A espada do brasão

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PALAVRA DO AUTOR A partir da ideia de retratar a disputa por poder paralelo entre ideologias antagônicas, tendo em vista um Estado ausente, desumano e corrompido surgiu A espada do brasão. Nas próximas páginas, você lerá uma trama sobre brasileiros de diferentes origens interligados por um conflito social que visa, para o bem ou para o mal, transformar a sociedade retratada. Na São Paulo de 2062 vemos corporações partilhando o poder com o Estado e grupos cívicos disputando entre si e com essas instituições o controle da sociedade. Um conflito onde pessoas matam, morrem e sofrem das maneiras mais cruéis possíveis por uma causa e em nome do que creem ser melhor para um povo. Distante da nossa realidade? Talvez não muito. Basta olhar para os 21 anos de ditadura militar que fez milhares de vítimas ou para as populações marginalizadas que ainda hoje morrem aos montes vítimas de conflitos e opressões estruturais das mais diversas. Nessa obra alteram-se apenas os contextos e nomeiam-se os algozes, mas a realidade que assassina pobres e minorias e divide a sociedade em extremos ideológicos permanece a mesma. Na realidade ou na ficção, alguns escolhem morrer por algo. A maioria, entretanto, sequer precisa optar. Dividida em cinco partes (O último Scarpa vivo, Aqueles que remanescem, A ascensão das espadas, Os servos da trindade e Comando de extermínio) e em lento processo de escrita, A espada do brasão inicia no prólogo já em 2062. Apesar de os quatro primeiros capítulos se passarem nos anos de 2033 e 2034, todos no ponto de vista de Ruby, a história se passa de fato na década de 2060, sendo essa parte inicial uma introdução dela. A partir do relato de Edith que

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inicia a Parte II, Aqueles que remanescem, oficialmente a histรณria da sinopse comeรงa.

Previamente agradeรงo a leitura. Atenciosamente Rodrigo Ferreira.

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“E se este mundo for o inferno de outro planeta?” – Aldous Huxley

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LUZ REVOLTOSAS NUVENS NEGRAS desaguavam sobre os cedros. Os pingos grossos da tormenta se mesclavam ao suor frio e sangue seco que encardiam suas vestes podres. Os pés batiam contra o chão de gravetos, terra encharcada e folhas secas, ávidos e embaraçados. À penumbra, com o olho esquerdo que lhe preservaram, Nicolas sentia-se um inválido. Incapaz de enxergar um palmo ante as narinas. Mesmo no escuro, ele corria. Da morte. Dos algozes homicidas. Sequer um lampejo permeava por entre os galhos. O brilho do luar esmaeceu ao entardecer, com o desaguar da frente fria. O sol havia se posto entre nuvens há algumas horas, e ele já sabia: de um jeito ou de outro, não veria luz ao raiar da alvorada. Nem o elitista Setor A, com seus postes luminosos, brilhos noturnos fluorescentes e merchandisings faiscantes seria capaz de iluminá-lo. Nada mais emanaria luz. Nada mais possuiria cor para Nicolas, a não ser a mulher que amava. E que perdera, para só então perceber quanto amava. Ela era a única luz pela qual valia a pena lutar. De resto, o jovem alto e corpulento resistia apenas por trevas, por sua fúria e suas revoltas irrompidas. Não restou nada de bom em si após eles o pegarem. Queria viver para vê-los cair. Para derrubá-los. Todos eles. O ódio o cegou de tal modo que seus ideais não importavam mais. Ele tornou-se a sombra que guiava a luz. E fugia sem rumo, perdido em algum ponto na mata fechada há quase uma hora, na esperança risível de permanecer sendo algo. Não permanecer existindo, simplesmente. Permanecer resistindo. 6


Gritaria se pudesse, mas eles caçavam-no feito animal. Gritaria não só para qualquer vivalma que ali estivesse ajudá-lo, mas também porque as dores da tortura sádica de quase dois dias ultrapassavam o insuportável. Arfava muito. Sentia-se zonzo e não mais tateava as pernas ou os braços. A vista esquerda turvava lateralmente e os galhos altos, impenetráveis se insinuavam para uma dança. Cirandavam ao seu redor abrindo caminho para a palidez inexistente do luar. Risadinhas vieram dos céus. Luci? Não. Impossível. Luci estava morta!… ou não estava? Não podia dar certeza. Mas ele havia a matado mais cedo! Estrangulou-a com tanta ira que pôde sentir a vida esvair-se em suas mãos. Talvez fosse isso... Luci não estava viva. Estava morta como ele tão logo também estaria e o convocava com seus risinhos agudos e horripilantes para juntar-se a ela naquela dança. Primeiro, destruíram sua família, seu nome e identidade. Depois, destruíram seu corpo. Ao mesmo tempo, destruíram sua mente: nada mais era real. Nada era distorção. Não podia confiar em si mesmo ou nos próprios passos mesmo quando isso era tudo que ainda o restava. Porém, em meio às falhas do corpo exausto, pôde assegurar que aquilo foi real: o clarão e o estampido meio surdo, não muito longe. O fulgor rasgou a escuridão e sumiu ao alojar-se em um galho. Eram tiros. E aquele veio da esquerda. O próximo, da direita; um último, pelas costas. Berros agora eram indistintos ao longe. Eram eles. Estavam ali e estavam próximos. A caça e os caçadores atrás do prêmio. “Animal” foi a menor das ofensas que ouviu no cativeiro. E de fato, agora ele era o animal. Feroz, ferido, mutilado, assustado, perdido. 7


Um tranco de pistola semiautomática fez-se ouvir em alto e bom som à sua esquerda, então, ele correu para a direita, ainda a tempo do clarão do disparo cegá-lo. Outro cruzou as árvores e quase o atingiu. Anestesiado, oscilava e corria, reagindo em modo automático, à mercê de seus instintos. – Tu vai morrer agora, filho da puta! – berrou. – Vai morrer! Estava perto. Quem era ele? Qual era o nome? A voz não lhe era desconhecida... – Aqui!!! Aqui! – alardeava o atirador. – O merdinha tá aqui! Ouviu os passos se aproximarem. Nicolas parou de fugir para o norte e seguiu a oeste. Os berros pareceram distanciar-se após alguns metros. Os tiros rarearam, ouvidos mais ao longe. E o estrondo dos trovões, a escuridão nevoenta, e o ruído do temporal novamente predominaram. Distância. Solidão. Relativa calmaria. Pôde soltar o ar para seguir rumo ao nada, em vão, na luta que sabia não ter chances de ganhar. Mas persistia em correr. “Essa teimosia doentia acabará com você, meu filho”, D. Edith sempre alertou, até o momento em que escolheu abandoná-lo e se afastar. Bem, era essa teimosia que o mantinha vivo por agora. Não por muito tempo, de certo. Foi um estrépito inconfundível que o estremeceu por inteiro: o pente de balas a estralar no fundo da pistola. Tum-tum-tum. Seu coração palpitou como nunca. Chegou a hora, percebeu. O barulho veio da frente: ele havia corrido o tempo todo de encontro à própria morte. Como fizera a vida inteira em suas atitudes extremistas e seu comportamento destrutivo. E encarou o que o procurava após passos curtos e avoados, na forma de um louro de pele rosada e olhos negros, que por anos

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considerou seu próprio irmão. O Caim que conhecera também assassinava friamente, porém atendia pelo nome de Iuri. O mesmo “irmão” que o atraiu para a emboscada e ao menos se importou quando “o fuhrer” deles arrancou seu olho direito com os dedos. – Iuri – pasmou Nicolas. – Nicolas – retrucou zombeteiro, abrindo um sorriso. O jovem não estava disposto a morrer. Não sem levar o máximo possível deles consigo. Luci foi seu primeiro homicídio, e apesar de abominar tal ato com todas as forças, Deus sabe como ansiava que não tivesse sido o último. – Filho da puta! Com toda a força restante, atracou-se contra o rival e torceu a mão que engatinhava a pistola no instante em que a arma deu o coice. A bala perfurou o abdômen, próximo ao púbis. Um grito. Diversos deles foram atrás enquanto o louro caiu aos urros. Quisera Nicolas, se não matá-lo, acertar o tiro mais para a esquerda. Mutilação por mutilação, Iuri teria chorado mais. Entretanto não havia tempo hábil. Pareceu que todos os demônios esguicharam das trevas como morcegos à espreita. Estavam ali, exatamente ali, unicamente ao seu aguardo. E correram vorazes atrás dele empunhando as semiautomáticas. Não como um caçador cobiçando um felino, mas sim como um felino, sedento e exasperado à caça de sua presa. Disparos cruzaram por suas costas enquanto gritos se atropelavam junto de Iuri, deixado para trás. – ‘Cê’ vai morrer, anarco! – ameaçou uma mulher. Estava longe. – Toma essa, miserável! – berrou um deles. Próximo, muito próximo. 9


Um estrondo ecoou na mata. Dessa vez, lhe queimou ao rasgar seu joelho em fogo vivo. Nicolas berrou, pela última vez, e seus pés, por fim, sucumbiram, à dor e também à derrota. O rapaz tombou e rolou impulsionado por um declive até seu fim, no interior de uma fissura alagada no solo barrento. Respirava devagar, apenas para controlar a dor lancinante. Está acabado, teve certeza. Dedos tamborilavam no metal. Pisadas próximas estavam mais perto, e mais perto. Não o angustiavam mais. Seu corpo todo entorpecera. Não tinha mais força ou condição de resistir. Contudo, pela lentidão, os algozes ansiavam que ele o fizesse. Pareciam querer que ele sofresse e se humilhasse antes do fim. Naquela hora tudo pareceu tão profano. Não havia razão para tanto ódio além do próprio ódio em si. Os conselhos de sua mãe que não foram ouvidos, as advertências de seus amigos da mesma forma ignoradas, as picuinhas com a amada que não ocorreriam outra vez. Remorsos... “Sabia que estava bem” afirmou Dalila, se fazendo de impassível, na última vez que o rapaz sumiu e ressurgiu depois de alguns dias. “Você sempre fica”. Tudo o que desejava era avisá-la que, dessa vez, ele não ficaria bem. Não retornaria para atiçar seu humor volúvel, pelo mero prazer em sua feição irritadiça. Ele não voltaria. E se as coisas fluíssem como previsto, após tudo acabar para ele, Dalila seria a próxima. Mas ela era mais forte do que ele, era mais safa, já superou coisas piores anteriormente. Ficaria bem dessa vez também.

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Finalmente não vai ter mais racha no movimento, zombou da situação. Essa sempre foi uma de suas qualidades mais intrínsecas. Nicolas estancou o sangramento com uma das mãos e fechou o olho. Na completa escuridão, o outro nem faz tanta falta... O ruído de um clique. Um toque metálico e frio como o gelo começou a perpassar seu rosto lívido. Sadicamente, lentamente. A respiração do carnífice tão perto e tão intensa que fustigava os pelos da face. Nicolas estava calmo. A respiração se regulava pela dor. Sem aflição e sem temor. Não morreria dando ao inimigo o aroma de seu desespero. – Olhe-pra-mim. Abriu o olho. Na vestimenta encapuzada, toda em linho branco, ensopada pelo aguaceiro, o skinhead de rosto alvo e feição cadavérica dissolveu a penumbra como uma visão. Os olhos redondos de cor caramelo recaíam sobre os seus com inigualável fascínio. Era impossível mensurar seu deleite com aquilo tudo. Ele não nasceu pra liderar. Ele nasceu para matar, pensou. E naquele microssegundo, antes que algo fosse dito, vítima e assassino eram um só. Na mesma sincronia, partilhando o mesmo pensamento. – Me implora – sussurrou. – Me implora pra viver, sangue ruim. – Não. Pouco a pouco, silhuetas se amontoaram ao redor da clareira. Vagas e indiferentes. O espetáculo estava armado. O homicida ofegava muito, mais do que ele até. E naquele último instante, inexplicavelmente, Nicolas não pôde odiá-lo. Ele massageou seus lábios com a arma, e depois, as maçãs do rosto, deslizando, vagarosamente, da extremidade da testa até o osso da têmpora. 11


– Você sabe o que vai haver com os merdinhas sujos do teu esgoto quando eu meter essa bala nos teus miolos? – Sim. Eles vão matar todos vocês – e ele riu, assim como o algoz. – Dê adeus pra Dalilinha. Se você não fez da vadiazinha suja mulher de verdade, muitos outros vão fazer. – Arrematou com um sussurro maroto. – Como ele, por exemplo. – Ela prefere foder com os bichos. Eles são mais limpos que vocês. – Isso é o que veremos no inferno. E inesperadamente fulgurou o último clarão jamais visto por Nico. À queima-roupa. Num milésimo de segundo já não restava dor, ódio ou revolta. Nada restava. Somente as aves explodindo num voo fugaz em meio à chuva e as manchas rubras se adornando ao linho branco. Não haveria luz ao alvorecer.

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LIVRO 1

I O último Scarpa vivo

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REGISTROS DE LÚCIO SCARPA SIMÕES EM 14 DE JUNHO DE 2033. SÃO PAULO, CAPITAL. PUBLICADO ÀS 21H34MIN, HORÁRIO DE BRASÍLIA. Venta muito lá fora. A noite está álgida e as bandeiras brandem a meio mastro. Está insuportável ligar a TV, ou o rádio, ou acessar a internet, ou ler jornal, ou sair à rua, ou qualquer outra coisa que propicie contato humano. As ruas estão desertas e as luzes apagadas. A friagem soprou por todo o dia. A neblina teima em dissipar-se e eu já não vejo o sol há dias. É um outono rigoroso. Daqueles tempos cujo aroma hediondo da morte se exala desde o amanhecer. Um infarto fulminante levou o “excelentíssimo” senhor expresidente noite passada. Foi tarde. Numa morte indolor e muito rápida pra um calhorda como aquele. Entre as banalidades desses megaeventos fúnebres e dispensáveis, o pior de tudo foi o café frio, aguado e tão insipido quanto a cara da viúva. O helicóptero demorou em vir me buscar e Amacio ainda me arrastou pro seu hotel. Certamente maquinava alguma das suas tramoias, tipo derrubar a governadora de MG ou sabotar o estorvo do Beta de RJ, ou confessar que foi ele que, por alguma razão ilógica, envenenou o ex-presidente. Mas eu não tive saco pra isso hoje. De verdade. Estou exausto. Tive um daqueles trabalhos extras justo ontem (típico capacho de herdeiro da Pré-Reforma). Sei que deveria só ter enviado uma coroa de flores, mas ouvi rumor de envenenamento, então achei melhor fazer cena em pessoa (mesmo que obviamente eu esteja acima de qualquer suspeita). Vão esquecer essa ladainha em breve, pelo visto. Ouvi no velório que houve algo sério em 14


Nova York. Atentado, explosão… não sei ao certo. De qualquer modo, vai ofuscar a morte do Túlio. Tentarei dormir agora. Deve estar um caos em Manhattan pior do que está Brasília. Pela manhã, ligo pro Ruby. Faz muito tempo que não o vejo. Essa é uma hora oportuna para revê-lo. PUBLICADO ÀS 21H51MIN, HORÁRIO DE BRASÍLIA. Era meu último cigarro antes de deitar, mas o telefone atrapalhou. Era importante. Merda… uma tragédia horrível aconteceu! Eu não vou conseguir dormir essa noite. E em breve frequentarei mais velórios.

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1 A CLARIDADE FANTASMAGÓRICA do recinto impenetrável tornava impossível a distinção entre dia e noite. Mas ele intuía ainda estar longe da alvorada enquanto lhe arfava a respiração. Intensa, inconstante e afobada. Acelerada como as batidas fortes do músculo estralando em seu peito. O primeiro insight ocorrido foi o do mar caribenho visto em sua mais tenra infância: belo, plácido e cristalino. Seus braços curtos debatendo-se assustados em águas translúcidas. O mar salobre e enfurecido o invadindo por inteiro. Os pés flutuando sem mais tocar a superfície e a falta de ar… uma agonizante falta de ar que o possuiu nos momentos submersos e que persistia em rondá-lo agora. Ruby Scarpa despertou ofegante. Naufragava em sua profunda ignorância. Ignorância da proporção dos acontecimentos trágicos vivenciados mais cedo. Ignorância do estigma gigantesco para um adolescente ordinário de dezessete anos carregar sozinho. Seus olhos verdes, com os capilares vermelhos sobressaltados, reabriram numa horripilante saleta branca e quadrangular. Compunham a saleta três paredes brancas, sem qualquer mancha ou risco na tintura uniforme, sendo a quarta parede, na realidade, um painel fumê envidraçado que espelhava seu rosto oliva, onde as poucas espinhas contrastavam com cortes e escoriações. O rapaz sentava-se à mesa de centro. Desamparado e silencioso. Os olhos percorriam o local assustados. Ansiava exasperadamente que a porta se abrisse. Por que estava ali? O que havia ocorrido? Por que estava ferido? Perguntas cujas respostas começaram com flashes esparsos, num confuso vaivém acelerado em sua cabeça. Sinal gritando anunciando início de aula. Bela manhã de sol ao parapeito da cobertura em Upper East Side. Batida na porta do

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conversível da mãe na entrada do colégio. Manhã ensolarada novamente. Céu enegrecendo de repente ao entardecer. E então, na dor das escoriações e feridas a queimar sua carne, a respiração dificultosa; em meio aos flashes, a solidão, ao medo e ao desespero, o rompante. O assustador rompante que estilhaçou o silêncio num golpe único. – Ajuda!!! – berrava em inglês, esmurrando a mesa de centro. – Alguém me ajuda!!! Socorro! Mãe, mãe! Mãe!!! Correu para a vidraça e começou a socá-la na crise súbita de choro propiciada pelo choque. Os flashes atordoantes! Inacabáveis, assustadores, confusos e inconclusivos. Professora de matemática sorrindo ao dar-lhe a nota do teste. Ameaça de chuva durante a tarde. Nuvens negras. Ônibus no ponto. Bomba. Desabamento. Aflição. Horror. Caos e correria… palavras soltas, incoerentes. Mãos trêmulas nervosas socando o vidro impenetrável até o sangue gotejar por entre os dedos escoriados. Choro. Aflição. Desespero. Ele se debatia de forma avulsa, se chacoalhava e gritava atordoado. Até que, conforme ansiava, a porta deu um estrondo de encontro à parede e uma negra distinta e bem vestida adentrou muito nervosa. Seguiam-na dois enfermeiros altos em jalecos brancos. – Acalmem-no. Quadro crítico de estresse pós-trauma. Os profissionais avançaram à direção do rapaz desnorteado. Porém ele atirou-se no chão e recuou para a quina da parede com o painel. Deu um olhar marejado e pedante à dama esbelta na faixa dos trinta e poucos, cujo crachá de assistente social a identificava por Ms. SULLIVAN. Suas mãos tremiam e gotículas quentes agarravam-se em suas pálpebras. Suspendeu os antebraços sinalizando rendição.

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Ainda ofegava – e não era pouco, mas naquele exato momento sua mente era um lugar vazio. Um porão sombrio com teias de aranhas no qual Ruby não queria entrar. Ele soluçava e chorava vendo-se na vidraça acuado e ferido. Ms. Sullivan fez um gesto com as mãos para deter os enfermeiros, e estes obedeceram com um meneio reticente de cabeça. – Feliz que acordou, Ruby. – Disse explicitando a tensão no tom de voz. – É normal a reação de choque. Está tudo bem. Está tudo bem agora. Nós salvamos você. Não há o que temer. Ele curvou o olhar a ela. Aterrorizado. – Me resgataram da onde? – É normal que você não se lembre perfeitamente do que houve ainda... A assistente seguiu protelando calmamente (como se recitasse um discurso pronto, decorado magistralmente) conforme sua voz se arrastava tornando-se pastosa, até ficar menor e menor, por fim, limitando-se um murmúrio. Um zumbido incômodo evaporado assim que o jovem curvou-se ao reflexo perdido no painel fumê. O entoar paciente e monocórdico da senhorita (que nada remetia a estridência e exaltação da voz de Coin) induziu-o a uma espécie instantânea de transe, que o fez reviver desde o princípio o que houve naquele fatídico dia, que ele e todo o resto da América jamais esqueceriam. Não revivia, porém, como se tivesse um déjà vu ou visse a um filme entediante. Ele estava lá. Impotente e onipresente como o espírito de um morto a assistir sua morte súbita. “Está tudo bem”, ouviu uma mulher segredar ao pé do ouvido. Era doce como a voz de sua mãe quando lhe mandava dormir após um

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cântico infantil. E era mentirosa. Não estava tudo bem! Não estava nada bem! Seja lá o que tivesse havido, não estava tudo bem!… bradava consigo mesmo em algum canto ignoto da consciência. Assistiu ao próprio despertar, se espreguiçando ao toque do início ameno de Stairway to heaven. Levantou preguiçosamente. Sentado na cama, ficou de frente para a persiana já aberta, por onde um raio oblíquo do sol nascente transpassou acertando-lhe a vista. Fechou os olhos para adaptar-se à claridade sentindo um raio escarlate se infiltrar por entre suas pálpebras, e quando as abriu de novo... – Sim, sou eu quem cozinho hoje. – Mark avisou puxando um vidro de melado da geladeira da copa. – Prefere ovos com bacon ou panquecas para o café, Ruby? Preferia morrer de fome. – Ovos com bacon. Sua “consciência onipresente” ocupava a mesa vendo o padrasto à frigideira tostar bacon com aroma de asfalto do meio-dia. A filha do irlandês com sua mãe, Dorothy corria serelepe de um lado a outro da copa adjacente à sala, rodopiando um aviãozinho em mãos. Vnhééé, para lá e para cá enquanto remendava com a boca o som do planador e corria, sacudindo os cachinhos loiros herdados da mãe. Baixinha e gorducha aos cinco anos, petulante muitas vezes, costumava comportar-se como o irmão, exceto nos cafés da manhã e jantares, quando estavam todos reunidos. Falando nisso… – Bom dia, meu amor – e Coin, que acabara de entrar, beijou o namorado no fogão e sentou-se à mesa. – Bom dia, meus amores. – Bom dia, mamãezinha! – e a pequena saltitou animada sobre ela dando um beijo dócil em sua bochecha. 19


– Bom dia. Coin puxou uma maçã verde da fruteira e começou a mordiscar apressada. Curioso… observou Ruby, em seus quase quarenta anos parecia mais jovem e mais atraente que seu esbelto companheiro de trinta e um. – Vocês viram esses boatos do ISIS prometendo um novo atentado? – ela indagou com o mesmo ar frívolo de “você viu como o preço dessa bolsa aumentou?”. – A Câmara vai votar ainda hoje verba pra um plano de emergência, só pro caso. – Menos, Coin, bem menos… – debochou Mark, aos risos. – É só mais uma ameaça vazia, como eles sempre fazem. Ainda não entendo porque quê o governo não resolve essa guerra bombardeando o Califado e pronto. Funcionou com os japoneses. Mark era dotado de muitos charmes além da beleza exuberante, dos olhos aquosos e sedutores e do inconfundível sotaque irlandês (que Ruby era um dos únicos a achar inaturável). Entretanto, diplomacia e intelecto não constavam entre os atributos, de modo que, naquele exato momento, o rapaz caladão o mirava de soslaio e perguntava-se como poderia sua mãe procriar justo com ele. – Os ingleses ignoraram os avisos e olha aí quase 300 mortos no atentado de 19 de abril. – Um raio não cai duas vezes no mesmo lugar, Coin. Dorothy largou o brinquedo no chão e correu até a mãe, envolvendo sua mãozinha curta em torno do longo pescoço dela. – Mamãe, é verdade que os caras maus da TV vão atacar a gente? – Oh, meu docinho lindo da mamãe! Me dá um abraço – e jogou os cabelos loiros com raízes castanhas para o lado. Típico gesto de quando estava mentindo ou desconfortável. – Mas é claro que não! 20


Os homens maus vão parar num lugar muito, muito, muito feio antes mesmo que cheguem perto de nós, viu? Ela sacudiu a cabeça concordando e deu as costas para voltar a brincar com o aviãozinho. O crac da mordida na maçã verde e num piscar de olhos Ruby encontrava-se novamente assustado e acuado, ouvindo Ms. Sullivan na fantasmagórica saleta branca. –... mas tudo vai ficar bem, Ruby. – Concluiu. O que quer que ela tenha dito dali para trás a mente do rapaz não captou. – Você se sente melhor agora? Pode levantar. Ninguém mais vai machucá-lo. Eu prometo. Ruby franziu o cenho com incerteza. Fitou furtivamente os enfermeiros, que recuaram ao notar o olhar. Ainda soluçava quando manchou as paredes brancas com o vermelho sangue de suas mãos feridas. Levantou-se aos poucos, escorado, e ao tentar dar um passo percebeu-se mancando, tolerando a dor agonizante das pernas enfaixadas. Caminhou até sentar-se à banqueta da mesa de centro, inclinado para ouvi-la. – Onde está minha mãe? Silêncio. A única resposta Ms. Sullivan foi a cabeça abaixada. – O que foi que houve afinal? Onde está Dorothy? Onde está minha mãe? Cadê o Mark? Cadê todo mundo? Pelo amor de Deus, fala alguma coisa! – berrou com os olhos esbugalhados. Voltou a ofegar. Quase se ergueu novamente, alterado, mas se conteve. “Você viu as chaves do carro, Mark?”. – Onde estão? Por favor, só me diga onde eles estão.

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“Não sei, querida. Já procurou na sala?”. Apenas diálogos desimportantes permeavam límpidos em sua mente. Sem visão alguma além dos enfermeiros estáticos e de Ms. Sullivan pesarosa. – Ruby... – e fez que não com a cabeça. Mais uma vez, foi como se tudo tivesse sido desligado. Agora via cenas aleatórias, momentos rotineiros e triviais de todos os dias. Os flertes discretos com Angie McArthur (a nerd atraente da aula de cálculo), os corredores do colégio banhados pelo sol primaveril, o banho quente de chuveiro, a porta do conversível vermelho de sua mãe batendo… e tudo começou a voar em sua mente como cenas velozes de um filme em stop motion. Sorriso. Almoço na cantina. Livros. Banho em casa. Família. Céu negro e tempestuoso. De repente, uma grotesca bola de fogo fumegava na Freedom Tower. Corpos riscavam a horizontal com a força do vácuo de ar. Havia uma chuva negra torrencial de concreto e fuligem. E a quietude de uma assombrosa escuridão. Quando voltou a ver a luz novamente, sentia o ardor do sol da manhã cálida iluminar um lado do rosto. Conversas de jovens, carros e ônibus clássicos amarelos à entrada do prédio antigo de um dos melhores colégios secundários de Nova Iorque. Ruby acabara de bater a porta do carro da mãe e caminhava para a aula antes do toque do primeiro sinal. Pretendeu despedir-se sucintamente, já que mais tarde a veria em casa. Todavia, sua mãe não tinha muita pressa após ganhar tempo (e poupar gastos médicos) recusando o café de Mark. Coin o chamou até a janela aberta do veículo. – Ei, mocinho, não venho te buscar mais tarde, OK?

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– World Trade Center de novo? – É. Tenho que resolver uns dilemas sobre a empresa. Os sócios que estão pegando no pé, etc., etc. A gente se encontra lá no fim do expediente e sai para um restaurante. Comida italiana ou chinesa? Você que escolhe hoje. – Italiana. Já enjoei de macarrão frito. A loira não quis se alongar na pauta administrativa. Falava como se tudo fosse apenas uma obrigação entediante, mas, ao olhá-la, Ruby sabia que não era verdade. Aquele foi um dos poucos momentos nos quais realmente compreendeu a vida tripla que a mãe levava. Vereadora durante o dia, empresária algumas tardes, mãe de dois filhos e esposa à noite. Rotina exaustiva, desnecessária. Coin era bem sucedida e idolatrada nas duas carreiras que amava, de modo que se a questão fosse simplesmente financeira poderia muito bem abdicar de qualquer um dos cargos. Mas ela amava aquela vida – amava viver acima de tudo; aquela rotina maluca, conturbada, a mente sempre ativa e as mesas de trabalho sempre ocupadas. A gestora competente, a vereadora prestigiada, a mãe exemplar, a esposa perfeita. Tudo aquilo era sua mãe. – Então tudo certo. Mark vai buscar Dorothy na escolinha e você pega ônibus. Vou indo ou vou me atrasar. Boa aula. Mãe e filho entreolharam-se por instantes. Ela colocou os óculos escuros e despontou um sorriso ao filho que (por milagre, já que quase nunca sorria espontaneamente) retribuiu. – Até mais – ela disse. – Até mais. E o pneu cantou, beirando o limite de velocidade da zona escolar. 23


O rapaz deu uma olhada ao horizonte ensolarado. Entretanto, já não havia mais sol ou calor ou a promessa de um verão próspero e cheio de vida que iniciaria dali a alguns dias. Ao fim daquela tarde tudo mudou. A começar pelo tempo, de maneira abrupta. Ruby via o horizonte. Sôfrego, em pé, pela janela do ônibus metropolitano praticamente vazio rumando à região da Lower Manhattan. Possuía uma sensação incomoda o sufocando desde que todos os celulares vibraram (duas horas atrás) em meio à penúltima aula do dia, informando que as autoridades nova-iorquinas emitiram alerta máximo de eminência de atentado terrorista. As recomendações eram expressas: evitar aglomerações e permanecer em casa até segunda ordem. O pânico instaurou-se entre os adolescentes agitados de sua classe. Pais chegaram alarmados para tirar os filhos da escola e uma aluna foi levada às pressas à enfermaria graças a um ataque de pânico (todos sabiam de seu avô morto no 11 de Setembro). Ruby foi um dos dez únicos alunos que continuou na escola, uma vez que ninguém foi buscá-lo. Coin o ligou calmamente, logo após a divulgação do alerta, avisando que os planos permaneciam inalterados (exceto o restaurante, obviamente). Trovejava bastante lá fora e o céu pendia à escuridão. O ônibus parou em seu ponto final. Coração pulando na caixa torácica. Portas abertas. E antes que aquela sensação indescritível o corroesse e paralisasse, Ruby saltou correndo. Correu. Não sabia explicar exatamente o porquê, mas correu para a avenida, de um cruzamento a outro, pelas ruas da Lower Manhattan trombando com transeuntes que caminhavam nervosos

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a algum lugar. Após poucos metros, via a placa sinalizando a St. Greenwich, antes da curva para o World Trade Center. A partir dali, os eventos transcorreram como uma sequência de imagens mudas, retardadas em câmera lenta: o rosto virando para os lados, vidrando seres apressados e assustados se dispersando na multidão; seus pés cravados firmes e ágeis na calçada, enquanto ele gritava consigo mesmo: “Mais rápido! Mais rápido! Mais rápido!”… e logo seus olhos refletiam o conglomerado, com a Freedom Tower reluzindo triunfante sob a escuridão crepuscular. Era ali que sua mãe estaria: em alguma sala ampla e aconchegante em reunião com os sócios. Estava feito, ele havia chegado. Um sorriso momentâneo de vitória foi ensaiado nos lábios. Mas contido com a inesperada aparição das sirenes dançantes. Carros do Esquadrão Antibombas correram pela avenida rumo ao grande arranha-céu. E a ver aquela cena, um garoto desentendido e desnorteado. Ruby levou instantes para assimilar o óbvio: o prédio cercado não era qualquer um na rua, mas sim o coração financeiro da América, o símbolo da imponência do Estado. O prédio em que sua família se encontrava. Funcionários armados e trajados em roupas pretas de proteção saltavam agitados dos veículos rumo à entrada do edifício. Dezenas de pessoas fugiam de lá correndo, desesperadas. A aflição dominava Ruby. Lágrimas caíam por seu rosto com a visão temerosa ao seu redor: todos escapando do prédio como se o tic tac da bomba-relógio fizesse contagem regressiva. Na contramão dos transeuntes, Ruby também correu. Não da bomba, mas para a bomba.

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Coração disparado. Passos lentos e embaraçados. As sirenes dançantes em slow motion. Berros altos por sua mãe esvaídos no ar gelado, como os milhares de outros berros e choros alheios. Furou sorrateiro o cordão humano formado pelo Esquadrão. Ainda havia centenas ou milhares de pessoas lá dentro. Como Coin, como Dorothy, como Mark. E não havia tempo. Para todos, para sua família e para Ruby, que correu. Correu muito à direção do arranha-céu. – Ei garoto – berrou um dos homens. – Você não pode se aproximar. Uma mão grande e musculosa o agarrou firme pelo ombro. Desvencilhada rapidamente, tentou barrá-lo mais uma vez, mas naquele milímetro de segundo, o mundo todo pareceu congelar para aquelas cenas. Praticamente todos os olhares voltaram-se ao céu escurecido de nuvens carregadas. O som de jatos e helicópteros (da mídia, do governo e do Esquadrão Antibombas), rasos, sobrevoando por entre a trovejada atípica das nuvens baixas. Nuvens negras e helicópteros. O horizonte tornou-se aquilo e foi como se tudo enegrecesse em um segundo. O espaço temporal paralisado. A mão do homem eternamente tentando tocá-lo e então, dentre os berros e gritos histéricos, um soou familiar. – Filho!!! Aquele grito ecoaria eternamente em sua memória. Estridente. Desesperado. Apavorado. À saída do prédio, ainda no caos que ocorria no térreo, dentre as dezenas de pessoas fugindo em desespero, um belo rosto pálido e harmônico conhecido: sua mãe. Lágrimas nos olhos e borrões de rímel preto espalhados no rosto. Mãos estendidas ao nada como se dali elas pudessem tocá-lo. Horror e temor exprimido em cada detalhe à flor de sua pele.

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O mundo descongelou. Deram um único passo na direção um do outro e então não houve mais passos. Uma devastadora explosão acometeu a metade do prédio. Outra, o topo e a última, os primeiros andares. Três bolas de fogo gigantescas cresceram e faiscaram com um laranja cintilante a tarde então enegrecida. O vácuo de ar avassalador das explosões. Pilhas de corpos descontrolados como o de Ruby voavam na horizontal de encontro ao solo. Voando… voando… voando e caindo. Um mar de chamas desfilava, esbravejando labaredas intermináveis. Ruby sentia a dor descontrolada de sua queda e o coser agoniante de seus ossos com o calor do fogo. Pilhas de detritos de concreto, corpos e membros humanos em combustão lançavam-se com as explosões. A torre inteira desfez-se nos ares em questão de segundos, transformada numa nuvem negra de fumaça mesclada à poeira e a fuligem. Uma enxurrada inacabável de ruínas pairava no ar, desmoronava dos céus. O corpo imóvel de Ruby jazia no solo à mercê da chuva sólida. A dor profunda e desoladora. A escuridão das cinzas e da poeira recaía lentamente, abençoando, como um véu macio e cinzento de seda, os escombros que o soterraram. O fogo. O sangue. A dor. A escuridão. A inconsciência. A morte. Do silêncio, cresceu um choro sentido. Da escuridão, emergiu a luz branca fantasmagórica. E debruçado, dilacerado sobre a mesa de centro, o rapaz, que havia há instantes caído em si, mergulhava num choro inconformado e visceral. – Eu sinto muito, Ruby – lamentou Ms. Sullivan, consternada. 27


– Eu vi… – indagou com a voz embargada, soluçando. – Minha mãe morreu na minha frente! Tiraram minha mãe de mim! Mas e Dorothy? E o Mark? Eles podiam não ter chegado… eles podiam ter escapado! Diga-me que eles não estavam! Me diga que eles estão bem… – Ruby até ensaiou enxugar algumas lágrimas. Implorava para ela. Profundo e dilacerante. – Vamos, diga-me. – Já encontraram o corpo dele – dizimou suas esperanças num golpe único. – Eles se foram, Ruby. Todos eles. Sem misericórdia, o rapaz foi atirado num abismo sem fundo. Caía, caía, e caía eternamente na escuridão vazia e solitária de um despenhadeiro. “O ÚLTIMO SCARPA VIVO” foi nota de todos os jornais. Um estigma. Uma praga. Uma maldição. Era para ele ter morrido com todos ali! Desejava ter morrido com eles. Ele não era melhor que Dorothy para ser o irmão que sobrevive. Ele não era melhor que nenhum de seus parentes para carregar o legado de “o remanescente”. Tudo o que sentia naquele momento era ódio. Ódio de tudo e de todos. Ódio de si por ter sobrevivido. Ódio da culpa que sentia por isso. Ódio de tudo. De algum modo que o rapaz não soube explicar, o televisor na parede da saleta estava ligado no volume mudo, amostrando os escombros e a carcaça estrutural do arranha-céu em chamas. “PELO MENOS 800 MORTOS” era a legenda branca numa faixa preta ao canto inferior da tela, que explorava lentamente, num replay ininterrupto, o arranha-céu mais alto do país virar poeira. Foi como o belo castelinho de areia arrebatado sem dó ou piedade pela corrente de retorno em sua infância. A mesma corrente que, num segundo de distração, o afogou em alto-mar até que Mark o resgatasse. Foi ali que ele conheceu sua mãe, Ruby lembrava.

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Ms. Sullivan aplicava suas teses de autoajuda mesmo Ruby sequer dando ouvidos. Ele persistia se vendo no desastre com uma pilha de concreto sobre seu tórax e a brisa quente das chamas próximas aquecendo seu pulmão. Mas pior que tudo isso é que, ainda naquele instante, ele permanecia em queda. A queda que fora arremessado pela explosão e a queda do abismo propiciada por sua mente. Ambas nunca acabavam. A porta da saleta foi empurrada. Os enfermeiros saíram e um rapaz indiferente à visão de Ruby entrou. Ele nem mesmo olhou ou prestou atenção no moço bem afeiçoado que sentou à banqueta à sua frente. Este o olhou intimamente, irradiando entusiasmo. – Você não vai ficar sozinho – a voz otimista e compadecida invadia sua audição ecoando em ondas trêmulas. – Nós contatamos o seu tio. De certo, na pausa que fez, o assistente esperava de Ruby qualquer reação. Alegria, tristeza, espanto… qualquer coisa além da inércia imutável ou do olhar desnorteado. Mas claramente não a teve. Então prosseguiu: – Você vai para o Brasil, Ruby Scarpa.

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2 “PELO BRASIL FAÇAM-SE GRANDES COISAS”. Traduzidos do latim, eram os dizeres que constavam no brasão em cores vivas que estampava a tela ultrafina do salão. À meia-luz do entardecer alaranjado, quando os holofotes que realçavam o visor ainda não estavam acessos e o solar Scarpa mergulhava numa suave penumbra outonal, a espada prateada que separava o S do P, desenhada sobre os ramos de louro e de carvalho, reluzia tal como prata legítima, num brilho estonteante e quase ofuscante ao olhar. Sentado sozinho ao sofá no centro do cômodo, entregue ao marasmo da tarde cálida, o garoto e o brasão. Era um jogo em sua cabeça: os olhos verdes e apertados olhavam para o brasão de armas e era como se o brasão retribuísse o olhar ao garoto. Não eram todos os paulistas que tinham o brasão do estado como fundo de tela. Assim como também não eram todos os paulistas que moravam num palacete como aquele, ou tinham tais posições sociais ou televisores imensos e multifuncionais como o dono daquilo tudo, por exemplo. Porém, em tempos como esses, um brasão de armas não era somente um símbolo estatal figurativo e o jovem chegado há um ano já tinha tal percepção. Dentre as poucas mudanças práticas em curto prazo do tão falado Neonacionalismo, uma das mais inúteis, sem sombra de dúvidas, foi atrelar símbolos de Estado àqueles detentores de poder e status, como que para realçar o elo destes para com o governo. Exatamente!, pensava Ruby, para com o governo. Não para com aqueles que estes governam. Mas quem se importa, não é mesmo? De certo modo, realmente, ninguém se importava. Tanto que o próprio dono daquela TV não era, propriamente dito, “um 30


servidor de Estado”. Mas possuía uma relação de poder para com ele. E se algo o rapaz a encarar o brasão havia aprendido nesse ínterim, é que quando se tem poder em mãos, não há relação de e com o poder que não possa ser transformada ou subvertida. Sempre o disseram num tom de advertência que há uma linha bem tênue entre as reflexões saudáveis e os questionamentos perigosos, que faziam com que o imponente escudo vermelho cintilando na tela parecesse proteger não mais que um castelinho de areia da fúria de ondas revoltas. E a imagem de um castelinho desmoronando já lhe era bastante recorrente, de modo que era cedo demais para Ruby cruzar essa linha. E ele tinha plena ciência disso. Sacudiu a cabeça para os lados como se pudesse mudar todo o foco de suas reflexões com o ato. E o fez. Em meio à torrente de pensamentos a norteá-lo, não pôde deixar de notar o tamanho encantamento exercido pela espada do brasão. Era como se o ornamento ganhasse vida – e poder de morte – numa dança lenta e ritmada em sua mente já perturbada pelo maior trauma possível de ser vivenciado. Não sabia ao certo de onde vinha tal admiração pelo objeto. Certamente das séries que assistira na infância ou dos gostos peculiares que herdou do lado brasileiro da família. O pai, herdeiro de um dos maiores impérios transnacionais da América (antes da empreiteira “ser vendida” para um grupo “socialmente desconhecido”), era outro grande amante das lâminas. Praticava e ensinava a esgrima a crianças de comunidades carentes por pura filantropia, apesar de Ruby nunca ter tido uma lição sequer do pai sobre isso. Não porque ambos tiveram uma relação distante, longe disso. Mesmo separado de Coin desde antes do nascimento do filho, Alfredo sempre fora bastante presente na

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criação da prole, ainda que alguns milhares de quilômetros entre Brasil e Estados Unidos separassem pai e filho. Em um mês, Alfredo ia visitá-lo e ficava uma semana por Manhattan. No mês seguinte, era a vez de Ruby ser mandado ao Brasil e passar uma semana em São Paulo com o outro lado da família. Nunca soube de conflitos por sua guarda, “assim era melhor para ele”, todos diziam. E de fato, a educação bilíngue mostrou-se bem útil desde que o seu castelinho voou pelos ares. Ouviu o crocitar de uma revoada tomar os céus. O único som que ouviu em minutos, talvez até mesmo em horas. Correu o olhar pelo salão brevemente. Fitou os quadros surrealistas nas paredes vermelhas, as belas pilastras brancas (aludindo à arquitetura classicista) sustentando o teto alto e os lustres extravagantes e requintados dispostos pelo salão. Lembrou-se como, em pouco mais de uma década, praticamente nada havia mudado. Não no cômodo, pelo menos. Recordava-se frequentemente de uma das últimas vezes que estivera ali, uma década atrás. As lembranças eram vagas e vinham à mente como flashes de momentos irrelevantes, em preto e branco, incompletos. Cada canto dali o relembrava um drama que foi “preservado” de vivenciar. Isso se dava principalmente nas longas horas nas quais ficava sozinho, entre a saída da empregada do turno da manhã e a volta do tio pelo crepúsculo. O jovem até desejava fazer qualquer outra coisa que não fosse locomover-se do salão para o jardim, do jardim para os corredores e de lá para o seu quarto enquanto sua mente parecia gritar histérica, lançando-o pensamentos e memórias a esmo. Mas com tantos trâmites, circunstâncias alteradas e bloqueios internos a lidar, era demasiado cedo para qualquer ação prática ser feita.

