Tempos conservadores: estudos críticos sobre as direitas. Volume 2: Direitas no Cone Sul

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TEMPOS CONSERVADORES

estudos críticos sobre as direitas VOLUME 2: DIREITAS NO CONE SUL

Organização Rodrigo Jurucê Mattos Gonçalves Marcos Vinicius Ribeiro Guilherme Ignácio Franco de Andrade

Goiânia, 2018


Copyright ® 2018 Edições Gárgula A marca — Edições Gárgula — está organizada como selo editorial do Núcleo de Estudos e Pesquisas em História Contemporânea da Faculdade de História da Universidade Federal de Goiás (NEPHC/FH/UFG) e do Grupo de Pesquisa Capitalismo e História: Instituições, Cultura e Classes Sociais (UFG/CNPq). Seu propósito editorial é o de publicar a produção intelectual dos professores e pesquisadores que compõem o NEPHC e o GP Capitalismo e História, além de outros autores convidados pelos editores. Trata-se de um selo editorial de autores associados e sem fins lucrativos.

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) Tempos conservadores: estudos críticos sobre as direitas. Volume 2: Direitas no Cone Sul / Organização: Rodrigo Jurucê Mattos Gonçalves, Marcos Vinicius Ribeiro e Guilherme Ignácio Franco de Andrade. Goiânia: Edições Gárgula, 2018. 260 p. ISBN: 978-85-400-2563-9 1. História. 2. História do Brasil. 3. Ciência Política. 4. Rodrigo Jurucê Mattos Gonçalves. 5. Marcos Vinicius Ribeiro. 6. Guilherme Ignácio Franco de Andrade.

Editores Prof. Dr. David Maciel (FH/UFG) Prof. Dr. João Alberto da Costa Pinto (FH/UFG) Conselho Editorial Atanásio Mykonios (UFVJM) Carla Luciana (Unioeste) Cláudio Maia (UFG/Catalão) Dilma de Paula Andrade (UFU) Eurelino Coelho (UEFS) Fábio Maza (UFS) Gilberto Calil (Unioeste) Gilson Dantas (NEPHC) Lucia Bruno (USP) Marcos Del Roio (Unesp/Marília) Maria Letícia Corrêa (UERJ) Maurício Sardá de Faria (UFPB) Paulo Vergílio Marques Dias (GPEL/USP) Ricardo Müller (UFSC) Walmir Barbosa (IFG/Goiânia) Organização Rodrigo Jurucê Mattos Gonçalves Marcos Vinicius Ribeiro Guilherme Ignácio Franco de Andrade Editoração eletrônica Carol Piva Revisão Ana Carolina Neves Capa Baseada na litografia The Bosses of the Senate (1889), de Joseph Keppler.


Sumário Nota dos organizadores

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Prefácio

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Pedro Leão da Costa Neto

Homenagem | Em memória de Lucas Patschiki (1983-2017) e Alexandre Blankl Batista (1980-2018)

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Sobre Lucão, David Maciel Lucas, um grande!, Carla Luciana Silva Nota sobre Lucas Patschiki (1983-2017), Rodrigo Jurucê Mattos Gonçalves In memoriam de Alexandre Blankl Batista: ou sobre como viver e fazer as coisas de forma benfeita e caprichada, Marcio Antônio Both da Silva

Vínculos locais e conexões transnacionais dos anticomunistas na Argentina e no Uruguai (1958-1973)

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Ernesto Bohoslavsky e Magdalena Broquetas

Partido de Representação Popular: estrutura interna e inserção eleitoral (1945-1965)

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Gilberto Calil

Modernização conservadora, concentração fundiária e êxodo rural: contradições de uma microrregião no Oeste do Paraná

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Marcos Alexandre Smaniotto

Golpe de Estado e luta de classes no Paraguai recente: a deposição de Fernando Lugo (2012)

140

Marcos Vinicius Ribeiro

Em defesa da nação, da pátria e da família: uma análise sobre o Prona na Câmara dos Deputados (2000-2006)

160

Odilon Caldeira Neto

Argumentos y anhelos golpistas en los intelectuales de derechas en la Argentina del siglo XX. Una mirada de largo plazo

186

Olga Echeverría

Miguel Reale e o pensamento autocrático

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Rodrigo Jurucê Mattos Gonçalves

Um beijo autoritário através do Atlântico: os diálogos entre a intelligentsia brasileira e portuguesa na Revista Brasília (1942-1944) Marcello Felisberto Morais de Assunção

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Nota dos organizadores

É com grande satisfação que trazemos a público o segundo volume do livro Tempos conservadores: estudos críticos sobre as direitas. Mais que um livro, é um projeto: o “Projeto Tempos Conservadores”, que teve seu nascedouro entre os anos de 2015 e 2016, no seio de um grupo de jovens intelectuais, na sua maioria historiadores, com trajetórias de vida paralelas e interesses em comum, especialmente a pesquisa da multifacética “direita” e por se filiarem ao marxismo. Uma das razões fundamentais que nos motivou foi a chamada “onda conservadora”, identificada com o movimento responsável pelo Golpe de 2016, que alijou Dilma Rousseff da Presidência da República; golpe que continua por aí buscando aquele que é o objetivo fundamental da direita e que lhe dá vida: destruir os direitos da classe trabalhadora. Diante de tudo isso, percebemos que podemos dar alguma contribuição para a compreensão crítica do pensamento da direita, de suas ideias, instituições, organizações e personagens, sobretudo porque os fundadores do Projeto não são pesquisadores de ocasião, mas acumulam anos e anos de pesquisa sobre o tema. Ademais, temos a convicção de que conhecer profundamente a direita é um dos fatores fundamentais para combatê-la, refreá-la e paralisá-la em sua sanha desenfreada que visa esmagar os trabalhadores. Só iremos conseguir isso com o estudo sistemático, científico, desconstruindo a ideologia e desfazendo a cortina de fumaça que a direita cria diante de si mesma, escamoteando seus verdadeiros objetivos, intenções e as formas pelas quais conquistou o poder, bem como as articulações que lhe permitem manter a hegemonia, ainda que de forma cambaleante em um contexto de profunda crise social, política, econômica e cultural do capitalismo.

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Importante dizer que este compêndio marca a “internacionalização”, já que traz a contribuição de autores de outros países, além do Brasil, remetendo àquela que é uma necessidade dos povos latino-americanos para se libertarem do jugo imperialista: a união de nuestra América Latina com vistas à construção da pátria grande socialista. Também os intelectuais devem buscar essa união. No esforço de internacionalização do projeto ao qual estamos dedicando atenção, vimos também trabalhando no próximo tomo do livro — o terceiro volume, que trará textos que abordam a direita na Europa. Não poderíamos deixar de mencionar a ausência inesperada de dois grandes companheiros e amigos: Lucas Patschiki (1983-2017) e Alexandre Blankl Batista (1980-2018), que fundaram conosco o Tempos Conservadores. Jovens e brilhantes, com um futuro promissor pela frente. Incluímos neste volume uma singela homenagem a eles; o leitor a encontrará nas páginas que seguem. Que cada tomo vindouro seja uma homenagem aos nossos amigos e camaradas falecidos. Podemos dizer que é uma grande honra ter convivido com estes dois historiadores que permanecerão vivos em nossas mentes, em nossos corações e neste Projeto, pensado para perdurar e ter vários volumes publicados, de forma acessível e gratuita. Boa leitura. Os Organizadores.

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Prefácio Pedro Leão da Costa Neto

O livro que ora apresentamos é organizado por três jovens historiadores e pesquisadores sobre a ação e o pensamento conservadores: Rodrigo Jurucê Mattos Gonçalves (doutor pela Universidade Federal de Goiás), Marcos Vinicius Ribeiro (doutorando em História pela Unioeste de Marechal Candido Rondon), ambos professores de História da Universidade Estadual de Goiás do Campus de Quirinópolis; e Guilherme Franco de Andrade (mestre em História pela Unioeste de Marechal Candido Rondon — aliás, como os outros dois organizadores — e doutorando na PUC-RS), dando continuidade aos estudos já reunidos no primeiro volume da coletânea Tempos conservadores, publicada em 2016 e organizada por Lucas Patschiki, Marcos Alexandre Smaniotto e Jefferson Rodrigues Barbosa, que estava dedicada à análise das diferentes manifestações da ofensiva conservadora, tanto em escala internacional como nacional. Ambas as coletâneas têm em comum, além da sua proximidade temática, uma grande atualidade, resultante da forte ofensiva conservadora e reacionária, tanto política como ideológica, que caracteriza o momento atual, em escala nacional e também internacional. Portanto, investigar e compreender as variadas manifestações desta ofensiva é uma exigência fundamental e urgente. O volume é, igualmente, uma justa homenagem a dois outros jovens historiadores, prematuramente desaparecidos — Alexandre Blankl Batista e Lucas Patschiki, que participaram ativamente deste projeto editorial desde o seu início. A presente coletânea reúne contribuições de um conjunto de historiadores, professores e pesquisadores brasileiros, argentinos e uma uruguaia, que interrogam

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diferentes aspectos da constelação conservadora; as suas diferentes experiências históricas, políticas e ideológicas no Cone Sul — em particular, no Brasil, na Argentina, no Uruguai e no Paraguai; a sua longa e permanente presença desde os anos 1930 e que se prolongou pelos anos sucessivos à II Guerra Mundial, determinados pelo pano de fundo da Guerra Fria e ganhando uma força ainda maior após a vitória da Revolução Cubana em 1959, estendendo-se e ainda assumindo formas após a derrota do socialismo nos países do leste europeu, em 1989, e a dissolução da União Soviética, em 1991. Manteve-se, porém, por todo este longo período, inalterado em seu caráter marcadamente antipopular, contrarrevolucionário e anticomunista. Com a ajuda de uma reflexão baseada em diferentes teóricos — tanto do interior do campo marxista, como Lenin, Antonio Gramsci, Evgeni Pachukanis, Nicos Poulantzas e, dentre outros, Umberto Cerroni; bem como do campo exterior a ele, como Sigmund Freud e Barrington Moore; fato é que os teóricos aqui procuram interrogar não somente a extensa bibliografia, como também um vasto conjunto de fontes, constituído de revistas, periódicos e jornais; documentos governamentais, partidários e de órgãos de segurança; discursos políticos, assim como dados eleitorais publicados pelo Tribunal Superior Eleitoral e diferentes estatísticas. Os resultados alcançados nestes artigos representam, muitas vezes, não só um balanço do Estado sobre as pesquisas de diferentes experiências, mas lançam novas hipóteses e sugestões para futuros trabalhos na área de investigação histórica sobre o conservadorismo. O

primeiro

artigo

“Vínculos

locais e conexões transnacionais dos

anticomunistas na Argentina e no Uruguai (1958-1973)”, de autoria de Ernesto Bohoslavsky (professor da Universidad Nacional de General Sarmiento e pesquisador do Conicet/Argentina) e Magdalena Broquetas (professora da Universidad de la República/Uruguai), está voltado para uma análise da criação e desenvolvimento das organizações políticas anticomunistas na Argentina e no Uruguai, das suas concepções ideológicas e projetos comuns, assim como da análise dos vínculos estabelecidos entre elas durante a Guerra Fria e, em particular, após a Revolução Cubana. Utilizando um conjunto de fontes originais (jornais das 8


próprias organizações e da imprensa da capital dos dois países, documentos oficiais, como também dos órgãos de informação norte-americanos (particularmente ativos no Uruguai), os pesquisadores procuram demonstrar que as relações existentes entre estas organizações foram, ao contrário do que se julgava até agora, bem mais importantes. Além de investigar as relações estabelecidas entre estas organizações, os autores procuram, ainda, analisar a extensa rede de contatos e relações que, em diferentes momentos, chegaram a manter com diferentes setores dos respectivos governos e militares, órgãos de segurança norte-americanos, grupos de direita de outros países da América Latina e Europa, fugitivos nazistas, exilados anticomunistas do leste europeu e de Cuba, chegando até a membros da Liga Árabe. Gilberto Calil (professor do curso de História e do Programa de PósGraduação em História da Universidade Estadual do Oeste do Paraná) analisa o “Partido de Representação Popular: estrutura interna e inserção eleitoral (19451965)”, em seu capítulo dedicado ao PRP, criado por Plinio Salgado em 1945 e que funcionou até 1965, quando, junto com os outros partidos políticos, foi dissolvido — após o golpe militar de 1964, pelo AI-2. Baseado em uma minuciosa análise de arquivos públicos, que reúnem a documentação integralista e de Plínio Salgado, Calil pretende contribuir para a análise da história do PRP, que, ao contrário, do movimento integralista despertou bem menor interesse dos pesquisadores. Ao contrário do que julgam outros historiadores, o autor procura, igualmente, demonstrar que a atuação do PRP foi significativa e que possuiu o caráter de um partido nacional. Chama também a atenção para a coincidência entre os resultados eleitorais pelo PRP nos Estados que reuniam um maior número de descendentes de alemães e italianos que habitavam “regiões coloniais”, isto é, Espírito Santo, Rio Grande do Sul, Paraná e Santa Catarina. Marcos Alexandre Smaniotto (professor de História na rede estadual de ensino fundamental e médio do Estado do Paraná), em seu capítulo “Modernização conservadora, concentração fundiária e êxodo rural: contradições de uma microrregião no oeste do Paraná”, traz a debate uma experiência particular de modernização conservadora no campo, realizada no município de Marechal Cândido Rondon, que teve seu início com a sua ocupação por colonos do Rio Grande do Sul 9


e Santa Catarina de origem alemã e italiana. A análise tecida pelo autor parte de fontes que reúnem produções memorialistas — tanto as produzidas para as prefeituras como as elaboradas pelas famílias dos “pioneiros”, voltadas a criação de uma memória sobre a colonização da microrregião —, relatos de jornalistas, produções acadêmicas sobre o tema e dados estatísticos sobre o desenvolvimento da região. O trabalho não se restringe à análise da modernização conservadora, seus efeitos de concentração fundiária e êxodo rural, mas indica, igualmente, que este processo se deu — segundo as palavras do autor — pela conservação das “estruturas de poder, de dominação, de expropriação e de dominação no campo”, havendo correspondência entre a defesa da “ideologia da racionalização e a acumulação capitalista”. Apesar de se apresentar como análise de um caso específico, o capítulo tem também por objetivo “contribuir para os estudos do agrário, em especial sobre a modernização conservadora e as consequências de sua implementação no Brasil”. Em “Golpe de Estado e luta de classes no Paraguai recente: a deposição de Fernando Lugo (2012)”, Marcos Vinicius Ribeiro (professor do curso de História da Universidade Estadual de Goiás) desenvolve uma reflexão sobre um acontecimento histórico da recente história latino-americana: o Golpe de Estado jurídico-político de 22 de junho de 2012, que depôs Fernando Lugo da Presidência da República do Paraguai. Para uma plena compreensão deste acontecimento, o autor procura reconstruir a história política do Paraguai, marcada pela longa ditadura do general Alfredo Stroessner e do bloco de poder constituído em torno dele e do Partido Colorado. Bloco este, aliás, que se prolongou no poder, mesmo depois do Golpe de Estado que derrubou Stroessner e do período de transição democrática iniciado em 1989, caracterizado pela influência inalterada do Partido Colorado e acompanhado por uma instabilidade política que correspondeu à “transferência do controle institucional” do aparelho de Estado, “das mãos da corporação militar para o campo jurídico e policial”. Marcos Vinicius lança luz sobre as dificuldades de romper com esse longo e duradouro bloco de poder e, a partir dessa reconstrução histórica, voltase para a dinâmica da falida experiência de ruptura com o bloco de poder ensaiada por Fernando Lugo, eleito em 2008 pela Alianza Patriotica para el Cambio — uma 10


coalizão entre diferentes forças políticas e movimentos sociais, caracterizada por uma política contraditória de alianças que reunia desde defensores de uma política reformista até representantes históricos da oligarquia que acabaram se voltando contra Lugo e apoiando o Golpe de Estado de 2012, caracterizado por alguns autores como um “neogolpe”. Partindo de um caso específico de “disputa de hegemonia” e dos limites de um projeto que pretende realizar-se no interior de um Estado capitalista dependente, o autor nos apresenta a dinâmica do que parece constituir uma nova dinâmica contrarrevolucionária no continente latino-americano. No texto “Em defesa da nação, da pátria e da família: uma análise sobre o Prona na Câmara dos Deputados (2000-2006)”, Odilon Caldeira Neto (doutor em História pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul) analisa os diferentes momentos da história do Partido de Reedificação da Ordem Nacional (Prona), fundado em 1989 e extinto em 2007, tendo como sua liderança histórica a figura emblemática do médico cardiologista Enéas Ferreira Carneiro, candidato por três vezes à Presidência da República (em 1989, 1994 e 1998) e que, em 2002, foi eleito deputado federal pelo Estado de São Paulo com 1.573.642 votos. Os diferentes momentos indicam o processo de cristalização ideológica, com a aproximação de diferentes grupos ao partido e suas relações com diferentes correntes de direita e extrema-direita (setores nacionalistas de direita e grupos de militares de reserva, grupos neointegralistas, entre os quais, a Frente Integralista Brasileira (FIB) e grupos skinhead) e com o estabelecimento de relações internacionais com grupos ligados a Lyndon LaRouche (EUA) e do militar cara-pintada argentino Mohamed Ali Seineldín. O autor se refere, ainda, à atuação de outro destacado dirigente do Prona, o deputado federal Elimar Máximo Damasceno, que, em seus discursos e intervenções, procurou homenagear dirigentes históricos do movimento integralista (Plínio Salgado, Gustavo Barroso e Miguel Reale) e cuja aproximação política com outra importante liderança política da extrema-direita, o deputado federal pelo Rio de Janeiro Jair Bolsonaro (eleito nas eleições de 2014 com mais de 460 mil votos), merece destaque em razão do processo de radicalização político-ideológica que este vem consolidando como liderança nacional da extrema-direita.

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Em seu “Argumentos y anhelos golpistas en los intelectuales de derechas en la Argentina del siglo XX. Una mirada de largo plazo”, Olga Echeverría (professora do Instituto de Geografía, Historia y Ciencias Sociales/Instituto de Estudios Históricos Sociales/Universidad Nacional del Centro de la Provincia de Buenos Aires e pesquisadora do Conicet) reconstrói a longa história das correntes argentinas de direita (a direita liberal e a extrema-direita) e de seus intelectuais, cujas origens remontam ao Golpe de Estado de 1930, atestando sua longa e continua influência na conturbada história política argentina, assim como seu papel ideológico, de acentuado caráter classista e antipopular, que se manifesta na contínua justificativa e tentativa de legitimação dos diferentes e sucessivos golpes ao longo do século XX na Argentina. Para problematizar a contínua violência — em suas mais diferentes manifestações — e o grande desprezo em relação aos setores populares, a autora interpreta a obra de Sigmund Freud, O mal-estar na civilização, apontando a “inclinação à agressão, à destruição e com ela também a crueldade” que foi uma das características da ação e da ideologia da direita argentina. Por fim, demonstra que a resposta dada pela direita a uma história que se lhe apresenta como uma “história de fracassos” foi sempre procurar “bodes expiatórios” que permitissem justificar estes fracassos. A contribuição de Rodrigo Jurucê Mattos Gonçalves (professor do curso de História da Universidade Estadual de Goiás) é o texto “Miguel Reale e o pensamento autocrático”, dedicado à análise do período pós-integralista deste importante intelectual da direita brasileira. O autor discute a contribuição principal de Miguel Reale ao pensamento jurídico filosófico, no livro Filosofia do Direito, que, no interior de sua vastíssima obra, nas palavras de Leandro Konder, citadas no texto, seria uma verdadeira “floresta de papel impressa”. Uma ideia da importância desta obra para a formação dos bacharéis em Direito no Brasil pode ser atestada pelas suas repetidas edições e tiragens; no ano de 2002, o livro teve a sua vigésima edição e, em 2016, a décima quarta tiragem. A partir da contribuição dos filósofos marxistas do direito e da política (Pachukanis, Cerroni e Poulantzas), assim como da obra de Florestan Fernandes, o Rodrigo Jurucê nos oferece uma leitura da obra de Reale que permite caracterizá-la como um exemplo de pensamento autocrático — o qual 12


encontra uma continuidade na obra Celso Laffer, outro importante teórico conservador do direito; ambos representando a expressão teórica da revolução passiva brasileira. Por fim, o último capítulo — “Um beijo autoritário através do atlântico: os diálogos entre a intelligentsia brasileira e portuguesa na Revista Brasília (19421944)”, de Marcello Felisberto Morais de Assunção (doutor em História pela Universidade Federal de Goiás), está voltado à análise da Revista Brasília, periódico de cultura luso-brasileira publicado pelo Instituto de Estudos Brasileiros da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, nos anos de 1942-44. A Universidade de Coimbra representava, então, a instituição universitária portuguesa onde os intelectuais e o regime salazarista mantinham relações estreitas, destacando-se na “produção e reprodução de uma concepção de mundo autoritária e corporativista”. A partir, por um lado, da obra teórica de João Bernardo e dos estudos sobre o corporativismo e autoritarismo em Portugal e no Brasil de autoria de Francisco Carlos Palomanes Martinho e António Costa Pinto, dois importantes intérpretes do pensamento autoritário e corporativo brasileiro e português, o autor analisa, antes de tudo, as resenhas publicadas na Revista acerca de obras de autores brasileiros, então representativos da intelligentsia “autoritária” e “corporativa” brasileira, como Azevedo Amaral, Francisco Campos e Fernando Azevedo. O artigo destaca que o interesse dos intelectuais portugueses por estes autores brasileiros é o exemplo de uma proximidade ideológica entre a intelectualidade portuguesa e brasileira, a exemplo também da proximidade entre os dois Estados Novos: o salazarista e o varguista. Como visto, partindo de diferentes objetos de investigação, o conjunto dos artigos adota diversas abordagens teóricas; os autores se baseiam na consulta a uma variada bibliografia e um extenso conjunto de fontes, nos permitindo visualizar não só a presença recorrente da constelação conservadora nos países do Cone Sul, a existência de uma forte e constante presença política de organizações de direita e de extrema-direita e de suas manifestações em uma forte atividade editorial, como também a ação de seus importantes intelectuais.

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A experiência política nos países de nossa região foi caracterizada por uma história marcada por repetidas experiências ditatoriais. Os artigos demonstram, pois, a constante reatualização e aquisição de novas formas por esses movimentos, mantendo, entretanto, a sua profunda identidade antipopular e contra os trabalhadores, de conteúdo marcadamente contrarrevolucionário e anticomunista, que são a íntima expressão dos eternos descaminhos quanto às formas específicas de revoluções burguesas pelo alto, o que sempre caracterizou o nosso continente ao longo do século XX. O livro não deixa, também, de analisar as novas formas de golpe de estado e as repetidas reedições de políticas eminentemente conservadoras. Entretanto, a importância da presente coletânea não se reduz apenas a isso. Em um momento histórico caracterizado por um longo ciclo de restaurações políticas iniciadas nas últimas décadas do século passado e agravadas pela erupção periódica de crises econômicas, por um lado elas reaparecem de velhas ideologias que acreditávamos definitivamente enterradas, lado a lado com a invenção de novas manifestações políticas e ideológicas do pensamento conservador e de direita. Frente a este cenário político e ideológico, iniciativas teóricas como a que apresentamos agora são indispensáveis para todo projeto que queira ultrapassar os limites de uma realidade social que não cessa de criar e recriar estas ações e concepções. É importante, ainda, destacar que já foi anunciada uma continuação deste projeto editorial, com o lançamento de um terceiro volume dedicado às experiências

históricas

e

organizações

e

partidos

conservadores

e

contrarrevolucionários europeus.

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HOMENAGEM Em memรณria de Lucas Patschiki (1983-2017) e Alexandre Blankl Batista (1980-2018)


Sobre Lucão David Maciel1

Conheci o Lucas em Marechal Cândido Rondon, no III Simpósio “Estado e Poder”, organizado por meus amigos, Carla e Gilberto. Como mestrando do Programa de Pós-graduação da Unioeste, ele participou ativamente do simpósio, não apenas como ouvinte, mas colaborando com a organização, com a banca de livrões e revistas e com a recepção dos convidados externos. Participou ativamente também da tradicional festa pós-simpósio promovida pelos alunos, que sempre encerram de maneira gloriosa o evento. Durante os dias do evento ele me abordou, dizendo que havia lido meu livro sobre a transição da Ditadura Militar à Nova República e me fez uma série de perguntas e questionamentos. Discutimos algumas questões, principalmente nosso interesse comum por Gramsci. Mas foi na festa de confraternização que a conversa rendeu! No boteco, sim, a coisa foi no bar, faloume do que estudava e de seu interesse em fazer o doutorado em Goiânia, na UFG. Na época o Programa de Pós da Unioeste de Marechal não tinha o doutorado, de modo que ele tinha que fazer em outro lugar. Perguntou-me ainda sobre as possibilidades de obtenção de bolsa e da minha disponibilidade para orientá-lo. Respondi positivamente às duas questões. Havia outros alunos na conversa, que também demonstraram interesse em vir pra Goiânia, mas senti mais firmeza em Lucão. Dali em diante iniciamos um diálogo intelectual que depois se desdobrou num diálogo político e musical, para desembocar numa amizade como poucas vezes tive com um aluno. Quando em Goiânia, Lucas frequentava minha casa, comíamos e bebíamos (sempre!) e, às vezes, tirávamos um som. Sempre rock, claro! Ficou amigo da família toda, ele e a Jana, sua companheira. Meu filho Raul o adorava! Eu também! 1

Professor da Faculdade de História e do Programa de Pós-Graduação em História da UFG.

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Depois desta conversa em Marechal Lucas veio à Goiânia, para a seleção da pós-graduação. Seu projeto surpreendeu toda a banca, pela clareza, aporte teórico, controle das fontes e por sua erudição. Ficou em primeiro lugar entre todos os candidatos, incluindo os de outras linhas de pesquisa do programa. Depois disso, começamos a trabalhar juntos, menos como orientador e orientando, mais como camaradas e parceiros intelectuais. A última vez em que nos encontramos foi em setembro de 2016, por conta de um seminário no qual ele apresentaria um texto, ao passo que eu arguiria dois outros. Saímos de lá no meio da tarde e fomos até minha casa tocar e depois comer, tomar vinho e conversar sobre a tese, sobre política, sobre a vida. Foi embora de madrugada! Lucas sempre teve muita clareza do que queria fazer em seu doutorado e das implicações políticas advindas disso. Estudar o Instituto Millenium — um dos principais aparelhos privados de hegemonia criados pelas classes burguesas no Brasil no período recente — significava descortinar as novas configurações da sociedade civil e as novas formas de fabricação do consenso e divulgação ideológica operantes na sociedade brasileira numa conjuntura especial: o período de administração do governo federal por um partido com origem no movimento dos trabalhadores, o PT. E dá-lhe Gramsci e Marx, autores que Lucão dominava com a segurança de um pesquisador muito mais maduro do que sua pouca idade sugeria. Porém, esta situação, um partido de esquerda no comando do Estado burguês, inédita na história do Brasil, era ainda mais especial, porque ao contrário do que poderia parecer à primeira vista, o governo do PT não só não confrontou a perspectiva política do capital, como aderiu a ela, adotando o programa neoliberal em sua forma moderada e operando uma política de conciliação de classes que beneficiou prioritariamente o grande capital e reforçou como nunca a hegemonia burguesa. Portanto, uma situação especial, pois diante da “integração passiva do PT à ordem”, da adesão transformista do governo petista à hegemonia burguesa, havia que se explicar o visceral antipetismo do Instituto Millenium; na verdade, o anticomunismo tradicional da direita brasileira travestido de antipetismo! Noutros termos, porque este aparelho privado de hegemonia (APH) “de ponta” na fabricação do consenso burguês, diretamente ligado aos setores mais beneficiados pelo 17


governo petista, adotou uma postura de radical oposição às suas políticas, em vez do apoio, mesmo que crítico. Neste ponto foi necessário incorporar as formulações teóricas de Florestan Fernandes, autor que Lucas conhecia, mas não a ponto de orientar suas reflexões. A teoria fernandiana sobre o caráter autocrático-burguês do Estado brasileiro e do modelo de transformação capitalista adotado historicamente no país foi incorporada ao aporte teórico de Lucas de modo denso e sistemático, com uma velocidade impressionante. Lucas “devorou” nosso autor e, em poucos meses, dominava sua produção como poucos. O aporte teórico de Florestan Fernandes foi fundamental para compreender as razões do antipetismo radical do Instituto Millenium diante de um governo “amigo” do capital, qual seja, a perspectiva autocrática das classes burguesas no Brasil, sua incapacidade em aceitar a criação de um espaço político próprio das classes subalternas e de seus representantes políticos, sua aversão a qualquer perspectiva que aponte algum “alívio” para os pobres, mesmo que isto signifique nada mais que a ampliação de políticas sociais compensatórias, algo recomendado pela própria doutrina neoliberal. Daí o papel do Instituto Millenium como “cão de guarda” da autocracia burguesa, rosnando contra qualquer possibilidade de arejamento no exclusivismo político da dominação burguesa. O mais interessante desta situação particular, exaustivamente trabalhada por Lucas, foi a presença de próceres da alta burguesia no governo Lula, com participação orgânica no Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social na lista de financiadores de primeira hora do IMIL. Parece esquizofrênico, mas não é! Na verdade, é uma evidência do alcance que os tentáculos da dominação burguesa estabelecida no país podem atingir. Como se sabe, a pesquisa de Lucas ficou inacabada. Ao longo de dois anos discutimos diversas vezes, ao vivo e por e-mail, em Goiânia e em Marechal, e ele me enviou três capítulos. Em dezembro de 2016, enviou-me novamente os três primeiros, com as alterações e acréscimos sugeridos por mim, e mais três, inéditos. O primeiro era um longo excurso teórico sobre a particularidade da formação social brasileira e as relações entre Estado e sociedade civil, em que expôs, de forma sistemática, os conceitos e teorias explicativas que utilizaria em seu trabalho, indo das formulações 18


de Marx sobre o Estado burguês, até a teoria da hegemonia de Gramsci e da autocracia burguesa de Florestan Fernandes, passando por uma infinidade de outros autores; o segundo tratava da montagem de uma rede de aparelhos privados de hegemonia de perfil neoliberal, como o IMIL no Brasil, voltado aos anos 1980; já o terceiro tratava do antecessor do próprio IMIL, o Instituto da Realidade Nacional, criado sob inspiração do think thank neoliberal por excelência, o Atlas Network. Nos três capítulos seguintes Lucas tratava diretamente do IMIL, expondo sua “engenharia institucional”, como ele gostava de dizer, os vínculos de seus financiadores com o grande capital, seus principais animadores e intelectuais orgânicos, por meio da trajetória institucional de cada um deles; por fim, o posicionamento do IMIL em relação às diversas conjunturas nos dois mandatos do governo Lula, especialmente em relação ao que foi considerado o ápice do “estatismo petista”: o Programa de Aceleração do Crescimento. Total de 276 páginas! Por conta da correria de final de semestre na universidade, não pude ler o material de imediato. Deixei para fazê-lo em janeiro, afinal Lucas ainda tinha um ano de pesquisa pela frente. Só teria que defender sua tese em fevereiro de 2018. Então tínhamos tempo! Mas quando o fiz, Lucas já tinha nos deixado. Foi punk! Ao longo do texto Lucas inseriu centenas de comentários laterais e inserções em vermelho no próprio texto, comentando comigo indicações ou correções que eu tinha proposto antes, sinalizando o que pretendia fazer naquele trecho ou como chegou àquela formulação. Era como se ele estivesse ali do lado, fazendo a leitura comigo e discutindo cada argumento e opção conceitual. E eu ali, sozinho, raciocinando sobre o que lia e imaginando o que ele responderia. Eita, não foi fácil! À medida que ia lendo e me extasiando ainda mais com a clareza argumentativa, o rigor conceitual e o manejo das fontes fui-me convencendo de que ali havia uma tese. Toda a parte do contexto histórico e político das sucessivas conjunturas desde os anos 1980 precisava ser escrita, pois optamos por Lucas se concentrar primeiramente no IMIL, afinal, defendia eu perante ele que esta parte poderia ser construída com base na vasta bibliografia sobre o período que ele conhecia de cor. Então deixamos o contexto para depois, para nos concentrar no objeto central do trabalho. No entanto, apesar destas lacunas, no tocante ao IMIL 19


havia uma tese fundamental, qual seja, a de que na era da chamada globalização, das novas tecnologias e da hegemonia política e cultural da perspectiva neoliberal, os APH’s de formato think thank, como o IMIL, que funcionam por rede e inserem seus intelectuais orgânicos em diversos outros aparelhos de hegemonia (imprensa, partidos, universidades, etc.) e no interior do aparelho de Estado conseguem apresentar suas concepções de modo muito mais “natural” e “espontâneo”. Isto porque, ao se recusarem a organizar-se formalmente como partido político, por exemplo, e ao dispensarem a criação de estruturas materiais significativas, bem como um quadro de funcionários profissional e permanente, podem aparentar uma postura de distanciamento em relação aos interesses imediatos da luta política e dos interesses de classe, apresentando, assim, suas teses de maneira muito mais “desinteressada” e com maior eficácia hegemônica, em nome de uma perspectiva “universal”. Nesse sentido, o IMIL expressava uma nova forma de construção do consenso, uma manifestação nova da “pedagogia da hegemonia”. Feita esta constatação, decidi submeter o trabalho à avaliação de uma banca e assim realizamos, no dia 14 de dezembro de 2017, a sessão de defesa de doutorado da tese de Lucas. Por razões óbvias a coisa foi simbólica, mas mesmo assim foi para valer, pois a banca discutiu pormenorizadamente o trabalho apresentado, levantando questionamentos, sugerindo desdobramentos, mas terminando por concordar que ali havia uma tese original e qualificada sobre as novas configurações da sociedade civil burguesa no Brasil e os novos métodos adotados para a construção do consenso. Por conta disto, a banca resolveu conceder-lhe postumamente o título de doutor em História e sugerir a publicação da tese no banco de teses e dissertações do programa de pós-graduação e posteriormente em livro. Foi demais para minha cabeça! Na saída, sua companheira Janaina, que veio assistir à defesa com os pais e o irmão dele, me disse que ele pretendia escrever toda a parte do contexto histórico recorrendo fundamentalmente às fontes primárias, como a imprensa, os documentos partidários, de governo, etc., objetivando, com isso, escrever mais umas 500 páginas! Não duvido, quando o doutor Lucas queria “abraçar o mundo com as

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mãos”, ele conseguia. E fazia isso com a leveza dos que conhecem o caminho de antemão! Termino aqui com um último relato: por ocasião de sua morte recebi as condolências de um monte de gente na universidade, pessoas que sabiam que eu era seu orientador e amigo. E entre essas inúmeras pessoas, alunos e professores, não foram poucas as que se lembraram de dizer o quanto Lucas as ajudou comentando seu trabalho, indicando um texto ou livro e sugerindo caminhos de pesquisa e reflexão. Esse era o Lucas que todos conhecemos e que vai ficar na nossa memória: além de trabalhador incansável, intelectual brilhante, comunista consequente e amigo leal, ele ainda era generoso e atencioso como poucos são na academia e mesmo na vida. Lucas Patschiki, que saudade de você!

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Lucas, um grande! Carla Luciana Silva1

Convivi com Lucas Patschiki, num primeiro momento, como estudante de mestrado na disciplina “Hegemonia e Poder” que ministrei no PPGH da Unioeste. As aulas se dividiam em duas: com Lucas e sem Lucas. Sua presença sempre trazia contribuições aos debates. Mais que isso, ele sabia instigar o debate de colegas cujas posições discordavam das suas. Todos cresciam com isso, seja em virtude da entrevista de Poulantzas que ele trouxe para discussão, seja em virtude do seu interesse sempre presente em Lukács. Leitor de Gramsci, aprendeu com ele que o marxismo não é um campo, é uma forma de compreensão de mundo e, portanto, tem que estar aberto: metodologia e teoria não são apenas ferramentas, são uma forma de interpretar o mundo buscando transformá-lo. A partir disso discutimos algumas vezes sobre sua ojeriza às religiões e à lógica, já que o marxismo não é uma religião. Seguindo com Gramsci, o problema passa por perceber o papel da religião na formação moral de mundo dos indivíduos. Portanto, não basta negar e refutar a religião; algo diferente da religião, em conteúdo e forma, deve ser proposto à classe trabalhadora? Essas eram algumas das questões que animavam nossas tardes. Posteriormente, Lucas foi meu colega como professor na universidade, o que só me traz boas lembranças. O melhor termômetro para isso é ter dado aulas para turmas cujos alunos já haviam tido aula com ele, de modo que eles traziam questões colocadas, há mais de ano, pelo “professor Patschiki”. Lucas não apenas ministrava aulas, mas propunha questões aos estudantes, fazendo-os refletir, da mesma forma que fizera quando foi meu aluno. 1

Professora da graduação em História e do Programa de Pós-Graduação em História da Unioeste.

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No nosso grupo de pesquisa “História e Poder” sua contribuição foi inestimável, pois ele sempre participava avidamente dos debates, contribuindo com o que fosse necessário para o bom andamento das atividades, especialmente nos nossos Simpósios Nacionais. Nessa ocasião, montava a banca de livros de manhã cedo e à noite confraternizava com o pessoal no bar! No meio disso, participava de conversas animadas sobre as questões que estavam sendo trazidas à discussão. Pensar hegemonia, com Gramsci, sem com isso pensar que o Estado é apenas um espaço em disputa e que ali se constrói a ação da classe trabalhadora. Nosso desafio era compreender a dinâmica real da luta de classes. Para além do imperativo categórico, quais os sentidos do Estado ético de Gramsci? Sem cair em reducionismos, as questões seguiam a discussão. A obra de Lucas contribuiu imensamente aos estudos sobre como os meios de comunicação têm assumido papeis decisivos nos processos políticos. Não se trata apenas de dizer que os meios influenciam os processos eleitorais; eles forjam posições e criam “seguidores” que se comportam como hordas desinteressadas em questionar e refletir, aceitando líderes de pensamento fúteis e violentos, como Olavo de Carvalho. Seu trabalho se tornou uma referência, não apenas por causa do estudo do “Mídia sem máscara”, mas também da possibilidade metodológica de trabalhar com esse tipo de fonte histórica. Persiste ainda hoje um grande preconceito contra os estudos que pautam “a internet” como fonte. Não é possível compreender o mundo político dos últimos dez anos sem entender o papel político que ela tem desempenhado. Certamente a contribuição de sua tese de doutorado, felizmente defendida postumamente na UFG, aprofunda essa discussão através do estudo do Instituto Milenium, espaço onde toda essa organização de agentes da mídia se coadunam, buscando posição e atuando politicamente. A dominação não existe sem minuciosa organização de aparelhos que atuam sobretudo organizando a ação de classe. O discurso de ojeriza a partidos e à ação política presente na chamada “direita conservadora” atual está articulado com esse amplo movimento. Para além do grande intelectual que se forjava, Lucas foi um grande parceiro dos colegas durante suas questões concretas, de organização da vida cotidiana mesmo. Talvez o mais bonito dele eu tenha conhecido fora do ambiente de trabalho: 23


sua solidariedade. Inúmeras vezes fui salva por ele e sua “biblioteca virtual”. Aprendi com o Lucas a importância nos dias que correm de cultivar os famosos pdf’s, porque é uma forma de socializar, de fato, materiais de difícil acesso, ou mesmo os fáceis, que são vendidos por preços exorbitantes. Palavra da moda, “compartilhar” livros é um hábito fundamental, pois coloca em prática o problema da propriedade. A partir disso, Lucas contribuiu seriamente para a criação de uma pauta antifascista. Era essa uma preocupação permanente dele, sempre preocupado com os riscos históricos do avanço do fascismo. Em nossas últimas conversas, ele se mostrava deveras preocupado com a questão da fragmentação da esquerda marxista, com as dificuldades impostas pelas ortodoxias e com a necessidade premente da ação unificada. Da mesma forma, preocupava-se em travar diálogos com os diferentes grupos, para que as lutas avançassem. Infelizmente, a realidade dos últimos anos tem mostrado que os aparelhos privados de hegemonia estão cada vez mais organizados. Pesquisas como a do Lucas mostram que essa organização não foi um “raio em céu azul”; ao contrário, foi fruto de estudos e produção de hegemonia em “tempos de paz”. A burguesia não se cansa de, mesmo estando à frente do projeto capitalista, reinventar suas formas de ação para abarcar corações e mentes da classe trabalhadora. Triste perda, Lucas, “um grande”.

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Nota sobre Lucas Patschiki (1983-2017) Rodrigo Jurucê Mattos Gonçalves 1

Conheci o Lucas Patschiki em 2013, durante o Simpósio de Pesquisa Estado e Poder, realizado pela Linha de Pesquisa Estado e Poder, do Programa de PósGraduação em História da Universidade Estadual do Oeste do Paraná (Unioeste), na cidade paranaense de Marechal Cândido Rondon. Desde o início ele mostrou-se uma pessoa muito receptiva e interessada em trocar experiências sobre conceitos, teoria, fontes e leituras. Ele fazia parte do grupo de jovens pesquisadores que têm trajetórias paralelas de vida e que guardam entre si muitos interesses em comum, como a pesquisa científica e crítica da direita em suas múltiplas faces; o marxismo; o socialismo; dentre outras afinidades. No entanto faltava entre nós alguém que unisse esses jovens historiadores; a pessoa que cumpriu primeiramente essa função foi o Lucas. Captando a necessidade por reconhecimento desse jovem grupo que anseia por um espaço no concorrido Sol da academia é que surgiu o projeto Tempos Conservadores: estudos críticos das direitas, do qual Lucas foi o principal idealizador, sobretudo porque ele tinha condições de unir pesquisadores, contribuindo para tirá-los da solitária pesquisa. Isso era possível devido à sua característica pessoal de dialogar com todos ao seu redor. O Lucas acompanhava de perto algumas pesquisas realizadas pelos amigos e sempre que solicitado sugeria conceitos, possíveis leituras e questionamentos, etc., de forma que ele 1

Professor do curso de História da Universidade Estadual de Goiás (UEG).

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mantinha um intercâmbio constante, o que certamente trouxe uma contribuição positiva para o nosso grupo, uma vez que Lucas mostrava sua inteligência e brilhantismo a partir de uma concepção bastante interessante e particular, cuja visão compartilhava conosco. Dizíamos que ele parecia um “ogro”, pois era corpulento; todavia, essa era uma forma carinhosa entre os amigos de denominá-lo, uma vez que sua personalidade era marcada pela simpatia e generosidade, suas ações pela gentileza, coisas das quais se sente falta no mundo da universidade. Mas disso não se conclua que Lucas não tivesse posições políticas claras: ele era socialista e antissectário. Em 2 de janeiro de 2017, logo pela manhã, fui despertado pela fatídica notícia: Lucas tinha nos deixado. Faleceu jovem e com um futuro promissor. Além do exemplo de um cara muito humano e sensível, Lucas deixou a imagem do sujeito de riso fácil, que gostava de uma boa conversa descontraída, de rock and roll e que era apaixonado pelo que fazia. Sentimos muito sua falta.

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In memoriam de Alexandre Blankl Batista: ou sobre como viver e fazer as coisas de forma benfeita e caprichada Marcio Antônio Both da Silva 1

Naquela tarde, ele próprio resolveu que iria comprar as flores. Alexandre Blankl Batista — nascido em Viamão, estado do Rio Grande do Sul, no dia 11 de abril de 1980, descrevia-se como um “ser humano, composto basicamente de albumina e água, já um pouquinho gasto pela ação do tempo e certos excessos” — é o “ele” da frase inicial. Diferentemente de Mrs. Dalloway (personagem criada pelo gênio de Virgínia Woolf, o sujeito na proposição original) Blankl não voltou da jornada que encetou fazer naquela tarde do dia 06 de janeiro de 2018. Consequentemente a festa daqueles que ficaram precisou ser redesenhada, situação que lembra muito a parábola em que Franz Kafka apresenta um ser genérico que atende por “Ele”, o qual está colocado em meio ao embate entre duas forças: uma que vem de trás — do passado; e outra que vem da frente — do futuro. O “Ele” kafkiano, por estar no ponto de encontro entre essas duas forças que se chocam uma contra a outra, fica, a princípio, imobilizado. A lógica das coisas comuns, feitas por homens comuns, nos diz que, em algum momento da luta, esse personagem precisará tomar a decisão derradeira e optar por um dos lados.

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Professor da graduação em História e do Programa de Pós-Graduação em História da Unioeste.

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Entretanto, a inventividade de Kafka vai além do comum e supõe a possibilidade de que, durante o embate, venha ocorrer “a noite mais escura como nenhuma outra foi” e, nesse momento único e imprevisto, “Ele”, sustentado por sua experiência de luta, consiga saltar por sobre a linha de combate e, desse novo e outro lugar, seja alçado à condição de juiz para, então, ter condições de poder analisar os adversários que lutam entre si e, quem sabe — isto não é óbvio, muito menos necessário —, optar por um deles. Os critérios da escolha e ela própria não são claros, pois o “Ele” de Kafka é genérico, e as decisões que possa vir a tomar dependem da experiência de luta de cada ele particular que se vê na mesma situação ou que se identifica com ela. Naquela tarde do dia 06 de janeiro de 2018, em uma praia do litoral do Uruguai, Alexandre Blankl Batista se deparou com essa noite mais escura como nenhuma outra foi. De forma inusitada, foi alçado à condição de juiz de um fato e, imerso em meio à luta entre as forças que o empurravam para fora e as que o empurravam para dentro, do alto de sua experiência e de sua trajetória de vida, em uma fração de segundos, optou pelas últimas. Ainda esperamos por sua volta, não obstante as flores que foi buscar, que plantou e regou ao longo da vida tenham ficado. Cabe a nós (que aqui ficamos) a tarefa de cuidar dessas flores. Antes de se definir como essa mistura de “albumina e água”, quando criança, Alexandre entendia-se como um homem biônico, segundo relatos de seus amigos de infância — os primos Marcelo da Silva Bueno e Grasiela Rosa Silva. Era um menino que andava em bicicletas androides, construídas e soldadas pelo seu pai a partir de restos deixados por um circo que havia se instalado nas proximidades do local onde residia. Aquelas bicicletas invariavelmente se desmontavam durante as brincadeiras que inventava, mas isso não atrapalhava a diversão. De acordo com Marcelo e Grasiela, Alexandre foi uma criança e um adolescente retraído, “tímido, meio desajeitado, envergonhado e qualquer coisa o deixava muito vermelho. Exceção era quando estava com a família e amigos, momento em se sentia mais tranquilo”. Tais características ainda eram perceptíveis no Alexandre que conheci muito recentemente, já na condição de adulto.

