Ainda perguntamos: “Mas, se não fosse por esses motivos, você ainda faria a cirurgia?”. “Sim, com certeza. Me incomodo muito ao me olhar no espelho. Acho estranho. Tenho vontade de cortar eu mesma. Aquilo não me serve de nada. É uma pelanca. Acho horrível e me faz sentir muito mal”. Gina não pensa mais em fazer nenhum tipo de mudança cirúrgica em seu corpo e, para ela, esse sempre será um assunto frustrante e doloroso. Olhar-se no espelho deveria remeter à satisfação e encontro consigo mesma. Em seu caso, é algo que sempre, sem saber, mostrará como a falta de preparo e o preconceito por parte da sociedade e do Estado excluem deliberadamente a possibilidade de ela ser do jeito que sempre quis. Sonhos Mais do que sonhos, Gina tem metas bem definidas para sua vida. O primeiro passo, que ela já está cumprindo, é o término de seu Ensino Fundamental e Médio. Há cerca de seis meses ela frequenta um supletivo que é o passaporte para um objetivo maior: se tornar uma técnica em enfermagem. Ela já tem tudo esquematizado em sua mente. Primeiro, termina o supletivo em dezembro e, já no início de 2016, começa a frequentar as aulas do curso.

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Com o novo emprego, Gina espera ganhar mais para, enfim, conquistar outro grande sonho: a sua casa própria. A casa também pode ser vista como um caminho para algo ainda maior. Essa é a condição dada pelo marido para cogitarem a possibilidade da adoção. “O Renan tem um pouco de medo de adotar, porque ele acha que os filhos adotivos são mais fáceis de se revoltar, mas eu quero muito. Quero um menino. E tudo o que eu quero ele me dá, mas primeiro precisamos ter nossa casa, porque pagando aluguel não tem como criarmos um filho”. Apesar do casamento civil já estar marcado, Gina também gostaria de ter “um dia de princesa”. Casar na Igreja, de noiva, com muitos convidados e, depois, uma festa simples. Mas, ela sabe que isso é impossível. “O padre não deixa”. Os sonhos de Gina, como pudemos notar, são como os de qualquer outra mulher operária. Constituir, ainda que arduamente, a sua família e ter um local para chamar de seu são alvos difíceis de serem alcançados, mas que estão cada dia mais próximos de sua realidade. Além dos sonhos de qualquer mulher, ela tem os sonhos de uma transexual. Ter seu nome verdadeiro nos documentos, ser tratada com respeito e poder levar sua vida com tranquilidade e da maneira como bem entender, sem os olhos julgadores sobre ela e seu marido, sem a opressão diária de ter que, constantemente, mostrar que é “mais” mulher do que as outras. Sem precisar, enfim, provar nada para ninguém.

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a marcha de uma (toda) mulher

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eja com seis ou seis mil pessoas, a Marcha das Vadias, que ocorre em diversos países, é a marcha de uma mulher. Ao marchar, cada mulher tem seu motivo particular e seu motivo coletivo para estar ali. Ela luta e milita sozinha, milita e luta por todas. Pela que é prostituta, que é travesti, que é lésbica. Por aquela que não quer se casar, por aquela que preferiu se casar com Jesus. É para a que luta para não ser violentada e para aquela que sofre calada. É para todas as mulheres. É para as prós e as contra. E é para todas as “Amélias”, que não enxergam na vida outro meio de ser. E para as “Não Amélias”, que se descobriram onde a maioria não conseguiu chegar. É para que todas sejam livres: livres para casar, livres para serem só suas, livres para serem donas de si. Feminista, freira, lésbica, profissional do sexo, solteira convicta e transexual. Todas essas e outras milhões têm algo em comum: são mulheres. Não há o que altere isso. O que muda é a interferência da sociedade em suas vidas. Mesmo assim, a seu modo, todas são felizes, realizadas e completas em sua essência.

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O feminismo como o de Beauvoir, Butler, Kahlo, Walker e Eaheart abriu os olhos do mundo para o papel da mulher na sociedade. Criou novos parâmetros e endossou novas lutas. Mas, o feminismo da mulher no dia a dia é aquele que a faz dizer não ao assovio e não aceitar ficar trancada na cozinha. É aquele que a permite usar a roupa que quiser e se negar a precisar de um homem para sair de casa. É aquele que a possibilita assumir sua identidade de gênero e orientação sexual e requisitar um salário justo ao seu trabalho. É o feminismo da mulher que se recusa a ter filhos e daquela que tem, mesmo solteira, quantos filho quiser. Para garantir que o mundo seja realmente um lugar melhor para as mulheres e minorias e não só um recurso poético e imaginário, é necessário, contudo, a união entre elas, o trabalho conjunto, a sororidade. Que cada mulher faça do seu dia uma marcha e deixe de reproduzir o machismo no seu cotidiano. Que cada uma possa ver na outra um pouco de si e encontre nessa semelhança um novo motivo diário para acordar e gritar: “Hoje, se eu não quiser, não serei tradada como Amélia. Nem eu e nem nenhuma de nós!”.

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arissa Yliá Zago Roncon, Mayara Castro e Renan Moraes são estudantes de Comunicação Social – Jornalismo da Universidade Estadual Paulista (UNESP). Incomodados com o silêncio social que acomete as mulheres, resolveram contar algumas histórias de vida como forma de Trabalho de Conclusão de Curso (TCC), sob a orientação do Professor Doutor Claudio Bertolli Filho.

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o Brasil, um membro da comunidade LGBT morre a cada 28 horas vítima de homofobia. A cada uma hora e meia, uma mulher sofre violência doméstica e se junta a essa estatística. Ainda hoje, as mulheres ganham 30% a menos que um homem ao exercerem a mesma função ou cargo. Enquanto você lê este parágrafo, três mulheres foram brutalmente estupradas. Todas essas pessoas permanecem sem voz”. Neste livro, os autores trazem histórias de seis mulheres que, como você poderá notar, transgridem a tradicional imagem da mulher Amélia. Leia e desconstrua-se!


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