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Ruby era o clássico caladão de mente barulhenta – e todos amavam isso nele –, e isso se dava, principalmente, porque tinha demasiado apreço por seu raciocínio. Compartilhá-lo livremente era sujeitá-lo a uma desconstrução, a uma manipulação constante e alienação massiva em prol dos interesses de outrem. Era mais fácil fingir que sua língua era tão limitada quanto o cérebro mesmo. Mas ele não se queixava. Pelo contrário, até gostava. De seu modo de pensar. Da companhia da própria mente e admirava cada dia mais o modo como permaneceu perfeitamente são após um estigma tão grande que o caiu como uma bomba – literalmente. Assim, resignava-se em refletir quase sempre acerca das mesmas lembranças. Em certo aspecto, remoer uma tragédia já fria na memória era bom. O impedia de reviver outras muito piores e mais recentes. Uma cena típica e trivial, de comercial de refresco em pó passava em sua cabeça agora. A criancinha de sete anos atirada sem quaisquer modos naquele mesmo estofado preto numa tarde invernal de domingo. Provava pela primeira vez uma desconhecida iguaria nacional: brigadeiro de colher. “Parece com merda” havia dito antes de provar... “hm... mas tem gosto bom”. Alfredo caiu na gargalhada com um dos primeiros palavrões proferidos em português pelo filho. Era um sorriso que exaltava seus belos dentes brancos e sua arcada dentária impecável. Era o mais belo sorriso que Ruby se lembrava de ter visto. Jovial, em seus mais de trinta e poucos anos, com a eterna barba por fazer e um olhar chocolate, dócil e meio pedante. Seu maior charme, indiscutivelmente, estava no sorriso. E aquela foi uma das últimas vezes que o garoto o viu.

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Enquanto Alfredo bancava o espadachim dando uns milhares de golpes no ar, representando caras e bocas com Agulha, sua espada predileta, o avô ranzinza do menino praguejava em tom mordaz: “A espada e essa sua mania de pai dos pobres favelados, mais dia menos dia, vão matá-lo, meu filho”. Espada. Mania. Favelados. Matá-lo. Matá-lo. Matá-lo. Uma triste associação de palavras gravadas na memória de Ruby e que em breve viriam a marcar a memória de todos os Scarpa. Noite abafada e tempestuosa. Fim de uma aula na comunidade. Alfredo voltava para casa. Uma emboscada de assaltantes, jamais esclarecida, o aguardava no caminho. Foi essa a versão que teve acesso. Ruby fechou os olhos como se pudesse assistir a uma sequência expressionista de fatos jamais presenciados: o pé fincado no acelerador. O pneu cantando em vielas molhadas. A perseguição implacável dos marginais. A chuva forte embaçando os vidros. O desespero crescente e o coração disparado. E subitamente: Grito. Tiro no pneu. Rodas faiscando no asfalto. Vidros explodindo. Um carro qualquer capotando barranco abaixo. Sirenes. Comoção. Um suntuoso caixão preto. E uma infeliz associação de palavras que não constariam no epitáfio. Seu pai morreu como um herói. Um filantropo. Um homem honrado da seletiva elite branca e politizada paulistana (apesar de seu pai ser o mestiço do clã). Sua imagem de “o bom Scarpa” foi tornada quase slogan da família pelos anos que se sucederam da tragédia. Porém Ruby sabia. No fundo, quase todos sabiam: nenhum Scarpa ou família do ramo prestava. Mas ainda assim todos diziam isso.

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E Ruby já havia absorvido a lógica: “a coerência não está nos olhos de quem a vê. Mas sim nas mãos de quem a controla”. Afinal, Alfredo não era tão bom e honorável assim. Tampouco seu falecido avô ou seus outros tios já mortos. E logo Ruby, conclamado por Deus e o mundo como “o último Scarpa vivo”, se era realmente tão íntegro e idôneo quanto sua imagem transparecia sabia que em breve deixaria de sê-lo. Mas o consolava suficientemente a ideia de que ninguém que se utilizasse de um brasão de armas como mero símbolo de status e poder fosse, de fato, honesto. As reflexões amargas concluíram-se ali. Com uma inspiração profunda e o corpo espreguiçado no sofá. Os olhos semicerrados ao sentir o último raio do sol poente acertar-lhe a vista através da janela da sacada. Relaxado por instantes silenciosos e sonolentos, ajeitando o corpo aqui e ali para uma breve sesta tardia. Até que incomodasse o toque petulante do smartphone sobre a mesa de centro transparente. Sua mão acenou para a luzinha verde do projetor gráfico plugado ao telão. Lutando contra o corpo amolecido o jovem abriu os olhos para assistir o visor apagado. Logo a tela acendeu novamente. Não com o brasão do estado estampando a tela, mas com as mensagens de seu tio ali projetadas. ESTOU QUASE CHEGANDO. PRECISAMOS FALAR SOBRE O CEN. Uma associação momentânea de novas siglas conhecidas e... CEN: Consórcio Estatal Nacional. Com a inexpressão serena e sonolenta a esboçar um leve ranço de apatia, a mente de Ruby maquinava acerca de dois únicos raciocínios que, volta e meia, a permeavam.

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Primeiro: ele não era o último Scarpa vivo – ou, pelo menos, não ainda. Segundo: Scarpa e honestidade têm a mesma correlação de água e óleo. Ou seja: jamais se misturam. Mas para os cegos, isso não faz diferença. As vestes que Ruby largara no cesto da suíte estariam lavadas e passadas em seu guarda-roupa antes mesmo da alvorada. O vapor do extenso banho quente umedeceu a aridez do ar do outono e logo embaçou o espelho e os vidros do box transparente. De olhos fechados, enxaguava os cabelos lisos mantendo o rosto inclinado à queda d'água do chuveiro moderno. Conforme ensaboava o corpo, era capaz de ouvir o tom barítono de voz cantarolar pomposamente para lá e para cá (num tom que, secretamente, o remetia a deboche): Marchemos cheios de glória! Conosco marcha a vitória. Felizmente, para os nervos de Ruby, a cantoria diária de seu tio foi logo cessada com duas batidinhas na porta. – Ruby, vai demorar muito? – Lúcio perguntou cordial do lado de fora. – Tenho um trabalho extra pra despachar ainda hoje. E precisamos conversar logo. – Já sei, tio. Já estou indo. Não soube ao certo o porquê, mas havia um ponto cego, algo de oculto, nas palavras “trabalho extra”, naquela vez, que o inquietara. Tratou de fechar logo o chuveiro, puxando a toalha que estava no 36


apoio e em questão de minutos descia a escadaria em formato de caracol, bem afeiçoado nos jeans pretos e camisa xadrez cor salmão com abotoaduras que viu sobre a cama após o banho. Com a mão escorrendo o corrimão metálico que acompanhava a curva da escada e os passos sem pressa, seus olhos buscaram a figura de pouco mais de um metro e noventa, num terno azul marinho luxuoso (com um forte quê de sinistro) rigorosamente bem cortado, dono de cabelos curtos e escovados variantes entre o preto e o grisalho. Estava de costas para ele, finalizando um cigarro, frente ao telão ultrafino sobre o tablado de três degraus de madeira lustrada, iluminado pelos holofotes. Um telejornal local no mudo exibia as trivialidades rotineiras: casal de âncoras bem vestidos na bancada sorrindo, sempre sorrindo, conversando como velhas comadres enquanto uma moça em pé falava sobre o tempo num visor. Sem volume, ficava evidente como ela lia tudo em um teleprompter, e a câmera logo cortava de volta ao apresentador que parecia tecer algum comentário descontraído e irrelevante em relação ao assunto. Imóvel e atento, terminando as tragadas no cigarro, Lúcio fingia estar bastante interessado no clima, no trânsito ou em qualquer outra inutilidade dita por eles no volume mudo. – Demorou bastante, Ruby. Sensor de presença oculto? Olhos atrás da cabeça? Audição apurada para ouvir os passos surdos na escada? Ruby se questionava nos últimos degraus. Não importava. Em um riste rápido com dois dedos rente à tela, Lúcio apagou o visor, que após segundos reacendeu estampando o clássico brasão de armas. – Onde está Arminda?

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Lúcio virou-se ao sobrinho. Sorriso branco estonteante no rosto pálido e enrugado pelos quase cinquenta anos. Olhos azuis. Profundos olhos azuis como mares translúcidos, penetrantes e misteriosos. Daqueles intimidadores, capazes de arrebatar até a alma de um sujeito. – Quem é Arminda? – questionou Lúcio, sugestionando algo como “lembro do nome, só não lembro de onde”. – A governanta. Turno da noite… – Aah…– fez uma breve pausa na qual olhou para os lados buscando algo. – Bem, não está aqui. Devo ter dado folga. Até melhor. Aqui no Brasil o proletariado não curte muito trabalhar às sextas-feiras – ar de indiferença, e a esperada conclusão sarcástica. – Sinceramente, quem é que gosta, não é mesmo? Não havia entendido. Ruby evitou olhá-lo com seu tom inquisidor de quem o estudava, mas realmente não havia entendido. Para que dispensar a empregada de repente sendo que nunca fez isso antes? Por que a roupa escolhida sobre sua cama como se ele fosse uma criança de cinco anos? Preocupado demais em responder mentalmente as próprias perguntas, caiu em erro ao deixar com que o oponente o estivesse estudando despercebido. Não que seu próprio tio que o acolheu quando ninguém mais restava para fazê-lo fosse o oponente… quer dizer, não que às vezes não se assemelhasse a um oponente (nas regulares partidas de xadrez, que Lúcio invariavelmente ganhava, por exemplo), quer dizer… a verdade é que já não sabia mais o que pensar além do frio horripilante causado por tais olhos gélidos e sombrios que invasivamente o penetravam. – Não se preocupe. Você não vai dormir com fome, se é isso que está pensando. 38


Um sorrisinho sem graça desenhou-se nos lábios do jovem. Não estava mesmo dando a mínima para isso. – Podemos até ir jantar num restaurante mais tarde. Ou melhor, pedir uma pizza! Isso, ótima ideia. Uma pizza… dizem que nós paulistanos fazemos a melhor do mundo. Não duvido… correu pela mente de Ruby. – Você sabe… há até um ditado aqui no Brasil que diz que tudo acaba… Enfim, você não me parece interessado nisso. – Não estou com fome, tio – assegurou-lhe. – Vamos ao assunto então? E Ruby sacudiu a cabeça. A porta do cômodo desconhecido no corredor estreito do terceiro piso foi aberta com o polegar de Lúcio sobre um leitor de digitais. Ruby nunca entrara ali antes, tampouco lhe fora informado do que se tratava aquilo. E ele acabara de descobrir que não dava num porão, quarto do pânico, uma imensa suíte de hóspedes ou qualquer que fosse a ideia que passou em sua mente. Dava numa comprida galeria às escuras pela qual o jovem seguiu o tio. Olhou para trás vendo a porta bater com estrépito. Escuridão completa. Mormaço intenso de local abafado e sem ar condicionado. A voz do tio a ecoar pelo cômodo o guiava. – Meu pai chamava isso aqui de Salão das Memórias – explicou Lúcio. – Ele nunca gostou desse cômodo. Mas o construiu de presente pra minha mãe. Ela sempre sonhou com um lugar assim pro solar. Ele achava baboseira, daí ela engravidou de gêmeos e 39


meu pai disse que se um deles fosse garoto, como o ultrassom confirmou... – De gêmeos!? O tio era dez anos mais velho que seu pai. E a ele, em momento algum, foi mencionado outro filho de Consuelo e Alberto Scarpa além de Lúcio e o finado Alfredo. – Sim. De gêmeos. Seu pai e uma garota. Mas as coisas se complicaram. Alfredo foi o único que saiu vivo do parto. Mamãe não resistiu e levou a garota consigo. Por isso nem meu pai, nem Alfredo suportavam esse lugar. Mas eu sempre o adorei. Tanto que depois que eles também se foram dei uma atualizada aqui. O clic do interruptor pressionado. Luzes de led no teto enfileiradas do começo ao fim da galeria acenderam-se uma a uma. Um telão no fundo da sala foi ativado. O ar condicionado que havia no teto começou a funcionar. Ruby sentiu-se perdido na vastidão do museu familiar privativo. Molduras, molduras e mais molduras. Expostas religiosamente em ordem cronológica na parede a que Ruby estava de frente. Matérias minúsculas quase cor bronze de tão antigas. As primeiras datavam dos últimos anos do século XIX e aumentavam de tamanho e relevância conforme vinham os primeiros anos do século XX, até a primeira capa de revista, em meados dos anos 60. Ruby começou a caminhar lentamente olhando para a parede. Impressionado, meio boquiaberto com tantos registros, mas focalizou-se de frente ao passado recente e turbulento de seu clã. Nota sobre o nascimento do primogênito Scarpa. Uma década depois e via-se Consuelo posando grávida ao lado de Alberto numa revista junto à manchete: “SÃO GÊMEOS!”, notas

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lamentando sua morte trágica no parto em seguida. Entrevistas com Alberto. Muitas delas. Entre as notas da família, sempre estava uma ou outra genérica nos moldes: “GRUPO SCARPA E GRUPO WILLIAMS FECHAM NOVA PARCERIA” ou sobre quanto a SAC (Scarpa's American Company) havia crescido e empregado mais gente naquele ano. Capas de revistas e matérias sobre Alfredo já adulto como filantropo: ele sorria ao lado de leões brancos numa savana, sorria junto a rapazes maltrapilhos numa laje de favela sob a luz do pôr do sol, sorria posando com aborígenes da Austrália. Sorria engravatado também, era um homem de negócios. Sorria de mãos dadas e aos beijos com seus muitos affaires (muitas mulheres... meu Deus! Eram mesmo muitas mulheres!... espere, havia muitos homens também...). O nascimento do primeiro filho com uma vereadora e empresária estadunidense. Mais filantropia. Mais fotos de gravata. Mais flagras de seus affaires. E então… morte. Conseguinte morte de Alberto após três anos por câncer de pulmão (era adicto incurável em nicotina) e mais e mais capas de jornais, mais matérias em revistas e, quando viu, havia percorrido quase três quartos do corredor quando se deu conta que, a partir dali, já não era só uma história familiar eternizada em quadros e molduras. Começou com notas sobre “boatos relacionados a Consórcio”, misturadas a boatos de corrupção da família Scarpa e acionistas americanos. “DECADÊNCIA DE EMPREITEIRA” era o título explorado à exaustão em seguida, então, a venda para um grupo britânico desconhecido na matéria ínfima de uma revista e, após uns meses, a reportagem de um jornal intitulando: CEN: FAMÍLIAS SCARPA E FIGUEROA VENCEM LICITAÇÃO POR SUDESTE PARA PRIMEIRO ESCALÃO DO CONSÓRCIO. 41


A partir dali parecia não haver um ponto em que “O Consórcio” terminava e a família Scarpa recomeçava. Ambos eram um. Interdependentes. Entrelaçados. Indissociáveis. Numa emaranhada relação de verme e hospedeiro no qual um só sobrevive enquanto o outro também o fizer. O CEN não é só uma praga que impregnou esse país, refletiu Ruby. O CEN é uma praga que impregnou essa família. Ao lado, no final da galeria, o imenso telão ultrafino ia do teto até o chão exibindo continuamente em volume mudo filmagens da família feliz em dias de sol à beira da piscina, de festas pomposas e lotadas no solar, de Alfredo com uma coroa na cabeça soprando as velinhas de seu décimo aniversário… E de repente tudo se mesclava a matérias jornalísticas diversas: inauguração de nova sede da empreiteira no centro de São Paulo; grandes amigos da família Scarpa posando ao lado de militares nos anos 60… mais cenas de câmera amadora da família feliz: alguém filmando Consuelo aos risos, grávida de gêmeos, tomando café ao nascer do sol; festa para Alfredo, festa para Lúcio, festa onde Ruby esteve quando criança (jurava não se lembrar da ocasião), festa para Ruby, festa para Alfredo novamente e... espere, já não havia mais festas para Alfredo. Agora somente para Lúcio. Logo já não havia mais festas de qualquer tipo ou cenas aleatórias de câmera amadora com pessoas sorrindo… Haviam prédios gigantescos construídos em meio ao nada, monumentos reestruturados após incêndios catastróficos, estradas pavimentadas e cheias de carros cortando a Amazônia, escolas devastadas sendo reinauguradas, pilhas de casas populares enfileiradas ocupando a tela e, novamente, aquele ponto exato de fusão refletido e exposto de maneira assustadora: a família termina onde o Consórcio começa. E o Consórcio parece jamais terminar outra vez.

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A tela o seduziu como o relógio de bolso de um analista prendia um paciente em hipnose. Tomadas constantes, cenas esparsas arremessadas ante sua vista. Incessantes. Intermináveis. Inacabadas. Era uma espécie de lavagem cerebral… era difícil fugir para um canto quando tudo parecia petrificá-lo e imobilizá-lo para o próximo take. Uma cena descontraída da família sorrindo para a câmera ou um arranha-céu espelhado dominando o horizonte? O próximo take? Não houve. A tela apagou-se subitamente e a visão de Ruby – magnetizada pelas imagens – pareceu submergir na escuridão opaca do preto estampando o visor. Desta vez, porém, para a agradável surpresa do jovem que ficou ao aguardo, a tela não reacendeu exibindo o brasão de armas. Houve apenas o nada. O nada e a profunda escuridão. Escuridão na tela. Escuridão na atribulada mente de Ruby. A tela não era apenas uma tela. Ruby atinou isso quando as duas metades separaram-se e deslizaram lateralmente em fendas por entre as paredes revelando um contíguo moderno no Salão das Memórias. Deu para trás vendo Lúcio com a mão em um leitor digital na parede, olhando orgulhoso o que havia além da galeria. – O adendo é de minha autoria, assumo. Também funciona como ótimo Quarto do Pânico, no caso de qualquer emergência. Como disse, sempre amei esse lugar. Vamos, siga-me. Lúcio ultrapassou Ruby e entrou no anexo. Era uma espécie de escritório, com paredes de madeira envernizada à moda do começo dos anos 2000, apesar da modernidade. Piso que alternava entre azulejos brancos e pretos associáveis ao xadrez. Um imenso 43


telão que ia do teto até o chão na lateral esquerda expunha um mosaico com dezenas de miniaturas de câmeras de segurança high definition. Tanto de todo o solar como da rua e também de escritórios e salões vazios desconhecidos para Ruby. Do outro lado, via-se um estofado preto confortável encostado na parede, tendo à sua esquerda um frigobar abaixo de três alças de ferro que nada mais eram que gavetas armadas na estrutura das paredes. Sentado ao sofá, intrigado com as chamadas “gavetas internas” (não acreditava não ter visto algo do gênero em pleno meado dos anos 2030) buscava uma resposta no olhar do tio. – O que há aqui? – De cima para baixo: armas, Serviço de Comunicação Direta com a polícia e os bombeiros e comida condimentada suficiente para dois dias. E sabe o melhor? Só abrem com as minhas digitais. Incrível né? – Bastante. – Mas em breve abrirão com as suas também, não se preocupe. Um silêncio maçante e desconfortável suspendeu-se no ar. Lúcio suspirava fazendo seus lentos rodeios pelo contíguo. – Explique-me, tio. Solicitou, sem que ambos mantivessem qualquer contato visual. – Exatamente o quê? – Tudo. –Ergueu os olhos verdes que se encontraram com os azuis do velho Scarpa. – Sei que o senhor fará volteios antes de chegar ao que interessa. – Ruby, Ruby… assim você até me ofende.

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Tinha um ar nítido de deboche em sua voz. Irritante. Incômodo. Desnecessário. Ruby odiava deboches, com raras exceções aos seus momentos mordazes. Olhar penetrante que alcançava até a alma. Firme, rijo, inflexível e inquebrável. Esse era o olhar, esse era seu tio, esses eram também os Scarpa, e, por tabela, esse também era o Consórcio. Lúcio pigarreou: – Veja bem, Ruby, diferente do seu lado materno da família e da historinha comovente da sua bisavó que cruzou o Atlântico fugindo da guerra com um bebê na barriga e as mãos vazias para realizar o Sonho Americano, nós… bem… nós sempre fomos... – abriu os braços e girou para os lados, explorando gestualmente o escritório. – Isso aqui que nós somos. Nossos ancestrais devem ter vindo pra cá com os primeiros homens. Ajudaram a colonizar, a desenvolver cada canto desse país. Possuímos vastas e vastas terras. Era terra, Ruby!… era terra a se estudar com mapa! Eu sei, você deve estar desapontado com essa parte da história... – Não. De modo algum, continue. – Está sim. Eu vejo em seu olhar… vou confessar pra você que eu também esperava a historinha clichê que todos contam: o tataravô que veio pobre trabalhar nas fazendas cafeeiras e construiu um império mesmo com as mãos sujas de terra… É, mas enfim. É fato que permanecemos sempre entre as famílias mais ricas e influentes do país. Não importa se é sendo latifundiário, se metendo com política, donos de uma das maiores empreiteiras da América Latina, ou… ou como um dos membros de primeiro escalão do maior conglomerado multe empresarial do planeta. Sempre estivemos no topo. Sempre. Contudo, a parte que interessa começa quando abrimos uma empreiteira. Isso que eu tô falando

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agora é mais ou menos da época do seu bisa ou tataravô, não lembro ao certo. Fez uma pausa. Serviu-se de um copo d’água no frigobar e ofereceu-o a Ruby que recusou com um aceno. – Empreiteira surgiu. Cresceu, cresceu e cresceu, e daí veio a época do seu avô e a partir dali… Deus, quanta crise! Entra governo, sai governo, economia cresce, economia decresce e escândalos surgem. Naturalmente, tínhamos poderosos sócios estrangeiros. Naturalmente, prestávamos… é… “auxílios” a pessoas influentes. Você sabe, né? Uma mão lava a outra, e duas, o rosto inteiro. E então escândalos envolvendo governo, escândalos não comprovados envolvendo a nossa empreiteira e nós quase caímos. E sabe a melhor parte? Não éramos apenas nós. Eram todos. Foram tempos difíceis. Algumas famílias como a nossa simplesmente desmoronaram, Ruby. Muitas resistiram, naturalmente, mas hoje já não são grandes coisas, mas nós! Nós, Ruby! – Bateu no tórax de punho cerrado, orgulhoso. – Nós permanecemos de pé. Demos a volta por cima e fomos ainda mais longe. Nessa fase estivemos perto de cair… meu pai dizia que podia sentir o cheiro de vidinha proletária invadindo suas narinas e revirando-o até as entranhas. Mas tudo pareceu acalmar. Saiu presidenta, entrou presidente, saiu presidente, entrou e saiu presidente de novo. E aí entrou presidente. Dessa vez o povo estava farto. Deve ser exaustivo você chegar em casa exausto todo santo dia, graças a essa merda de sistema capitalista opressorexplorador, isso quando se tinha emprego, e ainda ter que engolir novo escândalo de corrupção, ver que o preço do feijão e a conta de luz vão aumentar novamente e mais escândalo e mais corrupção… alguém precisava fazer algo antes que o sistema entrasse em colapso. E ele fez. – Ele quem?

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– O presidente, ora bolas! Túlio Siqueira o nome dele… saiu do poder a uns quatro anos e morreu de infarto há uns… nossa! Ano passado isso. Ele tem uma história bem peculiar, aliás: era presidente da Câmara dos Deputados, um populista assumido que era tanto amado pelo povo quanto pela classe política. Ele chegou ao cargo porque, como presidente da Câmara, infernizou o presidente Atílio até o mesmo cometer suicídio e, obviamente, o vice renunciou. Enfim… ele tinha um discurso meio varguista, sabe? Pai dos pobres, mãe dos ricos… veio a calhar que ele tinha uma esmagadora maioria na Câmara e no Senado. A verdade é que a “grande maioria do Siqueira” não era mais que fruto de uma imensa conspiração política, talvez a maior que nosso país já tenha tido, e de uma boa dose de desespero, chantagem e traições ideológicas. Assim, ele prometeu um pacote de reformas que chamou de “Neonacionalismo”. Disse que ia melhorar a distribuição da renda, prometeu que a economia ia dar aquela guinada, disse que ia fazer “a” caça as bruxas à corrupção, e, de fato, jogou um ou outro pé de chinelo na Papuda. Disse que ia acabar com a reeleição, mas isso, obviamente nem seus partidários deixaram. E dentre outras medidas que dividiram opiniões, criou o CEN, o Consórcio Estatal Nacional. Ou simplesmente Consórcio, como as pessoas gostam de chamar. É um conglomerado, como você já sabe. Todas as obras estruturais, construções, reformas, licitações para tudo. Tudo. Desde a creche feita no bairro pobre da favela à rodovia duplicada e a construção de um monumento… Tudo é feito por nós. Os governos dão a verba, dizem a obra e nós cuidamos do resto. – Então, politicamente vocês não tem poder. – É… conceitos de poder e política são conflitantes por aqui.

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– Vocês conspiram – vociferou num tom áspero e acusador. – Vocês conspiram pra ter de fato o poder que almejam. Uma revolução? É isso o que vocês querem? Silêncio. Um frio desceu lentamente pela medula, arrepiando toda a dorsal de Ruby. Havia ousado demais. Afrontado demais. Cruzado a linha tênue que desmoronava o castelinho de areia. O olhar penetrante avivou-se novamente e, de repente, risos. Muitos risos. Lúcio se pôs a gargalhar como se tivesse tendo um ataque epiléptico. Para a completa surpresa do rapaz. – Desculpa… – disse ele, ainda contendo os risos. – Oi? Revolução? Nós? É isso mesmo, Ruby? Não. Não mesmo! O CEN foi criado pra perpetuar o sistema, não pra destruí-lo. “Acabar com a corrupção das grandes empreiteiras!”, “Derrubar os oligarcas engravatados!”, “O Consórcio é a solução ideal pra isso tudo…”. Olha… Túlio Siqueira estaria se roendo no inferno agora se por um instante sequer estivesse dizendo a verdade sobre o CEN. A verdade é que o CEN apenas… “restringiu” quem tem acesso ao bolo. Logo, se menos pessoas são chamadas pra festa, o bolo pode ser mais discreto, não é mesmo? – E é nesse lugar que o senhor quer me colocar. – Não… – longa pausa. – É nesse lugar que eu vou te colocar, Ruby. Lúcio se calou por instantes e novamente pegou uma garrafa d’água no frigobar, bebericando até a metade. – Você precisa saber que mergulhará num vespeiro. Não seria necessário te dizer isso, mas você não tava aqui para ver o que eu vi na época da formação do CEN. Família contra família. Empreiteira contra empreiteira. Um tentando sujar a imagem do outro, corromper um ao outro, derrubar adversários a todo custo 48


pra conseguir uma cadeira no escalão principal. Claro, ninguém botava fé nas ideias do Túlio inicialmente, mas o calhorda era tinhoso. Quando não conseguiram derrubar o projeto dele, a elite nadou no caos. Um verdadeiro salve-se quem puder. Você gostava de Game of thrones, não? – Era minha série favorita. – Pense em algo do gênero, mas dez vezes pior. Ou melhor, em algo tipo “O poderoso chefão”. Só que com dez vezes mais famílias poderosíssimas de cada região do país se matando por duas vagas. Escândalos, sujeiras, conluios, golpes baixos, quatro ou cinco grandes empreiteiros por aí que sofreram… “acidentes fatais” ou “latrocínios suspeitos”. Nunca houve um jogo de poder por debaixo dos panos tão intenso quanto naquela época. Havia apenas um pré-requisito básico aos candidatos do Conselho dos Dez: não ser dono de empreiteiras. – Por isso que vocês venderam... Um novo riso debochado do velho Scarpa interrompeu a linha de raciocínio do sobrinho. – Não, Ruby, não seja tão tolo. Nós não vendemos. Na verdade, ninguém vendeu realmente. Arranjamos laranjas fora do país pros quais passamos a empreiteira. Caso algo desse errado e o CEN furasse, ou pior, não fôssemos aprovados no Conselho… Depois de aprovados, aí sim vendemos, mas permanecemos acionistas. O ponto é: estávamos quase à beira do colapso quando o CEN nos lançou ao auge. Nós somos o CEN. Nós devemos tudo o que temos hoje ao CEN. Mas há outro lado da moeda também. Há gente que deve ao CEN tudo o que perdeu, ou o muito que perdeu, pelo menos. Mas uma imensa maioria desses daí já recuperaram e muito do prejuízo dado pelo Consórcio graças, adivinha… ao próprio Consórcio! E ainda sim, há sempre um 49


infeliz conspirando pra tentar nos derrubar, ou alguém nos espionando pra ferrar com as nossas vidas, coisas do gênero. Já ocorreu claro, de ser gente de dentro do próprio escalão do CEN querendo derrubar um dos chefões pra subir de cargo, por exemplo. O Membro Beta que nunca cogitou conspirar contra um dos Dez Líderes que atire a primeira pedra! Isso fora as conspirações externas que são ervas daninhas cada vez mais recorrentes. Claro, na grande maioria das vezes são esses associados ou excluídos, herdeiros da Pré-Reforma que conspiram mesmo. Mas agora, Ruby, me diga. Por quê? Por que conspirar contra nós se nós ainda os damos a chance de se manter elite? Instantes de silêncio. Ruby buscava uma assimilação rápida que ratificasse sua hipótese. Lúcio o estudava paciente, calmo, atento, como o ótimo professor que era nas partidas de xadrez. – Poder – arrematou. – Não é só por um zero a menos ou a mais pingando na conta. É por poder. Por status. Lúcio aproximou-se até ficar com o rosto colado no de Ruby e sussurrou como se lhe contasse um segredo. Tão secreto que deveria temer até mesmo que as paredes pudessem ouvir. – O que essa meia-dúzia recalcada não sabe é que eles não têm poder. Eu tenho. Meus nove colegas do Conselho têm. As dezenas de Membros Betas amargurados, de Cônsules e MA’s também têm. Aqueles pros quais trabalhamos e… assumo, até conspiramos contra algumas vezes, têm poder. Eles não. Eles têm dinheiro, Ruby. Mas o poder é aquilo que te preenche por dentro, que te excita, que te aviva e te transforma. O poder é aquilo que faria você meter uma bala na nuca do seu único parente vivo, sem qualquer vacilação ou sinal de remorso, se isso fosse garantir mais poder do que você já tem. O poder pode até não ser o início, mas é o caminho, e é o meio de todos os fins, bem como o fim de todos os meios. 50


Lúcio afastou-se. O olhar de Ruby fitava o nada com a incerteza de opiniões e seu vazio interior incompreensível. Silêncio na mente vazia. Inquietação a corroer o estômago. Botas batiam constantemente no chão. Era Lúcio em seus volteios circulares pelo recinto. Deu uma caminhada silenciosa que o levou até a entrada, parou e olhou para o sobrinho. Olhar complacente e não invasivo dessa vez, o rapaz percebera. – Sabe? Após minha morte algum primo distante da família dividiria a herança com você. Você claramente não tinha planos para nós e… vou confessar, eu e meu pai também não tínhamos para você. Seu pai era um bom gestor. Sabia roubar, coordenar, corromper, gerir e ludibriar direitinho. Mas era um idealista, no fundo. Um bon vivant que poderia ter nascido em qualquer outra família endinheirada de médicos, advogados, empresários… bem, nasceu na nossa. Nós supomos que você fosse puxar o gênio dele. Mas, naquela noite, há quase um ano, quando você saiu do portão de desembarque e olhou para mim do modo que olhou, eu vi que você tem potencial. Eu vi que o meu sangue também flui em suas veias. Vi que eu devo investir em você, Ruby. Não me decepcione. Lúcio fez breve menção de sair, mas... – Pergunte. Cabisbaixo. Assustado. Voz inconsistente. – Você quer? Você quer isso, Ruby? Silêncio. A voz não saia, a língua era um pedaço de carne morta pesando toneladas dentro da boca. A mente começava a berrar. Indecisa, apavorada, excitada, repelida e atraída ao mesmo tempo. Não. Sim! Não sei! Sim… não! Talvez… não! Não!

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E quando menos se esperava, os músculos da língua resolveram funcionar e num único sibilo, em alto e bom som, a resposta: – Sim. Silêncio no ambiente. Silêncio dos pensamentos. A resposta já estava dada, a decisão já fora tomada. Não havia mais o que se pensar. E uma relaxante sensação de alívio descarregou-lhe. – Sabia que não iria me desapontar. Um sorriso terno contornou-se singelamente nos lábios carnudos e rosados de Lúcio. Transparecia um orgulho nato, genuíno, que ninguém nunca antes demonstrara sentir por ele. E quando menos esperava, sentiu seu abraço. Forte. Íntimo. Protetor. Reconfortante. Aconchegante. Daqueles típicos abraços de mãe que recebia de Coin antes de ela desfazer-se em meio a escombros. E a certo modo, daqueles escombros que outrora o soterraram, Ruby agora se sentia erguendo o seu próprio castelinho de areia. Um castelinho que onda alguma derrubaria.

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3 IMEDIATAMENTE, APÓS BATER a porta que esculpia o brasão de armas de São Paulo, Ruby sentiu a brisa fresca soprar em sua face. O vento que precedia a chuva eriçava seus cabelos e circundava os arvoredos no jardim, carregando folhas secas e rondando os galhos numa espécie de assobio reconfortante. Pé ante pé no caminho de pedras talhadas, entre a fachada do solar e o sedan preto bem polido e o moreno estava à porta do veículo, somente ao aguardo. Cumpriu apenas o comando simples de esperar no carro livre de qualquer preocupação. Todos seus argumentos “irrefutáveis” foram derrubados com uma tacada única e sem pestanejo. Seu senso exacerbado de retidão dizimado em choques massivos de realidade. Sua mente limitava-se a uma mera gaveta vazia e esquecida, preenchida com o mesmo silêncio atormentado de suas palavras. O agir sem questionar, obedecer sem contestar… Comportamentos mecânicos, inumanos e parasitários segundo Ruby, agora reproduzidos sem a menor hesitação. De cinto afivelado, olhava para a grama através das janelas blindadas. Foram instantes longos e vazios, na percepção do jovem Scarpa, até que a porta ao seu lado se abriu, anunciando a entrada de Lúcio, exalando odor de cigarro. Cinto afivelado sobre o terno azul marinho. Chave na ignição. Olhos rentes no retrovisor com câmera de ré e mão já pressionando a marcha. – Pensei que esperávamos o motorista – salientou surpreso. Lúcio nunca dirigia. Nunca que Ruby tenha visto pelo menos. – As sextas e sábados é folga dele.

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– Mas as sextas e sábados sempre vem o substituto. Suas faculdades mentais pareciam voltar gradualmente, como que despertando de um coma induzido. A contestação do sobrinho foi simplesmente ignorada até Ruby desistir de qualquer retorno e reconhecer através da janela a extensa e recém-reformada Avenida Rebouças. Notava como o trânsito estava surpreendentemente fluído para uma noite de sexta-feira. – Vamos pegar a Marginal? – Você não costuma fazer tantas perguntas, Ruby – observou debochado. E você não costuma desconversar tanto as respostas, titio. O jovem até ensaiou retrucar daquela forma, porém manteve para si. – Mas sim, vamos pegar a Marginal. – Falando em Marginal, é sério esse rumor de que a do Rio Tietê será duplicada? – E a do Rio Pinheiros também. Isso, é claro, se esse merdinha do Palácio dos Bandeirantes não for reeleito. – Aposto que não será. Lúcio limpou a garganta, ruidoso. Não demonstrava o menor entusiasmo em ouvir as inquirições inoportunas de Ruby. – Desculpe, esses tempos têm sido solitários pra mim. Ando falando demais – justificou-se com um sorriso constrangido. – Não, não, de modo algum. É até bom que você fale às vezes… sabe Deus as insanidades e transgressões que se passam nas mentes desses mais caladões. – E finalizou com um sermão, olhando fundo nos olhos dele. – Mais perigoso que ser visto pelos

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outros como um tagarela cabeça de vento é ser visto pelos outros como um caladão de mente falante. Nem todos os caladões eram insanos ou transgressores como o tom insinuara. E o rapaz a olhar fixamente para seu tio tinha plena ciência disso. Na realidade, o rapaz era a prova viva disso. O carro agora percorria a Marginal Pinheiros, mais lentamente do que seguiu pela Av. Rebouças. A encostar-se ao vidro do carro, Ruby tornava-se um curioso espectador de um espetáculo de luzes dançantes, coloridas e cintilantes dos deslumbrantes arranha-céus (usualmente tão cinzas) que, por ligeiros instantes, o remetiam às noites quentes de verão nas alamedas e avenidas de sua terra natal. – Música, Allie. Ao comando de voz no painel do veículo, apareceram focos de luz verde-escuro no fundo preto com o formato rústico e meio mórbido de um rosto feminino surreal e inexpressivo. – Boa noite. O que deseja ouvir, Sr. Scarpa? A voz “dela” era um artificial adocicado e um tanto melódico. Nada monótono, frio ou distante como as outras máquinas – apesar de, ainda sim, meio mecânico. Ruby nunca gostara de Allie ou de qualquer forma de I.A, porém passara a revisar esse conceito. Lúcio virou-se para Ruby e deu-lhe uma cotovelada amigável no antebraço, sugestionando-o num tom de deboche. – O Hino do Estado ou o da Revolução de 32? Apatia. Ruby devolveu-lhe a mesma reação de quando o perguntou sobre o motorista, minutos antes. – Está certo… – disse voltando-se à Marginal, com a feição exata de um humorista quando a piada não agrada. – Curte M83? É bem vintage, mas... 55


– Conheço pouco – deu de ombros. – Uma música ou outra. – Midnight City, Allie – voltou-se a Ruby, satisfeito. – Seu pai que me apresentou essa música. Sempre fomos muito cosmopolitas. Uma das minhas favoritas. Um belo sorriso espontâneo desabrochou no rosto do jovem a ouvir as batidas frenéticas da canção. Foi aos 14 anos. Numa sextafeira à noite como aquela, na festa de uma amiga de escola, que conhecera a música. Infelizmente, as recordações não lhe eram das mais agradáveis: primeira bebedeira, primeiro vômito no carpete indiano da entrada diante dos tablets e smartphones de todos os amigos e primeira humilhação pública com Coin o levando dali aos gritos e xingamentos enquanto ele escorava-se nas paredes para andar de tão bêbado. Por mais que tivesse odiado no momento, agora desejava apenas alguns amigos para beber (mesmo que isso lhe custasse ser a “vergonha alheia da semana”) e uma mãe implicante para censurar suas ações mais imprudentes. Mas não os tinha mais. E jamais teria de novo. Ruby pegou-se olhando para o tio que sorria de volta, enquanto seguia os sinais de néon. Olhava para o horizonte mutante da cidade que agora era sua igreja e que o envolvia em seu crepúsculo reluzente. A olhar para as luzes, prédios e veículos pela janela, passando sob a famigerada “Ponte Estaiada” (cujo nome oficial, Ruby e alguns milhões de paulistanos desconheciam) viu outro sedan preto, modelo vintage, na pista ao lado, guiado por dois jovens na faixa dos vinte anos. Riam e divertiam-se conversando enquanto a inquietação de seus corpos sugeria que escutavam alguma música de letra marcante e batida ágil.