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Muito influenciado pela atmosfera da infância vivida na década de 1980, além de se pensar como um homem biônico, também se via, juntamente com Marcelo e Grasiela, como um integrante da trupe dos Caça Fantasmas. Tinha grande gosto por colecionar figurinhas e jogar videogame, especialmente jogos de futebol, mas também passava o tempo, juntamente com Grasiela e Marcelo, jogando Top Gear, Mortal Combate, Street Fighter e brincando de guerra. Neste último caso, Marcelo relata que montavam cenários complexos de lutas e batalhas. Além disso, eram fãs confessos e passavam horas e horas assistindo aos episódios de Jaspion, Changemam e Jiraya. De acordo com Marcelo, Alexandre criava roupas de papel imitando as vestimentas usadas por esses heróis, as quais ficavam “uma melhor que a outra, sempre foi muito criativo e desenhava muito bem, ficava perfeito!”. Essa narrativa da perfeição que Alexandre buscava impor às atividades que desenvolvia me fez lembrar o trabalho que teve, por volta do ano de 2008, quando inventou de fazer uma pandorga para presentear um guri que recentemente havia conhecido. Esse episódio se sucedeu na época em que Blankl estava conhecendo Juliana Wendpap, mãe do menino, sendo que pouco tempo depois, em 2009, os dois se uniram em matrimônio, e João Arthur, o menino da pipa, passou a ser o filho que Alexandre escolheu para ser seu. A referida pandorga era de uma perfeição milimétrica, tanto que cheguei a perguntar se teria coragem de soltá-la mediante o risco de estragá-la. Era mais uma obra de arte multicolorida do que uma simples pipa. Hoje, depois da descrição que Marcelo e Grasiela fizeram das bicicletas androides, percebo que Alexandre repetia com João Arthur uma experiência bonita que havia vivido com seu pai — que também era João — e seus amigos durante sua infância. Outro traço forte da personalidade de Alexandre é o amor e o carinho que sentia por seus pais, o casal João Luiz Batista (falecido em 2009) e Irma Blankl Batista, que hoje tem 82 anos e ainda lamenta a ausência do filho querido. Esse amor era tão presente que, logo após o falecimento do pai, Alexandre possibilitou que a mãe residisse próximo dele e, juntamente com Juliana, passou a dar todo o suporte de que ela precisava para viver uma vida tranquila. Do mesmo modo, seus colegas de graduação em História também lembram dessa vinculação de Alexandre com 29


seus pais. Assim, contam que era comum Alexandre falar sobre eles e relatar suas histórias; além disso, evidenciam o cuidado que o filho tinha com eles, especialmente no que tange à sua dedicação em cuidar do pai quando este ficou doente, levandoo e trazendo-o de Viamão a Porto Alegre no “fuscão azul”, para realizar as consultas médicas que precisava fazer. O reconhecimento em relação aos seus pais e às dificuldades que enfrentaram por e juntamente com ele também está expresso no texto da tese de doutorado de Alexandre. No trecho referente aos agradecimentos, escreve: “Em primeiro lugar devo agradecer aos meus pais. Queridos pais, que mesmo contando com poucos recursos, oriundos dos ofícios de pedreiro e empregada doméstica, nunca deixaram de dedicar grande parte deles aos estudos do único filho. Nunca me faltou nada, posso dizer com orgulho, e isso foi tudo graças a eles, Irma, minha mãe, e João, meu já falecido pai”. Ainda sobre o pai, há outro relato nesta parte da tese que ajuda a conhecer Alexandre e a compreender a decisão que tomou quando se viu diante da noite mais escura como nenhuma outra foi: “Esta tese, além de um trabalho acadêmico, é também um agradecimento ao meu pai e uma lembrança de que não chegamos a lugar nenhum sozinhos. Ele me ensinou que tudo o que a gente faz, além de tentar fazer benfeito e caprichado, tem de se fazer com prazer. O presente trabalho concentra ao menos esse esforço e é uma modesta tentativa nesse sentido. Por isso, esta tese é dedicada a ele, João Luiz Batista, meu pai”. Sim, Alexandre, o que fizestes na tese e na vida, mais detidamente ainda na tarde do dia 06 de janeiro de 2018, foi “benfeito e caprichado”. Nós que ficamos e que sentimos saudades, neste último caso em específico, gostaríamos que não tivesse caprichado tanto, mas aí seria outra pessoa, não seria o filho do pedreiro João Luiz Batista e da doméstica Irma Blankl Batista, não seria o “amigo Blanqui” que conhecemos e com quem convivemos. Se Alexandre não tivesse sido quem era e sempre foi — algo impossível de acontecer — essas linhas não existiriam e não estaríamos sentindo tanta tristeza como a que essas palavras agora produzem. Todavia, isso significaria que o somatório de água e albumina chamado Alexandre Blankl Batista também não existiria e, portanto, a felicidade e o colorido que ele transmitiu cantando ao mundo também seriam desconhecidos. Fico com os últimos, 30


ainda que seja como lembrança, e mesmo que guarde comigo a vontade de querer ter partilhado dessa alegria e desse colorido por muito mais tempo. Alexandre, Marcelo e Grasiela eram vizinhos muito próximos, passaram boa parte de suas vidas juntos e, mesmo depois de adultos e distantes, mantiveram a amizade que desde crianças sempre souberam cativar. A impressão que tenho é a de que, para lembrar os ensinamentos da raposa ao “Pequeno Príncipe”, sempre souberam se olhar com os olhos do coração e, assim, sabiam identificar o essencial que cada qual carrega dentro de si. Essa maneira de ver e se relacionar com o mundo e as pessoas, Alexandre cativou ao longo de sua vida. A leitura que faço sobre esses três amigos tem como suporte o esforço que os dois primos fizeram para virem dar um último adeus ao amigo, mesmo sabendo que não seria possível dar o abraço derradeiro. A partir dos ensinamentos de seu pai, sabedor de que não é “possível chegar sozinho a lugar algum”, Alexandre também sabia eleger aqueles com quem queria caminhar, mas sem menosprezar e desrespeitar os que com ele não caminhavam ou trilhavam percursos diferentes dos seus. Isso tanto é verdade que o objeto de análise em sua tese de doutorado foi o jornalista Paulo Francis, um homem profundamente diferente de Alexandre, tanto política quanto social e intelectualmente. Segundo Marcelo e Grasiela, ele também tinha outra característica marcante: durante a infância não gostava de tomar banho, sendo que na adolescência inventou a estratégia de entrar no banheiro, ligar o chuveiro, molhar a cabeça na pia e simular um banho que efetivamente não acontecia. Entretanto, de acordo com os relatos de Juliana, essa particularidade havia sido superada. A narrativa produzida por Marcelo e Grasiela também indica uma cumplicidade toda particular entre os três em todas as ações que realizavam. Marcelo conta que, em determinada situação, sem querer, jogou uma pedra que acabou quebrando o vidro da janela da sala da casa do casal Blankl Batista, mas, concomitante ao ato, Alexandre puxou o amigo para dentro de casa e começou a gritar “indignado” que “um guri tinha passado e jogado aquela pedra”. Eis um amigo de seus amigos e eis outra característica que o acompanhou ao longo de sua vida.

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Embora se considerasse um homem biônico e se vestisse de super-herói japonês, Alexandre não era de briga e cabia a Marcelo o papel de defendê-lo quando necessário. Também era admirador de “Nescau” e de “Coca Cola”, gosto que cultivou por muito tempo, moderando um pouco apenas recentemente. Alexandre e Marcelo eram tão próximos que este, entre seus 14 e 15 anos de idade, ensinou aquele a dirigir. Para dar conta dessa empreitada, na surdina, os dois pegaram o “fuscão azul” do pai de Alexandre e saíram pelas ruas de Viamão. Contudo, esqueceram de soltar o freio de mão; consequentemente as lonas de freio queimaram, a fumaça produzida na situação apavorou os dois amigos, que foram ajudados por um vizinho. Porém, mesmo que não tenham provocado nenhum acidente mais grave, não escaparam de levar uma sova de seus pais, motivada pela infração cometida. Algum tempo depois, como relatei, o mesmo fusca seria o veículo usado por Alexandre para levar seu pai ao hospital em Porto Alegre. Alexandre fez questão de manter o automóvel sob sua propriedade após o passamento do pai, pois tinha a intenção de um dia restaurá-lo. Logo, não há dúvidas de que o fusca era um importante lugar de memória para Alexandre. O trio de amigos formado por Alexandre, Marcelo e Grasiela — os amigos da Vila São Tomé, de Viamão — viveu uma infância e uma adolescência bastante características da geração de 1980 e 1990. Em linhas gerais, é perceptível que realizavam na rua aquilo que chegava até eles por meio das ondas da rádio e da televisão. Da mesma forma, para aqueles que, como eu, conheceram Alexandre já na sua fase adulta, é visível o quanto os traços desse menino que via o mundo com os olhos do coração se atualizavam no adulto. Além do gosto pela Coca Cola e pelo achocolatado, quem o conheceu e com ele conviveu muito dificilmente não identificará como marcas próprias de sua personalidade o desprendimento, uma certa timidez, a cumplicidade com os seus, a disposição em, como um Caça Fantasma, lutar contra os monstros que a vida em seu desenrolar apresenta. Alexandre tinha sobretudo disponibilidade e desprendimento para se contrapor às injustiças e desigualdades sociais, as quais conhecia por experiência de vida, uma vez que provinha de origens sociais modestas, fato que passou a entender de forma mais detida e, em sua complexidade histórica e teórica, quando ingressou no curso 32


de Graduação em História da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, também acompanhado, até um determinado ponto dessa nova jornada, por seu amigo Marcelo. Os relatos a que consegui chegar sobre o Alexandre durante o período em que foi aluno do Curso de Graduação e de Mestrado em História na Universidade Federal do Rio Grande do Sul descrevem traços de sua personalidade que não estão nada distantes do que ele foi na infância e na adolescência e do que ele era quando o conheci. Segundo Alessandra Gasparoto, sua colega de graduação e amiga muito próxima desde então, eles ingressaram no Curso de História noturno da UFRGS no ano de 1999 e formavam a “Barra 99”. Ela o descreve como “um cara sério à primeira vista, mais quieto, mais observador, mas que tinha um senso de humor muito refinado”, era “legal e muito solidário nos pequenos gestos cotidianos”, emprestando textos aos colegas, sendo companheiro para estudar, além de ser “muito inteligente e dedicado aos estudos. Sempre muito curioso, interessado na história das pessoas, nas coisas da vida e do mundo”. A “Barra 99” também tinha uma vida fora do universo da faculdade, o que ocorria geralmente nos encontros que aconteciam em bares da Cidade Baixa em Porto Alegre. Por morar em Viamão, Alexandre tinha certa dificuldade em participar dessas atividades acadêmicas fora da sala de aula e que não exigiam a presença de docentes, mas sempre que podia participava. Nesse contexto, era comum alguns colegas o acompanharem até a parada de ônibus para “pegar o ‘último Viamão’”, momento em que a timidez de Blankl vinha à tona, pois, enquanto ele entrava no coletivo, os colegas que ficavam na parada acenavam e davam “gritinhos”, fato que o fazia dar “aquela risada encolhida que ele tinha quando envergonhado”. Ainda segundo as lembranças de Alessandra, o que “ele mais curtia eram as festas em que rolava violão. Ele cantava muito, atendia o pedido de músicas da galera (atendia até mesmo os pedidos mais esdrúxulos). Acho que o violão era a ferramenta que o Blankl usava para se conectar com as pessoas, uma forma de contornar a timidez, de achar um ‘lugar’ seu.” Não tenho dúvida de que este foi o Alexandre que conheci noites a dentro tocando violão. Durante esses eventos, uma coisa sempre me chamou atenção: ele não gostava muito de beber, muito dificilmente ficava ébrio. Assim, 33


enquanto todos à sua volta estavam conectados a dimensões etílicas difíceis de serem alcançadas apenas no primeiro gole, ele conseguia chegar até elas apenas dedilhando as cordas de seu violão. Outro acontecimento importante durante a sua graduação em história foi sua vinculação com o Centro de Documentação sobre a Ação Integralista Brasileira e o Partido de Representação Popular (CD-AIB/PRP), onde atuou como bolsista de iniciação científica. No texto de agradecimentos de sua tese de doutorado, fica evidente que foi a partir dessa experiência que o mundo da pesquisa se descortinou para ele, momento em que foi apresentado a temas e teorias que formaram o arcabouço das pesquisas que desenvolveu no mestrado e no doutorado. Alessandra conta que ele era muito dedicado a este trabalho, que passava horas no Centro de Documentação desenvolvendo atividades de pesquisa e que era comum os colegas da “Barra 99” se encontrarem lá para tomar café ou realizar os trabalhos da faculdade. Finalizado o curso de graduação em história em 2003, um ano depois Alexandre ingressa no Curso de Mestrado em História da UFRGS. No mestrado, dando sequência e a partir da experiência vivenciada como bolsista de iniciação científica no CD-AIB/PRP, sob orientação da professora Carla Simone Rodeghero, desenvolve pesquisa sobre a apropriação das obras de Euclides da Cunha, Alberto Torres e Farias Brito por Plínio Salgado. Um ano depois de finalizado o mestrado, em 2007, Alexandre estabelece novos rumos à sua vida e parte para o Paraná, em direção ao município de Marechal Cândido Rondon, onde passou a trabalhar como professor substituto no Curso de Graduação em História da Universidade Estadual do Oeste do Paraná (Unioeste) e onde reencontra com velhos amigos e conhecidos conquistados durante a graduação, na experiência de trabalho no CD-AIB/PRP e no mestrado em história: Alessandra Gasparotto, Carla Luciana Souza da Silva, Gilberto Grassi Calil e Claudira Cardoso. Como professor substituto do Curso de História da Unioeste, atuou entre os anos de 2007 a 2010 e 2013 a 2014, sendo que em 2011 passou na seleção de doutorado do Programa de Pós-graduação em História da Universidade Federal do 34


Rio Grande do Sul e, juntamente com Juliana e João Arthur, voltou a morar no Rio Grande do Sul, onde permaneceram até 2013. Eu o conheci em 2008. Tínhamos em comum a amizade da já citada Alessandra Gasparotto, a Sana, embora fôssemos os dois originários do Rio Grande do Sul e tenhamos realizado o mestrado na mesma instituição, em períodos muito próximos, não nos conhecíamos. Foi a partir da minha vinda para Marechal Cândido Rondon — influenciada por essa amizade em comum, que, diga-se de passagem, nos “deixou” no Paraná um tempo depois — que conheci Alexandre, com quem dividi apartamento por um período de mais ou menos dois anos e com quem convivi muito proximamente até o dia 06 de janeiro de 2018. Quando conversávamos sobre o período dele no doutorado, relatava que foi um tempo de grandes lutas e dificuldades, as quais foram enfrentadas e partilhadas com sua companheira Juliana e com João Arthur. Na verdade, desde que Juliana e Alexandre se conheceram, não mais se soltaram. Assim, se na infância Alexandre tinha a cumplicidade de Marcelo e Grasiela, nos últimos anos tinha ao seu lado Juliana e João Arthur. Os três também sempre foram muito próximos e cúmplices um do outro. Quanto aos problemas enfrentados no tempo do doutoramento, os financeiros em particular, passaram a ser equacionados quando, após retornar a Marechal Cândido Rondon, em 2013, Alexandre volta a exercer o oficio de professor na Unioeste. Ainda neste ano, foi aprovado em concurso público e, em 2014, passou à condição de professor efetivo do Colegiado do Curso de Graduação em História da Unioeste. Nesse contexto, vale destacar que, mesmo diante do tamanho das dificuldades enfrentadas, Alexandre deu conta de produzir, como pretendia, uma tese de doutorado “benfeita e caprichada” e, como veremos adiante, rica em conteúdo, metodologia e análises. Como professor, Alexandre se destacava e deixou saudades entre os estudantes da Unioeste. Seu desprendimento e sua capacidade de saber ver o mundo a partir do ponto de vista dos discentes o tornavam diferente. Era um doutor em história que não usava dessa condição para se distinguir ou estabelecer distâncias em relação aos estudantes. Os relatos daqueles que foram seus alunos têm como tônica chamar atenção para essas qualidades. Luana Milani Pradela, que foi sua aluna na graduação e no mestrado e também sua orientanda de estágio 35


docência, destaca a sua capacidade de “interagir com os alunos e tocar violão nos momentos de descontração entre as aulas, no intervalo, nas atividades do Centro Acadêmico. Sempre muito gentil e animado, chegava com seu litro de coca cola e dava toda a liberdade para nós, alunos, debatermos os textos. Sempre foi um professor que se colocava no mesmo patamar que os alunos, nunca impondo uma ‘hierarquia’ entre nós”. Em perspectiva semelhante, Edgar Smiderle que, além de ter sido seu aluno na graduação, foi seu orientando de extensão em 2017, ano em que Alexandre atuou como diretor do Núcleo de Documentação e Pesquisa sobre o Oeste do Paraná (Cepedal), destaca que “em conversa com outros estudantes, cujo nome manterei em sigilo, sempre chegávamos à conclusão de que o Blankl, enquanto professor, possuía um lado mais ‘humano’ que se destacava. Muitas vezes não concordávamos com sua metodologia de ensino, porém sua forma de se relacionar conosco nos deixava notar uma coisa: ele não se apresentava como uma ‘autoridade’, mas como alguém que também procurava aprender conosco”. Eis o perfil de um professor preocupado com a formação dos estudantes, que não se prendia a hierarquias ou as usava para se diferenciar e que, além disso, também tinha uma atuação destacada nas lutas da categoria — fato que é evidenciado por seu envolvimento com o Sindicato Docente da Unioeste (Adunioeste) e por sua participação nas atividades desenvolvidas por esse Sindicato. Estava em Curitiba, junto com os professores da rede pública de ensino do Paraná, no Massacre do dia 29 de abril de 2015, quando o governador Beto Richa e seus asseclas autorizaram que as tropas da Polícia Militar usassem de violência descabida contra os professores que, na rua, reivindicam o respeito a direitos historicamente conquistados. De modo geral, este é o Alexandre que emerge das lembranças e relatos produzidos por amigos, alunos, colegas e companheiros de trabalho. Sem descartar o risco da “ilusão biográfica” e sem ter grande preocupação com ela, busquei apresentar alguns traços do perfil e da trajetória de Alexandre, especialmente sua formação enquanto historiador e professor de história. Nesse contexto, ainda faltam algumas palavras que deem conta de descrevê-lo como pesquisador. Para tanto, 36


encetarei uma breve discussão sobre sua tese de doutorado, a qual pode ser definida como o seu último grande trabalho acadêmico de fôlego. Entretanto não é o derradeiro, pois é possível verificar nas anotações que deixou e nos arquivos que guardava em seu computador, os quais foram comigo partilhados por Juliana Batista, que a tese foi o ponto de partida para proposição de uma pesquisa maior que tinha por meta discutir a imprensa, os intelectuais e a “nova direita” no Brasil. Esse é o conteúdo do projeto que submeteu para realizar seu credenciamento junto ao Programa de Pós-graduação em História da Unioeste, em 2016, e também de uma série de textos que foram iniciados e não foram finalizados, mas que guardam reflexões interessantes e importantes. Muito certamente uma de suas metas, ao retornar das férias, seria trabalhar em algum desses textos para publicálo nessa coletânea, mas “havia uma pedra no meio do caminho” que o impossibilitou de fazer isso. Igualmente é possível encontrar entre esses arquivos algumas pastas que contêm uma série de textos, fontes e referências a trabalhos de pesquisa (teses, dissertações de mestrado, artigos de periódicos, etc.) que têm como foco de discussão os intelectuais, o polemismo e a “nova direita”. Devido ao conteúdo, a importância acadêmica e a relevância social e política desse material, seria interessante encontrar alguém que conheça o tema e se disponha a transformar esses vários trechos de pesquisa em um artigo, capítulo ou algo do gênero. Em relação ao tema desenvolvido na tese de doutorado propriamente dita, sempre que ouvia Alexandre falar que o seu objeto principal era estudar o jornalista Paulo Francis e sua conversão de trotskista a intelectual defensor do ultraliberalismo, ficava pensando nos significados dessa proposta e, principalmente, questionava até que ponto o polêmico jornalista mereceria atenção mais dedicada. Em linhas gerais, inicialmente a mim parecia que a atuação de Francis e a sua conversão não seriam assuntos suficientemente relevantes, em termos acadêmicos e sociais, para produção de uma tese de doutorado em história. Até a leitura que recentemente fiz da tese, fundamental para produzir essas linhas e que foi eficiente em desconstruir preonceitos, a imagem que eu tinha era a de que Paulo Francis era um personagem de fala engraçada, objeto de imitação de vários comediantes, mas que para mim nunca havia falado coisa com coisa. 37


Essas lembranças são resquícios que guardava na memória de quando o ouvia e via falar na televisão entre meus 15 e 19 anos, momento em que, para mim, os comentários dele não tinham sentido algum, pois nessa época minhas prioridades e preocupações eram outras. Como filho de camponeses que tinham saído do campo, vivendo em uma comunidade de feição camponesa, estudante do ensino médio e seminarista, pensava o Estado como algo intocável e distante que, no geral, existia apenas para fazer mal às pessoas. Portanto, pouco importava se mínimo ou máximo e menos atração sentia ainda por analisar os discursos e posições que defendiam esta ou aquela versão do Estado. Para ser bem sincero, nem sabia exatamente o que era o Estado, o qual eu invariavelmente confundia com o estado. Vale registrar ainda que nunca havia lido uma coluna completa de Paulo Francis — confesso que ainda não li —, que o conhecia a partir de suas inserções nos jornais da Rede Globo e que, até a leitura da tese, não tinha a mínima ideia da importância dele em termos da constituição do campo jornalístico brasileiro e da difusão do ideário neoliberal no Brasil. Imaginem a surpresa que causou a informação de que um dia Paulo Francis havia sido trotskista. Embora tenha passado a considerar com maior cuidado o papel da imprensa e de seus intelectuais na produção do mundo após ter concluído a minha formação em história, depois do passamento de Francis, em 1997, nem lembrava mais de sua existência. Muito provavelmente porque essa história de intelectuais orgânicos de direita, sua atuação na constituição de consenso e coisas do gênero nunca foram objeto de minha preocupação acadêmica. Efetivamente esses temas se tornaram mais presentes em meu cotidiano muito recentemente e ainda sem conseguir minha adesão completa. Afinal, sou um estudioso da questão agrária brasileira que tem como foco de sua preocupação o século XIX e que, teoricamente, tem uma leitura sobre o que é um intelectual e seu papel social um tanto diversa daquela feita por Antônio Gramsci ou a partir dele. Nesse quesito, estou mais próximo das definições de Pierre Bourdieu sobre os intelectuais e seu papel e lugar na luta de classes. Assim, mesmo que existam muitos aspectos a partir dos quais seja possível aproximar as definições produzidas por Bourdieu sobre os intelectuais com as discussões desenvolvidas por Gramsci, há alguns temas, principalmente no que diz 38


respeito à organicidade dos intelectuais das “classes subalternas”, em que os dois pensadores estão um tanto distantes. Grosso modo, é possível afirmar que as análises de Bourdieu sobre o assunto têm um conteúdo teórico e metodológico mais pragmático e, em algum sentido, menos esperançoso, especialmente sobre o papel dos intelectuais na transformação social. Bourdieu não descarta a importância dos intelectuais na ação revolucionária ou mesmo na reprodução do mundo, mas a pensa em termos da “distinção” e dos seus significados sociais e sociológicos. Dessa forma, talvez a maior proximidade entre os dois autores esteja no fato de que Bourdieu também reconheça o papel dos intelectuais na conservação do status quo. Contudo, diferentemente de Gramsci, relativiza bastante a centralidade e o protagonismo deles na transformação revolucionária da sociedade. Na verdade, aqui não é o momento e o lugar oportuno para realizar essa discussão que foi, especialmente a partir do Homo Academicus e do Lições da aula, tema de grandes debates no universo das ciências humanas e sociais nas últimas décadas. De qualquer forma, antes de continuar a descrição e a análise dos conteúdos da tese de doutoramento de Alexandre, cabem algumas palavras que buscam explicar o porquê de eu ter destacado a diferença teórica existente entre nós em relação ao tema dos intelectuais. Como chamei atenção anteriormente, considerando os registros produzidos por seus alunos, amigos e colegas, Alexandre era um homem plural, que sempre esteve aberto a discussões e que não se apegava a preconceitos teóricos. Portanto, é muito relevante apontar a diferença e o respeito mútuo que guardamos em relação a ela em termos de um texto que, embora cheio de lacunas e imprecisões, busca contar a trajetória de um amigo, de um pesquisador e de companheiro de trabalho. Nessa perspectiva, não busco produzir outra análise, pautada em outro referencial teórico, da pesquisa desenvolvida por Alexandre, muito menos afirmar que as análises produzidas por ele são insuficientes porque o referencial teórico do qual parto é outro. Pelo contrário, a intenção, portanto, é destacar que, mesmo diante da diferença, aprendi muito com a leitura da tese, tanto no sentido de conhecer a teoria empregada pelo autor como no de relativizar e também de reforçar alguns aspectos da teoria que emprego nos estudos que desenvolvo. Em outros termos, o 39


texto da tese em toda sua complexidade teórica, metodológica e analítica é um gigante sobre os ombros no qual me posicionei para ver o mundo empírica e teoricamente. Também não é minha intenção fazer uma descrição exaustiva e cansativa da tese. Em linhas gerais, buscarei destacar as questões que, a partir de minha ótica e, para citar Clarice Lispector, estão “grávidas de futuro”. Em palavras mais precisas, destacar as análises desenvolvidas por Blankl que podem ser objeto importantes para futuras pesquisas. Portanto, trata-se da produção de um ponto de vista sobre os temas discutidos pelo autor, o qual tem por suporte uma experiência e uma trajetória de pesquisa particular e baseia-se em uma determinada leitura que, consequentemente, pode não ser compartilhada por outros leitores. Talvez o próprio autor poderia não concordar com o ponto de vista aqui desenvolvido sobre sua obra. Outrossim, considero que a riqueza de uma pesquisa científica não está necessariamente nas conclusões alcançadas e nas concordâncias que gera, mas, principalmente, nos caminhos que desvenda e naqueles que deixa abertos à espera de resolução, da produção de novas pesquisas. Por isso, os desencontros e as divergências são sumamente importantes no âmbito da pesquisa científica e devem ser incentivados; sem eles o novo não vem à tona e, em vez de formar pesquisadores autônomos, formaremos “papagaios” que, como autômatos, saberão somente repetir aquilo

que

nós

mesmos

produzimos.

Em

outros

termos,

atuarão

“revolucionariamente” na reprodução do mundo e da sociedade. Assim, no quesito abrir novos caminhos de pesquisa, a tese de Blankl é de uma força ímpar, especialmente se levarmos em conta a atual conjuntura brasileira, na qual o desrespeito à diferença e aos valores da democracia, bem como a falta de diálogo, o preconceito, o radicalismo e o extremismo de algumas posições e a intransigência vêm tomando conta da arena política e social. Defendida junto ao Programa de Pós-graduação em História da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, em outubro de 2015, diante de banca composta pelos professores Cláudia Wasserman (Orientadora), Carla Luciana Souza da Silva (Unioeste), Nilo André Piana de Castro (UFRGS), Luiz Alberto Grijó (UFRGS) e Temístocles Cezar (UFRGS), sob o título Do trotskismo ao ultraliberalismo: a trajetória 40


de Paulo Francis na imprensa brasileira (1962-1997), a tese de Alexandre Blankl Batista se destaca pelo rigor teórico e metodológico que está presente no texto desde a introdução até a conclusão. Além do amplo diálogo que estabelece com a bibliografia produzida que tratou da história e da trajetória de Paulo Francis, bem como da produção que abordou temas que têm relação com o seu problema principal de pesquisa, Alexandre também busca, ainda na introdução, estabelecer e demarcar sua posição teórica e metodológica em relação ao seu objeto de investigação, assim como as repercussões intelectuais e sociais que suas escolhas representam. Ultimamente essa prática tem se tornado bastante rara, entretanto é de grande importância, uma vez que o leitor, de início, é situado em relação ao objeto de pesquisa, suas implicações sociais e sua relevância acadêmica. Da mesma forma, Blankl tem a preocupação de apresentar o “estado da arte” em termos da produção intelectual realizada sobre o objeto e o problema em discussão, seus motivos, objetivos e, principalmente, os métodos, fontes e teorias que darão base às análises elaboradas. Alexandre tem o cuidado de munir o seu leitor dessas ferramentas já no começo do texto. Em consequência, o trabalho subsequente de leitura dos capítulos que compõem a tese ganha um dinamismo todo especial e, à medida que a leitura vai acontecendo, as informações, análises e “sacadas” vão-se complementando e ganhando sentido. Portanto, a tese de doutorado de Alexandre não é um estudo de um ou dois capítulos ou de capítulos desencontrados que podem ser lidos aleatoriamente, ao contrário, ela tem uma sequência toda particular, é densa em seu conteúdo e na constituição desse encadeamento de temas e análises. Isso não significa que estamos diante de uma tese perfeita, ela tem suas lacunas e imprecisões, mas é natural a um trabalho de pesquisa acadêmica, que deve ser produzido e defendido dentro de um determinado espaço de tempo e em condições nem sempre favoráveis, que ele tenha lacunas. Na verdade e do meu ponto de vista, tais “ausências” e “problemas” são qualidades, pois se não estivessem presentes, estaríamos diante de uma obra de arte e não de um trabalho de pesquisa em história. Por esse ângulo, nunca é demais lembrar Marc Bloch quando escreve que, além de ser uma ciência na infância, “a história é uma ciência 41


em marcha”. Logo, quem acha que produziu ou é capaz de produzir um texto definitivo sobre determinado assunto, na verdade apenas está cometendo um dos maiores erros que um historiador pode cometer. Por conseguinte, são essas lacunas, as quais nem sempre são objeto da reflexão do autor ou que por ele passaram desapercebidas, na maioria das vezes porque seu foco é outro, as pontes a partir das quais novos problemas são percebidos e novas pesquisas podem ser desenvolvidas. Pesquisar a trajetória social e intelectual de um indivíduo, bem como a bibliografia produzida sobre o tema, é tarefa bastante difícil. Entre outras coisas que dificultam esse trabalho, está o fato de que, invariavelmente, as versões produzidas sobre si pela pessoa analisada são armadilhas perigosas em relação às quais o pesquisador sempre está sob o risco grande de cair. Tal circunstância ganha força maior ainda em relação à trajetória que Blankl resolveu pesquisar, pois não foi pouco o que Paulo Francis escreveu sobre si ao longo de sua vida. Da mesma forma, muitas foram as linhas produzidas a seu respeito por seus “biógrafos oficiais”, descrições que geralmente são apologéticas e eivadas de parcialidades. Mesmo diante dessas dificuldades e sempre assumindo o risco de cometer alguns pequenos deslizes, as análises de Blankl evidenciam que Paulo Francis foi um personagem inventado por Franz Paul Trannin da Matta Heilborn, seu nome de registro. A invenção desse personagem é objeto das análises do autor que, entre outras coisas, apresenta o processo histórico de sua constituição, o momento em que ocorreu e os motivos pelos quais foi produzido. Demonstra o quanto ele não foi uma produção isolada, mas que contou com ajuda de diferentes fatores e pessoas para se realizar. Da mesma forma, também destaca a importância concreta que o personagem Paulo Francis teve na construção de posições e ações que tiveram grande repercussão e interferiram de maneira precisa na sociedade brasileira. O foco da análise de Blankl, por seu turno, é outra metamorfose realizada por Francis, mais impactante e importante que a assunção de um nome diverso daquele com o qual havia sido registrado: trata-se de sua a transformação de intelectual trotskista em intelectual do ultraliberalismo. Assim, a história, os impactos sociais e os significados políticos dessa “virada ideológica” são o objeto central das 42


investigações desenvolvidas por Blankl. Para dar conta de cumprir com esse objetivo, Blankl acompanha e analisa a trajetória de Paulo Francis no jornalismo brasileiro e toma como ponto de partida a sua vinculação com jornais mais situados “à esquerda” dos debates políticos e sociais então em pauta, momento que se estende entre 1962 e meados da década de 1970 e em que o trotskismo esteve mais detidamente presente na sua produção intelectual. A leitura da tese indica que, à medida que o tempo passa, as posições mais “à esquerda” de Francis vão minguando em seus textos a ponto de desparecerem totalmente ou simplesmente se tornarem objeto das suas críticas. Essas transformações também acompanham a trajetória de Francis no jornalismo brasileiro, sendo que o seu ingresso na equipe do jornal Folha de S. Paulo, em meados da década de 1970, demarca um momento importante da ruptura. A leitura da tese demonstra que a conversão de Francis à ultradireita é processual e ganha velocidade, proporção e conteúdo particular quando ele adere ao universo da “grande imprensa”, mais enfaticamente quando, no início da década de 1990, se afasta da Folha de S. Paulo e passa a trabalhar no jornal O Estado de S. Paulo, sendo que, nessa época, também fez parte da equipe de jornalistas da Rede Globo de Televisão. Do mesmo modo, Blankl demonstra que as posições políticas e as interpretações sobre a sociedade elaboradas por Francis em sua produção literária acompanham esse processo de transformação. Assim, suas posições trotskistas são coetâneas ao momento em que atuou em jornais ou revistas “menores”, geralmente identificados com causas “da esquerda” ou que se posicionavam de forma crítica em relação à situação social, econômica e política no Brasil — jornais e periódicos como o A Última Hora, Jornal da Manhã, O Pasquim, A Tribuna, Revista da Civilização Brasileira, entre outros. Todavia, mesmo nessa fase de sua vida, não deixava de ser um crítico “da esquerda” brasileira, especialmente de sua vertente ligada ao Partido Comunista Brasileiro, mais detidamente ainda em relação ao stalinismo e, em grande medida, ao que se convencionou chamar de “socialismo real”. Contudo, em grande parte, eram críticas partilhadas dentro do universo do que a leitura trotskista da sociedade e da revolução propunha e fazia sobre o capitalismo e o socialismo. 43


Blankl destaca que, mesmo nesse momento de sua vida, Paulo Francis se descrevia como um “elitista”. A percepção produzida pela leitura das análises desenvolvidas pelo autor é a de que Francis era um intelectual que, nessa fase de sua trajetória jornalística, escrevia “à esquerda”, mas que não necessariamente tinha “vínculos orgânicos” com as camadas populares e que, talvez, não tivesse intenção nenhuma de um dia possuí-los. Portanto, suas batalhas em favor das “causas sociais” eram antes teóricas do que práticas, sendo que o mais próximo da prática que chegou está registrado em um relato que fez de ter se vinculado a um “grupo dos onze” organizado por Leonel Brizola na década de 1960. Entretanto, tal vinculação não pode ser empiricamente comprovada, pois só há essa menção isolada produzida pelo próprio Francis. Então, é possível que tenha ficado apenas na esfera do discurso e do polemismo que Francis sempre buscou produzir em suas ponderações, seja “à esquerda” ou “à direita”. O problema da organicidade é uma das questões sobre as quais Blankl se debruça e a respeito da qual eu gostaria de poder sentar e conversar mais detidamente com ele. Na verdade, ao acompanhar e analisar a trajetória de Francis, é possível perceber que Blankl produz explicações para sua virada intelectual que dão conta de cumprir o que objetivam. Assim, demonstram que os vínculos do jornalista com as causas sociais nunca foram muito fortes, que Francis sempre foi movido por um pragmatismo muito particular seu e que, nas duas etapas de sua trajetória jornalística, manteve certas características de atuação. Nesse contexto, destaca-se principalmente a forma polêmica com a qual lidava com os assuntos de que tratava e a intransigência em relação a algumas posições, embora não deixasse de reinterpretá-las e mesmo criticá-las ao longo de sua trajetória e na medida em que realizou a virada intelectual do trotskismo ao ultraliberalismo. Contudo, uma coisa que chama atenção ao longo da tese é que Blankl tem uma convicção toda certa em definir Paulo Francis como um intelectual orgânico das classes dominantes quando ele passa atuar na defesa do ideário ultraliberal. Por sua vez, na fase trotskista de Francis, o autor não o trata como um intelectual orgânico das classes dominadas e/ou do proletariado. Assim, fica a dúvida do porquê de a organicidade só ser verificável de forma mais enfática no momento “à direita” e não 44


estar presente de maneira afirmativa no momento “à esquerda” do analisado? A resposta a essa questão é pura e simplesmente individual e individualizada ou tratase de uma característica também visível e presente de forma mais genérica entre os intelectuais que se situam ao lado esquerdo das lutas sociais e políticas? Será que a condição de intelectual de Paulo Francis, condição que afasta e separa, portanto, produz distinção (aqui estou dialogando com Pierre Bourdieu), mesmo na sua fase “à esquerda” não o colocava mais próximo da vida vivida (visões de mundo) e dos gostos partilhados (habitus) pelas classes dominantes. Vale lembrar que ele não tinha pejo em se definir como um “elitista” e dizia gostar das “coisas boas da vida”: bons vinhos, boas viagens nacionais e internacionais, boas comidas, etc. Da mesma maneira, também é possível verificar, a partir das análises desenvolvidas por Blankl, que, à medida que Francis fazia sua caminhada “da esquerda” para “direita”, seu gosto por essas “coisas boas” tomava contornos mais nítidos. Igualmente também aflorava, de forma antes não vista, uma série de preconceitos que guardava relativamente às camadas populares, especialmente no que diz respeito aos nordestinos e mais detidamente ainda em relação a Luís Inácio Lula da Silva. Embora Blankl não escreva nesses termos, mas traga muitos elementos que indicam isso, a percepção que se tem é a de que Paulo Francis era um pragmático munido de uma astúcia e de uma inteligência ímpares. Outrossim, um homem que, em determinado momento de sua trajetória, percebeu que a vida que sonhou para si e o lugar social que sempre almejou ocupar não seriam possíveis de serem mantidos ou alcançados se se mantivesse vinculado “à esquerda” do Estado. Dessa maneira, logo que a oportunidade chegou, não teve pejo em negar seu passado trotskista, torná-lo objeto de suas críticas, se vincular à vertente ultraliberal e se acomodar “à direita”. Inclusive seu passado trotskista ainda serviria como argumento de autoridade nas críticas que passou a formular às soluções, posições e propostas socialistas ou vinculadas ao socialismo. No texto da tese, é perceptível que esse pragmatismo de Paulo Francis incomoda muito o autor. Por vezes, Blankl parece ficar desconcertado com a sua falta de adesão ideológica à teoria que professou durante boa parte de sua vida e ao projeto político que dizia se vincular. Da mesma maneira, o incomoda o fato de 45


Francis tão facilmente ter aderido a uma proposta de mundo e sociedade totalmente antagônica daquela a que se filiou e que, além disso, foi objeto de suas críticas mais ácidas, sendo que muitas delas eram certeiras. Assim, além de ser uma traição a si mesmo, a virada ideológica de Francis parece ferir diretamente o autor que, nas entrelinhas de suas análises, demonstra se sentir indignado com a situação. Isso é compreensível, pois a conversão de Francis ao ultraliberalismo é, sobretudo, uma traição aos princípios e ao projeto de mundo que o autor da tese professa, uma vez que é marxista de vertente gramsciana. Mesmo assim, se considerarmos que estamos tratando de um homem, um pesquisador, um profissional, um amigo que foi capaz de oferecer a própria vida para salvar a de outros, tal indignação é completamente compreensível. Eis uma comprovação de que, na vida, autor e obra sempre se confundem. Portanto, não haveria como Alexandre Blankl Batista ficar indiferente diante desse pragmatismo instrumental de Francis. Assim, há elementos ao longo da tese que demonstram que analista e analisado se situavam em lados diametralmente opostos da condição humana ou, se preferirem, da luta de classes. Nesse contexto, de todas as características de Alexandre, o pragmatismo não era uma muito presente. A avaliação que tenho é a de que até lhe faltava uma certa dose de senso prático e lhe sobrava ingenuidade, especialmente em relação ao trabalho. Lembro de muitas conversas que tivemos em que eu dizia: “Meu caro, você precisa aprender a dizer não”. Contudo, me parece que para ele, em determinadas circunstâncias, dizer não era desrespeitar o ensinamento que guardou do pai, logo poderia resultar que as coisas não sairiam “benfeitas e caprichadas”. A leitura que fiz da tese de Alexandre, a qual realizei levando em conta o meu convívio com o autor, a amizade que com ele partilhei, as teorias a que me vinculo e a intenção de escrever esse texto, levam-me à conclusão de que Paulo Francis, desde sempre, foi um intelectual orgânico de si mesmo, o que não significa que não tivesse vínculos de classe e não adotasse posições de classe; pelo contrário, significa que essa adesão sempre foi pragmática e móvel. Assim, a perceptível tensão existente entre o autor, a trajetória analisada e a teoria empregada na análise enriquecem ainda mais a tese. Paulo Francis parece não se encaixar em moldes 46


predefinidos. É intelectual, mas quando trotskista sua organicidade de classe é vazada, solta. Por seu turno, quando se vincula ao projeto ultraliberal, sua organicidade transparece no texto de Blankl. Suas posições variam ao longo do tempo, mas as mudanças de conteúdo, embora profundas, não afetam sua condição de intelectual. Tal condição, como escrevi anteriormente, separa e afasta; Francis labutou muito para construí-la, sendo que as diferentes etapas históricas dessa construção, bem como as posições adotadas nesses diversos momentos, foram instrumentalmente usadas ao longo desse processo. Paulo Francis inventou um personagem e foi ajudado por seus pares e leitores na invenção de si mesmo, inclusive daqueles com quem debatia, seus inimigos e opositores. Dentro do campo no qual e contra o qual se construiu, no jornalismo, passou a ser um espelho onde todos se miravam. Dessa forma, foi um metapersonagem de si próprio. Consequentemente, seu passamento em 1997 deixou espaços vazios que desde então vêm sendo ocupados por outros polemistas que buscam imitá-lo — ele escreveria “macaqueá-lo” –, mas não com o mesmo sucesso e desempenho. Esses homens, como indiquei anteriormente, seriam objeto das pesquisas futuras a serem desenvolvidas por Blankl. Por fim, quanto ao meu saudoso amigo Alexandre Blankl Batista, a conclusão a que chego, depois de escrever todas essas linhas, é a de que naquela tarde do dia 06 de janeiro de 2018, o mar o chamou para viver novas aventuras e, leal que era a seus princípios, não soube dizer não. Todavia, como admirador que era do universo e dos seus mistérios, creio que tenha entrado em um buraco de minhoca e está em algum lugar entre o tempo e o espaço a nos observar. Assim como o “Ele” da parábola kafkiana ficou acima das forças em disputa, Alexandre, como uma pessoa que sempre buscou fazer as coisas de forma “benfeita e caprichada”, naquela tarde, vestiu sua roupa de Jaspion, montou na sua bicicleta androide, saiu para ir comprar flores e escolheu ir em direção ao desconhecido, às forças que o empurravam para dentro. Quando lá chegou, como “estudante da vida que sonhou ter e buscou dar”, descobriu e nos ensinou que, assim como esta vida, a armadura que vestia, mesmo que benfeita, “perfeita”, era de papel. Não voltou, mas continua presente!

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Vínculos locais e conexões transnacionais dos anticomunistas na Argentina e no Uruguai (1958-1973)1 Ernesto Bohoslavsky2 Magdalena Broquetas3

Entre o final da década de 1950 e os golpes de Estado dos anos 1970, cresceram e desenvolveram-se, na Argentina e no Uruguai, organizações políticas cuja preocupação central era o combate à entrada comunista. Essas organizações estabeleceram vínculos explícitos e clandestinos entre elas, a partir de seus princípios ideológicos (e seus inimigos) compartilhados. Apesar daqueles laços estarem unidos por uma comum convocatória a lutar contra o comunismo nas escalas locais e planetárias, ocasionalmente surgiram polêmicas e diferenças ideológicas e metodológicas entre as organizações sobre como devia ser feita a guerra contra o comunismo, a identificação de possíveis parceiros nessa tarefa e as causas da expansão da ameaça vermelha. Algumas dessas organizações eram:

Este artigo é uma tradução para o português do texto que os autores apresentaram no Segundo Colóquio “Pensar las derechas en América Latina en el siglo XX”, sediado na Universidad Nacional de General Sarmiento, entre os dias 13 e 15 de julho de 2016. Os autores agradecem a ajuda de Livia Mauro Mendes com a tradução deste texto. 1

2

Universidad Nacional de General Sarmiento e Conicet. E-mail: ebohosla@ungs.edu.ar.

3

Universidad de la República. E-mail: magdalena.broquetas@gmail.com.

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1. partidos e figuras da direita liberal-conservadora que também tiveram uma agenda anticomunista (em alguns casos superposta ou mimetizada por uma agenda antissindical e antiesquerda, no Uruguai, e antiperonista, na Argentina); 2. organizações anticomunistas de países sul-americanos com alcance hemisférico,

como

o

Movimento

Jovem

América,

a

Confederação

Anticomunista Latino-Americana ou a World Anti-Communist League; 3. alguns órgãos do governo dos Estados Unidos, interessados na vigilância e na perseguição de atores pró-soviéticos na região, mesmo antes de a Revolução Cubana declarar-se explicitamente como marxista-leninista. Este texto trata de reconstruir o universo dos vínculos estabelecidos por organizações anticomunistas argentinas e uruguaias entre o final da década de 1950 e o final da década seguinte. Com esse propósito foram identificados alguns dos temas e as práticas políticas que possibilitaram a existência de espaços compartilhados através do Rio da Prata. Este artigo procura aproveitar as vantagens do uso da análise transnacional para conhecer melhor os intercâmbios e trocas feitas no cenário rio-platense e sul-americano. Além disso, a renovação da historiografia da Guerra Fria na América Latina estimula-nos a propor cronologias menos rígidas do que as que são normalmente usadas pela história das relações internacionais, porque seus objetos de interesse são alguns aspectos da vida cultural da América Latina e de seus vínculos com os fenômenos e atores da política continental (SPENSER, 2004; DURHAM & POWER, 2010; FRANCO & CALANDRA, 2012). Nossa hipótese é de que distintas organizações anticomunistas da Argentina e do Uruguai teceram vínculos entre elas nos últimos anos da década de 1950 e pelo menos até o início das ditaduras militares na década de 1970: essas relações parecem ter sido mais importantes do que as sugeridas pela bibliografia até agora. Em particular, colocamos em destaque alguns dos vínculos estabelecidos no começo da década de 1960 entre grupos anticomunistas identificados com duas correntes ideológicas.

