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TEXTOS DE JOSÉ SARAMAGO EM PORTUGUÊS

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EXPOSICIONES

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MEMORIAL DO CONVENTO p. 19

Vento p. 20 O vento mudou para sudeste, sopra com muita força, a terra passa em baixo como superfície móvel de um rio que transportasse na corrente campos, bosques, aldeias, cores de verde e amarelo, ocres e castanhos, paredes brancas, velas de moinhos, e também fios de água sobre a agua (…) p. 203 Fumo e nevoeiro p. 26 (…) se exponham e contraponham, as mais das vezes, fumo e nevoeiro, e se conclua coisa nenhuma (…) Fica o silêncio depois da música e depois do sermão, que importa que se louve e sermão e aplauda a música, talvez só o silêncio exista verdadeiramente. pp. 164, 165 Eternidade p. 28 O tempo, às vezes, parece naão passar, é como uma andorinha que faz oninho no beiral, sai e entra, vai e vem, mas sempre à nossa vista, julgaríamos, nós e ela, que iríamos ficar assim a eternidade, ou metade dela, o que já não seria mau. p. 328 A vida p. 30 (…) se não houvesse tristeza nem miseria, se em todo o lugar corressem águas sobre as pedras, se cantassem aves, a vida podía ser apenas estar sentado na erva, segurar um malmequer e não lhe arrancar as pétalas, por serem já sabidas as respostas, ou por serem estas de tão pouca importância, que descobri-las não Valeria a vida duma flor. p. 274 Para vir p. 32 (…) É quando somos velhos que as coisas que estão para vir começam a acontecer, e uma razão de ser assim é que já somos capazes de acreditar naquilo de que duvidávamos, e mesmo não podendo acreditar que tenha sido, acreditamos que será (…) p. 269 Sinais p. 34 Não é verdade que o dia de amanhã só a Deus pertença, que tenham os homens de esperar cada dia para saber o que ele lhes traz, que só a morte seja certa, mas não o dia dela, são ditos de quem não é capaz de entender os sinais que nos vêm do futuro (…) p. 119 O ANO DA MORTE DE RICARDO REIS p. 37 Tarde p. 38 Tão tarde já. Este dia acabou, o que dele resta paira longe sobre o mar e vai fugindo (…) p. 22 Luz p. 40 (...) um homem não pode andar por aí à toa, nem só os cegos precisam de bengala que vá tenteando um palmo adiante ou de cão que fareje os perigos, um homem mesmo com os seus dois olhos intactos precisa duma luz que o preceda, aquilo em que acredita ou a que aspira, as próprias dúvidas servem, à falta de melhor. p. 86 O homem p. 42 (...) é quase sempre assim, um homem rala-se, preocupa-se, teme o pior, julga que o mundo lho vai pedir contas e prova real, e o mundo já lá vai ardiente, a pensar noutros episódios. p. 93 Solidão p. 44 (…) a solidão não é viver só, a solidão é não sermos capazes de fazer companhia a alguém ou a alguma coisa que está dentro de nós, a solidão não é uma árvore no meio duma planície