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Poderia fingir que estava assistindo a um flashback. Dois jovens ao som da “Cidade da Meia-Noite”. Ricos, bonitos, irmãos, alheios ao mundo. Olhos na pista e ouvidos na música. Eram Lúcio e Alfredo – ou quase como se fossem, se o motorista e mais velho também tivesse olhos azuis – abraçando suas aspirações e imprudências juvenis, atirados na noite da cidade enquanto esperavam por um passeio no escuro. E este era um jogo divertido para distrair a mente. Não importava aonde ia ou o quanto ia esperar naquele carro. Não importava sua eterna paranoia relacionada a tudo e a todos. O que importava agora era a visão, e a música, e a cidade, e o horizonte, e as luzes. Esperando em um carro Esperando pela hora certa Esperando em um carro Esperando por um passeio no escuro. Contrariando as expectativas, a espera não foi efêmera. E neste instante no horizonte já não havia arranha-céus, ou pessoas bem vestidas, ou carros caros de montadoras estrangeiras. A lama sujava cada vez mais os pneus e para-lamas do veículo conforme se enveredaram pela trilha íngreme cercada por mato alto e arbustos secos, retorcidos. Estavam num imenso terreno privado contornado por alambrados enferrujados – numa imagem típica de presídio, o que o colocara em modo de alerta. Rumavam a uma construção cimentada, de porta de ferro, com frestas ventiladoras no alto. Já não havia mais músicas ou luzes ou cores. Tudo o que via pela luminosidade do farol era o galpão, depósito, ou seja lá o que aquilo fosse. Nenhum 57


sinal das buzinas ou ruídos de multidão. Restava apenas um silêncio denso, exasperante e inquebrável. Os olhos desconfiados encaravam os de seu tio, que por sua vez, mantinham-se frios, estranhamente calmos, presos à direção. – Vou responder apenas uma pergunta – Lúcio quebrou o silêncio com amenidade. – Então seja esperto. – O que esse fim de mundo tem a ver com o CEN? – Todos acham que a verdadeira batalha política se dá nos salões da Câmara dos Deputados ou nos tabloides dessas revistinhas genéricas parciais. Todos pensam que, pra pessoas como nós, a luta limita-se a escritórios com ar condicionado e festas chatas e tediosas regadas a caviar e champanhe francês. Estão errados, Ruby. Muito errados. O rapaz não sabia para onde olhar. Para o tio, a construção ou o nada interminável que os cercava. – Quando se entra nesse covil de lobos há coisas com as quais direta ou indiretamente você irá ser conivente. Irá participar. E não são coisas que você terá o mínimo de orgulho. Mas eu não me envergonho de ser o cara que sobrevive no fim do dia. Respirar naqueles instantes era tão complicado quanto quando esteve com dezenas de quilos de concreto comprimindo-o sobre o tórax. O pânico. A sensação de esmagamento. A escuridão. A indagação saiu-lhe embargada: – O que é que o senhor quer dizer, tio? Evitou contato visual. De seus temores, o mais gritante? Ouvir algo que não tinha (e nem almejava ter) ideia do que fosse.

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– Há mais de 40 anos houve um… “incidente” aqui em São Paulo. O Carandiru. Você sabe do que se trata. O rapaz meneou a cabeça. Observou de relance como a construção velha, com paredes infiltradas e cheias de hera, aparentemente um edifício abandonado, parecia maior conforme se aproximavam. – Qual a diferença entre o homem que assinou o papel e os homens que puxaram o gatilho? – Nenhuma – atestou rispidamente. – Ambos são assassinos. – Está certo. Ambos são assassinos. Mas ambos fizeram apenas o que devia ter sido feito. O que lhes cabia fazer no momento. O carro havia parado com um puxão da marcha ao lado do galpão e o passageiro tinha sequer percebido. – Pelo Estado, pela Ordem. A diferença é que assinar um papel não é um crime. Puxar um gatilho em alguém, mesmo que este o mereça, ainda é. O meu ponto é que, às vezes, coisas condenáveis têm que ser feitas. Métodos não ortodoxos têm que ser aplicados. E isso não é nada pessoal, entende? Tudo bem que há certas coisas com as quais boa parte das pessoas perderia o sono à noite, mas meu travesseiro é de penas de ganso e meu sono pesado demais pra que isso me ocorra. As portas foram destravadas. E o rapaz estava tão paralisado que se tornou incapaz de exprimir qualquer reação. Tudo o que desejava agora era estar solitário no sofá do salão, encarando o brasão e sua espada, incomodado com o último raio do sol poente acertando-lhe a vista enquanto insistia em um cochilo. – Você me parece tão assustado, Ruby – olhar rente, penetrante e analítico. Oh meu Deus. Ele sabe o que eu estou pensando! – Talvez

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devesse ficar no carro. Talvez nem mesmo devesse ter vindo. Acho que te subestimei… desculpe, não acho agora que esteja tão preparado assim. Silêncio. Ruby encarava o nada, desviava a vista dos olhos fixos e azulados que agora davam toda a atenção para ele. O celular de Lúcio vibrou, mas ambos permaneceram imóveis. A mensagem iluminou o painel do carro. TAMO SÓ ESPERANDO O SENHOR. AGILIZA AÍ, SEU SCARPA. Lúcio mantinha em Ruby o olhar fixo e pressionador, nem mesmo piscava. Era uma águia sádica e paciente assistindo a presa morrer em agonia para só então devorar suas entranhas. – Não... – respondeu. Não me faça entrar aí, por favor. Mas um “não” em tom claro e audível foi tudo o pronunciado. Não. Lúcio não havia errado ou o subestimado. E não. Aquela não era a hora errada. Um suspiro fundo e aliviado de Lúcio que finalmente se permitiu piscar os olhos. Um novo bip do celular. Os olhos amedrontados do rapaz caíram de novo sobre o painel: TÁ TUDO LIMPO AÍ? DÁ PRA SER HOJE OU TÁ DIFÍCIL? Um aperto brusco no painel do carro e as portas frontais se abriram simultaneamente. Se havia ainda alguma fronteira que Ruby não atravessara tudo se encerraria ali: com seus sapatos no chão lamacento, suas mãos suadas com tremedeiras a bater a porta do carro e os passos arrastados do sedan preto à porta de ferro. Não possuía forças para bater à porta. O mesmo suor frio nas palmas das mãos também congelava todos os músculos. 60


Lúcio chamou à porta. O som de alavancas metálicas giradas com cautela ressoou dali de fora. Uma fresta surgiu idêntica à entrada de um túnel para a escuridão. Um olhar discreto para os lados e a conclusão mais evidente: não havia mais volta. Para seja lá o que houvesse além daquela porta. E a despeito de seu desespero, ao abrir da porta metálica, seus passos o guiaram para dentro. Para dentro do arranha-céu desfazendo-se em ruínas na Lower Manhattan. Para dentro do mar cristalino que noite após noite o afogava em seus pesadelos. Para dentro do galpão sombrio sabe-se lá onde em São Paulo. Urros contidos e respirações ofegantes. Escuridão. Coração disparado, parecendo querer saltar pela boca semiaberta. Gemidos abafados pelo acústico precário. Desespero. Ruby tentou focar na respiração para se acalmar. Falhou. Havia acabado de ser recebido por um militar fardado e corpulento, de trejeitos carismáticos e sorriso fácil, adorável. Nada parecia relacionar-se com o fuzil carregado portado em mãos e as duas pistolas afixadas no coldre. Escutou um gemido abafado. Pareceu suplicar ajuda. Desnorteado. Cochichos suaves e amigáveis dos militares com o Scarpa e então, após um clic, raios de luz amarelo-ouro cintilaram sobre a visão. Ruby fechou os olhos para adaptar-se à claridade e quando abriu novamente deu com dois rapazes nus, acorrentados pelos quadris feito carcaças em frigoríficos, um de costas para o outro. Os corpos num estado deplorável como nunca vira antes: dezenas de cortes e hematomas por todo o corpo, pedaços de dedos mutilados, arrancados. Marcas graves de queimaduras em carne viva, rostos inchados e cadavéricos (ninguém jamais os reconheceria em tais feições), tremedeiras. Roxos e vermelhos. Hematomas e carnes vivas ditavam as nuances de ambas as peles. 61


O rapaz negro voltado para a parede tinha o que parecia ter sido dreadlocks arrancados com uma faca de serra cega. Era alto e deveria ter sido muito esbelto antes do que fizeram com ele. Não encarava nada. Mantinha o rosto cabisbaixo enquanto um ligeiro fio de sangue mesclado à saliva corria como a nascente de um riacho, continuamente, dos lábios para o chão. Era um morto vivo em forma de gente. Seu “comparsa”, um branco franzino, não tão alto e corpulento, cujos profundos hematomas roxos – quase pretos – impediam a visão de seus olhos, tinha o rosto inclinado à Ruby. Fitava-o fixamente, tremia (e temia) enquanto um suor sujo pingava pelos poros misturando-se ao sangue dos ferimentos mais diversos que iam da cabeça aos pés. A cabeça de Ruby estava baixa. À entrada, outros dois policiais fardados (além do carismático com o fuzil) conversavam em um tom inaudível com Lúcio Scarpa. O que estava fazendo ali? Por que seu tio e os militares estavam ali? Por que as armas? Perguntas e mais perguntas… para as quais não podia supor uma resposta plausível, além da óbvia conclusão de que algo errado, muito errado, acontecia. Ruby ergueu a cabeça. Seus olhos encontraram-se com os opacos do rapaz franzino. Exprimia a súplica, o medo e a humilhação. Era o que ainda agia como um vivo, o que de fato parecia agarrar-se ao resquício ínfimo de esperança em prosseguir dessa forma. – Aj... aj... aju... – silabava quase silenciosamente. Não conseguia sequer completar uma palavra, muito menos falar em voz alta. Seus lábios finos e rosados sangravam, cortados a faca e também pela febre alta aparente.

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Os militares recuaram de armas nas mãos para a extremidade do galpão. Lúcio parou rente à dupla, perto de Ruby. Amostrava um sorriso triunfante e o olhar usual, da ave sádica de rapina. – Que merda é essa, tio? O que está havendo aqui? – Tire-os das correntes – Lúcio ordenou, por cima de Ruby. O fardado carismático aproximou-se com o fuzil nos ombros, segurando uma chave grossa. Abriu o cadeado e deu um puxão truculento nas correntes enferrujadas. Os corpos nus e mutilados tombaram em cheio como frutas fartas e apodrecidas. De bruços. Sem condições de apoiar-se nos membros fraturados e mutilados. – De pé – ordenou Lúcio. – Que merda é essa? – Ruby apavorava-se, encarando-o atravessado. O Scarpa respondeu em outro sussurro: – Cale-se e observe. – A chefia mandou ‘cês' ficarem de pé, seus montes de merda! – bradou irritado um militar atrás dele. – Obedeçam! Ruby virou-se. Cara de mau. Olhos negros rasos, dilatados e intransponíveis. Bigodinho de Hitler e barba castanha feia e desgrenhada. Encarando o policial, apavorados, os rapazes (não mais do que 22 anos, segundo o palpite de Ruby) tentaram se reerguer em desespero, apoiando as mãos ensanguentadas na parede e um no outro. Demorou até conseguirem se encostar lado a lado. Enquanto mantinham-se escorados com uma das mãos, apertavam a outra mão um do outro. – Em 72 horas, o que foi que extraíram deles? – Lúcio questionou mantendo os olhos fixos nos “delinquentes”. – E eu espero 63


mesmo que sejam nomes. Bons o suficientes pra valer minha hora extra que o governo não tá pagando. Os rapazes olhavam para Lúcio exprimindo súplica e horror. Os policiais entreolhavam-se, tentando não expressar a falta de jeito. – Ahhn... – iniciou o único que Ruby não havia ouvido até agora. – O basicão, seu Scarpa. – Eu não falo essa sua língua. Defina… – remendou em desdém – “basicão”. – Ah… familiares, nomes, desde quando estavam infiltrados, que dados queriam, pra quê, o que roubaram, o que sabiam… essas coisas. E a gente fez todo o serviço nos conformes, recuperamos tudo o que os X-9's aí roubaram. – Ótimo. Então se encontrarem os corpos boiando no Tietê pela manhã não teremos um dossiê-bomba na capa de qualquer jornaleco, certo? – Creio que não, seu Scarpa. – Bom… mas como sabem, eu só trabalho com nomes. Fizeram silêncio novamente. O gorducho de meia-idade e cabelos cor de areia até ergueu a vista, discretamente, pretendendo dar a deixa para um de seus colegas intervirem. Nem o carismático, nem o “cara de mau”. Nenhum deles fez questão. – Nós fizemos de tudo, mas eles não abriram a boca. Insistiram porque insistiram que estavam por contra própria. Não houve nenhuma réplica e por instantes Lúcio passou a andar em círculos pelo galpão. Seus passos ecoavam. Assustavam e arrepiavam. Era uma tortura psicológica implacável. Contra os militares, as vítimas escoradas e, inevitavelmente, contra Ruby. 64


O moço franzino tremia como uma vara. Da cabeça aos pés, expelia sangue pela boca, pelo nariz, pelos cortes. A mão do comparsa apertou a do assustado com ainda mais força. Lúcio reparou no gesto da dupla e voltou-se aos militares. – Escuta, qual a relação desses dois? Meio íntima, né? – Ih... – zombou o carismático. – Sei lá, chefia. Esses dois são cheios da marra, mas o coração é de mocinha. – Quais os nomes? – questionou os rapazes. – Ah, o morenão é... – Eu não perguntei pra você, Cabo Jumento – interrompeu rispidamente. – Eu perguntei pra eles. Lúcio aproximou-se vagarosamente da dupla. Mãos atrás do corpo. Feição enigmática, porém amigável. Seus passos eram um martelo estralando nas nucas de todos. – Qual o seu nome, meu jovem? – Ri... Ric... Ricar... – o rapaz dos dreadlocks tremia na tentativa de concluir a palavra, mas a voz o faltava. – Ricardo. É isso? Ele anuiu com a cabeça. – Sua mãe tinha bom gosto. Era o nome de um de meus tios prediletos. Lúcio deu um sorriso cordial e com a mesma amabilidade partiu para o outro rapaz. – E o seu, rapaz?

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– Ca-i. Cai-o. – Como eu vinha dizendo pro meu sobrinho no caminho – e lançou um olhar a Ruby, que permaneceu petrificado. – Nada disso é pessoal. As torturas, ameaças às famílias, humilhações… veja bem, nem eu, nem ninguém aqui temos nada contra vocês – e olhou para os policiais que, como cãezinhos bem adestrados, assentiram. – Vocês eram dois jovens bonitões, cheios de vida. Deviam ter muitos sonhos, né? Mas eu também tenho os meus. Meu sonho pra hoje, por exemplo, era passar uma sexta à noite com meu sobrinho comendo uma pizza e revendo House of cards. Assim como o meu sonho pra um futuro bem próximo é não ter que lidar mais com esse tipo de coisa degradante. Esse tipo de ação lastimável não é edificante ou do agrado de nenhum de nós, compreendem? Vocês tão me entendo? Não é nada contra vocês. Vocês só foram estúpidos o bastante de cruzar o caminho de pessoas erradas e serem pegos. Vocês não foram os primeiros e tampouco serão os últimos. E é exatamente por isso que estão aqui agora. Cantem para mim. Digam-me coisas que valham a pena a ser ouvidas. Vocês já estão no inferno mesmo. Lúcio afastou-se e recomeçou a rodear. Quando deu por si, o “Cabo Jumento” aproximava-se com pisadas duras, sem o fuzil nos braços, com as duas mãos na cintura. – Geralmente quando é pau mandado do povo com as costas quentes, eles confessam logo… dá nem 12 horas e eles já cantam “os nome” que nem sabiá. Pé rapado tem amor por “elitezinha” não. Se eles fossem abrir o bico já teriam feito, seu Scarpa. Uma súbita esperança encandeceu no interior de Ruby. Na ausência da confissão, Lúcio iria aceitar que eles eram simples delinquentes por conta própria e mandá-los para longe, que sumissem simplesmente e tudo voltaria ao normal novamente. 66


Não era Ruby nu, humilhado, torturado e na mira de três fuzis, mas agarrava-se àquela esperança como a um galho crescente no topo do abismo em que despencara. Lúcio aproximou-se do sobrinho, apoiou o braço em seu ombro de forma amigável e fitou-o impassível. Seja racional. Não surte. Não surte, Ruby. – O que você acha, Ruby? Eles confessam ou não? – Eles não vão confessar. Deixe-os ir, tio. Os rapazes olharam Ruby com olhar marejado. O mesmo pedantismo, a mesma súplica, o mesmo horror de quem sente o fim próximo. Lúcio afastou-se até que parou, lançou um olhar letárgico ao policial do seu lado e deu o comando friamente. – Livre-se deles. – Com prazer, chefia. O olhar apavorado de Ruby. As duas pistolas sacadas ao mesmo tempo da cintura e... – Não! – gritou Ruby. O estampido de dois disparos. Balas certeiras no meio das testas e, sob a vista de Ruby, em câmera lenta, no profundo silêncio após o eco dos estrondos, os dois corpos nus estatelaram-se no chão. Para nunca mais se erguerem. Ruby Scarpa recuava apavorado. Com a mão trêmula na boca e os olhos arregalados. Tremia. Chorava. Recuava mais. Não podia acreditar! Não conseguia acreditar naquilo que via. Paralisado. Chocado. Perplexo.

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Dois fios de sangue esvaiam-se no chão chegando próximo a seus calçados. Lúcio encarava com o olhar cabisbaixo, fazia que não com a cabeça, em seu pesar hipócrita e indiferente. – Você e você... – apontou aos militares à parede. – Limpem tudo. Vamos, Ruby. E Lúcio foi saindo. O rapaz permaneceu imóvel. O Scarpa parou e voltou-se ao sobrinho. – Eu disse: vamos Ruby. – Assassinos – murmurou cabisbaixo. – Vamos logo, Ruby. – Assassinos! – berrou. Todos se voltaram a ele. – Assassinos! Lúcio respondeu pausadamente. – Vamos para casa. – Assassinos! Ruby recuava ofegando, com o olhar perdido e transtornado. Tremia como Caio tremeu antes da morte. – Bandidos! Seus monstros! Assassinos! Assassinos! – Pô, chefia! Assim não dá né! – esbravejou o de meia-idade olhando para Lúcio. O Scarpa suspirou e apontou para o sobrinho. – Acalmem ele. E saiu em seguida. Os três militares se levantaram. Ruby recuava mais, apavorado. Agora tremia por si. Por sua vida. Tentou correr

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avançando sobre eles. Socou o Jumento no rosto (sua feição não era nada carismática agora), mas o Cara de Mau improvisou uma chave de braço o agarrando, enquanto o terceiro o imobilizou pelas costas. – Me larguem! Me larguem! Assassinos! Cabo Jumento tirou uma pílula preta de uma ampola e forçou o dedo na boca do Scarpa, empurrando a droga até sua garganta. Os caninos de Ruby fisgaram o dedo com tamanha força que o militar gemeu ao puxá-lo, tendo um filete de carne arrancado. Não levou mais que meio minuto. Foi tiro e queda. Os olhos contraíram-se, dilatados numa visão turva e embaçada. O cabo irado, exasperado à sua frente, parecia gingar para a esquerda e a direita, como se fosse mais que um só, numa dança lenta e desconjuntada a balbuciar disparates aleatórios e indistinguíveis. Subitamente, a perda de chão. A incessante sensação de queda livre após ser largado para o solo. Um efeito lancinante e tranquilizante em todo o corpo. A cabeça pesava, a vista doía, e, nos ouvidos, um mar de zumbidos uníssonos e indecifráveis. No último instante de lucidez, viu o sangue respingado em diagonal nas paredes sujas e os olhos sobressaltados e estáticos dos dois mortos. Caio e Ricardo. Sem famílias, sem passado, sem vida e sem futuro. Um devaneio inexistente. Matéria morta fadada ao pó e ao desconhecimento. O que quer que tenham sido acabara-se ali: esvaindo-se em sangue escarlate vivo nos ladrilhos de uma pocilga após dias e noites de barbáries inumanas. Quem era Caio? Quem era Ricardo? Não importava mais. E então era como se Ruby enxergasse novamente o olhar do primeiro rapaz quando ali entrara. O desespero. O último cordão tão frágil quanto invisível de esperança que unia opressor e oprimido, os

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ladrões sorrateiros e a vítima reativa… e gradualmente sentiu um déjà vu do vácuo de ar que o arremessou longe. Não foram uma ou três bombas em explosões simultâneas. Foram dois tiros. E os corpos mortos. E o som de seu tombo no chão. O mar de escombros desmoronou sobre Ruby… de novo, de novo e de novo. E como na vez anterior, restou-lhe apenas uma dor, um mar de zunidos inconsistentes e, após um tempo, a profunda inconsciência.

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4 O RAPAZINHO RISONHO e rechonchudo desbravava a trilha recoberta de pétalas em meio às bétulas carregadas e floridas. Expandia suas narinas para inspirar o aroma doce e estonteante das flores da metade da primavera. Era Ruby. Exatamente na mesma idade em que sua irmã faleceu. Corria de lá para cá, em círculos; feliz, deliciando aqueles ares de vida e redescoberta. Das paisagens ao ar livre, das bétulas floridas, das corridas no parque aos fins de tarde. – Vem cá, filho – chamou Coin. – Você já foi muito longe. Podia ouvir as risadas dela vindas de longe. Podia sentir a ventania amena arremessar o aroma das flores em sua face. Pôde sentir, de forma repentina, seus pés perderem a noção de equilíbrio e seu rosto ir de encontro ao concreto áspero Logo em seguida (o que ocorreu, de fato) foi um grito e advertência atônita de Coin, seguido de questões como “Você está bem?”; “Machucou alguma coisa?”; e, após suspirar aliviada vendo apenas escoriações desprezíveis, o esporro: “Eu disse para você não sair correndo!”. Entretanto isso não aconteceu. Não nesse sonho. Não dessa vez. Quando levantou, estava crescido. Dezoito anos – quase dezenove – como tinha agora. Não havia mais aroma de essência de rosas na brisa fresca. Havia apenas um odor acre, nauseante e impiedoso de putrefação no ar noturno. Os campos floridos repletos de bétulas eram agora uma mata densa de árvores esdrúxulas, com galhos grossos e retorcidos e as cascas pelo chão. Onde estava? Por que estava ali? Pensa rápido! e Ruby arqueou o corpo, com os antebraços cruzados num X sobre a face. Uma

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revoada barulhenta de abutres negros com olhos vermelhos rasgou os ares ao passar em polvorosa num gorjear alto e revoltoso. Sumiram. Ao erguer-se, não sentia mais o cheiro de morte. Na noite escura, onde o brilho intenso do luar cheio reluzia acima dele, viu-se diante da mansidão. Sem grama alta e pontiaguda fustigando os pés ou arvoredos tristes e retorcidos pela mata fechada. Deu um tímido passo para frente. Quase perdeu o equilíbrio mais uma vez, dessa, porém, caso perdesse, despencaria no abismo logo à frente, a centímetros dos pés. Tremeu, controlando o nervosismo em expirações lentas com os olhos fixados no vazio negro do fundo do despenhadeiro. – Você nos matou – disse calmamente a voz baixa e serena do homem. – Você merece cair. Deu para trás devagar, arrepiado da planta dos pés à cabeça. – Você nos deixou morrer. Você nos matou. Era Caio. Nu, angelical e esbelto. Beijado suavemente por uma fina auréola luminosa. Seus olhos cinza com um brilho opaco se afundavam para dentro da face, contrastando com as manchas roxas de sua pele alva. Rosto abaixado a levantar lentamente. A encará-lo. A assombrá-lo. Ruby estava petrificado novamente. Atrás, o morto que viria a ser. À frente, o morto que, a certo modo, ele sentia ter sangue deste em suas mãos. – Caio... – lastimou com pesar. As lágrimas pendiam nos olhos. Um único gorjeio o interrompeu. Os galhos das árvores atrás de Caio vacilaram repletos de corvos e urubus tão fartos quanto famintos. Os pontinhos vermelhos e furtivos miravam o Scarpa. – Você nos matou! – gritou Caio. 72


Quando Ruby baixou a vista novamente não viu Caio. Apenas dois corpos, com o resto das carnes escuras e ressecadas fundidas à ossatura branca, já exposta. Um por cima do outro. E o fedor acre da morte próxima o invadia novamente. Da morte deles. Da sua morte. – Você nos matou! – a voz onipresente berrou. Nos matou... Nos matou... As palavras iam e vinham ecoando pelo abismo. Repentinamente, o bando sedento acima dele voou de uma vez para atacá-lo. O negro das asas vendou por completo sua visão. Houve a perda súbita de solo e o frio paralisante descendo a espinha. Sem surpresa, ele mergulhava no infinito precipício novamente. O trinar de aves acima do solar o despertou de sua queda. Suava frio sob as cobertas. Ofegava. Até teria se assustado, porém dada a recorrência dos terrores noturnos (72 noites contadas, a excetuarem-se as que ele foi dopado; 3 destas últimas ininterruptas) não havia razão para qualquer alarde. Era o raiar de mais uma manhã invernal amena. O ar demasiado seco fedia à poluição, irritando sua faringe, e o céu além da sacada era de uma mansidão cinza insípida e sem charme. Ausente de sol ou rastro de nuvem, mesmo há semanas para o início da primavera. Dado o tempo ameno, o suor resfriado empapando sua camiseta era meramente psicológico. De culpa, de uma consciência atribulada massivamente pelo silêncio e pela omissão. Mas principalmente culpa pela maldita complacência.

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– Sr. Scarpa – chamou Maria de Fátima, a governanta da manhã, batendo à porta. – O senhor agendou um meeting para às oito da manhã. São quinze para as sete, o café já está servido. – Já vai! – resmungou. – Logo mais eu desço. Ouviu passos graciosos se afastarem no assoalho. Baforou devagar numa irritação mesclada a alívio. Mais que não denunciar. Não sair correndo nas ruas noticiando aos berros (Meu tio é um assassino! O CEN é uma fraude colossal!)… Ruby era um cúmplice. Um membro interno do Consórcio maligno. Os salões de linóleo e mármore sempre lustrados; os funcionários estampando o mesmo sorriso frívolo e robótico; as conversações enfadonhas aqui e ali entre os subalternos aos Dez Líderes; as conspirações traiçoeiras maquinadas em escritórios através de hangouts; tudo aquilo compunha um pedaço seu que o rapaz renegava e abominava secretamente. Por fora, expressão analítica, sorriso apático e forçado; por dentro, asco, ânsia de vômito, repulsa e calafrio… mas também uma inquietação inexplicável. Uma doce subversão a corroer suas estranhas e acorrentá-lo àquela densa sensação de poder. Após a noite em que seu tio mandou três militares dopá-lo covardemente, Ruby sentou-se naquela mesma posição imóvel à beira da cama ao despertar ao fim de quase doze horas. Urros desordenados de revolta intercalaram-se com um silêncio sepulcral e isolamento inquebrável. Tentava recordar nesse exato momento quando o mesmo pesadelo com Caio e o despenhadeiro (às vezes era Ricardo, outras vezes – nas piores – eram ambos na mata escura) começaram ao certo. As primeiras noites foram infernais. Imóvel sobre a cama e coberto pela manta, mantinha as pupilas dilatadas ao extremo.

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Tentava fechá-las uma vez: pistolas sacadas com maestria. Grito em vão. Ribombar de disparos. Arregalava os olhos e após minutos tornava a tentar cair no sono: Tiros. Corpos caindo. Sangue escuro se apossando dos vãos dos azulejos. A primeira vez que adormeceu após acordar do sono iniciado no galpão foi após mais de 42 horas. Já apresentava ligeiras tremedeiras, temperatura elevada, sinais de inanição e paranoias. Recusava-se sonoramente a sair do quarto ou permitir que alguém entrasse sem ameaçar fazer um escândalo. Em seus devaneios mais paranoicos imaginava que assim que fechasse os olhos, os reabriria para arfar até a morte, vez que Lúcio Scarpa o apunhalaria ao centro do tórax com uma adaga reluzente… ou lhe enfiaria uma bala na nuca. Isto é, se tal ato o garantisse mais poder do que ele já tinha, é claro. A relutância contra o sono foi vencida após goles de um chá deixado à porta por Maria de Fátima. Obviamente, Ruby percebeu ao acordar que seu tio o havia sedado. Esses sonos induzidos por seu algoz, seu protetor, eram escassos de sonhos. Um ermo escuro e revigorante. Era um sono daquele dos mortos. Do qual Ruby nunca mais desejava acordar, porém, o efeito da droga – fosse ela qual fosse – não perdurava mais que meio-dia. Retornou a circular pelo solar na ausência do empreiteiro, preferencialmente, na ausência de qualquer ser humano. Levou tempo até ser persuadido a deixar aquilo ir. Levou ainda mais tempo para Ruby voltar a cogitar a ideia de pertencer àquilo tudo e ceder aos desígnios de seu tutor. Lúcio jurou que vidas não seriam desperdiçadas novamente. E Ruby fingiu acreditar. Era apenas questão de tempo até que o rapaz passasse a tolerar tais métodos condenáveis e, assim que a compaixão perecesse à 75


ganância e necessidade fosse a palavra de ordem, viria a brandir a espada predestinada às sentenças. Passaram-se três meses. De abominador que sentia vertigem da corrupção moral das instituições e que, jamais, em hipótese alguma, seria omisso ante um homicídio, tornou-se um cúmplice conivente de tais absurdos, de modo que, agora, temia o dia em que ele tirasse uma vida. “Não será necessário fazê-lo. Não se preocupe”, Lúcio havia dito. “Aquela foi uma exceção emergencial”, “bobagem, nada recorrente”. Por mais incrível que parecesse, a declaração mais crível foi a segunda. Cedo ou tarde Ruby seria confrontado, e sabia disso. A incógnita dali era: qual seria a decisão? O poder o teria corrompido ao ápice de ele requerer a um homem a vida de outro? Entretanto, mais importante que isso era desvendar algum meio de permanecer ignóbil. A omissão era seu maior desejo, no fundo. Covarde! Covarde! Covarde! Ele sabia. Mas isso agradava sua metade corrompida, alastrada dia após dia, e perpetuava o circo armado. Em que espécie de monstro Lúcio Scarpa lhe estava tornando? Quantos Caios e Ricardos perderam suas vidas desde aquela noite enquanto Ruby fingia para si mesmo que foram casos isolados? No fundo não era Lúcio a transformá-lo em quimera alguma, era apenas o lado execrável de seu DNA se manifestando e se espalhando como uma metástase incurável. Coin costumava chegar à cobertura por volta das 19 horas.. Quando se atrasava e o filho notava, vinham em sua mente ideias simplistas como: “será que minha mãe parou na mercearia?” ou “será que ela está presa em um congestionamento?”. Lúcio, por sua vez, costumava chegar até às 17h50min. Quando, no salão do solar, o relógio ultrapassava essa marca, por quinze minutos que fosse, inevitavelmente, desde aquela fatídica noite ao fim do outono, dentre incontáveis possibilidades, apenas um 76


questionamento permeava suas ideias: “será que meu tio está matando alguém agora?”. E a porta então se abria. Lúcio entrava estampando seu imutável sorriso triunfante. O rapaz fitava-o de soslaio despercebido e a resposta era tão invariável quanto sua pergunta: eu nunca vou saber. O tic tac era constante e ritmado. O pêndulo do velho relógio de ébano movia-se num balanço monocórdico. Destoava do restante da decoração aprazível e contemporânea do salão de jantar. Pontuava 07h30min. Era o centro das atenções de Ruby Scarpa enquanto tornava a xícara de chá pela metade ao pires antigo. – Satisfeito, seu Scarpa? – Sim, obrigado... Foi você quem fez o chá? – Não. Hoje foi Teodora. – Hum. – Não estava do seu agrado, seu Scarpa? – Estava sim – mentiu. – É que não estou acostumado com chá mesmo – sorriu para Maria de Fátima. O Scarpa limpou os lábios no guardanapo de pano. Passos ressoaram no linóleo e logo Lúcio sentava-se à mesa cantarolando um ou outro verso do Hino à bandeira nacional. Certificou-se pelo espelho do smartphone que seus cabelos lisos e acinzentados repartiam-se igualmente. Antes de qualquer cumprimento aos presentes, preferiu acender um cigarro. Fumava de dois a três por período. Hábito nocivo herdado do pai, que tragava carteiras inteiras diariamente.

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– Como estou hoje? – dirigiu-se à governanta. Algo que elevasse o próprio ego era sempre seu cumprimento para iniciar bem o dia. – Impecável como sempre, seu Scarpa. – Obrigado – sorriu para ela. – Meu café preto está pronto? Temo que só tome isso. Não quero me atrasar hoje. Essas reuniões presenciais mensalmente do Conselho são um porre. Um desperdício avulso de saco e verba pública. Francamente, só servem praqueles patifes desfilarem seus brasões em Ferraris pela Paulista – resmungou baforando. – Mas eu tenho fé que em questão de tempo Ruby não só irá substituir-me nessa chatice como seguir meu exemplo e presidir as reuniões do Conselho. Não é mesmo, Ruby? Tic tac. O chamado do tio despertou-lhe da abstração. Ruby forçou um sorriso grato no contorno dos lábios e respondeu: – Mas é claro. A caminho de seu sacro suplício mensal – esse era seu décimo, após quinze meses da chegada ao Brasil – observava através da janela o céu incolor, as pessoas frenéticas, a selva de prédios esmaecendo no horizonte, as árvores baixas e desfolhadas nas calçadas e os outros veículos… tudo fugindo de sua vista enquanto o Civic preto modelo 2032 acelerava no corredor preferencial da avenida congestionada (de acordo com a Lei Estadual, número dezoito mil setecentos e alguma coisa, a faixa se limitava para viaturas, ambulâncias, ônibus linha A e servidores de Estado). Fabrício – um moreno alto, de porte atlético; em seus trajes pretos como o quepe brilhoso nos cabelos desgrenhados – era um condutor excepcional em seus pouco mais de vinte e sete anos. Um verdadeiro achado que Lúcio apreciava exaltar exatamente no 78


mesmo tom em que cantarolava os hinos da bandeira rubra alvinegra. Prudente, ágil, mudo e passava perfeitamente por surdo quando convinha a seu chefe, que, aliás, observou Ruby, não era nem seu tio, mas sim o Consórcio. – Quem é que você quer que presida o Conselho ano que vem, Ruby? Lúcio quebrou a calmaria, provocante e analítico, como sempre. Deslocou o retrovisor alguns centímetros para encará-lo. Tanto faz. Dará no mesmo. – Gosto do Rio. Mas sei que Membros Beta não contam. – Anda do contra demais para meu futuro cônsul no Consórcio, Ruby – provocou Lúcio. – De qualquer modo, a menos que uma catástrofe aconteça e nós ou os Figueroa sejamos… “destituídos” do Consórcio, eles não contam mesmo. Ou também que eu morra, indicando você para assumir o posto, mas você decida ensinar esgrima a criancinhas faveladas. Vai que… Amacio Figueroa era o senhor do Vale do Aço. O colega regional e maior aliado da família Scarpa. Amado e odiado com a mesma intensidade com que era temido. Apesar do trejeito sênior e bastante dócil para com Ruby, não era calúnia ou mesmo exagero sua afama de pior das cobras de todo o Consórcio. “A vida é uma grande escada, na qual meus inimigos são os degraus”, Amacio havia dito na primeira vez que vira Ruby. Conspirações. Derrocadas de clãs inteiros. Assassínios e outros podres. De tudo constava no currículo do adulado Barão do Aço. Tamanho temor sua presença imputava que, segundo rumores, a governadora de Minas Gerais insistia em casar seu filho com o

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primogênito Figueroa, somente para assegurar que num instante de tédio de Amacio, ele não se voltaria para derrubá-la. – Provavelmente será o Amacio – o rapaz indagou de repente. – Quer dizer, certamente será ele. Lúcio esboçou um sorrisinho satisfatório no canto da boca. – Isso é ótimo. O Amacio é nosso amigo e você vai amar a sede mineira. – Pensei que no Consórcio todos fossem amigos – ironizou. – E nós somos – revidou conciso. A partir dali – para o alivio de Ruby – o percurso transcorreu em relativo silêncio. A cabeça foi recostada no vidro. Do lado de fora, corriam as árvores, as pessoas, os outros carros e a imensidão de prédios cinza afeadas pelo horizonte incolor. “Chegaremos em quanto tempo, Fabrício?”, Lúcio havia perguntado uma hora. “Sua mãe melhorou da dengue, Fabrício?”, interrogou depois. Fabrício. Um nome imperioso e agradável à pronúncia. Mencionado pelo Scarpa com deleite Por que Fabrício?, questionavase Ruby, reparando um sucinto diálogo entre ambos astuciosamente. Para alguém que sempre fora o máximo possível impessoal com seus subalternos era minimamente estranho como um mero motorista tinha tamanha… predileção. Do nome pronunciado repetidas vezes e com altivez, ao conhecimento de Lúcio da mãe doente pela epidemia de dengue. Chegariam em aproximadamente dez minutos e a mãe do chofer já estava convalescendo. O novo silêncio perdurou poucos minutos até ser interrompido. Para a apreensão e surpresa de todos, por Allie. De um modo 80


alarmante, grandes luzes verdes faiscantes salpicaram o fundo preto do painel com um sonido emergente de alerta. – Informes de categoria emergencial – a voz eletrônica anunciava séria e totalmente robótica. Nem de longe remetia ao “comportamento” calmo, usual da assistente. – Use o comando de voz para... – Abrir notícias – comandou Lúcio. Nervoso. Rapidamente Ruby desafivelou o cinto e meteu o pescoço no vão entre os bancos dianteiros. As luzes verdes sumiram, restando apenas escuridão. Um corte súbito. E a tela mostrava uma âncora de telejornal à bancada. Séria e irrequieta, encarando a câmera fechada nela. Ao fundo da imagem, os estais da famosa ponte paulistana pareciam adornos presentes no estúdio. – Notícia de última hora: os corpos de dois estagiários do Consórcio, desaparecidos desde junho, foram encontrados agora pouco no Parque Estadual da Canteira, na região de Mairiporã. Caio Macedo e Ricardo Oliveira estagiavam juntos na sede paulistana do Consórcio como membros externos desde janeiro. Em nota oficial emitida pelo CEN-SP, uma semana após o incidente, eles lamentaram o ocorrido com dois jovens promissores e exemplares e se dispuseram a auxiliar as famílias e investigadores em tudo que fosse necessário. Ruby Scarpa entrou em imersão naquele instante. Revivia a maldita cena na mente de novo, de novo e mais uma vez. Tiros. Grito. Corpos caindo. Sangue. Lágrimas penderam nos cílios do rapaz, ao voltar-se ao painel. Os rostos dos jovens estampavam a tela enquanto a âncora dizia qualquer coisa desimportante. Os olhos vividos dos jovens no visor. Os olhos rijos dos rapazes mortos no chão.

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Diferente do que esperava, Lúcio Scarpa estava calmo. Sorria discretamente com os olhos de águia pousados na tela. – De acordo com a polícia, a principal linha de investigação é de que o assassinato está relacionado com o tráfico de drogas daquela região. Nesse exato momento, uma equipe nossa encontra-se... – Basta, Allie – bradou Lúcio. E o visor mergulhou na escuridão de repente. Ele planejou tudo isso, supôs Ruby. – Acelere, Fabrício. Quero me livrar logo disso. – Deseja que entremos no CEN pelos fundos, seu Scarpa? – Não, de modo algum. Ruby estava novamente encostado no banco. Beliscava a própria carne com ira. Em transe. No eterno conflito mental entre o rapaz traumatizado, machucado e sem família e o cúmplice frio, apático e homicida que estava por se tornar. Caio Macedo e Ricardo Oliveira não foram os únicos, não foram os primeiros e tampouco... tomou coragem para concluir o raciocínio. E tampouco foram os últimos. – Por que não puseram fim a eles? – a voz era grave, audível e emotiva. A entonação inquisidora fê-lo esquecer-se que não tinha certeza se Fabrício sabia ou não dos pormenores do Consórcio. Não importava. Não para ele. Não agora. – Por que deixaram que só agora encontrassem os malditos corpos? – Exemplo, Ruby. Nós sabemos que eles não eram bonequinhos de ventríloquo de herdeiros da Pré-Reforma. Pior, muito pior... Idealistas. E do esgoto que vieram esses há muito mais ratos aguardando à espreita.