Em primeiro

lugar, vamos caracterizar os grupos

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“democratas”, como o Movimiento Ruralista, orientado no Uruguai por Benito Nardone, e a Federación Argentina de Entidades Democráticas Anticomunistas (Faeda), sediada em Buenos Aires. Em segundo lugar, são analisadas as organizações que se autodenominavam “nacionalistas”, como o Movimiento Nacionalista Tacuara da Argentina e as uruguaias Frente Estudiantil de Acción Nacional, o Movimiento Nacionalista Montonera e o Movimiento Nacionalista Revolucionario (MNR). Esta pesquisa fundamenta-se na procura e análise de um conjunto amplo de fontes primárias, como os jornais das organizações anticomunistas, a imprensa comercial de Buenos Aires e Montevidéu, os documentos oficiais dos Estados nacionais e dos serviços de inteligência policial, bem como os produzidos por agentes diplomáticos dos Estados Unidos. Essas fontes sofreram uma interrogação destinada a conhecer a autoimagem desses grupos, sua inclusão em redes nacionais e internacionais e a natureza de seus projetos políticos. Na primeira parte deste artigo apresentamos uma descrição geral dos principais problemas sociais e políticos da Argentina e do Uruguai no período que aqui interessa, identificando, com maior precisão possível, a localização e o espaço político disponível para as organizações anticomunistas. Na segunda parte são apresentados os padrões organizativos, as principais ideias políticas e os diagnósticos sociais e políticos desses grupos. A terceira parte concentra-se no estudo

dos

vínculos

transnacionais

estabelecidos

pelas

organizações

anticomunistas em diversas escalas: a platina, a americana e a global. Finalmente, as conclusões apontam a identificação dos mais importantes resultados desta pesquisa e dos problemas a serem revisados no futuro pela historiografia do anticomunismo na região.

A Argentina e o Uruguai nos anos 1950 e 1960 O final da Segunda Guerra Mundial e a consolidação de uma ordem mundial bipolar, marcada pelo confronto entre os Estados Unidos e a União Soviética, estimulou uma fase de forte preocupação anticomunista no Ocidente. Esse tempo foi

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vivido sob o paradigma da defesa da "liberdade" e "democracia". Este último conceito — bem como a advertência recorrente sobre a "ameaça totalitária" — era invariavelmente associado ao "comunismo" e ao modelo soviético. Entre 1946 e 1947, na medida em que se consolidou a Guerra Fria, a política externa americana foi baseada na "doutrina da contenção", segundo a qual a União Soviética representava uma ameaça global permanente e de longo prazo. Dado este diagnóstico, nas seguintes quatro décadas, sucessivos governos dos Estados Unidos ofereceram grandes recursos e implementaram diversos canais de cooperação em todos os continentes para combater a influência (real ou imaginária) comunista nos níveis político, econômico, cultural e militar. Neste contexto, é possível reconhecer na América Latina um maior intervencionismo de Washington em vários planos. A interferência dos Estados Unidos na América do Sul não foi uma invenção de 1947, mas trouxe algumas novidades a partir de então, o que se intensificou após a Revolução Cubana e, principalmente, após a fracassada invasão da Baía dos Porcos (WESTAD, 2005, pp. 158-206; HUGGINS, 1998). A "localização" da Guerra Fria na América Latina incluiu não só a vigilância da diplomacia da URSS e dos partidos comunistas nacionais, mas também dos movimentos populistas, das experiências nacionalistas e dos líderes sindicais, vistos como aliados ou funcionários de Moscou que facilitariam a chegada da ditadura do proletariado (BOHOSLAVSKY & IGLESIAS, 2014, pp. 113-133). Através dos membros diplomáticos de embaixadas e agências de segurança (FBI e CIA) foi seguida de perto a realidade latino-americana para direcionar processos políticos e econômicos com base em seus interesses, com foco na contenção do conflito social e o incentivo do desenvolvimento econômico-liberal. Para combater a suposta influência soviética foi encorajada a formação de sindicatos pró-americanos, foram acordadas ações com os governos ideologicamente mais próximos e foram apoiados os programas de ajuda estrangeira, como empréstimos monetários e planos de modernização (e adaptação ideológica) das forças policiais e militares. Normalmente, estas ações foram acompanhadas por campanhas de propaganda destinadas a sensibilizar os governantes, as elites e os setores populares da América Latina que, segundo eles, subestimaram a "ameaça comunista". 51


Imediatamente após a guerra, o Departamento de Estado e as agências secretas de segurança tiveram uma intensa atividade no Uruguai, país considerado prioritário porque sua cidade capital estava agindo como uma porta de entrada para o continente americano, em virtude de sua longa tradição de asilo e de recepção a refugiados políticos. Desde a sua criação em 1947, a estação montevideana da CIA manteve uma estreita relação com a polícia política local. Por exemplo, foi através do trabalho conjunto de ambos os departamentos que a CIA monitorou o deposto presidente guatemalteco Jacobo Árbenz, exilado no Uruguai com a sua família entre 1957 e 1959. As atividades de espionagem foram acompanhadas por campanhas de propaganda através da mídia, da rádio e de organizações criadas ex profeso para unir esforços ao combate anticomunista. Estas incluíam a subsidiária uruguaia da Confederação Interamericana de Defesa do Continente, o Movimento Antitotalitário do Uruguai e a Liga Anticomunista Oriental, que patrocinaram ciclos de debates e conferências e tinham acesso a programas de rádio e imprensa nacional (APARICIO et al., 2013, pp. 116, 170-175). Na Argentina, o fenômeno peronista contribuiu para redefinir identidades políticas de uma maneira nova e dificilmente traduzível para a polaridade entre esquerda e direita. Apenas a presidência de Frondizi, em 1958, e sobretudo após o impacto da Revolução Cubana no início dos anos 1960, começou a sentir o peso dessa classificação binária ideológica, que complementou — e não substituiu — a clivagem que separava peronistas e antiperonistas. Tanto a política externa terceirista do peronismo quanto a suspeita nacionalista que tinha uma parcela significativa das Forças Armadas dificultaram o desenvolvimento de algumas das estratégias de intervenção consensual que Washington influenciou sobre outros países da região. No final da década de 1950, em ambos os países começou a reverter a prosperidade econômica que viveram desde o fim da Segunda Guerra Mundial, tornando-se evidentes algumas das limitações do protecionismo e do modelo dirigista testado desde então. Os efeitos da crise econômica foram estagnação produtiva e declínio dos salários reais, o que impactou negativamente os trabalhadores e as classes médias que tinham obtido grande capacidade de pressão 52


para sustentar seus interesses sob o peronismo e neobatllismo. A agitação social generalizada teve a sua expressão eleitoral no Uruguai, nas eleições de 1958, com a vitória da aliança do setor herrerista do Partido Nacional e do Ruralismo, um movimento sindical rural que exigia o fim do modelo de industrialização protegida. Rapidamente, o novo governo implementou uma política de liberalização econômica e distanciou do Estado o papel de "árbitro" e regulador dos interesses, como tinha sido o papel do regime neobatllista (ALONSO & DEMASI, 1986). Na Argentina, uma parte deste programa de liberalização econômica foi desenvolvida a partir de 1955, embora a implementação nunca conseguisse ser completa em virtude da resistência dos trabalhadores organizados e da falta de apoio dentro das Forças Armadas. Por trás do desejo de desmantelar a regulação e a intervenção estatal achavam-se os latifundiários, setores empresariais industriais e homens de direita liberal-conservadora. Esses setores entendiam que um realinhamento mais forte do país com os Estados Unidos permitiria a chegada de investimentos e empréstimos daquele país e facilitaria o comércio internacional. A vida política e econômica da Argentina transitou até a última ditadura (1976-1983) com os problemas decorrentes de uma economia sem capacidade para assegurar um crescimento sustentado ao longo do tempo, mas, ao mesmo tempo, oferecendo níveis de emprego e salários reais altos, comparados com a região e com a história anterior à experiência peronista. A aliança herrero-ruralista atingiu fortes laços com o governo dos Estados Unidos, a fim de impulsionar planos de desenvolvimento e segurança nacional. Nos anos seguintes, as campanhas de propaganda e difusão cultural foram intensificadas e recursos consideráveis foram dedicados à formação de dirigentes sindicais e intercâmbios e estadias nos centros de estudo e de formação estadunidenses. Foram apoiadas organizações sindicais opostas ao sindicalismo classista e foi criado o Instituto Uruguayo de Educación Sindical, dependente do Instituto Americano para el Desarrollo del Sindicalismo Libre (BROQUETAS, 2014, pp. 63-64).41De qualquer

Sobre o diagnóstico e os planos de Washington com relação ao Uruguai, ver o relatório aprovado pelo Departamento do Estado, de 24 de setembro de 1963. US Department of State, “Department of State to Amembassy Montevideo: Policy Toward Uruguay — Latin American Policy Committee 4

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forma, estas tentativas de construir um sindicalismo "livre" faziam parte de um esforço do governo dos Estados Unidos e da American Free Labour para alcançar toda a América do Sul (BOZZA, 2009). Ao longo dos anos 1960, a agitação social e política ascendeu nos dois países, alcançando regimes cada vez mais determinados a apostar na repressão política. Tornou-se habitual o fato de que o governo uruguaio, para conter os conflitos com trabalhadores e estudantes, aprovaria Medidas Prontas de Segurança (ALDRIGHI, 2007; IGLESIAS, 2010). A repressão na Argentina teve níveis comparáveis aos uruguaios, mas combinados com um padrão de recorrentes intervenções militares para condicionar ou deslocar os governos legalmente constituídos. Enquanto o regime peronista implantou mecanismos de policiamento e perseguição do Partido Comunista, estes processos foram intensificados depois de 1956 porque as autoridades assumiram como viável — ou já assinado — um acordo entre os comunistas e os peronistas (ambos igualmente "totalitários") para ativar os conflitos sindicais (MARENGO, 2015; SPINELLI, 2005, p. 247). Neste contexto, deve ser entendida a criação da Divisão de Investigação de Partidos Antidemocráticos da Polícia Federal em 1956 (UBERTALLI, 2010, p. 251). O Partido Comunista Argentino (PCA) foi submetido à repressão sob o governo de Frondizi (1958-1962), o que não impediu o presidente de repetidamente ser acusado de pró-comunista. Frondizi usou o Plano “Conmoción Interna del Estado” (Conintes), para perseguir os dois peronistas e comunistas (PADRÓN, 2012, p. 165). O PCA foi colocado fora da lei em 1961 e foram julgados em tribunal militar aqueles acusados de participar de crimes de "perturbação da ordem pública" ou "minar a autoridade". Em 1966, após a imposição da ditadura liderada pelo general Juan Carlos Onganía, aumentou a repressão política, sem sequer se respeitar as salvaguardas do Estado de Direito. É interessante notar que essa repressão não era consistente com a presença de um partido de esquerda de relevância em nenhum dos dois países. Até o início da década de 1970, as forças de esquerda no Uruguai conquistaram menos de 10% Meeting”, 15 de agosto de 1963, National Archives and Record Administration, Washington, RG59.SNF.1963.PD.BOX4084.

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das adesões do eleitorado, o que representou um teto muito baixo. As forças de esquerda tinham diferenças ideológicas sobre a ligação com a URSS e a adoção de violência revolucionária. Da mesma forma, na Argentina, a esquerda não mostrou força eleitoral, apesar de uma presença crescente em espaços sindicais. Em ambos os países, a sua influência era ponderada conforme suas tentativas de formar frentes eleitorais — no caso argentino, ocasionalmente incluiu-se a ideia de incorporar as massas peronistas ao seu líder exilado — e os vínculos mantidos com o sindicato e o movimento estudantil, ambos altamente ativos e com diagnósticos e propostas para superar a crise estrutural. Consequentemente, o "comunismo" que várias organizações desafiavam com urgência e preocupação não fazia referência aos partidos comunistas, mas a um estado amplo de insatisfação com a política econômica, à ativação relativamente autônoma de jovens e trabalhadores e a um desafio aos valores socialmente tradicionais ou conservadores. Foi neste período que se potencializou a estigmatização dos movimentos sociais e de organizações sindicais e estudantis, que foram identificados com a figura do "inimigo interno", um verdadeiro pilar ideológico da Guerra Fria. Não é surpreendente que nesse âmbito surgiram organizações políticas devotadas a combater ou eliminar a presença do "comunismo" em seus países.

Os anticomunistas do Rio da Prata: ideias e projetos Seguindo uma tendência mundial, tanto na Argentina quanto no Uruguai a consolidação da Guerra Fria na década de 1950 trouxe mudanças das direitas locais. Podem ser percebidas duas tradições ideológicas com diferentes percepções sobre a democracia: uma liberal-conservadora, hegemônica entre as direitas e inicialmente alinhadas através da retórica antifascista liderada pelos Estados Unidos durante a Segunda Guerra Mundial; uma antiliberal, que tinha conjuntado organizações de extrema direita, as quais tiveram seu auge nas décadas de 1930 e 1940, simultaneamente à ascensão do fascismo, e que se achavam desmembradas ou fora da lei após 1945. Entre o final dos anos 1950 e meados da seguinte década, as duas

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correntes experimentaram novos impulsos. Em ambos os países surgiram organizações apresentadas como "democratas", as quais se dedicavam à defesa da ordem estabelecida (ocidental, capitalista e liberal) que, segundo elas, estava sendo minada em múltiplas dimensões. No Uruguai proliferaram muitas destas organizações entre 1958 e 1962, período que coincidiu com a chegada do ruralismo ao governo nacional. Entre as mais representativas estavam a Asociación de Lucha Ejecutiva contra los Totalitarismos en América (Alerta); a Confederación de Estudiantes del Interior; a Organización de Padres Demócratas; o Movimiento Nacional para la Defensa de la Libertad; os Amigos de Cuba Libre y Democrática; as Organizaciones Demócratas del Interior; e o Movimiento Cristiano del Uruguay para la Defensa de la Libertad y los Derechos Humanos (BROQUETAS, 2014, pp. 79-123). Embora este arquipélago de movimentos tenha recebido muitos novos membros, vários dos líderes dessas organizações já eram militantes anticomunistas nos anos 1940. No território argentino a luta contra o "Castro-Comunismo" foi realizada por vários atores além do Poder Executivo e das Forças Armadas. A organização anticomunista "democrática" mais importante foi a Faeda, que incluía dezenas de grupos anticomunistas locais desde 1963. A Faeda tinha atores identificados com o antiperonismo dos primeiros anos 1950, que participaram do golpe de Estado de 1955. Eram grupos pequenos dentro da coalizão peronista dos anos 1960, mas mantiveram uma linha dura, insistindo na consideração de que o general exilado em Madrid era um aprendiz de feiticeiro que tinha desencadeado forças selvagens e incontroláveis que só poderiam ser dominadas com a restauração da disciplina social (BOHOSLAVSKY, 2016). Empresários, donos de mídia e oficiais das três Forças Armadas insistiram sistematicamente, após a queda de Perón, que seu regime tinha sido o passo prévio à imposição de um modelo econômico e político inspirado na URSS. Entre as definições da direita "democrata" na Argentina e no Uruguai, contavase a defesa da democracia liberal, a filiação explícita ao "mundo livre" e as suspeitas sobre a mobilização de sindicatos classistas (e/ou peronistas). No entanto, o principal elemento que marcou sua imaginação e suas ações foi o anticomunismo. 56


Neste sentido, eles retomaram e aprofundaram a militância anticomunista das organizações "antitotalitárias" dos anos 1940. Seus membros tinham laços ou integravam partidos políticos (setores do Partido Nacional e do Colorado no Uruguai, organizações liberais-conservadoras na Argentina) e mantinham-se perto de altos representantes do governo, da hierarquia da Igreja Católica, de grupos empresariais e de facções militares.52 A ação das organizações “democratas” respondeu à convicção de que havia um "inimigo" infiltrado no corpo social nacional, inimigo que devia ser combatido com uma forma de guerra anormal e secreta. Isso explica a grande importância dada à coleta, organização e disseminação de informações, ao controle ideológico e à delação como meios específicos de luta anticomunista. Embora eles agissem de acordo com o diagnóstico de que era necessário implantar "frentes" para realizar ações específicas, as organizações “democratas” concentraram a maior parte de suas atividades no monitoramento e depuração não apenas de professores e alunos de escolas secundárias e universidades e de funcionários públicos em geral, mas também de autoridades e parlamentares suspeitos de ser cripto-comunistas.63Eles também conduziram campanhas para a promulgação de leis que punissem atividades "antinacionais" ou para orientar a política externa nacional em uma linha contrária ao bloco soviético. Suas autoridades fizeram várias visitas protocolares às autoridades civis e militares e a outras instituições também preocupadas com a

Servicio de Inteligencia y Enlace [SIE], Informe sobre organizaciones anticomunistas no oficiales, avril de 1962, Pasta nº 674 y Memorándum sobre organizaciones gremiales, 25 de mayo de 1964, Pasta nº 1285, Archivo de la Dirección Nacional de Información e Inteligencia [ADNII]. 5

“A la opinión pública”, La Mañana, Montevidéu, 19 de janeiro de 1961; “El comunismo en el liceo de Rocha” e “La actividad subversiva en Uruguay”, Boletín de la Organizaciones Demócratas del Interior [ODI], nº 4, 5 y 6, Montevidéu, nov.-dez. 1962 e jan. 1963. A denúncia de pessoas e organizações suspeitas de serem comunistas foi feita também através de publicações específicas. Para o Uruguai: MARTÍNEZ BARSETCHE, José Pedro, Peligro comunista en el Uruguay, Montevidéu, Suplemento do jornal La Voz de la Libertad, 1958; CANO, Diógenes, Cabezas rojas en el Uruguay, Montevidéu, Impresora Rumbos, 1963; e NARDONE, Benito, Peligro rojo en América Latina, Montevidéu, Impresiones Diario Rural, 1961. Algumas das denúncias da Faeda sobre os cripto-comunistas em “¿Será posible?”, La Razón, 12 jan. 1968. 6

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propagação do comunismo no país e na região.74A eficácia da sua fervorosa atividade anticomunista pode ser percebida principalmente no sucesso obtido na formação da opinião pública e no impacto sobre o senso comum de amplos setores sociais não mobilizados, “silenciosos”, que, a priori, eram seu público-alvo. Observase que nestes grupos houve uma divisão geracional de trabalho: enquanto as autoridades estavam envolvidas em atividades mais solenes e formais (conferências de imprensa, visitas às autoridades, etc.), os membros jovens adotavam práticas de ação direta, muito menos revestidas de ideologia e argumentos democráticos (BOHOSLAVSKY, 2015).85 Simultaneamente

ao

aparecimento

das

organizações

anticomunistas

“democráticas” surgiram aquelas identificadas como "nacionalistas", as quais defendiam uma "terceira posição" na política internacional, equidistante e alternativa em relação ao liberalismo e ao comunismo. No Uruguai essas organizações foram a Frente Estudiantil de Acción Nacional (ativa em 1961); o Movimiento Nacionalista Montonera; o MNR (para o período 1963/1964); e a Cruzada Revolucionaria Patriótica (resultante da fusão das duas anteriores, em 1965) (BROQUETAS, 2014, pp. 145197). Na Argentina destacaram-se o Movimento Nacionalista Tacuara e algumas de suas organizações derivadas, como a Guardia Restauradora Nacionalista e grupos identificados com o peronismo de direita (BESOKY, 2016). Tacuara foi formada no final dos anos 1950 por estudantes de escolas secundárias e universidades em Buenos Aires, mobilizados pelo conflito gerado pelo projeto de lei que autorizava a concessão de diplomas universitários por parte de instituições privadas. Seu líder era Alberto Ezcurra Uriburu, mas o mentor ideológico foi o padre Julio Meinvielle, sobre o qual serão feitos alguns comentários mais adiante.

“Leyes democráticas contra las actividades antinacionales”, La Mañana, 31 de janeiro de 1961; “Ojo con ALERTA”, Marcha, Montevidéu, 2 de dezembro de 1960; e “ALERTA ciudadano para su meditación”, El Diario, Montevidéu, 14 de dezembro de 1960 y El Día, Montevidéu, 15 dez. 1960. 7

Sobre o diagnóstico que os líderes desses grupos faziam dos perigos que ameaçavam a juventude: “En el seno de ALERTA se analizaron los Problemas de la Juventud Actual”, El Día, Montevidéu, 3.11.1960.

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As organizações instaladas em ambas as margens do Rio da Prata tinham várias vinculações, conforme será discutido na próxima seção, mas também muitas semelhanças. Por causa desses aspectos compartilhados tais organizações podem ser consideradas em dívida com grupos filo-fascistas dos anos 1930, como os nucleados em torno das revistas Fragua, Audacia, El Orden, Atención e Corporaciones, em Montevidéu, ou Crisol, Bandera Argentina e El Pampero, em Buenos Aires. Essas semelhanças têm a ver com o seu antiliberalismo e antiimperialismo em relação aos Estados Unidos, com a adoção da Falange de José Antonio Primo de Rivera no nível doutrinário e organizacional e com o uso de vários rituais de iniciação e passagem para seus membros. Estas organizações também expressaram um forte protesto contra o regime de democracia multipartidária, insistindo em apontá-lo como velho, estrangeirizante e prejudicial. Pelo contrário, suas definições sobre organização política colocavam ênfase na necessidade de um Estado autoritário e paternalista, que pudesse assumir as tarefas de produção e distribuição de bens e serviços e de organização da vida política e econômica sob princípios "nacionais" e católicos. Além disso, o antissemitismo era central nas definições das organizações argentinas e uruguaias e representava uma ponte com seus predecessores dos anos 1930 (GUTMAN, 2003; SANTIAGO JIMÉNEZ, 2016).96 Ao contrário das organizações anticomunistas "democratas", as "nacionalistas" preferiam as atividades políticas praticadas nas ruas às praticadas no Parlamento. A noção de "luta contra o comunismo" tinha conotações mais mundanas e ideias de ação direta (BROQUETAS, 2016). A exemplo disso, algumas das práticas adotadas pelos “nacionalistas” equivaleram a brigas nas ruas com jovens de esquerda, a grafites nas paredes, a assaltos e até mesmo a atentados com explosivos. No entanto, apesar das diferenças ideológicas, as ações clandestinas das organizações “nacionalistas” geraram a simpatia e o apoio das organizações "democratas" — que

Sobre as organizações do Uruguai: “Con el Führer Baccino (a media luz). ‘Prohibido sacar fotos’”, Acción, Montevidéu, 7 de julho de 1962; “Conferencia en el FEDAN”, La Escoba, Montevidéu, 11 de julho de 1962; “El sistema liberal”, Revolución Nacional, Montevidéu, s.f., nº 1, 1964; “Revolución total” e “Por qué somos totalitarios”, El Federal, nº 6, Montevidéu, 27 de maio de 1964; “Golpe y Revolución”, Patria Libre, nº 2, Montevidéu, setembro de 1965; e “Comunismo y judaísmo”, Patria Libre, nº 8, 9 y 10, mai-jun-jul. 1966. Sobre os ritos e simbologia desses grupos, ver GALVÁN (2008). 9

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só contestaram o uso da violência terrorista no discurso —, bem como de bandas de criminosos pagos pela CIA, com a cumplicidade da polícia política uruguaia. No caso argentino, os laços entre a CIA e a polícia política têm sido menos explorados (UBERTALLI, 2010).

Os anticomunistas do Rio da Prata: suas redes As organizações anticomunistas argentinas e uruguaias tiveram muitos pontos de contato. Alguns deles surgiram da participação conjunta em redes de alcance americano ou mundial; outros surgiram das trocas e dos cruzamentos diretos entre tais organizações. A intensidade das ligações detectadas entre as organizações "nacionalistas" nos anos 1960 convida-nos a pensar sobre a existência de organizações nucleares com "braços" locais nos respectivos países. Desde 1961 foram notórios os laços de identidade e as semelhanças nas ações da Frente Estudiantil Nacionalista (Fedan) e o Movimiento Nacionalista Tacuara, embora as semelhanças tenham se tornado ainda mais explícitas após o estabelecimento no Uruguai do Movimento Nacionalista Montonera, em 1964. Desde então, o Movimiento Nacionalista Revolucionario (MNR) também apresentou muitas semelhanças com as bandas de direita radical, com as quais também compartilhou alguns membros. Finalmente, quando em 1965 o MNR e Montonera decidiram se unir, a Cruzada Patriótica Revolucionária tornou-se herdeira desse vínculo. Além do substrato comum resultante da leitura e da filosofia da história e da construção de uma identidade política compartilhada (REALI, 2004; 2005), esses grupos concordaram com a interpretação da sua contemporaneidade e, em termos muito gerais, com um projeto político de curto prazo. Um olhar comparativo sobre a atividade desses movimentos no Uruguai e na Argentina oferece uma forte evidência de que eles compartilhavam um plano de ação conjunta. Um dos melhores exemplos sobre essas conexões é evidente a partir do estudo do impacto do sequestro, julgamento e execução do exhomem forte de Auschwitz, Adolf Eichmann (BROQUETAS, 2010; BOHOSLAVSKY, 2010). Na Argentina e no Uruguai, depois da captura de Eichmann, ocorreram atentados contra sinagogas, instituições sociais e culturais judaicas e casas de

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cidadãos judeus nos primeiros meses de 1960. No Uruguai, dois jovens envolvidos nos ataques confessaram à polícia que eram membros de um comando que recebia instruções de um movimento nacionalista da Argentina. Em junho e julho de 1962, imediatamente após a execução de Eichmann, novamente ocorreram episódios violentos que mostram as relações entre os movimentos dos dois países. Na Argentina, houve um aumento notável da campanha antissemita dirigida pelo Movimento Nacionalista Tacuara e a Guardia Restauradora Nacionalista. Entre os numerosos atos violentos contra instituições, casas e pessoas de origem judaica, o mais conhecido pela sua gravidade e impacto foi o sequestro da jovem estudante Graciela Sirota, nos últimos dias de junho. Ela reconheceu entre seus sequestradores três jovens que eram provocadores antissemitas e estavam presentes em uma reunião política realizada alguns dias antes na Faculdade de Medicina. Além de ter sofrido espancamentos e queimaduras de cigarro em várias partes do corpo, ela foi brutalmente tatuada com uma suástica em seu peito. Duas semanas após o ataque à Graciela Sirota em Montevidéu, a jovem paraguaia Soledad Barrett foi sequestrada e agredida da mesma forma. Soledad, como vários membros de sua família, compunha os adversários da ditadura promovida pelo general Stroessner fora do Paraguai. Na agressão contra Soledad Barrett teve um importante desempenho Pedro Andrade Arregui (conhecido como Carlos Rojo), um uruguaio que empenhou diversos esforços para se aproximar da extrema direita uruguaia aos movimentos latino-americanos com a mesma ideologia, em particular, aos argentinos. No final de 1961, Andrade Arregui morava em Buenos Aires, integrava o Movimiento Progresista de Uruguay e presidia a comissão organizadora do Congresso das Juventudes Nacionalistas Revolucionárias.107 Além da semelhança verificável em relação ao caso Sirota, as implicações de Tacuara nos ataques em julho de 1962 no Uruguai tornaram muito visível a presença em Montevidéu de vários membros dessa organização, ligada, por sua vez, à comunidade local dos mórmons.

SIE, Memorándum informando “sobre el atentado perpetrado en la persona de la señorita Soledad Barrett”, 17 de julho de 1962, Pasta N° 862 e memorándum: “Se informa sobre identidad del artista Carlos Rojo y sobre el proyectado 1er Congreso Latino Americano de Juventudes Nacionalistas Revolucionarias”, Pasta N° 726, ADNII. 10

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As ligações internacionais Tacuara estavam suportadas pelas redes construídas durante décadas por sua alma mater: o jesuíta Julio Meinvielle. Meinvielle tinha vasta experiência como ideólogo da direita radical e do antissemitismo na Argentina. Ele publicou vários livros sobre a oposição entre o catolicismo e a modernidade. Esta foi retratada por ele como uma hidra tricefálica composta de comunismo, liberalismo e judaísmo. Segundo Luis Herran Ávila (2012) Meinvielle viajou muitas vezes para o México para aconselhar grupos semelhantes a Tacuara, como Los Tecos ou El Yunque. Herran Ávila mostrou os laços do padre Meinvielle com Salvador Borrego, autor do livro revisionista Derrota Mundial (publicado em 1953), mas também sabemos de suas ligações com outras organizações anticomunistas, como a Frente Universitario Anticomunista e o MURO (SANTIAGO JIMÉNEZ, 2012), este último também ligado aos movimentos nacionalistas uruguaios. Esses vínculos permitem compreender o fato de que as organizações "nacionalistas" argentinas e uruguaias compunham redes mais amplas, como o movimento neofascista Jovem América, filial latino-americana da organização Jovem Europa, que tinha um escritório em Buenos Aires. Essa rede parece ter funcionado como um espaço para troca de experiências, periódicos e textos teóricos. Em 1963 foi lançada a organização de um congresso promovido por jovens nacionalistas em toda a América, destinado a reforçar a solidariedade entre pares e chegar a um acordo sobre um programa político comum. A Jovem América também tinha ligações com a organização de exilados cubanos nos Estados Unidos, agrupados no Movimiento Nacionalista Cristiano, que lutava para derrubar o governo cubano. Seu boletim informou sobre a preparação de um "congresso de organizações nacionalistas na América Latina" pelos “camaradas de la Asociación Nacionalista Cubana”.118 Porque o antissemitismo era um dos pilares ideológicos desses movimentos “nacionalistas”, eles conseguiram estabelecer conexões, na Argentina e no Uruguai, com a Liga dos Estados Árabes, promotora da luta antissionista desencadeada em todo o mundo após a criação, em 1948, do Estado de Israel. Em outubro de 1962, a “Comunicación de Enlace”, Joven América, ano 1, n° 1, 1963 e carta de Manuel de la Isla Paulín a Basilio García Corominas, s.f., 1964, em: SIE, Pasta N° 1840a, ADNII. 11

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chegada do diplomata tunisiano e do ativista Hussein Triki à Argentina beneficiou os movimentos como Tacuara e Guardia Nacionalista Restauradora, os quais receberam verbas para as suas estruturas organizacionais que atingiram saltos qualitativos em sua campanha antissemita. No Uruguai e na Argentina foram reproduzidos artigos de Nación árabe, a revista mensal da Liga (SENKMAN, 1986, pp. 52-53).129 Em 1965, a descoberta do corpo de Herberts Cukurs —aviador envolvido no extermínio nazi de judeus em Latvia — desencadeou uma nova onda de atos antissemitas no Uruguai. As ressonâncias do assassinato de Cukurs no Uruguai revelaram mais ligações clandestinas entre os membros do corpo diplomático árabe e as organizações "nacionalistas" de ambos os lados do Rio da Prata, encorajadas pelo apoio financeiro do Secretário da Embaixada da Liga Árabe em Montevidéu.1310 Na luta contra o comunismo esses grupos mantiveram ligações com governos, oficiais militares e policiais locais que forneceram proteção policial, armas e treinamento, bem como vínculos com diferentes áreas do Estado. No Uruguai está provado que aceitaram ajuda financeira da diplomacia dos Estados Unidos para realizar ataques terroristas. Entre 1960 e 1962, a estação montevideana da CIA promoveu a criação de esquadrões para aterrorizar os militantes de esquerda e intervir nas decisões governamentais sobre o isolamento e a condenação de Cuba. Desses grupos participaram sicários sem ideologia e exilados anticomunistas de Cuba e da Europa Oriental. Eles instruíram os homens armados locais sobre a fabricação de dispositivos explosivos e sobre várias técnicas de intimidação contra os militantes de esquerda. No desenvolvimento de suas operações eles foram acompanhados por membros de grupos "nacionalistas" (AGEE, 1975).1411

12

“Prisioneros cristianos”, El Federal, nº 6, Montevidéu, 27 mai. 1964.

SIE, “Memoria Anual. Departamento de Inteligencia y Enlace. Año 1965”, Anexo n° 7. Caixa 28, ADNII e notas mecanografiadas com o título “Montonera”, s.f., [¿maio de 1965?], Pasta n° 1184, ADNII.

13

SIE, Oficio n° 227 dirigido ao Juiz Letrado de Instrucción y Correccional de 5to Turno, 14 set.1962, Pasta N° 845. 14

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No caso das organizações anticomunistas "democratas", sabemos que estabeleceram ligações com indivíduos e organizações distantes do contexto sulamericano, como os grupos de exilados cubanos e da Europa Oriental. Desde o início dos anos 1960 havia cubanos, húngaros e polacos que participaram de demonstrações, palestras e atividades culturais1512desenvolvidas na Argentina e no Uruguai, não só nas cidades capitais. Esses atores funcionavam como hubs, com organismos transcontinentais anticomunistas, como a Assembleia de Nações Europeias Cativas. Simultaneamente, através destes espaços cresceram as conexões entre a Faeda, os grupos "democratas" do Uruguai e os dirigentes do Movimiento Ruralista, que mantiveram a luta anticomunista iniciada após o triunfo da Revolução Cubana. Embora ainda haja muito a ser pesquisado, parece possível afirmar que, apesar de suas nuances, esses atores concordaram com um anticomunismo liberal, empresarial e pró-Washington, articulado a entidades continentais (como a Comissão Interamericana para a Defesa do Continente) ou globais (como a Assembleia de Nações Europeias Cativas e a World Anti-Communist League).1613Estes organismos auspiciaram, desde os anos 1950, a realização de conferências anticomunistas, como as promovidas pela Faeda em Buenos Aires, entre 1963 e 1967, que tiveram delegações de organizações "democratas" do Uruguai e de líderes do ruralismo.14 Em ambos os países, essas atividades eram protegidas pela polícia política que, por sua vez, trocava informações com as organizações envolvidas com as quais tinha um amplo trabalho de espionagem compartilhado.

SIE, “Otro acto de los estudiantes de Maldonado”, ODI, n° 4, Montevidéu, nov. 1962. SIE, Oficio nº 227 e Pasta nº 479B. 15

“Afirman que la bonhomía democrática en que vive el país es propicia para el comunismo, cuya acción aumentó”. La Razón, Buenos Aires, 19 de junho de 1965. 16

“Congreso juvenil anticomunista”, Clarín, Buenos Aires, 30 de outubro de 1965; “Acción común anticomunista”, Correo de la Tarde, Buenos Aires, 9 de outubro de 1963.

14

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Considerações finais Este artigo — que é parte de uma pesquisa dedicada ao estudo integrado das direitas no Cone Sul — tenta superar os limites que resultam de uma prática historiográfica preocupada principalmente com os sujeitos e problemas situados no nível nacional. Sob essa perspectiva, esperamos ter contribuído para perceber, simultaneamente, a natureza transnacional de algumas práticas, redes e identidades políticas implantadas na Argentina e no Uruguai nos anos 1950 e 1960, e a presença de fluxos, apropriações e correntes de circulação de ideias (e de seus promotores) fora da direção norte-sul. A existência de tais redes políticas e sociais locais, binacionais e transnacionais permitiu o trânsito, a adoção e a adaptação da informação, de bens culturais e de projetos políticos diferentes durante a Guerra Fria. Acreditamos ter contribuído para uma percepção do caráter plural das identidades anticomunistas na Argentina e no Uruguai nas décadas de 1950 e 1960. Perceber essa heterogeneidade ajuda a compreender melhor o processo desenvolvido no final dos anos 1960 e início dos anos 1970, quando se constituiu uma coalizão centralmente anticomunista, que moderou ou deletou as diferenças entre as ideias, identidades, redes e práticas das organizações anticomunistas. Dentro deste grupo heterogêneo, unido apenas por algumas definições categóricas sobre quem eram seus inimigos, é possível identificar duas grandes tradições, a "democrata" e a "nacionalista", de acordo com suas autodenominações. As organizações "democratas" parecem ter surgido na Argentina após o caso uruguaio, que teve seu auge entre 1958 e 1962. A Faeda, cuja criação remonta a 1963, repetiu muitos dos argumentos desenvolvidos pelos seus pares uruguaios, argumentos relacionados à detecção, vigilância e exibição pública de comunistas e cripto-comunistas que constituíam ou alimentavam o "inimigo". Estas organizações adotavam tanto a estratégia de divulgar nomes de pessoas e organizações supostamente servidoras do complô soviético, como uma definição ideológica que parece mais próxima de um anticomunismo difundido pelos Estados Unidos, isto é, liberal — pró-negócios no aspecto econômico e conservador no aspecto social. No entanto, se constata uma diferença entre as duas margens do Rio da Prata: a 65


presença assídua de referências católicas nas organizações argentinas contrasta fortemente com a natureza secular de grupos uruguaios. Essa diferença parece tornar-se ainda maior quando se considera que há alguma evidência sobre as ligações entre a Faeda e a Sociedade de Defesa da Tradição, Família e Propriedade (BOHOSLASVKY, 2015). As redes desenvolvidas pelas organizações “democratas” foram baseadas na visão de que em um mundo dividido entre Moscou e Washington não existia lugar para uma terceira posição, portanto deviam ser desenvolvidos todos os esforços de cooperação com os Estados Unidos. Daí a ligação com as organizações de exilados cubanos e da Europa Oriental, as quais deram um tom "global" à sua retórica. A outra grande família anticomunista, a "nacionalista", parece inverter a ordem de aparição que teve a família do anticomunismo "democrático", uma vez que parece ter desenvolvido pela primeira vez na Argentina e logo no Uruguai. Trata-se de atores caracterizados pela sua marginalização em relação ao sistema de partidos, por causa de sua juventude e sua disposição explícita em usar a violência, o planejamento e a execução de atentados. Sua identidade política foi marcada pelo desejo de impor uma revolução nacionalista e católica que conseguisse restaurar as tradições nacionais ameaçadas por causa de uma trama que não era só de Moscou, mas — e talvez principalmente — judaica. Duas conclusões podem ser tiradas a partir da comparação. A primeira diz respeito ao vínculo com o regime democrático. A visão que pode ser obtida da história das organizações anticomunistas mostra a ambiguidade das relações tecidas por esses grupos no Uruguai com figuras da direita liberal-conservadora (localizada dentro do Partido Nacional e do Colorado). Estas ambiguidades referiamse a leituras críticas ou condenatórias da Fedan, do Montonera ou do MNR sobre o regime democrático como princípio político, combinado com o reconhecimento do lugar central dos partidos políticos tradicionais na identidade nacional e com a percepção de suas possíveis colaborações com a luta anticomunista. Em contraste, na Argentina organizações anticomunistas mostraram geralmente uma crítica visceral ao regime democrático, que se estendia a uma condenação dos partidos

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políticos in toto, considerados decadentes e promotores de divisões úteis para a propagação do comunismo no país. A segunda conclusão refere-se às Forças Armadas. Embora o governo uruguaio estivesse alinhado à política pan-americana promovida pelos Estados Unidos desde a década de 1940, foi no final dos anos 1950 que se intensificou a interferência de Washington nas políticas econômicas, na orientação externa e nas formas de contenção do protesto social. A intervenção dos Estados Unidos tornouse mais intensa e precoce no Uruguai do que na Argentina, já que Washington encontrou as Forças Armadas e os governos dispostos a aceitarem a sua tutela ideológica pan-americanista. Na Argentina, no entanto, a política externa peronista autonomista primeiro e, após 1955, a centralidade política do combate ao peronismo atrasaram a adoção da lógica da Guerra Fria até os anos 1960. Essas diferenças foram ainda mais agravadas pelas reiteradas intervenções militares na política da Argentina, destinadas a deslocar ou pressionar os governos eleitos, num contexto de proibição legal do peronismo. As Forças Armadas uruguaias, por outro lado, tinham espaços repressivos legalmente definidos como extraordinários, através da implantação das Medidas Prontas de Segurança, que permitiam e limitavam a natureza de suas intervenções. Em suma, as questões levantadas aqui representam um avanço no conhecimento sobre as direitas da Argentina e do Uruguai e, fundamentalmente, sobre os vínculos e projetos compartilhados. As semelhanças encontradas em muitos níveis diferentes, bem como a entrelaçada rede de conexões em diferentes escalas, confirmam a necessidade de uma análise mais aprofundada e sob a chave transnacional para que os motivos e os protagonistas dos golpes dos anos 1970 e ditaduras sejam melhor compreendidos.

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Partido de Representação Popular: estrutura interna e inserção eleitoral (1945-1965)1 Gilberto Calil2

Apresentação O Partido de Representação Popular (PRP) foi constituído no final de 1945, reunindo integralistas sob a liderança de Plínio Salgado.324A trajetória deste partido e o papel político por ele desempenhado têm sido objeto de poucas investigações acadêmicas. Na maioria das vezes, o movimento integralista brasileiro é lembrado por sua intervenção na década de 1930, que se deu através da Ação Integralista Brasileira (1932-1937), com seus desfiles públicos, sua simbologia e ritualística e sua organização fascistizante.425A intervenção integralista, no entanto, não se restringe a este período; ao contrário, teve continuidade, com diferentes características e formas de organização diversas, nas décadas seguintes, seja atuando clandestinamente durante o período do Estado Novo (1938-1945), seja através da intervenção do PRP, entre 1945 e 1965, seja agindo no interior da Aliança Renovadora Nacional (Arena),

1

Texto originalmente publicado na Revista Brasileira de Ciência Política, n. 5, 2011.

Professor Associado do curso de História e do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Estadual do Oeste do Paraná. Doutor em História Social (UFF). E-mail: gilbertocalil@uol.com.br. 2

3

O processo de constituição do PRP é discutido em Calil (2001) e em Calil (2005a).

4

Cf.: Trindade (1974); Chasin (1999); Cavalari (1999); Vasconcelos (1979); e Chauí (1978).

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entre 1965 e 1979, ou do partido que a sucedeu nas décadas seguintes, com suas diferentes denominações (Partido Democrático Social; Partido Progressista Renovador; Partido Progressista Brasileiro; Partido Progressista) ou, ainda, através da fundação de pequenos grupos neointegralistas nas décadas de 1980, 1990 e mesmo recentemente.526 O PRP foi fundado em setembro de 1945 e manteve-se atuante até o cancelamento dos registros partidários, imposto através do Ato Institucional número 2, em 1965. Ainda assim, grande parte das obras que tratam do processo político brasileiro no período entre 1945 e 1964 sequer menciona sua existência e, dentre aquelas que o referenciam, a maior parte faz uma apresentação superficial, destacando traços caricatos e tratando-o como irrelevante — o que se justificaria pela sua reduzida expressão eleitoral. Um exemplo é o tratamento dado por Edgard Carone: O Partido de Representação Popular torna-se cada vez mais um marginal político dentro do contexto brasileiro, embora o toque megalomaníaco de seu Chefe, auxiliado por pequeno grupo de fiéis — alguns do passado, outros do presente — tente demonstrar que ele e seu partido representam as forças vitais no combate ao comunismo e à deturpação dos valores da sociedade brasileira. Seu papel político é tão secundário, no entanto, que em nenhum momento as classes dominantes, nem o Exército, tentam atraí-lo aos movimentos conspiratórios, como em 1955 e 1964 (CARONE, 1985, p. 332).627

Tal avaliação parece-nos insuficiente e, em grande medida, incorreta, se consideramos tanto os resultados eleitorais obtidos pelo PRP — no contexto de sua estratégia política, da base social por ele mobilizada e das características de seu

Os principais grupos integralistas que atuam hoje são a Frente Integralista Brasileira (FIB) e o Movimento Integralista e Linearista do Brasil (MIL-B). Com relação à atuação recente de neointegralistas, cf. Carneiro (2007).

5

Argumentamos em Calil (2005b) que, ao contrário do proposto por Carone, o movimento integralista desempenhou relevante papel no Golpe de 1964, participando da conspiração golpista, das articulações políticas que a precederam, da organização das marchas contra João Goulart e da disseminação do anticomunismo no parlamento e em atividades públicas.

6

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projeto —, como a configuração nacional do partido. Além disso, muitas vezes, pesquisas concentradas exclusivamente em dados eleitorais não captam integralmente a inserção eleitoral do PRP, tendo em vista que, em grande parte das ocasiões, ele apresentou candidatos no interior de coligações e, em algumas situações, até mesmo sob a legenda de outros partidos, mediante acordo interpartidário, o que determina um subdimensionamento do contingente eleitoral deste partido. A estruturação do PRP viabilizou a organização ativa de expressiva parcela da militância integralista, sob controle de Salgado, constituindo um instrumento eficaz para sua intervenção no processo político. Para isto, foi necessária a estruturação nacional do partido, dotando-o de uma vasta rede de diretórios municipais, diretórios regionais em todos os estados e convenções periódicas, garantindo a mobilização permanente da militância integralista, ainda que ela tenha se dado em patamares inferiores à obtida pela AIB nos anos 1930. A hipótese central que orienta a investigação aqui apresentada é que desta forma o PRP se constituiu como partido nacional, no que se refere ao seu projeto, à sua estruturação regional e também aos resultados eleitorais obtidos. Esta investigação utilizou como principal fonte — além dos dados eleitorais publicados pelo Tribunal Superior Eleitoral —, a documentação partidária do PRP, consultada nos dois principais acervos de que se tem conhecimento: o Arquivo Público e Histórico de Rio Claro728(que reúne toda a documentação pessoal de Plínio Salgado e, com ela, a documentação do Diretório Nacional do PRP); e o Centro de Documentação sobre a Ação Integralista Brasileira e o PRP829(que reúne a documentação do Diretório Regional do Rio Grande do Sul). Também foram utilizadas correspondências, circulares e diretrizes; foram consultados os principais jornais do PRP (Idade Nova e A Marcha, de circulação nacional, e Boletim do PRP, editado no Rio Grande do Sul), os livros de Plínio Salgado e depoimentos orais de ex-integrantes daquele partido. 7

Este arquivo será referenciado a partir daqui pela sigla APHRC.

Este arquivo será referenciado a partir daqui pela sigla CDAIBPRP. Este acervo atualmente encontrase sob guarda da PUC-RS.

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A organização partidária e a constituição dos diretórios As dificuldades enfrentadas para a estruturação partidária em um país continental e federativo como o Brasil são analisadas pelo cientista político Gláucio Soares. De acordo com ele: A organização dos partidos não nasce feita: um país federativo requer diretórios regionais (estaduais); um país com municípios requer uma extensa rede de diretórios municipais. A fundação de diretório é apenas o início da organização de um partido, que é um processo longo. A estruturação de um partido implica a criação de vínculos com os meios de comunicação de massa, com organizações civis (como os sindicatos e as religiões organizadas), além da criação de diretórios (SOARES, 2001, p. 65).