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onde só ela esteja, é a distância entre a seiva profunda e a casca, entre a folha e a raiz (…) não me lembro de me ter sentido verdadeiramente útil, creio mesmo que é essa a primeira solidão, não nos sentirmos úteis (...) pp. 220, 221 Destino p. 46 (…) talvez isto é que seja o destino, sabermos o que vai acontecer, sabermos que não há nada que o possa evitar, e ficarmos quietos, olhando, como puros observadores do espectáculo do mundo, ao tempo que imaginamos que este será também o nosso último olhar, porque com o mesmo mundo acabaremos (…) p. 396 Infinito p. 50 (…) sabe-se lá que estrela ou papagaio segurarão elas naquele ponto onde a escola diz que se reúnem as paralelas, no infinito, muito grande o infinito tem de ser para que tantas coisas, todas, e de todos os tamanhos, lá caibam, as linhas rectas paralelas, e as simples, e também as curvas e as cruzadas, os carros eléctricos que por estas calhas sobem, e os passageiros que vão dentro deles, a luz dos olhos de cada um, o eco das palavras, o roçar inaudível dos pensamentos (…) p. 73 Estrada p. 52 (…) e ainda bem, quebra-se a monotonia da existência, parecia que tínhamos chegado ao fim da estrada e afinal era apenas uma curva a abrir para outra paisagem e novas curiosidades. p. 204 Lugar p. 54 (…) Vivem em nós inúmeros, se penso ou sinto, ignoro quem é que pensa ou sente, sou somente o lugar onde se pensa e sente, e, não acabando aqui, é como se acabasse, uma vez que para além de pensar e sentir não há mais nada (…) quem estará pensando agora o que eu penso, ou penso que estou pensando no lugar que sou de pensar, quem estará sentindo o que sinto, ou sinto que estou sentindo no lugar que sou de sentir, quem se serve de mim para sentir e pensar, e, de quantos inúmeros que em mim vivem, eu sou qual, quem, Quain, que pensamentos e sensações serão os que não partilho por só me pertencerem, quem sou eu que outros não sejam ou tenham sido ou venham a ser. pp. 23, 24 Carta p. 56 Chove lá fora, no vasto mundo, com tão denso rumor é impossível que, a esta mesma hora, não esteja a chover sobre a terra inteira, vai o globo murmurando águas pelo espaço, como pião zumbidor, E o escuro ruído da chuva é constante em meu pensamento, meu ser é a invisível curva traçada pelo som do vento, que sopra desaforado, cavalo sem freio e à solta, de invisíveis cascos que batem por essas portas e janelas, enquanto dentro deste quarto, onde apenas oscilam, de leve, os transparentes, um homem rodeado de escuros e altos móveis escreve uma carta, compondo e adequando o seu relato para que o absurdo consiga parecer lógico, a incoerência rectidão perfeita, a fraqueza força, a humilhação dignidade, o temor desassombro, que tanto vale o que fomos como o que desejaríamos ter sido (…) p. 192 Chove p. 58 Aqui o mar acaba e a terra principia. Chove sobre cidade pálida, as águas do rio correm turvas de barro, há cheia nas lezírias. p. 11 Lembrança p. 60 (…) e afinal tudo é difuso, brumosa a arquitectura, as linhas apagadas, será do tempo que faz, será do tempo que é, será dos seus olhos já gastos, só os olhos da lembrança podem ser agudos como os do gavião. p. 32 Realidade p. 62 (…) acha que o objecto da arte não é a imitação (…) que a realidade não suporta o seu reflexo, rejeita-o, só uma outra realidade, qual seja, pode ser colocada no lugar daquela que se quis expressar, e, sendo diferentes entre si, mutuamente se mostram,

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explicam e enumeram, a realidade como invenção que foi, a invençãó como realidade que será. p. 105 Núcleo p. 64 O tempo arrasta-se como uma vaga lenta e viscosa, uma massa de vidro líquido em cuja superfície há miríades de cintilações que ocupam os olhos e distraem o sentido, enquanto na profundidade transluz o núcleo rubro e inquietante, motor do movimento. p. 374 Muro p. 66 (…) o muro que separa os vivos uns dos outros não é menos opaco que o que separa os vivos dos mortos (…) pp. 266, 267

0 CADERNO p. 69

Memória p. 70 Físicamente, habitamos um espaço, mas, sentimentalmente, somos habitados por uma memória. Memória que é a de um espaço e de um tempo, memória no interior da qual vivemos, como uma ilha entre dois mares: um que dizemos passado, outro que dizemos futuro. pp. 20, 21 Grito p. 74 (…) Deus é o silêncio do universo e o homem o grito que dá sentido a ese silêncio. p. 58 Humanidade p. 76 Dirão alguns que o cepticismo é uma doença da velhice (...) As esperanças dos jovens nunca conseguiram, até hoje, tornar o mundo melhor, e o sempre renovado azedume dos velhos nunca foi tanto que chegasse para torná-lo pior (...) O que chamamos estado do mundo é o estado da desgraçada humanidade que somos (...) pp. 112, 113