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O rapaz permaneceu calado alguns momentos. Os olhos brilhavam por resquícios da lágrima contida e ele afrontava o tio fixamente olhando ao retrovisor, mesmo que a absurda indolência de Lúcio o repulsasse profundamente. – Por quê? Silêncio. – Por quê? São eles quem vocês deviam proteger! Eles tinham família, tio... – lamentou, deixando a lágrima escorrer. – É a eles, é a gente como eles que nós servimos! Isso é errado… é errado! – Não é pessoal, Ruby. – Nunca é pessoal! – gritou. – Os assaltantes que mataram meu pai não tinham nada pessoal contra ele! Os terroristas que explodiram minha família não tinham nada pessoal contra eles! Mas são assassinos! Bandidos! Monstros! Assassinos! – baixou a voz. As palavras não saiam, enganchadas na garganta. Sua boca dissipava apenas um ar rarefeito pelo ambiente. – Como vocês. – Você ainda não entendeu, não é mesmo? – e balançou a cabeça negativamente, desapontado. – Eles não são como nós. Eles não como os outros. Olhe pela janela, Ruby. A velhinha com a sacola de compras, aqueles jovens com mochilas nas costas... Os jovens. A idosa. O executivo afrouxando o nó da gravata. Algo em comum? Sim. Todos sorriam. Não era o sorriso vazio, mecânico e supérfluo que Ruby se acostumara naqueles meses. Eram reais. Eram pessoas reais, verdadeiramente a sorrir. O da idosa, mais sofrido; o do engravatado, aliviado; o dos jovens, a mescla perfeita da malícia com a inocência, mas sorriam… “Os proles são animais livres” foi no inverno em que fez dezesseis anos, em uma poltrona solitária no escritório da cobertura, quando

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leu essa frase na Magnum opus de George Orwell. E de fato, eles são livres, pensou. Eles. Eu não. O poder aprisiona…, refletiu pesaroso. E pelo poder, ele atou as próprias mãos e vendou-se para não mais ter que hesitar. A venda era a complacência inquietante. As mãos atadas, a impotência a paralisá-lo. – Você acha mesmo que o sistema falhou com eles? Não respondeu. – A massa mantém o sistema, o sistema protege a massa. É uma troca. Mas talvez no fundo o sistema proteja apenas a si mesmo. Aposto que é isso que está pensando. E estava mesmo. – Nós protegemos as massas, Ruby. As protegemos de si mesmas. Qual é! Você estudou Thomas Hobbes, não? – Provocou conclusivo. – É uma matemática simples, na qual não cabe qualquer dissidência. O sistema não falhou com Caio e Ricardo simplesmente porque Caio, Ricardo e todos os outros além desses são as falhas do sistema. Para o espanto de Ruby, antes que fosse dizer algo ou que Lúcio discorresse novamente, foi Fabrício que, olhando-o furtivamente pelo retrovisor, complementou: – E falhas não devem ser relevadas. O Scarpa não retrucou. Era em vão e desnecessário. O sistema não falha com os mortos, era a lógica. São eles que falham com o sistema. Repetia aquilo na forma de um mantra. Mentia para si mesmo com veemência. “Uma mentira repetida mil vezes torna-se verdade”, Alberto o alertou sabiamente numa das raras conversas entre avô e neto.

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O carro estava parado em frente ao semáforo. Por mais que percorresse a faixa preferencial, semáforos ainda deviam ser respeitados. E São Paulo tinha muitos deles. – Que apostar que os abutres já estão a nossa espera, Fabrício? – Não, seu Scarpa. – E então, Ruby? Mais animado para a reunião? Tem uma garota, ah sim, Amy, um pródigo de garota! A mãe brasileira, o pai teutoamericano, ela mudou aqui pra Sampa… Vou apresentá-los. Ela tem praticamente a sua idade e já é M.A do CEN, você acredita? Com o padrinho certo no CEN, até presidir o Conselho dos Dez com essa idade é possível, refutou mentalmente. – O Amacio é padrinho dela. Trabalhará comigo, ou melhor, conosco daqui a um tempo. Vou apresentá-los hoje, eu acho. Não importava. – Mas antes... – e o sorriso mordaz e ardiloso fez-se visível no espelho do carro. – Talvez haja algo com que devamos lidar. Ruby não abriria a boca. Se era isso que Lúcio esperava… – Seu pai me contava que você tinha sonhos com… – hesitou, no ligeiro esforço de recordar com exatidão. – Com lobos. Começou depois do acidente no Caribe na infância, quando o Mark te salvou. Não eram lobos. Eram abutres. Mas isso não importava agora. Aliás, importava sim. Bastou apenas presenciar um duplo homicídio e o maldito pesadelo retornou ainda mais forte. – Os piores lobos não são os quadrúpedes de seus pesadelos, meu caro. Mas sim esses que você quer tanto ter asco agora. Correr dos

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lobos te leva ao abismo. Juntar-se a eles, te leva ao poder. Não corra dos lobos, Ruby. Torne-se um deles. Deite-se, sente-se e lambuze-se com eles. O veículo curvava uma rua do modernista Vetor Sudoeste e murmúrios baixos e difusos eram audíveis a esse ponto. Os olhos do rapaz alternavam-se entre o Lúcio evasivo e enigmático e a sede discreta de doze andares do Consórcio. Não era tão magnificente quanto esperado, principalmente se comparado aos arranha-céus futuristas da região. A construção tinha sua base em duas pilastras helenísticas, que sustentavam o prédio no térreo. As orquídeas e bonsais harmonizavam as bordas do teto verde como o jardim cheio de vida e bem podado, com um chafariz ativo na entrada. Ante as portas duplas transparentes da sede, a fonte dos murmúrios. Crescente e assustadora, com a lenta aproximação do sedan preto. Jornalistas, repórteres, blogueiros. Muitos deles. Incontáveis dali. A maioria brasiliense ou estrangeira. Grande parte não passavam de abutres fantochados pela elite da comunicação nacional. “A Ordem sangra, eles vêm pela carniça”, a frase célebre de Figueroa se adequaria com louvor a tal situação. Lobos, abutres, manipulados, manipuladores… não faz diferença. Ele só desejava que se explodissem com aquele prédio e os Dez Líderes, junto aos seus cônsules, Membros Betas, Administrativos, capachos, e a hierarquia arcaica inteira daquele circo. O carro parou discretamente à entrada da sede paulistana. De forma idêntica aos corvos e urubus de seus pesadelos, numa revoada única e alvoroçada, eles se jogaram contra o veículo com suas câmeras, lentes e microfones. Atropelavam vorazmente uns aos outros em meio a perguntas indistinguíveis. Os rostos inertes e inexpressivos. Indiferentes, inumanos. 86


Lúcio virou-se ao tutelado nos bancos traseiros. Frio, impenetrável e inabalável. Olhou-o fundo nos olhos verdes e comandou: – Deite-se com os lobos. As portas laterais destravaram mesmo tempo. Os últimos Scarpa vivos fincaram seus pés na grama para enfrentar a multidão. – O que o senhor declara sobre a morte dos funcionários do CEN, seu Scarpa? – perguntou uma jornalista. Um empurrão de um colega a tirou de foco. – Seu Scarpa, uma declara... – Procedem os rumores de envolvimento com drogas? – As famílias estão inconsoláveis, Sr. Scar...! – O senhor trabalhava diretamente com as vítimas? – O que o senhor diz àqueles que insinuam que o CEN… – Seu Scarpa, uma declaração para a WTB, por favor. Perguntas intermináveis atropelavam umas as outras em uma falação descontrolada. O carro guiava despercebido para o túnel de estacionamento. Pela porta de vidro transparente viam-se os Dez Líderes de relance, conversando descontraídos, bebericando, sentados aos sofás. O furacão do lado de fora. O marasmo calmo e indiferente do lado de dentro. Dois covis de lobos. E naquele momento Ruby lançou um olhar minucioso sobre o tio. – Com pesar e espanto recebi as más notícias. – Lúcio começou calmamente e de repente todo falatório dissipou-se. – E como líder do CENSP, tudo o que declaro, por hora, é meu apoio e solidariedade irrestrita aos familiares e conhecidos das vítimas, e que colaboraremos com as investigações no que for necessário, 87


visando levar os devidos culpados à justiça. Sem mais perguntas, por favor. Com licença. Atravessaram as dezenas sob uma enxurrada de perguntas num burburinho atordoante. Rostos letárgicos. Sem sorrisos para as câmeras. Flashes. Tiros. Sangue. Os engravatados sorridentes vistos dali provando caviar e vinho tinto no saguão. Cortesias amigáveis entre os nove no saguão. Pelo caminho de concreto no jardim deixavam a mídia para trás. E os corpos. E o sangue. E todo o resto. O olhar morto de Caio no chão. Sua foto irreconhecível no noticiário. Não importava. Para trás… tudo ficava para trás quando os lobos estavam prestes a reencontrar sua matilha. – Se saiu bem. Eu sei. Apesar do elogio, não se daria o trabalho de responder. Os murmúrios estridentes ficaram mais distantes. A mão de Lúcio quase alcançava o leitor de digitais à porta transparente. O líder hesitou por microssegundos. Parou para olhá-lo com a expressão invasiva e debochada que sempre portava. E de súbito, afirmou: – Sabe, Ruby? Você ama isso aqui. E Lúcio estava certo. Como Dalila amava Sansão. Como Daenerys Targaryen amava Viserys. Como Judas amava Jesus. Como Will amava o Grande Irmão, Ruby amava o Consórcio.

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Polegar firmado no leitor. Olhares trocando-se sarcásticos com os dos colegas no saguão. Sorrisinho vazio refletido no vidro. Os nove estavam de pé, à boca do elevador, apenas aguardando os anfitriões para completar o elenco do circo. Todos sorriam com os olhos, mas superfluamente, debochadamente. O leitor de digitais fazia o scanner com uma luzinha vermelha. Ao fundo do saguão, o brasão de armas de São Paulo reluzia, projetado na parede, com a espada resplandecente. Uma miragem. Um símbolo. Um retrato do poder. As boas vindas para o covil. A espada o atraía enquanto irradiava sua luz ofuscante. A luzinha a piscar, piscar e esverdear. E então, abriram-se as portas. “Deite-se com os lobos”, foi como Lúcio o aconselhara. E Ruby foi se deitar com eles.

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LIVRO 2

II Aqueles que remanescem

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REGISTROS DE EDITH MAÍRA DOS SANTOS EM 25 DE FEVEREIRO DE 2062. SANTO ANDRÉ, SP: SETOR D PUBLICADO ÀS 19H12MIN, HORÁRIO DE BRASÍLIA. Vi Dalila hoje, na saída da delegacia. Não quis que ela me visse. Estava esbelta, com a típica empáfia de sempre que tanto o encantara. Não tive coragem de dirigir-lhe a palavra. Ainda recordo sua aspereza na última vez que nos falamos. Mesmo assim tenho um apreço por aquela menina, desejo apenas que sua mãe jamais sinta na pele o que eu estou sentindo. Apesar de todas as picuinhas, das provocações entre vocês, ela também te amava. Eu vi no olhar dela; perdido, absorto, ao léu, quando pôs os pés além da marquise e enfrentou a tempestade. Ela te amava como você a amava; ela fez e faria coisas por você que nem eu fui capaz de fazer. O modo como vocês protegiam um ao outro… aquela cumplicidade que ultrapassava qualquer ordem lógica e afrontava qualquer compreensão... Quisera eu a força daquela garota para não tê-lo deixado. Mas agora você se foi. E ela me culpa pelo que houve, sei disso. Se eu não o tivesse deixado... Ah, meu filho… e se ela entendesse que eu sempre soube que isso ia acabar dessa maneira? E se ela entendesse que eu me afastei (após tantas e tantas tentativas de te arrancar desse submundo) por sobrevivência também? Porque você tem um irmão, uma criança. E eu não podia arriscar que ele pagasse por suas escolhas. Que eu pagasse o preço de uma Causa que não lutei! Eu não tive escolha, Deus sabe que você não me deixou outra escolha. Foi você mesmo quem me contou sobre Dante e Ricardo, lembra? Meu Menino… e eu que temi tanto que

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você acabasse como o tal Ricardo?… e isso faz tantos e tantos anos… Em meu coração, sei que não voltará como nas outras vezes. Sei que você realmente se foi. De uma vez. Eu não sei se foi o Consórcio, se foi alguém do seu próprio grupo, se foi algum rival… e, me perdoe, mas eu não quero saber. Eu só queria te ter agora. Eu só queria te ter do meu lado, meu filho. Eu só queria que o ódio acabasse. PUBLICADO ÀS 23H49MIN, HORÁRIO DE BRASÍLIA. Estou partindo de vez para o interior. Eu e seu irmão. Sozinhos. Ninguém sabe disso além do delegado. Eu temo por ele, e por mim também. As luzes da capital, as lutas vorazes que arrancaram você de mim já não me dizem nada. Nunca disseram. Nilo ficará bem. É uma criança esperta. Eu não vou falhar com ele, meu filho. Onde quer que você esteja, se puder escutar minhas preces… eu te amei desde o meu ventre. Eu te amo mais que a mim mesma e eu sempre te amarei, Meu Menino.

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1 NÃO HAVERIA RETORNO. Estavam todos sitiados pelo aguaceiro. À sombra da alvorada, a garota despertou leniente. Não era oito da manhã quando desembarcou no Setor B, pois foi intimada a depor na sede da Divisão Paulistana de Homicídios. Para variar, a pauta era Nico. Em dois dias faria um mês de seu súbito sumiço, numa noite cálida de verão, como a anterior. O tempo retrocedeu. E o dia tornou-se noite tão logo Dalila pôs os pés na delegacia. Além dos vagões quase vazios, o mundo todo desabava. Dessa vez, era só um temporal desaguando enfurecido. Em pouco mais de duas horas, inundou alamedas, carregou carros, paralisou vias e sitiou bairros e até mesmo setores inteiros (como o periférico E, habitado por ela). Mas ali, no metrô, sob a magnificência da Selva Luminosa (vulgo Setores A e B), isso não era exatamente um problema. As enchentes não os isolariam. Rios lamacentos não correriam por suas ruas e afogariam transeuntes. Alicerces não cederiam e soterrariam famílias inteiras. A elite sairia ilesa do temporal. Sitiadas, isoladas e sem notícias. Pensou em como Fátima deveria estar estressada, e Dália bastante inquieta. A mãe andava nervosa ultimamente, como se ocultasse ou pressentisse algo grave. Sua intuição era infalível. A última vez que estivera assim foi há alguns anos, não lembrava mais quantos com exatidão, mas às vésperas da prisão de Daniel, seu irmão mais velho. A anarquista partiu pela manhã, sem avisar a própria mãe. Não voltaria para o almoço (isto é, se houvesse condições de Fátima preparar um), mas, de certo, talvez chegasse para o jantar. A tempestade caía torrencialmente lá fora, de modo que transitar 93


pelas ruas da parte baixa da metrópole se limitava a um devaneio impensável. Seu sono fazia tudo assemelhar-se a um zumbido. A visão vacilava. Reflexões aleatórias iam e vinham profusamente. O encontro seria ao crepúsculo. Uma liderança interina seria deliberada na ocasião. Não era relevante. Ela votaria em Mayara, ou em Jéssica, ou até mesmo em Elias – que além de proativo na Causa, era braço direito e “o número um” de seu ex-namorado –, mas não tinha cabeça para aquilo agora. Desejava apenas dormir o resto do dia e que Nicolas (ou Nico, como se habitou a chamar novamente desde o sumiço) reaparecesse. Mas ele não reapareceria. Em algum beco oblíquo da consciência, uma voz onisciente a alertava disso. Nico está morto. E se a jovem não mantivesse o olho aberto, avisava-lhe a consciência, haveria mais corpos sem uma vala ao fim do verão. Arregalou os olhos. Era melhor não adormecer. AVES GORJEAVAM INVISÍVEIS ao raiar da manhã arejada. Não eram vistas no céu obscuro e tampouco nos cedros à mercê do tempo instável. A ventania batia portas. Era um vulto intempestivo a penetrar solar à dentro. O dia estava feio. Daqueles sombrios e tenebrosos onde o vulto negro da morte pairava oculto em algum lugar à espreita de seu alvo. Thomas e Carmen, suas amadas crias transgressoras, adormeciam feito pedras após uma extensa noitada de sexta. Lúcio jazia adoentado e não saía da cama há semanas, logo Ruby exercia todas as funções confiadas ao tio. Dr. Rogério ficou de visita-los pela manhã para o resultado dos exames, por isso Amy despertou com os galos. 94


Murmúrios afáveis vieram do primeiro piso. Reconheceu a voz de sua esposa; dócil, gentil e encantadora. Ouviu a porta ser encostada suavemente. Vestiu-se dos modos que pôde, sem qualquer cerimônia e, em segundos, acelerava aflito na amplidão do corredor até a escadaria em caracol. – Ruby está? – questionou Dr. Rogério. A voz grave, concisa e nada amigável. Não deviam ser boas novas. – Prefiro falar com todos de uma vez. – Está sim. Amy olhou surpresa para o esposo no alto da escada. Seus olhos verdes, tom de esmeraldas, luziam umedecidos. Em incontáveis anos de união, ele desvendou cada nuance de seus gestos mais implícitos e seus olhares mais discretos. E aquele era agonia. Um olhar pedante. Um belíssimo rosto pálido, enrugado pelo temor. – Bom dia, Dr. Rogério. O médico não respondeu. – Pode ir ao ponto. Estou preparado. – Eu sinto muito, seu Scarpa – longa pausa. – Como esperávamos, seu tio possui um tumor pulmonar maligno. Olhares não se trocaram. Lamentações não foram exprimidas. Uma quietude torturante assomou o salão como as nuvens negras que rodeavam a cidade. Ruby estava em choque. Incapaz de assimilar qualquer fato, ou esboçar a menor reação, ou olhar a qualquer direção. Tudo o que viu foi uma gota umedecer o tapete persa. Era uma lágrima, de Amy. Seu rosto exprimia um sofrimento indescritível em vocábulos conhecidos. Desde seus dezessete anos, quando graças à mãe doente ela mudou-se do Vale do Aço, Lúcio Scarpa fora o pai presente que nunca teve. 95


– Quão maligno? – vomitou as palavras. Um nó a apertava a garganta. Dr. Rogério não hesitou: – Terminal. O casal Scarpa engoliu em seco. Era uma adaga deslizando no esôfago. Um baque no abismo que não foi visto diante dos pés. – Quanto tempo? – Meses. Poucos meses. Os céus rugiram em trovoadas. A cidade afundou em trevas. Os Scarpa, em seu próprio abismo. LUZES FRIAS INCIDIRAM em seu rosto plácido ao abrir os olhos. Paredes brancas. Porta branca. Cortinas brancas. Manta branca. Mecha loira de cabelo, com raízes acastanhadas, pendendo sobre o olho esquerdo. Silêncio. João Paulo se ergueu com dificuldade. Apoiou as mãos em sua costela fraturada e logo sentiu as nádegas expostas pelo traje de papel. Deu um único passo a frente. Parou. Só então constatou a dor lancinante que fê-lo espremer os olhos. Os flashes dançaram num vaivém desordenado. Em ordem cronológica: Bar. Bourbon. Beco. Briga. Bastão. Costelas. Navalha. Corte. Sirenes… polícia? Ambulância? Não soube. Sucumbiu à dor da surra antes de ver. E não despertou tão sozinho quanto pensava. – Fique tranquilo. Guardei a navalha pra você.

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Sua fala era soturna, letárgica e assustadora como seu feitio vazio algumas vezes. João Paulo virou de costas. Miguel sentava-se num estofado branco, próximo a cortina da janela. Um exemplar de Mein kampf, a edição integral em alemão, estava aberto pela metade no braço da poltrona. O irmão não fitava suas nádegas à mostra, mas sim o livro, com tamanha devoção que era difícil acreditar que tenha percebido o despertar. – Confirme a eles que foi um assalto. Eu te alcancei a tempo. – E acreditaram em você? – João Paulo riu, despreocupado. Miguel ergueu a vista ao irmão mais velho, mal humorado nitidamente. – Preto e pobre sempre acredita em quem paga mais. João Paulo voltou à cama. Ajeitou-se para reprimir a dor, e conseguiu. – Vista-se, JP – comandou Miguel. – Luci sairá hoje e nós temos trabalho a fazer, meu irmão. – Levantou-se. Fechou o livro marcando a página e caminhou até ele, dando tapinhas cordiais em seu ombro machucado. – Muito trabalho – acrescentou num sussurro nebuloso e saiu, batendo a porta.

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2 PESADELOS ASSOMBRARAM DALILA. Começou com a noite fria de domingo no hall de espera do IML. Os choros sentidos iam e vinham através da saleta fechada. A dor física incontida revivia-se novamente, uma das piores de sua vida. O isolamento, a espera agonizante. O toque do telefone. Seu pai havia morrido. E ele morria de novo, de novo e mais uma vez a cada ocaso solitário de primavera. O protesto pacífico ocorreu na tarde fresca. A bandeira preta, com um “A” branco grafado no centro, tremulava para lá e para cá na marquise da antiga sede do Consórcio. Seu pai agarrava-se ao símbolo com unhas e dentes enquanto bandeiras do Estado de São Paulo e do Brasil tornavam-se cinzas diante das câmeras. Dalila viu tudo no precário televisor do quarto conforme a dor consumia-a devagar. Não gemia. Era melhor que sua mãe não escutasse. Seu corpo doía. Doía muito! Meu Deus, como queria aquilo fora de seu corpo! Como só queria que aquilo morresse!... Como odiava “aquilo” nela! Ouviu um estrondo de disparo. E outro que veio em seguida. Não foi um confronto armado entre traficantes de sua favela ou tampouco uma incursão militar em suas vielas que acabou em fatalidade. Foi na TV. No protesto coberto pelo telejornal. Os olhos da adolescente recaíram sobre a tela. Correria. Apresentadores num silêncio petrificante. Disparos a esmo. Câmera se afastando em plano aéreo. Uma bandeira alvinegra salpicada de sangue no chão. Transmissão finalizada.

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Dalila arfou por instantes encostada à beira da cama. Deixou o quarto. Dali para a sala minúscula não foram muitos passos: seu barraco era pequeno. Da cozinha adjacente vinha o aroma da carne de panela do almoço. Na ocasião especial – que Sandro não estaria presente – vangloriar-se-ia a conquista de Daniel. Seu irmão mais velho fora o único aprovado do Setor E, dentre mais de 180 concorrentes, para um curso técnico numa instituição renomada. Deveria ser aquela sua única chance em vida de sair honradamente do E. De ter uma existência mais digna, e melhor, conforme Fátima frisava; na verdade, seu conceito de “vida melhor” era ridículo para a filha. Não passava de uma casa que tivesse sempre carne na mesa, chuveiro elétrico e não alagasse todo verão. Daniel bebia com colegas na rua. Fátima picava legumes e vigiava a carne como um abutre – desperdício de comida era um pecado capital por ali. Já Dalila fora proibida de sair a um mês. Desconhecia a luz do dia ou qualquer outra luz não artificial e agora arfava silenciosamente no sofá rasgado nas beiradas, contendo as dores e a apreensão crescente por seu pai. Sandro estaria em alguma avenida do Vetor Sudoeste escapando do tiroteio, voltando para casa… ou não. E se estivesse ferido? E seus os tiros o atingiram?, temeu Dalila. Não! Não! Não! Não pode ser! O telefone tocou no corredor. Estava fraca demais. Não ia levantar para atendê-lo. Fátima veio da cozinha, secou as mãos no avental sujo e pegou o aparelho. Ouviu apenas, antes de tudo, um único “Alô”. E, após instantes, o mundo deles ruiu mais uma vez. Fátima chorava ao telefone, contestava e rugia incrédula. Não podia ser verdade! Não podia! O Sandro não! Mas fora Sandro. Um militar sacou o revolver, houve confusão com os manifestantes. “A arma era automática, o policial inexperiente”,

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justificaram. As balas à queima-roupa atingiram sua barriga. Foram duas. A ambulância chegou veloz. Seria aquela sua primeira oportunidade de ver um hospital de Setor A, com atendimento decente, estrutura qualificada e médicos presentes. Porém isso não adveio. A hemorragia foi implacável: ele faleceu a caminho. “Acidente”, “homicídio culposo” foi como o CEN lamentou a morte. Um pai de família, idealista e trabalhador que deixara dois filhos vivos e uma esposa desamparada. Não houve nada além de uma nota para a imprensa. A jovem nunca soube que fim levou o homicida. Sequer pisou num tribunal. Oficialmente, deveria ter sido no mínimo exonerado, mas Dalila sabia: ele levou honrarias por isso. Um assassínio culposo não o matou. Uma execução o fez. As câmeras não viram, ela não viu. Mas ela sabia. Todos sabiam. O CEN era o câncer da nação, um antro de homicidas. Homicidas que mataram seu pai, quatro anos antes. Homicidas que “sumiram” com Nico, um mês atrás. Ao meio-dia, Sandro saíra pela porta após beijar a esposa e despedir-se dos filhos. Prometera voltar para o almoço, mas o protesto era um dever inadiável. Sandro partiu ao meio-dia e ao meio-dia seguinte, Dalila deitava-se em sua cama com o sol forte rompendo oblíquo o vitral entreaberto e irradiando seu rosto harmônico. Naquela noite que não dormiu, seus olhos incharam de tanto chorar. A dor física e mental flagelou-a, torturou-a e, por fim, matou-a internamente, para então, depois, revivê-la. Sandro saiu ao meio-dia. E nunca mais voltou. À meia-noite, a jovem aguardava no IML. Um pranto contido, silencioso. Solidão em meio à fila de assentos vazios.

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Dores que jamais seriam curadas. O trinar das aves ao fim da tarde a despertou de seu martírio. No quarto amplo que não era o seu, mas sim o de Clara, gotículas de chuva ainda batiam e deslizavam na claraboia rumo às calhas. No aroma úmido vespertino a jovem sentia o odor de maconha. Não aquela de procedência duvidosa que vez ou outra adquiria dos traficantes de sua favela. Era maconha caseira, daquela das boas. E aquele ar era uma mescla; o cheiro de chuva e terra molhada contrapondo o odor de coito e de mulher inebriando o ar maconhado. – Despertou a dorminhoca. – Não podia dormir pra sempre. Dalila deu uma leve remexida e virou o rosto para a loira nua de seios fartos que lhe admirava a porta. Um cigarro de maconha na mão direita, uma garrafa de Bourbon fajuto pela metade na esquerda. – Você apagou que nem pedra. Achei até que tivesse em coma – sua voz dócil e angelical soou risonha. – Menos, Clara. Bem menos – disse Dalila bocejando, dando-se conta da própria nudez sob as cobertas. – Como foi que acabamos aqui? – Você não tinha pra onde ir, chegou toda encharcada aqui, eu te ofereci um banho quente e você “esqueceu” – desenhou aspas no ar com os dedos – suas roupas na soleira da porta entreaberta. Como não tava com muita pressa, eu decidi te fazer companhia e até os vizinhos concordam que você adorou.

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E adorou mesmo. Clara tinha um inegável talento com o corpo escultural, as mãos ágeis e a língua impudica, mas quando falava... – Eu já te disse que você fica sempre melhor com a boca ocupada, né? – Já. De preferência com a sua vagina – riu novamente. Clara era daquelas que ria à toa, de qualquer coisa. Por simpatia, gentileza, nervosismo, tolice… ela sempre ria. E Dalila não sabia se amava ou odiava isso nela. A prima de Elias aproximou-se sensualmente da cama ao meio do cômodo. Deixou a bebida no criado-mudo e deslizou a mão na coxa nua de Dalila. Sua pele cor de ébano era macia como seda e quente como o fogo. Ambas se aconchegaram sob o edredom, recostadas uma à outra. A mão de Dalila circundava o cigarro de maconha e a de Clara os cachos longos, cor de avelã, que tinha a parceira. Dalila tragou a erva com gosto. Apreciou sua fumaça avivando o ambiente, o gosto forte do baseado na boca, o efeito da droga em seu organismo. Entre um e outro beijo, um gole de bebida, um trago no cigarro. Se o paraíso existisse, para Dalila, certamente se assemelharia àquilo. Momentos sem lutas ou rótulos e preconceitos. Um mundo limitado a um quarto. Sem dor ou sofrimento, aonde a morte jamais chegaria. Ali não haveria casas sujas de lama devido a enchentes enquanto a água não chegava à torneira, não existiria incerteza sobre a fartura da próxima janta, tampouco veriam mortos em sarjetas escuras enquanto uma elite limpava os lábios sujos de sangue. Era essa sua utopia, era esse seu paraíso. Entretanto, era a realidade um rascunho do inferno, onde as massas ou chafurdavam na própria lama, ou morriam tentando escapar.

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Piscou os olhos devagar desfocando das reflexões amargas… A fumaça cinza serpenteando no ar que ela via… A brisa forte propiciada pela erva… O gosto amargo da bebida expelido no hálito. Os braços quentes e a pele úmida a tocando. Eram elementos simples de sua utopia particular, que Clara quebraria tão logo abrisse a boca. E a loira não tardou em fazê-lo. – O Elias ligou. Ele sacou que com a chuva você colaria aqui. Elias! Memória de curto prazo não era mesmo o forte da moça, tanto que esqueceu completamente de ligar para o amigo e informa-lo sobre o depoimento, ainda que as quase duas horas na companhia do Del. Alvarenga de nada tenha servido para além de mais do mesmo. Uma sessão de tortura chinesa, um sonífero natural à luz do dia. Ratificaram aspectos da relação de Dalila com Nicolas. Tinham a nítida intenção de fazê-la bode expiatório numa trama ilógica de crime passional ou conspiratória. Fizeram-na repetir, com riqueza de detalhes, cada movimento na noite de sexta-feira em que seu ex-namorado sumiu. E isso se resumiu a um baile funk na favela, beber, fumar (é melhor não tocar nessa parte), socializar com uns amigos da Causa (Nicolas entre eles, fora ali que ele sumiu) e transar o resto da noite num banheiro químico com uma morena que ela nunca viu mais sexy. Frisaram se ela realmente não tinha nada novo a acrescentar ou não acreditava, minimamente, na hipótese de alguém do próprio grupo estar por trás do sumiço de Nico. “Não”, declarou sem hesitar, “o culpado é o Consórcio. O Nico era infiltrado lá, foi descoberto e sumiram com ele”, ela acusou no depoimento. E sim, ela fazia questão que seus “devaneios infundados” – segundo o próprio Del. Alvarenga – contassem na ata que ela assinou.

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– Puta merda! Não consegui ligar no metrô e esqueci geral disso depois. Me deixa adivinhar: ele perguntou se eu tive que falar sobre o Iuri, ou se menti no depoimento, né? – Aham. Clara fixou o olhar em Dalila ao aguardo da resposta. Precisou insistir para tê-la. – E então...? – Ele não perguntou dessa vez. Mas realmente o sumiço do Iuri, essa ida pro interior assim, de repente, é, no mínimo, estranha. Clara fitou o vazio, anuindo com o olhar. Uma das coisas nela que mais seduzia a parceira casual era sua transparência. Ambas conheciam-se há meses e tamanha era a docilidade em seu aspecto e a previsibilidade em seus gestos que, às vezes, ela sentia-se capaz de ler a mente de Clara em alguns momentos. E naquele exato Dalila supunha que a loira ponderava algo como: “pergunto ou não pergunto se ela acha que o Nico está morto?” e após uns instantes a prima de Elias meneava a cabeça em negação, como se concluísse: “Não. Não pergunto”. No fundo, o silêncio daquela tarde, onde ambas revezavam a maconha e a bebida, respondia a pergunta que não foi feita: Não. Ele não vai voltar. E eu precisarei ser forte… muito forte pra aguentar essa barra, refletiu Dalila. Uma lágrima escorreu do olho esquerdo da anarquista. Enxugou-a com as costas das mãos antes que Clara visse. Dalila era assim mesmo: a vida inteira escondendo, engolindo ou cortando o choro com sua acidez mordaz e seus risos falsos. No teto, o formato da garoa escorrendo na claraboia era um interminável rio de lágrimas que os céus não reprimiram. Nos olhos, as lágrimas contidas aguardavam apenas a próxima chuva. Um ímpeto, uma escuridão

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de nuvens frias como a noite de seu maior trauma e o rio pesando em seus olhos desceria rumo ao nada. Numa das áreas mais ermas da metrópole, próximo ao crepúsculo solitário daquela região, o céu estava indeciso entre tons de laranja e de um púrpura mais denso. Era um festival das cores vivas do verão antes que a noite caísse e o matagal ao redor das garotas mergulhasse na cinzenta penumbra do E. Clara e Dalila vestiam as melhores roupas para a ocasião: a calça preta rasgada em Dalila e uma minissaia jeans em Clara, cujo cropped preto deixava seu umbigo com piercings à mostra. Dalila, por sua vez, trajava uma blusa rubra, justa e decotada com um colar banhado a bronze com um “A” no centro de um círculo. A maquiagem densa, carregada e obscura nas faces de ambas. Renegava em Clara a expressão dócil e o trejeito amigável, enquanto em Dalila realçava seus olhos, de um castanho reluzente, profundo e impenetrável. Usaram o caminho alternativo pelo mato alto, de árvores secas e retorcidas. Haviam saído cedo e em pleno sábado à noite era preferível que todos não fossem pela mesma trilha, do final da estrada até a biblioteca abandonada em meio ao nada. Segundo lembrava, a antiga biblioteca Prof. Michel Siqueira do Prado (um parente e instrutor do finado Túlio Siqueira) foi construída em meados da década de 2020. Nos arredores seria feito uma espécie de Parque Tecnológico ou algum projeto do gênero que não progrediu, muito antes de o governador Silvestre sancionar a divisão da RMSP por setores. A biblioteca (antigamente o extremo leste paulistano), um conhecido ponto de encontro regionalmente equidistante, tornou-se centro de uma revolta dos habitantes contrários à divisão. Quando o governo não 105


cedeu ao grupo insurgente, se utilizando de todas as massas dos atuais Setores A, B e C que os apoiavam, os manifestantes tomaram a biblioteca. Dias depois, um misterioso incêndio que matou três pessoas tornou a Prof. S. do Prado – alcunha antiga do local – o que ela era agora: um oásis de cinzas, luz e escuridão, caindo aos pedaços em meio ao nada. – Dali, quando você for eleita Primeira Membra, vai mudar nossa sede pro Centro, né? – Clara brincou olhando para o chão, onde o mato alto fustigava suas pernas e provocava coceiras. – Eu só pretendo pisar no A, no B, no raio que for, quando for pra destruir aquilo tudo. – Foi só um pouco mais ríspida que o desejado, e percebeu isso. Fez uma breve pausa e retomou. – Mas, de qualquer forma, eu não vou ser eleita. Pergunte ao Elias. Aliás, pretendo votar na Mayara ou na Jéssica, e você? – Em você. Dalila não ficou surpresa como imaginou que ficaria. Apesar disso, não era algo com que contava. – Eu, o Elias, a Mayara, a Jéssica, o Rudi, a Liv, mó galera. Vão todos votar em você. E quem não tá fechando contigo, fecha com o Emerson. Ele subiu no conceito do povo depois das encrencas que andou arranjando. – Que ótimo – ironizou. – Um mini Nicolas esquerdo-macho, só que mais burro e bem mais boçal. Sou capaz de apostar que se ele for ele o Primeiro Membro põe a MIS em guerra com a primeira gangue que ver pela frente e depois some que nem o Nico em questão de meses! – Não exagera. Ele não é tão burro assim, Dalila.

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– Ele é! Nem perto de ser o Primeiro esse encrenqueiro tá e já tem mais ficha corrida que o Nico e eu juntos a vida inteira! A única qualidade dele, além de saber dar uma surra, é convencer todo mundo a se matar junto com ele! Era segurar o rojão ou entregá-lo em mãos que não confiava. Nesse caso, mesmo com o medo e a ausência de vontade de assumir tal função era provável até que ela votasse em si mesma, isto é, seria capaz de fazê-lo, se o regimento da MIS permitisse. – Só querem votar no Emerson pra vingar o que houve com o Nico – reiterou Clara, um tanto retraída. – Talvez se você... Dalila parou, de súbito, à frente de Clara e exaltou-se: – Mas eu não quero! Eu nunca fiz questão liderar porra nenhuma pra acabar que nem o Dante, que nem meu pai ou o homem que eu amo! – esbravejou com o olhar marejado. – O Nico deve estar vivo! Ele deve estar em qualquer lugar, eu não sei, mas ele vai voltar! Ele vai, Clara! – Você quer convencer a mim ou a si mesma? Dalila sabia a resposta, não queria admitir, porém bem sabia. Pelo olhar inquisidor que tanto aguardava, compreendeu que a pergunta não foi retórica. Ainda assim apenas recuou e, pela primeira vez diante de Clara, abaixou o olhar. – Tá certo… vamos supor que ele volte; só supor. Cê vai abaixar a cabeça pra todas as merdas que ele já fez, dessa vez? Se infiltrar no Consórcio sem qualquer base? Comprar briga com metade do A e do B e se por em risco, nos por em risco de novo? Vai deixá-lo passar por cima da corrente que tu lidera e falar por todas nós como se fôssemos um? É isso? E olha que o Emerson é bem pior do que ele. O ódio distorce a Causa. E você bem sabe que o

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mesmo ódio que matou o Nico está no Emerson e que não é sobre isso que é nossa tribo! Fez uma breve pausa e prosseguiu: – E nós sabemos, Dalila. Todos já sabem... – Clara engoliu em seco e abanou a cabeça. – Ele não vai voltar mais. Não dessa vez. E agora você escolhe: ou você se esconde pra chorar como foi com teu pai, ou você se ergue e para de abaixar a cabeça pra macho acéfalo falar por você. Não importa como vocês viviam de birra, que nem cão e gato! Vocês se amavam e confiavam a vida um ao outro. Não importa o quanto discordavam você confiou a Causa a ele. E ele, se estivesse aqui agora, sem sombra de dúvidas, confiaria a Causa a você. O Nico foi bom… foi um ótimo líder, mas tá na hora de alguém ser melhor. E se alguém pode isso não é o Elias, a Mayara, tampouco o Emerson. Esse alguém é você. Dalila sentou-se ao chão de terra lamosa contendo as lágrimas, inquieta. A noite deitava-se sobre a mata, a escuridão ameaçava abatê-la. A escuridão do mundo real, a escuridão de sua mente. Mas Clara não permitiria. A loira podia não ser um décimo do que Nicolas foi para ela, porém naquele momento no qual sentou ao chão sujo também, pegou-lhe pela mão e a olhou no fundo dos olhos, Dalila viu que não estava mais sozinha. Podia gritar agora, estaria tudo bem. Ela não precisava mais sofrer silenciada, chorar escondido, fugir da verdade e martirizar a si mesma. Não mais. Está tudo bem, ela buscava se convencer. Vai ficar tudo bem. – Eu… eu não sei se eu sou capaz. – Eu e todo o povo que vai votar em você temos certeza disso. Além dos céus púrpuros, quase azulados, e da noite densa de verão que estava por vir, havia uma luz. Era uma réstia de sol teimando

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em esvanecer no horizonte. Era a força de Dalila que renascia em meio ao crepúsculo.