O resultado da eleição de 1945, na qual PSD e UDN elegeram juntos 82% dos deputados federais — bem mais do que em qualquer eleição posterior — se deve, em grande parte, ao fato de que eram os únicos partidos que contavam com uma ampla estrutura organizacional, abarcando todos os estados e a grande maioria dos municípios. Para o PRP, constituído poucos dias antes das eleições, a defasagem organizacional em 1945 era dramática, sendo esse um dos principais fatores explicativos do péssimo resultado eleitoral alcançado pelo partido naquela eleição, quando elegeu apenas um deputado federal e obteve pouco mais de 130 mil votos em todo o país, o que corresponde a 2,3% dos votos, seu pior percentual em âmbito nacional em eleições parlamentares durante toda sua trajetória. Após as eleições de 1945, o partido definiu como objetivo central a ampliação de sua rede de diretórios estaduais e municipais, em um processo de interiorização de sua estrutura organizativa. Em 1946, inúmeras excursões — denominadas pelos integralistas de “bandeiras” — percorreram centenas de municípios com este objetivo, promovendo comícios e realizando propaganda partidária. Em julho daquele ano, uma correspondência de Jayme Ferreira da Silva a Plínio Salgado (que permanecia autoexilado em Portugal, retornando ao Brasil apenas em setembro de 1946) relatava o avanço organizativo:

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O interior vai sendo sacudido. Nosso escritório já conseguiu ligação com mais de 600 localidades e só em uma expedição, no princípio deste mês, foram remetidos pacotes num total de 1046 quilos, contendo milhares de exemplares da Carta-Diretiva de 31 de julho, além de outros prospectos. Em Minas, fundam-se escolas dentro dos diretórios e estas crescem com a adesão de novos adeptos. Em Santa Catarina, nossa gente sai da letargia. O Rio Grande está magnífico. O Paraná foi acordado pela centelha de nossa propaganda. São Paulo tem melhorado muito. A Bahia, qual gigante da nossa tradição, começa a esticar os braços para repetir a “palavra nova dos novos tempos”. Pernambuco foi despertada há 45 dias, pelo Mayrink que lá esteve e que logrou êxito inédito, aceitando e abafando os apartes dos nossos velhos adversários marxistas. Do Ceará chegam também notícias auspiciosas com o nosso Barbosa, que de lá regressou na última semana. Goiás nos enviou um emissário. O Pará e o Maranhão também estão de pé (Correspondência de Jayme Ferreira da Silva a Plínio Salgado, APHRC, 21.7.1946).

A citação indica que o processo de organização abarcava inúmeros estados, de todas as regiões do país. Para facilitar a formação de diretórios municipais, sua constituição era permitida com apenas três integrantes, nos postos de presidente, secretário e tesoureiro (PARTIDO de Representação Popular, 1945, p. 27), 930 dispensando-se, provisoriamente, até mesmo a necessidade de contar com sede partidária própria (Boletim do PRP, Porto Alegre, 30.6.1946, p. 2). Além disso, estimulava-se a formação de subdiretórios nos distritos rurais (PRP, 1945, p. 29). Ao final de 1946, o partido divulgou que teria “quase oitocentos diretórios já instalados”, levando o jornal Idade Nova a proclamar — com evidente exagero — que o partido chegaria às próximas eleições “na situação de grande partido, podemos dizer, mesmo, na situação de um dos ‘big fours’ do imediato futuro político nacional” (Idade Nova, Rio de Janeiro, 19.10.1946, pp. 1 e 5).1031A II Convenção Nacional do PRP, realizada em outubro de 1946, contou com a presença de delegados de todos os

A partir daqui, sempre que uma fonte se referir ao Partido de Representação Popular, utilizar-se-á a sigla PRP. 9

As projeções eleitorais divulgadas pelo partido eram sempre exageradamente inflacionadas, com vistas a dois objetivos principais: estimular os integralistas nas campanhas eleitorais e valorizar o capital político do PRP nas negociações que envolviam a formação de coligações com outros partidos. Ver a respeito CALIL, 2001, p. 191-195. 10

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estados, além do Distrito Federal e do território do Acre (Idade Nova, Rio de Janeiro, 2.11.1946, p. 7), o que evidencia que a estrutura partidária já havia se ampliado significativamente. No ano de 1949, o partido lançou a “Campanha Nacional dos 1000 núcleos” (Ofício da Secretaria Estadual de Arregimentação Estudantil do Rio Grande do Sul aos diretórios municipais, CDAIBPRP, 7.7.1949), visando a estruturação de mil diretórios municipais, objetivo que, a julgar pela informação apresentada no jornal partidário, teria sido alcançado no ano seguinte, quando o partido contaria com 1.004 diretórios municipais e 593 diretórios distritais (Idade Nova, Rio de Janeiro, 1.6.1950, p. 1). Entre 1947 e 1949, Salgado percorreu o país, em diversas caravanas, formando diretórios e promovendo atividades públicas. Um panfleto de divulgação da programação da caravana na cidade de Poções (BA), em 1949, ilustra como se desenvolviam estas atividades: Em primeiro lugar, pede-se ao Comércio a fineza de cerrarem as suas portas durante o dia 8, para que todos, em união fraterna, possam tomar parte em todas as homenagens programadas. A cidade será despertada por uma salva de 21 tiros na madrugada do dia 8 e algumas bombas anunciarão a entrada da “Bandeira El Rei D. João III”, que percorre os sertões da Bahia, chefiada pelo Sr. Plínio Salgado. Convida-se o povo da cidade, sem exceção de cor, credo religioso ou partidarismo político, para reunir-se nas escadarias da Igreja Católica, no dia 8 e 9 horas da manhã, a fim de receber com uma salva de palmas a “Bandeira El Rei D. João III”. Após a missa, enquanto o sr. Plínio Salgado paraninfa o batizado de uma criança, o povo se transportará ao local da construção da nova Igreja, onde, terá a oportunidade de ouvir a palavra do Deputado Federal Goffredo Telles e outros oradores [...]. Logo após o almoço, partirá a “Bandeira” para a visita às minas de amianto [...]. Não faltará transporte desta cidade para este aprazível e utilíssimo passeio [...]. De regresso do passeio, às 6 horas, no Cinema local, o Sr. Plínio Salgado fará a “Crônica da Ave Maria”, que será irradiada para toda a cidade [...]. Para a sessão solene das 20 horas, pede-se ao Ilustre Sr. Delegado de Polícia e o Sr. Sargento Instrutor do Tiro de Guerra, o necessário controle para que as famílias se coloquem em primeiro lugar no Salão da conferência, pois receamos que o prédio seja pequeno para conter todo o povo (Ao povo de Poções. Panfleto, APHRC, 7.4.1949/1).

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Evidencia-se, assim, a diversidade de atividades realizadas na divulgação do partido e busca de expansão de sua estrutura organizativa. Embora esta tenha se desenvolvido em todo o país, se deu de forma bastante desigual, pois os integralistas tiveram maiores dificuldades para estruturar o PRP nos estados mais atrasados economicamente e com menor população, situados na região Nordeste e, principalmente, do Norte e Centro-Oeste. Um levantamento produzido pelo Departamento de Controle e Estatística do PRP revela que 72% dos diretórios municipais em funcionamento no ano de 1948 (ou seja 444 de um total de 618 diretórios constituídos) localizava-se em apenas oito estados: São Paulo (91), Rio Grande do Sul (64), Minas Gerais (61), Bahia (57), Ceará (49), Pernambuco (44), Rio de Janeiro (41) e Paraná (37). Os demais se localizavam em Santa Catarina (29), Espírito Santo (29), Pará (19), Goiás (19), Rio Grande do Norte (16), Mato Grosso (16), Maranhão (15), Paraíba (10), Piauí (9), Amazonas (6) e Sergipe (6) (Idade Nova, Rio de Janeiro, 21.10.1948, p. 4). Um relatório produzido em 1949 pelo dirigente perrepista Abel Rafael Pinto, incumbido de inspecionar as atividades do partido em seis estados do Norte e Nordeste, evidencia as dificuldades e problemas enfrentados pelo partido: no Pará o partido teria somente 4 diretórios municipais em funcionamento; no Maranhão, teria sido muito abalado pela deserção de seu único deputado estadual (Padre Joel Barbosa), ficando reduzido também a apenas 4 DM’s em funcionamento; no Piauí mantinham-se em funcionamento apenas 2 DM’s; no Rio Grande do Norte, o partido teria enfrentado um grande tumulto em um comício; na Paraíba enfrentaria a carência de militantes e de recursos; e somente no Ceará haveria algum avanço na estruturação partidária, e, ainda assim, ameaçada por um conflito em torno da indicação do candidato a deputado federal (Relatório de Abel Rafael Pinto, APHRC, 23.3.1949/1). Os resultados eleitorais obtidos nestes estados, como se discutirá adiante, foram igualmente bastante modestos, inferiores à média nacional, o que reforça a correlação entre estruturação partidária e obtenção de resultados eleitorais.

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As dinâmicas de funcionamento partidário Através das correspondências entre as instâncias partidárias é possível tomar conhecimento de algumas atividades desenvolvidas pelos diretórios estaduais ou municipais, ou, ainda, das atividades que o Diretório Nacional deles esperava. No que se refere aos diretórios estaduais, eles periodicamente prestavam informações respondendo a extensos questionários remetidos pelo Diretório Nacional, os quais indagavam quanto às atividades desenvolvidas. Tais relatórios mencionam a realização de “sessões doutrinárias”; a promoção de concentrações regionais de militantes; a realização de excursões de propaganda; a promoção de atividades voltadas aos estudantes; a edição de folhetos, boletins, cartazes e materiais de propaganda; a realização de programas de rádio; e a promoção de eventos voltados às mulheres. Em um ofício enviado aos diretórios municipais, Plínio Salgado listava algumas atividades que estes deveriam realizar, dentre as quais: a promoção semanal de reuniões doutrinárias; a organização e manutenção de uma biblioteca na sede partidária; a promoção de comemorações públicas das datas nacionais; o exercício da “maior vigilância possível sobre os comunistas locais”, com a sistemática remessa ao Diretório Nacional de seus nomes, profissões e cargos ocupados; e a realização cotidiana de propaganda partidária (Ofício do Presidente do Diretório Nacional do PRP Plínio Salgado aos Diretórios Municipais, CDAIBPRP, 20.3.1951). Seria necessário um estudo sistemático da vasta documentação disponível relativa aos diretórios municipais para uma avaliação mais precisa da intensidade com que estas atividades eram realizadas.1132Levando em conta a clássica distinção entre partido de massas e partido de quadros, proposta por Maurice Duverger (1970), percebe-se que o PRP, ainda que não tenha chegado a se caracterizar como um partido de massas — até pela sua avaliação negativa das massas, tidas como incapazes e amorfas — também não se restringiu aos limites estritos de um partido

O principal estudo disponível com esta perspectiva (CARDOSO, 2009) trata da implantação do PRP no Rio Grande do Sul, discutindo a constituição da sua máquina partidária e as ações desenvolvidas pelo Diretório Regional naquele estado. 11

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de quadros, pois realizou atividades periódicas fora dos períodos eleitorais e pretendeu mobilizar e organizar seus adeptos de forma permanente, de modo que teve um êxito relativo. É certo que não logrou manter o grau de permanente mobilização alcançado pela Ação Integralista Brasileira na década de 1930, mas, ainda assim, conseguiu promover a realização de inúmeras atividades partidárias fora dos períodos eleitorais, não se restringindo às atividades parlamentares e executivas, no que se distinguia claramente dos principais partidos do período, cuja estruturação era quase exclusivamente voltada aos processos eleitorais. Os Estatutos do PRP, aprovados em setembro de 1945, foram alterados sete vezes até 1964. Ainda assim, à exceção das reformas de 1946 e 1947, as demais alterações foram superficiais, produzindo apenas alterações pontuais. A reforma estatutária de 1946, realizada durante a II Convenção Nacional, foi conduzida diretamente por Plínio Salgado, modificando profundamente a estrutura partidária e fortalecendo enormemente a Presidência Nacional, no mesmo momento em que o próprio Salgado assumia o cargo, no qual permaneceria até o encerramento das atividades partidárias, em 1965. No que se refere aos órgãos dirigentes, o Estatuto de 1945 previa um Diretório Nacional de cinco membros que se reuniria semanalmente, subordinados a um Conselho Nacional de 12 membros que se reuniria mensalmente, ambos eleitos pela Convenção Nacional (PRP, 1945). Com a reforma de 1946, o Diretório Nacional passou a ter 15 membros e reuniões mensais; o Conselho Nacional passou a ter 35 membros; e foi criada a Comissão Nacional de Orientação Política, com quatro membros livremente indicados pelo Presidente Nacional do Partido e diretamente subordinados a ele. Este novo órgão passou a reger a vida diária do partido e as principais questões em tramitação no Diretório Nacional deviam ser previamente avaliadas por ela (PRP, 1946). Ainda assim, esta estrutura durou poucos meses, sendo substituída por outra ainda mais centralizada. A segunda reforma estatutária ocorreu em março de 1947, durante a III Convenção Nacional, convocada especialmente para tal fim, e extinguiu a Comissão Nacional de Orientação Política, constituindo, em seu lugar, dez Secretarias Nacionais: Arregimentação Eleitoral; Propaganda; Finanças; Assistência Social; 79


Arregimentação Feminina; Arregimentação Trabalhista; Arregimentação Estudantil; Cultura Artística; Educação Moral, Cívica e Física; e Estudos e Planos Governamentais, cujos secretários eram livremente nomeados pelo Presidente Nacional e diretamente subordinados a ele (PRP, 1947). As reformas seguintes ocorreram na IX Convenção Nacional, em 1951, na XIII, em 1956, na XIV, em 1957, e na XVI, em 1959.1233A reforma de 1956 aumentou o número de componentes do Diretório Nacional para 45 membros e criou um Conselho Nacional constituído pelos presidentes dos Diretórios Regionais e pelos deputados estaduais, além de acirrar a disciplina partidária (A Marcha, Rio de Janeiro, 27.4.1956, p. 1).1334A reforma de 1959 estabeleceu a obrigatoriedade de realização de duas reuniões mensais dos Diretórios durante o período em que as Câmaras Federal, Estaduais e Municipais estivessem reunidas, bem como facilitou a punição dos militantes em atraso com a contribuição financeira (PRP, 1959). Finalmente, em 1961, os Estatutos foram novamente alterados, passando o Diretório Nacional a ter um número variável de componentes, de 15 a 45, incluindo como membros natos os representantes no Congresso Nacional; extinguindo o Conselho Nacional; e criando em seu lugar o Conselho Político — composto por 14 membros nomeados pelo Presidente do Diretório Nacional e a ele subordinados — além do Conselho Consultivo, reunindo os parlamentares do partido, os presidentes dos diretórios regionais e outros membros indicados pelo Presidente do Diretório Nacional. Também passou a permitir a eleição de integrantes de um Diretório para outro, desde que não ocupassem funções específicas (PRP, 1961). É interessante observar que em todas as versões anteriores dos estatutos (entre 1945 e 1959) era vetada a participação de membros das direções regionais e municipal no Diretório Nacional, ao contrário do que ocorria, por exemplo, no PSD, cujo Diretório Nacional

Partido de Representação Popular — Estatutos. Aprovados pela IX Convenção Nacional. Mimeografado (CDAIBPRP). Partido de Representação Popular — Estatutos. Aprovados pela XII Convenção Nacional. Mimeografado (APHRC-FPS 067.001.001); Partido de Representação Popular — Estatutos. Aprovados pela XIV Convenção Nacional. Mimeografado (APHRC-FPS 067.001.002). 12

Embora tendo sido criado pela Convenção, ao que parece este órgão não chegou a funcionar, sendo substituído por um Conselho Político Nacional, bem mais restrito, composto apenas pelos deputados federais do partido (A Marcha, Rio de Janeiro, 14.6.1957, pp. 1 e 6).

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era composto exatamente pelos presidentes dos diretórios regionais. Esta opção da liderança perrepista acentuava a hierarquia do partido e colocava o Diretório Nacional como uma instância claramente separada e acima dos diretórios regionais, o que implica altíssimo grau de centralização, sob controle do Presidente Nacional. Outro aspecto relevante é que em todas as versões dos Estatutos permaneceram definidos os cinco “fundamentos” do partido: I – O conceito espiritualista de vida, em conformidade com as tradições do povo brasileiro, e em oposição a todas as ideologias materialistas; II – O princípio da intangibilidade da pessoa humana e, consequentemente, os princípios democráticos de liberdade e justiça, assegurada, para todos os cidadãos, a igualdade de direitos e deveres perante a lei; III – A afirmação da unidade orgânica da Pátria, que se formou e se perpetuará pelo entendimento e esforço conjugados de todos os cidadãos, sem distinção de raças ou classes; IV – O engrandecimento moral, intelectual e econômico da Nação, garantida a educação de todos, a melhoria das condições de vida dos trabalhadores e o amparo aos elementos produtores; V – O combate contra todas as ideologias totalitárias, inimigas da dignidade do homem, da soberania natural e da harmonia entre os povos.14 35

Em 1962, foi acrescentado um sexto ponto: […] o aperfeiçoamento, pelos meios constitucionais, do sistema representativo vigente, fundamentado no sufrágio universal e no pluripartidarismo, complementando-o, também, através da representação dos grupos econômicos, profissionais e culturais de caráter corporativo (PRP, 1962).

Esta retomada revela a retomada explícita da defesa do corporativismo, que fora extremamente relevante no ideário integralista dos anos 1930 e havia sido omitida durante a maior parte da trajetória do PRP — omissão que se explica pelo contexto hostil a perspectivas fascistizantes instaurado no imediato pós-guerra.

Partido de Representação Popular — Estatutos. Aprovados pela III Convenção Nacional. Mimeografado (APHRC-FPS 016.008.001). A redação destes “fundamentos” nos Estatutos de 1945 era levemente diversa. 14

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As secretarias criadas em 1947 tiveram grande relevância na estrutura partidária e, de acordo com os Estatutos, deviam ter existência regular também no âmbito dos estados e dos municípios.1536 A perspectiva de Salgado era constituir uma organização bastante capilarizada, com capacidade de rivalizar com o Partido Comunista: O PCB, atuando dentro dos princípios rígidos do leninismo, está transformando uma minoria organizada numa potência capaz de vencer e dominar um povo. Assim, se não quisermos ser cúmplices, precisamos dar ao nosso partido também uma organização capaz de se opor àquela máquina subversiva, que é a mais perfeita organização atual entre nós (Boletim do PRP, Porto Alegre, 4.2.1946, p. 3).

A documentação partidária disponível permite apontar que enquanto uma parte destas secretarias funcionou com grande regularidade, outras tiveram pouca expressão. Algumas, como Finanças, Propaganda e Arregimentação Eleitoral, em virtude da imprescindibilidade de seu funcionamento para os objetivos eleitorais do partido, eram objeto de maior preocupação. Já aquelas voltadas à formação política e doutrinação tendiam a ficar em segundo plano.1637 A Secretaria Nacional de Educação Moral, Cívica e Física tinha por finalidade “incutir na mocidade o mais elevado amor à Pátria, o culto das virtudes públicas e particulares, aprimorando nos jovens os seus dotes intelectuais e físicos, tudo

É muito difícil dimensionar em que medida esta diretriz se efetivou na prática, pois existem poucos estudos específicos. Alguns indícios sugerem grandes dificuldades. Em relatório apresentado à Convenção Estadual do PRP no Paraná, em 1949, o secretário estadual do partido lamentava que apenas dez diretórios municipais tinham nomeado um Secretário Municipal de Arregimentação de Estudantes e que somente três teriam nomeado uma Secretária Municipal de Arregimentação Feminina. Relatório do Secretário Estadual à Convenção Estadual PRP-PR 1949 (APHRC-FPS 015.002.001). 15

O relativo fracasso de algumas destas secretarias parece ter sido um dos motivos pelos quais. na década de 1950, os integralistas passaram a tentar arregimentar politicamente alguns setores, como estudantes e trabalhadores, fora do âmbito partidário, em entidades formalmente independentes. A mais importante dentre estas iniciativas foi a constituição da Confederação dos Centros Culturais da Juventude, que chegou a congregar ao menos 320 centros culturais. Cf. Calil (2005a, pp. 457-469). Embora tais organizações não fossem formalmente vinculadas ao PRP, eram diretamente subordinadas a Plínio Salgado. 16

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subordinado a uma concepção de existência e dos superiores destinos humanos” (SECRETARIA Nacional de Educação Moral, Cívica e Física, s./d.), através da formação de bibliotecas, da promoção de atividades físicas e da criação de escolas, cursos e conferências relacionados a comemorações e festas cívicas e a assuntos políticos e sociológicos. A Secretaria Nacional de Cultura Artística deveria “incentivar, difundir, criar e controlar a parte artística e cultural do Partido de Representação Popular” (Boletim do PRP, 31.10.1947, p. 3), mas teve atuação efetiva em poucos estados e municípios. A Secretaria Nacional de Arregimentação Feminina tinha por finalidade promover ações assistencialistas, criar escolas de alfabetização e de “boas maneiras”, puericultura, taquigrafia, culinária, economia doméstica, corte e costura e outros, realizar reuniões doutrinárias semanais, confeccionar trabalhos manuais e vendê-los para arrecadar fundos ao partido, promover festivais artísticos, literários e musicais, e realizar festas de Natal, Páscoa, dia dos pais e dia das mães (Diretiva de Plínio Salgado aos diretórios regionais, 17.10.1953). Sua dinâmica se vinculava com o papel subordinado preconizado pelos integralistas para as mulheres. A Secretaria Nacional de Arregimentação Trabalhista deveria “instruir e orientar seus associados e simpatizantes sobre todos os problemas sociais, econômicos e políticos referentes às massas trabalhadoras” (Idade Nova, Rio de Janeiro, 28.10.1948, p. 4). A disputa pelo operariado, em oposição aos comunistas, era seu principal objetivo, para o que deveria “prestar às classes trabalhistas todo o apoio de que necessitam para a defesa de suas justas reivindicações, libertando-as da humilhante dependência de falsos líderes ou agentes de forças antinacionais, que, capciosamente, dia a dia, vêm agravando seus problemas” (Boletim do PRP, Porto Alegre, 31.10.1947, p. 3). No entanto, o próprio Secretário Nacional, Nelson Chiurco, admitia, em 1950, que “o partido está atrasadíssimo na sua campanha no setor trabalhista” e que a despeito de ter anunciado a pretensão de “criar um grande movimento trabalhista no PRP”, o partido teria atraído poucos operários, não tendo conseguido constituir uma forte fração sindical (Circular do Secretário Nacional de Arregimentação Trabalhista Nelson Chiurco aos Diretórios Regionais do PRP, 24.2.1950). 83


A Secretaria Nacional de Assistência Social tinha por finalidade “exercer, em todo o território nacional, serviços de assistência, educação e cooperação social, em benefício dos associados do PRP e de toda a população em geral” (SECRETARIA Nacional de Assistência Social, s./d), estimulando “a organização de instituições privadas, de assistência social (ambulatórios, creches, lactários, casas de saúde, maternidades,

asilos,

escolas

de

costura,

arte,

culinárias,

enfermagens,

dispensários, cooperativas, pensionatos, enfim, sociedades de beneficência) que possam pelo menos atenuar os efeitos da miséria que campeia em todas as cidades do Brasil” (Idade Nova, Rio de Janeiro, 30.9.1948, p. 5).1738 A finalidade da Secretaria Nacional de Arregimentação Estudantil seria “arregimentar os estudantes filiados ao PRP, estimulando entre eles o gosto pela pesquisa dos fatos sociais e dos fenômenos econômicos e políticos brasileiros, de sorte a formar-lhes elevado espírito público” (SECRETARIA Nacional de Arregimentação de Estudantes, s./d.) A Secretaria promovia regularmente cursos e palestras relativos a temas políticos e doutrinários e, em julho de 1948, organizou o I Congresso dos Estudantes Populistas, em Campinas, reunindo mais de 700 estudantes (Idade Nova, Rio de Janeiro, 8.7.1948, pp. 1 e 6).1839 A Secretaria de Estudos e Planos Governamentais tinha como objetivo formar quadros partidários para a intervenção no parlamento e nos governos, mas produziu pouca documentação e os estudos e planos por ela supostamente produzidos não vieram a público. Bem mais relevante foi a atuação da Secretaria Nacional de

A utilização do assistencialismo como estratégia de expansão partidária e de qualificação de eleitores, através da manutenção de escolas de alfabetização, bem como a promoção de campanhas de coleta e distribuição de gêneros, é discutida em Calil (2001, pp. 189-191). 17

O Congresso teve a participação, dentre outros, dos deputados estaduais paulistas Oliveira Costa (líder do PSD), Auro Moura Andrade (líder da UDN), Cunha Lima (líder do PTB), Osny Silveira (sublíder da UDN), Cunha Bueno (PSD) e Luis de Mattos (PTB), além dos parlamentares do PRP; e recebeu moções de congratulações unanimemente aprovadas pelas Assembleias Legislativas do Rio de Janeiro e São Paulo. Cf. Ata do Diretório Nacional e do Conselho Nacional, 13.7.1948. Livros de Atas do Diretório Nacional e do Conselho Nacional (APHRC-FPS 021.005.005). Também na Câmara Federal foi apresentado um requerimento de felicitações, com assinaturas de parlamentares do PSD, UDN, PTB, PSP e PR. 18

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Arregimentação Eleitoral, visando “incrementar, organizar e superintender os serviços de qualificação eleitoral e arregimentação política nos setores nacional, estaduais, municipais e distritais” (SECRETARIA Nacional de Arregimentação Eleitoral, s./d.). Já em 1946, o partido seguia um planejamento de cadastro eleitoral, prevendo uma organização secreta e confidencial de alistamento de eleitores, segundo a qual cada militante ficava responsável por acompanhar determinado número de eleitores (Instruções de Arregimentação Eleitoral, confidencial, 27.6.1946). O PRP promoveu ainda um curso de formação de “líderes” e organizou equipes de trabalho, para as quais os militantes eram convocados e inseridos em uma estrutura claramente hierárquica: Cada companheiro deve desde já assumir o cargo de Sub-Monitor, chefe de 5 eleitores. Se o sub-monitor tiver capacidade para ser o Mentor ou Orientador de 10 eleitores, será designado Monitor. Por isso que, 20 Sub-Monitores (cada um com seus 5 eleitores) ou 10 Monitores (cada um com seus 10 eleitores), formarão uma Bandeira, sob a orientação de um Bandeirante (Instruções de Arregimentação Eleitoral, s./d).

Pelas normas estabelecidas, ainda, os monitores eram obrigados a visitar todos os eleitores pelo menos uma vez por semana, devendo ser todos eles novos para o partido, não constando nas listas de simpatizantes. A existência deste planejamento, ainda que não existam meios para investigar sua eficácia, revela o objetivo de impor uma disciplina muito rigorosa sobre os militantes, uma concepção claramente autoritária da política e a perspectiva de exercer um controle absoluto sobre os eleitores. Mais do que isto, é expressão clara da concepção hierárquica e hierática dos integralistas e de sua pretensão em formar militantes adestrados à obediência, bem como dirigentes intermediários preparados para obedecer a seus superiores e se impor perante os militantes de base, inclusive utilizando-se de táticas de cunho militar, como a suspeição permanente, o exercício do controle e a imposição de sua posição hierárquica.

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Outras secretarias nacionais foram posteriormente criadas, dentre as quais a Secretaria Nacional de Arregimentação de Marítimos, formada em 1948, visando “propagar entre os homens do mar a doutrina político-social” (PRP, 1948); e a Secretaria Nacional de Assuntos Pessoais, criada em março de 1959 “para desafogar o Chefe Nacional da verdadeira onda de pedidos os mais variados e relacionados com todas as repartições públicas e até particulares, que de todos os pontos do país lhe chegam diariamente” (A Marcha, Rio de Janeiro, 17.4.1959, p. 4), e com as seguintes finalidades: a) encaminhar às autoridades e personalidades competentes os pedidos de correligionários relativos a nomeações, promoções, transferências, reintegrações, readmissões, comissões e outros; b) promover internamento em hospitais, admissão em asilos e escolas, obtenção de bolsas de estudo, reconduções a estados ou cidades de origem dos solicitantes, exames médicos e medicamentos a indigentes; c) diligenciar no sentido de conseguir empregos no comércio, na indústria, em escritórios profissionais ou na agricultura aos correligionários, ou recomendados por estes, que os pedirem; d) dar assistência jurídica nos casos necessários [...]; e) acompanhar e fazer andar, nos Ministérios, Autarquias e mais Repartições, os papéis daqueles que solicitarem intervenção e auxílio; f) visitar os enfermos e encarcerados [...]; g) representar o Partido e o Chefe em enterros, missas, festas de aniversário, bodas de prata e ouro, banquetes, atos de formatura e cerimônias religiosas, sessões solenes, recepções, inaugurações, conferências e congressos; h) dar audiências para atender a solicitantes e interessados e manter em dia a correspondência com os solicitantes dos Estados; i) articular-se com a Bancada do Partido na Câmara Federal, com o Senador ou Senadores do Partido, com o Vereador ou Vereadores do Distrito Federal e com os presidentes dos Diretórios Regionais (Portaria de Criação da Secretaria Nacional de Assuntos Pessoais, assinada por Plínio Salgado, 28.3.1959).

A criação da Secretaria de Assuntos Pessoais indica que o vetor ideológico não era o único responsável pelo crescimento partidário. O caráter abertamente clientelista do conjunto das atividades previstas como finalidades da Secretaria, bem como a evidente utilização da influência dos postos ocupados pelo partido, diretamente mencionada nos itens (a), (c), (e), (h), e (i) demonstram que o partido 86


pautava seu relacionamento com uma parcela de seus eleitores e potenciais eleitores pela concessão de vantagens e favores, colocando em segundo plano os aspectos doutrinários, ideológicos e políticos. A criação da Secretaria era justificada pelo fato de que Salgado estaria com “594 casos de pedidos de nomeações, transferências, promoções, etc.” (Correspondência de Plínio Salgado a João Plácido de Lima, 26.3.1959. APHRC, 59.03.26/5).1940 A nova secretaria era composta de cinco departamentos: Assuntos Políticos, Colocações, Assistência, Expediente, e Atividades Sociais. De fato, encontramos nas correspondências de Plínio Salgado, anteriores e posteriores à data da criação da secretaria, centenas de correspondências, com pedidos de ajuda, de livros, de dinheiro, de empregos, de internação, de nomeação em cargos públicos, de alteração de resultado de concursos públicos, de internação em hospitais, e muitos outros tipos de pedidos. A grande maioria destes pedidos era repassada por Salgado a parlamentares do partido, militantes que ocupavam cargos executivos ou aos

diretórios

regionais,

solicitando

encaminhamento

favorável. 2041A

vasta

documentação produzida e organizada por Alberto Hoffmann, deputado estadual e federal pelo Rio Grande do Sul entre 1947 e 1982, reunindo mais de 60 mil correspondências trocadas com eleitores, comprova que o acompanhamento dos “assuntos pessoais” foi executado minuciosamente também em âmbito estadual, ao menos no Rio Grande do Sul.2142

Quando da posse do Secretário Nacional de Assuntos Pessoais, este número já teria chegado a 699 pedidos. Cf. Secretaria Nacional de Assuntos Pessoais. A Marcha, Rio de Janeiro, 17.4.1959, p. 4. 19

O fluxo de correspondências solicitando favores cresceu rapidamente a partir de 1950, quando o número de postos parlamentares e cargos executivos do partido cresceu. Em contrapartida, em 1948 um programa radiofônico proclamava: “Não existe em todo Brasil nenhum funcionário público nomeado ou apenas indicado por qualquer deputado ou vereador populista”. Programa Radiofônico, sem data [1948] (CDAIBPRP). O termo populista era utilizado pelos integralistas para referirem-se ao PRP. 20

A documentação foi constituída entre 1950 e 1990, no exercício dos mandatos como deputado estadual e deputado federal, e à frente das Secretárias da Agricultura, Economia e Finanças, e Interior, Desenvolvimento e Obras Públicas; e integra o acervo do CDAIBPRP.

21

87


Mesmo

buscando

sistematicamente

atender

aos

pedidos,

Salgado

manifestava contrariedade e desagrado com os pedidos feitos. Em uma carta, registrou “as aflições de espírito que me causam os companheiros de todo o Brasil reclamando empregos, empréstimos, promoções, transferências, bolsas de estudo, auxílios financeiros, que deixam-me num estado de depressão” (Correspondência de Plínio Salgado a Alexandre [nome incompleto], 15.2.1961. APHRC, 61.02.15/1). Também o deputado perrepista Luis Compagnoni apelava aos partidários que não mais

tomassem

o

tempo

do

“Chefe”

com

assuntos

pessoais,

embora

contraditoriamente registrasse que “a preocupação do PRP e do seu Chefe, neste setor, tem sido absoluta. Tudo e que lhe tem chegado às mãos, nosso Chefe tem encaminhado, mesmo com o sacrifício de suas atividades fundamentais” (COMPAGNONI, Luis apud A Marcha, Rio de Janeiro, 27.4.1956, p. 3) O alegado “estado de depressão” de Salgado com a enxurrada de solicitações parece paradoxal, à primeira vista, pois é inegável que o próprio Salgado estimulava que os pedidos fossem feitos, assumindo uma posição paternal em relação aos militantes integralistas, mantendo e reforçando a relação estabelecida entre um “chefe” e seus chefiados. Mesmo as reclamações de Salgado eram parte da atitude paternal por ele assumida, inferiorizando e desqualificando seus “afilhados”, ao mesmo tempo em que renovava sua fidelidade e subordinação. Outro aspecto que pode ser analisado a partir da estruturação de um serviço sistemático para o atendimento dos pedidos de favorecimentos pessoais é a forma como os integralistas se inseriam na ordem institucional vigente, não hesitando em utilizar-se da influência política para obtenção de vantagens, ao mesmo tempo em que denunciavam os “vícios” da democracia liberal e acusavam os demais partidos por se utilizarem de práticas semelhantes. Um elemento que assumiu grande relevância no conjunto das atividades promovidas pelo PRP foi a mobilização em torno das convenções nacionais. Algumas delas, como a II Convenção Nacional (1946), a XII Convenção Nacional (1955) e o I Conclave Nacional do PRP (1957) foram utilizadas como momentos fundamentais de mobilização partidária e demonstração de força, reunindo alguns milhares de militantes e tendo os discursos de suas principais lideranças irradiados para todo o país. Com a II Convenção, os integralistas buscaram dar repercussão e festejar o 88


retorno de Plínio Salgado ao país; a XII Convenção teve como objeto a homologação da candidatura presidencial de Plínio Salgado à eleição de 1955; e o Conclave de 1957 marcou os 25 anos do integralismo e aprovou o retorno do Sigma como símbolo partidário. De acordo com os estatutos do PRP, a Convenção deveria ser realizada anualmente, constituída pelos membros do Diretório Nacional, do Conselho Nacional, presidentes dos diretórios estaduais, dos territórios e do Distrito Federal e pelos parlamentares do partido no Congresso Nacional (PRP, 1946). Desta forma, em princípio as convenções teriam dimensões reduzidas, com aproximadamente 80 delegados, mas em algumas convenções, os presidentes dos diretórios estaduais eram acompanhados por numerosas delegações. As principais atribuições das convenções eram a eleição do Diretório Nacional e do Conselho Nacional, a reforma dos estatutos, a aprovação da candidatura presidencial, a aprovação de planos financeiros e de campanhas partidárias. A partir de 1956, alegando pretender “dar maior representação democrática às delegações”, a reforma estatutária incluiu os presidentes dos diretórios municipais como delegados nas convenções nacionais, aumentando enormemente o número de possíveis delegados (SALGADO, Plínio apud A Marcha, Rio de Janeiro, 27.4.1956, pp. 3 e 8). Com a centralização em torno do Gabinete da Presidência, havia pouco debate nas convenções, mantendo-se um rigoroso controle por parte do núcleo dirigente. A justificação do esvaziamento das convenções como espaço decisório encontra-se em uma correspondência de Plínio Salgado ao presidente do Diretório Regional do Rio Grande do Sul, Arno Arnt, em 1952, na qual sustentava que as decisões aparentemente políticas eram na realidade técnicas e, portanto, não deveriam ser objeto de deliberação política, devendo as convenções aprovar apenas “lineamentos gerais de problemas, sem aprovar conclusões particulares sobre matéria especializada" (Correspondência de Plínio Salgado ao Presidente do Diretório Regional do Rio Grande do Sul Arno Arnt, em 27.7.1952, CDAIBPRP). Dentre os temas tidos como “técnicos”, Salgado mencionava o debate em torno do estatuto do petróleo, a política cambial e o regime de governo, os quais equivaliam a 1952 objetos de intensa mobilização política no país. A despolitização sob argumentação técnica levou à constituição de um Conselho Nacional de Estudos 89


e Planos (CNEP), composto por 250 membros, nomeados e sob supervisão direta de Plínio Salgado.2243A posição do partido para estas questões passava então a seguir as conclusões das comissões componentes deste Conselho, saindo, portanto, do âmbito das convenções. Desta forma, não é de se estranhar que mesmo nas convenções que reuniram maior público, as principais deliberações já eram antecipadamente conhecidas: a aprovação da candidatura de Plínio Salgado em 1955 se deu por aclamação e o retorno do Sigma como símbolo partidário em 1957 foi antecipado em manchete principal pelo jornal partidário A Marcha 20 dias antes da realização do Conclave Nacional (A Marcha, Rio de Janeiro, 5.7.1957, p. 1), o que evidencia a efetiva transformação das convenções em espaço e momento de demonstração de forças, em detrimento de qualquer debate efetivo. O PRP como partido nacional A investigação sobre a distribuição regional da votação do PRP é importante para definir se é possível caracterizá-lo, no que se refere aos resultados eleitorais alcançados, como partido de âmbito nacional, tendo em vista que é recorrente na bibliografia especializada restringir a qualificação de partido nacional aos três principais partidos, afora o PCB em seu curto período legal. A despeito da exigência da legislação eleitoral de que os partidos fossem nacionais, vários partidos tinham a maior parte de sua votação concentrada em poucos estados ou mesmo em um único estado, como é o caso do PR (Minas Gerais), do PL (Rio Grande do Sul), do PRT e do PTN (São Paulo) e, em certa medida, do PSP (São Paulo). Gláucio Soares considera “discutível” a qualificação do PRP como partido nacional: Inicialmente sua votação provinha basicamente de três estados: Rio Grande do Sul, São Paulo e Minas Gerais, que representavam aproximadamente 58% do total. Mesmo não sendo um partido estadual, visto que dispunha de bases organizacionais extensas, sua base eleitoral era reduzida. Assim, é lícito concluir que,

No início de 1953, o CNEP já reuniria mais de 300 membros em 13 comissões e 72 subcomissões. Cf. O Conselho Nacional de Estudos e Planos do PRP. A Marcha, Rio de Janeiro, 27.2.1953, p. 4. 22

90


organizacionalmente, o período de 1945 a 1964 teve apenas seis partidos efetivamente nacionais — PSD, UDN e PCB — desde o início, e PTB, PSP e PRP, que construíram suas bases organizacionais. Entretanto, eleitoralmente, a qualificação do PSP e do PRP como partidos nacionais é discutível, devido à alta percentagem de seus votos oriunda de poucos estados (SOARES, 2001, p. 60).

Esta avaliação obriga a uma investigação mais detalhada, tendo em vista que a qualificação do PRP como partido nacional é nossa principal hipótese. Um primeiro aspecto a se considerar é a representação que os próprios integrantes faziam do partido. Desde os primeiros anos, o discurso do PRP sempre atribuiu grande importância a seu “caráter nacional”, em clara oposição a perspectivas regionalistas, como evidencia um programa radiofônico de 1948: O Partido de Representação Popular não reconhece os direitos de paulistas, gaúchos, cearenses ou mineiros; ele reconhece apenas os direitos dos brasileiros. O Partido de Representação Popular não reconhece divisas de Estados, a não ser para fins administrativos, mas apenas as divisas do Brasil indivisível, como unidade política, econômica, étnica e geográfica. O Partido de Representação Popular é o único partido nacional, pois não depende de grupos e nem de interesses regionalistas (Programa Radiofônico, 1948, CDAIBPRP).

No que se refere aos dados eleitorais, sua investigação é dificultada pela forma de apresentação dos resultados nos Dados Estatísticos publicados pelo Tribunal Superior Eleitoral (1964), pois, no caso das coligações, não há identificação do partido a que pertence cada candidato, podendo-se identificar apenas o total obtido pela coligação.2344No caso do PRP, a dificuldade é ainda maior, pois em

Esta dificuldade é discutida por vários cientistas políticos, tendo inclusive induzido a equívocos. Por exemplo, o cientista político Olavo Brasil Lima Júnior contestou a tese clássica do declínio da votação dos partidos conservadores, sustentando que também os partidos trabalhistas declinavam e que apenas os pequenos partidos mantinham acelerada tendência ao crescimento, baseado na opção metodológica de atribuir aos pequenos partidos todas as cadeiras na Câmara dos Deputados de 1954 conquistadas por coligações, concluindo que detinham 38,7% das cadeiras, quando na realidade aqueles partidos efetivamente detinham apenas 9,6%. Lima Júnior (1983, p. 99). Esta crítica encontrase em Soares (1984, p. 99). 23

91


algumas situações ele apresentou candidatos na legenda de outros partidos, sem formalizar coligação, mediante acordo partidário.2445 Para minimizar as distorções geradas por estes dois fatores, nosso procedimento metodológico foi o seguinte: (1) trabalhar principalmente com os dados eleitorais para Assembleias Legislativas, tendo em vista que o número de coligações e acordos partidários neste âmbito foi inferior ao da Câmara dos Deputados, em virtude do coeficiente eleitoral ser menor; (2) procurar identificar os candidatos apresentados em coligações e nas legendas de outros partidos, que pertencem ao PRP, mediante pesquisa nos jornais partidários A Marcha e Idade Nova, e documentação partidária, e contabilizar os votos por eles recebidos; (3) incluir os dados da eleição para a Câmara dos Deputados em 1945, na qual não ocorreram coligações e houve acordo partidário em apenas um estado, e os dados da eleição presidencial de 1955, na qual o PRP concorreu em chapa própria, através da candidatura presidencial de Plínio Salgado. Mesmo assim, ainda permanecem algumas pequenas lacunas, relativas às eleições de 1954, 1958 e 1962, em relação às quais não foi possível determinar com exatidão a votação obtida pelo PRP em alguns estados. Apesar destas lacunas, os dados reunidos permitem uma visão geral de sua implantação nacional, reforçando sua qualificação como partido de âmbito nacional. Ao mesmo tempo, os dados eleitorais indicam que, embora tenha permanecido como pequeno partido, o PRP não foi eleitoralmente irrelevante. A votação obtida pelo PRP nos pleitos acima referidos encontra-se na Tabela 1:

A relação estabelecida pelo PRP com os demais partidos nas diferentes conjunturas políticas em que atuou é discutida em Calil (2010) e em Cardoso (1999). 24

92


Tabela 1. Votação recebida pelo PRP por Estado na eleição para Câmara Federal em 1945; nas eleições para Assembleias Legislativas em 1947, 1950 e 1954; na eleição presidencial de 1955; e nas eleições para Assembleias Legislativas em 1958 e 1962.

Eleição

1945

1947

1950

1954

1955

1958

1962

Alagoas

-

770

720

103

5.907

559

1.736

700

649

882

n.d.*

3.648

1.302

2.417

Bahia

13.173

8.381

23.028

22.517

63.136

25.123

32.105

Ceará

3.144

6.753

7.603

2.891

13.408

13.523

28.153

DF / Guanab.

7.712

9.351

16.267

16.138

35.495

23.766

3.078

Espírito Santo

-

6.430

8.523

10.023

29.531

17.640

18.704

Goiás

-

344

3.836

3.413

3.732

918

3.375

Maranhão

-

890

3.950

1.568

2.599

n.d.

n.d.

Mato Grosso

-

596

-

n.d.

1.570

950

n.d.

Minas Gerais

15.094

20.694

35.311

32.963

78.213

34.077

54.452

996

1.589

1.777

725

4.213

n.d.

1.175

Paraíba

-

583

614

n.d.

9.900

4.993

307

Paraná

10.807

8.160

9.818

4.539

103.256

12.322

17.007

Pernambuco

3.979

6.248

10.621

6.836

29.200

10.709

51.606

-

267

n.d.

n.d.

2.395

878

872

8.884

8.269

10.887

4.831

27.683

9.620

10.076

-

1.041

2.984

829

13.888

2.255

n.d.

Rio Gde do Sul

22.197

46.783

53.862

61.218

66.109

71.958

79.071

São Paulo

39.543

25.344

35.937

89.722

159.051

140.247

164.460

Santa. Catarina

8.771

7.230

16.059

9.803

59.162

18.314

27.477

Sergipe

-

-

-

-

1.809

777

n.d.

Territórios

-

-

-

-

474

-

-

Total Brasil**

133.990

160.372

242.679

265.168

714.379

378.979

468.703

Amazonas

Pará

Piauí Rio de Janeiro Rio Gde do Norte

Fonte: Tribunal Superior Eleitoral.2546

Votação não determinada. O PRP participou com candidatos em coligação com outros partidos, ou com candidatos apresentados por meio de outra legenda, mediante acordo partidário, mas não foi possível identificar seus candidatos ou a votação por eles recebida. *

A totalização relativa às eleições de 1954, 1958 e 1962 não inclui os estados cuja votação do PRP não foi possível determinar. Considerando que se trata na quase totalidade dos casos de estados com eleitorado mais reduzido, e nos quais o PRP tinha reduzida inserção eleitoral, é bastante provável que tal votação não chegasse a atingir 10% da votação total do partido naqueles pleitos. **

In: Dados Estatísticos. Brasília, Imprensa Oficial, 1964. 9 volumes; Idade Nova, Rio de Janeiro; A Marcha, Rio de Janeiro. 25

93


A avaliação dos resultados, considerados a partir dos números absolutos, indica um progressivo e constante crescimento dos resultados obtidos nas eleições parlamentares, com um acréscimo de 250% do total de votos recebidos na última eleição parlamentar disputada (1962) em relação à primeira (1945). Os resultados obtidos nas duas últimas eleições parlamentares só não são superiores aos obtidos na eleição presidencial de 1955. A mesma, no entanto, mereceria um estudo à parte, pois claramente trata-se de uma votação que transcendeu os limites da estrutura partidária. Tendo em vista que há igualmente um crescimento progressivo do eleitorado, tornase necessário verificar se a tendência ao crescimento persiste quando se considera o percentual dos votos obtidos em relação ao total de votos válidos. Com este objetivo, a Tabela 2 indica o percentual obtido pelo PRP em relação ao total de votos válidos em cada pleito e a cada estado:

94


Tabela 2. Percentual de votos obtido pelo PRP em relação aos válidos por Estado na eleição para Câmara Federal em 1945; nas eleições para Assembleias Legislativas em 1947, 1950 e 1954; na eleição presidencial de 1955; e nas eleições para Assembleias Legislativas em 1958 e 1962. Eleição

1945

1947

1950

1954

1955

1958

1962

Média*

Alagoas

-

1,4%

0,8%

0,1%

6,0%

0,5%

1,3%

1,4%

Amazonas

3,2%

2,8%

2,0%

n.d.