A CAVERNA p. 79

Icebergues p. 80 (…) já vamos atravessando a Cintura Agrícola, ou Verde, como lhe continuam a chamar as pessoas que adoram disfarçar com palavras a áspera realidade, esta cor de gelo sujo que cobre o chão, este interminável mar de plástico onde as estufas, talhadas pela mesma medida, se assemelham a icebergues petrificados, a gigantescas pedras de dominó sem pintas. p. 89 Nada p. 82 (…) as rondas nocturnas com a iluminação reduzida, percorrendo as galerias desertas, descendo e subindo nos elevadores, como se vigiasse o nada para que continuasse a ser nada. p. 259 Estranhos p. 86 (…) de uma hora para a outra passámos a ser como estranhos neste mundo (…) p. 347 Insólita palpitação p. 90 (...) há coisas na vida que se difinem por si mesmas, um certo homem, uma certa mulher, uma certa palavra, um certo momento, bastaria que assim o tivéssemos enunciado para que toda a gente percebesse de que se tratava, mas outras coisas há, e que até poderão ser o mesmo homem e a mesma mulher, a mesma palavra e o mesmo momento, que, olhadas de um ângulo deferente, a uma luz diferente, passam a determinar dúvidas e perplexidades, sinais inquietos, una insólita palpitação (...) pp. 102, 103 Estrada p. 92 (…) a estrada, agora mais suja, atravessa a Cintura Industrial rompendo pelo meio de instalações fabris de todos os tamanhos, actividades e feitios, com depósitos esféricos e cilíndricos de combustível, estações eléctricas, redes de canalizações, conductas de ar, pontes suspensas, tubos de todas as grossuras, uns vermelhos, outros pretos, chaminés lançando para a atmosfera rolos de fumos tóxicos, gruas de longos braços, laboratórios químicos, refinarias de petróleo, cheiros fétidos, amargos ou adocicados, ruídos estridentes de brocas, zumbidos de serras mecânicas, pancadas brutais de martelos de pilão, de vez em quando uma zona de silêncio, ninguém sabe o que se estará produzin-

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do ali. (…) Depois da Cintura Industrial principia a cidade, enfim, não a cidade propiamente dita, essa avista-se lá adiante, tocada como uma carícia pela primeira e rosada luz do sol, o que aqui se vê são aglomerações caóticas de barracas feitas de quantos materiais, na sua maioria precários, pudessem ajudar a defender das intempéries, sobretudo da chuva e do frio, os seus mal abrigados moradores. É, no dizer dos habitantes da cidade, um lugar assustador. pp. 13, 14 Alma p. 94 Diz-se que a paisagem é um estado de alma, que a paisagem de fora a vemos com os olhos de dentro, será porque esses extraordinários órgãos interiores de visão não souberam ver estas fábricas e estes hangares, estes fumos que devoram o céu estas poeiras tóxicas, estas lamas eternas, estas crostas de fuligem, o lixo de ontem varrido para cima do lixo de todos os dias, o lixo de amanhã varrido para cima do lixo de hoje, aqui seriam suficientes os simples olhos da cara para convencer a mais satisfeita das almas a duvidar da ventura em que supunha comprazer-se. pp. 89, 90

CLARABOIA p. 97

Feras p. 98 A vida é uma luta de feras, a todas as horas e em todos os lugares. É o <<salve-se quem puder>>, e nada mais. O amor é o pregão dos fracos, o ódio é a arma dos fortes. Ódio aos rivais, aos concorrentes, aos candidatos ao mesmo bocado de pão ou de terra, ou ao mesmo poço de petróleo. O amor só serve para chacota ou para dar oportunidade aos fortes de se deliciarem com as fraquezas dos fracos. A existência dos fracos é vantajosa como recreio, serve de válvula de escape. pp. 390, 391 Ideais p. 102 Entramos como leões e saímos como sendeiros. Está-nos na massa do sangue... Havia muito entusiasmo, muita dedicação, era como se nos tivesse naseido um filho. Mas havia, também, muita gente disposta a dar cabo dos nossos ideais, E não se olhava a meios. Depois, o pior foi terem aparecido uns tantos que queriam, à viva força, salvar a Pátria. Como se ela estivesse para se perder!... Começon cada qual a não saber o que queria. Amigos de ontem eram inimigos no dia seguinte, sem bem saberem porquê. p. 214 Monotonia p. 106 Todos nós ingerimos diariamente a nossa dose de morfina que adormece o pensamento. Os hábitos, os vícios, as palavras repetidas, os gestos repisados, os amigos monótonos, os inimigos sem ódio autêntico, tudo adormece. (…) Todos trazemos ao pescoço a canga da monotonia, todos esperamos, sabe o diabo o quê! (…) Morfina. Intoxicação permitida por lei e anunciada nos jornais. Pretexto para passar o tempo, como se a eternidade fosse a vida do homem. pp. 270, 271 Ódios p. 110 Se os homens se odiarem, nada poderá fazer-se. Todos seremos vítimas dos ódios. Todos nos mataremos nas guerras que não desejamos e de que não temos responsabilidade. Hão de pôr-nos diante dos olhos uma bandeira, hão de encher-nos os ouvidos com palavras. E para quê, afinal? Para criar semente de uma nova guerra, para criar novos ódios, para criar novas bandeiras e novas palavras. É para isto que vivemos? Para fazer filhos e lançá-los na fornalha? Para construir cidades e arrasá-las? Para desejar a paz e ter a guerra? p. 393 Cratera p. 112 A noite estava escura. Abriu a janela. Tudo era sombra e silêncio. Mas no céu havia estrelas. A via láctea desdobrava o seu caminho luminoso de horizonte a horizonte. E da cidade subia para as alturas um rumor surdo de cratera. p. 221 Tiquetaque p. 114 O tempo fluía lentamente. O tiqueta-