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3 A TEMPESTADE TROUXE a escuridão. E com ela, a velha intuição que perseguia Ruby desde a infância. Havia mais de 40 anos que se afogara no mar caribenho e ainda tinha a sensação de desequilíbrio, de possuir no corpo a leveza do ar fresco. Foram décadas do atentado que matou sua família e ainda lembrava-se da queda, da dor, das cinzas e da fuligem que recaíram sobre ele como a seda que tudo vendava… e era assim que se sentia: afogado em águas translúcidas, soterrado sob pilhas de escombros. Após a breve visita de Dr. Rogério, a família Scarpa assistiu imóvel o aguaceiro desabar durante o dia. Amy e Ruby se abraçaram, se consolaram e, após vinte e oito anos de união, mentiram abertamente um para o outro. “Ele vai ficar bem”, ela dissera. “Deus há de salvá-lo” foi sua mentira. Thomas e Carmen se abstiveram, mas mantiveram-se em casa o dia inteiro. São em momentos como esse que famílias mantêm-se unidas. Deveriam sentar-se juntas ao redor da lareira, abraçadas e deprimidas, e contar mentiras uns para os outros. É um jogo: quem há de contar a mentira mais crível? Carmen diria que haveria uma cura, e dane-se se os médicos afirmavam o oposto. O primogênito fingiria mais otimismo, “o prognóstico está errado” – seria típico de Thomas. Já Amy apenas choraria até os olhos incharem e, então, engolindo os próprios soluços, anuiria com os mais otimistas, com as palavras vazias e as mentiras auto induzidas. Mas não foi daquela maneira. Cada um reclusou-se em seu canto. Os filhos trancavam-se em seus quartos, Amy chorava escondida pelos cantos e Ruby permanecia inerte, no terraço, sentado no banco de madeira que balançava suspenso por correntes. Solitário há incontáveis horas desperdiçadas, assistindo a noite avançar sobre a metrópole e o ascender da claridade na Selva Luminosa. 110


A questão em sua mente era simples: será que lamentariam tanto assim se conhecessem sua outra cara? O homem que o fez testemunhar, aos dezoito anos, um duplo homicídio ou o padrinho dócil e aprazível a quem Ruby e Amy deviam tudo? Um assassino, um bem feitor? Ambas as coisas. Um homem acima do bem e do mal, mas não acima das próprias fraquezas. O pulmão era o mal da família. A bisavó de Lúcio também faleceu devido ao fumo. Alberto Scarpa fumava menos, mas o mal era implacável. Foi uma morte lenta, sofrida e dolorosa, à custa da dor do primogênito. Agora Ruby pensava em tudo que Lúcio suportou: um pai tão frio e inescrupuloso quanto ele, uma mãe que morreu para dar-lhe irmãos. Um irmão que ele aprendeu a amar acima de tudo, inclusive do preço alto que custara tê-lo, mas que então, de repente, também lhe arrancaram. Um pai que definhou, sofreu e agonizou até a morte, clamando o nome de um filho já morto através de longas noites. Quantas vezes não tivera acordado Lúcio aos berros por Alfredo em seu estágio final da doença? Quantas noites ele assistira o sono do pai perguntando-se em quanto tempo ficaria sozinho? E ali eram ambos o que restaram um ao outro. O pai moribundo e o filho solitário, fadado à atrocidade de suas próprias sombras. Mãe, irmã, irmão e pai. Não restou ninguém para salvá-lo de si mesmo. E sua salvação tornou-se a perdição dos inimigos. Os ventos uivavam ao longo da noite. A lua escondia-se acima das nuvens e no horizonte de Ruby Scarpa, de pé sobre o amplo alpendre de concreto do solar, tudo o que os olhos podiam alcançar eram as luzes. Luzes e arranha-céus. A claridade lívida dos prédios e postes, a inquietação das propagandas nas ruas, os focos luminosos que davam a alcunha daquele setor. A Selva Luminosa 111


era um oásis de concreto no deserto, um ponto ínfimo, um farol ofuscante numa ilha cercada pelo mar revolto e nebuloso. A solidão no meio da noite, a calmaria durante o período de tempestades, o ar fresco soprando na face, a mente dispersa; tão perto, tão longe e tão evasiva. Nessa hora, nem mesmo o futuro próximo era uma inquietação. Nada era. – Supus que estaria aqui – disse o rapaz. Ruby virou de costas e deu com o filho a sua frente. Sentava-se à portinhola encostada, com as mãos sobre os joelhos e os olhos verdes fixos nele. Ao longo dos vinte e três anos da existência de Thomas, Ruby intrigava-se frequentemente: como era possível tal semelhança física, mas tanta diferença em outros sentidos, dos progenitores? Era o cabelo cor de avelã uma mescla exata do loiro e do castanho-escuro do cabelo dos pais, os olhos tristes e plácidos como os da mãe e seu corpo esguio como do pai. Contudo, se não fosse por tais aspectos, Ruby jamais compreenderia como seria ele seu filho biológico com a esposa, e ainda por cima, criado pelo casal. Apesar disso, aquele era um dos raros instantes de trégua legítima. Não importavam as diferenças. Eram pai e filho que se amavam acima de tudo e, naquele momento, isso era tudo que importava. – Não consegue dormir direito? – perguntou Ruby. – Há mais de vinte anos – esboçou um meio-sorriso. – E o Senhor? – Por aí... Ruby suspirou e caminhou até Thomas, sentando-se ao seu lado.

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– Trouxe bebida? – a pergunta foi retórica. Ruby estendeu a palma da mão ao filho sendo que este não tinha uma garrafa ao alcance da vista, tampouco o hálito aspirando a álcool. – Roubei uísque do seu frigobar – e tirou do bolso uma mini garrafa prateada, dando a Ruby. O patriarca girou a tampa e a ingeriu praticamente inteira em quatro ou cinco goles. Não restou nada para Thomas. – Obrigado. – Não há de quê. Thomas devolveu a garrafa ao bolso do jeans surrado. Via o céu sem nenhuma estrela, todas ocultas atrás do extenso tapete cinza. – Será que na periferia há mais estrelas do que aqui? – perguntou aleatoriamente. Thomas tinha uma indolência atípica e escusa aos outros, notara o pai. O garoto sempre ávido, insolente e insensato, quando abatido, mantinha sempre aquele meio-sorriso supérfluo, os olhos dóceis cintilando umedecidos e um desvelo na voz rouca que não lhe era muito usual. – Postes ou estrelas… não me parece haver luz num lugar como aquele. – O senhor tem mesmo saco pra ir ao velório? Acho que o Amacio não vai se ofender se o senhor não for. Considerando o que anda havendo... – Não se trata sobre ter ou não ter saco, Thomas... – Se trata do que é preciso fazer – completou balançando a cabeça e despontando um sorriso. Conhecia o bordão de cor e salteado. – Eu sei. 113


– E depois, mais do que nunca é agora que precisamos mostrar lealdade aos Figueroa. Deixá-los cientes de qual lado estamos. Não só porque eles são aliados que precisam da gente agora, mas sim porque nós precisaremos muito mais deles daqui pra frente. Uns instantes de silêncio com o suave assovio do vento rondando as árvores e as luzes faiscantes dançando no horizonte e Ruby encorajou-se: – Já contou a Chiara sobre… sobre tudo? – Já. Ela disse que sente muito. Volta pra Sampa amanhã mesmo. Falsa! Deve estar soltando fogos há essa hora! Bradou para si mesmo. Linda, amável, bem de vida. Chiara seria a nora que qualquer pai desejaria, principalmente com um filho desregrado e impulsivo como Thomas. O problema era quem, de fato, ela era: prima da família do Membro Beta do Rio de Janeiro. Lúcio mentira, há quase trinta anos atrás: no Consórcio havia amigos. Porém uns eram mais amigos do que outros – havia aprendido o Scarpa. “Os Campos Machado mandam lembranças” dissera a Amacio, em claro despeito, no velório da prima dele. Um atropelamento tirou-lhe a vida. Reviraram céu e terra, mas foram incapazes de achar o culpado. A posição que possuíam não bastava aos Campos Machado. O CEN fora implantado há mais de trinta anos e o Rio de Janeiro não aceitou completamente não ter uma vaga no Conselho dos Dez pelo Sudeste. Embora as eleições internas no Conselho ocorressem a cada quatro anos, limitavam-se a uma tosca fraude democrática; os próprios Dez Líderes elegiam entre si a permanência no primeiro 114


escalão. Raramente (quase nunca, apenas mediante casos extremos) saía alguém para um Membro Beta ascender e ocupar seu lugar. E era isso que a família fluminense almejava. Vinham a tempos conspirando contra os mineiros na cobiça de sua cadeira. O enterro da prima de Amacio foi a primeira vez que Ruby viu a futura nora. Um tempo depois e instaurou-se a paz armada entre a elite do CENRJ e o primeiro escalão do Sudeste, com a paixão devastadora do primogênito Scarpa e de Chiara Odília Campos Machado. Um namoro que quase pôs à prova a “nova” aliança Café com Leite. E que (Thomas jamais perdoaria a família por isso) somente não foi proibido, pois Amacio Figueroa, em toda sua imensa benevolência, deu sua benção para o casal. E todos foram felizes com aquela união. Até agora, analisava Ruby. Com Lúcio Scarpa com o pé na cova, tão logo o corpo tivesse esfriado e os Campos Machado agarrar-se-iam àquela chance como lobos à caça de um cervo. Pela tarde haveria um compromisso: o velório de Afonso. O filho homem mais velho do Barão do Aço morreu em decorrência da Gripe. Uma nova versão do vírus circulava no exterior e o Figueroa a contraiu numa breve viagem com o esposo. A doença foi implacável. Bastou apenas desembarcar no aeroporto e cumprimentar os familiares que acabou na UTI, falecendo dias depois. Dormiria aquela noite em São Paulo e pela tarde estaria em Minas. Na ocasião estariam eles se esgueirando pelos cantos. E uma vez que o filho já contara à namorada, Ruby teria de tolerar os olhares furtivos pelos salões e os conluios mesquinhos em sussurros pelo saguão. “Os Scarpa ou os Figueroa? Lúcio Scarpa morre logo, Amacio é outro que tá fazendo hora extra” debateriam às escondidas. “Qual é a cadeira que devemos tentar tomar?”.

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Mistério... E então Chiaria surgiria do nada e se aproximaria de Thomas, lhe guiando pela mão. Beijar-lhe-ia em público, encostada a uma pilastra. Ruby, parado ao centro do salão, veria os candidatos a rival num canto. Os aliados cabisbaixos de um lado, e seu próprio filho do outro. Literalmente, na boca dos lobos. Seu cumprimento de bom dia soou brando e amargurado. – Bom dia – respondeu ele. Ruby encarava-se ao espelho. Ajustava a gravata do terno preto quando Amy levantou sonolenta. Pelo espelho da cômoda, ele notou com perfeição: a expressão abatida, sem rubor, e os olhos inchados, possuído por olheiras e pés-de-galinha. Estava acabada. Ela abraçou-lhe por trás e beijou sua bochecha. – Você dormiu cedo ontem – ele puxou assunto. – Estava exausta. – Desconversou. – Soube que esteve no teto ontem com o Thomas e nem mesmo se alfinetaram… eu tenho muito orgulho de vocês. Ruby tinha a idade da filha mais nova quando conheceu Amy, dois anos mais jovem. Vinte e quatro anos de união registrada em cartório. Agora, muito próximo da quinta década de vida, após dois filhos na faixa dos vinte criados e no mundo e Amy ainda insistia no comportamento maternal, quase instintivo. Em relação às proles, que considerava indefesas; em relação ao esposo, que por vezes como aquela, ela tratava como um dos filhos. – Tem certeza que não quer que vá contigo?

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– Absoluta – ele virou-se e deu um beijo nos lábios da esposa. Doce, romântico, carinhoso. Segurou-lhe suavemente ao queixo e olhou-a nos olhos. Aqueles olhos… após tantos e tantos anos eram abismos fundos de esmeraldas que não cansavam de seduzi-lo. – Fique. Você tá cansada, vai ser melhor. E depois, a Carmen e meu tio vão precisar mais de você. – Ruby… – ela baixou o olhar, sentida. – Eu tô com medo. Não é melhor chamarmos a mídia… divulgarmos de vez o que o Lúcio tem? – Há um garoto sumido na nossa jurisdição do Consórcio, a Câmara e o Executivo que não largam do nosso pé, tramoias no próprio CEN, Brasília que tá quase em chamas e isso vai respingar em nós… Vazar a doença do meu tio pode não soar uma boa agora, entende? Não. Ela não entendia. Suspirou e afastou-se dele. Virou-se ao esposo, subitamente, e bradou: – Não é possível que, numa hora dessas, você fale disso! Seu tio tá morrendo naquela cama e ontem em nenhum momento, em nenhum, eu perguntei às enfermeiras, você ao menos foi vê-lo! Ele tá sofrendo, Ruby! E você fica aí falando da Câmara e do presidente e de um rebeldezinho qualquer que deve estar morto à uma hora dessas, mas não fala do seu tio! Fodam-se todos eles! Fodam-se! Ele é a sua família! Ele foi o cara que nos ergueu do nada quando não tinha ninguém mais ali pra gente! – Você sabe que não é bem assim – ele ergueu a voz, irritado. – Ah, é? E onde é que você estaria se não fosse por ele, Ruby? Num escritório mofado em Manhattan ou como um Cônsul do maior conglomerado estatal do mundo? Você era o último Scarpa vivo, lembra? E agora você pertence a um império. Você tem um

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legado. – Apontou para a parede à esquerda, inferindo o quarto do tio. – E é àquele homem que você deve tudo isso. Não valia a pena argumentar. Ela tinha uma visão deturpada de Lúcio como um santo num pedestal. Amy caminhou até a porta, abriu-a, e ali parou, arrematando: – Eu te amo, Ruby. Mas sua frieza e ingratidão me enojam. E bateu a porta. Persistia unicamente uma réstia de sol entre nuvens. E mesmo assim o ar estava denso e abafado. Aquela tarde quente, onde o sol não se fazia visível, era a metáfora perfeita para a agonia que o consumia ultimamente. Era um calor sentido, mas ocultado detrás das nuvens. Era uma intuição maligna, mas incapaz de ser compreendida. O corpo era velado no Palácio das Palmeiras. Uma construção recente, aos moldes neoclassicistas, próxima a Av. Brasil e a Praça da Liberdade. No saguão indigesto a cortinas fechadas, com o negro dos ternos e vestidos e a pintura morta das paredes, os tons escuros do palácio harmonizavam com o suntuoso caixão preto jazido aberto ao centro do cômodo. A capital mineira parecia morta naquela tarde. Além de filho do Barão do Aço, que era um dos Dez Líderes pelo CENMG, Afonso era casado com JK Menezes, que era filho da ex-governadora de Minas Gerais e primo do atual. Amacio encontrava-se em sua cadeira de rodas desolado, próximo ao morto. Ao todo, sua esposa parira sete. Dois meninos e cinco garotas. O primeiro garotinho faleceu ao décimo mês, Ruby não

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recordava a razão. Já Afonso morrera agora, então lhe restaram apenas as cinco filhas que o rodeavam. Usavam um modelo básico, discreto. Os olhos escuros apertados, os cabelos pretos recaídos nos ombros. Pareciam irmãs gêmeas. Indistinguíveis umas das outras, vistas ao longe. O único destoante dos genes ali era o defunto: cabelo alourado com franja e olhos de cor caramelo herdados da mãe, já falecida. O patriarca chorava sobre o caixão com um ódio palpável e inebriante. Ruby podia enxerga-lo. Se estivesse mais perto, poderia até tocar aquela ira bruta irradiada por suas lágrimas. O Senhor do Vale do Aço, um cadeirante em seus oitenta e seis anos vivenciava a dor de sepultar mais um filho. A breve conversa que tivera com Amacio, ao chegar ao palácio, sumarizou-se a condolências, lágrimas sentidas e questionamentos desconfortáveis. Contar ou não contar sobre Lúcio? Ponderou Ruby. – Meus sentimentos, seu Figueroa. Olha, pro que precisar, de verdade, estamos aqui – cumprimentou condescendente e abraçou-o em seguida. – Meus pêsames, seu Figueroa – cumprimentou Thomas, cabisbaixo. – Obrigado. De verdade… – olhou ao redor, buscando algo. Chegara o momento que Ruby temeu. – E Lúcio? Ele não vem? Não contar. Seu tio sequer soube da morte de Afonso, falecido há dois dias. Lúcio já estava adoentado quando ouviu apenas que ele voltara com a Gripe do exterior. – Meu tio mandou suas condolências. Ele está acamado há dias, mas espera vê-lo em breve pessoalmente, seu Figueroa. 119


– E… – uma das filhas iniciou, secando as lágrimas entre os soluços – e é algo grave? Um entreolhar subentendido entre pai e filho e Thomas assumiu: – Não temos certeza ainda. Eu sinto muito por seu irmão. Uma breve conversação irrelevante ocorreu antes que Norberto, o atual governador de Minas Gerais, interrompesse para cumprimenta-los. Cumprimentos aos primos, irmãs, amigos e ao belo esposo de Afonso. Olhares cabisbaixos. Café insípido e amargo. O velório seguiu enfadonho até a chegada de Chiara e seus “amáveis” parentes a tiracolo. Dessa vez, para a surpresa de todos, vieram apenas os patriarcas: Andreia Tereza, a Membro Beta, e seu esposo Maurício. Ambos loiros, passados da meia-idade, com feições plásticas e artificiais como bonecos de porcelana. – Seja discreto com Chiara, por favor – aconselhou ao filho. – O senhor tem mesmo o pé atrás com ela, né pai? – Olhe ao redor, Thomas. Você acha mesmo que é hora disso? – Desculpe. Ruby percebeu uma estranheza: a afabilidade excessiva deles para com os anfitriões. Não houve qualquer menção de despeito ou sorrisinho de canto de rosto ou mesmo uma desfeita que fosse. Estavam mesmo dispostos a serem aprazíveis. Não que estivessem praticando a empatia, ou a compaixão, ou qualquer sentimento genérico. A única coisa que movia tal família era interesse. Cobiça, ganância e ambição eram as únicas mantas no berço de lobos que eles mantinham.

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Entre um cumprimento e outro aos conhecidos, um olhar de soslaio atirado à Ruby. Alguns mais descarados e outros um tanto mais tácitos. Todos com a mesma conotação como se dissessem: “Eu sei o que você não está contando. E vou acabar com você por isso”. – Aceita um café, seu Scarpa? – perguntou um serviçal, de repente, parado diante dele com uma bandeja. Uma última xícara cheia num pires branco sofisticado. – Ah… aceito. O garçom – um mulato bem vestido, nitidamente irrequieto – serviu-lhe o café com pressa. Meteu a bandeja vazia debaixo do braço e disse: – A Sra. Campos Machado pediu para oferecer-lhe. Ela disse que o senhor vai precisar pra se manter de olho vivo daqui pra frente. Ruby ficou atônito. E o servente sumiu feito um fantasma em meio à multidão de ternos pretos do salão. O café ferveu nas mãos do Scarpa. Uma olhada para o lado, e a cena ocorreu exatamente como previu: os aliados à frente, inconsoláveis; o filho de um lado, aos beijos com a namorada e os rivais às suas costas. Um olhar invasivo, um discreto meio-sorriso. A olhar pela janela vitoriana ao fim da tarde, um contido suspiro de alívio: o helicóptero já está vindo, repetiu Ruby no corredor. O enterro foi tedioso como o esperado e o resto do evento, um martírio tolerável. Chiara surgiu ali de mãos dadas com Thomas. Aquiescente e compadecida, era uma anja vestida em negro com os olhos cor-deâmbar sobressaltados. – Pai, já estamos indo? 121


– Cinco minutos no máximo e o helicóptero chega. – Fez uma pausa. – Vem conosco, Chiara? – Não, infelizmente. Tenho uns problemas pra resolver no Rio ainda hoje, mas acho que de manhã estou em São Paulo. Esse velório atrasou tudo… – Fez uma breve pausa. Esforçou-se na atuação. – O Thomas me falou sobre… – É. Eu já sei – interrompeu ríspido, fuzilando o filho com o olhar. – Eu sinto muito, seu Scarpa. – Eu também. Ah, e diga a seus tios… – Primos – corrigiu ela. – Meus primos. – Certo. Diga a seus primos que o café estava ótimo. E que, da próxima vez, eu jogo ele quente na cara dela, manteve para si. Deu um sorriso amarelo para a nora, que retribuiu por educação. Uma moça esbelta surgiu no corredor e o abordou delicadamente. – Seu Scarpa, seu helicóptero chegou. Dali para o heliporto, uma construção modesta e recente nas proximidades da Praça da Liberdade, foram poucos minutos. As trevas venceram a tentativa de luz solar. Densas nuvens baixas assombravam a capital. Prenunciavam a tempestade. O rugido dos trovões era medonho e estridente. Na pista de decolagem, as hélices giravam… e giravam… e giravam enquanto pai e filho marchavam para elas antes que a chuva e o pôr-do-sol sobre eles se abatessem. A viagem deu a impressão de durar horas e foi, ao extremo, entediante. Não havia qualquer distração além do ronco das hélices e motores. O celular de Ruby foi esquecido em casa e o de 122


Thomas descarregou. De qualquer forma, após assistirem a escuridão surgir por sobre as nuvens e os raios cintilarem mais fortes vistos dali, o trajeto transcorreu mais depressa. – Como o senhor não parou pra pensar nisso ainda? – perguntou Thomas de repente. O olhar melancólico refletia no vidro, sobre o imutável horizonte negro. – No quê? – Como estará o mundo lá embaixo enquanto aqui estamos a salvo? – Não deve estar em chamas – ironizou indiferente. – Talvez esteja. E nós só não tenhamos ciência ainda – sorriu. Era um sorriso mordaz, travesso e tolo. Era a expressão genuína que sempre mantinha, era o apreço pelo caos avivado em sua face. – Pousaremos em uns dez minutos, seu Scarpa – avisou o piloto. Um bigodudo idoso, que o que tinha de mudo, tinha de eficiente. Logo viram que o mundo não estava em chamas. Estava em raios. Quanto mais descia o helicóptero, melhor viam a metrópole inundada. Chovera forte, perceberam. Verdadeiras piscinas cobriam alguns pontos periféricos da RMSP. Na capital, o E e o D, em boa parte, mergulhavam na penumbra de suas poucas luzes e num nebuloso mar lamacento, que visto ao longe em pouco ou nada diferia de uma ampla piscina de esgoto. “Eles afundam nos dejetos que saem de nossas bundas”, dissera Thomas após ver mais uma nota de inundação recentemente. E por mais que odiasse admitir, Ruby não via calúnia naquilo.

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Se houvesse uma linha tênue entre as reflexões saudáveis e as indagações perigosas para o filho – como houvera para ele – o rapaz sem dúvida a teria rompido. E Ruby temia isso nele. – Tem algo estranho… – observou o mais velho Scarpa ao olhar pelo vidro. Já sobre as luzes quentes e ofuscantes do Setor A, notou algo atípico no ar. Próximo ao solar, um aglomerado. Veículos da imprensa, câmeras, mídia. O ar ainda remetia à carniça. E algo o dava a sensação que havia um defunto em seu porão. E ele fedia. Fedia tanto que agora todos sentiam o cheiro. – O que tá acontecendo? – perguntou Thomas. – Eu sei lá. Só tem repórteres, jornalistas… – balançou a cabeça, dando-se conta do mais óbvio. – Merda. Eu sabia! – O tio Lúcio? – O que mais seria, hein? – revidou exasperado. – É claro que os cariocas jamais perderiam a chance de soltar uma dessas! A desgraçada ainda avisou… – Mas a Chiara disse… – Não interessa o que ela disse! – Thomas calou-se após o grito. As luzes lançavam-se para o helicóptero em holofotes. Câmeras, flashes, cliques. Um falatório atropelado. O nervosismo no semblante de Ruby. De imediato, pousaram na área propícia aos fundos do solar. Bastou as portas se abrirem e pai e filho saltaram na grama verde e umedecida. Os barulhos incompreensíveis difundiam-se em sua mente.

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Ruby cerrou os olhos, suspirou e então os abriu novamente. Um pingo de chuva caiu em seus cabelos. Lançou um olhar discreto a uma janela. Duas silhuetas contornavam-se atrás da cortina creme; eram sombras solitárias à meia-luz de um altar sombrio. E então a revoada de abutres. E voaram para o Scarpa como os bichos famintos e sedentos de seus piores pesadelos. – Seu Ruby Scarpa, o senhor soube de Nicolas Martins? O choque foi sua primeira reação. Aquilo foi tudo que ouviu do burburinho, e soou límpido como o canto um pássaro sobre um cedro ao meio do dia. Após, apenas um falatório incompreensível, indistinguível e apavorante. A pauta não era Lúcio, ainda desconheciam sua doença. Era pior… muito pior. Nicolas. Um corpo, um rosto furtado da multidão subitamente. Um nome que ele pensou que jamais ouviria dito em voz alta novamente. – Seu Scarpa, uma declaração para o nosso jornal. – Seu Scarpa, é verdade que o senhor trabalhava com a vítima? – Por que Lúcio Scarpa não nos recebe? Onde está Lúcio? – berrou uma repórter. E foi como se todos atinassem que Lúcio era o real líder do Consórcio e evocassem o moribundo. – Uma declaração para o jornal. – Sr. Scarpa… “Deseja um cafezinho, seu Scarpa? Acho que o senhor está precisando”. Era a voz sem rosto martelando em sua têmpora: dócil, solicita e amigável. Entretanto, possuía um olhar maquiavélico e ultrajante.

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E um cheiro podre, de enxofre, de pobreza e de revolta que perfume algum conseguia ocultar. Foi esse o Nicolau Brandão que conheceu, e descobriu, há semanas atrás, que não existia. Nunca existiu. Era pseudônimo de Nicolas Martins dos Santos, também conhecido como anarcopunk líder da MIS, ou como o pior pesadelo do CENSP. A cabeça girava… e girava… e girava. Eram as hélices do helicóptero que levantava voo despercebido. Um zumbido estrídulo e incompreensível murmurado ao pé do ouvido. – Eu acabei de chegar de um enterro – declarou em alto e bom som para todos. – Não tenho a menor ideia do que é que tá havendo aqui. Com licença. Sua voz tremulou, seu olhar perdeu-se no nada e a porta abriu-se na hora exata. Dela saíram três ou quatro homens que formaram um cordão de isolamento dos repórteres e jornalistas. As luzes dos flashes não o cegavam mais, repórter algum o aturdia. Mas Thomas estava pálido, repelido e não tardaria a cair em si. Pai e filho adentraram pela porta, apressados. Ruby acreditou estar em paz, mas só bastou-lhe bater a porta e dar as costas… A primeira sala de estar era cenário de filme com enredo de Sherlock. Dois detetives em sobretudos grossos, cabelos repartidos e bem penteados sentavam-se ao estofado. No outro sofá, de frente àquele, Amy e Carmen. A esposa com o olhar de coação, temor e aflição. – Amor, esses homens chegaram agora a pouco e querem conversar com você e o Lúcio. – Não sei se soube – iniciou o policial. Um loiro charmoso, sentado sem quaisquer modos no sofá de couro legítimo adquirido

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recentemente. – Mas encontraram de madrugada o corpo de um jovem no Parque Estadual do Setor E. Já identificaram e é Nicolas Martins dos Santos. Ou Nicolau Brandão, como o senhor o conheceu. Ele chegou a trabalhar pra você e seu tio há alguns meses, como infiltrado pra um grupinho anarco. O mais velho ergueu-se do sofá. Aproximou-se a passos lentos e cautelosos. Tinha uma expressão rasa, sádica e analítica. E a mão estendida para Ruby e o filho num gesto cortês para um cumprimento amigável. – Prazer, Rabelo Alvarenga. Delegado da Divisão Paulistana de Homicídios. Fez uma longa pausa. Olhou-o invasivo no fundo dos olhos. Conteve um risinho de escárnio no canto dos lábios e disse: – Nós precisamos falar sobre Nicolas. Thomas tornou a olhar para o pai. Incrédulo, estarrecido, desentendido e sem ação. Abaixo das nuvens, o mundo de fato jazia em chamas. E nos salões luxuosos da metrópole, Ruby Scarpa nadava em brasas.

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4 HAVIA SANGUE. E seu rastro pelo chão era um fluído lívido e abundante. Riscava em pingos diagonais as paredes brancas. Molhava os pés descalços do garoto pasmado e se esvaia deixando os corpos, no carpete da sala. – JP? – um sussurro sentido, um chiado miúdo vinha do closet ao corredor. – JP, você tá aí? JP? Fala comigo. Cadê o papai? Cadê a mamãe? – Miguel perguntava. Não respondeu. Não possuía voz alguma na garganta que as lágrimas e aquele nó estranho, desconhecido, nas cordas vocais não suprimissem. Estava tudo calmo agora. Não ouviria mais berros, ou discussões, nem nervosismos. Nunca mais discordaria do pai sobre a hora de ir dormir, pois ele estava ali: estirado no chão sobre uma poça grande e vermelho-escura, os olhos abertos, esbugalhados e espantados. Sua mãe era outra que certamente não se importaria caso o menino demorasse em ir se deitar. Caíra de lado. Enrijecida, de olhos e boca abertos. Os resíduos de seu cérebro jaziam no tapete junto ao sangue. – JP… Me tira daqui, JP – Miguel implorou aos soluços. Chorava, mas transcorreram minutos desde o incidente e o menino permanecia imóvel, parado na escuridão, com a brisa amena da noite outonal a adentrar pela porta aberta e eriçar seus cabelos loiros. “Você foi um rapazinho bem corajoso” muitos disseram após o incidente. “Você salvou a vida do seu irmão”, “você salvou a própria vida!” um homem falou espantado e com um sorriso de orgulho. “Poxa, você é um herói!”. Um herói pelo qual o pai morreu. Era esse o detalhe ínfimo naquela história que ninguém – além dele e do homicida – 128


conhecia. João Paulo não era o herói que salvou a vida do irmão. Era o causador da morte do pai, sem possuir qualquer intenção. Uma tragédia, um ímpeto tolo, um infortúnio do qual, mesmo após quase vinte anos, o rapaz não conseguia se livrar. Ali estava paralisado. O menino mudo de cinco anos cuja voz era uma bolha de ar na garganta. As lágrimas prendiam-se abaixo dos cílios e os músculos estavam rijos como se congelados. E a frente dele dois corpos desfigurados. Dois mortos. Irreconhecíveis. Miolos pelo chão. Sangue que escorreu até alcança-lo. Um revólver em sua mão manchada de sangue. Um dedo frágil, incapaz de apertar o gatilho. Um olhar fixo num cenário estático. Os corpos jaziam do exato modo em que tombaram: seu pai com duas balas ao centro do tórax e um terno marrom transformado em escarlate, e sua mãe caída de lado: duas balas na cabeça, outra na garganta, e a última no coração. – JP!!! – a porta era socada com estrépito. – JP! Me tira daqui! Me tira daqui!!! – ele começou a berrar e não parou mais. Luzes rubras e azuladas dançavam frias sobre a mansão. Recaíam como holofotes. Homens fardados e exasperados invadiram amparando-lhe. Correram de um lado a outro, horrorizados e pasmados, e tiraram-lhe dali de imediato. Uma morena dócil guiou o menino pela mão. Foi impossível lembrar seu rosto com precisão, mas era gentil e agradável. Ele deixou a cena do crime para nunca mais voltar, mas suas pegadas permaneceram no chão. Eram registros de sua presença no abatedouro, manchas profundas que não seriam apagadas. As cicatrizes daquela noite de abril de 2042 jamais deixaram João Paulo. Não ficaram grafadas na pele: o skinhead nunca levara um tiro. Mas ainda manchavam sua alma. Era uma gosma escura e 129


apodrecida que se decompunha dentro dele, e dia após dia cheirava pior. Era uma ânsia de vômito, de sangue e de revolta que apenas o sangue, em razão do próprio sangue, era capaz de saciar. O sangue em seu pé descalço foi limpo, em grosso modo, por papel higiênico na grama do jardim. Porém, ainda assim, noite após noite, quando deitava para dormir, sentia a mesma textura fria e horripilante: o líquido grosso, escuro e metálico tocando os dedos e as palmas dos pés até os transporem completamente. Noite após noite, ele dormia com os pés cobertos de sangue. Dia após dia, ele acordava sentindo os membros daquela maneira. – Acorda – disse ele. O farfalhar de papel caindo. O som de persianas sendo abertas. Uma quentura rubra invadiu-o por dentro e João Paulo despertou. Miguel estava próximo à persiana, com a mão na corda dela. O corpo viril, bem vestido como sempre, com sua lente de contato azul-piscina. O sol de um dia quente invadia o quarto amplo, irradiando a luz e um calor sufocante. – Que dia é hoje? – perguntou bocejando. Espreguiçou-se e saiu despido dos lençóis. Viu um jornal caído no chão próximo aos chinelos. – Segunda. Apenas bateu os olhos na manchete e voltou o olhar ao irmão mais novo. Um sorriso cúmplice entre ambos, um olhar supérfluo e implacável de Miguel. – É isso mesmo maninho. Começou. João Paulo puxou o jornal rapidamente.

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A capa do “CORREIO PAULISTA” (o único e maior jornal impresso ainda em circulação e uma das mídias mais influentes do país, onde Miguel trabalhava, por coincidência) estampava duas fotos separadas por uma borda: à esquerda, a fachada da nova sede do CEN no Setor A, à direita, uma foto escura, um corpo envolto num lençol branco sendo afastado da lama por quatro mãos. DESAPARECIDO HÁ UM MÊS, CORPO DE FUNCIONÁRIO INFILTRADO NO CEN É ENCONTRADO NA CAPITAL. Informes de DESAPARECIDO ainda eram veiculados no A e no E até a polícia encontrar o corpo de Nicolas Martins dos Santos, na madrugada de ontem (26) ocultado no Parque Estadual da Cantareira, graças a uma denúncia anônima. Apesar do estado do corpo, a perícia já confirmou a identidade e atestou a Causa mortis como homicídio. Nicolas era conhecido por Nicolau Brandão no Setor A, onde trabalhou no CENSP por um semestre, após, provavelmente, fraudar um concurso da universidade onde cursou História para ingressar como Membro Externo. Para a imprensa, o Del. Rabelo Alvarenga, que comanda as investigações, afirmou que é cedo para apontar suspeitos. Entretanto, ele crê que o crime esteja relacionado a disputas internas de poder numa gangue anarcopunk – chefiada por Nicolas – ou queima de arquivo, motivada pelas ações ilícitas do rapaz no Setor A.

A partir do quarto parágrafo, a matéria tratava da ausência de declarações da família Scarpa e traçava um perfil de Nicolas e suas relações. De relance, notou um nome citado entre uma linha e outra: Dalila Martins. Era ela que convinha à polícia indicar como suspeita. Embora o Correio, claramente, pendesse a insinuar a culpa do CEN e de seus líderes paulistas. João Paulo encarou Miguel. Começou a rir descontroladamente sobre o jornal, dobrando-o e amassando-o.

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– Mas isso é muito bom, é incrível! Achei que nunca iam encontrar o anarquinho podre naquela merda! – Conteve os risos. Olhou para o irmão e ordenou: – Marca com geral pra se reunir hoje. Nós temos trabalho a fazer. – Calma. Vamos deixar os ratos se destruírem sozinhos por enquanto. – Você já contou pro Wagner, né? – Ele riu. Miguel respondeu com um aceno positivo, de imediato. – E aí? Que cara foi a dele ao descobrir que já acharam o corpo e que, ainda por cima, tão suspeitando da neguinha anarco e dos Scarpa? – Você é tolo, JP – Miguel franziu o cenho. Era sempre apático daquela maneira. – Se vista que você tem que trabalhar. E Miguel saiu batendo a porta. – Avisa a Luci que eu quero almoçar com ela – gritou João Paulo sem obter resposta. O loiro fechou os olhos vislumbrando o sol do verão iluminar seu rosto corado. Apreciou cada memória da noite de um mês atrás: o ar quente e abafado daquela sexta numa van num ponto cego do Setor E. Iuri com Rodrigo e Fred ausentando-se por um tempo e voltando com o corpo desmaiado para o automóvel. A correria imprudente nas ruas da metrópole. As bebedeiras excessivas, os urros eufóricos e a comemoração dos skinheads em memória de seus ídolos. Horas depois, Nicolas despertou acorrentado às paredes e indefeso. Estava numa pocilga escura, inóspita e sinuosa de solo frio, às margens da Floresta Urbana no extremo norte da capital. Ele debateu-se, xingou e berrou solitário enquanto ratos e baratas avançavam sobre ele. João Paulo rememorou sua entrada triunfal no cativeiro, com Nicolas ávido e furioso tentando ataca-lo, se não 132


fossem as correntes. Cada tortura que cometeu: os socos-ingleses na boca do estômago, as pisadas brutas na genitália, os cuspes, os pontapés com sua bota de sola de ferro na cabeça do oponente e a única bebida que deu ao cativo durante as mais de quarenta horas de tortura: sua urina quente no rosto dele. Por fim, recordou seu ato final de crueldade naquilo tudo: o olho direito. A visão do anarcopunk sempre foi meio estrábica naquele olho mesmo, notou João Paulo, não deveria fazer muita falta… e levou o olho consigo enquanto Nicolas berrava, e gritava e implorava desesperado. João Paulo também já havia implorado. Implorado misericórdia, implorado pena, implorado para que eles parassem! Mas não o ouviram! Os malditos fizeram questão de leva-lo àquilo. Porque sim, ele foi obrigado… não foi? Ele só seria capaz de tamanha barbárie com pessoas que realmente merecessem aquilo! Olho por olho, dente por dente. Era a Lei de talião, não? Foi assim que lhe ensinaram. Era tudo uma mera questão de justiça. Um primo dos irmãos Vantine foi morto por um MIS anos antes, na época da Primeira Guerra das Gangues, com a boca de uma garrafa de vidro inserida no olho direito. Nada mais justo que o líder deles padecer do mesmo mal! Não importava que o anarquista implorasse e se humilhasse. Por que haveria ele de ouvir alguém tão execrável e desprezível como o rival numa hora daquelas? Arrancou seu glóbulo com prazer. Diante de, no mínimo, outros doze membros da Luta que assistiram indiferentes. E então, pisou em cima e cuspiu-lhe a face enquanto o prisioneiro urrava e berrava de dor com o rosto deformado e um pedaço de si mutilado. Não foi de se espantar quando, na única chance que teve, o insurgente avançou sobre Luci e a estrangulou com tanto ódio e tanta força que se não fosse pela agilidade de João Paulo, a vida da amante estaria perdida. 133


Suas memórias acabavam-se ali, na manhã chuvosa de domingo. Luci roxa, quase morta, no banco detrás de sua land rover, enquanto ele dirigia apavorado para longe rumo a algum hospital distante, onde Luci ficou internada algumas semanas. Voltou para a casa pela tarde. Miguel tinha deixado um bilhete bem claro afixado na geladeira: NÃO VOLTE LÁ. EU CUIDO DISSO. E quando acordou na atípica manhã de segunda-feira com ventos frios da tempestade invadindo pela janela, Miguel estava ante ele. – O sangue-ruim está morto. – Foi tudo o que ele disse. E partiu. O primogênito nada questionou. Era esse o método da MÓR desde o início de seus tempos. Cada um era responsável somente pelas ações que executava. Foi estranho participar de mais um homicídio que ele sequer soube quando ou como ocorreu, quem havia matado ou o que aconteceu em seguida. Foi uma lástima Nicolas ter morrido sem ser pelas mãos dele ou de Wagner – seu outro primo alinhado à Luta –, mas, de qualquer modo, era um alívio tê-lo morto. Toques de telefone. Ruídos de impressora. Teclados sempre ativos. Em suas roupas sociais que escondia as tatuagens, bem vestido e afeiçoado, cabelo hidratado e penteado para o lado (o rapaz odiava isso), João Paulo tornava à mesa de trabalho com um copo d’água pela metade. Tinha o ardor do sol batendo no rosto em contraste com as lufadas de ar gelado do ambiente. Prestava dignamente seu serviço numa agência de contabilidade para garantir o cheque na conta no início do mês. Embora desnecessário para ele, era um salário elevado para uma empresa na região limítrofe dos Setores B e C.

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A maioria dos funcionários habitava o C e o D e lidar com as classes média-baixa era a pior parte do serviço. Não que João Paulo os detestasse ou tivesse preconceito como o irmão, longe disso. Apenas que, para ele, pobreza fedia a excremento, mesmo por trás dos perfumes baratos. Lidar com esse tipo de gente piorava ainda mais quando se somava outros fatores além da pobreza, que, em ordem crescente de nojo e repugnância eram tais como: pele mais escura, ativismo feminista, imigração, homossexualidade, daí para outros. Contudo, sabia fingir lidar com as poucas pessoas nesses quesitos que encontrava à sua volta com apatia e uma falsa cordialidade. Os chefes, que praticamente monopolizavam esse ramo no estado, tornando a CSA Contadores referência no país, eram ricos. Muito ricos. E assim como ele, também moravam no B. Mas comparado à mansão dos irmãos Vantine, seus sobrados eram casebres periféricos de Setor D. Isso se devia ao fato que João Paulo e Miguel eram os herdeiros de uma das maiores fortunas da PréReforma. Todo mês dinheiro mais que suficiente para a subsistência e manutenção do padrão de vida caía nas mãos dos Vantine que ainda viviam. Nenhum deles precisava de emprego, tanto que metades dos salários iam a prol da Luta e da ampliação da MÓR e a outra metade quase sempre ficava ociosa. Mas era um álibi útil de uma vida normal e insuspeita. E era relaxante para João Paulo, aquele trabalho mecânico feito atrás de uma bancada num escritório. Beirava uma terapia. – João Paulo – chamou Nice, ou Alice, ou Berenice, ou algo do gênero. Não importava. Era uma colega que estava parada a sua frente. Uma negra de cabelo crespo e olhos escuros. Dócil, bem vestida e atraente na bela roupa social que sempre trajava. – Tem como transferir de novo aquele arquivo dos Correia pra mim? É que tá difícil de encontrar aqui.