8,1%

1,7%

2,5%

3,4%

Bahia

3,8%

2,8%

4,0%

3,5%

13,6%

2,9%

4,1%

5,0%

Ceará

1,1%

2,5%

1,5%

0,5%

3,8%

2,4%

4,8%

2,4%

DF / Guanab.

1,6%

2,2%

2,9%

2,4%

5,2%

2,6%

0,3%

2,5%

Espírito Santo

-

7,2%

7,0%

5,9%

18,8%

8%

8,3%

7,9%

Goiás

-

0,4%

2,8%

1,6%

2,4%

0,4%

1%

1,2%

Maranhão

-

1,2%

2,7%

0,8%

1,8%

n.d.

n.d.

1,3%

Mato Grosso

-

1,5%

-

n.d.

1,6%

0,6%

n.d.

0,7%

Minas Gerais

1,5%

2,5%

2,8%

2,3%

6,4%

1,8%

3,1%

2,9%

Pará

0,9%

1,4%

1,0%

0,4%

2,3%

n.d.

0,5%

1,0%

Paraíba

-

0,4%

0,2%

n.d.

4,5%

1,9%

0,1%

1,2%

Paraná

5,8%

6,1%

3,8%

1,1%

24,0%

2,1%

2,3%

6,5%

Pernambuco

1,5%

2,6%

2,8%

1,6%

6,8%

2,0%

9,3%

3,8%

-

0,3%

-

n.d.

1,9%

0,4%

0,4%

0,5%

2,8%

3,1%

2,6%

0,9%

5,9%

1,3%

1,3%

2,6%

-

0,9%

1,8%

0,4%

9,8%

1,2%

n.d.

2,3%

Rio Gde do Sul

3,7%

8,8%

7,8%

7,6%

7,6%

5,9%

6,4%

6,8%

São Paulo

3,0%

2,3%

2,6%

4,9%

8,4%

5,2%

6,3%

4,7%

Santa. Catarina

4,5%

4,1%

2,7%

3,1%

17,5%

3,7%

5,4%

5,9%

-

-

-

-

2,0%

0,7%

n.d.

0,5%

-

-

-

-

2,2%

-

-

0,3%

2,3%

3,4%

3,1%

2,8%

8,3%

3,2%

3,8%

3,8%

Piauí Rio de Janeiro Rio Gde.do Norte

Sergipe Territórios Média Brasil

**

Fonte: Tribunal Superior Eleitoral.262547

O cálculo da média por estado não levou em consideração as eleições cuja votação é não determinada, mas atribuiu 0% para os casos das eleições das quais o PRP não participou. *

A média por pleito, para eleições de 1954, 1958 e 1962, foi calculada em relação ao eleitorado total do país em cada eleição. Considerando-se que há seis casos relativos a 1954, seis casos relativos a 1958 e nove casos relativos a 1962, nos quais não foi possível determinar a votação, os índices aqui calculados para estes pleitos são levemente inferiores ao índice real alcançado pelo partido. Optouse por não deixar de considerar os eleitores destes estados pelo fato de que em sua maioria são estados nos quais o PRP tinha votação abaixo da média nacional, e caso se tomasse este procedimento, o índice apresentado estaria inflacionado. **

In: Dados Estatísticos. Brasília, Imprensa Oficial, 1964. 9 volumes; Idade Nova, Rio de Janeiro; A Marcha, Rio de Janeiro.

26

95


Os dados reunidos permitem algumas interpretações importantes. Percebe-se que a votação do PRP nas eleições parlamentares (portanto, não se considerando a eleição presidencial de 1955), mesmo em termos percentuais, cresceu de forma permanente, ainda que em patamares modestos, partindo dos 2,3% votos obtidos em 1945 e chegando aos 3,8% obtidos em 1962, um crescimento percentual de 65%. Trata-se, sem dúvidas, de uma votação modesta, mas que não pode ser considerada irrelevante, especialmente quando se considera que se trata de um partido ideológico e altamente hierarquizado, que sempre atuava de forma unificada. Os resultados obtidos na eleição presidencial de 1955 representam mais do que o dobro, em termos percentuais, ao obtido em qualquer votação parlamentar, inflacionando a média geral, que chega a 3,8%. Considerando-se apenas as eleições parlamentares, a média geral foi de 3,1%. Em termos de implantação regional, verifica-se que o partido obteve uma média superior a 5% em 4 estados: Espírito Santo (7,9%); Rio Grande do Sul (6,8%); Paraná (6,5%); e Santa Catarina (5,9%) — não por coincidência os estados que reúnem o maior contingente de descendentes de alemães e italianos vivendo em regiões coloniais.2748 Estes índices certamente conferiam uma importância grande ao PRP na vida política regional destes estados, tornando seu apoio decisivo em várias eleições para o governo estadual, o que inclusive permitiu ao PRP eleger o governador de Santa Catarina, em 1954. Em outros três estados, o PRP alcançou uma média entre 3,8% e 5%: Bahia (5,0%); São Paulo (4,7%); e Pernambuco (3,8%) — índice que ainda mantinha o partido como agente político relevante regionalmente. A votação do partido situou-se entre 2,3% e 3,4% nos seguintes estados: Amazonas (3,4%); Minas Gerais (2,9%); Rio de Janeiro (2,6%); Distrito Federal / Guanabara (2,5%); Ceará (2,4%); e Rio Grande do Norte (2,3%); e em outros cinco situou-se entre 1 e 1,4%: Alagoas (1,4%); Maranhão (1,3%); Paraíba (1,2%); Goiás (1,2%); e Pará (1%) — o

O perfil social dos dirigentes, filiados e eleitores do PRP é discutido em Calil (2005, pp. 238-282). Parte expressiva dos eleitores do PRP era constituída de pequenos proprietários rurais de regiões de colonização alemã e italiana, o que também se expressava na composição social dos dirigentes em âmbito municipal. 27

96


que não impediu o partido de ter alguma intervenção política regional nestes estados, embora em condições muito diversas, chegando a eleger prefeitos e vereadores em parte deles e a ter representação parlamentar estadual em alguns. Finalmente, em outros três estados e no conjunto dos territórios federais, o partido obteve resultados bastante inexpressivos: Mato Grosso (0,7%); Piauí (0,5%); Sergipe (0,5%); e Territórios (0,3%); não se constituindo como força política relevante. Também se observa que, junto ao Espírito Santo, foi nos três estados da região Sul que o partido obteve maior sucesso em termos relativos. Em termos absolutos, a relação se inverte em virtude do contingente eleitoral dos maiores colégios eleitorais (São Paulo e Minas Gerais), pertencentes à região Sudeste. A distribuição da votação do partido por região encontra-se na Tabela 3:

Tabela 3. Concentração da votação do PRP por região. Eleição

1945

1947

1950

1954

1955

1958

1962

Média

Sudeste

52,9%

43,7%

44%

58%

46,2%

50,5%

52,8%

49,6

Sul

30,9%

38,8%

32,9%

28,5%

32%

25,4%

26,4%

30,7%

Nordeste

15 %

15,5%

20,4%

12,2%

19,9%

14,6%

23,9%

17,4%

Norte

1,2%

1,4%

1,1%

-

1,1%

0,3%

0,8%

0,7%

-

0,6%

1,6%

1,3%

0,8%

0,2%

-

0,6%

100%

100%

100%

100%

100%

100%

100%

100%

Centro-Oeste Total

Fonte: Construída a partir da Tabela 2.

Novamente se verifica o padrão de distribuição da votação com concentração dos votos nas regiões Sul e Sudeste (chegando a 80% do total), com resultados mais modestos na região Nordeste e baixíssima implantação no Norte e Centro-Oeste. No que se refere às eleições municipais, os dados se encontram dispersos, sendo bastante difícil encontrar dados relativos à votação dos partidos. Apenas no que se refere ao estado do Rio Grande do Sul existem dados sistematizados relativos à votação do PRP, os quais evidenciam a importância das eleições de âmbito municipal para o partido e o elevado número de parlamentares eleitos, conforme mostra a Tabela 4: 97


Tabela 4. Prefeitos, vice-prefeitos e vereadores do PRP eleitos no Rio Grande do Sul. Eleição

1947

1951

1955

1959

1963

Total

Prefeitos eleitos

3

3

5

13

8

32

Vice-Prefeitos eleitos

2

5

9

21

14

51

Municípios com vereadores do PRP

31

28

41

46

52

(87)

Total de Vereadores

57

50

70

69

71

317

Fonte: Centro de Documentação sobre a Ação Integralista Brasileira e o Partido de Representação Popular.2849

Estes dados permitem algumas observações importantes a respeito da implantação regional do partido naquele estado, destacando a gestão de diversas prefeituras, o expressivo número de vereadores eleitos no período e o fato de que em algum momento o PRP chegou a contar com representação parlamentar em grande parte dos municípios gaúchos. Certamente seria temerário generalizar os resultados obtidos em âmbito municipal no Rio Grande do Sul para outros estados. Ainda assim, de acordo com informações divulgadas nos jornais partidários, o PRP elegeu alguns prefeitos e inúmeros vereadores também em outros estados, como Espírito Santo, Paraná, São Paulo, Bahia e Santa Catarina. Em algumas cidades o PRP constituía-se como força majoritária, chegando a eleger a maior parte dos prefeitos e vereadores entre 1947 e 1963, como é o caso dos municípios de Castelo, Colatina, Santa Teresa (ES), Ijuí, Flores da Cunha, Nova Petrópolis e São Lourenço do Sul (RS). O partido ocupou também prefeituras de cidades de porte médio e grande importância regional, como Santo André, Suzano (SP), Novo Hamburgo e Caxias do Sul (RS).2950

In: Relação de prefeitos, vice-prefeitos e vereadores do PRP no Rio Grande do Sul (1947-1965). Porto Alegre: CDAIBPRP, 1997. 28

Em 1964, o PRP também esteve à frente da prefeitura de Salvador, mas não obteve o posto através de eleição. Nelson de Souza foi nomeado interventor pela ditadura, substituindo o prefeito cassado. 29

98


O PRP elegeu, no decorrer de sua existência, um total de 26 deputados federais e 97 deputados estaduais, distribuídos em 15 estados e no Distrito Federal, o que revela que esteve presente no debate político da maior parte do território nacional. A Tabela 5 apresenta de forma detalhada a distribuição desta representação por estado, a cada eleição:

Tabela 5. Deputados federais e estaduais eleitos pelo PRP, por Estado. Bancada de deputados federais Eleição

1945 1950 1954 1958

1962

Total

Bancada de deputados estaduais 1947 1950 1954 1958 1962

Total

Bahia

-

-

1

1

1

3

1

2

2

2

2

9

Ceará

-

-

-

-

-

-

1

-

-

1

3

5

DF / Guanab.

-

-

1

-

-

1

1

1

1

1

-

4

Espírito Santo

-

1

1

1

1

4

2

2

2

2

3

11

Goiás

-

-

-

-

-

-

-

-

1

-

-

1

Mato Grosso

-

-

-

-

-

-

1

-

-

-

-

1

Maranhão

-

-

-

-

-

-

1

-

-

-

-

1

Minas Gerais

-

-

-

-

1

1

1

2

1

1

2

7

Paraná

-

-

-

1

1

2

2

1

1

1

2

7

Pernambuco

-

-

-

-

-

-

1

1

-

1

6

9

Piauí

-

-

1

-

-

1

-

-

-

-

-

-

Rio de Janeiro

-

-

1

-

-

1

1

1

-

-

-

2

Rio Gde do Sul

-

1

2

2

2

7

4

4

4

3

3

18

São Paulo

1

-

1

-

1

3

1

2

3

5

7

18

Santa. Catarina

-

1

1

1

-

3

1

3

1

-

2

6

1

3

9

6

7

26

18

19

16

17

30

97

Total

Fonte: Tribunal Superior Eleitoral.3051

In: Dados Estatísticos. Brasília, Imprensa Oficial, 1964. 9 volumes; Idade Nova, Rio de Janeiro; A Marcha, Rio de Janeiro.

30

99


Estes dados indicam que o PRP elegeu ao menos um parlamentar na maior parte dos estados (71%), cabendo destacar ainda que os estados em que não logrou êxito situam-se nas regiões Norte (Amazonas e Pará) e Nordeste (Alagoas, Paraíba, Rio Grande do Norte, Sergipe) e não se encontravam entre os estados considerados como politicamente mais relevantes. Também se evidencia que 76% dos 123 parlamentares eleitos era proveniente das regiões Sudeste e Sul: respectivamente 50 e 43 parlamentares (41% e 35% do total). Outros 28 parlamentares (22,5%) eram provenientes do Nordeste, em especial Bahia e Pernambuco. Por outro lado, apenas dois parlamentares eram da região Centro-Oeste (1,5%), e nenhum da região Norte. Evidencia-se, assim, uma clara concentração nas regiões Sul e Sudeste, complementada por razoável inserção nos principais estados do Nordeste. Finalmente, cabe avaliar em que medida a ressalva feita por Gláucio Soares impede ou fragiliza a qualificação do PRP como partido nacional. De acordo com ele, a votação do PRP se concentrou basicamente em três estados. É necessário reconhecer que o índice por ele apontado (58% em 1947) como expressivo da parcela de votos partidários obtidos em três estados está correto, mas é possível avaliar este dado em uma perspectiva mais ampla. Para tanto, indicamos a cada processo eleitoral o percentual em relação à votação total do partido que perfaz a votação em três situações: considerando apenas o estado onde o PRP obteve maior número de votos, considerando os três estados primeiros e considerando os cinco primeiros, como se evidencia na Tabela 6:

Tabela 6. Concentração da votação do PRP (percentagem dos votos recebidos no Estado onde recebeu maior votação absoluta; nos três Estados; e nos cinco Estados). Eleição

1945

1947

1950

1954

1955

1958

1962

Média

Estado maior votação

29,5%

29,1%

22,2%

33,8%

22,3%

37%

35%

29,8%

3 Estados maior votação

57,3%

57,9%

51,6%

69,3%

47,7%

65%

63,6%

58,9%

5 Estados maior votação

75,2%

68,9%

67,7%

83,9%

65,7%

77,9%

81,4%

74,4%

Fonte: Construída a partir da Tabela 3.

100


Percebe-se, dessa forma, que para o conjunto do período o PRP obteve em três estados quase 60% de sua votação, o que parece reforçar o argumento de Soares. No entanto, é necessário lembrar que o eleitorado destes mesmos três estados (São Paulo, Minas Gerais e Rio Grande do Sul) representava, em 1947, 49,1% do total de votantes daquela eleição, índice que se manteve relativamente estável até 1962, quando atingia 44,1%. Portanto, embora seja necessário reconhecer que há alguma concentração de votos nestes estados, a distorção existente é bem menor do que parece à primeira vista, e é explicável pelo perfil do partido e pela dificuldade de penetração nos estados economicamente mais atrasados, nos quais a maior parte do eleitorado permanecia controlada pelos PSD e pela UDN através de práticas coronelistas. Igualmente, o crescimento do índice relativo ao estado com maior votação nas eleições de 1958 e 1962 é explicável pelo avanço do PRP em São Paulo, maior colégio eleitoral do país. É certo que o PRP se ressentia de uma estruturação bastante frágil nas regiões Norte e Centro-Oeste e em alguns estados do Nordeste e que a distribuição da votação do PRP não era completamente homogênea no conjunto do país — como de resto a de nenhum outro partido o foi —, mas há diversos elementos que permitem sustentar a qualificação do PRP como partido de âmbito nacional: sua estruturação na totalidade dos estados; a eleição de pelo menos um deputado em 16 estados (incluindo Guanabara, que era Distrito Federal até 1960); e a presença efetiva no debate político nacional e nos principais estados. Considerações finais A discussão aqui apresentada buscou avaliar a trajetória do PRP entre 1945 e 1965, considerando as características e peculiaridades de sua estrutura organizativa e, concomitantemente, os resultados eleitorais obtidos, de forma a avaliar adequadamente sua caracterização como partido nacional. Neste sentido, é importante considerar a articulação entre ambos os aspectos, tendo em vista que um partido com as características do PRP — constituído de forma centralizada e hierárquica e com uma estrutura organizativa que não visava exclusivamente a

101


participação em processos eleitorais — diferencia-se claramente dos principais partidos políticos, como o PSD e a UDN. Enquanto estes partidos eram organizados, a partir de interesses sociais e econômicos dominantes, com vistas ao gerenciamento da máquina estatal, representando diferentes frações da classe dominante no controle do aparelho estatal (executivo e legislativo) e, portanto, contando com uma estrutura interna flexível e essencialmente voltada à ocupação de posições de poder no interior do aparelho de Estado, o PRP desempenhava um papel mediato, assumindo tarefas de médio e longo prazo, como a sistemática propagação do anticomunismo e a permanente afirmação de uma concepção excludente de democracia. Diante disso, acreditamos que não é correto dimensionar a importância da intervenção do PRP tomando por base exclusiva os resultados eleitorais por ele obtidos. Ainda assim, os próprios resultados eleitorais obtidos não podem ser considerados irrelevantes, devendo-se considerar que: (1) a votação recebida pelo PRP era bastante estável, com forte tendência ao crescimento em termos absolutos e moderada elevação em termos percentuais; (2) o partido se fazia presente na quase totalidade dos estados na maior parte dos pleitos; (3) foram eleitos deputados do PRP na maioria das unidades federativas; (4) os resultados eleitorais obtidos em âmbito municipal, ainda que não tenham sido detalhadamente investigados, indicam a presença parlamentar do PRP em grande número de municípios e algumas situações em ele chegou à condição de partido majoritário; (5) nos pleitos estaduais majoritários, o contingente eleitoral que o partido detinha era muitas vezes decisivo em processos eleitorais fortemente polarizados, permitindo que o partido obtivesse importantes compensações para o estabelecimento de alianças e coligações; e (6) a votação nacionalmente recebida pelo PRP não era oriunda de poucos estados — ao contrário, correspondia à expansão de sua estrutura organizativa, possibilitando uma clara inserção nacional do partido. O PRP se constituiu e se manteve durante toda sua trajetória como partido de âmbito nacional com forte teor ideológico, centrado na oposição ao comunismo, na defesa da restrição das margens do exercício democrático, na defesa da propriedade privada e do corporativismo e na disseminação de concepções 102


hierárquicas, elitistas e excludentes. Desempenhou, certamente, papel específico, ainda que muitas vezes complementar e articulado às principais forças políticas conservadoras e autoritárias, como a UDN e o PSD. Consideramos, desta forma, integralmente

justificada

sua

caracterização

como

partido

nacional,

com

personalidade própria e implantação na maior parte do país.

Referências bibliográficas

1. Bibliografia citada a) Fontes PARTIDO de Representação Popular. Programa e Estatutos do Partido de Representação Popular. Rio de Janeiro: Partido de Representação Popular, 1945. ________. Estatutos. Aprovados pela II Convenção Nacional, 1946. Mimeografado. ________. Estatutos. Aprovados pela III Convenção Nacional, 1947. Mimeografado. ________. Regulamento da Secretaria Nacional de Arregimentação de Marítimos. Rio de Janeiro: Vanguarda, 1948. ________. Estatutos. Aprovados pela XIII Convenção Nacional, 1959. Mimeografado. ________. Estatutos. Aprovados pela XVI Convenção Nacional, 1961. Mimeografado. ________. Estatutos. Aprovados pela XIX Convenção Nacional, 1962. Mimeografado. SECRETARIA

Nacional

de

Arregimentação

de

Estudantes.

Organização,

s./d.

Mimeografado. SECRETARIA Nacional de Arregimentação Eleitoral. Organização, s./d. Mimeografado. SECRETARIA Nacional de Assistência Social. Organização, s./d. Mimeografado. SECRETARIA Nacional de Educação Moral, Cívica e Física. Organização, s./d. Mimeografado. TRIBUNAL Superior Eleitoral. Dados Estatísticos (9 volumes). Brasília: Imprensa Oficial, 1964.

103


b) Bibliografia teórica CALIL, Gilberto. O integralismo no pós-guerra: a formação do PRP (1945-1950). Porto Alegre, Edipucrs, 2001. ________. O integralismo no processo político brasileiro: o PRP entre 1945 e 1965 – cães de guarda da ordem burguesa. Tese (Doutorado em História). Universidade Federal Fluminense. Niterói, 2005a. ________. Os integralistas e o golpe militar de 1964. História & Luta de Classes, Rio de Janeiro, n. 1, mai. 2005, pp. 55-76. (2005b). ________. Integralismo e hegemonia burguesa: a intervenção do PRP na política brasileira (1945-1965). Cascavel: Edunioeste, 2010. CARDOSO, Claudira. O integralismo no processo político gaúcho: a máquina partidária do PRP e seus dirigentes (1945-1965). Porto Alegre. Tese (Doutorado em Ciência Política). Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Porto Alegre, 2009. ________. Partido de Representação Popular: política de alianças e participação nos governos estaduais do Rio Grande do Sul de 1958 e 1962. Dissertação (Mestrado em História). PUCRS. Porto Alegre, 1999. CARNEIRO, Márcia Regina. Do Sigma ao Sigma — entre a anta, a águia, o leão e o galo — a construção de memórias integralistas. Tese (Doutorado em História). Universidade Federal Fluminense. Niterói, 2007. CARONE, Edgard. A república liberal (v. 1 — Instituições e classes sociais (1945-1964)). São Paulo: Difel, 1985. CAVALARI, Rosa. Integralismo: ideologia e organização de um partido de massa no Brasil (1932-1937). Bauru: Edusc, 1999. CHASIN, José. O integralismo de Plínio Salgado: forma de regressividade no capitalismo hiper-tardio. 2a edição. São Paulo: Ad Hominen, 1999. CHAUÍ, Marilena. Apontamentos para uma crítica da Ação Integralista Brasileira. In: CHAUÍ, Marilena & FRANCO, Maria Sylvia Carvalho. Ideologia e mobilização popular. Rio de Janeiro: CEDEC / Paz e Terra, pp. 17-149, 1978 DUVERGER, Maurice. Os partidos políticos. Rio de Janeiro: Zahar, 1970.

104


LIMA Júnior, Olavo Brasil de. Os partidos políticos brasileiros: a experiência federal e regional. 1945-1964. Rio de Janeiro: Graal, 1983. SOARES, Gláucio Ary Dillon. A democracia interrompida. Rio de Janeiro: FGV, 2001. ________. Uma resenha e uma resposta. Dados: Revista de Ciências Sociais. Rio de Janeiro, Campus, v. 27, n. 1, 1984. pp. 93-104. TRINDADE, Hélgio. Integralismo: o fascismo brasileiro na década de 30. São Paulo: Difel / Porto Alegre: UFRGS, 1974 VASCONCELOS, Gilberto. A ideologia curupira: análise do discurso integralista. São Paulo: Brasiliense, 1979.

2. Arquivos e fontes consultadas a) Arquivo Público e Histórico de Rio Claro (Rua 8, nº 3300 — Alto de Santana — Rio Claro, SP). Fundo Plínio Salgado: constituído por 150 caixas, reúne a documentação política de Plínio Salgado das décadas de 1920 a 1970. Inclui a documentação do Gabinete da Presidência do Diretório Nacional do PRP (1946-1965); documentos referentes às secretarias nacionais do PRP; manuscritos; originais de entrevistas concedidas por Plínio Salgado; panfletos; folhetos; revistas; livros de atas; listas de presenças; originais de discursos e programas radiofônicos; relatórios do serviço secreto integralista; recortes de jornais; relatórios dos diretórios regionais do PRP; iconografia; abaixo-assinados; balancetes financeiros; e manifestos. Correspondência de Plínio Salgado: abrange toda a correspondência particular e política, enviada e expedida por Plínio Salgado. b) Centro de Documentação sobre a Ação Integralista Brasileira e o Partido de Representação Popular (Rua Coronel Vicente, 520 cj. 2 — Centro — Porto Alegre). Fundos Documentais: deliberações do Diretório Nacional; correspondências do Diretório Nacional ao Diretório Regional; correspondências do Diretório Regional ao Diretório Nacional; correspondências da Secretaria Nacional de Propaganda; documentação da Secretaria do Diretório Regional do PRP-RS; livros de Atas das Convenções do PRP do Rio Grande do Sul; documentação dos processos eleitorais; Estatutos e Regulamentos do PRP; panfletos eleitorais e doutrinários; recortes de jornais; programas radiofônicos; jornais A Marcha; Idade Nova; Reação Brasileira e Boletim do PRP.

105


Modernização conservadora, concentração fundiária e êxodo rural: contradições de uma microrregião no Oeste do Paraná Marcos Alexandre Smaniotto1

Este texto compõe-se de algumas análises que resultaram da pesquisa de doutoramento em História, realizado na Universidade Federal da Grande Dourados (UFGD) e defendido em março de 2016. O objetivo da pesquisa, intitulada A modernização conservadora na microrregião Oeste do Paraná — 1964-1979, foi analisar, por meio do estudo do município de Marechal Cândido Rondon, 2 a formação, organização inicial e reorganização da microrregião Oeste do Paraná, entendidas a partir da modernização conservadora no campo. O recorte geográfico e temporal foi marcado por processos históricos ocorridos durante aqueles anos, do âmbito internacional ao local, dentre os quais destacam-se: a entrada e/ou intensificação do capital internacional na produção agrícola do Brasil, por meio da organização e do fomento à modernização conservadora no campo; a transformação do projeto inicial da Indústria Madeireira Colonizadora Rio Paraná S. A. (Maripá) que se processou nestes anos, promovendo a intensificação na concentração de terra; e as crises na produção agrícola da década de 1970, contribuindo para a especulação imobiliária e para o êxodo rural. Doutor em História pela Universidade Federal da Grande Dourados (UFGD) e professor de História na rede estadual de ensino fundamental e médio do Paraná. E-mail: barraca13@gmail.com. 1

Deste município faziam parte os distritos de Quatro Pontes, Entre Rios do Oeste, Pato Bragado e Mercedes, os quais integravam um único município, Marechal Cândido Rondon, sendo eles desmembrados e emancipados político-administrativamente em 1991. 2

106


A bibliografia que trata de Maripá e da colonização da microrregião Oeste do Paraná é abrangente, passando pelas produções memorialistas, encomendadas pelas prefeituras, bem como pelas famílias dos “pioneiros”,3 que disputam a memória sobre a colonização da microrregião. Existem, ainda, os relatos de jornalistas e as produções acadêmicas, decorrentes de pesquisas científicas. Esse conjunto bibliográfico aponta — por vezes, de forma diversa, e, por outras, complementares — para o entendimento de parte do processo de colonização da microrregião Oeste do Paraná. Neste contexto, buscou-se nos diferentes autores as bases nas quais a região foi fundada, destacando-se as pretensões iniciais para, posteriormente, tratar das transformações ocorridas com a modernização conservadora. Além desta bibliografia, dados da Maripá, como o Relatório de Atividades, Mapas, Ipardes, Rádio Difusora do Paraná, Jornal Rondon Hoje, dentre outros, deram subsídios para formular o texto que segue. Sobre o conceito de modernização conservadora, passou-se pela discussão organizada por Murilo José de Souza Pires e Pedro Ramos.4 No entanto, não se

O “pioneiro” vem entre aspas por significar primeiro e, assim, os imigrantes do Rio Grande do Sul e de Santa Catarina que chegaram à microrregião na década de 1940 não foram os primeiros. Antes deles muitos já haviam habitado a região. Os autóctones, ou indígenas, podem ser considerados os pioneiros. Depois deles, os obrageiros, que exploravam economicamente a microrregião. 3

In: PIRES & Pedro. O termo modernização conservadora: sua origem e utilização no Brasil. Disponível em: <http://www.bnb.gov.br/projwebren/exec/artigoRenPDF.aspx?cd_artigo_ren=1140>. Acesso em: 29.01.2014. Este texto traz uma análise do uso do conceito para entender a modernização conservadora no Japão e na Alemanha, onde, segundo eles, houve uma ruptura com a antiga ordem socioeconômica (feudal) para, posteriormente, contrapor a análise dos brasileiros sobre o tema. Para eles, “O processo de modernização conservadora conduziu, então, estes países para a formação de uma sociedade industrial moderna, mas com uma estrutura política conservadora, fato que as conduziu ao nazi-fascismo” (p. 415). Os autores são doutores pelo Instituto de Economia da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Murilo Pires também é pesquisador do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) — Distrito Federal. Os autores utilizados para a análise da gênese e da utilização foram: AZEVÊDO, Fernando A. As ligas camponesas. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1982; GUIMARÃES, Alberto. P. A crise agrária. 2ª ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1982; ________. O complexo agroindustrial. In: Revista Reforma Agrária, ano 7, n. 6, nov.-dez. 1977; ________. Quatro séculos de latifúndio. 6ª ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1989; LÊNIN, Vladmir I. O desenvolvimento do capitalismo na Rússia. São Paulo: Brasiliense, 1982. ________. O Programa Agrário da Social-Democracia na Primeira Revolução Russa de 1905-1907. Goiânia: Alternativa, 2002. MOORE JÚNIOR, Barrington. As origens sociais da ditadura e da democracia: senhores e camponeses na construção do mundo moderno. São Paulo: Martins Fontes, 1975; POULANTZAS, Nicos. Poder político e classes sociais. 2ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 1986. 4

107


abordará todo o histórico, tampouco os autores que o fizeram, dada a complexidade do tema e a amplitude que demanda esta discussão. Para o texto que segue, compreende-se modernização conservadora assim como José Graziano da Silva,5 em que pese o entendimento que se tratou de uma modificação vinda de “cima para baixo”, ou seja, foi uma transformação na base produtiva agrícola disponibilizada e fomentada pelas grandes empresas, financiada e impulsionada pelo Estado através dos bancos (principalmente o Banco do Brasil), e realizada sem que houvesse uma reestruturação na base fundiária. A microrregião Oeste do Paraná Entende-se que a organização de uma região pode-se dar na desorganização, considerando que a racionalidade para o que é — ou não — organizado parte daqueles que usam o objeto em questão. No entanto, a microrregião que foi pesquisada possuía, a partir da década de 1940, uma organização superestrutural, tendo em vista que toda sua área foi planejada para ser colonizada pela Maripá. Desde as pessoas até a forma de produção já haviam sido preestabelecidas, dado que muito pouco restou das comunidades indígenas que habitavam a microrregião, bem como das obrages6 que exploravam-na economicamente até o início do século XX. Apesar desta organização inicial, vê-se que as pessoas não se adaptam (ou se ajustam) a ela simplesmente pelo fato de estar normatizado, disposto, mas reinterpretam e ressignificam a “organização” inicial da Maripá, desorganizando-a.

Modernização conservadora é um termo debatido por diversos autores, com diversos entendimentos. Segue-se com José Graziano da Silva, especificamente em seu livro A modernização dolorosa, quando indicou que a modernização foi dolorosa porque foi conservadora, em virtude de ela mudar o volume da produção agrícola sem mudar as estruturas agrárias, o que gerou a “dolorosa” exclusão social e concentração de poder. In: SILVA, José Grazino da. A modernização dolorosa. Rio de Janeiro: Zahar, 1982. 5

Como era denominada a exploração da erva-mate e da madeira em grandes extensões de terra por parte dos argentinos — e em menor quantidade por ingleses —, com mão de obra sob o regime de trabalho compulsório dos indígenas paraguaios, chamados de mensus, termo que designava o trabalhador rural. 6

108


O território onde hoje se localiza a microrregião Oeste do Paraná era então explorado pela […] obrage denominada Fazenda Britânia teve origem em 1905, quando o coronel do Exército Brasileiro, Jorge Schimmelpfeng, adquiriu 250 mil hectares de terras devolutas, na qualidade de “testa de ferro” da companhia inglesa The Alto Paraná Development Company Ltda., com sede em Buenos Aires (GRONDIN, 2007, p. 56).

Em virtude de diversos fatores econômicos, mas com destaque à Primeira e Segunda Guerras Mundiais, que levaram à diminuição da importação de madeira, a Fazenda Britânia foi posta à venda, sendo adquirida, em 1946, por um grupo de investidores gaúchos. Ruy C. Wachowicz afirmou que: Alguns dos principais acionistas da Maripá, entre os quais Alberto Dalcanale, Willy Barth, Alfredo P. Ruaro, os irmãos Egon Bercht e Kurt Bercht, Leonardo Julio Perna, já eram velhos conhecidos e sócios, da colonização realizada no Oeste de Santa Catarina. […] os principais adquirentes da Fazenda Britânia, filhos ou netos de imigrantes localizados no Rio Grande do Sul, já eram capitalistas, negociantes e velhos conhecidos, inclusive no serviço de colonização (WACHOWICZ, 1982, p. 66).

Estes empresários estiveram à frente da negociação de compra da Fazenda Britânia. O processo de colonização da região extremo Oeste do Paraná está ligado com a vontade de fazer render o capital já acumulado pelos empresários gaúchos na colonização do Oeste de Santa Catarina. Não se tratava de um empreendimento novo, mas de uma continuidade nos negócios de um grupo já experiente na especulação imobiliária de terra (pois haviam colonizado uma área do Oeste de Santa Catarina), com amizade e afinidade nos negócios de histórica relação. O líder do grupo de empresários era Willy Barth, que se destacou pela sua capacidade de administrar a área explorada de forma a dar corpo a uma nova região — atendendo, assim, aos seus interesses político-econômicos, com sua colocação na esfera política da região e com a venda de terras, madeiras, etc. Também, como 109


“intelectual orgânico”, viu-se que ele detinha grande capacidade para organizar a região, visando seu “nascimento” e “crescimento” dentro dos marcos do capitalismo, criando o projeto de “colonização”, selecionando os mais “aptos”, determinando o que seria cultivado, a distribuição dos credos religiosos, a industrialização, e, principalmente, cooptando e dirigindo os interesses gerais da grande maioria da população para andar em consonância com os seus.7 Assim, Willy Barth, que era protestante, empresário, político e detentor de muito capital, foi atuando política e economicamente para permanecer como líder político8 e “amigo dos pobres”, justificando sua “amizade” em prol do bom desenvolvimento dos seus empreendimentos capitalistas.9 Havia a possibilidade de que os empresários gaúchos que comprassem a Fazenda Britânia a dividissem em latifúndios e a vendessem, de maneira rápida e com bons lucros, em forma de fazendas, mas, possivelmente, os lucros seriam bem maiores se loteassem a área e vendessem pequenas porções de terra. Em relação às medidas, falava-se em Perímetro Rural, que seria a junção de várias colônias (lotes rurais). Uma colônia media aproximadamente 250 mil metros quadrados ou dez alqueires (110 x 220 – 24.200 metros – ou 25 hectares).10 A “espinha de peixe” sugeria uma metáfora, ou seja, a espinha seria o rio, córrego ou sanga, que tinha como forma de suas espinhas as colônias de terra ligadas ao rio.

SCHMIDT, Róbi J. Cenas da constituição de um mito político: memórias de Willy Barth. Cascavel: Edunioeste, 2001. É necessário atentar para o fato de que alguns dos acionistas estabeleceram-se na região, como Willy Barth, e isso indica outro rumo, se comparado a algumas colonizadoras do Mato Grosso, cujos acionistas não viviam no lugar, apenas queriam ganhar com a comercialização dos lotes. Isso significa o interesse em outras instâncias, como a política, e outras formas de acumulação de capital, como a industrialização, mesmo que com predomínio de pequenas propriedades.

7

8

Willy Barth era filiado ao PTB e, sob sua influência, todos os prefeitos da região à época, também.

Muitas pesquisas mostram, através de entrevistas realizadas com contemporâneos de Barth, a proximidade que ele tinha com os colonos, atuando diretamente com eles, resolvendo conflitos e participando de festas, e, assim, conquistando a confiança dos mesmos para continuar seu projeto político-econômico na região. Cf. SCHMIDT, 2001; SCHMIDT, Róbi J. A política na “época de Barth”: um aspecto mitificador. In: LOPEZ, Marco A. Espaços da memória — fronteiras. Cascavel: Edunioeste, 2000. Também cf. URNAU, Iraci Maria W. Autoritarismo, rádio e a ideia de Nação (1985-1992) (Dissertação de Mestrado em História). Niterói: Universidade Federal Fluminense, 2003. 9

Esta é a medida de um lote de terras, popularmente chamado na região de “colônia de terra”, e foi o padrão de venda da Maripá, como ver-se-á em quadros mais adiante no texto. 10

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Seria mais lucrativo vender esta grande área em pequenas partes e com algumas especificidades. Conforme os dados do Relatório das atividades da Maripá,11 as seguintes diretrizes sintetizam a proposta inicial da colonizadora: A) ELEMENTO HUMANO: a fim de ter êxito no empreendimento, povoar densamente a Fazenda Britânia, com agricultores que mais se adaptarem à região; B) PEQUENA PROPRIEDADE: proporcionar a todo agricultor que vier residir na “Fazenda Britânia” a faculdade de se tornar proprietário, livre e independente das terras por ele cultivadas para si e sua família. Estas terras divididas em glebas de 10 alqueires ou 25 hectares trariam para a região maior quantidade de gente; C) POLICULTURA: garantir o perfeito equilíbrio econômico da região, dirigindo a produção agrícola, sempre que possível, no sentido da policultura; D) ESCOAMENTO DA PRODUÇÃO: na medida em que as terras forem vendidas e cultivadas, auxiliar os agricultores na colocação de seus produtos nos grandes mercados consumidores; E) INDUSTRIALIZAÇÃO: para industrializar a região na proporção do desenvolvimento do Brasil, evitando que o ritmo normal da produção agrícola dependa de determinadas indústrias mantidas no litoral e evitando o desperdício de tempo e despesas de transporte e outros prejuízos com longas viagens12 (NEIDERAUER, 1955, p. 3).

O destaque desta citação está na forma em que se planejava estruturar a área a ser colonizada, com “elemento humano” que se adaptasse a esta região (“italianos” e “alemães”), a pequena propriedade e a policultura, dado que a infraestrutura para o escoamento da produção e a industrialização somente foram possíveis décadas depois.

NEIDERAUER, Hondy. Relatório de atividades da Maripá. Toledo: Museu Histórico Willy Barth, 1955. (mimeo). Este relatório está disponível no Museu Histórico Willy Barth, de Toledo, no Paraná. Trata-se de um material bastante rico em informações sobre as atividades iniciais da empresa. 11

Tem-se a necessidade de chamar a atenção para o fato de que a produção de relatórios pela Maripá tinha duas funções bastante específicas: a) metas e prestação de contas; b) propaganda para a venda de mais lotes. Estes relatórios expressavam não somente o plano de ação da empresa, mas divulgavam o número de casas comerciais e industriais (principalmente ligados com a madeira), hospitais, escolas, etc.

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Um dos primeiros processos da Maripá foi selecionar o “elemento humano” que pudesse participar da colonização do Oeste do Paraná. Percebe-se que a Maripá tinha a intenção de trazer pessoas para uma região, dando a ideia de que no Oeste do Paraná havia um vazio demográfico que poderia ser preenchido com trabalhadores de um “tipo ideal” específico: ascendentes de alemães e italianos. Assim, a escolha por estes clientes se deu através de um rigoroso processo de triagem étnico-cultural.13 Os mais “aptos” ao projeto da Maripá foram escolhidos seguindo os critérios adotados pelos donos da empresa. Estas pessoas eram os colonos gaúchos e catarinenses, em sua grande maioria, descendentes de imigrantes alemães e de italianos. Estes já estavam acostumados às práticas de cultivo na região Sul (trigo, milho, mandioca, arroz, entre outras e, ainda, com a criação de animais, como galinhas, gado e, principalmente, suínos). De acordo com Ruy C. Wachowicz: Da colonização das terras da antiga Fazenda Britânia, foram excluídos três tipos de elementos humanos: 1. o colono, também descendente de europeus, que avançava em direção ao Oeste pela linha Sul paranaense. Em sua grande parte, era formado de descendentes de imigrantes poloneses e ucranianos; 2. o caboclo paranaense, filho tradicional dos sertões brasileiros, que também encontrava-se na região em número nada desprezível; 3. o pelo duro, nortista,14 que representava a frente cafeeira, que estava ocupando todo o norte do Paraná (1982, p. 74). A venda de terras era realizada diretamente pelos corretores da Maripá. O anúncio de terras se dava principalmente através de panfletos afixados em locais estratégicos, como bares/mercearias (chamados de “boliche” ou “bodega”) e/ou outros locais de grande aglomeração de pessoas (como igrejas, por exemplo) nos municípios em que se pretendia vender as terras. Os municípios mais visados na propaganda da Maripá eram os do Rio Grande do Sul: Porto Alegre, Ijuí, Santo Ângelo, Cruz Alta e Concórdia. 13

No Rio Grande do Sul, pelo duro significava gado sem raça e sem grande valor. Já a expressão “nortista” foi usada para diferenciar grupos sociais malquistos pela Maripá, em virtude da sua origem étnica e social. A triagem era feita assim: o “sulista” correspondia aos gaúchos e catarinenses que eram bem-vindos à microrregião, ao passo que os “nortistas” (e paraguaios) não foram de todo excluídos, pois trabalhavam como mão de obra para serviços pesados, bem como realizavam atividades que os “sulistas” não queriam ou não dispunham de mão de obra suficiente. Cf. LAVERDI, Robson. Tempos diversos, vidas entrelaçadas – trajetórias itinerantes de trabalhadores no ExtremoOeste do Paraná. Curitiba: Aos Quatro Ventos, 2005. 14

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Assim, grupos étnicos (ou “elementos humanos”) foram excluídos do processo de colonização feito pela Maripá. Eram bem-vindas pessoas supostamente aptas e já adaptadas ao modelo colonizatório da empresa. Uma pesquisa de Keith Derald Muller (1986, pp. 83-139)15 apresenta mais um indicativo desta seleção, quando informou que “A Maripá selecionou, primeiramente, colonizadores de Santa Catarina e Rio Grande do Sul, que eram da segunda, terceira geração de descendentes de alemães e italianos. A seleção foi um elemento importante nesta colonização pioneira” (idem, p. 92). Também foi utilizado o discurso do atraso nos métodos de produção, pois, segundo Wachowicz (1982, p. 175): “O pelo duro nortista foi afastado da colonização, porque não entendia do tipo de agricultura praticada pelo sulista”. Enfim, a colonização praticada pela Maripá priorizou os ascendentes de italianos e de alemães, preferencial e majoritariamente catarinenses e gaúchos. No sentido de não criar alarde e atrair os “elementos humanos” indesejáveis à região, a Maripá não fazia muita publicidade da colonização. Conforme observa Keith Derald Muller (1986, p. 92): “Não foi usada publicidade para atrair os colonos, e os aventureiros e especuladores de terras foram evitados. Mais precisamente, a Companhia recrutou os fazendeiros mais eminentes”.16 Sobre os aspectos culturais que formavam o colono que comprou terra da Maripá e estabeleceu-se na microrregião Oeste no período anterior à modernização conservadora, pode-se dizer que ele tinha uma relação mais holística com a natureza. Segundo Valdir Gregory: Os colonos, tradicionalmente, tinham uma relação de respeito e de reverência para com a natureza. Usavam a queimada dentro do sistema de rotação de terras, afetando a fertilidade do solo, mas procuravam preservar parcela da colônia com vegetação nativa,

Este estudo se caracteriza por ter sido realizado com dados eminentemente empíricos, ou melhor, este pesquisador esteve na microrregião, buscando e produzindo dados in loco, naquele período. A pesquisa tende a ver os “alemães” como os “portadores natos da modernidade”. 15

A propaganda era feita por corretores de imóveis que mantinham contato diretamente com os colonos no Rio Grande do Sul e em Santa Catarina, ou via panfletos distribuídos no intuito de atrair justamente colonos gaúchos e catarinenses.

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evitando cultivá-la toda. Esta relação de reverência para com a natureza tinha uma conotação religiosa, uma vez que a vida rural cultivava uma relação da criatura com o criador, estabelecia gestos de admiração para com a obra divina, a natureza. Lançar a semente, acompanhar o desenvolvimento da planta, celebrar as chuvas e o sol nas medidas adequadas atribuíam à natureza o papel de contribuir na produção da subsistência e do excedente. A falta da chuva, a chuva em demasia, a fúria dos ventos e das águas sinalizavam respostas da natureza para com os homens. Chuvas, secas, tempestades, plantação, criação eram assuntos de preces e de orações nos cultos e nas missas (GREGORY, 2002, pp. 111-112).

Religião, natureza, trabalho familiar alicerçado no modelo patriarcal de família, pequena propriedade, policultura, dentre outras características, formavam os delineamentos iniciais da organização da microrregião Oeste, para um grupo majoritário de colonos. Diante das informações formais de Valdir Gregory e informais sobre a relação do colono com a terra, percebe-se uma proximidade: a terra é valorizada além da mera produção para acumulação capitalista, distinguindo-se o colono/camponês do “empresário do campo”. Acima de sua condição de classe, trata-se, em linhas gerais, de uma representação identitária que tem na natureza elementos constituintes da sua própria identidade. As árvores, os rios, os peixes, os animais (de criação e silvestres), as plantas (medicinais, ornamentais ou de comércio), as estações do ano, dentre outros, são partes integrantes desta cultura, diferentemente do empresário, que vê na produção/produtividade da terra a possibilidade de gerar mais lucro, desmatando, envenenando e promovendo qualquer ação que possa ser revertida em mais lucratividade para a área produtiva. Estes dois grupos foram problematizados, mas aqui interessa perceber que os sujeitos sociais “pioneiros” da colonização do extremo Oeste são abordados de maneira distinta: os colonos e trabalhadores sem propriedade, de um lado, e os “empresários do campo”, os administradores e os profissionais liberais, de outro. São, em suma, dois grupos que, por vezes, são entendidos — por parte da historiografia sobre a microrregião — de maneira homogênea, como se todos tivessem as mesmas condições, ideias e ideais.