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que do relógio empurrava o silêncio, insistia em querer afastá-lo, mas o silêncio opunha-lhe a sua massa espessa e pesada, onde todos os sons se afogavam. Sem desfalecimento, um e outro lutavam, o som com a obstinação do desespero e a certeza da morte, o silêncio com o desdém da eternidade. p. 40 Passado p. 116 Para aquém –ou talvez para além – dos rumores inevitáveis, um silêncio espesso, confrangedor, o silêncio inquisitorial do passado que nos contempla e o silêncio irónico do futuro que nos espera. p. 91

CADERNOS DE LANZAROTE p. 119

Felicidade p. 120 O prazer profundo, inefável, que é andar por estes campos desertos e varridos pela ventania, subir uma encosta difícil e olhar lá de cima a paisagem negra, escalvada, despir a camisa para sentir diretamente na pele a agitação furiosa do ar, e depois compreender que não se pode fazer mais nada, as ervas secas, rente ao chão, estremecem, as nuvens roçam por um instante os cumes dos montes e afastam-se apartan em direção Fao mar, e o espírito entra suma espécie de trance, cresce, dilata-se, não tarda que estale de felicidade. Que mais resta, então, senão chorar? Diário I -24 de julho, 1993- pp. 83, 84 Floresta p. 122 Tinha eu um outro fito, levava outro destino, não esse de caminhar, absorto, sobre folhas secas, mas vi a floresta e entrei nela, era o crepúsculo final da tarde, quando já não resta no céu nenhuma cor de violeta e de rosa, é o instante da primeira sombra noturna, também a terra chegou ao cabo jornada e deixa cair os braços, suspirando. Ninguém me apareceu a perguntar o que quero dali, não vieram tocar-me nas costas e assustar-me os frios dedos da floresta, nema expulsão seria justa nem a angústia é merecida. O que faço, inocente de maior culpa, não é senão isto, andar como perdido à roda duma árvore gigantesca, avançar sem guia por entre uma cortina de troncos e um labirinto de névoas, só para ouvir o ruído das folhas que os pés movem, estas duras, secas, encarquilhadas folhas de plátano que o verão queimou por dentro e o outono sacudiu dos ramos. Quando paro, o som para também e fica à espera, calado, como se me espreitasse. Será num deste silêncios que irei ouvir, enfim, nítida e precisa, a primeira gota de chuva. Diário III -24 de septembreo 1995- p. 159 Deus p. 124 Permitiria Deus, se existisse, que em LEVANTADO DO CHÃO p. 131

Planície p. 132 Do sul, ao encontro deles, vinha uma enorme massa de nuvens, densa e enrolada, sobre a planície cor de palha. O caminho mergulhava a direito, mal definido entre os valados que se esboroavam, rasoirados pelos ventos do descampado. Ao fundo, ia juntar-se a uma estrada larga, maneira ambiciosa de dizer em terras