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– É claro – ofereceu um falso sorriso cordial. Desejou que seu amado tio que queimava no inferno não lesse mentes, mas ela era atraente… transaria com ela sem hesitar, caso a moça investisse nele. Mas então, por um segundo, lembrava as razões pelas quais era melhor manter-se distante daquela gente. E voltava a mente ao nada, exercendo a entusiasmante função de bater num teclado um dia inteiro. O sol acabara de se por quando João Paulo saíra do banho, enrolado numa toalha. O encontro dos membros da Tribo seria em meia hora no Parque do Ibirapuera. A roupa com a qual iria estava posta em cima da cama: um jeans claro com rasgos nos joelhos, uma blusa preta da banda Warfare 88 e a bota com sola de ferro que tinha usado para pisotear Nicolas, um mês atrás. O loiro admirava-se ao espelho. Encarava o corpo másculo e esculpido em tatuagens, como a águia que tinha na costela, a suástica acima das nádegas e o dragão laranja furioso nas costas. Assim como os quatro piercings espalhados pelo corpo: nos mamilos, no septo e na língua, que mostrava para si mesmo em tom de descontração. – JP, meu quarto – ouviu de Miguel em sua suíte. – Agora. João Paulo locomoveu-se pelo corredor até bater à porta aberta do quarto do irmão, que também acabara de deixar o banho. Despido, Miguel se encarava ao espelho, vendo o irmão através dele, para retirar as lentes de contato. Diferente do mais velho, ele possuía certo tabu acerca das roupas. Vê-lo desnudo não era muito habitual. Então, supunha o loiro, se o chamara naquele estado para contar-lhe algo, deveria ser, no mínimo, relevante. 136


– O que foi? – O Correio falou com uns informantes da polícia hoje. Sobre o anarco. Não se falou de outro merda naquela droga de redação. – E…? – Os Scarpa estão fodidos. – Deu um risinho sádico. – Sabe o Lúcio? – Fez uma pausa, e arrematou. – Então… o velho tem câncer. Terminal, JP. Lúcio Scarpa está morrendo. Um sorriso alegre contornou-se nos lábios dele. O caos já estava armado. Agora o Consórcio iria queimar. Os anarquistas iriam queimar. E os filhos da Luta iriam ascender. – Agora saia. Eu preciso me trocar – comandou com um gesto rude de cabeça em direção à porta entreaberta. Sem as lentes de contato, os olhos redondos de cor caramelo fixaram-se nos seus com autoridade. João Paulo deixou Miguel para que ele vestisse a roupa sobre sua cama: um jeans surrado e a velha blusa de linho branco com capuz. Havia pingos de sangue esguichado na peça. E mesmo assim, nos trajes sombrios, o skinhead alvo, de feição cadavérica, passava-lhe apenas uma visão: a de um líder, um algoz e um carniceiro. Ele não nasceu pra liderar. Ele nasceu para matar, pensou João Paulo. E na escuridão do corredor, parado à porta de seu quarto, o loiro intuía não estar sozinho em tal conclusão…

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5 NICOLAS ESTAVA MORTO. Um detetive informou-lhe pessoalmente ao fim da tarde. Dalila chorou de fúria até dormir. Gritou, berrou, chorou por sua dor, pela dor dele, por sua tristeza. Não impediu as lágrimas dessa vez e elas correram como um rio transbordando em descontrole. Encolheu-se em sua cama, em seu quarto escuro, infiltrado e umedecido. Adormeceu imersa em desolação já com o cantar dos galos e o raiar do dia. Seu sono começou com um sonho calmo e nostálgico. Eram ela e ele, e ambos contra um mundo. Um casal jovem contemplando a brisa fresca da madrugada a olhar para as estrelas no céu sem nuvens. Beijos apaixonados, carícias íntimas e profundas. O perfume era real em sua narina: cítrico, excitante e atraente. Ela fechou os olhos, beijada pela luz fria do luar cheio, com os lábios dele tocando os seus, e deu-se conta que o amava. Ela amou-o naquele momento. Ela amou-o o tempo inteiro. Porém quando abriu os olhos novamente, o sonho era um pesadelo assombroso. Ela estava em sua pele. E ela fugia pela mata escura e tempestuosa. Ferida, caçada, acuada como uma besta. De repente ouviu um tiro, ouviu dois e seguiu correndo. Uma bala atravessou-lhe o joelho, ela escutou dos policiais, a fez tombar e rolar pelo solo. Uma sombra maquiavélica aproximava-se. A respiração ofegante, o pavor exorbitante e o medo… Dália! Dani! Nico! Mãe! A mente a lembrava em desespero: as pessoas que ela amava e que nunca mais veria. A sombra surgiu por entre os arbustos. Tinha um revólver calibre 38 em sua mão, cujo tambor girava após um ágil impulso dos dedos. Um ruivo alto de olhos escuros e com as laterais da cabeça raspada. Um corpo forte de trejeito bruto e horripilante.

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Era ele. Estava ali e a havia alcançado. Pôs a arma em sua testa, olhou-a bem no fundo dos olhos e ameaçou: – Eu também vou encontra-la, Dalilinha. Não adianta mais correr. Após, seu velho conhecido engatilhou a arma e quando foi apertar o gatilho… Dalila acordou num berro. O sol forte da manhã quente em seu rosto. O suor frio pingando as roupas. Desespero. Ela tremia dos pés a cabeça em aflição. Acordou com as mesmas lágrimas com as quais dormiu, chorando alto e soluçando. Tremia. Por Nicolas, por ela, por todos eles. A porta abriu-se num empurrão. Fátima entrou em disparada e avançou para a cama para acudi-la. Abraçou-lhe forte, apertando o rosto da filha contra seu peito. A mulher guerreira de meia-idade impassível, destemida e inabalável. – Eu vi, mãe! – ela exclamou quase aos berros. – Eu vi! Foi ele! Foi ele de novo! Ele matou o Nico, mãe! Ele! – afastou-se para olhá-la nos olhos. Perdia a fala em meios aos soluços. – Ele apontou a arma pra mim e… – Shhh! Calma. Eu tô aqui, eu tô aqui. Foi só um pesadelo. – Abraçou-a novamente. – Vai ficar tudo bem, OK? Você é forte, Dalila. Eu tô aqui… – Ele matou o Nico, mãe! E ele disse… e ele disse que ele vinha… ele vinha atrás de n… – Dalila, para! – a mãe interrompeu com os olhos marejados. – Isso é impossível, você sabe disso. Foi só um pesadelo. São traumas muito fortes, eu te entendo. Eu tô aqui pra você. Ninguém vai te fazer mal. Eu te garanto. Ninguém. A garotinha negra com cachinhos batendo nos ombros estava à porta, um tanto alarmada. Mais de quatro anos de idade e a

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menina dócil e inteligente parecia ter crescido num estralar de dedos. Seria uma garota destemida e indolente como a mãe ou enfrentaria as dores que a matariam por dentro? Difícil supor… mas, naquele momento, Dalila olhou-a fascinada. Tudo o que desejava era saltar daquela cama e abraçar a mais nova como nunca. Apertar-lhe contra o peito e chorar sobre seus ombros. Mas não podia. Não tinha forças para isso e sentia que era melhor assim. – Mãe… Dali? – ela pôs o rostinho para dentro, fitando-as pela porta. Aguardou um aceno de Fátima e adentrou no quarto. – Por que cê tá chorando, Dali? – perguntou com os olhinhos chocolate cintilando umedecidos. Um nó a enforcava. Mantinha as lágrimas paralisadas em suas pálpebras. – Não foi nada, Dália – interveio Fátima. – Só um sonho ruim. – É sobre o tio Nico? Como nunca, Dalila quis desabar naquele instante. Como dizer para ela que o tio Nico jamais voltaria? Como explicar a uma criança que machucaram alguém que ela amava de um modo que curativo algum consertaria? Palavras… eram rudes e dolentes como uma faca retorcendo a garganta. – O tio Nico… – começou Dalila, interrompida pelo choro. – O tio Nico ele tá… ele foi machucado, Dália. – Os olhos inchados encaravam a pequenina. O rosto exausto, pesaroso e sofrido. – Quando eu vou poder ver ele? – Ele está bem machucado, meu anjo. Fátima observava o dialogo com atenção. Compadecida e comovida. 140


– Ele vai passar um tempo fora, assim como o Dani? – Não… não como o Dani – secou as lágrimas com o dorso. Respirou fundo: uma inspiração rasa e entrecortada pelos soluços. – O tio Nico vai passar o pra sempre fora, Dália. Antes que chorasse uma vez mais, Dalila levantou. Foi até a janela onde a luminosidade matinal nada lembrava as tormentas dos últimos dias. Os raios de sol refletiam em seu rosto triste. O choro contido era uma bolha em sua garganta. Dália aproximou-se em passos curtos. – Eu posso… eu posso te dar um abraço, mana? Dalila virou-se para ela e lhe abraçou com toda a força. Não resistiu: desabou inconsolável em seus braços sentindo o corpo frágil aplacar sua dor. E então Fátima juntou-se àquele abraço. E juntas, naquele cômodo apertado, sob a luz solar de um novo dia, as três choraram. A menina, a jovem, a experiente. Três mulheres fortes. Uma, a intuição do sofrimento da outra. Uma, a extensão da dor da outra. Os bulevares da Selva Luminosa, mesmo durante a tarde, eram a visão do paraíso. O sol vivificava a tarde agitada. Os termômetros ultrapassavam os 35º, mas os altos dos prédios e construções esguichavam um ar gelado. As árvores floridas e grandiosas os protegiam da insolação e a avenida conciliava com esplendor os prédios grandes e iluminados e o verde vivo dos cedros altos. De regata preta decotada, calça jeans rasgada e pulseiras nos pulsos, Dalila saltou, após algumas horas, na estação final do Setor B – limite com o C – para, mais uma vez, enfrentar o indigesto

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martírio de lidar com o Del. Alvarenga. Na ocasião, acompanhavalhe Elias, que também fora intimado a depor. Era uma caminhada breve entre o ponto de ônibus onde saltaram até a Divisão Paulistana de Homicídios, um prédio discreto entre arranha-céus estonteantes no bairro de Campo Belo. Dalila apertava os passos. O olhar evasivo, a feição indolente, atrevida e indiferente. Elias caminhava mais devagar. Era um branco bronzeado, másculo e alto, tinha o cabelo preto arrepiado com as laterais raspadas e blusa escura, com correntes pratas e um jeans surrado. Se não fossem as roupas, o andar, o cabelo, o encarar com fascínio do mundo desconhecido, e a expressão de quem não trabalhava em escritório, poderia muito bem ser confundido com qualquer outro habitante do local. Mas não era esse o caso. E diferente de Dalila, aborrecia-o ser referência na multidão. Ser foco de olhares, comentários e repulsa da classe alta. – Olham pra nós como se fossemos aliens – queixou-se cabisbaixo. – Somos piores do que isso por aqui. Somos pobres, favelados, anarquistas, e, aliás, eu sou negra. O povo do A e do B só vê gente assim por aqui pra colher o lixo, rebolar em bordéis ou desfilar em camburões da polícia. – Eu diria que estamos mais perto da terceira opção – descontraiu, já vendo a delegacia ao alcance da vista. A dupla estava a metros da construção de fachada amarelo-ouro quando os telões expostos na avenida, entre as futilidades exibidas, expunham agora um rosto conhecido: Nicolas. “POLÍCIA INVESTIGA MORTE DE ANARQUISTA DO SETOR E” era a legenda na parte inferior. Uma foto jovial e atraente. Nico sorria nela. E ao redor da dupla, os habitantes do B sorriam também: aos

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celulares, em conversas com amigos, olhando em despeito aos jovens, afrouxando as gravatas, ignorando os visores. Sorrisos vitoriosos. Trunfos que o rapaz não viveu para provar. Havia um zumbido no ar inquietante do verão. Uma música antiga que tocava nos alto-falantes e que desde a infância Dalila cantarolava. Era uma ironia exacerbada: Glory and gore ressoava na avenida enquanto a manchete do morto era um enfeite mudo nos telões. A dupla pôs os pés na delegacia. Era o ápice da música. As fotos idênticas cintilavam nos visores. E com os olhos vazios e a repulsa no tom da voz, Dalila juntou-se ao coro da multidão. Glória e carnificina andam de mãos dadas É por isso que estamos nas manchetes Lado a lado, olhavam em silêncio uma cadeira vazia à frente deles. Quando a porta se abriu, o delegado entrou junto de outro policial. Um jovem loiro de vestes engomadas, cabelo repartido e com a expressão de um bárbaro insolente. Ele encostou a porta e foi para o canto da sala enquanto o delegado sentou-se a frente dos jovens. Rabelo apertou um botão verde sobre a mesa e as três câmeras posicionadas para gravar o depoimento acenderam-se. – Então vocês dispensam mesmo advogado, né? – iniciou o delegado. – Não precisamos – reafirmou Dalila. O rosto apático e impenetrável. – Apesar das tentativas de nos culpar, nós não somos assassinos. – Bem, afirmar isso caberá a um juiz, não é mesmo? – riu e buscou a aprovação do loiro, que também ria. Dalila mordeu o lábio

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inferior irada, e, abaixo do alcance das câmeras, cerrou o punho com força. – Elano… – Elias. É Elias, seu delegado. – Ah sim… Elias retome seus passos na sexta-feira, 27 de janeiro, ao longo de todo o dia, quando seu amigo desapareceu. – Bem… eu fui trabalhar e cumpri o expediente, até às sete da noite em ponto, numa distribuidora de gás no D. Depois do trampo, tinha um baile ao ar livre de noite, geral ia colar lá, eu fui. – E o Nicolas? Você afirmou que o viu, né? O Iuri também tava lá? Eu soube que você tem diferenças com esse sujeito, aliás. Ciúmes do amigo, talvez? – Isso não é sobre ciúmes, seu delegado. Apenas não vou com a cara dele – pontuou lacônico. – E falando nisso, por acaso ele já depôs? O senhor já averiguou se a mamãezinha dele ficou mesmo doente do nada ou se ele só matou o Nico e deu o fora pra sujar a nossa barra? – Se exaltou, erguendo a voz. Elias, não… pensou Dalila. Ela olhou-o profundamente, em negativa, pondo sua mão sobre a mão dele. Elias tornou o olhar a ela e meneou a cabeça. – OK, desculpem. Perdão. – Respirou fundo. – Bem, como eu ia dizendo, os dois estavam lá. Eu e o Nico conversamos, bebemos juntos boa parte da festa. Tinha muita gente, quase todos os nossos amigos foram pro baile. – Situação perfeita pra emboscar um pobre diabo, não acha o mesmo Célio? – Rabelo voltou-se ao parceiro. Um risinho sonso nos lábios. – Acho suspeito, seu Alvarenga. Mas enfim, Elias, você afirmou em seu depoimento anterior que viu o falecido com Dalila naquela 144


festa. E em certo ponto da festa, ela sumiu. Um tempo depois, ele também sumiu. A diferença é que um apareceu morto, recoberto por lama, e outro está aqui… nessa sala. – Eu vi que ambos conversaram. Algo demais nisso? – Mas você foi mais além… – provocou o Del. Alvarenga. – Disse até que eles se beijaram durante a festa! Procede isso, Dalila? Mas vocês não tinham terminado há tempos? – Procede – indagou entre os dentes. Deu uma olhada fuzilante para o amigo que murmurou um pedido de desculpa quase inaudível. As câmeras viram isso, otário, quis dizer, porém conteve-se. – Nossa relação era… um tanto quanto cíclica. Nós ficamos algumas vezes após o término. Mantivemos uma amizade. – Mas vocês viviam que nem cão e gato! Você mesma confirmou isso. Tudo bem, Dalila realmente estava estressada. E o olhar raso com o tom jocoso do delegado, somado ao silêncio sepulcral daquela sala apenas sobressaltavam sua ira explícita. Suspirou. Um rompante aqui não vai ajudar-me. – Eu o amava, delegado. Sempre o amei. Nós terminamos porque não demos certo juntos, porque tivemos diferenças que importaram entre nós. Mas o senhor não tem noção das coisas que fizemos um pelo outro. O senhor não tem noção de quantas e quantas noites ele bateu na minha porta de madrugada pra chorar pitangas nos meus ombros porque tava mal! O senhor não pode imaginar quantas vezes eu o procurei desesperada, acuada e apavorada porque não tinha ninguém mais que eu quisesse ali pra mim além dele! – Sua voz estava embargada. As lágrimas continham-se em seus olhos. Manter-se-ia forte. Não iria desabar. Não ali! Não diante ele. – Nós namoramos, terminamos, e 145


tínhamos uma relação conturbada algumas vezes sim! E sim, seu delegado: estávamos altos, estávamos alegres e amigáveis naquela merda de festa maldita e ele me beijou aquela noite. E eu adorei aquilo. Mas eu não poderia estar cometendo um crime passional ou seja lá a merda que o senhor quer insinuar pra salvar o cu do CEN porque eu tava ocupada demais fodendo uma morena num banheiro químico! Pra qualquer coisa que o senhor tenha a dizer eu não tenho mais nada a declarar e eu nem sei por que tô aqui. Levantou-se da cadeira com estrépito. Empurrou-a e caminhou para a porta. Célio, de braços cruzados, encostado à parede, interferiu. – Vá, mas saiba que voltará. – Ameaçou ríspido e com o semblante sério. – Você é nossa principal suspeita e sabe que está à nossa mercê. Você voltará aqui quando e quantas vezes nós quisermos. E se mantiver essa insolência típica do seu povo pobre e mal educado, você vai voltar sim, só que não vai sair mais daqui sem ser com um par de algemas. Ela parou. A mão hesitava tremula, à maçaneta. O ódio no olhar felino e nos punhos cerrados, os dentes rangiam de raiva. “Não faz merda, Dalila. Não faz merda” ela podia escutar Elias sussurrar em forma de um mantra, mentalmente. – Vá em paz, Dalila. – Disse o Del. Alvarenga. Ela não viu, mas, pelo tom, assegurou que um risinho jocoso desenhou-se no rosto dele. – Por enquanto. Ela saiu e seus passos dali para fora foram um ciclone destruindo tudo. O caminho foi extenso entre a sala e a saída, que não ocorreu antes de passar rente a uma jovem de roupas pretas coureadas, extremamente justas, cabelo preto curto e a pele branca como o leite. Pouca coisa devia ser mais velha que Dalila e,

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debruçada sobre o balcão, dizia com uma vozinha irritante e sensualizada: – Scorza. Meu nome é Luci Scorza. Trabalhei com o Nicolau Brandão alguns meses no Consórcio. Me chamaram pra depor. Instintivamente, ela virou para o balcão. No exato instante, a desconhecida virou também. Os rostos se cruzaram. Os olhos dela eram de um azul álgido e mordaz. Um veneno sedutor. E pousavam sobre a moça naquela ânsia de um bote ávido, uma rasteira impiedosa… O carro enferrujado de duas portas (a única herança do avô de Clara e Elias) funcionava apenas na base de impulsos. Desprovido de qualquer função tecnológica, era um modelo repugnante até para os padrões dos anos 2020. Muito lhe custava atravessar vagaroso a trilha íngreme e deserta entre a saída de uma estrada no E – Extremo Leste até a Prof. S. do Prado, onde alguns outros além do trio os aguardavam reunidos. Diferente do combinado, Dalila não aguardou Elias na estação do Setor C. Quando chegou a sua casa, encontrou Clara conversando com Fátima, descontraída. Não apreciou vê-la ali, no estado em que chegou, e isso logo ficou bem nítido. Após um tempo, Elias bateu à porta e os três partiram juntos num silêncio lúgubre e desconfortante. O rapaz dirigiria agora. – Você viu a tal de Luci quando saiu? – Questionou Dalila. – Sim. O Nico já tinha te falado dela? – Não, nunca. E eu presumo que pra você também não. – Exato. Achei ela estranha. Não sei dizer…

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– Ninguém vai arregar, né? – Atrapalhou Clara, pondo a cabeça entre os bancos dianteiros. – Vai geral mesmo pra frente do Consórcio? – Vai. A partir de agora eu termino o que Dante Oliveira e meu pai começaram. E eu não vou descansar enquanto esse império de homicidas não cair. – Essa é a Dalila que o Nico teria orgulho! A Primeira franziu o cenho. A loira recuou para o encosto do banco com a típica cara de quem reconhece um deslize grave. Após segundos, Elias puxou a marcha do veículo e abriu a porta. – Chegamos. Duas silhuetas brotaram da escuridão da biblioteca. Quando chegaram mais perto, Dalila atinou que eram Jéssica e Mayara carregando um caixão de madeira. Ouviu o porta-malas abrir e fechar. Após um tempo, ela olhou-se ao retrovisor e sentiu-se preparada. Faltava apenas o retoque final. E Elias trouxe isso consigo quando voltou da construção chamuscada: uma máscara branca cadavérica com capuz preto. Jéssica e Mayara juntaram-se a Clara nos bancos traseiros e logo o automóvel realizava o caminho inverso cortando a estrada num trajeto longo rumo ao centro. Sobre eles, o céu até então límpido e azulado assumia um tom cinzento. As nuvens chegavam e ameaçavam: haverá chuva na noite em que a MIS chorará seu morto. E o CEN, sua futura derrocada que, pelas previsões do Movimento, começava naquele encontro que ocorria no Vale do Anhangabaú. Reuniram-se, sem exceção, todos os cento e treze membros para o cortejo simbólico de Nicolas, literalmente à porta do Consórcio, para onde o grupo marchava ao som uníssono de palavras de ordem. 148


Vestidos em negro, todos rodeavam o caixão coberto pela bandeira anarquista que Dalila, Emerson e Elias carregavam em uma ponta e Jéssica, Mayara e Luísa carregavam na outra – Luísa, aliás, a última namorada de Nico, que votara em Emerson no encontro de sábado aos gritos céticos de que o morto voltaria. Todos os seis usavam as máscaras brancas que remetiam a uma caveira. O rosto dos outros cento e sete membros tinham sombras pretas ou roxas nos olhos, o andar lento e cabisbaixo. Portavam velas pretas em castiçais de vidro ao longo da marcha. No trajeto entre o Vale e a “nova” sede do Consórcio (um edifício espelhado, próximo ao centenário Altino Arantes), entre os berros e gritos de ordem, as memórias e odes ao morto, os nomes das outras baixas fatais da Causa. De Omar Silveira, o primeiro Membro Externo infiltrado no CENSP, assassinado num caso escuso, até Nicolas Martins; passando por Caio Macedo e Ricardo Oliveira, Maria Regina, Olivia Ferreira e Sandro Vilela; o nome de um por um dos mortos nas mãos do conglomerado era citado por alguém e ecoado por todos. Acompanhado pela mídia e por alguns militares à distância, a caminhada transcorria pacífica. Viaturas os seguiam sem intervir, mas Dalila sabia, o olhar de Emerson – raso e inquieto –, que não parava de encará-la, mostrava que ele também sabia: tão logo tocassem os pés na fachada do CEN, a complacência policial iria às favas. “A Causa, unida, jamais será vencida!”, cantaram à exaustão ao longo do caminho. “Consórcio, homicida, o fim é sua sina!”, Mayara puxou esse no mesmo tom. Atravessavam a R. João Brícola quando as sirenes alertaram perigo em sua dança fantasmagórica sobre os vidros de arranha-céus. Cessaram-se os cânticos, os berros e os nomes. Estavam à frente do edifício sede do CENSP, uma construção relativamente alta, 149


moderna e espelhada, com a bandeira do Estado hasteada no topo e o brasão paulista reluzente na entrada. Um cordão policial formava-se ao redor do prédio, irredutível. Viaturas da polícia fechavam a rua em um dos lados. A tropa de choque estava a postos, em posição para um confronto. Dalila não recuaria. Jamais os temeria. – Desse ponto vocês não passam – Soou uma voz grave sobre os cinco degraus que levavam à porta do Consórcio. Dali, a jovem a ouvira baixinho, entretanto, ainda explicita o bastante. – Liberem a rua ou retomem a passeata. – Ah, mas nós passamos sim! – garantiu Emerson, cerrando o punho e rangendo os dentes. O branco altíssimo de porte esguio ensaiou avançar um passo, mas Elias interveio pondo a mão sobre seu tórax. – Nem pense nisso. Não ainda. – E então, Dalila? – Luísa apelou para a líder. – Qual vai ser? Ela hesitou. No silêncio da multidão de uma centena, o ruído da ventania. O prenúncio da tempestade. As nuvens cinza apertavam-se no céu. – Abram espaço. – Ela agachou o caixão no solo. A líder puxou a bandeira alvinegra expondo as pedras que preenchiam o caixão e antes mesmo que desse um passo, seu caminho se abriu em duas filas como o Mar Vermelho para Moisés. Seguiram-na Emerson e Elias. Emerson, sempre intrusivo e caçando confusão. Outrora quase rival interno, no exato momento… um aliado útil e bom de briga, pensava ela, mas ainda assim, lembrava perfeitamente quão ávido era o jovem para liderar a Causa.

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O trio aproximava-se da escadaria, onde o cordão de isolamento permanecia intocável. Liderando o cordão, um comandante intransigente, de olhos verdes e cabelo grisalho sob o quepe cinzento. Os mascarados pararam encarando ele. – Mande o grupinho dispersar ou haverá conflito – condicionou destilando desprezo. Dalila deu um passo em direção à escadaria. Silêncio absoluto. Os policiais posicionaram-se para o revide. – O senhor não pode nos proibir de passar. – Pela última vez, mande seu grupo se afastar ou haverá… – Eu escolho conflito – vociferou Emerson. Uma das mãos escondida atrás do corpo. – Em nome dos nossos! Em nome do Nico! Em nome da Causa e do povo por qual lutamos! – Berrou exaltado. – Nós escolhemos conflito! – A Causa, unida, jamais será vencida! – começaram os ecos agitados. – Todo poder ao povo! – Gritou Dalila cessando o jargão da Causa e voltando-se aos seus, erguendo o punho. Todos ressoaram. – Abaixo os fantoches do Estado! Abaixo um Estado à mercê de homicidas e ladrões! Não podemos mais tolerar! Um governo omisso, que se curva a uma corja de assassinos engravatados! Instituições desprezíveis que enjaulam pobres feito animais e resguardam os interesses da oligarquia Scarpa e associados! Por Nicolas Martins, por Sandro Vilela e todos os outros, não podemos mais tolerar! – Virou-se para eles novamente, o dedo em riste em afronta ao comandante. – Nicolas Martins! Guardem esse nome, pois sua morte não foi em vão! É pro grupo se afastar ou haverá conflito!? Pois saiba que nós já escolhemos o conflito! Que nossos mortos já escolheram o conflito. E que não vamos parar 151


até o conflito os derrubar. Consórcio, homicida, o fim é sua sina! Consórcio, homicida… – e o eco voltava a toda. Os punhos erguidos para o alto com as velas negras. – Eu mandei se afastar! – Gritou o comandante da operação. Um empurrão brusco jogou Dalila do primeiro degrau da escadaria. A moça desiquilibrou-se e quase caiu. – Pela anarquia! – bradou Emerson puxando a primeira pedra. De repente, os policiais viram-se agachando com torrentes de pedras e castiçais arremessados contra o prédio. Vidro contra vidro. Pedra contra vidro. Cento e treze pessoas atentavam com objetos contra as portas do Consórcio. A reação foi imediata: balas de borracha, bombas de efeito moral, cassetetes impiedosos aos que próximos estavam do cordão de isolamento e tentavam ultrapassá-lo. Pedras, velas, tijolos e castiçais. Tudo contra o CEN. O caixão de madeira no centro da rua subitamente ardia em chamas. Dalila sacudia a bandeira anarquista de um lado a outro relutando contra o cordão. A mídia corria em fuga do centro do caos com as câmeras ligadas e narrações nos microfones. As pedras caiam, os berros aumentavam. A pancadaria iniciava. Uma bomba de efeito moral caiu perto da Primeira Membra. Ela não dispersou a tempo e a fumaça irritou suas vias. A moça corria zonza, um tanto alheia à confusão que iniciara enquanto um cabo avançava para agredi-la com o cassetete. Mesmo tonta, conseguiu acertar de primeira o cotovelo na boca dele. O militar investiu novamente, mas Jéssica o derrubou com um empurrão. Puxou a amiga pelo braço e correram ambas exasperadas. A Tropa de Choque vinha por todos os cantos. A ofensiva era brutal. As pedras já se esgotavam, mas a vidraça não resistiu às investidas extremas, e explodiu atrás do cordão. 152


Um campo de batalha formava-se ao redor da anarquista. A visão dançava junto com o corpo que vacilava em ziguezague. Apoiava-se na amiga quando olhou para sua esquerda: um policial embatia-se com Douglas (um antigo colega da Causa) quando, sem que o jovem visse, correu a mão para a pistola afixada no coldre. Não é uma arma de choque, tampouco de borracha, daquilo teve certeza. Antes de qualquer reflexo desesperado, ela virou o olhar à direita: uma mão masculina, em meio a tantas, cravara um canivete na coxa de um militar. Um grito sobressaiu com eco alto e o corpo caiu enrijecido. Havia sangue escorrendo no solo. Dalila desvencilhou-se de Jéssica. Correu zonza para o rapaz que relutava com o militar armado e caiu com ele no chão, quando pulou em sua frente para enfrentar o policial. Ambos desataram a correr tão logo ele sacou a arma e efetuou tiros ao alto, descarregando o pente em disparos a esmo. Mais bombas explodiram e havia sons se embaraçando entre si: os gritos, os tiros, as bombas, os trovões; o militar ferido se arrastando pelos degraus e a centena em dispersão apavorada. O confronto foi severo. Escorreu sangue às portas do abatedouro.

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6 – DIGA-ME A VERDADE – pediu Ruby, imóvel e emotivo segurando a maçaneta. – Diga-me, eu preciso saber. Você fez algo àquele garoto, tio? Você mandou matá-lo? O azul claro de seus olhos era agora um mar recôndito. Lúcio sentava-se à cadeira, com um pano branco sujo de sangue em suas mãos e o rosto voltado a uma lareira, onde papeis quaisquer se tornavam cinzas. Entre uma tossida e outra, um olhar pedante. Uma visão inerte a desbravar o escritório calmo. Ruby fechou a porta e aproximou-se. – Há sangue na entrada do Consórcio. Há pessoas que estão se ferindo… – a voz de Ruby divagava, entrecortada pelo nó atroz em sua garganta que o fazia querer chorar. – E eu não sei o que fazer. Com quem falar ou o que dizer. Nossos colegas nos ligam, perguntam do seu estado, tio. Mas não se importam. Não se importam como eu me importo – completou, indicando uma pausa. – Meu próprio filho já não me olha mais nos olhos. O senhor ouviu ontem, não? – Não, estava dormindo – Lúcio por fim pronunciou-se após horas de um silêncio atroz e sepulcral. – Como estive por dias e dias a fio, sedado como um animal sem que você me visitasse. – Eu soquei a cara dele. Ele voltou bêbado pra casa, chamando a gente de assassinos. Disse que tinha nojo, que tinha vergonha de ser filho de um… de um homicida. Foi disso que ele me chamou sendo que eu nunca encostei num revólver. Ele pôs o dedo na minha cara, ele disse que me abominava. Eu soquei a cara dele e assim eu o calei. E então todos calaram juntos, mas minha mente continuava gritando. – Ruby chorava, apertando firme o couro de uma cadeira. – Somos mesmo assassinos, tio? Merecemos esse nojo? Apenas diga-me a verdade: o senhor fez algo àquele garoto? 154


Lúcio tossiu. Inclinou a cabeça forçando o ar para inspirar. Arfava muito e o som árduo de sua respiração arrepiava a nuca de Ruby. O velho Scarpa tossiu novamente, e mesmo estando de costas para o sobrinho, este viu gotas vermelhas umedecerem a flanela branca. – Eu deixarei o senhor em paz – afirmou. Encaminhou-se à saída com uma réstia de esperança, quando o tio o chamou de volta. – Eu não me lembro – revelou. Ruby estava imóvel. Ao virar-se novamente, viu que Lúcio estava em pé, o corpo torto e encurvado apoiando a mão sobre a mesa envernizada. – E se eu te dissesse que essa merda de doença afeta até a minha memória? Eu não lembro o rosto de meu pai sem olhar para uma foto. Eu não lembro a data em que enterrei meu irmãozinho – e começou a chorar. Um choro sentido, sofrido e interrompido por risos tristes. Mais de trinta e incontáveis anos de convivência, ele o conhecia desde suas mais tenras memórias e Lúcio nunca chorara ante ele. Nem no velório do irmão ou falando sobre os pais mortos. Nunca. Lúcio Scarpa é uma rocha. E seu coração esculpido em gelo, pensava Ruby. – Você sente o cheiro da morte, Ruby? – Não. – A morte fede a um corpo em putrefação. Começa com um odor leve: uma brisa fétida mesclada ao ar fresco. E ele cresce, ele cresce e ele cresce dentro de mim até beirar o insuportável. E esse cheiro se aproxima como se fosse me alcançar. Como se fosse me possuir e me arrastar pra um buraco fundo. E não há nada que eu possa fazer além de sentir. O cheiro da morte. O cheiro do sangue, dos remédios e da minha carne, que dia após dia apodrece e enruga mais. E esse é o único cheiro que sinto… e isso dói. A morte dói. A solidão dói, meu sobrinho. – Por fim, concluiu entre lágrimas, fitando-o francamente. – E a culpa… a culpa mata.

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O jantar foi servido às dez. Uma ocasião lúgubre e monótona. Das cinco cadeiras à mesa, a única vazia se ocupava com a forma vaga e inconstante do silêncio. Facas batiam nos pratos, verduras eram pegas pelos garfos e enquanto a família evitava qualquer contato visual, a refeição saía indigesta. – Não vai partilhar as novidades conosco, Thomas? – Carmen provocou saboreando uma taça de vinho. Era a única faminta à mesa, e a julgar por seu apetite, Ruby conhecia: ela fumou bastante hoje. – É… claramente vocês preferem causar surpresa – indagou quando todos preservaram o silêncio. – Surpresa! Nossa amada Chiarinha vem passar um tempo em Sampa! Ruby largou o garfo com estrépito no prato. Amava a filha mais nova, mas, por vezes, sua estima pela discórdia o desgostava. – Isso é verdade, Thomas? – perguntou Amy. – Ela não vai ficar aqui – respondeu ríspido. – Só sei disso. – Nem pra extrair informação da sua namorada você presta? – sussurrou a loira, fitada pela mãe com censura. – Tem certeza? – Amy perguntou apaziguadora. – Tenho – e enfiou um garfo de brócolis na boca. Ruby intrometeu-se rispidamente. – É bom mesmo que tenha – e jogou o guardanapo sobre a mesa, deixando o prato pela metade. Murmúrios foram ditos após sua saída, ele os ouviu enquanto foise ao corredor. Thomas chiava, Carmen pedia mais vinho e Amy

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reclamava. Bastou ele deixa-los e as bocas se abriram, discussões iniciaram e a família “Scarpa” reviveu novamente. Incomodava-o sentir-se assim, mas desde a doença de Lúcio, Ruby estranhava o próprio lar. A não ser aquele canto: o teto do solar onde soprava brisa quente. As luzes refletiam em seu rosto; pareciam coser-lhe a pele. Naquela paz e calmaria, recordou a noite anterior. Entrou no quarto do tio ela primeira vez, desde que o cômodo foi adaptado para home care. Nas prateleiras onde outrora houvera livros, apenas remédios. Sobre o exemplar de Admirável mundo novo no criado-mudo, alguns lenços brancos com muco e gotas de sangue. Lúcio já não dormia: agonizava e contorcia-se de dor nos ossos e no corpo por horas a fio, sem morfina que rendesse. Na manhã de terça-feira toda a mídia reportara: LÚCIO SCARPA ESTÁ MORRENDO. Isso e a manifestação que terminou com doze presos ou feridos – acusando o CEN de homicídio – alvoroçaram a imprensa nacional. Seu tio estava morrendo. O país sabia disso, mas em sua própria casa, com metros separando um do outro, Ruby mantinha-se inerte ante a verdade. Como estivera a vida inteira, com os “trabalhos extras” do Consórcio e os rostos furtados da multidão. Ruby engoliu a dor para a ignorância roubar-lhe o tato, mas ao entrar no quarto dele, os olhares se cruzaram. Lúcio abaixou a cabeça e nada mais precisou ser dito. Após instantes Ruby saiu, e pela primeira vez em anos chorou sozinho até dormir. De olhos fechados, sentia o cansaço num fluxo ativo em seu corpo. Quando os abriu novamente, a esposa debruçava-se na sacada ao seu lado, olhando ao léu assim como ele.

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– Eu sei o que você quer dizer agora. – Ela virou-se para ele, despontando um sorriso indolente. O esposo conhecia essa estratégia. – Vai dizer que eu sou idêntica a minha mãe. – Seus olhos são – disse, olhando-a firme e sério. – Mas esse sorriso é do seu pai mesmo. Quisera eu ter o sorriso do meu. – Não gosto de saber que herdei algo dele. Nem mesmo o sorriso. – Ele pode ter feito o que fez, mas te amava, Amy. Você sabe disso – ele encerrou. A loira também se calou, não estampava mais o sorriso que lembrava o finado Heinz. Na verdade, Ruby compreendia perfeitamente a natureza da aversão que Amy nutria pelo pai. O rico empresário teutoamericano engravidou uma brasileira (prima de sabe-se lá quem importante à época do Velho Regime) por mero interesse e, após o parto, quando Amélia (a mãe de Amy) recusou o matrimônio que afirmaria vantagem às empreitadas de Heinz no país, em retaliação, ele raptou Amy e a levou para a Alemanha. De lá, emigrou com ela para os Estados Unidos, onde ela viveu até os cinco anos de idade, quando Amélia ganhou na justiça a guarda definitiva da filha. Foram anos vivendo como andarilha nas mãos de um pai apático e ausente, que a usou como moeda de troca e a deixava sob os cuidados de babás incompetentes. Os anos roubados de convívio materno não voltariam – isso era fato. Mas após a morte de Amélia, Heinz agiu com dignidade. Como se fosse um verdadeiro pai, porém Amy nunca conseguiu perdoá-lo. Um acidente de carro matou-o, cinco anos antes, enquanto a esposa do Scarpa visitava o litoral. Heinz foi levado a um hospital às pressas, e Ruby chegou minutos antes que o sogro expirasse. Tudo o que ele dizia era como se arrependera e o quanto amava a

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única filha. Amy chorou sua morte publicamente. E Ruby não pôde julgá-la.

escondido,

jamais

Agora, o casal permanecia lado a lado por um tempo. Não iriam abandonar-se. Fosse qual fosse a circunstância, as mãos deles estariam unidas. A mão dela sobre a dele ou a dele sobre a dela. – Eu não tenho boas notícias, Ruby. – Ela avisou, sem encará-lo. Ruby franziu o cenho e suspirou. – Fale. – O Homero ligou aqui. Bastou dizer isso e Ruby ideou todo o teor da conversação como se tivesse a escutado. Homero Silva liderava o PLN – Partido Liberal Nacional. O ex Membro Administrativo do CENBA era um dos muitos empenhados em conter um Legislativo onde um quarto dos congressistas se opunha ao Consórcio. Diversas propostas para extinguir o conglomerado foram vetadas pela caneta do atual presidente Costa, um sujeito suficientemente esperto para não afrontar a maioria corrompida no Judiciário e Legislativo. Felizmente, melhor que o fato de serem numericamente insignificantes, somente a realidade de que sequer havia união entre os próprios contrários ao sistema. Parte deles era de herdeiros da Pré-Reforma e a outra – uma minoria ainda mais ínfima – setores sociais que nem mesmo por um objetivo em comum eram capazes de aliar-se à elite. Além disso, uma forte crise econômica batia à porta roubando a atenção dos planos da minoria. O Congresso era uníssono em culpar o Governo Costa e seus crimes de gestão não comprovados. Haveria eleições ao fim do ano e as previsões,

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justamente devido à crise, era que Legislativo e Executivo ainda mais conservadores fossem eleitos. Daí chegava a parte que caberia ao Scarpa: para impedir um temido avanço de setores progressistas, a estratégia do CEN e de partidos “apoiadores” (“comprados” seria o vocábulo mais adequado) seria eleger o máximo possível de membros atrelados. Há meses, o PLN convidou Ruby para candidatar-se a Deputado Federal. Por livre e espontânea pressão dos outros Dez Líderes, ele aceitou. Porém, Amy não precisou dizer mais que “o Homero ligou aqui” para mostrar que tal esforço não seria mais necessário. Até melhor assim, concluiu ele. – Deixa eu adivinhar – pediu irônico. – Brasília está em chamas. É complicado pra eles isso, mas tudo que eles não precisam é de um candidato que manche a imagem do Consórcio com suspeita de homicídio, certo? – Sim. O silêncio marcou o assunto como encerrado, mas Amy comprimia os lábios finos como se tivesse algo mais a acrescentar. E logo o fez. – Ruby, você acha possível que o Consórcio caia? – Não – respondeu seguramente. – Não importa o que façamos ou quantos inimigos nós tenhamos a única coisa que haveria seria uma dança das cadeiras. Cai um líder, caem dois betas; chegam outros no lugar. Sabe por quê? Ela não respondeu. – Porque nós somos o sistema. Ruby deu as costas e seguiu para dentro, mas uma brusca corrente de ar o trouxe a ira da esposa. E altivamente, ela acusou: 160


– E o sistema matou aquele garoto. Tais palavras foram uma faca rasgando suas costas. Ele não quis ver o olhar dela ao proferi-las. Parado em meio ao quarto, no caminho entre a varanda e o toalete, apenas engoliu em seco. E após o ligeiro arrepio, com as palavras ainda ecoando, seguiu caminhando. Para a suíte, para a surdez escandalosa da estupidez bem cultivada. O céu era um desenho azul anil interminável a estender-se para além das silhuetas das colinas. Como rotina nos últimos dias, Ruby Scarpa acordou sozinho da mesma maneira que dormiu: sem beijos carinhosos de boa noite, sem corpos aconchegados e abraçados ou cumprimentos de bom dia. Bateram à porta enquanto Ruby se vestia. Tão logo assentiu que a pessoa entrasse, sem nem perguntar quem era, e deu com Fabrício encostando a porta. Fazia tempos que não o via, e agora, com mais de 50 anos e ainda esbelto na farda da polícia, o ex-motorista que alçou altos voos na corporação graças à indicação amiga do exchefe, volta e meia surgia no solar para partidas de xadrez. – Bom revê-lo, camarada. Tomou café? – Não, não serviram ainda. Vão servir daqui a pouco, quando a carioca chegar. Não vou ficar pra isso, espero que envenenem – salientou com um sorriso travesso. Ruby retribuiu com um sorriso amarelo; uma das poucas coisas em comum com aquele sujeito era a opinião ferrenha acerca do clã fluminense. – Também espero. – Foi breve e lacônico. Olhou-o analítico através do espelho e prosseguiu. – Foi legal o xadrez hoje? – Eu ganhei duas partidas.