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Modernização conservadora, concentração fundiária contradições de uma microrregião do Oeste do Paraná

e

êxodo

rural:

Considerando o planejado para a colonização do Oeste do Paraná pela Maripá, bem como a preferência pela venda de pequenas e médias propriedades agrícolas, não havia em Marechal Cândido Rondon um grande contingente de colonos que pudessem ser enquadrados como capitalistas do campo, ou como grandes produtores para o mercado monocultor (soja, trigo, milho). Pode-se dizer que existia uma fração de produtores familiares já integrados no mercado capitalista de produção — do ponto de vista da mercantilização do excedente desta — que, mesmo sem muitas condições de competir no mercado de grãos em nível nacional e internacional, estavam em vias de “modernizar-se”, ainda no final da década de 1960. Conforme o Ipardes, o Oeste do Paraná já era, no início da década de 1970, a região com maior porcentagem de propriedades utilizando-se da produção mecanizada (8,5%) (GREGORY, 2002, p. 215). Vanessa Fleischfresser desenvolveu um estudo importante para entender a agricultura no Paraná em sua fase modernizante (essencialmente a década de 1970). Conforme a pesquisa: Nos anos 70, as alterações na base produtiva da agricultura foram de tal forma expressivas que mudaram radicalmente o movimento que marcou a trajetória da população rural nas três décadas anteriores. Entre 1940 e 1970, a população rural cresceu a altas taxas, apresentando um saldo migratório positivo de aproximadamente 2.800 habitantes. Em apenas uma década, 1970-80, o saldo migratório foi negativo em cerca de 2.600 pessoas. Esse movimento, que eclodiu na década de 70, já se encontrava em estado latente na segunda metade do quinquênio dos anos 60, devido à erradicação dos cafezais. Só que nesse período, a população excedente dos cafezais localizados no Norte do Paraná se deslocava às ainda existentes “fronteiras agrícolas” no Estado. Entretanto, nos anos 70, quando gradativamente se esgotava a fronteira agrícola, concomitante ao processo de intensificação no uso da moderna tecnologia (caracteristicamente poupadora de mão de obra) e à substituição de culturas, agora não mais somente o café, mas também alimentares por soja e pecuária, verifica-se uma notável evasão da população residente no meio rural (FLEISCHFRESSER, 1988, p. 21).

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Nota-se, portanto, que a modernização da agricultura atuava como seleção dos aptos a modernizarem-se, apesar da abundância de crédito que foi disponibilizado para a compra dos meios de produção “modernos”. Nesta perspectiva, conforme Valdir Gregory, na microrregião Oeste do Paraná: Houve, através de diversos mecanismos de atuação, o incremento de uma camada de médios produtores tecnificados, sendo que os que possuíam entre 20 a 50 hectares foram os que melhores condições tinham de se ajustarem às mudanças, ao passo que os de menos de 20 hectares tinham limitações econômicas para suportarem os requisitos da tecnificação. Em contrapartida, 63% dos novos estabelecimentos criados entre 1970-80 estavam entre os de 50 a 200 hectares (GREGORY, 2002, p. 215).

No entanto, houve uma grande diminuição nas pequenas propriedades e uma padronização daquelas que conseguiam atender aos requisitos da “modernização”, ou seja, aquelas com renda compatível para a compra do “pacote tecnológico” e, consequentemente, com renda para o pagamento dos empréstimos oriundos desta empreitada. Especificamente em Marechal Cândido Rondon a situação das propriedades rurais estava dividida conforme o Quadro 1.17 O Quadro 1 demonstra que o número total de propriedades privadas (estabelecimentos) foi diminuindo na proporção de 4,85% entre os censos dos anos de 1970 e 1980 (de 6.630 para 6.308), ao passo que a área total destas propriedades, neste mesmo período, aumentou em 10,14% (104.646 para 115.262), o que indica concentração de terra. É necessário considerar que estes dados podem parecer tímidos, mas é a concentração de uma área de 10.616 hectares, ou 106.160.000 metros quadrados. Em aproximadamente 20 anos de cobertura dos censos agropecuários, forma-se a média de 530,8 hectares de área concentrada por ano. No sentido de reforçar este processo, pode-se apontar que a propriedade individual decaiu 7,40%, (de 6.497 para 6.016), indicando a existência de concentração de terras em Marechal Cândido Rondon no período analisado. In: Censo Agropecuário (v. 1, tomo 18, 1ª e 2ª partes). Fundação Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE. Rio de Janeiro: IBGE, 1979.

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Fonte: Dados compilados pelo autor a partir dos Censos AgropecuĂĄrios realizados em 1970, 1975 e 1980.

Quadro 1. Propriedade das terras em Marechal Cândido Rondon.


Uma indicação de Guiomar Inez Germani, com depoimento de um colono, mostra o processo por quem o viveu (tanto pesquisador quanto depoente) naquele momento histórico. Conforme Guiomar: Se, num primeiro momento, a ocupação da região se deu no sentido de um fracionamento da terra em pequenas propriedades, a tal ponto que uma das características da estrutura fundiária da região é a predominância de pequenas propriedades, com a introdução da lavoura da soja e do trigo e com o ingresso da modernização, está havendo também uma mudança na estrutura fundiária, no sentido de provocar uma tendência à concentração de terras e um consequente processo de emigração. Os depoimentos colhidos na região dão mostra disso: Quem tem 3 alqueires não tem futuro, vende para o latifundiário; Quem tem 4 colônias,18 tem ¾ das colônias mecanizadas, se ele tem boa safra de soja, tem condições de comprar as terras do vizinho e este vai embora […]. Depois que entrou a mecanização, as máquinas vieram para fazer as destocas, para organizar as lavouras, daí o pessoal foi embora, praticamente sumiram19 (GERMANI, 2003, p. 26 — grifos no original).

Seguindo com a reflexão indicada por Guiomar Inez Germani, a condição dos proprietários de terras na microrregião ajuda a compreender a situação de terras na região.

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Uma colônia, na região, equivale a 10 alqueires.

Esta geógrafa pesquisou e escreveu esta dissertação (hoje livro) em meio aos acontecimentos e, por isso, suas citações são de quando a Itaipu ainda estava em fase de construção; ademais, ela utiliza o tempo verbal indicando processos que ainda estavam acontecendo. A dissertação, intitulada Os expropriados de Itaipu, foi defendida em 1982, na UFRGS. 19

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Fonte: Dados compilados pelo autor a partir dos Censos Agropecuários realizados em 1970, 1975 e 1980.

Quadro 2. Condição dos trabalhadores do campo em relação às terras em Marechal Cândido Rondon.


O Quadro 220 revela que somente o número de estabelecimentos e de área que apresentaram crescimento foi o dos proprietários, indicando concentração de terra. A condição dos trabalhadores arrendatários, parceiros e ocupantes, diminuiu entre os censos de 1960 e 1980, período marcado pela inserção da modernização conservadora. Isso indica a expulsão do campo de trabalhadores que foram sendo substituídos pelas máquinas, como será visto mais adiante no texto. Esses dados indicam que a propriedade privada agrícola, em termos de tamanho, não cresceu significativamente, mas deixou de destinar área para outros grupos, de forma temporária e apenas para produção (não titularidade), porque a titularidade continuava sob o grupo de particulares. Este processo está diretamente relacionado com a inserção da modernização conservadora no campo, dada a possibilidade de uma família, com a utilização dos recursos tecnológicos trazidos pela modernização (trator, colheitadeira, implementos agrícolas, herbicidas, fungicidas, sementes modificadas, etc.), poder cultivar a mesma área ou uma área maior sem a necessidade de contratação de outros trabalhadores. Conforme Roberto I. Besnosik et al., em Modernização e diferenciação social na agricultura brasileira: um estudo do Extremo-Oeste do Paraná, a […] concentração e modernização da produção foram responsáveis pela expropriação de um número significativo de produtores nãoproprietários, revelando que, no caso estudado, o desenvolvimento capitalista aplicou-se seletivamente, definindo um segmento social a ser marginalizado. Isto, contudo, não significa que o desenvolvimento capitalista por que passou a região Extremo-Oeste tenha suprimido a unidade familiar como elemento básico da organização da produção. Pelo contrário, com o processo de modernização consolida-se o papel da propriedade familiar na base da estrutura produtiva da região (BESNOSIK et al., 1981, p. 37).

Neste sentido, o segmento social a ser marginalizado foi o dos trabalhadores do campo sem a propriedade da terra. Na microrregião Oeste do Paraná, no período da colonização (do início do processo, na década de 1950, até o início da década

In: Censo Agropecuário (v. 1, tomo 18, 1ª e 2ª partes). Fundação Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE. Rio de Janeiro: IBGE, 1979. 20

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de 1970), os trabalhadores do campo sem propriedade trabalhavam por meio de um regime de trabalho de parceria ou arrendamento, mas, conforme os autores, também existia outra denominação que não entrava nos censos, mas que era utilizada pelos colonos para designar aqueles que não tinham a propriedade da terra: eram os “agregados”. Segundo o estudo Modernização e diferenciação social na agricultura brasileira: um estudo do Extremo-Oeste do Paraná: Há referência frequente, menos na bibliografia e mais nas entrevistas realizadas na região, há contingentes de famílias sem-terra que se dirigem, durante todo o período de colonização, para a região de fronteira. Pode-se identificar pelo menos dois fluxos de migrantes que não dispõem da propriedade formal da terra, o primeiro vindo do sul, e o segundo vindo do norte. Junto com os colonos, ou imediatamente após o assentamento destes, chegam à região famílias das zonas de expulsão do Rio Grande do Sul e Santa Catarina que, provavelmente por não disporem da propriedade nos locais de origem ou de algum tipo de fundo prévio de acumulação, não adquiram lotes da Fazenda Britânia. Muitas vezes estes trabalhadores são da mesma família dos colonos (frequentemente filhos e cunhados, segundo entrevistas), ou então conhecidos, vizinhos ou agregados nas zonas de origem. [...] Um segundo fluxo migratório de agregados e trabalhadores sem-terra vem do norte, e parece ter sido particularmente importante durante os anos 60. Neste período, o norte do Paraná estava passando por importantes transformações nos seus sistemas de produção, com a modernização das lavouras de café e a multiplicação das áreas da pecuária e de agricultura mecanizada. Este processo libera e expulsa mão de obra, que vai procurar se estabelecer na nova zona de fronteira do Oeste do Estado. [...] A chegada do nortista ao ExtremoOeste se dá em condições bastante diversas daquela encontrada pelos que vem do Sul, beneficiados como vimos pelo estilo de colonização e já “socializados” de certa maneira. O agregado que vem do Norte tem que enfrentar uma situação mais difícil, muitas vezes agravada por elementos de preconceito sociocultural praticado ainda hoje contra os colonos que não descendem de alemães e italianos21 (idem, pp. 12-13 — grifos no original ).

“Um exemplo desta discriminação é o nome dados pelos colonos já estabelecidos ao aglomerado urbano que se formou na periferia de Toledo: ‘Vila Brasil’, a favela dos brasileiros, dos nãoproprietários. Mesmo entre as elites do município o fator ‘étnico’ é utilizado para justificar as diferenças de desempenho entre os colonos e os nortistas, estes últimos considerados ‘acomodados e pouco empreendedores’” (idem, p. 13). Em Marechal Cândido Rondon, um processo análogo aconteceu,

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No arrendamento, o proprietário da área dava uma parte da produção ao trabalhador em troca do plantio de sua terra, com porcentagem previamente acordada, independentemente da quantidade produzida ou, em caso de frustração de safra, tolerâncias eram realizadas por meio de acordo em contrato. No caso dos agregados, a força de trabalho deles era trocada por parte da produção ou por um pagamento (em produto e/ou em dinheiro, mas que era normalmente feito por parte da produção, evitando, assim, o dispêndio de dinheiro do colono e auxiliando na consolidação da sua área). Os “agregados” partilhavam dos riscos de frustrações na produção e dependiam do quanto trabalhavam para receber. Ambas eram formas de trabalho permanentes e importantes no campo durante os anos iniciais da colonização, isso porque se deve considerar que — antes da modernização, com a introdução especialmente de máquinas agrícolas — exigia-se muita mão de obra para toda a atividade agrícola, desde o desmatamento e preparação da terra até a colheita, não somente nas áreas grandes, mas também na unidade padrão da Maripá (equivalente a 24 hectares, por exemplo).22

mas o preconceito e o racismo eram mais latentes, tendo o bairro com as mesmas características a denominação de “Planeta dos Macacos”, que era o “Bairro da Cooperativa”. Este processo foi estudado, dentre outros pesquisadores, por LAVERDI, Robson. Tempos diversos, vidas entrelaçadas — trajetórias itinerantes de trabalhadores no Extremo-Oeste do Paraná. Curitiba: Aos Quatro Ventos, 2005. Como exemplo das condições de vida dos não-proprietários que eram moradores do “Bairro da Cooperativa”, os aqui também denominados de “nortistas”, indicar-se-á uma reportagem do jornal Rondon Hoje, intitulada “A miséria também existe em Rondon”: “João trabalha no Serviço Autônomo de Pavimentação (Sapam), onde consegue um salário de Cr$ 1.200 para sustentar 11 filhos e sua esposa. ‘Antes eu trabalhava de boia-fria na cidade de Santa Rita d’Oeste, município de Terra Roxa. Agora já fazem sete meses que vim para Marechal Cândido Rondon’, afirmou João Antônio. Mas seu relato não termina por aí: ‘Eu cheguei até vender jornal. A vida é fogo, compadre, mas vai se fazer o quê? Agora, a Sapam prometeu me aumentar o salário, e isso vai ser muito bom. Vamos aguardar, né, compadre’”. Jornal Rondon Hoje. Marechal Cândido Rondon, 14-21 nov. 1978. Conforme os dados do estudo Modernização e diferenciação social na agricultura brasileira: um estudo do Extremo-Oeste do Paraná, além dos “agregados”, entendidos como trabalhadores do campo sem a propriedade da terra, mas que nela exerciam alguma atividade, também existiam outros sem-terra, os paraguaios e os “caboclos”. Ambos transitavam pela região antes da colonização da Maripá. A eles era destinado preferencialmente o trabalho manual mais pesado, de derrubada da mata, por exemplo (Cf. BESNOSIK et al., 1981, pp.19-21). 22

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No entanto, a modernização conservadora na agricultura diminuiu a importância e a utilização do trabalho dos “agregados”, como visto nas tabelas anteriores, demonstrando que foram expulsos do campo. Para os colonos proprietários de terras, Ao contrário do trabalho temporário, o trabalho permanente parece não ter grande relevância para as unidades de produção familiar. Um caso de trabalho permanente do qual se teve informação é o associado à criação de suínos, tendo sido mencionado que quando o número de matrizes excede a um certo limite é comum a contratação de um trabalhador para tomar conta do plantel, efetuando-se a remuneração parte em dinheiro parte em porcentagem sobre a produção. Este trabalhador recebe na região a denominação de agregado, embora tudo indique que ele nada tem a ver com a categoria social característica das primeiras duas décadas da colonização, assemelhando-se muito mais a um trabalhador assalariado permanente (BESNOSIK et al., 1981, pp. 44-45).

Estes trabalhadores, oriundos do campo e expulsos dele devido à falta de propriedade e à inserção da modernização na agricultura (sendo muitos expulsos de outras áreas rurais, já vivendo nas cidades) eram empregados, sazonalmente, nos períodos de pico na produção do campo, conforme se verá mais adiante no texto. Sobre o tema é interessante ainda perceber que, Mesmo quando estão empregados em ocupações urbanas, estes trabalhadores são mobilizados periodicamente para o trabalho sazonal na agricultura. Além disso, os próprios produtoresproprietários costumam assalariar-se temporariamente nas colônias dos vizinhos, o que é encarado no mais das vezes como uma modalidade de ajuda. Esta prática, agora remunerada em dinheiro, parece ser uma atualização da antiga prática da troca de dias, frequente nas regiões de origem dos colonos e mesmo na região de atração, nos primeiros anos da colonização. Neste caso, em que o trabalho temporário do vizinho complementa as necessidades sazonais da força de trabalho da unidade familiar, o assalariamento não define, portanto, uma relação de produção de tipo capitalista. […] Da mesma forma que boa parte dos que se assalariam não o fazem como proletários, boa parte dos que empregam trabalho assalariado não o fazem como capitalistas. Não se trata de empregar capital variável para produzir mais-valia (e apropriação de lucro

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médio sobre o capital investido), mas de garantir a reprodução interna da unidade através da utilização de recursos externos disponíveis e necessários, no caso a força de trabalho de outros pequenos produtores familiares ou volantes da região. É importante reter aqui o caráter complementar do trabalho fora da família, que continua sendo responsável pela maior parte da força de trabalho dispendida no processo produtivo. E não se trata apenas de uma questão formal; a própria dinâmica de funcionamento e expansão da unidade familiar tem que levar em conta a limitação representada pela disponibilidade interna de força de trabalho, que só pode ser contornada à custa de gastos monetários relativamente elevados (em abril de 1981 a remuneração por dia de trabalho — a diária — girava em torno e Cr$ 400,00)23 (BESNOSIK et al., 1981, pp. 40-41).

Em maio de 1981, o salário-mínimo era de Cr$ 8.464,80. A soma de 26 dias de trabalho de um “boia-fria” equivaleria a Cr$ 10.400, um pouco mais que um salário-mínimo para a época, caso ele conseguisse se empregar nos 26 dias do mês, descansando somente aos domingos. Os gastos com o emprego de mão de obra assalariada podem ser considerados elevados dependendo do “porte” do produtor (se era um colono ou “empresário do campo”), de sua capacidade de endividamento na produção, da capitalização, dentre outros. Portanto, o gasto “elevado” era relativo, dependendo de quem estava tendo que usar esta mão de obra. Para os trabalhadores, evidentemente, esta remuneração era rebaixada, considerando que o salário-mínimo tinha como base a alimentação diária necessária à sobrevivência, bem como não considerava outros gastos com qualidade de vida, medicamentos, etc. Além disso, eles estavam submetidos, dentre outras questões trabalhistas, à informalidade e à ausência de legislação específica para os “temporários” do campo. De outra parte, também é complexo entender as relações sociais de produção capitalista no campo fora do capitalismo. Mesmo sendo uma relação até então diferenciada na venda de mão de obra, em que um proprietário dos meios de produção vende a sua própria força de trabalho para outro proprietário, e vice-versa, isso não implica entender esta relação destoada do “tipo de produção capitalista”.

Os dados sobre os valores dos salários-mínimos estão disponíveis em: <http://www.gazetadeitauna.com.br/valores_do_salario_minimo_desde_.htm>. Acesso em: 9.8.2015. 23

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É, sem dúvida, uma prática inserida e identificada com aspectos do capitalismo, mas também com mediações (como a troca de jornadas, os mutirões e outros elementos que fogem à dimensão exclusiva do capital). São práticas capitalistas, mas configuradas em uma lógica que combina outros elementos, dentre os quais a sociabilidade construída entre iguais, mesmo diante de remuneração. Essa prática pode ser entendida como realizada para manter o capital entre os “vizinhos” — excluindo, desta forma, o trabalhador sazonal (futuro “boia-fria”) do trabalho no campo. Pode, ainda, ser encarada não só como uma forma de ajuda mútua entre vizinhos, mas também como uma forma de opressão ao antigo trabalhador do campo que, devido à modernização, já havia sido empurrado para a cidade e agora perde, mais uma vez, o local de trabalho (antes para a máquina, agora para o proprietário proletarizado sazonalmente). Além disso, por meio de algumas informações e dados levantados em relatório, pode-se entender a preferência dos colonos para o não emprego de força de trabalho assalariada nos picos de produção: Apesar de, para a maioria dos produtores da região pesquisada, o trabalho familiar ser predominante com relação ao trabalho externo, o perfil de utilização de mão de obra da família situa-se já distante do modelo clássico da exploração familiar camponesa, caracterizada pela utilização intensiva da força de trabalho marginal no seio da unidade produtiva (esposa, pai, mãe, filhos). Algumas características clássicas, ao contrário, não se alteraram, como é o caso da distribuição interna da renda que continua se dando de forma nãoproporcional ao aporte de cada membro da família. Não há remuneração direta em dinheiro pelo trabalho de membros da família; os excedentes são reunidos sob o controle do chefe da unidade e distribuídos para os filhos que casam, ou então aplicados como investimento nas próprias explorações (BESNOSIK et al., 1981, p. 44 — grifos meus).

Assim sendo, não havia necessidade de pagamento em dinheiro, assalariamento, aos membros da família. Não se gastava pelo trabalho extra necessário nas temporadas que exigiam mais força de trabalho, dado que este dinheiro ficava com o “chefe” da família. Era mais uma forma de manter uma fonte de 125


renda na própria família do colono. Para entender este processo um pouco melhor, pode-se indicar Paul Singer, quando analisou sobre a renda no Brasil. Para ele: A ciência econômica apresenta várias e conflitantes teorias sobre a repartição funcional da renda, ou seja, da repartição da renda entre “capital”, “trabalho” e “terra” ou, mais precisamente, entre as rendas do capital (lucros, juros), do trabalho (salários) e da terra (aluguéis, renda da terra). Mas, da renda pessoal disponível uma grande parte das rendas do capital já estão excluídas. Além disso, do rendimento de cada indivíduo pode haver várias espécies de rendas misturadas. Por exemplo, nos ganhos de um diretor de empresa há rendas de trabalho e de capital; nas de um agricultor que é proprietário das terras que cultiva, há elementos de lucro, juros, salário e renda da terra. Portanto, as teorias da repartição da renda não podem ser aplicadas diretamente para entender como esta tem evoluído no Brasil (SINGER, 1981, p. 12).

Como indicado por Paul Singer, é difícil entender o todo da composição da renda do conjunto de uma organização social específica, devido à complexidade das fontes e da imiscuidade delas (capital, trabalho e terra — associados ao poder patriarcal, concentrado na figura do pai sobre os demais membros da família, invisibilizados como trabalhadores, entre outras características). Singer estava preocupado em compreender o processo de concentração de renda no Brasil até a década de 1970. Criticava a visão oficial de que a centralização da renda estava ligada ao atraso do “capital humano” — sobretudo a educação; este peso recaía também sobre os colonos “desatualizados”. Estes, na visão oficial, segundo Singer, eram utilizados como bode expiatório para justificar o desvio da renda para os mais “sábios” e “modernizados”, ao passo que os mais “ignorantes” (do campo e da cidade) eram os responsáveis pelo atraso econômico que eles mesmos provocavam com suas “escolhas produtivas tradicionais”. Especificamente em Marechal Cândido Rondon, o desenvolvimento do capitalismo no campo levou à modificação na estrutura da mão de obra, na proletarização de uma parcela dos colonos. Mas este processo não foi tão linear, homogêneo e totalmente finalizado, ou seja, as transformações, iniciadas com a modernização conservadora, tiveram acelerações e retrações, fases amenas e 126


agudas de expropriação e expulsão do colono e do trabalhador do campo ou mesmo de proletarização sazonal dos colonos, como indicado abaixo: O fato de que o trabalho familiar mantém sua importância em comparação com o trabalho de não-membros da família reflete com bastante clareza o caráter do desenvolvimento da região estudada. O surgimento e a generalização do uso da máquina e dos insumos modernos potencializaram o trabalho da família, permitindo que uma mesma quantidade de força de trabalho disponível seja capaz de dar conta de uma quantidade maior de terra. Esta combinação de especialização produtiva em uma ou duas lavouras e mecanização do processo de trabalho, contudo, alterou significativamente os ciclos produtivos da unidade familiar. Os períodos de trabalho concentramse em dois “picos” durante o ano, que geralmente incidem com as etapas das capinas, não mecanizáveis.24 Nestes momentos, dificilmente as reservas de trabalho da própria família dão conta das necessidades impostas à lavoura. Este fenômeno explica o aumento da importância do trabalho assalariado temporário […] paralelamente ao predomínio do trabalho familiar. A importância reduzida da mão de obra permanente nas propriedades revela que a produção estritamente capitalista, embora em expansão, assume papel secundário na região pesquisada (BESNOSIK, et al. 1981, pp. 39-40 — grifos meus).

É interessante perceber que a microrregião em estudo passou por um processo de modificação nas relações de trabalho. Houve uma diminuição no número de dias que o emprego de grande quantidade de mão de obra na lavoura era necessário. A máquina, os insumos e os instrumentos voltados para a produção no campo moldaram relações sociais diversas das que existiam antes da introdução deste “pacote”. No entanto, destaca-se que, para os autores da pesquisa, a “produção estritamente capitalista” mede-se pela perenidade da mão de obra nas lavouras e pelo suposto assalariamento dos trabalhadores. Se há pouca utilização

“A capina pode ser feita através do uso de herbicidas químicos, cujo uso é muito frequente no cultivo do trigo. Neste caso, a aplicação é em geral feita pelos próprios membros da família. Como a aplicação, contudo, exige a utilização de maquinário e implementos específicos, é comum a contratação de serviços de terceiros, como ocorre também no plantio e na colheita. Para a maioria das lavouras mais importantes da região (milho e soja), a capina ainda é majoritariamente manual”.

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de trabalhadores através da contratação por salário (diário, quinzenal, mensal, por safra, etc.), não há produção estritamente capitalista. Esta visão foi criticada por Paul Singer, pois reduz o entendimento e a importância da introdução da mecanização conservadora no campo e seus efeitos aos colonos na década de 1970, objeto do estudo. Conforme Paul Singer, a renda no sistema capitalista tem diferentes origens; ademais, no campo não ocorre o mesmo processo de expropriação de mão de obra verificado nas cidades, fábricas, indústrias e em outros locais onde o lucro do capitalista é extraído do trabalhador na produção de mercadorias. No campo, a relação de expropriação é outra, ocorre por meio de extração de sobretrabalho (salário), mas também por meio do lucro da venda do produto, de juros e especulação, da renda da terra, da parceria, do arrendamento, etc. No entanto, a crítica aqui se relaciona com o entendimento de que a ausência de mão de obra permanente no campo corresponderia a uma produção diferente da “essencialmente capitalista”. O uso estritamente da mão de obra familiar — na maioria dos meses do ano — não caracteriza a produção mecanizada, inserida no processo de produção monocultor “moderno”, como algo diferente do capitalismo. Trata-se do entendimento do processo dialético e materialista, em que o “novo” não supera completamente o “velho”, ou seja, o modo de produção capitalista absorve formas e relações de trabalho que não fazem parte dele em si próprio como sistema socioeconômico, se isto for maximizar os lucros do capitalista. Neste sentido, o uso da mão de obra familiar no trabalho no campo não significa que se vive no feudalismo, nem que o trabalho escravo tenha acabado.25 Valdir Gregory indicou que

Um exemplo é esta chamada de notícia de 8 de agosto de 2015, relacionada com um município localizado a 50 quilômetros de Marechal Cândido Rondon: “Polícia resgata paraguaios trabalhando como escravos em Fazenda de Guaíra. Disponível em: <http://www.mcrfoco.com.br/noticias/16328Acesso policia_resgata_paraguaios_trabalhando_como_escravos_em_fazenda_de_guaira.html>. em: 8.8.2015. 25

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A modernização da agricultura, no Oeste do Paraná, e seu processo seletivo provocou uma tendência geral de concentração da propriedade e de concentração de produção. As atividades relacionadas com a produção tiveram o aporte da mecanização, sendo que o tamanho ótimo da exploração familiar aumentou. Isto quer dizer que as áreas modernizadas sofreram modificações nas formas de realização das tarefas produtivas, interferindo na estrutura ocupacional, no uso de tecnologia e na capacidade produtiva. […] Houve significativa redução do número de produtores nãoproprietários e uma consolidação da unidade familiar enquanto elemento da organização da produção […]. O uso do maquinário e de insumos modernos potencializaram o trabalho familiar, possibilitando à unidade familiar o cultivo de lavouras mais amplas. No entanto, ocorreram alterações nos “ciclos produtivos da unidade familiar”, concentrando os períodos de trabalho durante o ano na colheita, no plantio, na capina. Esta alteração se deveu a vários fatores. Na medida em que as áreas de cultivo eram aumentadas e as inovações tecnológicas iam sendo adotadas, os cultivos se especializavam e se abandonava muitos cultivos de subsistência e cultivos comerciais de menor importância. A adoção de sementes selecionadas exigia períodos mais curtos de plantio (inclusive os financiamentos bancários eram condicionados a estes períodos de plantio). O uso de maquinário reduzia significativamente o tempo gasto em preparo do solo, plantio e colheita. As atividades fora dos períodos de trabalho dedicados diretamente ao estabelecimento, por outro lado, como já foi mostrado, permitiam ao colono realizar tarefas ligadas às suas atividades produtivas tais como negociações com os bancos, com as cooperativas, participação em cursos (GREGORY, 2002. pp. 226-227).

Assim sendo, o volume da produção não estava mais ligado com a capacidade produtiva da unidade familiar, mas essencialmente com a quantidade e qualidade das tecnologias utilizadas, bem como com a possibilidade de empregar sazonalmente mão de obra assalariada. Desta forma, em pouco tempo o colono deixou de ser colono para ser “empresário do campo”, membro ativo do mercado regional, estadual, nacional e internacional, adquirindo uma nova visão de si mesmo sobre sua importância no processo produtivo no campo, sobre sua identificação de classe.

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Em suma, pode-se perceber que a média propriedade agrícola (25 a 50 hectares) foi importante no processo de modificação da base técnica na agricultura na microrregião Oeste do Paraná, dado que estas áreas davam possibilidade à ampliação/intensificação das práticas capitalistas de produção no campo por meio da modernização conservadora. No entanto, somente os médios e grandes proprietários de terra poderiam inserir-se no contexto tecnológico da modernização conservadora com certa segurança. Uma forma de perceber a inserção da modernização conservadora em Marechal Cândido Rondon também pode ser feita através da investigação dos números relacionados com a residência dos proprietários das áreas rurais, conforme demonstra o Quadro 3:

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Fonte: Dados compilados pelo autor a partir dos Censos Agropecuários realizados em 1970, 1975 e 1980.

Quadro 3. Forma de administração e residência do produtor.


Nota-se que houve uma redução de 14% no número de estabelecimentos onde havia a presença do proprietário, de 5.596, em 1970, para 4.810, em 1980; ou seja, 786 estabelecimentos comprados por vizinhos ou por agentes urbanos que especulavam a terra. Também se percebe que em 1980 1.459 “produtores” estabeleceram-se fora de suas propriedades,26 indicando tanto que houve êxodo rural por parte dos não proprietários, expulsos do campo, como também que os colonos e/ou empresários do campo estavam direcionando-se para a cidade. Conforme os dados do IBGE,27 pode-se entender que a compra da área pelo vizinho permitiu que fossem anexadas áreas. Dessa forma, o proprietário das terras continuou no campo, mas com área maior. Aquele que vendeu e saiu deixou de ser colono e, por isso, não pode ser computado como quem tem terra e passou a viver na cidade, porque, nos dados do IBGE, mudou de categoria. A transformação mais acentuada está entre os anos de 1975 e 1980 e, neste sentido, restaria saber se o percentual dessa migração está pela venda ou pela escolha em residir no meio urbano, mesmo que dependendo da renda do campo. Esta possibilidade interpretativa existe, mas não se conseguirá resposta para ela, pelo fato de não haver estes dados. Não há como indicar se a saída do campo foi maior em virtude em virtude expulsão ou do arrendamento da terra e moradia na cidade. Reforça-se que existem ambas as possibilidades. Assim, também há a possibilidade de se interpretar a saída do campo como fez Afrânio Garcia Junior, no livro O Sul: o caminho do roçado”,28 analisando que houve uma mudança de concepção em relação à terra em si, passando de terra de trabalho, na qual se vive, para a noção de terra de negócio, do quanto de riqueza pode-se extrair dela. Estes dados podem ser interpretados como uma das formas (mas não a única) pelas quais a modernização conservadora criou as condições para que os colonos

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A divisão entre zona urbana e zona rural só consta no censo de 1980.

In: Censo Agropecuário (v. 1, tomo 18, 1ª e 2ª partes). Fundação Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE. Rio de Janeiro: IBGE, 1979. 27

GARCIA JUNIOR. Afrânio. O Sul: caminho do roçado. Estratégias de reprodução camponesa e transformação social. Brasília: Editora Marco Zero e Editora UNB, 1990.

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e/ou “empresários do campo” adentrassem no mundo da “pequena política”. 29 Noutros termos, eles passaram a participar mais do convívio com o meio urbano — pela necessidade de manterem contato com bancos, cooperativas, sindicatos, etc., e, ao mesmo tempo, estarem cientes do que acontecia no mercado agrícola em âmbito nacional e internacional — e a entender que as políticas de fomento à agricultura, ao crédito, às facilidades e a outras “vantagens” são adquiridas por meio da política. Neste sentido, Ao que tudo indica ocorre, particularmente junto aos estabelecimentos médios que elevarem substancialmente a sua propriedade durante o processo de modernização, a ampliação dos períodos de ociosidade da força de trabalho familiar. Esta é, na verdade, a outra face dos “picos” de demanda de força de trabalho em determinados momentos do ciclo de produção. Este aumento do tempo “livre” da família resolveu-se, segundo a pesquisa realizada, de diversas maneiras. Antes de mais nada parece ter se efetivado uma alteração nos horários de trabalho (como levantar mais tarde, por exemplo) e um aumento no tempo de lazer — para que o equipamento urbano de lazer, como o cinema, o futebol e a lanchonete, tem se expandido na sede do município. Igualmente parece ter sido reduzida a importância do trabalho feminino nos serviços agrícolas (exceto nos “picos” de trabalho), ao mesmo tempo em que eleva-se o nível de escolarização dos filhos dos produtores — na medida em que as tarefas agrícolas deixam de concorrer com a escola na organização do trabalho familiar. Os jovens ficam mais “urbanos”, mesmo quando continuam morando na zona rural, porque passam boa parte do dia na cidade estudando e, eventualmente, trabalhando. Esta alteração, possibilitada pela mecanização dos processos produtivos na agricultura, tem consequências importantíssimas no que diz respeito à assimilação de novos hábitos culturais e de novas mentalidades, principalmente por parte dos filhos dos agricultores (BESNOSIK et al., 1981, p. 45).

Antonio Gramsci faz diferenciação entre pequena e grande política. De maneira geral, a “grande política” compreende as questões ligadas à fundação de novos Estados, à luta pela destruição, pela defesa, pela conservação de determinadas estruturas orgânicas econômico-sociais. A “pequena política” compreende as questões parciais e cotidianas que se apresentam no interior de uma estrutura já estabelecida em decorrência de lutas pela predominância entre as diversas frações de uma mesma política (política do dia a dia, política parlamentar, de corredor, de intrigas). GRAMSCI, Antonio. Cadernos do cárcere. 3ª ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007. v. 3. pp. 21-22. 29

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Mais descanso, mais diversão, mais estudo e menos trabalho para as mulheres — tais modificações, na perspectiva do estudo Modernização e diferenciação social na agricultura brasileira, resultaram da “modernização” da agricultura na década de 1970, na microrregião Oeste do Paraná. Certamente foram transformações que moldaram o âmago do ser colono, não somente no âmbito econômico, mas também cultural e político. Pode-se elencar aqui mais uma diferenciação entre colono e “empresário do campo”. Vale ressaltar que aquelas transformações supostamente benéficas no campo e a proximidade com a cidade e tudo o que ela poderia oferecer não equivaleram a um “direito” que a modernização levou a todos que dela participaram. É evidente que nem todos poderiam usufruir das características apontadas no relatório da Fundação Getúlio Vargas. A modernização conservadora ocorre também porque conserva as estruturas de poder, de dominação, de expropriação e de dominação no campo. Para acessar aqueles benefícios, o colono deveria ultrapassar a limitação territorial que o segurava entre os pequenos e exceder o terreno dos médios e grandes. O colono, detentor de uma pequena propriedade (até 12 hectares, ou meia colônia), dificilmente poderia usufruir plenamente daquelas vantagens. No sentido de apontar para a organização de classe dos “antigos” colonos, pode-se citar o Jornal Rondon Comunicação, quando, em uma de suas matérias, divulga que houve “Boa participação no curso para empresários rurais”: [...] o curso para empresários rurais em Marechal Cândido Rondon, nos dias 09 e 10 de maio, teve êxito total. A participação e o interesse demonstrado por parte dos agricultores vêm mais uma vez coincidir com os objetivos que o técnico espera o que são de um agricultor esclarecido, e ciente da necessidade de sua organização para representar a classe. [...] Precisamos de um agricultor organizado em todos os sentidos, sua união de classe, na administração de sua propriedade e na adoção das técnicas agropecuárias modernas, procurando diminuir os custos provocados por uma produtividade maior. Mas, voltando ao assunto o Escritório local da Acarpa de Marechal Cândido Rondon espera que os agricultores continuem assim, com vontade de vencer e com isso prestando sua grande parcela de colaboração ao desenvolvimento social, técnico e econômico, para o município (JORNAL RONDON COMUNICAÇÃO, 25.05.1974 — grifos meus).

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A utilização do termo “empresários rurais” destoa da antiga autodenominação de colono ou agricultor. Aqueles que se apropriavam dos referenciais e das exigências do mercado já não eram mais colonos ou agricultores, mas empresários rurais, voltados para o mercado externo de commodities, produzindo com base no mais alto nível de complexidade técnica, administrando “empresas rurais”. Chama a atenção o indicativo da necessidade de “esclarecimento” do colono que deveria representar-se enquanto “classe”. Este curso, mesmo sem mencionar os temas tratados, é, sem dúvida, um indicativo da organização dos colonos, mediada pelo Estado, em torno de grupos, associações, sindicatos e/ou outras formas de representação. O teor do “curso para empresários rurais” pode ser deduzido de outra reportagem do Jornal Rondon Comunicação, o que revela a concepção daquilo que era importante naquele momento histórico para a fração capitalizada da agricultura. Segundo o Jornal Rondon Comunicação, A associação de Crédito e Assistência Rural do Paraná — Acarpa tem sua ação orientada pela política governamental de desenvolvimento do meio rural, sendo entidade executora de um programa evolutivo em extensão rural, por delegação do Ministério e da Secretaria da Agricultura. O trabalho de Extensão realizado na região em 1974, teve como objetivo, no campo econômico: [...] melhor administração dos fatores de produção, eleva o Valor Bruto da Produção (VBP), a maximização dos lucros, através da minimização dos custos de produção e ou obtenção de maiores receitas totais. A introdução na agropecuária de práticas modernas para aumentar a produção e produtividade: — Maior qualificação e utilização da mão de obra. — Maior e melhor emprego do fator capital por unidade produtiva. — Atuação no mercado dos produtos agropecuários visando a melhor comercialização da produção através da ação cooperativista. — Gerar excedentes de produtos agropecuários com possibilidade de exportação dentro do programa “Corredores de Exportação” (JORNAL RONDON COMUNICAÇÃO, 08.02.1975 — grifos meus).

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Este conjunto de medidas, começando pela maximização dos lucros por meio da minimização dos custos da produção, é importante para perceber o aprofundamento qualitativo no entendimento dos preceitos da modernização conservadora junto aos “empresários do campo”. Esta ideologia da racionalização e da acumulação capitalista vai de encontro às antigas formas de produzir do colono, pois exige, por exemplo, “maior qualificação da mão de obra” (possivelmente conhecimento das novas tecnologias e das novas técnicas agrícolas). Excluía-se desta qualificação os trabalhadores “diaristas” (como a Rádio Difusora os chamava), ou boias-frias, bastante presentes naquele período ou, ainda, os “agregados”, meeiros, arrendatários e outros sem a propriedade privada da terra adequada e “modernizada”. Tratava-se, essencialmente, de qualificar a mão de obra familiar dos colonos e, em menor medida, a mão de obra presente na área urbana (oriunda do êxodo rural provocado pela própria modernização conservadora, por exemplo) por meio de cursos voltados para a área.30 Entende-se que este clima de modernização gera o contraste com a crise econômica dos anos posteriores, como se verá. Um dos objetivos da Acarpa era proporcionar aos “empresários rurais” a educação necessária para a ampliação do investimento de capital no campo, bem como de sua gerência na “unidade produtiva”. Isso era necessário, por um lado, ao governo, para manter e/ou aumentar a produção agrícola, mantendo as exportações e, por outro, para que o “empresário do campo” aplicasse corretamente este capital, não o desperdiçando ou agindo em desconformidade com a lógica capitalista de acumulação. Em suma, buscava-se o equilíbrio de interesses entre o governo (capita/exportação), bancos (capital) e “empresários do campo” (produção/capital). Ensinar os “empresários do campo” a aplicar, administrar e aumentar o capital era necessário para o crescimento econômico e a manutenção deles no campo, procurando sempre o aumento da taxa de lucro.

Cursos de tratoristas, bem como de mecânica diesel e outros relacionados com o trabalho no campo, direta ou indiretamente, por exemplo, eram oferecidos no Cemep.

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No que se refere à “melhor comercialização da produção através da ação cooperativista”, pode-se indicar outra reportagem que demonstra uma das práticas das empresas cerealistas de Marechal Cândido Rondon na busca de maximizar os lucros. Conforme o Jornal Rondon Comunicação, O colono que se cuide. Tem comprador de soja que vem com conversa mole de segurar o produto até o fim de junho e depois pagar o preço do dia, mas isso não passa de conversa fiada. Quando chega a hora de libertar o “tutu” eles descontam armazenagem, pesagem, secagem, frete, sutagem, despesas com pessoas e juros pelo adiantamento para a colheita. No fim quase não sobra nada para o inocente produtor. Se continuar o estado de coisas vamos começar a declinar os nomes de alguns cerealistas deste naipe (JORNAL RONDON COMUNICAÇÃO, 29.06.1974).

Assim, proprietários de empresas agrícolas — não mencionadas — agiam para aumentar a taxa de lucros e esta prática deveria ser entendida e combatida pelo “empresário do campo”. Ainda, mencionou-se o cooperativismo — este tema será tratado em item específico, dada a importância que se acredita ter para a formação do mercado agrícola e da racionalidade/ideologia burguesa de Marechal Cândido Rondon. Enfim, gerar excedentes de produtos agropecuários com possibilidade de exportação, maximizando os lucros — tanto de bancos como o de “empresários do campo” — foi um discurso amplamente divulgado naquele período.

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Golpe de Estado e luta de classes no Paraguai recente: a deposição de Fernando Lugo (2012) Marcos Vinicius Ribeiro1

Introdução O objetivo deste artigo é tecer algumas reflexões sobre o Golpe de Estado ocorrido no Paraguai em 22 de junho de 2012, quando colorados e liberais, com a ajuda da direita entreguista aliada ao agronegócio e aos setores conservadores do Paraguai, depuseram Fernando Lugo da presidência do país, num episódio que ficou marcado como um “Golpe Parlamentar” (MARTÍNEZ-ESCOBAR & SÁNCHESGÓMES, 2015). Tratava-se do desfecho de um longo processo de desgaste do presidente e da ruptura com a experiência histórica que demarcou o fim da alternância bipartidária do poder no país.2 O texto persegue a hipótese de que o Estado capitalista, tal qual proposto por Nicos Poulantzas, impede certa ruptura institucional que possa acarretar ônus ao domínio burguês. A ossatura material do Estado, segundo o autor, produz certa dinâmica própria que confere ao poder burguês sua reprodução em face do contexto de dominação das classes subalternizadas. A autonomia relativa do Estado, outro conceito do autor, é o mecanismo que marca o exercício de dominação burguesa e garante, na atualidade, o desmonte de experiências populares, mesmo que, em

Professor efetivo do curso de História da Universidade Estadual de Goiás (UEG), Campus de Quirinópolis, e doutorando do Programa de Pós-Graduação em História da Unioeste. 1

Dinâmica marcada pela disputa entre colorados e liberais que remete ao exercício do poder político no Paraguai durante todo o século XX. 2

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alguns casos, em aparência, certa dinâmica de luta dos movimentos sociais ofereçam pequena margem de participação à classe subalterna no Estado.3 Tendo por base essas premissas, o texto reconstrói a trajetória política institucional paraguaia no século XX, principalmente após o golpe do general Alfredo Stroessner Matiauda, que ficou na presidência do país por 35 anos e morreu no exílio brasileiro em 2006. A historicidade do processo a partir daí se faz necessária para propor uma leitura que demonstre o controle do poder estatal pelo Partido Colorado, principal base de apoio do stronismo e protagonista do Golpe de Estado de 2012. 4 Recupera-se a base social que permitiu o golpe e problematiza-se a possibilidade real de estabilidade institucional de um governo direcionado aos interesses dos grupos subalternos no Paraguai, pois foi sob essa bandeira que Lugo foi eleito, sem, contudo, esquecer que a experiência luguista não apresentou grandes perspectivas de ruptura, apesar da empolgante vitória sobre o coloradismo, garantida numa aliança eleitoral com os liberais. Na prática, o transformismo do projeto inicial do presidente corroborou a perda da base inicial do projeto e isolou o presidente até o golpe. As dinâmicas da política paraguaia no período recente: Do stronismo ao golpe de 2012 O impeachment de Fernando Lugo no Paraguai, em 2012, certamente foi um golpe de Estado. Fernando Lugo, presidente paraguaio constitucionalmente eleito no país em 2008, foi destituído da presidência do país no dia 22 de junho de 2012, meses antes da eleição presidencial que acabaria, de qualquer maneira, com o seu governo. Uma onda de movimentos conservadores se aglutinou em torno da

As medidas positivas, como discutido por Poulantzas (2000, pp. 29-30), reproduzem certos interesses dos subalternos no Estado. Funcionam como espaços de consenso que permitem a continuidade e legitimação do poder capitalista. 3

Os liberais do Partido Liberal Radical Autêntico (PLRA) também foram protagonistas do golpe. O vice-presidente eleito na chapa de Lugo, Frederico Franco, disse que estava pronto para assumir a presidência do país caso algo saísse do controle. Essa declaração foi proferida logo após as eleições de 2008. 4

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reivindicação pela derrocada de Lugo dentro e fora do país.5 Para entendê-los em sua especificidade, precisamos retomar o ponto de partida histórico que representou a experiência luguista. O bispo Fernando Lugo irrompeu no cenário nacional como uma figura polêmica ligada aos setores progressistas da Igreja Católica, a fim de liderar uma proposta popular, semelhante, em muitos aspectos, à da Bolívia, de Morales, e à da Venezuela, de Chaves. Assim, os 62 anos de hegemonia colorada/entreguista do capital nacional associado e os observadores/atores internacionais foram vencidos na eleição de 2008, já sob protestos incessantes da oligarquia paraguaia. De democracia recente — assim como os seus pares latino-americanos que sofreram intervenções militares terroristas durante as ditaduras de Segurança Nacional —o Paraguai só experimentou a alternância de projetos de poder na eleição nacional de 2008. Tratou-se do pleito vencido pela coalisão da Alianza Patriotica para el Cambio (APC), que levou Lugo ao poder. No entanto, a trajetória meteórica da APC não foi um acaso. Para compreendermos sua importância histórica, é necessário retomarmos alguns nexos explicativos da institucionalidade paraguaia. No ano de 1989 caiu Stroessner. Entretanto, é bom que se diga, a estrutura paraestatal e estatal que o manteve no poder persistiu. Apesar de golpeado pela própria camarilha militar que o sustentara no poder, o legado de 35 anos de ditadura stronista persistiu, sobretudo no domínio dos aparatos estatais e eleitorais do cenário paraguaio. Em seu cerne, a corrupção, o apreço pela presidência, o controle direto do Estado pela oligarquia e o tipo ideal de colonizador da franja oriental do país (o “brasiguaio”) continuaram a crescer como projeto. Da mesma forma, mantiveram-se atuantes os grupos políticos recalcitrantes a qualquer política de acerto de contas com o passado de expropriação de terras comunais, ou que minimamente rompesse, por meio de reformas sutis, os meios de dominação empregados no país. Por um lado, isto explica, em grande medida, a longevidade da ditadura paraguaia, que se iniciou em 1954 como resultado da comoção nacional frente ao conflito com a Bolívia em torno da questão do Chaco, também conhecido como o No Brasil, por exemplo, a revista Veja e outros Aparelhos Privados de Hegemonia fizeram uma campanha de difamação de Lugo.