274 seu nome se criassem estas confusões e estes conflitos, estes ódios absurdos, estas vinganças dementes, estes rios de sangue derramado? Diário II -23 de janeiro, 1994- p. 25 Recordar p. 126 Estar sentado frente ao mar. Pensar que já não restam muitos anos de vida. Compreender que a felicidade é apenas uma questão pessoal, que o mundo, esse, não será feliz nunca. Recordar o que se fez e achá-lo tão pouco. Diario II -8 setembro, 1994- p. 189 Memoria p. 128 (…) pregunto-me que inquietante memória é a que ás vezes me toma de ser eu a memória que tem hoje alguém que já fui, como se ao presente fosse finalmente possível ser memória de alguém que tivesse sido. Diário I -7 de maio, 1993- p. 31

de tão má serventia. Para a esquerda, quase no roço do horizonte rebaixado, uma pequena povoação virava a poente as paredes brancas. A planície era inmensa, como já foi dito, lisa, arrasada, raras azinheiras isoladas ou aos pares, e pouco mais. Daquela pequena altura, não era difícil acreditar que o mundo não tem fim conhecido. E a povoação, lugar de destino, vista dali, à luz amarelada e sob a grande placa de chumbo das nuvens, parecia inatingível. p. 16

HISTÓRIA DO CERCO DE LISBOA p. 135

Revelações p. 136 Era lua cheia, daquelas que transformam o mundo em fantasma, quando todas as coisas, as vivas e as inanimadas, estão murmurando misteriosas revelações, porém vai dizendo cada qual a sua, e todas desencontradamente, por isso não alcançamos a entendê-las e sofremos esta angústia de quase ir saber e não ficar sabendo. p. 151 Deuses p. 138 (…) o indiferente e irónico olhar de deuses que, tendo deixado de guerrear uns contra os outros por serem imortais, se distraem do aborrecimento eterno aplaudindo os que ganham e os que perdem, uns porque mataram, outros porque morreram. p. 345 Pensamento p. 140 A diferença está entre um pensamento activo que escava poços e galerias a partir e ao redor dum facto, e essa outra forma de pensamento, se merece tal nome, inerte, alheado, que quando olha não se detém e segue, apostado na crença de que o que não é mencionado não existe, como o doente que se considera saudável porque o nome da doença ainda não foi pronunciado. pp. 93, 94 Qualidades p. 142 (…) imaginar-se um tempo em que o comportamento humano será todo ele artificioso, postergando-se, sem mais contemplações, a sinceridade, a espontaneidade, a simplicidade, essas boníssimas e luminosas qualidades de carácter que tanto trabalho deram a definir e a tentar praticar nas épocas já distantes em que, embora conscientes de havermos inventadoa mentira, ainda julgávamos ser capazes de viver a verdade. p. 194 Intuição p. 144 (…) pouco mais faço que obsevar o mundo e aprender de quem sabe, noventa por cento do conhecimento que julgamos ter é daí que nos vem, não do que vivemos, e é lá que está também o apenas pressentido, essa nebulosa informe onde ocasioO EVANGELHO SEGUNDO JESUS CRISTO p. 149

Noite p. 150 A noite ainda tem muito para durar. A candeia de azeite, dependurada de um prego ao lado da porta, está acesa, mas a chama, como uma pequena amêndoa luminosa pairando, mal consegue, trémula, instável, suster a massa escura que a rodeia e enche de cima a baixo a casa, até aos últimos recantos, lá onde as trevas, de tão espessas, parecem ter-se tornado sólidas. p. 21 Ilusão p. 152 (…) o dia de amanhã não se sabe a quem pertence, há quem diga que a Deus é uma hipótese tão boa como a outra, a de não pertencer a ninguém, e tudo isso, ontem, hoje e amanhã,

275 nalmente brilha uma súbita luz a que damos o nome de intuição (…) p. 224 Pessoanamente p. 146 Raimundo Silva pensou, pessoanamente, Se eu fumasse, acenderia agora um cigarro, a olhar o rio, pensando como tudo é vago e vário, assim, não fumando, apenas pensarei que tudo é vário e vago, realmente, mas sem cigarro, ainda que o cigarro, se o fumasse, por si mesmo exprimisse a variedade e a vaguidade das coisas, como o fumo, se fumasse. p. 52