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O silêncio e evasão do militar não demonstravam objetivos. O que quê ele quer, afinal de contas?, Ruby perguntou para si mesmo, percebendo desconforto e inquietação no convidado. – Meu tio mencionou pra você alguma coisa sobre o Nicolas? – perguntou impaciente. – Ele disse que só lembrou que mandou o Oscar cuidar daquilo. Merda! Merda! Merda! Ruby sacudiu a cabeça em negativa com a declaração já esperada. Uma nova possibilidade. Mais uma nova e plausível hipótese que afundava a família Scarpa em maus lençóis. O cônsul bufou, erguendo a cabeça. – Se te serve de consolo, eu trabalho com aquele seu amigo, o Cel. Telhada. – Fabrício informou, para desdém de Ruby, que já conhecia a informação. – E ele é assim – esfregou os dedos indicadores um no outro – com o Secretário de Segurança do estado. E eles não estão perseguindo vocês, pelo contrário. – Devo agradecer ao governador pela gentileza? – Não. O Adílio não moveu, nem moverá um dedo pra intervir. – Meu empecilho atende por Rabelo Alvarenga e sua trupe, mas obrigado mesmo assim. – O Rabelo não é preocupação. É só mais um coitado em fim de carreira que odeia tudo que aquela tal de Dalila é. Se não encontrarem rastros, vão focar nela. Ela vai ser condenada e todos esquecerão isso. – Mas e se deixamos algum rastro? – Rezem – aconselhou o militar. – O Rabelo pode ser burro, cego e metódico, mas adora um troféu chique pra enfeitar a estante dele.

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Nada que um “faz-me rir” ou um… “acidente ocasional” não resolvam, se é que me entende. – Você acha mesmo então que nós estamos por trás disso, né? – Ruby, Ruby – começou a fazer volteios. – Tantos e tantos anos e é sério que você ainda não reconhece o próprio Modus operandi? Mas relaxa: vocês sempre se safam. E, mudando de assunto, eu soube o que houve com o Partido. Bem, se você quiser, eu posso falar com o Telhada. Ele é pré-candidato a governador no PNB. Se quiser uma boquinha… Ruby só desejava uma boquinha naquele momento: A de Andreia Campos Machado. Preferencialmente, cheia de vermes e formigas. – Não, obrigado – Fez uma pausa ríspida, e, após, sugeriu cordialmente –, mas se você puder dizer o que te trás aqui afinal de contas… – Seu tio está atribulado, Ruby. Ele se sente – buscou a palavra certa – atormentado. – Você sabe a razão. Fabrício não respondeu. – Mas não vai me contar. – Não. Mas tudo o que te digo é que envolve a culpa. E a culpa… a culpa mata. – Fabrício afirmou funesto, e antes que Ruby assimilasse isso ao que foi dito pelo tio, não havia mais sombra parada à sua frente. A visita caminhou pela porta e – ainda aturdido – quando descia para o salão, Ruby nada encontrou além da família. Ali, sua presença no topo da escada foi um vulto despercebido.

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Apenas seria notada após o toque da campainha: Camila, a nova empregada, surgiu rapidamente e atendeu a porta. Como esperado, Chiara estava ali. Porém, o casal plastificado, Maurício e Andreia Tereza eram sombras opressoras atrás da morena. A moça correu de encontro a Thomas num beijo intenso enquanto o Scarpa descia a escada. – Olá, Chiara – murmurou, olhando firme para a porta. – Não sabia que viriam trazê-la. – E não viemos – Maurício contestou, sorrindo de orelha a orelha. – Você não soube que os donos da mansão ali do lado vão se mudar? – perguntou Andreia. – Pois nós também! Pra lá! Não dirá Oi aos novos vizinhos, Ruby?

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7 A CHUVA FORTE engolia os berros, tornando suas súplicas cantos aprazíveis aos mais sádicos ouvidos, e seu sangue fluído e abundante escorria no meio-fio. A cada golpe mais um berro, mais um choro e um horror exposto. A cada dor mais morta estava, por fora e também por dentro. E dali, no aconchego da Land Rover, João Paulo assistia a tudo com a mente vagando longe e um cigarro na mão direita. João Paulo odiava-a! Seus cortes de cabelo masculinos, os flertes com as colegas de trabalho, a agarração ultrajante com a namorada nos horários de entrada e de saída… Se pudesse, teria a indicado para “o expurgo” muito antes, mas, como dizia Miguel “Pensar com a cabeça para pensar sempre”. Tal dito André Vantine proferiu no enterro de seus pais, ele lembrava. O irmão tinha só três anos, mas cresceu ouvindo o jargão. “Se meu irmão tivesse pensado com a cabeça estaria aqui agora!”, exclamara André. “Se não tivesse posto uma arma na cabeça do aleijado e ameaçado atirar nele…”, então Cristina (outra tia por parte de pai que viria a falecer dali a alguns anos) intervia em desacordo. “O erro dele foi ameaçar e não matar”, ela afirmava. Mas estava errada! Errada! Errada e errada! Seu pai era um homem bom! Em hipótese alguma tiraria uma vida. Não que cometer um homicídio pelas razões certas – como preservar a biologia da espécie, salvar o mundo de doutrinadores perversos e execráveis – fosse algo errado. Não que o que ele, seu irmão, seus primos e amigos praticavam fosse errado, só que… imaginar o próprio pai puxando um gatilho é algo estranho, entende? O ato que ocorria no alto do viaduto despertou a atenção do skinhead. Giane podia ser insultuosa e ultrajante a seus modos, mas uma coisa ele assumia: a garota era tinhosa! Ele já viu muitos 165


sucumbirem nos primeiros dez minutos de expurgo (geralmente eram piedosos mesmo, executavam de maneira “limpa” e, na medida do possível, humanitária), mas eram mais de vinte minutos com pauladas, chutes e pisadas e seus berros ainda rasgavam a madrugada com a estridência de trovões. João Paulo bufou. A preguiça em deixar o conforto do veículo era extrema, mas não via outra maneira. Luci, Miguel, Alexandre, Carlos e Wagner eram metódicos demais para agir como deviam. Além do mais, independente das razões que o levaram àquilo, o rapaz preferia execuções mais pragmáticas. Salvo em casos também conhecidos como “eu odeio muito Nicolas e quero mesmo que ele sofra” não seriam necessários muita dor e sofrimento. Bastava apenas um revólver, um golpe certeiro num órgão vital ou… ou um grande viaduto para um salto em escuridão. Desceu do carro com os pingos grossos batendo em sua pele e acelerou até os comparsas que linchavam a anarquista com socos, pontapés e barras de ferro. Seu rosto masculino e “bronzeado” – ainda por cima! – gotejava sangue em todos os poros. Seus berros (antes cantos dóceis e aprazíveis) o desgostavam. Chega, porra! Morre logo, já deu!, queria berrar para todos eles. Contudo, não lhe cabia intervir no serviço alheio. – Para! Para! Por favor! – ela chorava e cuspia sangue. Implorava humildemente erguendo as mãos e acenando. – Por favor, João Paulo! Por favor, eu te imploro! Eu não fiz nada! Eu não fiz nada! Faz eles pararem, eu imploro. FAZ ELES PARAREM! – Que quê foi hein, J? – encarou Alexandre, o Anão (um branco com traços nórdicos e pouco mais de 1,60 m de altura), insatisfeito com a interrupção de sua diversão. – Tá demorando demais, porra! – reclamou.

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– Que culpa temos se ela não quer morrer!? – Carlos protestou. – Custa pegar ela logo e jogar dali? – rebateu o apressado, indicando o viaduto. Miguel e Luci mantiveram-se quietos enquanto os outros anuíram com a esperteza. – Nãããooo!!! – Implorou Giane aos berros. – Não, por favor! Por favor, não me mata! Não me mata, eu te imploro. Não me mata! – Shi, shhii!!! – silenciou-lhe o líder. – Me diz, Giane. O que você faria amanhã se fosse sair daqui com vida? Acordar, colar velcro com a gostosa da tua puta, ir trabalhar e sair pra um happy hour no fim do dia? Ah não… esqueci que vocês, seus putos anarquinhos de uma merda – enfureceu-se e chutou sua costela quebrada – estão ocupados demais enfiando faca na canela de policial inocente! Tramando planos de instaurar uma Ordem própria, de fazer desse país o antro de lixo e excremento da escória de vocês! – Por favor, João – ela chorava, soluçava e engasgava-se com o próprio sangue. – Por favor… – Você devia ter pensado nisso antes. Você podia ter pedido ajuda, não Giane? Você podia ter tentado mais... Eu sei que seus pais morreram num acidente, que você foi criada em orfanato, mas não teve ninguém que te ensinasse o que é certo ou errado? Olha, eu também perdi os meus pais – ela seguia naquela súplica pedante e exaustiva que afligia-o os nervos. – E mesmo assim nós não viramos isso que você é. Mas poxa, Giane, você acha que eles teriam orgulho de te ver assim? – perguntou sinceramente. – Não me mata! Por favor, não me mata – choramingou. – OK, minha paciência acabou. – Comunicou João Paulo. Apontou para Wagner e Luci em seguida e ordenou. – Você, pega nos braços e Luci, você com as pernas.

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João Paulo contou seis passos quando a ergueram pelo tronco e conduziram ao parapeito. Ela clamou um “NÃO ME MAAATA!!!” sentindo a morte vir depressa ao seu encontro. Um baque surdo no chão áspero e, após, só restou o silêncio… e a escuridão. Foi como se a morta tivesse saltado em águas fundas ou imergido eternamente na penumbra de um abismo. A tempestade diluía um sangue rubro e abundante, e por fim eis que Giane estava incapaz de gritar novamente. O sono ocorreu num cenário mórbido e atípico. O sangue que manchara João Paulo, e com o qual este sonhava noite após noite, não recobria apenas seus pés, mas subia, subia e subia como se prestes a afoga-lo. Aquele sabor metálico invadia seus lábios finos, inundava sua boca seca, e nas tentativas de espantar os seus fantasmas, ele afundava em um sangue frio… cujo paladar adstringente levou-o ao deleite de uma calma escuridão. A escuridão da própria mente. A escuridão do beco escuro atrás do bar heavy metal onde tombara inconsciente vendo a dança das sirenes. Tudo clareou para ele no que dizia respeito àquela noite, que acabou no hospital na manhã do último sábado. Estava ali um rapaz delgado, de quase dois metros de altura e os olhos escuros sob os óculos de grau. Fitava a todos de modo analítico e atônito, estava sóbrio até demais. João Paulo deveria estar muito bêbado quando por qualquer trivialidade comprou briga com o grandalhão (ou teria sido o inverso?). O rapaz disparou “nazistinha de merda!” quando lhe acertou no olho esquerdo. Não vinha nada assim tão nítido à memória, mas esteve certo que o “esquisitão” foi expulso do recinto tão logo o skinhead revidou o murro e partiu seus óculos.

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Era isso, obviamente. Só podia ser!, ponderou a lucidez instintiva. Ao deixar o bar cambaleando a figura alta e mascarada surgiu no caminho dele. Um bastão, um soco inglês e a fisionomia ocultada pela touca ninja e as poucas luzes sobre ele. A bebida o entorpecera de modo que o loiro sequer gritou ou reagiu. O agressor poderia facilmente tê-lo matado (se fosse essa a intenção), mas deu-se por satisfeito em desmaia-lo sem muitos danos. Restavam pontos cegos na memória… a voz do covarde com o bastão não parecia desconhecida, mas também não se assemelhava a do grandalhão no bar heavy metal… talvez ele tivesse fuçado seus bolsos e pertences. Quem sabe pego em alguma coisa, mesmo que nada tenha furtado. Porém talvez só tenha se agachado para feri-lo mais com o soco inglês. E a única cena clara, que teve certeza que foi real, foi sua saída: ele se foi caminhando calmo, retirando a touca preta à meia-luz da viela erma, e desaparecendo… sumindo nos becos da noite paulistana, deixando sua vítima para afundar em inconsciência. – Bom dia, dorminhoco – disse Luci soando dócil e atraente. Ele acordou para os primeiros raios de luz: o ambiente banhado com o brilho azul da manhã nublada e deparou-se com a cabeça dela entre suas pernas. Percebeu que seu “amiguinho” despertou rijo antes dele, com a boca dela indo e vindo em sua genitália. – Ótimo dia – disse lascivo, lambendo os lábios que se abriam num sorriso. O ato foi curto e logo o skinhead descia a escada com a parceira para a sala de jantar. Wagner fumava um cigarro e expelia fumaça cinza encostado à mesa, enquanto Miguel mantinha-se inerte, sentado silencioso terminando suas panquecas. 169


– Tu vai trazer logo o caminhão de mudança ou é só impressão minha? – perguntou João Paulo. – Não sou mais bem vindo ao lar que também é meu? – Panaca! – exclamou o loiro, brincalhão e, após, correu para um abraço forte e aconchegante no primo mais velho. Wagner esfregou o punho em sua nuca com força, como fazia muito nas brincadeiras de infância de ambos, que agora riam feito idiotas um para o outro. – Bom dia pra vocês também – Miguel desejou ríspido, levando o prato para a pia. – Seu chefe ligou aqui, JP. Cê pode dormir até mais tarde se quiser, cancelaram o expediente. O primogênito voltou-se ao irmão, risonho. – Já acharam a Giane, né? – Melhor que isso: ele disse que a Giane jantou na casa dele antes de ir pro clube. Logo, alguém terá um longo dia na Homicídios. – Falando nisso – desconversou Wagner – vocês têm notícias do Tony? Miguel respondeu pelos irmãos. – Não. Ele fez o favor de parar com as cartas pra evitar suspeita. – Fica de boa que ninguém vai ligar ele a nós – rebateu João Paulo. – Até porque vocês não têm nada a ver com isso – Luci interveio. – Geral sabe que o Tony só tá preso porque vingou o mano dele. Abateu-se uma quietude intransigente. E os olhares de Luci, João Paulo e Miguel recaíram culposos sobre Wagner, que deu de ombros e refutou-os veementemente.

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– Que quê é, hein? Eu não tenho culpa de nada não. O Théo tá morto e o Tony preso porque a anta da tia Cris não soube criar filho que usasse o cérebro! Nem a tia Cris, nem o tio André pelo visto… pensou João Paulo, que assumiu para si mesmo. Você só foi um bastardo sortudo, priminho. Deveria ter havido mais de duas covas ao final da Guerra das Gangues. – Ah, vocês são todos primos, porra! Essa merda já passou, não passou? – disse Luci irritadiça. – Verdade seja dita: o Théo tá morto porque foi burro e deu sorte pro azar! A gente tava em guerra, pô! Desde o começo os “sangue-ruim” tavam na dele, daí ele fez o que fez e ainda ficou às vistas? Queria o quê? – “Meu único arrependimento foi não ter matado mais” – declarou Miguel, rompendo um silêncio. – Foi o que o Tony disse em julgamento. – O mais novo olhou para todos; intimidante e reflexivo. Juntou as mãos sob o queixou afinado e prosseguiu. – O Tony já liderou a MÓR, já matou pela gente – e muito mais do que consta nos autos, aliás – e foi pego por um… uma ação honorável, digamos assim. A questão aqui é: ele ainda estaria disposto a fazer o necessário pela Luta? Silêncio. João Paulo atinava em desvendar o ponto do irmão enquanto Wagner e Miguel trocavam olhares conluiados. – Tô sentindo cheiro de tramoia. Cantem. – O Tony tá exatamente no mesmo presídio que o Zé Droguinha irmão da Dalila – revelou Wagner aos risos. – Daniel Macedo Vilela foi transferido pro mesmo lugar que o nosso priminho e nenhum deles sabem um do outro ainda! Imagina só que linda moeda de troca nós teremos com a putinha anarquista se necessário! – Ou melhor, quando necessário – ressaltou Luci. 171


Dalila, Dalila… eu deveria ter pegado você ao invés do Nico. Te cortar em pedacinhos e dia após dia enviar um presentinho praquele merda. Pensou João Paulo, ocultando a ira que o possuía. E depois quando eu digo que o Wagner só pensa com sua pequena cabeça de baixo… – Eu só espero que quando precisarmos, usemos isso pros fins da Luta, pra destruir aquele circo que chamam de Causa – disse Miguel, como explícita indireta para o primo. – E não para acertar possíveis pontas soltas de meia década atrás. – E se tiver? E se tiver essas pontas soltas, hein Miguel? – Quem tinha que responder essas perguntas seria você e o nosso priminho morto – João Paulo indagou. – Vocês ainda me culpam por isso? – esbravejou Wagner. – Porra, que saco! – Se você tivesse matado ela o Théo estaria vivo e o Tony aqui conosco! O justo era que você tivesse morrido! Você! Não o Théo! Ele só fez o que devia, você que foi um molenga! Pensou impulsivamente. Entretanto, amava demais aquele primo para realmente desejar-lhe isso. Julgava apenas o que era certo! O erro primordial pertenceu a Wagner. Nada mais lógico que ele tivesse arcado com as consequências mais drásticas! O silêncio predominou desconfortável após a última investida de João Paulo. O ruivo deu de ombros e apagou o toco do cigarro na perna da mesa. – A ideia daquilo foi minha? Foi. Eu arrastei o Théo pra ir na minha? Não, eu nem sequer o convidei. Eu pus uma arma na cabeça dele e o forcei a aceitar o que eu disse? Não! A porra da ação era minha e ele respeitou isso! Eu avisei, mas se ele foi idiota ao ponto de ficar dando as caras por aí o problema foi dele! Eu fiz o que precisava ser feito. Se disso resultou consequência, embora 172


eu ache que não, ela é minha responsabilidade. – Fez uma pausa. Após um extenso e profundo suspiro, continuou. – A tia Cris tá morta. O meu pai, que foi outro pai pra vocês dois, aliás, também está morto. Os pais de vocês…? Ah, eu sei que você ainda sonha com isso à noite, JP. Mas o meu pai se reviraria no fogo do inferno se a melhor coisa de nós, que é a luta pelo que é certo, fosse às favas por causa de… de tudo isso que já não é mais relevante. Então – olhou diretamente para João Paulo, parado em pé frente a ele – lembre-se sempre quem é o verdadeiro inimigo. Ele é o aleijado que matou seus avós, seus pais e que teria matado você e seu irmão se tivesse a chance. O verdadeiro inimigo não sou eu que tomei a decisão que achei certa; o verdadeiro inimigo é aquele que matou o nosso primo. É aquele que nós começamos a revidar e continuaremos a fazê-lo até os destruir. Wagner puxou a carteira de cigarros e caminhou para a área externa. Já Miguel voltou-se a pia, pondo o prato para escorrer. – Sobrou panqueca pra vocês – Miguel avisou cordialmente, com a imutável placidez como se nada tivesse ocorrido. Às vezes eu acho que sou o mais lúcido, ou o mais perturbado de todos eles. Outras vezes, eu tenho certeza. Reuniram-se todos no velho casarão de um loteamento, próximo à fronteira do C com o D naquela noite. Centenas de skinheads alinhados ao Movimento, em harmonia. Compartilhavam seus gostos, anseios, histórias de glória e da Luta. João Paulo discursou na espécie de tribuna improvisada, à meia luz do ambiente rústico, por mais de vinte minutos. Relembrou-lhes de seus pais e da importância crucial da queda do Regime ser posterior à queda da “escória anarco” que poderia utilizar o que seria a escada deles para ascenderem com um sistema caótico, corrompido e desordeiro, 173


que fadaria à nação a perdição e desalento ainda maiores que aqueles de agora. Contentou-se com os aplausos por sua bravura e motivação. Ficou tentado a expor a todos os seus feitos com Giane, mas a política da Irmandade explicitava: não deveria se comentar certos atos publicamente. E ali havia centena, que ia desde membros mais extremistas e radicais – “filhotinhos de Maquiavel” como João Paulo definia-os – até mais brandos e impressionáveis. Durante a noite ele era o bravo JP Ferraz Vantine, líder da Luta, carismático e solícito que independentemente de seus meios “não ortodoxos” era o herói de uma causa justa; pela manhã voltava a ser somente João Paulo. Sem tatuagens, piercings, “irmandades” ou doutrinas nazistas. Era somente um rapaz quieto e competente que se isolava atrás de uma mesa e exercia suas funções. A CSA Contadores reabriu pela alvorada. O expediente seria normal, apesar do luto e comoção que a morte brutal da funcionária imprimira. Nos corredores, murmúrios inaudíveis, presunções frívolas e falsas comoções. Na entrada, na hora do almoço, ao término do expediente, mesmo durante o expediente. João Paulo interagiu com os colegas partilhando a desolação e o pavor que exprimiam. Prestou suas condolências a melhor amiga de Giane, aquela tal de Alice, ou Nice, ou… não importava de qualquer modo. Ela teve uma crise de choro – histeria infundada – na metade do expediente e o Sr. Antunes permitiu que ela fosse embora. Depois dela, outro contador visitou o escritório do chefe a seu pedido: João Paulo. Mário Antunes era um homem chato. Também metódico e entediante. Um baixo e gordo de meia-idade, com uma cabeça calva que até fulgia sob a luz. Como esperado, o

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funcionário entrou e fechou a porta. O chefe andava abatido. Isso tornou-se evidente quando ele baixou os óculos de grau e limpouos com a flanela, sinalizando que o convidado se sentasse. – Mandou me chamar, Sr. Antunes? – Sim, ando falando com todos. Você soube da Giane, não? – Claro. Uma tristeza. – E sacudiu a cabeça em negação. – Ela tava comigo aquela noite, nós tínhamos assuntos em comum. – Pró-anarquinho burro, balofo de merda! Pensou João Paulo em imediato, mas manteve-se apático. – Ela marcou um clube com os amigos, só que começou a chover bem forte, daí eu levei ela de carro. Ela saiu de madrugada e… o resto… bem… todos sabem. – Suspeitam do senhor!? – perguntou fingindo incredulidade. – Não! Por Deus, não! – Rebateu Mário. – As câmeras mostram que eu deixei ela lá, voltei e que ela saiu ilesa. Também não há cogitação de crime passional. A namorada dela tava na casa da mãe, em Osasco. E a Gi não tinha nem mesmo um desafeto. Você que pensa. – Só que ela fazia parte de uma… – uma horda de porcos e selvagens que comem as próprias merdas pra dizer as barbáries que dizem, o funcionário quis completar, mas esperou –… um grupo anarquista. Ela era da MIS, João Paulo. Uma das gangues do que houve em 57, não sei se você se lembra. Muitos pensaram que tudo isso tava acabado com as mortes e a carnificina toda, mas… “A Causa nunca morre”, ela dizia. E é óbvio que foi crime de ódio, não há qualquer dúvida disso. E suspeitam que ou pela condição sexual dela ou porque alguém sabia que ela era anarcopunk ou, ainda, por ambos. Por ambos, sinceramente. 175


– A cidade anda tão violenta, não é mesmo? – João Paulo comentou. – Há um ataque assim em cada esquina ultimamente. Por que diriam isso? Digo… ninguém sabia da ideologia dela. Eu francamente teria medo se soubesse. Não tinha a menor ideia. – É só uma hipótese que me alertaram. A Giane era muito próxima de mim, sabe? Eu conheci ela no orfanato, uma prima minha trabalha lá. Eu teria adotado ela, se ela já não tivesse dezesseis anos, fosse uma burocracia imensa pra isso e aquela garota não tivesse uma maldita empáfia do cão. Eu gostava muito dela, sabe? Sempre tentei protege-la, aconselhá-la… – andava em círculos, de costas para o subalterno, de certo enxugando lágrimas. – Não importa a razão. Se foi porque alguém não concordava com o modo que ela via o mundo, se não concordavam com aquilo que ela era… e ela era tão cheia de luz!… – um nó profundo impediuo de prosseguir. Seus soluços eram altos e sinceros, porém o Vantine penava em tédio. – Eu só quero que quem fez mal pra ela pague. E eu sei João Paulo, eu sei. Mário calou-se então. Devido ao impacto da última frase o empregado sentiu-se como se engolisse um bloco de gelo, com um arrepio que retumbou até suas entranhas. E por fim o chefe virouse para ele, o encarou sinceramente e disse: – Eu sei que alguém que a conhecia está minimamente envolvido nisso. Era alguém que sabia que ela era lésbica – mas pra isso bastava apenas olhar pra ela! – que sabia que ela estaria naquela boate e sairia sozinha de lá pra ir pra casa. Eu contei à polícia que acho que isso não é obra de desconhecido e eles concordam comigo. Por isso – João Paulo voltou a respirar normalmente. Obviamente não suspeitava dele –, se você souber de qualquer coisa, de qualquer coisa mesmo, por favor, confie em mim, tudo bem? – Claro. Pode deixar seu Antunes. Sinto muito por sua perda.

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– Obrigado. Chame o Otávio pra mim, por favor. E João Paulo anuiu, saindo dali em seguida. No corredor deparou-se justamente com o próximo chamado, pegando um copo d’água ao filtro. O homem de olhos castanhos e cabelos cor de areia mantinha sempre o mesmo olhar analítico. Interagia com todos, adorava fazer perguntas… sempre muitos questionamentos. Tentara aproximar-se dele e até de Giane anteriormente, sem sucesso com nenhum dos dois. Era inacessível e restritivo na mesma medida que inspirava os outros a se abrirem. Otávio era um colega estranho, recém-chegado à empresa e um clássico suspeito. Melhor manter a precaução, pensava o nazi. João Paulo aproximou-se apertando a mão dele. – O seu Antunes chamou você. Na sala dele. – Imaginei – bebeu calmamente a água, sinalizando para que o colega o aguardasse. – E você? Como vai, João Paulo? Bem? – Sim, e você? – Uma grande perca isso da Giane, né? – Pois é. – E depois as pessoas dizem que ideias não matam. – Ideias não têm mãos, elas não matam – rebateu João Paulo. – Pessoas matam – e viadutos também. – Pessoas por trás de ideias matam. – Otávio arrematou e saiu dali. Pelas costas, João Paulo pôde ver que o moço mediano possuía em sua nuca uma discreta tatuagem. Uma espada sobre os pratos de uma balança: uma lâmina fina, um corte preciso, a rigidez justa… e um contorno sinuoso e indistinto tampado pelo traje social.

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“As horas batiam de século em século”, ele leu isso em algum conto de Machado de Assis na escola, e se adequara perfeitamente a ele. Por volta das cinco da tarde, duas coisas aconteceram: o sol poente dissipou espessas nuvens banhando em aquarela o entardecer da capital. E João Paulo desceu ao estacionamento, com o pretexto de checar qualquer pertence quando, na realidade, foi apenas comunicar-se com o irmão mais novo. Caminhava até seu Civic vintage quando ouviu o cantarolar. Um assovio, um zumbido suave de uma canção há muito tempo conhecida. “Anything, anything / Don’t tell them anything, / Anything, please”. Primeiro reconheceu a música: Female Robbery da banda The neighbourhood; era uma dos grupos prediletos de Cris Vantine e suas crias, portanto o rapaz cresceu ouvindo algumas de suas músicas. A voz que entoava as notas, o rapaz não tardou distinguir: era Otávio. E este passou por ele com um aceno e um riso cáustico, que o skinhead retribuiu receoso. Otávio partiu em seu Ford. João Paulo olhou duas vezes, para ter certeza absoluta. Já em seu carro, o irmão de Miguel atordoou-se, suspirou, e antes de contatar alguém da Irmandade, ele seguiu cantarolando… I think I can tell, I think I can tell them. Na última hora de expediente ele refez todo o caminho. Entretanto, algo havia diferente. Ele pressionou na chave o botão para destravar a porta do veículo, mas não era necessário. A porta estava entreaberta. E João Paulo não se lembrava de esquecê-la dessa maneira. Correu ansioso ao Honda, puxou a porta e bateu-a forte. 178


Uma olhada rápida ao redor e constatou que não houve furto. Vez que tudo estava intacto, concluiu que deveria ter esquecido o carro aberto. Andava tão ansioso e distraído e estressado ultimamente… era muita pressão a qual vinha sendo submetido. Exceto pelo fato que, segundos após a reflexão, João Paulo recobrou uma certeza: ele trancou o carro. Portanto, alguém o destrancou. E ao olhar para o assento ao lado, o pavor absoluto possuiu-o. Alguém de fato visitou-o. E com recortes do impresso Correio Paulista sobre um sulfite, deixou seu atordoante recado: “EU SEI O QUE VOCÊ FAZEM. EU ESTOU ENTRE VOCÊS E FAREI VOCÊS SOFREREM. PEGUEM-ME OU PAGUEMME. PAREM-ME OU EU PARAREI VOCÊS”. O líder nazi cerrou os olhos. Reabriu-os na esperança ingênua de que tudo fosse ilusão, mas não era. Era real. O sulfite em sua mão era tão palpável quanto seu ódio, e seu medo. E no verso da ameaça, ao canto inferior, um pequeno enigma insolúvel: “REZEM PRA SÃO JOSÉ” Embebido por sua fúria, ele amassou o papel. Então se olhou ao espelho, pensando apenas no maldito trecho. Na música instigante da antiga banda e no presságio certo de seu final denso. Tremendo os dentes e cerrando os punhos, João Paulo juntou-se ao canto. Ao canto de Otávio, uma hora atrás, e também ao de Théo, que quando viu pela última vez, cantarolava soturnamente aquele exato último verso. We’re gonna die, die, die… die, die, die. We’re gonna die, die, die… die… 179


8 DESDE OS TREZE anos de Dalila, ao fim de todos os verões, recaíam igual tristeza e austeridade. Mesmo que a estação encerrasse dali a uma quinzena, os ares outonais não prometiam boas novas. Prenunciavam tormentas, tempestades e escuridão antes do frio… durante o frio e ao longo da dor crônica e severa. Começou naquele período. Na verdade, algo encerrou na estação cálida, aos 13 anos. Até as águas de março que fecharam o verão a postiça alegria efêmera persistiu entre os mais jovens. Daniel no alvor da mocidade zombava da dureza da vida e dos temores quanto ao futuro. Dalila era outra que ria igualmente, de seus últimos esconde-escondes com colegas ao ar livre e das trivialidades de rotina que forjavam normalidade. Houve risos (como os de Dalila e Daniel) que se apagaram com o tempo. Como as cortinas que se fecham ao fim de uma peça teatral ou como o fogo que se extingue após nada mais restar. Mas também havia risos como os de seu irmão Arthur; ingênuos, puros e inocentes. Indolentes, acima de tudo. Um milênio não esvairia tão belo riso. Então, o que restara à vida para exercer os seus desmandos? Não só roubar-lhe o riso, mas sim deitá-lo de repente nos braços frios e cruéis da morte. Ele tinha apenas sete anos. Faria oito na próxima primavera, mas não possuiria festa, ou mesmo bolos ou balões. Tais luxos existiram apenas nos sonhos mortos do garoto. A vida era mesmo assim… implacável. Mas Arthur não viveria para provar sua aspereza. 180


Não, ele viveu. Ou melhor, ele morreu graças a esse infortúnio de circunstâncias. Ele sentiu as dores, os medos e desespero em seus últimos minutos, na escuridão da maldita viela, onde o único – e o último – clarão foi o da bala perdida que o atingiu. Dalila desmaiou com o sangue do menino em suas mãos. Choros, berros, súplicas e urros foram incapazes de trazê-lo de volta. Naquela noite da bala perdida, na qual uma repentina incursão militar ceifou a vida de Arthur e outros cinco inocentes, a garota usava sua melhor roupa: o vestido mais justo e bem cortado, o único presente ganho da avó paterna em toda uma vida. E o vestidinho branco, seu predileto, tornou-se vermelho com o sangue do irmão morto. E então já não era mais um pano branco como a neve. Era cândido e escarlate. E tão logo se resumiu a cinza, quando Fátima queimou aquela veste chorando as revoltas de suas dores incontidas pela perda do ente amado. E aquele foi só o primeiro verão de desgraças… De muitos outros que proviriam. Aquela foi só mais uma noite encerrada em sangue e tragédia súbita, porém, diferente das demais desgraças as quais Dalila se habituara, não restaria sangue seco a ser lavado pela manhã. Pois todo o sangue do indivíduo resumia-se a um fluido mórbido e abundante mesclado às águas da tempestade. Uma ligação de policiais despertou-a para as más novas, fazendo-a cruzar a cidade na madrugada para confirmar a identidade da amiga e colega de Causa. Contudo, isso não bastava para ela. Dalila sentia-se atada à tragédia, como se aquele corpo morto, largado e brutalizado sob um viaduto de Setor B ainda pudesse sentir solidão. Ainda pudesse temer algo agora. 181


De certo ela temeu, pensou Dalila, de certo ela implorou, ela chorou, mas foi em vão. A morte apossou-se dela de um modo bestial e imprevisto. E doía para Dalila! Como doía. Acima da dor da perda, doía mais a empatia. Doía olhar para aquele corpo e pensar que poderia ser ela ali, em igual situação como em tudo foram iguais até a morte. Um dia, caíam aqueles que ela amava; no outro, entes íntimos e estimados; em qualquer noite, caíam os que ela apenas se importava… mas e ela? Qual seria o dia dela de aparecer morta e estirada? De sangrar sob holofotes de luzes frias e dançantes? Era irônico até para a anarquista que justo aquele viaduto marcasse a divisa do Setor C com o B, a afamada “Selva Luminosa”, quando só sombra de luz se via ali. As primeiras luzes que caíram sobre Giane chegaram antes de sua amiga. Foram as sirenes, vermelhas como o sangue e azuladas como o céu. “Ela caiu do viaduto”, Dalila ouviu de um policial. “Torceram o pescoço dela, olha!” apontou outro, disputando a precisão da Causa mortis. “Ela tá toda ferida, veja!” disse uma terceira que a olhava com frieza, e completou “aposto que morreu espancada”. Dalila chegou como um espectro. Banhada pelo aguaceiro (vez que sua sombrinha humilde foi-lhe arrancada pelo vento) viu outro vulto que era o foco das atenções distantes e indiferentes. De nada adiantou sua presença a não ser reconhecer: “Sim, é ela”, foi apenas o que disse quando um jovem militar a abordou educadamente. Ali a deixou, sozinha até que a moça caísse em si: não estava em um pesadelo, Giane não caíra adormecida. Era real, ela estava morta. Não se ergueria daquele chão. Quando o sol resplandeceu cortando a tarde, Giane era luz, sarcasmo e entusiasmo. Ela comentou que iria com amigos a uma boate, pela noite; brincou que os privilégios de ter “predileção do

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patriarcado” era possuir dinheiro para tais luxos impensáveis vez na vida e outra na morte. Uma vez na vida e outra na morte… foram essas as palavras dela. Dalila não lembrou precisamente quais foram os últimos dizeres dirigidos para ela. Foi qualquer coisa irrelevante sobre a Causa ou o trabalho, mas daquilo recordou com perfeição. Bem, não haveria outra vez em vida. Dalila tocou-lhe ao rosto, compadecida, fez uma breve carícia nele e deixou que suas lamúrias caíssem úmidas sobre a morta. O corpo ali imóvel não exprimiu qualquer reação, não intuiu sua comiseração, mas se existisse uma consciência viva ela entenderia: a promessa de justiça contida nas lágrimas da líder e a sua atitude brusca de dar as costas e assim partir. Sob a dança das sirenes rubro-azuladas brilharam dois corpos ao mesmo tempo – o de uma viva e o de outra morta. Uma partia, a outra ficava. A que partia veria o sol mais uma vez, e tempestades, e testemunharia outros mortos em mesmo estado, até que um dia – no mais incerto ou mais certeiro – aquelas luzes de um brilho infindo fulgiriam sobre ela. E mesmo com um clarão tão intenso e luminoso, seus olhos fundos veriam nada além do vazio. Um abismo triste e incomparável contemplado uma vez na vida e outra na morte. Na oitava noite de março, o negro tomou as ruas e avenidas paulistanas. A marcha em honra de Giane ocorreu meia semana após sua morte, intencionalmente no Dia Internacional da Mulher, quando a mídia se ocupava em celebrar a data a seu caráter habitual:

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propagandas fúteis de perfumes e sapatos caros, tornando o marco mais um festim de hipocrisia, uma data medíocre e oca de contexto que servia apenas aos interesses consumistas. Com o desastre da última visita da MIS aos bairros classe-alta, o governo Adílio Mendes conseguiu o pretexto ideal para segregar ainda mais ricos e pobres, atendendo assim aos desmandos da elite. Poderia ter sido um movimento em favor do Consórcio, para salvá-los da ira anarquista, porém não foi. Adílio nunca se envolveu com o conglomerado, jamais interferiu ou se importou. Anteriormente, acesso livre do D para o B só possuía quem trabalhava nas regiões desenvolvidas. Entretanto, como em quaisquer outros tempos de crises e insurgências, nesses dias até mesmo eles se sujeitavam a triagem rígida, que outrora fora efetiva para intimidar e barrar somente visitantes, intrusos ou qualquer outro indivíduo que cheirasse a pobreza ou a favela. Apresentar documentos a militares armados e convencê-los de suas boas razões para estar ali era de praxe para o pobre que ousasse pisar em solo rico. Além disso, submetiam-se a revistas das mais constrangedoras, olhares pérfidos e de desprezo e, por fim, um carimbo vermelho no pulso esquerdo: “VISITANTE – D” ou “VISITANTE – E”. Nada segregacionista, garantiam, executavam apenas medidas efetivas para a manutenção da ordem e organização social vigente de maneira eficaz e adequada. Felizmente eram poucos os realmente pobres infiltrados e humilhados na Selva Luminosa. A grande maioria dos que viviam em palafitas conhecia o “Lado AB” da metrópole apenas por fotos, televisão ou relatos de amigos de conhecidos, mas não pessoalmente sem ser de maneira ilegal ou “desaconselhável”.