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período de guerra civil, que durou de 1933 a 1935 e envolveu a Bolívia e o Paraguai em litígio pela região do Chaco Boreau, superestimada, à época, pela possibilidade de existência de jazidas de petróleo. Do ponto de vista da dominação do Estado, o conflito resultou no fim da hegemonia do Partido Liberal, e iniciou o longo processo de hegemonia do Partido Colorado. O coloradismo surgiu como a alternativa popular capaz de mudar o cenário de conflitos internos herdados pela Guerra do Chaco. Não se pode deixar de mencionar que o nacionalismo irrompera como bandeira aglutinadora do Estado nacional paraguaio. Além disso, uma versão incipiente de Estado de bem-estar social fora elencada pelo coloradismo para criar a aura de consenso necessária à derrota liberal, que se construiu durante os anos posteriores à guerra e desembocou na ditadura Stroessner/colorada de 1954/1989. Mas quais foram os suportes dessa ditadura e como eles influenciaram a política durante o período de transição democrática iniciado em 1989? Assim como o Brasil, o Paraguai não teve uma justiça de transição direcionada ao acerto de contas com o terrorismo de Estado; ou seja, não puniu os responsáveis pelas mais de 19.800 prisões arbitrárias baseadas na interpretação da chamada Doutrina de Segurança Nacional. Tampouco houve uma anistia institucionalizada. Foi pouco ou quase nada o que se fez em torno da questão paraguaia. Parte fundamental daquele passado só veio à tona após a descoberta dos chamados Archivos del Terror, em fevereiro de 1992, a exatos três anos após a primeira eleição democrática e alguns anos antes das disputas de 1993.6 Se os documentos encontrados no distrito policial de Lambaré, localidade próxima a Assunção, por um lado, comprovaram a prisão clandestina e os mecanismos de desaparição forçada a que foram submetidos militantes dos mais

Uma carta publicada em fevereiro de 1993, por uma organização chamada Causa, dá a dimensão da importância que representou o encontro dos arquivos relacionados à eleição de 1993. Na carta, a Causa ameaçou a rearticulação da Liga Anticomunista Mundial e outros aparatos relacionados à Operação Condor. A carta veio a público exatamente um ano depois da descoberta do arquivo do terror por Martin Almada, e no mesmo ano da eleição que representaria a ruptura institucional com o stronismo. As eleições movimentaram os setores ligados à repressão das ditaduras. Segundo Calloni (2005, p. 264), a Causa solicitou aos “anticomunistas união para não abandonar amigos com problemas”.

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variados matizes, por outro, estes arquivos não foram usados para guiar, internamente, uma justiça de transição que punisse os responsáveis pelas formas violentas de derrota da oposição cometidas durante o terrorismo de Estado. Embora, portanto, internamente pouco ou nada tenha sido feito, muitos desses documentos oportunizaram o núcleo de provas que mobilizaram os processos contra a Operação Condor, na Itália.7 Todavia, não se pode subestimar seu valor material. Trata-se da prova material cabal das prisões e torturas realizadas pelas ditaduras, negadas durante um longo período pelos aparatos oficiais da ditadura stronista. Por intermédio da análise dos documentos, proferidos pela Comissão de Justiça e Verdade do Paraguai, apesar das adversidades e contradições consequentes do incipiente aparato democrático paraguaio, concluiu-se que, das aproximadas 19.8000 prisões arbitrárias, cerca de 18.700 pessoas foram oficialmente torturadas pela ditadura paraguaia. Este itinerário do terror demonstra uma das faces de sustentação da ditadura paraguaia, ou seja, a implantação do terrorismo de Estado. Além disso, outros pilares foram responsáveis pela sustentação da ditadura, tais como: 1) certa fachada democrática (Stroessner e o Partido Colorado disputaram de 1954 a 1989 o equivalente a sete pleitos eleitorais vencidos pelo general ditador); 2) um sistema azeitado e pentagonizado de repressão (sobretudo centralizado na atuação das legiões regionais de recrutamento do Partido Colorado, sem dar margem à oposição, pois até mesmo os funcionários públicos foram recrutados à força para compor a base do partido de sustentação da ditadura de Stroessner), além de um aparato de repressão institucionalizado desde o início pela ditadura e centralizado na produção de inteligência, desaparição forçada, prisão, tortura e

Os julgamentos iniciados em Roma, na Itália, em 12.03.2015 foram presididos pela juíza Evelina Canale, e teve como promotor de acusação o advogado italiano Giancarlo Capaldo, encarregado de investigar o desaparecimento de 25 italianos na América Latina durante o período de vigência das ditaduras de Segurança Nacional (1970-1980). A primeira audiência sobre o caso ocorrera no dia 12/02/2015 e teve como principal protagonista o repressor uruguaio Jorge Nestor Trocolli, que não voltou ao julgamento iniciado no dia 12.03.2015. Os julgamentos são resultados de 15 anos de investigação criminal e continuam na atualidade, sendo que em janeiro de 2017 a justiça italiana condenou oito presidentes e militares à prisão perpétua.

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assassinatos, nos órgãos oficiais da polícia paraguaia do Departamento de Investigações da Polícia da Capital (DIPC) e da Direção Nacional de Assuntos Técnicos (DNAT); 3) a corrupção institucionalizada e transformada em política de Estado (centralizada principalmente no narcotráfico, tráfico de armas e contrabando de produtos pirateados, tais como whisky e cigarros); 4) uma fachada nacionalista, centrada no combate à subversão, cujo destaque maior foi o revisionismo em torno da Guerra da Tríplice Aliança, para recuperar o temor frente a invasões estrangeiras, o combate aos movimentos dissidentes do Partido Colorado (Movimiento Popular Colorado — Mopoco), a guerrilha ligada ao Partido Liberal e a Frente Unida de Liberacion Nacional (Fulna); 5) um nacionalismo pífio, pois foi permissivo com relação à penetração de cerca de 250 mil brasileiros que se transformaram em grandes proprietários rurais na franja oriental do território paraguaio, no período de “modernização” da agricultura, como resultado do processo de acordos bilaterais envolvendo a construção da Usina Hidrelétrica de Itaipu; 6) o apoio estadunidense (presente desde o primeiro governo colorado após a Guerra do Chaco, a partir de 1947, que acabou com o domínio institucional do Partido Liberal, desde inícios do século XX; 7) a estruturação do macarthismo, através da constituição da Direção Nacional de Assuntos Técnicos (DNAT), em convênio com a USAID, por meio de apoio intelectual e logístico fortemente influenciado pela ideologia anticomunista. Este apoio só foi estremecido pelas diversas denúncias de narcotráfico apresentadas pela DEA, contra o general Rodriguez, braço direito de Stroessner durante toda a ditadura, mas retomado quando o próprio Rodriguez foi o principal articulador do Golpe Militar que acabou com a era Stroessner (NICKSON, 2010). A informalidade da economia paraguaia, com a completa ausência de indústrias de qualquer natureza, e a militarização do Partido Colorado operado pelo ditador sustentaram, no campo social, a continuidade de boa parte do aparato

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colorado/stronista. O rompimento com parte do aparato estrutural, relegado pela ditadura, só foi efetivado com a eleição de Fernando Lugo em 2008, pelo menos, em aparência, presente nas bandeiras de luta da APC. Todos os governos que o precederam foram baseados no domínio colorado. Diga-se de passagem, a crise de hegemonia iniciada com a queda de Stroessner se configurou nas dificuldades de composição de governos durante todo o período de redemocratização, mas o Partido Colorado sustentou a saída imediata das crises. Se o Partido Colorado carregou consigo certo projeto de hegemonia, o mesmo foi herdado da ditadura Stroessner. O general possuía certa inclinação ao anticomunismo, e isso demonstra as relações estreitas mantidas com Taiwan de Chiang Kai-shek, que foi fundador da Liga Anticomunista Mundial (LAM) em 1966. Além disso, depois do Golpe de 1964 no Brasil, esta adesão ao anticomunismo se concretizou com o aprofundamento de relações de cooperações repressivas. Porém, a partir da abertura, houve uma mudança sensível nas relações institucionais mantidas pelo stronismo, até mesmo durante o governo Lugo houve o rompimento com Taiwan e o início formal de relações diplomáticas com a China. Porém, ainda em 1989, tentou-se uma fórmula de governo de comoção nacional com a participação de todos os partidos políticos, para garantir a efetivação de uma democracia sui generis. Esta eleição foi convocada para legitimar certa desmilitarização do Estado, mas foi vencida pelo mesmo general Rodrigues, que derrubou Stroessner com o apoio do establishment estadunidense. Rodrigues obteve 74,9% dos votos para o Partido Colorado, contra 20,3% de votos de Domingo Laino, do Partido Liberal. Essa eleição teve como principal objetivo manter certa fachada institucional em favor do sistema presidencialista paraguaio. Rodrigues governou sob a sombra do general Lino Oviedo, militar que tentou uma quartelada para derrubá-lo ainda em 1989 e passou à reserva, mas continuou disputando as eleições durante todo o período de abertura democrática, se não direta, indiretamente, através do apoio declarado a diversos candidatos colorados. Entretanto, no que se refere ao aparato herdado pelo stronismo, não houve avanços. O controle das principais empresas responsáveis pela logística do Estado paraguaio continuaram ocupadas pelos militares, o que garantiu apoio empresarial a Rodrigues. 146


O panorama só começou a mudar nas eleições municipais de 1991. A cidade de Assunção, por exemplo, mobilizou-se em torno de um governo de coalisão chefiado pelo empresário Carlos Filizzola. Com uma plataforma incipientemente popular, Filizzola irrompeu no cenário político com um slogan aglutinador, inscrito sob a insígnia de “Asunción para todos”. Tratava-se da primeira iniciativa autônoma em relação ao bipartidarismo paraguaio, que marcou a política do país durante todo o século XX. Filizzola reapareceria durante o governo Lugo como ministro do Interior. Filizzola caiu em 2012, pouco antes de Lugo. No panorama nacional, nada mudou. Os colorados continuaram vencendo eleições baseadas na fraude política, mas com fachada democrática, o que permitiu a mobilização da oposição em torno do lançamento de candidaturas em praticamente todos os pleitos. Porém, com uma característica de oposição, marcada tanto pelo bipartidarismo entre colorados e liberais — sendo colorados situação e liberais oposição —, como pela mobilização entre os setores chamados independentes, aglutinadores de diversos matizes políticos, que iam do reformismo ao apelo originário de luta pela terra baseada na constituição de plataformas de segurança alimentar, voltadas ao fortalecimento histórico do artesanato como base promotora da inclusão econômica e cidadã dos povos originários. Este setor cresceu exponencialmente durante todo o período de redemocratização e aparecerá como protagonista político da candidatura de Lugo em 2008. Durante este processo, houve, novamente, um momento de instabilidade política no período do governo de Raúl Cubas Grau (1998-2003), que foi destituído por meio do acionar de um mecanismo constitucional, chamado de julgamento político, o mesmo que levaria Fernando Lugo à derrocada. Cubas Grau foi o candidato apoiado por Oviedo nas eleições de 1998, mas, devido ao mecanismo de alianças políticas, concorreu ao pleito ao lado de um opositor do general, Luis María Argaña, seu vice-presidente. Argaña foi assassinado em meio a uma grave crise social. Houve o assassinato de jovens estudantes que construíram diversas manifestações contra Cubas Grau. Cubas Grau renunciou antes de ser julgado. O seu sucessor, Ángel González Macchi, foi julgado, mas não condenado, pois as frações recalcitrantes do coloradismo, opositoras de Oviedo, e representantes do 147


stronismo colorado, deram-se por satisfeitas com a queda de Cubas Grau e o acionar do mecanismo jurídico do julgamento político. Neste sentido, as avaliações possíveis nos apontam um caminho que consolidou a transferência do controle institucional do Estado, das mãos da corporação militar para o campo jurídico e policial. Doravante, todas as graves crises políticas — construídas e dirigidas pela direita e executadas pelo judiciário — conduziram ao acionar golpista materializado no processo de impeachment de Fernando Lugo. O mecanismo acionado foi o julgamento político. A partir daqui, retomarei algumas hipóteses teóricas iniciais para amarrar o debate. Não se pode desconsiderar, portanto, a ossatura material do Estado paraguaio presente na atuação do judiciário, pois, como se sabe, a deposição de Lugo seguiuse ao julgamento político, que é um mecanismo “legitimador” da institucionalidade paraguaia, uma vez que se inscreve como possibilidade na Constituição do país. Nem assim poderíamos dizer que se trata apenas de um mecanismo de legitimação do golpe, mas, sim, de um rigoroso vigilante, um guarda noturno da burguesia, como diria Gramsci, para garantir a institucionalidade do Estado Liberal. A coalisão que levou Lugo a disputar com chances reais de acabar com a hegemonia encouraçada de repressão mantida pelo Partido Colorado — que, como vimos, manteve-se como espinha dorsal da ditadura stronista no período de redemocratização iniciado em 1989 — envolveu amplos setores independentes, muitos dos quais sequer com características de militância partidária. Mas, por que Lugo? Qual a base social que o definiu como possibilidade histórica de uma aglutinação política tão poderosa e com objetivos tão audaciosos? Fernando Lugo não foi militante histórico de partido algum do Paraguai. Tratava-se de um ex-bispo da Igreja Católica paraguaia, da ordem “Missionário do Verbo Divino”. Em que pese a sua quase nula atuação política, as credenciais políticas dele o vinculam aos missionários terceiro-mundistas dos anos 1970 que, no caso paraguaio, cimentaram certa oposição às ditaduras por meio da leitura da Teologia da Libertação e do arcabouço teórico de Paulo Freire. Ademais, Lugo não foi uma figura pública destacada de oposição ao stronismo. Sabe-se, porém, que seu pai foi preso mais de vinte vezes pelos pyragues 148


de Stroessner e três de seus irmãos, porque opunham-se à ditadura, foram banidos do país em direção ao exílio. Foi nesse contexto que Lugo, com 19 anos, ingressou no seminário. Já em 1983 foi expulso do país sob a acusação de proferir sermões subversivos. Esteve em Roma a fim de estudar Sociologia e Teologia e retornou ao Paraguai em 1987. Em 1994, foi ordenado bispo da Igreja Católica, e saiu da instituição em 2006. Portanto, o dado factual que podemos endossar com relação à escolha de Lugo passa pela quase nula oposição declarada ao coloradismo durante a ditadura. No entanto, com relação à coalisão que o levou a disputa da eleição de 2008, sob o nome de Alianza Patriotica para el Cambio (Aliança Patriótica para a Mudança), a questão é diferente. Tal aliança foi composta por 10 partidos (Partido Democrata Cristiano; Partido Democrata Progresista; Partido Encuentro Nacional; Partido Frente Amplio; Partido Liberal Radical Autentico; Partido Movimiento al Socialismo; Partido País Solidario; Partido Revolucionario Febrerista; Partido Social Demócrata; e Partido Socialista Comunero) e 9 correntes políticas ligadas aos movimentos sociais (Ñembyaty Guasú Luque 2008; Bloque Social y Popular; Colo’o Apytere; ERES; Fuerza Republicana; Mujeres por la Alianza; Resistencia Ciudadana Nacional; Tekojoja; e Teta Pyahu). Os principais pontos do programa de governo da APC abordavam a reativação econômica com equidade social; a reforma agrária integral; a recuperação institucional do país e o combate à corrupção; a instauração de uma justiça independente; a recuperação da soberania nacional; e o plano de emergência nacional para os problemas sociais mais urgentes (FOLLETO, 2011). A candidatura de Lugo, descentralizada da figura personalista do ex-bispo, representou resistência popular aos grupos dominantes paraguaios. Alguns observadores internacionais, como a própria diplomacia brasileira, expressaram que a candidatura de Lugo, mais do que um caminho aberto à esquerda, era, em realidade, uma candidatura de protesto e descontentamento com o status quo. Avalio que se tratava de uma tentativa popular de participar da institucionalidade burguesa. Desta forma, demonstra-se o caráter excludente da política paraguaia nos marcos

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do Estado capitalista, bem como a pujante resistência popular em meio ao aparato institucional dominado pela burguesia. Certamente o tema da reforma agrária — sobretudo desenhado desde a reivindicação pela proscrição dos títulos de terras cedidas a grupos estrangeiros, ainda à época de Stroessner — incomodou parcela significativa do agronegócio paraguaio associado às multinacionais. Esta matéria apresentou o ponto de inflexão e ruptura da conciliação de classes do projeto luguista, presente, sobretudo na figura do presidente, e não no projeto consolidado pela APC. A questão da terra unificou camponeses, por um lado, e, por outro, os latifundiários, sendo que a luta de classes se radicalizou em torno dessa bandeira e desembocou nos confrontos que endossaram a queda de Lugo — que, apesar de algumas manobras em torno da garantia de sua permanência na presidência com o abandono dos pontos acordados no plano da APC — não resistiu ao golpe. Outras questões — como as de soberania nacional, desenvolvimento dos grupos empresariais e posturas intransigentes sobre o rompimento e/ou negociação de tratados históricos firmados à época do stronismo, como a concessão de energia e venda de excedente do produto de Itaipu para o Brasil — alardearam um conjunto de interesses tradicionalmente ligados aos grupos dominantes nacionais e regionais. Apesar da força do projeto que levara Lugo à presidência do país, os setores dominantes movimentavam-se rapidamente em direção ao combate aberto. Sobretudo a ampla plataforma da APC, do ponto de vista institucional e internacional, mais especificamente relacionado ao contexto regional, visava uma transformação na imagem paraguaia. Certa perspectiva de desenvolvimento nacional com propostas de redistribuição de renda foi o que alardeou os setores dominantes que perderam a direção do processo com a vitória de Lugo, mas tentaram recuperá-la durante todo o período de sua presidência, o que demonstra certo transformismo de Lugo frente ao projeto inicial da APC. Apesar de atingir 40% dos votos válidos no pleito de 2008, a APC não conseguiu chegar perto de conformar maioria no Congresso ou Senado — dentre os 80 deputados elegíveis, somente três foram eleitos por ela, e dentre os 45 senadores, apenas três. Noutros termos, apesar de garantir a vitória eleitoral para a presidência, 150


o Executivo enfrentaria sérias dificuldades, tanto para compor seu governo efetivo, quanto para aprovar a pauta progressista com a qual fora eleito. Portanto, na prática, a vitória foi personalista diante da institucionalidade oligárquica do Estado capitalista paraguaio, mas a política reformista foi derrotada no quadro institucional mais amplo. Apesar do inegável avanço representado pela vitória presidencial de uma plataforma minimamente popular, anunciava-se, mais uma vez, que o quadro de crise permanente acompanharia o governo da APC, inclusive com tentativas práticas de Lugo de desvencilhar-se daquele projeto. Desde o início de seu governo, questões delicadas, delineadas pela coalisão partidária que elegera Lugo — principalmente no que se refere à presença de pautas que dificilmente seriam conciliadas, como a questão agrária que mexeria com a oligarquia — demonstraram a instabilidade do bloco de poder, pois esta aliança ia de representantes da pauta reformista a membros históricos da oligarquia; destes últimos não podemos esquecer, visto que representaram o resguardo dos interesses de classes com a presença do Partido Liberal na candidatura de Lugo. Disso resultou a contraditória política de contenção aos movimentos sociais camponeses. Os camponeses, observadores de primeira ordem da iniciativa APCcista, organizaram-se num movimento amplo denominado de “Carperos”. A organização deste movimento, com estratégias de atuação semelhantes ao MST brasileiro, se desenvolveu em torno da reforma agrária. Por outro lado, surgiu o Ejército del Pueblo Paragyo (EPP), uma guerrilha com métodos de atuação minimamente questionáveis. Retomaremos esta questão adiante. Outro ponto contraditório foi cogitado para garantir o que os liberais usam como fórmula para justificar a conciliação de classes na atualidade, ou seja, a governabilidade. Para garanti-la, e aqui leia-se, capitular diante das pautas progressistas, cogitou-se, no âmbito institucional, uma aliança com a dissidência do Partido Colorado, alinhado ao ex-coronel Lino Oviedo, com o nebuloso nome de Unión Nacional de Ciudadanos Éticos (Unace). Certamente, a mobilização institucional criada pela desconfiança na tal governabilidade, propalada pelo próprio Lugo, principal interlocutor do programa da APC, mas já representando a esta altura

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o transformismo molecular, preocupou o conjunto de ativistas que deram base de sustentação e até certa trégua à luta política de pressão pela reforma agrária. Desta feita, retornemos a política de repressão aos movimentos sociais, que já foi indiciada pela aproximação ao setor historicamente golpista alinhado à figura de Oviedo. Ela explica muito sobre o real caráter da malfadada experiência eleitoral de coalisão do governo popular de Fernando Lugo. Por um lado, a adesão ao Plan Colombia de combate ao EPP e, por outro, a aprovação da lei antiterrorismo, ambas experiências “legitimadas” pelo terror ao EPP, já indicavam o tortuoso caminho transformista e de retrocesso para o governo da APC que, àquela altura, em 2010, guardava pouco ou quase nada de seu plano inicial (SANTOS, 2012). Tanto o Plan Colombia quanto a aprovação de atividades militares estadunidenses nos arredores de Assunção, chamada de Iniciativa Zona Norte, denotam o retorno da pressão militar em plena principal experiência progressista paraguaia desde a redemocratização. Um retrocesso sem precedentes na história da recente redemocratização paraguaia, pelo menos, não com as características diretamente intervencionistas. Ainda em 2010, o governo chegou a decretar estado de sítio em cinco departamentos do Paraguai, o que acabou por dar margem a assassinatos de lideranças camponesas, sob o pretexto de erradicar o EPP que sequer sofreu baixas. Em meio ao problema estrutural relacionado à violência no país, ganharam amplitude dois movimentos de caráter reacionário: Queremos papá y mamá (ligado ao movimento pró-vida) e Paraguay es soberano. Ambos já contavam com o apoio do vice-presidente Frederico Franco e contrapunham-se publicamente à aprovação do casamento homoafetivo, já aprovado na Argentina naquela conjuntura. Temiam que a lei fosse colocada em debate e, caso aprovada, representasse algum capital político ao governo de Lugo (SZWAKO, 2014); assim, ganharam certa repercussão nos meios midiáticos paraguaios com uma pauta política que beira à infantilidade. São organizações de direita que insuflaram debates moralistas em relação à personalidade de Lugo, chegando, inclusive, a convocar atos de rua contra ele. Dentre suas bandeiras, encontramos preceitos liberais, tais como: governabilidade; emprego; mobilidade social; equidade social; honestidade; e Estado estratégico, 152


promotor e eficiente. No perfil da página “Paraguay es soberano”, uma das líderes do movimento apresentou a seguinte avaliação da atuação de Lugo: [Eu] estava muito indignada com o que estava acontecendo e com as notícias transmitidas em nível internacional. Foi grande a minha surpresa quando vi que, em três horas, éramos mais de cinco mil pessoas entrando nesses sites. [...] [A]s vozes de silêncio, [as vozes] das redes sociais estão gritando, estão aclamando, estão muito ofendidas, e querendo demonstrar ao mundo o que realmente aconteceu no Paraguai. Que não venham querer nos dizer o contrário. [...] Minha presença [na Plaza de Armas] [...] é para te mandar uma mensagem, Fernando Lugo. Tenho isso atravessado na garganta desde 2008. [...] Teu problema foi... Quando você jurou perante a Bíblia, assumiu a condução deste país e prometeu ser um bom governante para este povo, você não cumpriu a sua promessa. Hoje eu venho te processar – Deus, a pátria e o povo vão te processar. Eu venho te processar, pois você se matou de dar risada, do teu povo, da tua igreja, do teu Deus, do teu país! Quem você achou que é, Fernando Lugo? Que merda você foi, para nos fazer isso? Para nos fazer passar o ridículo, não podíamos mais pisar em outro país, porque nos diziam: “ah, esse país que tem como governante um exbispo que engravidou meio país”. [...] Deixe de nos fazer passar este martírio. Saia do poder, se alije. Vai com as tuas mulheres, vai para o campo, para onde quer que seja. [...] Deixe-nos em paz. Queremos, por favor, trabalhar; queremos viver e produzir com tranquilidade. Queremos que o último campesino, o último policial possa sair e ir ao interior do país com segurança. Você [Lugo] nos tirou tudo, nos tirou a dignidade. [...] Hoje aqui na praça não tem ninguém por sua culpa, [nós] os paraguaios temos medo. Por tua culpa, foram assassinados e massacrados esses paraguaios. [...] Não te reconhecemos mais como Presidente da República. Nós te demos a condução da [seleção de futebol] albirroja. Você foi nosso capitão e nos traiu. [...] No primeiro ano de governo, te demos cartão amarelo [...]. O povo tinha uma esperança em um bispo com todos os discursos e preceitos, e você foi o diabo para este país. E mais, Fernando Lugo, e que o mundo inteiro saiba, aqui não houve ruptura, aqui te demos cartão vermelho, te expulsamos do jogo (SZWAKO, 2014).

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A página, segundo Jose Swzako, atraiu cerca de 50 mil seguidores em menos de uma semana, e se transformou no principal porta-voz do golpe. Como podemos observar, na prática, não há pauta política alguma em sua aparência, mas a luta de classes no plano efetivo coadunou com a pauta infantilista do movimento. Já em 2011, por sua vez, a questão da reforma agrária e a resistência latifundiária retornou ao centro. A chamada Ocupación de Tierras en Ñacunday aguçou a oposição dos produtores de soja brasiguaios contra o governo da APC, visto com preocupação desde o início da presidência de Lugo. Nesse período iniciou-se o processo de medição de terras fiscais, que são terras pertencentes ao Estado paraguaio, pois foram marcadas no interior de grandes latifúndios de maneira irregular. Os técnicos da Dirección del Servicio Geográfico Militar procederam à medição e foram constatadas diversas irregularidades nos limites da fazenda. Uma das fazendas afetadas pelo processo de remarcação de área pertencia ao latifundiário brasiguaio Tranquilo Fávero. Trata-se de um brasileiro que chegou ao Paraguai na década de 1970 nos marcos da reforma agrária expropriadora de Stroessner. Dono de um verdadeiro império da soja, que envolve desde empresas de fornecimento de insumos até transportadoras dedicadas à logística do produto, Tranquilo Favero patrocinou matérias nos veículos de comunicação brasileiros contra as medidas de Lugo. Um exemplo são as matérias da revista Veja, publicadas na edição de 12 de fevereiro de 2012. Claramente tendenciosa, a favor do latifundiário, a matéria assinada pela jornalista Carolina Freitas retratou um senhor de perfil pacato e trabalhador — “Só quero que me deixem trabalhar em paz. É a única coisa que sei fazer” (VEJA, 2012), eis o destaque da fala do latifundiário que, como se sabe, chegou a patrocinar grupos infiltrados em meio aos Carperos para provocar confrontos de grande monta. Todavia, sem sucesso. A Veja qualificou a atuação do governo e dos grupos de pressão dos Carperos como uma ação de ódio. Perguntado sobre a atuação da diplomacia brasileira no caso, Fávero demonstrou total segurança e conforto ao afirmar que o resultado contaria a seu favor.

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A política timidamente redistributiva de Lugo desagradou setores do apoio liberal que rachou em meio aos conflitos pendulares. Tais conflitos oscilaram entre o apoio à política de reforma agrária e o retrocesso frente ao latifúndio. Foi formulada uma comissão para negociar a situação, mas a reação dos latifundiários foi imediata. Houve uma grande mobilização em torno dos setores patronais, convocados pela Coordinadora Agrícola del Paraguay, filial Santa Rosa, que pediram apoio do Partido Colorado. Estes setores acusavam o governo de atender exclusivamente os interesses dos Carperos que acompanhavam o processo de medição das terras. A esta altura, já havia cerca de 23 acusações contra Lugo para que renunciasse ou fosse levado a julgamento político. A entrada em cena do coloradismo sacramentou a ação em direção ao golpe. Porém, antes, foi formulada uma comissão de negociação composta por vários membros da coalisão partidária da APC e, com a aproximação da APC à oposição colorada, decretou-se o apaziguamento do conflito que era claramente insuflado pelos setores patronais, chefiados pelos latifundiários brasiguaios. No Brasil, diversas matérias circuladas pela revista Veja demonstram, por um lado, a desqualificação moral de Fernando Lugo, envolvido em pelo menos três escândalos de paternidade, e, por outro, a construção da figura de sucesso dos latifundiários brasiguaios, que não hesitaram em desqualificar os Carperos, julgados incapazes de promover o desenvolvimento do agronegócio no Paraguai. Neste contexto, o grupo de pressão dos latifundiários acionou o sistema jurídico, que embargou diversas iniciativas de medição de terras irregulares, retrocedendo à estaca zero tudo o que se tentou realizar até então. Antes de decretar o fim das iniciativas mencionadas, o Poder Judiciário recorreu a diversas votações, tanto no Congresso, quanto no Senado paraguaio, para barrar as iniciativas da APC. Lugo não titubeou e, para se manter no governo, culpou a ingerência do grupo de engenheiros ligados ao Instituto Nacional de Desarrollo Rural y de la Tierra (Indert), órgão responsável pelas medições. Após isso, já em 2012, houve o chamado massacre de Curuguaty, ocorrido na fazenda do político colorado Blás Riquelme, latifundiário, sócio da Cargill paraguaia. 155


Neste massacre morreram 11 sem-terra e seis policiais em uma região de Canindeyu, lado oriental do Paraguai, próximo à fronteira com o Brasil. Lugo foi acusado de principal responsável pela violência face à onda de resistência ao capital multinacional associado do agronegócio paraguaio, por não acatar o apelo do senado oposicionista para acionar ajuda externa a fim de acabar com os conflitos internos do país. Dentre outros movimentos, a oposição acusou o então presidente de dirigir um governo fraco, no que diz respeito à resolução dos conflitos violentos, que envolviam os interesses do agronegócio, de matiz brasiguaia e associada. Considerações finais O chamado massacre de Curuguaty foi a gota d’água que fez transbordar o balde. Alguns vídeos, gravados por jornalistas críticos, apresentam imagens do conflito.8 Todos os Carperos que se encontravam abatidos no local foram arrastados, depois de mortos para os limites da fazenda, ou seja, não estavam sequer em seu interior, o que denota que o conflito foi claramente forjado. Na verdade, tratou-se do último ato para a derrocada de Lugo e ruína da APC, um castigo exemplar que demonstrou os limites de participação de um projeto popular em meio à institucionalidade oligárquica do Estado capitalista paraguaio. Lugo foi levado a julgamento político e deposto em menos de 48 horas após o massacre. Não lhe foi oferecido tempo para defesa. De certa forma, as acusações sequer foram apresentadas de maneira formal, mas sim como libelo acusatório. Acossado pela mídia que apoiou o golpe de Estado ao produzir o chamado domínio do fato, Fernando Lugo aceitou o julgamento político e, apesar da forte mobilização das bases na cidade de Assunção, resignou-se e pediu a desmobilização, por temer um banho de sangue. Suas acusações giravam em torno dos seguintes pontos: acto político en el comando de ingeniería de las fuerzas armadas; caso ñacunday; creciente inseguridad; protocolo de ushuaia ii (sobretudo na aproximação com a China e o rompimento de relações com Taiwan); e caso matanza curuguaty. Todas

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Cf.: <https://www.youtube.com/watch?v=n6K17TmuN5g>.

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as acusações, segundo o libelo acusatório, não necessitariam de provas, uma vez que se tratavam de fatos de domínio público. Traído pela política de coalisão com os liberais, que soou como vinho novo em pipa velha, a APC e Lugo foram golpeados e substituídos pelo vice-presidente Franco, do Partido Liberal. Desde o início, apesar da euforia popular causada pela vitória de Lugo, a experiência da APC demonstrou seus limites. Tais limites encontram-se nas fórmulas liberais do Estado paraguaio e também na colisão com o Partido Liberal. A política estatal a serviço da materialidade do poder, sua ossatura material e autonomia relativa demonstram os limites estruturais no que concerne ao avanço de projetos populares em relação ao poder. O golpe no Paraguai foi denominado de várias formas. Por sua institucionalidade, Mello, Gabiatti e Camargo (2012) denominaram-no de “neogolpe”. Contudo, como podemos avaliar, a partir da reconstrução que realizamos nesse texto, os dilemas da História Imediata do Paraguai se inscrevem na própria materialidade do Estado capitalista. Os mecanismos do Estado capitalista resguardam, em sua ossatura material e autonomia relativa, como proposto por Poulantzas, os mecanismos que garantem a institucionalidade e o domínio oligárquico/burguês. Em que pesem os exageros em torno das avaliações relacionadas ao contexto luguista no Paraguai, o fato é que o projeto da APC foi descartado imediatamente após Lugo assumir a presidência do país. Poder-se-ia especular sobre o caráter inorgânico da militância luguista, ou sobre certa crise de direção sofrida pela experiência popular no poder paraguaio. No entanto, é preciso retomar as possibilidades reais no que concerne à disputa pela hegemonia nos países em que o Estado exerce um protagonismo significativo, como é o caso do Paraguai. Nessa seara investigativa, a relação histórica do Estado capitalista e sua materialidade no que se refere aos mecanismos de poder demonstram que a pauta dos trabalhadores não é realizável neste Estado. Sua realização plena só será possível em um outro Estado.

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Referências bibliográficas

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Impeachment

ou

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Em defesa da nação, da pátria e da família: uma análise sobre o Prona na Câmara dos Deputados (2000-2006) Odilon Caldeira Neto1

Fundado em 1989, o Partido de Reedificação da Ordem Nacional (Prona) obteve relativa notoriedade no noticiário político brasileiro e, em alguns momentos, no campo político-partidário. Em certa medida, é possível delinear essas “fases” de acordo com os processos eleitorais majoritários, as modificações discursivas e programáticas, ou mesmo as interações no âmbito nacional ou internacional.2 Os três primeiros momentos são aqueles em que o presidente da sigla, Enéas Ferreira

Carneiro,

candidatou-se

à

Presidência

da

República,

obtendo,

consecutivamente, a décima segunda (1989), terceira (1994) e quarta (1998) colocação. A partir de 2002, Enéas Carneiro passa a pleitear, em nível federal, o cargo de deputado. Em 2002, é eleito com a marca histórica de 1.573.642 votos

Professor colaborador do Programa de Pós-Graduação em História da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS). Bolsista PNPD/Capes na mesma instituição. Doutor em História pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), com estágio pelo Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa (ICS-UL). Coordenador da Rede Direitas, História e Memória. Contato: odiloncaldeiraneto@gmail.com. 1

A discussão aqui apresentada é um recorte específico do trabalho de maior fôlego, desenvolvido em torno da tese defendida no Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Cf. CALDEIRA NETO, Odilon. “Nosso nome é Enéas!”: Partido de Reedificação da Ordem Nacional (1989-2006). Tese (Doutorado em História). Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Porto Alegre, 2016. 2

160


(8.022% dos votos válidos3), ocasionando o chamado “Efeito Enéas”, pois elegeu consigo outros cinco deputados, todos com inexpressiva votação; em 2006, com 386.905 votos (1,861%); em 2007, o Prona é extinto, após fusão com o Partido Liberal (PL), criando o Partido da República (PR). Essas “fases” ou “estágios” denotam, por sua vez, não apenas uma operação do microcosmo de um pequeno partido político que se negava às composições de chapa em níveis majoritários, mas também o processo de interação mais específico no terreno (ou vaga) da direita radical brasileira. Além disso, é necessário compreender que esse quadro está inscrito em determinada conjuntura — seja marcada pelos anos iniciais da chamada Nova República brasileira, seja marcada pelas disputas próprias dos processos eleitorais. Dito isso, para uma melhor interpretação da atividade legislativa do partido, em nível federal, é necessário traçar algumas considerações sobre algumas das condicionantes que marcam o período “final” do Prona, para justamente interpretar as razões da aparente paradoxal conciliação entre a institucionalização legislativa em questão e o declínio e extinção da legenda, no ano de 2007. O Prona em quatro momentos Algumas características fundamentais do Prona surgem em sua primeira fase ou processo eleitoral. No ano de 1989, é lançada a candidatura do médico cardiologista Enéas Ferreira Carneiro à Presidência da República, com a vice candidatura do também médico Lenine Madeira de Souza. Para além da rede de relações profissionais que auxiliam a formação do partido,4 a fundação da legenda às vésperas da primeira eleição direta em nível presidencial denota: 1. o princípio da liderança incontestável de Enéas Carneiro; 2. a relação da máquina partidária com os anseios políticos de seu líder; 3. o discurso nacionalista e em defesa de uma ordem hierárquica e autoritária; por fim, 4. o estilo de narrativa e oratória, que se

3

Dados retirados do Tribunal Superior Eleitoral.

Especificamente sobre a formação do Prona, cf. CALDEIRA NETO, Odilon. A “direita envergonhada” e a fundação do Partido de Reedificação da Ordem Nacional. Historiæ, v. 7, n. 2, 2016. 4

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tornaria referencial sob o lema “Meu nome é Enéas!”, difundido durante o Horário Gratuito de Propaganda Eleitoral (HGPE). A partir dessa estrutura inicial, a interação do Prona em face da vaga da direita radical após a transição democrática torna-se uma condição averiguável, inclusive em dimensões eleitorais. Tomando como referência o processo eleitoral de 1989, o pleito de 1994 traz importantes modificações. Em primeiro lugar, a relação do partido com setores nacionalistas de direita, sobretudo os grupos de pressão de militares de reserva que, a partir do jornal Ombro a Ombro,5 estabeleciam elementos de composição para a circularidade de componentes de uma cultura política autoritária. Para além dessa circularidade de ideias, a interação entre atores é mais uma característica marcante da segunda “fase” do Prona, em virtude da filiação de Pedro Schirmer (editor responsável por Ombro a Ombro) e principalmente do contraalmirante Roberto Gama e Silva, que seria o candidato à vice-presidência pelo partido em 1994. Enunciando a sentença “Nossos nomes são Enéas e Gama e Silva, que oferecemos como garantia para o advento de um Brasil melhor”,6 a candidatura da dupla Enéas Carneiro/ Gama e Silva foi expressa tanto em texto publicado em Ombro a Ombro quanto no programa da candidatura intitulada “Um grande projeto nacional”, demonstrando a similaridade entre a construção de um projeto político do partido e os anseios de militares da reserva e de civis que colaboravam com o projeto editorial de Ombro a Ombro. Assim, a segunda fase é o momento de formação de relações efetivas no campo do nacionalismo de direita no Brasil. Membros da Associação dos Diplomados da Escola Superior de Guerra (ADESG), de pequenos grupos

O jornal Ombro a Ombro foi fundado em maio de 1988, por integrantes da Escola Superior de Guerra e antigos colaboradores do jornal Letras em Marchas. Reunindo civis e militares da ativa e principalmente da reserva, o jornal refletia, em grande medida, algumas das questões mais urgentes para a direita radical brasileira durante a transição democrática e os primeiros momentos da Nova República. Mesmo em tópicos (como a questão da representação política, os processos eleitorais, as “batalhas da memória” do regime militar), o periódico proporcionou a interação entre diversas tendências da direita brasileira, não apenas para os interesses dos defensores da memória positiva do regime militar, pequenos grupos ultranacionalistas, assim como iniciativas neointegralistas, entre outros.

5

6

Cf. SILVA, Roberto Gama e. Por que candidatura? Ombro a Ombro, jun. 1994, p. 4.

162


nacionalistas, como o Movimento Nativista, ou mesmo intelectuais, como Marcos Coimbra, Bautista Vidal, Adriano Benayon do Amaral, dentre outros, passam a fornecer um arcabouço teórico e político ao partido, ao mesmo tempo que a legenda se torna uma espécie de mediadora desse jogo político. Ao discurso de denúncia de um quadro periclitante em termos de hierarquia e autoridade expressos na carta de fundação do Prona,7 redigida e divulgada em 1989, são adicionados elementos de um nacionalismo econômico, da defesa dos “interesses nacionais” no campo energético e mineral, e assim por diante. A candidatura da chapa foi garantida, em 1994, pela filiação da deputada federal Regina Gordilho ao Prona. Tal fato auxiliou também o aumento exponencial da inserção do Prona no HGPE, passando de 15 segundos para mais de um minuto. No entanto, embora a filiação de Regina Gordilho ao partido liderado por Enéas Carneiro possa ser entendida à luz de similaridades em torno de projetos políticos, a trajetória da deputada foi construída junto ao Partido Democrático Trabalhista do Rio de Janeiro, assim como em torno de um episódio traumático da vida pessoal de Gordilho.8 As eleições de 1994 marcam o melhor desempenho do Prona em eleições do Poder Executivo. Na disputa vencida em primeiro turno por Fernando Henrique Cardoso/PSDB, Enéas Carneiro e Roberto Gama e Silva conquistaram a terceira posição da corrida eleitoral (7,38% dos votos válidos9), permanecendo à frente de candidatos mais tradicionais, como Orestes Quércia/PMDB, Leonel Brizola/PDT e Esperidião Amin/PPR. Se o chamado “voto de protesto” não pode ser minimizado como condicionante dos votos do Prona, é necessário compreender que o discurso do partido — em especial de Enéas Carneiro — torna-se uma referência para

DIÁRIO OFICIAL DA UNIÃO. Partido de Reedificação da Ordem Nacional (Prona). Ata de Fundação. Seção I, 6.4.1989, pp. 5280-5285.

7

A empresária do ramo de confecção iniciou a carreira política após o assassinato de seu filho, Marcellus Gordilho. Os cinco policiais militares envolvidos no crime foram julgados e inocentados pela Justiça Militar. Além de filiar-se ao Partido Democrático Trabalhista, pelo qual foi eleita vereadora (Rio de Janeiro) e deputada federal, Regina Gordilho fundou a Associação dos Familiares Vítimas da Violência.

8

9

Dados retirados do Tribunal Superior Eleitoral.

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diversas tendências da direita brasileira, inclusive para ex-líderes de organizações existentes durante a ditadura civil-militar, como o Comando de Caça aos Comunistas (CCC).10 O terceiro período da agremiação, relacionado ao processo eleitoral de 1998, traz a habitual interação com tendências do nacionalismo de direita no Brasil, bem como com organizações internacionais, especialmente nos EUA e na Argentina. É o momento de intensificação da relação entre Enéas Carneiro, Lyndon LaRouche (EUA) e Mohamed Seineldín (Argentina), assim como entre as organizações Movimento de Solidariedade Ibero-americana (MSIa/Brasil), Movimiento pro la Identidad Nacional e Integración Iberoamericana (MINeII/Argentina) e os órgãos de imprensa do larouchismo internacional, em especial a Executive Intelligence Review (EIR/EUA). Para além da complexidade que estrutura essas relações, é necessário pontuar que a candidatura de Enéas Carneiro (e de Irapuan Teixeira, candidato a vice-presidente) intensifica a crítica ao neoliberalismo, ao sistema político e à burocracia partidária brasileira, assim como acentua a tônica conspiracionista, tendo como base o nacionalismo autoritário brasileiro, mas especialmente as ideias que marcam a trajetória dos grupos liderados por Lyndon LaRouche.11 Além da defesa da soberania dos Estados nacionais, o discurso das organizações larouchistas (isto é, inspiradas por Lyndon LaRouche) promulgam a industrialização e o uso de energia nuclear como instrumento de contra-ataque a uma conspiração internacional globalista, cujo líder, dentre outros, seria o investidor húngaro-americano George Soros. Na campanha presidencial de 1998, Enéas Carneiro denunciaria uma “aliança” entre Soros e os três primeiros colocados na corrida eleitoral: Fernando Henrique Cardoso, Luiz Inácio Lula da Silva e Ciro Gomes.

Em declaração ao Jornal do Brasil, o advogado João Marcos Flaquer, ex-líder da organização, declarou apoio e voto a Enéas Carneiro nas eleições de 1994. No entanto, criticou a “xenofobia das estatais” do projeto político do Prona. Cf. JORNAL DO BRASIL. A nova direita vocifera: “Meu nome é Enéas”. 18.9.1994, p. 48. 10

KING, Dennis. Lyndon LaRouche and the New American Fascism. Nova Iorque/Londres: Doubleday, 1989.

11

164


Está escrito aqui: o presidente candidato é apoiado por George Soros, o maior dos narcotraficantes, segundo a revista EIR [Executive Intelligence Review]. O candidato do PT assinou, lá fora, um documento a favor da legalização das drogas. Um terceiro, diz [trecho do HGPE de Ciro Gomes] “que não tenho rabo preso nas mãos dos interesses da especulação internacional” [Enéas Carneiro] mas assina, junto com os outros dois candidatos, um documento de submissão do Brasil às grandes potências. O senhor quer ver seu filho comprando cocaína na porta da escola? A decisão é sua. Meu nome é Enéas, 56!12

É possível afirmar que — a partir de uma base comum (composta pelos quatro itens listados anteriormente) relacionada à estrutura da legenda desde sua construção — o Prona desenvolve um processo contínuo de formação de uma identidade política, em torno dessas interações em um setor do campo político, consolidando-se como um referencial para mediar a vaga da direita radical após o fim do regime militar.13 À medida que o Prona se estabelece como essa alternativa ou referencial, existe a tentativa de compreender, sobretudo pelos meios de comunicação, o partido e seu crescimento à luz dos partidos da direita radical europeia, em especial o Front National de Jean Marie Le Pen, seja pelo discurso nacionalista, seja pela característica de liderança incontestável na estrutura partidária. Considerando que essas questões coincidem com o processo eleitoral que leva à atividade do partido na Câmara dos Deputados, é necessário tecer breves considerações. Existem algumas semelhanças, assim como algumas diferenças, entre o Prona e os partidos de extrema direita pós-industrial na tipologia “clássica” delineada por

12 INSTITUTO FERNANDO HENRIQUE CARDOSO. Programa de Propaganda Partidária, 1.10.1998. Disponível em: <http://acervo.ifhc.org.br>. Acesso em: 10.7.2015. 13 Tomando a noção dos partidos políticos como esferas de mediação, é necessário compreender que a arena legislativa não é o único — talvez tampouco o principal, em determinada conjuntura — espaço de atuação de setores conservadores. Para uma análise diversificada da questão, cf. PATSCHIKI, Lucas. Os litores da nossa burguesia: o Mídia sem Máscara em atuação partidária (20022011). Dissertação (Mestrado em História. Unioeste, 2012.