não serem mais do que diferentes nomes da ilusão. p. 141 Fogo p. 154 Fôssemos nós tão imprudentes, ou tão ousados, como as borboletas, falenas e outras mariposas, e ao fogo nos lançaríamos, nós todos, a espécie humana em peso, talvez uma combustão assim imensa, um tal clarão, atravessando as pálpebras cerradas de Deus, o despertasse do seu letárgico sono, demasiado tarde para conhecer-nos, é certo, porém a tempo de ver o princípio do nada, agora que tínhamos desaparecido. p. 169 Mundo p. 156 (…) Como será o mundo em que eu não estiver, sendo este o que é. p. 155 Deserto I/I p. 158 Um vento veio correndo entre as pedras, levantou uma nuvem de poeira que atravessou o deserto, e depois nada, o silêncio, o universo calado contemplando os homens e os animais, à espera, telvez, ele próprio, de saber que sentido lhe atribuem, ou encontram (…) p. 238 Sombras p. 160 (…) embora já tivesse, por minha conta, entrevisto uns clarões e umas sombras no futuro, não cuidei que os clarões fossem de fogueiras e as sombras de tanta gente morta (…) p. 391 Mal p. 162 (…) o mal, que nasceu com o mundo, e dele, quanto sabe (…) é como a famosa e nunca vista ave Fénix que, parecendo morrer na fogueira, de um ovo que as suas próprias cinzas criaram volta a renascer. O bem é frágil, delicado, basta que o mal lhe lance ao rosto o bafo quente de um simples pecado para que se lhe creste para sempre a pureza, para que se quebre o caule do lírio e murche a flor da laranjeira. p. 352

ENSAIO SOBRE A CEGUEIRA p. 165

Poço p. 166 Pelas poucas janelas que davam para o pátio interior entrava uma última claridade, cinzenta, moribunda, que declinava rapidamente, já a resvalar para o poço negro e profundo que ai ser esta noite. p. 267 Inferno p. 168 (…) Tinha de ser, o inferno prometido vai principiar. p. 94 O cá e o lá p. 170 Como está o mundo, tinha perguntado o velho da venda preta, e a mulher do médico respondeu, Não há diferença entre fora e o dentro, entre o cá e o lá, entre os poucos e os muitos, entre o que vivemos e o que teremos de viver (...) p. 314 Ainda p. 172 A mulher do médico levantou-se e foi à janela. Olhou para baixo, para a rua coberta de lixo, para as pessoas que gritavam e cantavam. Depois levantou a cabeça para o céu e viu-o todo branco, Chegou a minha vez, pensou. O medo súbito fê-la baixar os olhos. A cidade ainda ali estava. p. 423 Tempo p. 174 (…) O tempo está-se a acabar, a podridão alastra, as doenças encontram as portas abertas, a água esgota-se, a comida tornouse veneno (…) pp. 384, 385 Silêncio I/I p. 176 (…) a música acabou, nunca houve tanto silêncio no mundo (…) p. 312 Medo p. 178 (...) ja éramos cegos no momento em que cegámos, o medo nos cegou, o medo nos fará continuar cegos (…) p. 173 Ruas p. 180 As ruas estão desertas, por ser ainda cedo, ou por causa da chuva, que cai cada vez mais forte. Há lixo por toda a parte, algumas lojas têm as portas abertas, mas a maioria delas estão fechadas, não parece que haja gente dentro nem luz. p. 287 Brancura p. 182 Era como se houvesse um muro branco do outro lado (…) a insondável brancura cobria tudo (…) era também como se tudo isto estivesse já a diluir-se numa espécie de estranha di-

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mensão, sem direcções nem referências, sem norte nem sul, sem baixo nem alto. p. 17 Tudo p. 184 Nem uma pálida luz nas janelas, nem um reflexo desmaiado nas fachadas, o que ali estava não era uma cidade, era uma extensa massa de alcatrão que ao arrefecer se moldara a si mesma em formas de prédios, telhados, chaminés, morto tudo, apagado tudo. p. 353 Sentido p. 186 (...) as lágrimas que sentido têm quando o mundo perdeu todo o sentido. p. 321 Alucinações p. 188 (...) naquele mesmo instante pensou que tinha enlouquecido, ou que desaparecida a vertigem ficara a sofrer de alucinações, não podia ser verdade o que os olhos lhe mostravam, aquele homem pregado na cruz com uma venda branca a tapar-lhe os olhos (…) p. 410 Ausência p. 190 (...) um silêncio que parecia estar a ocupar o espaço de uma ausência, como se a humanidade, toda ela, tivesse desaparecido, deixando apenas uma luz acesa e um soldado a guardá-la, a ela e a um resto de homens e de mulheres que a não podiam ver. p. 204 O HOMEN DUPLICADO p. 191