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A sortuda minoria que não trabalhava nos próprios lares do D e E geralmente o fazia no C; por sua vez, muitos moradores dos bairros classe média se empregavam no A e B. Apesar desse cerco, o Movimento Insurgente ao Sistema conseguiu com maestria furar o bloqueio para marchar na Selva Luminosa. Muitos deles chegaram a pé, aos poucos, num trabalho de formiga, dando desculpas sutis e educadas para os fardados sobre as razões de ali estarem. Alguns conseguiram passar despercebidos pela triagem, entraram escondidos em carros que caíam aos pedaços ou mesmo cruzaram a cidade para atravessar em regiões sem a guarda. Quando deram por si, graças à astúcia de Emerson e Dalila, estava ali uma dezena, três dezenas, e logo o dobro disso, e não demorou a estarem reunidos cento e doze anarcopunks com rosas negras e camisas expondo fotos de Giane. A marcha ocorreu fúnebre e silente. Cruzaram ruas e alamedas ouvindo injúrias dos moradores. Caminharam até o viaduto do homicídio, e ali abaixo, sob a sombra da antiga construção onde jazeu o corpo de Giane, ergueram uma extensa faixa. Guiado por cento e doze mãos, o letreiro branco sobre o negro dizia: NESSE DIA DA MULHER POR QUAL MORTE VOCÊ CHORA? O vento sacudia o tecido negro. O silêncio dos cento e doze irmãos e irmãs presentes foi o som mais profundo e devastador que Dalila ouviu em tempos. Não discursaram ou incitaram embates exaltados. Apenas permaneceram emudecidos, e aqui e ali na multidão de enlutados seguiu-se um soluço e choros contidos. Trocaram abraços, solidariedade e irmandade. Dor. Ao chegar das viaturas com ânsia de exercer uma repressão mais violenta, nada aconteceu. Nem ameaça ou resistência. Cento e

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doze mãos se entrelaçaram confidentes. E assim partiram sob os focos de luzes faiscantes e douradas que repeliam a escuridão. Pela manhã do dia seguinte, cento e doze rosas negras estavam espalhadas pelas ruas. No viaduto do incidente, deixaram uma única flor vermelha encostada junto à faixa. Dalila abriu os olhos esperando despertar na solidão de mofo, infiltrações e pobreza que era seu quarto sem uma porta que trancasse. Mas ali estava Fátima, em pé ante ela nervosa e abatida. Têm sido tempos difíceis pra mim, pensou como argumento de refutação para o que quer que a mãe fosse dizer, mas então concluiu, mas pra ela, têm sido tempos difíceis desde sempre. – Aconteceu alguma coisa? – perguntou defensiva, previamente assustada. Fátima pigarreou e respondeu, sem olhá-la diretamente. – A Dália está doente. Há três dias, caso você não tenha percebido. Ontem quando você saiu a tarde sabia que ela quase desmaiou de febre? – O quê!? – atordoou-se Dalila que saltou da cama num pulo, exasperada e ansiosa. – Ela tá bem? O que houve com ela? Como você não deu um jeito de me avisar, mãe? Fátima não se alterou para respondê-la. – Você estava ocupada demais enfurnada na S. do Prado e marchando pelo A e B enquanto eu tava tentando salvar a menina! Como você queria que eu te avisasse, hein Dalila? Quando você não tá enfurnada arranjando grana com seus bicos tá sempre com eles! Tudo é sobre eles agora, né? Você tá idêntica a seu pai…

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– Não foi intencional! O que eu poderia ter feito aqui que você não pudesse? – Não ter me deixado sozinha pra começar! Você sabe disso! Fátima soou tão acusadora que a filha estremeceu. Lágrimas penderam nos cílios longos involuntariamente, mas Dalila as conteve com uma fungada. Após um tempo, perguntou cabisbaixa: – Ela está melhor agora? – Depois de 40º de febre e graças a D. Ziná. A nossa sorte, e nós tivemos muita sorte, Dali, é que ela tinha lá umas ervas e uns remédios caseiros, porque se não restasse alternativa além de levala ao hospital… você sabe o ela nem mesmo chegaria, né? Você nunca ia se perdoar por não ter estado lá, ao lado dela quando o tempo todo ela perguntou de você pra mim. Fátima deu as costas e saiu. A porta poderia ter fechado em suas costas e o assunto morrido ali, mas Dalila saltou da cama como uma gata e avançou porta afora, prosseguindo a discussão quando a mãe chegou à sala. – Todos os dias! Todos os dias ela me pergunta do “tio Nico”. Todos os dias ela pergunta pra mim quando é que vamos sair daqui, quando é que vamos ter uma droga de vida decente! Eu só tô tentando fazer o certo, o que eu sei que é certo e você não pode me culpar por isso! Você tá sendo injusta comigo, mãe – acusou. – Estou? E você? Já foi justa com algo além dos próprios interesses alguma vez? – É claro que sim! – Fátima olhou-a com censura. Dalila só então se deu conta de que estava quase aos gritos. – Você me culpa, mas não estava no meu lugar! Não pode nem imaginar quanto me doeu fazer o que fiz e não foi por mim!

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– Me diz, Dalila… – Fátima pediu, chorosa. – Você ainda acha que se Deus existe ele foi injusto? Você ainda acha que era você que deveria ter estado no meu lugar? A moça hesitou em responder. Fátima aguardava-a calada. – Responda. – Nunca foi uma questão de escolha. Pra nenhuma de nós. – Tem razão. – Indagou e deu meia-volta. Parou e voltou-se para a filha novamente. – Você sabe por quanto tempo seu pai e eu nos culpamos pelo que houve com o Arthur? Dalila sacudiu a cabeça em negação. – Anos. Até que um dia ele parou de se culpar e me mostrou que se o culpado pelo que houve ao meu filhinho estava atrás daquele gatilho! Eu não tinha ideia que naquela noite eles viriam, eu não tinha ideia que eu não podia deixar você e seu irmão só sair pra brincar lá fora! Que não podia deixar que vocês tivessem uma vida pelo medo! Nós sabíamos que a paz era algo frágil, que mais cedo ou mais tarde eles voltariam, porque eles sempre, eles sempre voltam, mas… mas nós não agimos. Não acreditamos… e quando eu ouvi os tiros, Dalila… Antes de você berrar, antes de você gritar e chorar por ele, eu senti os tiros como se fossem em mim. A mãe que perde um filho morre duas vezes. Não nos mate mais, filha – implorou aos prantos. A jovem engoliu em seco. Sentiu um fio úmido e morno escorrer no rosto liso quando a mãe secou seu pranto. – O melhor amigo do seu pai morreu comandando a MIS. O seu pai morreu, o homem que você amava morreu e você entrou na linha de tiro. A família do Dante está dizimada. A família do Nico? 188


Você nem mesmo imagina o quanto a mãe e o irmão dele fugiram e ainda fogem disso tudo, só pra se manterem a salvos. – Isso não vai acontecer – pontuou firme. – Não com a gente. Os lábios da mãe curvaram num contorno indolente. – Já aconteceu, minha filha. Um de seus irmãos tá morto, o outro preso, você também era pra estar morta e tenho certeza que sabe disso. Você não tem ideia do quanto seu pai se culpou por isso… você não pode nem mesmo imaginar, Dalila. – Não foi culpa dele! – Ela chorou. – Não foi! Fátima cessou as indagações com um aceno de censura. – O passado já está escrito, Dali. Você não pode reescrevê-lo. – Eu só estou tentando fazer o certo. – Você não está só lutando por mera ideologia, né? Os seus amigos estão. Aquela sua amiga que morreu esses dias estava, mas quem está na liderança? Nunca. – Fez uma pausa. O olhar baixo mirava o chão e Fátima estava tão fisicamente próxima da filha que esta podia sentir o ar quente de sua boca ao proferir as palavras duras. – O próximo no comando busca sempre vingar o anterior, não é isso? É uma roda. – Meu pai não morreu assim. Ele conseguiu! Ele conseguiu, mãe! As mortes dos dois não têm mais nada a ver com isso! – Mas estão mortos! – exaltou-se. – Seu pai ter pode vencido a guerra, apesar das mortes e das dores e das noites que eu ouvi você chorar e nada, e nada pude fazer! Mas ele está morto! Morto! Eu, você e o seu irmão o enterramos mesmo assim. Mais uma vez o silêncio. E Dalila o engoliu em seco.

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– Eu descobri que estava grávida uma semana após o enterro do seu pai. – As lágrimas rolaram nas faces de ambas simultaneamente. – E eu faria qualquer coisa pra proteger essa criança. Só espero o mesmo de você. – Eu amo a Dália, mãe. Me perdoa – pediu baixinho. – Eu não preciso te perdoar. Ninguém precisa. Nós duas já carregamos culpas demais nas costas, não é mesmo? Fale por você, refutou Dalila mentalmente. – Você quer que eu largue a MIS? Que eu siga como se nada tivesse havido? – Eu queria que você ao menos tivesse pensado em nós antes de assumir a Causa. Não adianta você usar máscara a cada aparição se a polícia conhece seu rosto. A polícia sabe o seu endereço e os seus inimigos, seja lá quais e quantos forem darão um jeito de saber. E nós sabemos que esse dia vai chegar, não vai? Não negue, ele sempre vem. Você sabe disso, só não reconhece ainda. E quando esse dia chegar resta saber quem vai estar aqui pra abrir a porta. Se vai ser eu e a Dália indefesas ou se será você que vai morrer sozinha que nem um animal pelas próprias escolhas. Fátima deu as costas e afastou-se, secando as lágrimas com o dorso. Não a olhava mais de frente, mas concluiu resoluta. – A vida é cruel, Dalila… e injusta. Melhor do que ninguém eu sei disso. Só te faço uma pergunta: quando o sangue estiver no chão e sua Causa estiver ganha, você perdoará seus inimigos? Você perdoará o quanto lhe custou alcançar essa vitória? Seu pai… ah, Dalila… a morte do seu pai foi um alivio. Ele não suportava mais nos olhar nos olhos, ele não suportava mais entrar nessa casa e ver

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o preço que custou chegar aonde chegou. Eu descobri que Deus foi muito piedoso quando o levou de uma forma tão calma e indolor perto da dor que o matava. Dalila quis falar, mas a voz faltou-lhe. Um choro intenso borbulhava na garganta e relembrava suas dores. As físicas, as da alma, as causadas e sentidas… todas estavam vivas e revolvidas nas entranhas como se fossem de ontem. Um choro alto ressoou vindo do quarto. Vinha de Dália, recémdesperta de um pesadelo. Fátima secou as lágrimas rapidamente e moveu-se ao quarto partilhado por ambas para acudi-la. Mais uma vez, Dalila recuou covardemente. Saiu e bateu a porta, e do lado de fora do casebre, com os pés na lama e as mãos cerradas, ela chorou no silêncio rude de suas culpas e suas dores soterradas.

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9 DURANTE A INFÂNCIA, Alberto Scarpa lhe explicara as artimanhas cautas e ardilosas de lidar com aliados. “É como jogar cartas com colegas e inimigos; você pode até aliar-se a um amigo pra derrubar um rival comum, mas quando este estiver caído, cada um joga por si”. Ruby mantinha esse raciocínio, sentado à mesa do bistrô e à espera do convidado. Adílio Mendes chegou prudente e sem alarde. O convidado trazia consigo e de surpresa seu amado filho Arthur, o primogênito, antigo companheiro das festanças de Carmen e suas amigas. Terrivelmente, ocorreu ao Scarpa que a clara atração do loiro pela filha poderia até ser útil, caso Carmen não fosse lésbica. Adílio era um homem alto e delicado. Seus cabelos eram tufos de algodão gris e o corpo tão pálido e esguio como um sulfite. Arthur, por sua vez, em pouco lembrava o pai. Tinha lisos cabelos louros e olhos fundos como o abismo. – Agradeço a gentileza, seu Scarpa – cumprimentou o governador. – Não sei como adivinhou, mas é o meu bistrô favorito na capital. Subornei sua secretária, não acertaria tamanho mau gosto. – Escolhi pela excelência – retribuiu com um riso amarelo. A princípio, muito falaram em vão. Discorreram dez ou vinte minutos sobre coisas sem importância como o tumor de Lúcio Scarpa, o vírus da Gripe nas Américas e a grave crise em Brasília. Finalmente, quando o chegou à mesa, Ruby introduziu o foco. – Ah, fico até meio sem jeito, mas agradeço pelo modo como lidou com a situação da MIS e a coisa toda, entende? – Claro – sorriu concisamente. – Só atendi o eleitorado. Cê sabe: a voz do povo…

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É joguete nas mãos de políticos, sei sim. – De qualquer modo – insistiu o Scarpa –, se o senhor mantivesse essas precauções por um período, sairíamos todos em vantagem. Odiava-se! Desprezava-se e enojava-se ao extremo por lucrar com injustiças que via como abomináveis, mas as circunstâncias… “as circunstâncias são sempre implacáveis”, dissera-lhe o tio. – Infelizmente, devo insistir que não me peça para intervir no que ultrapassa minha alçada, seu Scarpa – advertiu. Sagazmente, Arthur desconversou. – A propósito, como anda o inquérito do Nico? – A polícia tá fazendo seu trabalho. Certamente é só questão de tempo até provarem nossa inocência. – Interessante. Ouvi dizer que seu tio não tem tanta certeza assim. – Rumores – rebateu Arthur com um riso falso. – A imprensa marrom nesse país desconhece o que é limite. Por fim, Adílio interveio. – Garanto que aquele seu amigo… o Cel. Telhada concorda e muito com você. Aliás, como anda o PNB? Soube que vai indica-lo ao governo do estado. Mal posso esperar pelo embate nas urnas – ironizou entusiasmo, citando o militar como se dissesse “por que não pede ajuda a ele?”. Ruby não soube o que dizer. Para sua sorte – e menor constrangimento, Adílio pigarreou. – Ruby, podemos ser francos um com o outro, certo? – Certo.

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– As políticas do CEN não me apetecem. Não ganho nada ao me manchar com assassinato ou atrelar meu nome ao que acontece com vocês. Me convém muito afastar os pobres e anarquistas e a escória do A e B pela imagem do meu governo e pelo agrado do eleitorado. Mas é só – apesar das palavras rudes, Adílio mantinha uma pronúncia calma e tranquilizante. – Evite os clichês sutis que lhe ensinou senhor seu tio, por favor. Não diga que eu tô negando um favor ao CEN, porque nesse exato momento eu estou negando um favor a você. Nada pessoal; você sabe. Inclusive, simpatizo muito contigo, Ruby! São apenas politicas – explicou. – Famílias na liderança do Consórcio vêm e vão, governadores de São Paulo vêm e vão, mas a estrutura permanece. Adílio calou-se e bebeu de uma taça de vinho seco, prosseguindo. – Compreenda: é ilógico me aliar a vocês quando o CEN manda o Telhada tomar o meu cargo daqui a uns meses! E eu sei que se você pudesse garantir que ele não vai concorrer só pra ter o meu apoio, você o faria, mas você não pode! Porque olha só a ironia: o CEN tá bem mais preocupado em dominar os Três Poderes do que com a dança das cadeiras que ocorre entre as famílias. Quando Adílio cessou por completo, deixando Ruby em completa inércia, foi a vez de Arthur pressioná-lo mais. – Por que o senhor não espera o Cel. Telhada ser eleito pra te livrar dessa enrascada? – Tempo – respondeu honestamente. – Meu tio está morrendo, o inquérito avançando e meus rivais estão à espreita. Nós não temos tempo pra esperar as eleições trazerem alianças mais favoráveis. – Em seguida ergueu a cabeça e uma taça de vinho, com os olhos verdes postos em perdição e desalento. – Meus caros senhores – anunciou desnorteado –, a família Scarpa está ruindo. Mas o show seguirá em pé. 194


Dentre os mais desavisados, alguns até poderiam crer que um homem esperto conduzia o estado. Todavia, estariam errados. Mortalmente errados. O exercício do mandato de Adílio Mendes explicava-se única e exclusivamente graças à equipe de gestores e a alienação do eleitorado, que votou nele com a esperança frustrada de uma “oposição da elite” aos desmandos do Consórcio. Ao final de dezembro do ano corrente, Ruby apostava todas as fichas: Adílio deixaria o Palácio dos Bandeirantes, porém o próprio parecia ainda ter fé. Chegando ao solar tarde da noite ainda narrou aos parentes excitados, com riqueza de detalhes, o desastroso jantar a três. – É impossível que tenha sido tão ruim assim! – murmurou Carmen. – Pois foi. Ninguém mal tocou na comida. Após essa única refutação, Ruby em pé à frente do visor do salão principal, assistiu nos rostos familiares a expressão desoladora de quem nada tinha a dizer. – Onde tá meu tio? – No quarto – a esposa disse. – Ele reclama de dor no corpo, na coluna, falta de ar… eu levei ele ao médico hoje. Ele tem perdido muito peso, Ruby. – Ele não tá dopado pelo menos. Pela décima vez naquele dia, Ruby abaixou a cabeça entristecido e pretendeu seguir ao quarto. Porém, Carmen ergueu-se do sofá e

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abraçou-o intensamente. Sua pele era tal que seda, mas seus braços eram fortes, seguros e firmes. Ela estava ali para ele; assim como Amy, que se juntou ao calor do afeto em dupla. – Vai ficar tudo bem – indagou a filha. Quando saiu do abraço, ele fitou os passos no linóleo que se afastavam ao corredor. Thomas dava as costas e ia embora sem dirigi-lo a palavra ou olhá-lo sem desprezo. Aliás, se tratando das razões do abismo entre pai e filho… ultimamente, bastava ao moço cruzar a rua e caminhar cinquenta metros. A mansão Campos Machado era mármore branco e reluzente em três andares, logo à esquina do solar deles. – Ele vai ficar bem, você vai ver – disse Amy. – Eu ainda tenho esperança. Assim como mantinha viva essa esperança, seguia empenhando fé na memória de Lúcio Scarpa. Os lapsos do tio iam e vinham como ondas, ainda que recentemente andassem mais brandos. Contudo, o Líder não recobrou o bastante para sanar certas dúvidas crueis, e os médicos lembravam: a tendência não era de melhora. Talvez as coisas sujas e obscuras que tenha feito no passado – quiçá o destino que dera a Nicolas – se perdessem para sempre no vazio e escuridão da memória aflita por suas culpas torturantes. Mais tarde no terraço do solar, sentindo a brisa amena com odor de asfalto e poluição, as duas mais antigas gerações da família Scarpa mantinham-se frente a frente. Num clima efêmero pacífico e amistoso. –… então, eu ergui a taça e disse: – fez uma imitação bem verossímil de si mesmo – “Meus caros senhores, a família Scarpa 196


está ruindo. Mas o show seguirá em pé”. E a cara do Adílio só não foi mais épica que a minha. O senhor morreria de rir, tio. A descontração cessou de repente. Morreria não era lá um bom vocábulo. – Você vai sair dessa, Ruby – disse Lúcio comovido. – Talvez se o senhor ajudasse mais… – Se eu lembrasse… – Você disse ao Fabrício que mandou o Oscar cuidar daquilo. Só não lembra qual foi a maldita ordem! Sexta o Nicolas foi trabalhar normalmente, você conversou com o Oscar sobre isso e de noite ele sumiu numa festa no E e, em algum momento entre essa sexta e terça-feira, ele foi morto. Eu falaria com o Oscar, mas ele tirou férias na Europa e, como de praxe, é impossível encontra-lo. Noventa por cento. Segundo os cálculos mentais de Ruby, nove em cada dez vezes que Lúcio dizia a Oscar para “cuidar de tudo” ou “cuidar disso, daquilo” alguém terminava morto. – Eu juro que tento lembrar… Ruby interrompeu rispidamente. – Sejamos francos, tio. O senhor não está preocupado com isso. Ele não era ninguém pra você. Então por mais que o senhor diga que tente, nós dois sabemos que não vai conseguir lembrar porque o senhor não liga! Um morto a mais ou a menos na sua conta não faz a menor diferença, mas eu garanto: quando eu assumir o Consórcio, ou melhor, se eu assumir, eu vou ser diferente. Eu nunca matei ninguém. Eu mal soube de morte alguma antes que o

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senhor executasse, mas encobrir me matava e me mata por dentro. Mas a certo modo eu me sinto em paz agora. Tudo tem vindo às claras, tio. Todos sabem quem nós somos e as coisas horríveis que fizemos. Podemos não ter matado ele, mas eu vejo uma lista de nomes e de rostos cada noite e em cada sonho. Já não consigo mais conta-los, mas sei os nomes de um por um. Lúcio engoliu em seco. Ruby temeu complicar mais a saúde do tio, mas ele andava bem ultimamente. Apresentara melhoras tênues; exceto pela face cadavérica, a perda de peso horrenda e também as tosses com sangue e faltas de ar súbitas que despertavam o solar à noite. Seu tratamento paliativo era o melhor nas Américas, e vinha sendo efetivo para o Scarpa… em alguns dias mais do que em outros. Antes que Lúcio respondesse, Amy surgiu interrompendo. – Ruby, o Lorenzo ligou aqui. Ele chegou da Argentina e perguntou se pode vir vê-lo. O cônsul olhou de soslaio ao tio e disse: – Diga-o que estarei à sua espera. Abaixo de Oscar Mascarenhas, Lorenzo Ardengo era o principal Membro Administrativo do CENSP. Um homem ousado, de sotaque italiano forte e modos broncos, mas que compensava a falha em diplomacia com notável competência. Nada tinha Ruby contra ou a favor o pobre diabo, além das funções escusas que ele exercia em nome do CEN. A privacidade que o assunto exigia estava à altura do local do encontro: o Salão das Memórias. Ali, ele viu Lorenzo

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contemplando com deleite cada metro da galeria. O trabalho de registrar as recordações da família arcaica o encantava e impressionava tanto que o chefe deixou Ardengo apreciar alguns instantes até leva-lo ao escritório, onde foi direto ao ponto. – Pra começar, há alguma razão pela qual você e o Oscar tiraram férias nessa época do ano? – perguntou com ares de acusador. – Talvez porque nós sempre tiramos férias nessa época do ano. O cônsul ignorou o atrevimento. – Você sabe qual foi a prova que o Oscar recebeu de que o Martins era infiltrado? – Você saberia se tivesse aqui naquela sexta. A memória do rapaz era sagaz: Ruby passou toda aquela sexta na companhia de Amacio Figueroa, em Belo Horizonte. Foi até lá para um almoço de negócios, porém, um imprevisto com seu jato manteve-o preso em Minas Gerais até sábado à noite. Na manhã de domingo, as férias dos cães de aluguel (ou principais M.A’s do CENSP) saíram, e de imediato ambos viajaram. – De uma vez por todas eu só quero que você diga se sabe se meu tio deu ou não a ordem pra mata-lo. – Não sei. Só o Oscar falou com ele aquele dia – e desatou a rir insolentemente como se tivesse visto algo muito engraçado. – Perdão, perdão, mas sua cara de frustração agora foi impagável! O senhor deveria vê-la! Não resistiu. Ruby juntou-se ao riso por desespero, acuamento, frustração e aflição. Mas subitamente, como o tempo instável dos

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verões, o Scarpa despiu-se da falsa alegria numa linha séria e tempestuosa que demarcou todo o seu rosto. Se eu chegar a Líder, Lorenzo, é melhor você ter outro emprego, pensou, talvez um pouco alto demais. O funcionário empanturrou-se de caviar e vinho tinto a modos animais, de modo que o chefe cogitou se este estava esfomeado há semanas. Então, Lorenzo disse: – Você sabia que o Iuri, aquele amiguinho do Nico que tá sumido, também é muito amigo da Luci Scorza? Pois é, eu sei. E eu diria que ela, por sua vez, tava ficando próxima demais do Oscar, considerando seu lugar de Membro Externo. O Scarpa fez sinal para ele prosseguir. – Esse Iuri vinha tentando entrar no CEN fazia um tempo. Ele era da mesma faculdade que o Martins, mas não passou no concurso pra M.E e nem ousou fraudá-lo como o amiguinho. Aliás, ele também mantinha lá seus contatos com o Joaquim. – Joaquim Ferrer!? – perguntou abismado. Lorenzo respondeu rispidamente. – E tem outro? Ruby virou o rosto em desalento e perdição. Quando perguntado, Lorenzo respondeu sobre Joaquim. – Um idiota útil que acha que algum dia vai passar de M.E do CEN. Tem costas quentes com militares corruptos, milicianos e grupinhos de extermínio do D e E, mas é só um iludido exfavelado que pensa que vai ser algo além disso. 200


– Sugira sua teoria, Lorenzo. – Luci e Iuri deram provas ao Oscar e seu tio o mandou matar o infiltrado, só que como ultimamente estamos sem gente pro serviço é aí que o Joaquim entra. Só tenho dúvida se o Iuri e a Luci participaram disso também. Ele, eu apostaria que sim. Já a Luci… Ruby engoliu em seco. Tudo estava tão zonzo e indigesto… sentia vertigem, e a visão turva, queria vomitar e adormecer até tudo acabar. Mas não podia. Tinha de ser forte e lutar por seu clã secular não importava o que fizessem. Ele ergueu-se da cadeira e caminhou até Lorenzo. – Não saia da cidade, nem desapareça – ordenou. Ao deixar a galeria, Amy aguardava-o intempestiva. – Eu vi tudo pela câmera do escritório e ele mentiu – acusou severamente. – O Lorenzo tava reunido com o Oscar e o seu tio naquela sexta! Eu fui lá e eu vi, Ruby. Tanto o seu tio, como o Oscar e o Lorenzo decidiram lá que fim levou o rapaz.

Mentiras. Traições. Conspirações e homicídios. O circo estava armado e de repente Nicolau Brandão ou Nicolas Martins tornou-se o maior enigma da história do Consórcio. Nada fazia sentido. Não importava as teorias que o Scarpa tentava encaixar faltava sempre alguma peça, tornava sempre ao desencaixe nuvioso que o fazia retomar tudo. Nicolas Martins estava morto. Mas antes disso viveu Nicolau Brandão nos corredores do Consórcio, e num período ainda mais

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longínquo, foi o único oriundo de D ou E em uma década a ingressar em universidade pública, por meios desconhecidos. Mudar a identidade foi questão de sobrevivência. Após a violenta Guerra de Gangues de 2057, Nicolas Martins foi um nome muito dito e posto em cheque como a provável liderança caso a MIS ainda existisse. Manter-se vivo no meio arcaico e elitista demandava alguns sacrifícios, o nome foi só o primeiro deles. Conforme soubera, ao longo do curso de História, Nicolas tornou-se amigo de Iuri Meireles Silva. O moço louro de Setor C pertencia à mesma turma de Direito que o alcunhado J.P. Iuri parecia não lidar com esse indivíduo, que por sua vez, virou de cara o inimigo mortal de Nicolas – ou Nicolau, como este se apresentava. Anualmente, ocorria um concurso público em cada jurisdição do Consórcio. Através dele elegiam-se vinte e cinco Membros Externos para funções ordinárias, e como requisito, os candidatos vinham apenas de indicações de universidades públicas. Ainda assim, os Membros Externos não passariam disso. Jamais conheceriam os mistérios e minúcias do Consórcio. Esse concurso seria a melhor chance da vida de Nicolau Brandão. Não tardaria para que os rivais que viam nele a pobreza e a divergência conseguissem expulsá-lo. Igualmente, não tardaria até sua real identidade vir às claras perante todos. Infelizmente, colocando de um modo eufemístico, fraudes no concurso para M.E – como as feitas por Nicolas – transcorriam deliberadamente. Bastava apenas algum dinheiro, um sobrenome de influência ou às vezes um bom networking.

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Um tempo após ingressar no CEN, Nicolau Brandão foi expulso da universidade. Tudo o que o Scarpa sabia – ou intuía – era o envolvimento do tal de J.P nesse incidente. Ocorreu que depois disso o disfarce do infiltrado caiu nas suspeitas dos cães de Lúcio. A partir daí, tudo o que Ruby tinha eram suposições incoerentes. Por razões não desvendadas, Luci e Iuri conspiraram contra Nicolas para provar sua ligação com o Movimento Insurgente ao Sistema, se Ruby bem lembrava a sigla. Com as provas entregues a Oscar, o M.A reportou-se ao Líder, que ordenou certeiramente: “Morte aos infiltrados!”. Todavia, os cães de Lúcio estavam sem pessoal para o serviço. Aí que entra Joaquim, o rapaz dos contatos. E seria essa a chance perfeita de o Membro Externo provar quão longe sua ambição ia. E pelo visto ela ia bem longe: Oscar e Joaquim executaram o infiltrado a mando do velho Scarpa. A trama de Lorenzo seria perfeita, se não fosse sua mentira. Ele estava na reunião com Oscar e Lúcio, portanto assistiu o Líder dizer-lhes o destino do infiltrado. Mas… por que negar que esteve lá? Entregar informações contundentes, mas ocultar o real envolvimento mesmo sabendo que o cônsul nunca o entregaria? Ruby assistiu ao sono raso do tio dopado entre enfermeiras e aparelhos. Ali, ponderava as questões não respondidas e as lacunas obscuras. Diante dele estava o homem que poderia elucida-las, e que jazia incapaz de fazê-lo ante tantas mentiras, traições, conspirações e homicídios.

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A sombra amena das nuvens negras formava um manto infindo sobre a cidade ainda durante a manhã atípica. Célio recebeu-o após metade de um dia extenso e agitado de trabalhos. Reuniões com credores e empregados, visitas breves a obras em andamento, cronogramas e papeis, a mídia à espreita e sorrateira. Nada disso parecia tão exaustivo e degradante de lidar quanto enfrentar Rabelo Alvarenga. O delegado aguardava-o esparramado à poltrona em couro negro, com seus óculos baixos e as vestes engomadas. A expressão risonha do homenzinho atormentava o “convidado” enquanto o instinto o avisava: algo está errado. Dessa vez, ele poupou as ladainhas e limitou-se a ir ao ponto. – Sentiu saudades de Lorenzo Ardengo, seu Scarpa? – Ele esteve em meu solar ontem. Del. Alvarenga sacudiu a cabeça como se já soubesse, e voltou-se ao colega com um olhar faceiro. – Até onde lembro você mesmo disse que o Lorenzo ou o Oscar poderiam sanar as dúvidas sobre a inocência do CEN, certo? Ruby confirmou com um aceno atento. – Pois é. Nós não achamos o Lorenzo. A gente soube que ele voltou e até queria reuni-los aqui, só que engraçado: a gente sabe que ele esteve no solar ontem. Logicamente vocês falaram sobre o morto… – insinuou coçando a cabeça –, mas o senhor deu a ele alguma instrução específica sobre ficar ou sair da cidade? – Claro! Eu lhe disse que ficasse.

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O loiro tomou a frente. – Mas nós não o encontramos em lugar nenhum. A conotação nas palavras de Célio revirou Ruby até as entranhas. Algo realmente estava errado. Muito errado. – Ele fugiu – Rabelo informou com um risinho incontido –, mas não irá muito longe com as contas bancárias bloqueadas. Aliás, não quero deixar isso em termos oficiais ainda, mas acho melhor você não se ausentar mais da cidade, seu Scarpa. O cerco estava armado. Não restou salvação ou escapatória. – O Iuri! Sim, o maldito Iuri que vocês nunca encontram! O Lorenzo é um bom rapaz! Ele jamais faria algo ruim – mentiu veementemente. – O Lorenzo falou do Iuri ontem. Foi ele! – É claro que falou – Célio sorriu zombeteiro. – O Iuri mentiu – Del. Alvarenga acusou. – Ele não foi pro interior pra cuidar da mãe doente porque a mãe dele está morta há anos! Só que em algo ele disse a verdade: ele tá mesmo no interior, escondido feito um rato. E nós sabemos até a cidade onde ele está graças ao seu funcionário que ligou pra ele ontem assim que saiu da sua casa. – Como é? – Ruby estava boquiaberto. De sua infância, uma cena clara como água tornou-lhe a mente: o maldito castelinho de areia. Ele vinha ao chão de novo, eterna e novamente: a onda rubra como o sangue o destruía. Mas o castelo havia aumentado. Era real e de cimento e cairia mesmo assim… sobre Ruby e o Consórcio, impiedoso e revoltado.

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– Não é difícil rastrear o paradeiro e as ligações de alguém hoje em dia. Não com os instrumentos, funcionários e juízes certos nas mãos que comandam. – “Está feito?”, o Iuri perguntou ao celular. – Imitou Célio. – “Pronto”, o Lorenzo disse e desligou. Desde então ele sumiu que nem fumaça. E é melhor que o achemos logo. O coração palpitava como se prestes a explodir – estava audível. Nos eternos segundos de análise, com Rabelo e Célio sorvendo sua expressão mais aturdida, o celular com um toque de emergência despertou-o da aflição… para outra maior ainda. Ele reparou no visor vermelho o nome AMY e circundou o aparelho com os dedos soando frio. – Não vai atender? Parece urgente – intrometeu-se Rabelo. – Não. – Abruptamente, recompôs-se. Encarou-os firmemente e indagou. – Bem, suponho que vocês não tenham nada contra mim. Vocês mal podem provar que o Iuri está envolvido, muito menos o Lorenzo, e ainda que o façam será difícil liga-los a nós. Um alerta que lhes dou: saiam dos nossos pés. Nós não matamos o garoto – ergueu a voz para afirmar. – Ah, e da próxima vez me intimem oficialmente. – Seu desejo é uma ordem, seu Scarpa – ameaçou Célio. O celular tocou mais insistente com o visor vermelho da emergência. O céu rugiu numa trovoada e Ruby se ergueu rispidamente, encaminhando-se à porta. Célio estava lá, e com um sorriso de raposa abriu-a para o Scarpa. Um passo, dois passos, três passos para fora que ocorreram lentamente.

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– Seu Scarpa – chamou Rabelo. Antes que o cônsul se virasse, Célio advertiu. – Os cariocas mandam lembranças. Ruby dava as costas para encará-los quando a porta bateu com estrépito. Logo, ouviu de novo o smartphone… Atenda, atenda, atenda! A mente comandava-o. E Ruby o fez ao lado de fora. – Por que você não atende a merda do celular, Ruby? – Gritou Amy ao aparelho. Ruídos de sirenes e carrinhos, murmúrios altos e histeria se embaraçavam do outro lado. – Onde você tá? O que foi que houve? – Seu tio! Ele… ele… – desconversou. – A maldita da Andreia! Um carro bateu no dela de manhã. O Maurício tá ferido e… – prantos e soluços entrecortavam sua fala exausta –… e ela espalhou pra Deus e o mundo que nós mandamos mata-los! A Chiara tava aqui. Nós brigamos feio e o Lúcio… o Lúcio… – Como é que tá o meu tio, Amy? – Vem pro hospital agora, Ruby. Ela desligou. Seu esposo só sentiu o choro quente escorrer no rosto oliva. E de repente… escuridão. Seguido do estrondo de um raio, a tempestade desaguou. Ruby Scarpa escapou para seu Honda e imergiu em histeria.

– Atende! Miserável! Atende! Atende – ele berrava.

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Gritos, surtos e choros não o acalmaram. O Honda corria em desgoverno cortando ruas e avenidas enquanto Lorenzo não atendia a sétima ou oitava ligação feita em minutos. “DEIXE SEU RECADO”, insistia a voz quando o Scarpa atirou o celular contra a vidraça. Chorava. Histeria e descontrole assinavam sua sentença. Lorenzo mentiu, afundou tudo no caos e sumiu em meio ao ar. Os fluminenses corromperam a polícia, ruíram sua família e estavam à espreita. O cerco estava armado e tudo se perdia. Não restava uma esperança. Ruby esmurrou o volante num cruzamento e deu um berro. Uma buzina ressoou. Gritos. Um som de freio assustador. Uma van rodopiou na pista larga para não atingir Ruby, que esquivou até o meio-fio. Deu-se conta que furou o sinal vermelho quando quase acertou um Ford. Conduziu trêmulo até o outro quarteirão e comandou a Allie a exibição de notícias no visor. – Região Metropolitana – anunciou a voz da I.A. – Índices de crimes de ódio disparam e polícia suspeita da ação grupos de… – Próximo. – Política. Oposição aponta fracasso e dissidência do Governo Costa como causa da crise. Rumores de Impeachment… – Próximo, porra! – exaltou-se Ruby. – Consórcio. Membros Beta do Rio de Janeiro se acidentam em São Paulo. Maurício Campos Machado está internado… Ruby tirou a chave da ignição. Tudo silenciou de repente e através dos vidros embaçados pela chuva, enxergou a fachada do hospital

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movimentado. Carros da mídia e repórteres em capas de chuva. Ambulâncias à entrada e outdoors reluzentes. Deixou o carro em qualquer canto e avançou para o hospital.

Seus passos ágeis o guiaram ao saguão. Olhares tensos o fitavam até que Amy e Thomas correram de encontro, exasperados. – Como ele tá, Amy? Abraçaram-se ligeiramente. – Vá logo, Ruby. Ele tá no quarto 33 e quer muito falar contigo. Thomas de frente ao pai olhou-o amedrontado. Estava ali o indolente, acovardado e entorpecido. O rapaz sacudiu a cabeça com um olhar complacente, e então Ruby seguiu rumo. “Quer que eu traga um cafezinho?” a voz de Nicolas perseguia-o. “Talvez fosse bom relaxar, seu Scarpa” dos M.E’s que ingressaram aquele ano, o infiltrado foi o único realmente próximo dos Scarpa. E agora estava morto. “Tudo o que te toca, você destrói! Você mata, seu assassino!” noites atrás, berrou Thomas para ele ao chegar bêbado em casa, antes de dormir com o olho roxo. Não podia chorar ali… não queria desabar. Mas estava difícil suportar! A penumbra furtou o céu acima dele. As paredes se constringiam ao seu redor e seu chão tremia instável. Tudo vinha abaixo como a chuva de verão. Ruby cerrou os olhos e pensou: ele não mereceu aquilo… ninguém mereceria. “Arrancaram seu olho esquerdo, sabia?” Célio disse-o indiferente. 209


(Na completa escuridão, o outro nem faz tanta falta…) Ao reabri-los, porém… Carmen estava ao fim do corredor – acompanhada. Não o tinha visto quando tocou com discrição o rosto de Chiara, olhando-a profunda e intensamente. O pai piscou os olhos, mas não era uma miragem: a intrusa a fitava com malícia e perspicácia. “Quanto você confia na Carmen, Ruby?” insinuou Amy, um tempo atrás. “Ela e a Chiara; eu não gosto das duas perto. A maldita já tem o Thomas, não precisa da Carmen nas mãos”. Ruby cruzou a dupla com uma olhada densa e fulminante. A essa altura, porém, ambas seguiam-se lado a lado como meras conhecidas. E a alguns passos na eterna caminhada até o quarto hospitalar, viu Andreia fechando a última porta atrás dela, a 33ª, e encarando rente o Scarpa. Olhar hostil; mortal e intransigente. – Cuidado – alertou a oponente. – Guerra é guerra. Ela deu-lhe uma ombreada e seguiu rumo. Ruby agarrou a maçaneta. O que ela veio fazer aqui?, refletiu ele cauteloso. Talvez a resposta não importasse.

– Eu quero ela morta! – Lúcio gemeu com dificuldade e lágrimas nos olhos. – Maldita! Maldita! Mil vezes maldita! Malditos cariocas do diabo – gritou. Ele arquejava e tossia sangue em evidente debilidade. O sobrinho aproximou-se amedrontado. – Você provocou esse acidente, tio? 210


– Eu fiz coisas horríveis, Ruby. Eu lembrei! Eu lembrei! Eu lembrei – desatou a chorar. O medidor de frequência cardíaca se alterava bruscamente. – Coisas horríveis… Ruby encarava em desalento o quarto branco. Tinha a incomoda impressão de estar perto de algo errado. – A Andreia, tio… – Foda-se aquela vaca! Eu tô dizendo, Ruby… – reatou a chorar e oscilar para falar. – eu… eu… eu matei… eu matei, Ruby… o seu pai… ele… o seu pai… morto… ele dizia tanto… e eu matei… não foi certo! Não está certo! Mas eu matei… Pela última vez em tempos, Ruby Scarpa fechou os olhos. Apoiou a mão no colchão do quarto e apalpou-o em aflição. – Quem? Quem, tio? Mais um fio úmido e ameno escorreu dos olhos verdes ao aguardo da resposta… a temida e conhecida verdade crua. As mãos trêmulas e iradas agarraram o colchão com força. E então, houve um efêmero vacilo… – O Nicolas. Nós matamos… nós matamos, Ruby – inspirou afoitamente e confessou em alto e bom som. – Eu mandei mata-lo aquele dia. …um pouco abaixo do colchão, um implante áspero e pequeno aderiu-se à mão do cônsul. Ele viu em sobressalto e nada mais precisou ser dito: aquela escuta ouvira tudo. “Guerra é guerra”, ela avisou.

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