Certeza p. 194 A noite mantinha-se agarrada aos telhados da cidade, os candeeiros da rua ainda estavam acesos, mas a primeira e subtil aguada da manhã já começara a tingir de transparências a atmosfera lá no alto. Foi assim que teve a certeza de que o mundo nãa acabaria hoje (...) p. 32 Metrópole p. 196 (…) gigantesca metrópole que se estende pelo que antigamente haviam sido montes, vales e planícies, e agora é um secessiva duplicação horizontal e vertical de um labirinto, de começo agravada por componentes que designaremos por diagonais, mas que, no entanto, com o decorrer do tempo, se revelaram até certo ponto equilibradores da caótica malha urbana (…) p. 73

ENSAIO SOBRE A LUCIDEZ p. 199

Ameaça p. 200 O que ele sente, e talvez, entre todas estas pessoas que passam, seja o único a senti-lo, é uma espécie de ameaça flutuando no ar, aquela que os temperamentos sensíveis percebem quando a massa de nuvens que tapa o céu se crispa à espera de que o trovão deflagre, quando uma porOBJETO QUASE p. 203

Planície p. 204 Um silêncio absoluto se espalmou-se sobre la planície. E de repente a cidade desapareceu. Coisas. p. 107

MANUAL DE PINTURA E CALIGRAFIA p. 207

Minutos p. 208 A vida são também minutos que não podem desligar-se uns dos outros, e o tempo será uma massa pastosa, densa e obscura, no interior da qual nadamos dificilmente, tendo por cima de nós uma claridade indecifrada que devagar se vai apagando, como um dia que, tendo amanhecido, à noite de que saiu regressasse. p. 91 Despedidas p. 210 Sempre fui sensível ao absurdo das despedidas de cais, com tudo já dito e sem tempo para recomeçar, com um combóio que não se decide a partir e um relógio que soletra os últimos segundos (...) p. 229 Biografia p. 212

277 ta rangeu no escuro e uma corrente de ar gelado nos veio tocar o rostro, quando um presságio maligno nos abriu as portas do desespero, quando uma risada diabólica nos dilacerou o delicado véu da alma. p. 120

O que ainde não está, o que veio e transita, o que já não está. O lugar só espaço e não lugar, o lugar ocupado e, portanto, nomeado, o lugar outra vez espaço e depósito do que fica. Esta é a mais simples biografia de um homem, de um mundo e talvez também de um quadro. Ou de um livro. Insisto que tudo é biografia. Tudo é vida vivida, pintada, escrita: o estar vivendo, o estar pintando, o estar escrevendo: o ter vivido, o ter escrevido, o ter pintado. E o antes de tudo isto, o mundo ainda deserto, esperando ou preparando a vinda do homem e dos otros animais, todos os animais, as aves de carne macia, e penas, e cantos, Um enorme silêncio sobre as montanhas e as planícies. E depois, muito mais tarde, o mesmo silêncio, sobre montanhas e planícies já diferentes, e também sobre as cidades vazias, algum tempo ainda com papéis soltos rolados pelas ruas por um vento interrogativo que sai para o campo sem resposta. Entre as duas imaginações, a que o antes requer e a que o depois ameaça, está a biografia, o homem, o livro, o quadro. p.132 Sinais p. 214 Tantas palavras escritas desde o princípio, tantos traças, tantos sinais, tantas pinturas, tantas necessidade de explicar e entender, e ao mesmo tempo tanta dificuldade porque ainda não acabámos de explicar e ainda não conseguimos entender. (…) O mundo está velho e dolorido. pp. 109, 110 Instante p. 216 Agora mesmo o mundo tranforma-se lá fora. Nenhuma imagem o pode fixar: o instante não existe. A onda que vinha rolando já se quebrou, a folha deixou de ser asa e não tardará a estalar, resseca, debaixo dos pés. E há o ventre inchado que rapidamente desce, a pele esticada que se reabsorve, enquanto uma criança arqueja e grita. Não é tempo de deserto. Não é já tempo. Não é ainda tempo. p. 134

TODOS OS NOMES p. 237

Escuridão p. 238 (…) a escuridão em que estás metido aqui não é maior do que a que existe dentro do teu corpo, são duas escuridões separadas por uma pele (…) tens de aprender a viver com a escuridão de fora como aprendeste a viver com a escuridão de dentro (…) p. 177 Acontecer p. 242 (…) Só porque vivemos absortos é que não reparamos que o que nos vai acontecendo deixa intacto, em cada momento, o que nos pode acontecer (…) p. 48

AS PEQUENAS MEMÓRIAS p. 245 A JANGADA DE PEDRA p. 253

Desmaio p. 254 (...) e o céu baixo, o ar pardento, a paisagem aflita, eram já o desmaio de um mundo final, despovoado, miserando depois de tanto sofrimento e canseira, de tanto viver e morrer, de tanta vida teimosa e morte sucessiva. p. 220 Deserto I/II p. 256 Avança sem olhar para trás, primeiro tão rapidamente quanto lho permitem as forças, depois, porque elas foram quebrando, devagar. Não sente qualquer impressão de medo neste silêncio entre os paredões que são os montes, é homem que nasceu e viveu num deserto, sobre poeira e pedras, onde sem espanto é possível encontrar uma queixada de cavalo, um casco ainda com a ferradura pregada, há quem diga que nem os ginetes do Apocalipse sobreviveram ali, morreu de guerra o cavalo da guerra, morreu

278 Fulgurância p. 246 Muitas vezes esquecemos o que gostaríamos de poder recordar, outras vezes, recorrentes, obsessivas, reagindo ao mínimo estímulo, vêm-nos do pasado imagens, palavras soltas, fulgurância, iluminações, e não há explicação para elas, não as convocámos, mas elas aí estão. p. 141

de peste o cavalo da peste, morreu de fome o cavalo da fome, a morte é a suma razão de todas as coisas e sua infalível conclusão, a nós o que nos ilude é esta linha de vivos em que estamos, que avança para isso a que chamamos futuro só porque algum nome lhe havíamos de dar, colhendo dele incessantemente os novos seres, deixando para trás incessantemente os seres velhos a que tivemos de dar o nome de mortos para que não saiam do passado. pp. 191, 192 Vida p. 258 (...) muito difícil se vai tornando já destrinçar, se tal se pode em algum momento da vida, entre verdade e fantasias. p. 36 Silêncio I/II p. 260 (…) a água do Irati retirou-se como onda que da praia reflui e se afasta, o leito do rio ficou à vista, pedras, lodo, limos, peixes que saltando boquejam e morrem, o súbito silêncio. p. 21 Engano p. 262 (...) estas águas são outras, assim a vida se transforma, mudou e não demos por isso, estávamos quietos e julgávamos que não tínhamos mudado, ilusão, puro engano, íamos com a vida. p. 130 Semente p. 264 (...) uma palavra, quando dita, dura mais que o som e os sons que a formaram, fica por aí, invisível e inaudível para poder guardar o seu próprio segredo, uma espécie de semente oculta debaixo da terra, que germina longe dos olhos, até que de repente afasta o torrão e aparece à luz, um talo enrolado, uma folha amarrotada que lentamente se desdobra. p. 286 Hombre p. 266 (...) talvez o homem seja esse animal que não pode, ou não sabe, ou não quer ser consolado, mas certos actos seus, sem outro sentido que parecerem que o não têm, sustentam a esperança de que o homem virá um dis a chorar no ombro do homem, provavelmente tarde de mais, quando já não houver tempo para outra coisa. p. 73

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OS POEMAS POSSÍVEIS p. 249

Afrodite p. 250 Ao princípio, é nada. Um sopro apenas, Um arrepio de escamas, o perpassar da sombra Como nuvem marinha que se esgarça Nos radiais tentáculos da medusa. Não se dirá que o mar se comoveu E que a onda vai formar-se deste frémito. No embalo do mar oscilam peixes E os braços das algas, serpentinos, À corrente se dobram, como ao vento As searas da terra, as crinas dos cavalos. Entre dois infinitos de azul avança a onda, Toda de sol coberta, rebrilhando, Líquido corpo, instável, de água cega. De longe acorre o vento, transportando O pólen das flores e os mais perfumes Da terra confrontada, escura e verde. Trovejando, a vaga rola, e fecundada Se lança para o vento à sua espera No leito de rochas negras que se encrespam De agudas unhas e vidas fervilhantes. Ainda alto as águas se suspendem No instante final da gestação sem par. E quando, num rapto de vida que começa, A onda se despedaça e rasga no rochedo, O envolve, cinge, aperta e por ele escorre —Da espuma branca, do sol, do vento que soprou, Dos peixes, das flores e do seu pólen, Das algas trémulas, do trigo, dos braços da medusa, Das crinas dos cavalos, do mar, da vida toda, Afrodite nasceu, nasce o teu corpo. pp. 236, 238

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