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Piero Ignazi14 na década de 1990. Em comum, o discurso crítico ao individualismo na sociedade moderna e às políticas em respeito às minorias (LGBT, por exemplo); em contrapartida, a defesa de um retorno à ordem, amparada em valores tradicionais de uma coletividade que, em grande medida, é estruturada em torno da nacionalidade. Há, contudo, uma diferença substancial em relação às formatações partidárias da então “nova extrema direita” europeia. Ao contrário da crescente aversão ao Estado forte e centralizador e também a algumas dinâmicas do welfare state, o Prona preconizava, desde os momentos iniciais de sua trajetória, a defesa da ação intervencionista do Estado como forma de regulagem não apenas da economia, mas também considerando os descompassos da sociedade brasileira. Assim, existe a necessidade do aumento da presença do Estado na política nacional, entrelaçando a existência de um Estado forte com a garantia da manutenção da própria nacionalidade brasileira. Nesse ponto, cabe mais um diferencial significativo do Prona em relação a partidos europeus como o Front National (em seus momentos iniciais), ou até exemplos mais recentes, como o Partido Nacional Renovador português. Além da proposição em defesa de um “Estado forte, técnico e intervencionista”, a dimensão da nacionalidade é estabelecida de acordo com os limites desse Estado. Logo, para ser brasileiro(a) bastaria estar inscrito em um território determinado e sob uma jurisprudência específica, em que somente essa última condição poderia eventualmente variar de acordo com as definições constitucionais. A ameaça à nacionalidade, seja por inimigos internos ou externos, está relacionada à soberania nacional que, por sua vez, enxerga o Estado como órgão provedor ou, em última instância, protetor. No caso da determinada tipologia dos partidos europeus, a nacionalidade está atrelada à noção de identidade que pode, inclusive, transcender as definições do Estado nacional moderno e a própria modernidade. Logo, a “identidade francesa” ou “identidade portuguesa” está muito além das dimensões do Estado em termos de historicidade ou mesmo de definição

14 IGNAZI, Piero. The Crisis of Parties and the Rise of New Political Parties. Party Politics, v. 2, 1996, pp. 549-566; ________. The silent counter-revolution: Hypothesis on the emergence of extreme rightwing parties in Europe. European Journal of Political Research, n. 22, 1992, pp. 3-34.

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de seus limites, pois é essa identidade que auxilia a catalisar o ritmo da história nacional. Dessa maneira, tomando o Front National como um tipo ideal, o Prona se assemelha sobretudo em relação à dimensão de contestação e contrariedade ao estado das coisas, embora os alvos ou inimigos sejam diversificados, assim como o modelo alternativo proposto. Uma das diferenças fundamentais reside na inexistência de uma afirmação identitária, pois o Prona não está a tratar em termos de “Brasil para brasileiros” ou “América Latina para Latino-americanos”, ao menos não de modo enunciado. Isso explica, em parte, porque o caso brasileiro se diferencia em termos como xenofobia, racismo e antissemitismo. Em termos de outras tipologias dos partidos políticos, o Prona se diferencia do “partido não partidário”, na acepção de Piero Ignazi (1996), isto é, um partido voltado à aspiração de seu líder, sem um programa ou ideologia bem definidos. Contudo, é possível encontrar algumas similaridades na definição de anti-party party proposta por Cas Mudde (1996).15 De modo geral, essa tipologia pode abranger dois subgrupos distintos, embora eles possam ser interconectáveis por razões pragmáticas ou ideológicas. Um dos subgrupos compreende agremiações que rejeitam os partidos enquanto instrumento de negativa absoluta daqueles como instituição de representação — e também, em última instância, sua perspectiva democrática. A outra subdivisão compreende partidos que utilizam do sentimento e retórica discursiva “antipartido” como estratégia política e recurso eleitoral. Embora um partido político possa transitar entre as duas categorias, há uma clara divisão entre intensidade e natureza, seja estratégica ou ideológica. Os partidos que defendem a extinção de todos os partidos cumprem uma agenda política definida e expressa, com traços que remetem aos fascismos históricos (o próprio Integralismo brasileiro é, sem dúvida, um representativo do gênero). Dessa maneira, o segundo grupo pode compreender tanto um caráter antagônico ao primeiro, quanto uma tentativa deliberada de afastamento da questão 15 MUDDE, Cas. The paradox of the anti-party party: Insights from the Extreme Right. Party Politics, v. 2, n. 2, 1996, pp. 265-276.

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neofascista. De qualquer maneira, guardadas as devidas particularidades daquelas delineadas por Mudde (1996), o Prona constitui-se, desde o momento de sua fundação, como um partido antipartido que o fez enquanto crítica aos procedimentos das outras agremiações e de construção de sua identidade, mas também instrumento na disputa por algum provável capital político. Negava-se o caráter dos partidos políticos adversários (por antipopulares, antidemocráticos, profissionais, etc.), sem que, contudo, houvesse uma sistemática crítica aos partidos políticos enquanto instituição ou mesmo como negação da democracia representativa, algo que porventura assemelharia o Prona à definição do fascismo histórico ou de grupos neofascistas.16 De acordo com essa perspectiva, o partido liderado por Enéas Carneiro buscaria, desde o contexto de 1989, a condição de representante “legítimo” e institucional desse sentimento. A base argumentativa residia justamente na contínua e quase perene candidatura de seu líder à Presidência da República, nos anos de 1989, 1994 e 1998, definindo a unicidade da natureza política e ideológica do partido. Assim, o fato de Enéas Carneiro disputar as eleições para a Prefeitura de São Paulo, em 2000, sobretudo para o legislativo federal, em 2002, acaba por quebrar o padrão da estrutura partidária, principalmente de uma narrativa construída por mais de uma década. Esse quarto período (2002-2006), compreendendo dois processos eleitorais, coincide também com a interação de grupos neointegralistas com o Prona. No entanto, é necessário considerar que essa relação independe das modificações de estratégia eleitoral do partido, pois os grupos neointegralistas passam a se rearticular

16 Essa questão merece atenção detalhada, em análise a ser realizada futuramente, mas, doravante, considerando as similaridades em termos do ultranacionalismo, é possível situar alguns elementos que diferenciam o Prona do modelo do fascismo genérico. Seja em relação ao partido forte, disciplinado e militante, seja em relação ao apelo às massas, traços componentes dos fascismos no entreguerras. Por sua vez, o Prona buscava um discurso mais elitista (ou o elogio à elite componente da hierarquia partidária) e conservador, cuja autoridade residia na liderança de Enéas Carneiro a partir de uma trajetória pessoal/política, não decorrente exclusivamente da mobilização e tutela popular. Além disso, o reordenamento nacional prevê uma estrutura autoritária e burocrática de ordem, mas não a criação ou renascimento de uma nacionalidade, fundamento essencial aos fascismos, se pensarmos em termos do elemento palingenético de acordo com a definição de Roger Griffin (GRIFFIN, Roger. The Nature of Fascism. Londres: Pinter, 1991, p. 26).

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a partir dos anos 2000, principalmente após o “I Congresso Integralista para o século XXI”.17 É a partir da rearticulação integralista e da atuação da Frente Integralista Brasileira (FIB) que esses militantes poderão interagir de modo mais efetivo não apenas com o Prona e Enéas Carneiro, mas também com outros grupos do mesmo campo, como as organizações larouchistas, os militares da reserva, os grupos skinheads, etc. A partir desses quadros complementares — ou fases distintas das interações políticas — que ocorrerá, entre 2002 e 2006, as atividades legislativas do Prona. Com a votação expressiva de Enéas Carneiro em 2002 (também chamado de “Efeito Enéas” pelos meios de comunicação), o partido formou uma pequena bancada: Enéas Carneiro, Elimar Máximo Damasceno, Amauri Robledo Gasques, Irapuan Teixeira, Ildeu Alves de Araújo e Vanderlei Assis de Souza. O Prona na Câmara dos Deputados A despeito da expressiva votação e do possível aumento de poderio do Prona, a bancada partidária, em sua extensão original, durou por um curto período de tempo, pois recrudesceu para uma dupla de deputados. Após um ano de mandato, Irapuan Teixeira, Ildeu Araújo, Vanderlei Assis e Amauri Robledo Gasques romperam com a legenda, passando os três primeiros ao Partido Progressista (encabeçado por Paulo Salim Maluf) e o último ao Partido Liberal. Mesmo antes da transição para outros partidos mais profissionais (ou com bancadas mais expressivas), a participação dos quatro deputados do Prona foi pouco efetiva no que diz respeito à defesa das bandeiras tradicionalmente reivindicadas pela agremiação. Amauri Gasques e Vanderlei Assis não apresentaram nenhum Projeto de Lei (PL). Irapuan Teixeira e Ildeu Araújo apresentaram um projeto

17 Realizado na capital paulista, o evento ocasionou a fundação de três grupos integralistas distintos: a Ação Integrista Revolucionária, o Movimento Integralista e Linearista Brasileiro e a Frente Integralista Brasileira (FIB), sendo esta a mais fiel aos princípios doutrinários do integralismo dos anos 1930. A FIB é também a principal organização neointegralista ao longo do século XXI. Sobre essa questão, cf. CARNEIRO, Márcia Regina da Silva Ramos. Do sigma ao sigma — entre a anta, a águia, o leão e o galo — a construção de memórias integralistas. Tese (Doutorado em História). UFF, 2007.

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cada um, respectivamente os PL 2415/2003 (concessão de revalidação de diplomas do exterior por universidades públicas e privadas) e PL 771/2003 (dispunha sobre a necessidade de direção defensiva nos cursos de formação de condutores de veículos automotores). Os dois projetos não foram aprovados. Assim, a representação do Prona na Câmara dos Deputados esteve composta, em parte substancial, apenas por Enéas Carneiro e pelo colega de partido (e profissão), Elimar Damasceno. A atividade legislativa de Enéas Carneiro pode ser descrita como pouco participativa em termos de projetos de lei (dois PL’s: 4856/2005 e 3960/2004), mas bastante ativa no cotidiano da Câmara dos Deputados, com mais de 50 intervenções no púlpito e no plenário (45 “ordens do dia”; uma comunicação parlamentar; uma homenagem, dois “grandes expedientes” e um “pequeno expediente”18). Nessas intervenções, é possível notar a continuidade de um projeto político iniciado em 1989 e fases subsequentes. A defesa de um projeto nacionalista envolvia itens como: a crítica à adesão do Brasil ao Tratado de Não Proliferação da Armas Nucleares, a divulgação de textos produzidos pela imprensa larouchista (EIR),19 assim como a preocupação em relação aos interesses dos EUA no Brasil, em função do potencial hídrico. 20 A tônica ultranacionalista envolvia também a denúncia conspiracionista, de modo que o líder do Prona defenderia o rompimento com os EUA e os “donos do mundo” 21 como estratégia geopolítica, atrelada ao fortalecimento das Forças Armadas. Sobretudo pela questão militar, existiu um processo de aproximação de Enéas Carneiro com outro político da direita radical: Jair Messias Bolsonaro (então filiado ao Partido Progressista). No entanto, embora Enéas Carneiro concordasse com o deputado federal e militar reformado, fazia ressalvas quanto ao estilo de linguagem

18 Dados obtidos a partir de pesquisa nos sites <http://www.camara.leg.br> e <http://www.camara.gov.br>.

da

Câmara

dos

Deputados:

19 Diário da Câmara dos Deputados, 13.11.2003, p. 61370. 20 Diário da Câmara dos Deputados, 19.3.2002, p. 2799. 21 Diário da Câmara dos Deputados, 28.3.2002, p. 10728.

170


adotado por Bolsonaro: “linguagem — considero eu — um pouco rígida, talvez despida de figuras de sintaxe ou retórica, mas sincera”.22 É fortuito considerar que esses elementos do discurso político já estavam presentes na trajetória do Prona, contudo era necessário que fosse efetivada uma maior interação, justamente devido às disposições do trâmite político do legislativo, pois passavam a engendrar tanto uma colaboração efetiva para além do monopartidarismo característico da carreira do líder partidário, como o pouco diálogo institucional, em termos de legendas partidárias, na trajetória do Prona até aquele momento. Enéas Carneiro reconhecia (ou haveria de reconhecer) a similaridade de seus discursos e ideias aos de determinados setores do campo político nacional, inclusive àqueles com representatividade política, algo tão criticado em outros momentos. A temática moralizante e conservadora, traço marcante da trajetória política de Enéas Carneiro, surge também quando o líder do Prona na Câmara discorre sobre um Projeto de Lei, de autoria do Deputado Fernando Gabeira (Partido Verde), que dispunha sobre a legalização e regulamentação da prática da prostituição. Ao criticar o projeto, Enéas Carneiro situou a prostituição e a homossexualidade como desvios morais parametrizáveis ao uso de drogas. Assim, a sua eleição, mediante votação expressiva, era, no entendimento de Enéas Carneiro, uma manifestação conservadora em repúdio à difusão desses valores “anormais”. Excelência, vivemos uma época, quero crer que não há dúvida quanto a isso, em que temas como prostituição, drogas, homossexualismo são apresentados quase que como variantes normais. Percebo que há, cada vez mais, não só tolerância, como aplauso. Preocupa-me isso. Quando eu digo preocupa-me, preocupa a mim e a 1 milhão e meio de pessoas que acreditaram em mim, numa votação isolada, falando pela televisão (DIÁRIO DA CÂMARA DOS DEPUTADOS, 14.8.2003, p. 38469).

22 Diário da Câmara dos Deputados, 24.10.2003, p. 57047.

171


A tônica conservadora passa a ser não apenas um elemento de identidade política individual e partidária, mas também um instrumento de articulação com outros deputados de perfil semelhante e atuantes na mesma legislatura. É significativo observar que, justamente no dia 31 de março de 2004 (portanto 40 anos após o golpe de Estado de 1964), Enéas Carneiro utiliza o momento para conciliar críticas ao então presidente da República (PT) e elogios ao deputado João Alberto Fraga (Partido da Frente Liberal). Ao tecer considerações positivas (e somente uma crítica pontual) ao regime militar e à “revolução” de 1964, bem como discorrer sobre a suposta falsa natureza da democracia brasileira, Enéas Carneiro menciona também o fato de o então Presidente ter sido opositor ao regime implantado em 1964. No dia de hoje, 31 de março — há quatro décadas, neste mesmo dia, houve uma revolução que mudou os destinos desta Pátria —, faço questão absoluta de trazer à baila algumas questões que, do meu ponto de vista, têm importância primacial. Primeiro, é normal e comum que os meios de comunicação citem esta data como um retrocesso. Hoje à tarde, assisti ao pronunciamento do nosso colega Deputado Coronel Fraga e quero dizer de público que endosso in totum aquele pronunciamento bastante longo. É claro que os militares fizeram coisas ruins, sem dúvida, como o cerceamento da liberdade de expressão. Mas também fizeram muitas coisas boas, como a promoção do desenvolvimento da infraestrutura, das telecomunicações, entre outros grandes investimentos que pouco a pouco foram solapados pelos governos ditos democráticos que se sucederam. E o mais curioso — é importante que se faça justiça — é que os indivíduos que naquela época foram guerrilheiros, responsáveis por ações terroristas, hoje estão no centro do poder (DIÁRIO DA CÂMARA DOS DEPUTADOS, 1.4.2004, p. 14070).

Esse procedimento sinaliza uma modificação não apenas de conduta parlamentar, mas também de narrativa política. Se, durante as campanhas presidenciais, Enéas Carneiro se gabava da inexistência de alianças espúrias que tipificariam o político profissional (do qual ele supostamente jamais repetiria os gestos e atitudes), o processo legislativo não somente propulsionou a interlocução

172


com as proximidades político-ideológicas disponíveis, como também determinou a necessidade de se buscar terrenos consensuais e aproximações não residuais, pois, caso contrário, o Prona estaria relegado à periferia da própria periferia/marginalidade do campo político-partidário. Contudo, em termos de Projetos de Lei, a atuação de Enéas Carneiro esteve restrita às relações intrapartidárias (isto é, com o deputado Elimar Máximo Damasceno). O Projeto de Lei 3960/2004 previa a substituição, em todo o território nacional, dos combustíveis derivados do petróleo por aqueles produzidos a partir da biomassa (óleos vegetais, bagaço da cana, biogás, etc.), dentro de um prazo de cinco anos, sendo 40% desse montante ao longo dos dois primeiros anos. Por decorrência, caso aprovado o PL, as montadoras de veículos automotores teriam que readequar a linha de produção às determinações da lei, que estimava a criação de, no mínimo, dez milhões de novos empregos. Já o PL 4856/20005 visava a diminuição do hábito fumígeno em todo território nacional. De acordo com a proposta, seria vedada a comercialização de qualquer produto alimentar apresentado sob forma de cigarros, charutos, cigarrilhas ou outro hábito tabagista. De fato, a causa antitabagista era uma bandeira defendida por Enéas Carneiro, mesmo antes de adentrar à vida política. De acordo com tal justificativa, a medida diminuiria o apelo do ato de fumar entre jovens e adolescentes. As duas propostas foram arquivadas. Em termos propositivos, a atividade legislativa de Enéas Carneiro foi pouco participativa. Em última instância, o mandato serviu ao propósito de manter Enéas Carneiro evidente no cenário político, repetindo as propostas de um projeto grandioso em seus enunciados, embora fundado e articulado em torno de dualismos contrastantes e relativamente simplistas (o bem contra o mal, a verdade contra a mentira, e assim por diante). A tentativa ou tentação de Enéas Carneiro à presidência era condição iminente, o que explica, em parte, a sua pouco intensa atividade legislativa. Essa informação veio a ser confirmada pelo próprio deputado em meados de 2006. 23 No

23

Diário da Câmara dos Deputados, 6.4.2006, p. 17911.

173


entanto, por questões de saúde, o líder do Prona acabou por se candidatar à reeleição. Eleito, não chegou a desempenhar atividade legislativa, pois faleceu em 2007, quando o Prona já estava extinto. Além de Enéas Carneiro, somente Elimar Máximo Damasceno cumpriu o mandato de deputado federal junto ao Prona. Embora fosse membro titular do Diretório Nacional do partido desde 1994, mesmo ano em que havia disputado eleição para deputado federal pelo estado do Rio de Janeiro, o médico Elimar Máximo Damasceno não era um personagem central no encaminhamento político do partido, tanto em virtude da ausência de menções ao seu nome nos escritos ou discursos de Enéas Carneiro, como das articulações com outras organizações políticas próximas à agremiação. No entanto, o fato de ter exercido o mandato parlamentar integralmente junto ao Prona e a Enéas Carneiro determinou o aumento exponencial da importância de seu mandato. Seria uma espécie de fiel escudeiro de Enéas Carneiro. Além disso, Elimar Damasceno foi o mais ativo dos deputados do Prona, tanto em matéria legislativa (isto é, a criação de Projetos de Lei e afins), como em participação nos trâmites

diversos

da

Câmara

dos

Deputados.

Foram

contabilizadas

74

comunicações parlamentares, 71 homenagens, 34 ordens do dia, 78 grandes expedientes, 55 pequenos expedientes, cinco breves comunicações e 77 Projetos de Lei, sendo 71 de autoria própria. O transcurso parlamentar de Elimar Damasceno foi marcado pelo intenso conservadorismo, inclusive em relação aos demais parlamentares eleitos pelo Prona, ou mesmo em relação a Enéas Carneiro. Atrelado sobretudo às tradições e compreensões oriundas do cristianismo de orientação conservadora — mais propriamente de inspiração católica —, o mandato de Elimar Damasceno trouxe propostas polêmicas, inclusive cumprindo com os eventuais anseios de grupos neofascistas. Sua contínua participação na Câmara Federal foi marcada não somente pela criação de Projetos de Lei, mas também por diversas menções de repúdio às “ações contra a cristandade”, além da defesa da concepção tradicional de família e do direito à vida. Dessa maneira, Elimar Damasceno efetivaria o embate político com 174


movimentos sociais favoráveis à legalização do aborto, com grupos feministas ou com aqueles que defendiam os direitos dos homossexuais. É possível afirmar que essa premissa esteve presente no Prona desde as campanhas presidenciais de Enéas Carneiro, quando utilizava uma base supostamente científica (da área médica, não da antropologia ou da história, por exemplo) para sustentar a retórica homofóbica. Em contrapartida, o discurso de Elimar Damasceno adquiriu feições mais incisivas se comparado ao de Enéas Carneiro, estruturando-se sob argumentos moralizantes não pretensamente científicos e assumindo efetiva posição de embate aos movimentos sociais e organizações LGBT. Elimar Damasceno chegou, inclusive, a propor medidas legais de impedimento aos direitos civis dos homossexuais, mediante Projeto de Lei 2279/2003, que visava a proibição do beijo em público entre casais homoafetivos, sob o argumento de que tal ato configurava lascívia e contrariedade aos preceitos divinos. Ademais, era também uma espécie de contrapartida à atuação política dos movimentos

sociais,

argumento

inclusive

utilizado

na

apresentação

da

fundamentação (e promoção) da proposta. A proibição do beijo entre casais homossexuais seria apenas mais um item da extensa lista dos 77 projetos de Lei propostos por Elimar Damasceno, que incluiria, além da proposta de proibição de mudança de prenome em casos de transexualidade (PL 5872/2005), a criação de uma central de atendimento telefônico destinada a atender denúncias de abortos clandestinos (PL 849/2003). Dessa maneira, as propostas de teor homofóbicas complementariam aquelas de combate às habituais reivindicações feministas e as oriundas de diversos movimentos sociais. Essas propostas traspassaram os limites partidários e estabeleceram cooperações no campo do conservadorismo político na Câmara dos Deputados, em que a própria condição do Prona demonstrava que não haveria uma unidade partidária (ou somente um partido político), mas uma pulverização entre diversos mandatos dispersos em inúmeras agremiações. Tal questão é corroborada pela matéria legislativa do deputado do Prona que expõe, além das propostas de Elimar Damasceno, outras duas em coautoria com 175


Enéas Carneiro, uma com Jair Bolsonaro (PP), duas com o deputado pastor Reinaldo e uma com Osmânio Pereira, ambos filiados ao Partido Trabalhista Brasileiro. Juntamente com Osmânio Pereira, Elimar Damasceno redigiu o PL 6150/2005, denominado “Estatuto do Nascituro”, que previa a determinação de personalidade jurídica ao feto após o nascimento com vida e natureza humana desde a concepção (inclusive in vitro, clonagem ou qualquer outra modalidade possível). Na prática, a proposta, caso aprovada, proibiria pesquisas com células-tronco embrionárias e penalizaria qualquer modalidade de aborto, inclusive em casos de gestação advinda de estupro ou de má formação do feto. Apesar de arquivado, o projeto original seria apresentado, com ligeiras modificações, por deputados em outras legislaturas. Em parceria com o deputado pastor Reinaldo, do PTB/RS, foram apresentados dois Projetos de Lei — o PL 5906/2005 previa o aumento de pena dos crimes contra costumes que caracterizassem incesto, ao passo que o PL 5907/2005 determinava que as empresas de planos de saúde deveriam fornecer cobertura obrigatória aos procedimentos cirúrgicos destinados à reversão de esterilização cirúrgica (laqueadura e vasectomia). Em contrapartida, o Projeto de Lei em coautoria com Jair Bolsonaro diferiria das abordagens sobre temas como aborto, reprodução ou homossexualidade. O PL 5508/2005 propunha que o Livro dos heróis da pátria recebesse a inscrição do nome de Mário Kozel Filho, militar morto em ação praticada pela organização de esquerda armada, Vanguarda Popular Revolucionária, durante o regime militar. Dessa maneira, Elimar Damasceno se apropria, a partir de seu mandato, de uma estratégia política da extrema direita mais recente: a releitura do regime militar e a crítica à esquerda brasileira, não apenas das organizações praticantes da resistência armada ao regime militar. Elimar Damasceno concebia a questão dentro de uma problemática de amplitude internacional, sobretudo na América Latina. É nesse sentido, inclusive, que comemora a concessão de indulto à prisão do militar cara-pintada (e larouchista) argentino, Mohamed Ali Seineldín, aproveitando para

176


elogiar um suposto processo de conciliação entre Forças Armadas e sociedade civil na Argentina.24 Esse processo de conciliação, para Elimar Damasceno, era reflexo da ausência de políticas de reparação e decorria da condição e prática democrática na Argentina. Somente um regime efetivamente democrático seria capaz de esquecer e silenciar o passado traumático. Dessa maneira, o deputado brasileiro empreende um paralelo definitivo: o Brasil deveria repercutir o “sucesso” do caso argentino. No dia 03 de outubro de 2005, Elimar Damasceno homenageia Oliveira Vianna, afirmando que “No momento em que o País busca ardentemente modelos de vida que possam inspirar a nossa educação e a nossa cultura, Oliveira Vianna surge com força, com atualidade — um autêntico, voraz e corajoso intérprete da realidade brasileira da primeira metade do século XX”.25 Já no dia 27 de junho de 2006, seria a vez de Elimar Damasceno homenagear Jackson de Figueiredo, ressaltando o papel da revista A Ordem no combate ao comunismo, ao liberalismo e à maçonaria, além da incessante busca pela recatolização do Brasil.26 Não obstante, foi a partir do Integralismo que Elimar Damasceno explicitou maior grau de aproximação ideológica, produzindo homenagens, elogios e apresentações da doutrina, além de comemorar a trajetória política de alguns camisas-verdes e integralistas de diversas organizações. A primeira menção de Elimar Damasceno ao Integralismo ocorreu em 18 de junho de 2003, quando o deputado homenageou Gustavo Barroso, um dos principais nomes da Ação Integralista Brasileira (AIB) durante a década de 1930. No discurso, foi concedido destaque especial à obra Brasil, colônia de banqueiros, descrita como a principal obra teórica do Integralismo; da mesma maneira, Gustavo Barroso foi denominado por Elimar Damasceno como maior doutrinador da AIB.27

24

Diário da Câmara dos Deputados, 8.5.2004, p. 20995.

25

Diário da Câmara dos Deputados, 4.10.2005, p. 48169.

26

Diário da Câmara dos Deputados, 28.6.2006, p. 32168.

27

Diário da Câmara dos Deputados, 19.6.2003, p. 28414.

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Nesse ponto, é necessária uma breve reflexão sobre o elogio ao Integralismo e sua possível inspiração para o deputado do Prona. É possível que a decisão de Elimar Damasceno em mencionar inicialmente Gustavo Barroso não foi ato despropositado ou mero fruto do acaso. A crítica do integralista ao judaísmo internacional adquire, em certos aspectos, semelhanças com as críticas ao Sistema Financeiro Internacional, elemento recorrente no discurso do Prona, sobretudo na campanha presidencial de Enéas Carneiro, em 1998. Esta relação pode ser notada, também, na afirmação do livro de Gustavo Barroso como principal obra teórica da AIB.28 Brasil, colônia de banqueiros seria, dessa maneira, politicamente útil para o deputado do Prona, pois a interpretação da narrativa de Gustavo Barroso estabelecia a paridade entre discursos conspiracionistas — em obra com encadeamento histórico, permeada de denúncias acerca das falências financeiras — assim como a necessidade da quebra do monopólio dos poderes invisíveis nos ditames essenciais da nação brasileira. Dessa maneira, ainda que Brasil, colônia de banqueiros não fosse a obra fundamentalmente teórica do integralismo de Gustavo Barroso, tampouco o principal título do Integralismo (que foi, muito provavelmente, A psicologia da revolução, de Plínio Salgado), era aquela que mais se aproximava do discurso de nacionalismo econômico de Enéas Carneiro e demais membros do Prona, inclusive por sua tentativa de narrativa da história econômica do Brasil atrelada aos interesses de uma conspiração internacional. No dia 21 de agosto de 2003, Elimar Damasceno proferiu discurso em homenagem à cidade de São Bento de Sapucaí, no interior paulista. Na ocasião, afirmou o deputado do Prona: “Distingue-se […] também por ser a cidade natal de dois dos mais notáveis nomes do País, cujas vidas e obras elevam ao expoente

Embora tenha sido uma das mais famosas obras integralistas de Gustavo Barroso, Brasil, colônia de banqueiros não era necessariamente aquela que havia sido pensada pelo autor como a contribuição fundamentalmente teórica à doutrina do Sigma. Na realidade, o principal aporte teórico de Gustavo Barroso ao Integralismo ocorreu a partir do lançamento de O quarto império, obra em que o autor divide a história da humanidade em quatro estágios, tratando do processo de declínio, degeneração e regeneração, condição última ao qual o Integralismo deveria remeter sua filosofia e movimentação política para o renascimento da nação. 28

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máximo a história, a cultura e a inteligência nacional: Miguel Reale e Plínio Salgado”. 29 Após quatro dias, Elimar Damasceno realizou um discurso em homenagem a Miguel Reale, no qual traçou a trajetória política e intelectual do jurista e ex-líder integralista, desde os anos de participação na Sociedade de Estudos Políticos, fundada por Plínio Salgado, até o cargo de ministro do Supremo Tribunal Federal. Ao fim da biografia, Elimar Damasceno ressaltou a vinculação integralista de Miguel Reale. A homenagem a Plínio Salgado ocorreu no dia 16 de julho de 2003, quando Elimar Damasceno apresentou uma releitura da trajetória do líder integralista. No texto que compunha a homenagem, é possível averiguar a concordância do deputado do Prona com o processo de construção da memória pelos militantes integralistas (e com a visão militante dos fatos), em que o exílio de Plínio Salgado em Portugal não havia sido decorrência da tentativa de golpe contra o Estado Novo, mas de um ato covarde de Getúlio Vargas. De certa maneira, os pronunciamentos de Elimar Damasceno ofereceriam espaço cativo para a comemoração da memória integralista sob o ponto de vista militante, de modo que é possível pensar esses momentos como espécies de eventuais lugares de memória. Além desses episódios, o Integralismo foi mencionado no decorrer das eventuais homenagens aos principais líderes da AIB e a outras personalidades políticas que tiveram relações com o movimento integralista em diversos momentos. Ao homenagear Cassiano Ricardo, Elimar Damasceno testifica a colaboração com Plínio Salgado no movimento modernista,30 e ao reverenciar Gerardo Mello Mourão, o deputado ressalta a fase integralista do autor,31 do mesmo modo como ocorreria ao tratar da biografia de João Cândido, líder da Revolta da Chibata.32 Assim, as homenagens de Elimar Damasceno às lideranças integralistas não se restringiam aos principais nomes da AIB, tampouco aos integralistas de uma só organização, mostrando a grande amplitude da “doutrina do Sigma” em vários momentos do período republicano. 29

Diário da Câmara dos Deputados, 22.8.2003, p. 39505.

30

Diário da Câmara dos Deputados, 23. 1.2004, p. 1402.

31

Diário da Câmara dos Deputados, 30.1.2004, p. 2807.

32

Diário da Câmara dos Deputados, 3.9.2005, p. 43581.

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Abel Rafael, membro do Partido de Representação Popular de Minas Gerais, por exemplo, foi elogiado pela perseguição aos professores “marxistas” da Universidade de Brasília durante o regime militar, em ato que seria, para Elimar Damasceno, reflexo ou decorrência direta de uma inspiração integralista. Notabilizou-se pelas firmes posições adotadas contra professores da Universidade de Brasília, logo após a Revolução de 1964, quando se pôs fim à anarquia que se instalava no Brasil. Identificado com os ideais integralistas, lutou acirradamente contra a predominância do pensamento marxista no ambiente universitário. Ofereceu-se de público para colaborar com o expurgo que julgava necessário no sentido de restabelecer a importância de valores como a defesa da pátria, a liberdade e a conduta cristã. Foi assim que o ex-Deputado Abel Rafael passou à história: como intransigente defensor da democracia e da liberdade, em um momento crucial da história do Brasil (DIÁRIO DA CÂMARA DOS DEPUTADOS, 8.12.2006, p. 54535).

Em 2003, o deputado do Prona presta homenagem póstuma a Maria Amélia Salgado Loureiro, única filha do chefe nacional integralista, citando sua obra Plínio Salgado, meu pai. Por fim, a penúltima comunicação do mandato de Elimar Máximo Damasceno foi um discurso em homenagem a Gumercindo Rocha Dórea, militante integralista de longa data e criador da editora “Edições GRD”, principal veículo de publicação de obras integralistas desde o período do pós-guerra (inclusive da obra de Maria Amélia Salgado) até os dias atuais.33 Todavia, a exposição de Damasceno curiosamente priorizou uma outra peculiaridade da atividade de Gumercindo Rocha Dórea: o pioneirismo na publicação de obras de ficção científica no mercado editorial brasileiro. É necessário compreender que as exposições, homenagens e discursos de Elimar Damasceno direcionados aos integralistas não eram apenas a rememoração de um movimento político (cívico e cultural) de um passado remoto e inalcançável, mas um evidente exercício de articulação política. Dessa maneira, o vínculo

Cf. CHRISTOFOLETTI, Rodrigo. A controvertida trajetória das Edições GRD — entre as publicações nacionalistas de direita e o pioneirismo da ficção científica no Brasil. Miscelânea/Unesp, v. 8. Assis, jul.-dez. 2010, pp. 208-222. 33

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construído o auxiliou a conferir um maior grau de autonomia em relação à liderança centralizadora de Enéas Carneiro, que, por sua vez, nunca se aproximou efetivamente dos “herdeiros” do movimento integralista, além de ter sido inspirado sobretudo por tendências e expressões diversas do nacionalismo autoritário brasileiro, não especificamente de Plínio Salgado e do Integralismo de corte fascista. Em contrapartida, ainda que não assumisse publicamente alguma filiação integralista, Elimar Damasceno foi uma espécie de representante dos camisasverdes na Câmara, de maneira que a repercussão dos “pronunciamentos integralistas” foi imediata no site da Frente Integralista Brasileira (principal grupo neointegralista), que reproduziu a íntegra dos discursos “integralistas” do congressista do Prona. Além disso, a organização neointegralista elogiou o Prona como “única legenda digna de votos pelos brasileiros conscientes”, 34 embora tenha lamentado a condição diminuta da legenda. A atuação parlamentar de Elimar Damasceno transitou principalmente entre o conservadorismo de inspiração integralista e cristã, a campanha pela completa criminalização do aborto, a crítica aos movimentos em defesas dos direitos civis dos homossexuais (criticando, inclusive, a utilização do arco-íris como símbolo LGBT) e o apelo aos militares. Em matéria de proposição de leis, esse quadro persistiu, embora tenha apresentado projetos como o PL 6431/2005, que instituiu o Dia Nacional da Verdade (1º de outubro). No entanto, dentre todas as 77 proposições do deputado mais ativo do Prona, apenas uma delas foi aprovada: o PL 955/2003, que determinou a inscrição do nome de Francisco Manuel Barroso da Silva (almirante comandante da Armada Brasileira na Guerra da Tríplice Aliança) no Livro dos heróis da pátria. Seja na aproximação com integralistas, na grande quantidade de Projetos de Lei redigidos e apresentados, no relativo distanciamento ao larouchismo (ao menos em relação a Enéas Carneiro) ou na relação com outros Deputados conservadores, essas dinâmicas indicam, além da existência de uma relativa mobilidade ideológica/discursiva do quadro parlamentar do Prona, a necessidade de Elimar FRENTE INTEGRALISTA BRASILEIRA. Lula e FHC: as duas faces de uma mesma mentira! Disponível em: <http://www.integralismo.org.br/novo/LULA%20E%20FHC.pdf>. Acesso em: 8.1.2016. 34

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Damasceno se afastar da sombra política de Enéas Carneiro, para criar uma trajetória política autônoma e independente, já que se candidataria à reeleição em 2006. Ainda assim, Elimar Damasceno persistiria fiel à liderança de Enéas Carneiro. Indício dessa dinâmica foi a publicação da obra Em defesa do cristianismo, da pátria, da cultura e da família,35 que reuniria discursos proferidos por Damasceno na Câmara dos Deputados. Apresentado por Enéas Carneiro, com prefácios dos deputados Severino Cavalcanti (PP, antigo presidente da Câmara) e pastor Jorge (PTB), o término do texto compunha uma nota de agradecimento ao presidente do Prona: “Muito obrigado, Dr. Enéas, por tudo. Muito obrigado, Senhor, pela vida do professor Enéas”, afirmava Elimar Damasceno, em um misto de reverência política e clamor pelo reestabelecimento da saúde do presidente da legenda. Considerações finais A partir da breve análise sobre a atividade legislativa dos deputados federais do Prona entre 2002 e 2006, é possível traçar algumas interpretações não apenas relacionadas ao quadro específico da agremiação, mas também a um setor mais amplo do campo político. Em primeiro lugar, é possível observar que diversas das interações entre grupos e tendências da direita brasileira e, de um modo mais amplo, do pensamento conservador, auxiliaram a moldar os discursos e atuações do Prona. Isso, no entanto, não significou a modificação estrutural do partido, que permaneceu atrelado fundamentalmente à liderança de Enéas Carneiro, de modo que a burocracia partidária não conseguiu produzir quadros alternativos a essa centralização. Para além do caráter imediato dos processos eleitorais, o declínio do partido ao longo do agravamento do problema de saúde de seu líder é um elemento que auxilia a compreender sua categorização em torno das tipologias apresentadas no decorrer do texto. Embora a liderança de Enéas Carneiro tenha sido um elemento aparentemente incontestável na trajetória partidária, é possível delinear algumas interpretações

DAMASCENO, Elimar Máximo. Em defesa do cristianismo, da pátria, da cultura e da família. Brasília: Centro de Documentação e Informação (Câmara dos Deputados), 2005. 35

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diversificadas em torno de estratégia ou mesmo de natureza ideológica. A atividade legislativa de Elimar Damasceno auxilia a compreender que existia um processo de interação entre grupos diversificados durante a construção do Prona como instrumento de mediação política. Assim, se não ocorreu um processo de “fascistização” do partido, isso pode ser explicado, por um lado, pela estrutura autoritária estabelecida em torno de Enéas Carneiro e pelo pouco tempo hábil para a manutenção ou aprofundamento dessa relação, se pensarmos em termos da fragilidade do neointegralismo ao longo da primeira década do século XXI. Por outro lado, o caso do Prona é elucidativo para ilustrar a fragmentação da direita brasileira, em especial das porções mais radicais e conservadoras, especialmente em uma conjuntura específica, ao longo do processo de transição democrática e dos anos iniciais da “Nova República”. Essa desarticulação deve ser entendida não apenas como uma fragilidade das estruturas partidárias, mas especialmente considerando os consensos que são estabelecidos nesse processo de transição. Logo, o fenômeno da “direita envergonhada” auxilia a compreender tanto esse caráter caleidoscópico, como as dificuldades de interação. Em contrapartida, é plenamente verificável, a partir de uma breve análise sobre as relações interparlamentares, como o conservadorismo brasileiro se articulará, no campo político, para além das legendas partidárias. Se elas continuam a existir, algumas com uma normatividade mais rígida em termos ideológicos do que as outras, esse processo de cooperação entre parlamentares de diversos partidos demonstra a existência de um padrão de comportamento em termos das bancadas, sejam aquelas defensoras do armamento da população civil (“bancada da bala”) ou mesmo de um conservadorismo de fundamentação religiosa (“bancada evangélica”, por exemplo). Assim, o período de atuação não parlamentar do Prona e sua atuação legislativa propriamente dita demonstram um intenso processo de articulação e diálogo entre grupos diversos da direita e grupos marginais com relação àqueles ligeiramente institucionalizados, inclusive em uma legenda com estrutura diminuta e relativamente rígida ou centralizadora. 183


Referências bibliográficas

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Argumentos y anhelos golpistas en los intelectuales de derechas en la Argentina del siglo XX. Una mirada de largo plazo Olga Echeverría1

Introducción En las páginas que siguen buscamos exponer los principales argumentos que los intelectuales de derechas esgrimieron para justificar y otorgar legitimidad a los recurrentes golpes de Estado que se produjeron en la Argentina del siglo XX. Haremos especial hincapié en los pronunciamientos de las derechas radicalizadas y de tendencia católica a través de sus propios medios de prensa, aunque debemos señalar que dichos argumentos fueron, muchas veces, compartidos por sectores políticos e ideológicos más amplios e incluso por la prensa masiva. Y, si bien no se ignorarán referencias a los otros golpes cívico-militares producidos a lo largo del siglo, por razones de espacio, nos centraremos en el análisis comparativo del primer golpe de Estado, es decir el que se inicia en septiembre de 1930 y el último, perpetrado el 24 de marzo de 1976, ya que entendemos que el cotejo de dos experiencias tan distanciadas en el tiempo permite ver la persistencia de premisas tanto como las innovaciones y al mismo tiempo invita a reflexionar sobre el escaso arraigo de las premisas democráticas en el entramado social de la Argentina,

1

IGEHCS/IEHS-UNCPBA y Conicet.

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especialmente en las clases medias y altas, que han acompañado y sostenido, muchas veces eufóricamente, los golpes de Estado y los regímenes antipopulares de ellos derivados. Antecedentes En 1880, Julio Argentino Roca asumió la presidencia de la Argentina bajo el lema "paz y administración" y logró alcanzar uno de sus principales objetivos al asegurar cierta estabilidad interna que ponía fin a la anarquía y conflictos previos, pero renunciaba a desarrollar juegos electorales libres y transparentes. El Partido Autonomista Nacional, articulado en torno poder de los gobernadores, dominó el escenario político durante 36 años, a través del control del sistema electoral bajo el influencia de políticos conservadores o reformistas, integrantes de una elite a la que se llamó "la generación del 80". Con el ingreso de la Argentina al mercado capitalista internacional y sus lógicas, se produjeron importantes transformaciones sociales, demográficas y económicas. La población creció de dos a casi ocho millones, nutrida por la gran ola de inmigración europea que llegó al país. La república que se construía era escasamente republicana (HERRERO, 2011), con un poder ejecutivo fuerte y centralizado que dejaba poco margen de maniobra a los partidos de oposición y a las demandas provinciales (BOTANA, 1994), el liberalismo argentino realmente existente fue mucho más conservador que lo que se sostenía discursivamente. Con las transformaciones económicas y sociales también crecieron las demandas y acciones políticas de las clases subalternas. Para 1910, año de festejos por el centenario de la Revolución de Mayo, la crisis del sistema político era inocultable, tanto como la distancia entre los discursos y las prácticas de gobierno. En ese contexto, algunos hombres de las elites, alarmados, sostuvieron que las “minorías espirituales superiores” debían dirigir moral y políticamente a la nación, en tanto otros, los llamados liberales reformistas, coincidían en la necesidad de reformar el sistema electoral, que era formalmente democrático pero notablemente excluyente en su práctica. Es decir, aunque fuese indirectamente, reconocían la ilegitimidad e impugnaciones que sufría el Régimen y pusieron en marcha el proceso reformista

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que culmino en 1912 con la sanción de una nueva ley electoral, denominada ley Saénz Peña. El reformismo liberal buscaba, un reordenamiento preventivo que le permitiera ganar legitimidad y, al mismo tiempo, conservar el poder. Para ello era necesario que la nueva ley electoral (basada en el voto secreto, obligatorio y universal masculino) fuera acompañada por la creación de un partido, orgánico y programático que superara la dispersión de las fuerzas conservadoras y fuera capaz de convocar el voto de las mayorías. No obstante, la participación política de las masas generaba profundos temores y escudándose en el concepto nación comenzaron a delinear un proyecto homogeneizador, elitista y anti mayoritario, que reinventaba, con nostalgia, el orden y la disciplina de antaño y se oponía a un presente que consideraban desmoralizado e irrespetuoso del orden y el estatus social, político y económico (ECHEVERRÍA, 2013, pp. 49-50). Así, apoderándose del término Patria y de sus símbolos, las élites se fueron reconvirtiendo, en contraposición a los inmigrantes y las clases subalternas nativas y comenzaron a presentarse bajo la denominación de “clase patricia” (TORRE, 2010), para buscar reaseguros del poder y comenzar a darle forma a un nacionalismo cultural, con el que pretendían fijar una supuesta identidad argentina auténtica que se expresaba a través de una conjunción de clasismo, xenofobia, nacionalismo, postulados conspirativos y pretendida aristocracia (DEVOTO, 2002). Sin embargo, el proyecto reformista fue fallido y en las elecciones de 1916, el representante de la Unión Cívica Radical, un partido de origen moderno, con vocación mayoritaria, ajeno a la estructura y a los recursos estatales, se alzó con la presidencia. Fue entonces cuando el nacionalismo fue tomando una dimensión política que se iría consolidando a través del tiempo y se expresaría con claridad en el primer golpe de Estado cívico militar de la historia contemporánea argentina y se mantendría vigente, con diferencias coyunturales, a lo largo del siglo (LVOVICH, 2003; BOHOSLAVSKY, 2008; MC GEE DEUTSCH, 1993 y 1999; BUCHRUCKER, 1987).

188


1930. El inicio de un ciclo Desde que Yrigoyen asumió la presidencia, en 1916, las elites habían mostrado una creciente incomodidad con la presencia plebeya en los espacios públicos

y

en

la

propia

casa

de

gobierno.

Sus

intelectuales

repetían

sistemáticamente que los reclamos políticos y sociales eran una amenaza al orden social establecido y que el presidente radical, lejos de ponerles un límite, los alentaba con su demagogia. A la democracia de voto universal masculino se sumaban otros procesos argentinos e internacionales, como las grandes huelgas de 1919 y 1921 acaecidas en el país o la Revolución Rusa y la Revolución Mexicana. Todos esos procesos fueron analizados y presentados como parte de una misma lógica y como una expresión evidente de los peligros de un orden trastocado que exigía la constitución de un campo antidemocrático dispuesto a actuar con severidad para volver las cosas a su lugar. Así se fue conformando un espacio heterogéneo y escasamente definido, que daba un salto desde las posturas culturalistas hacia la política y recuperaba argumentos de los primeros nominadores de los males de la Argentina (KOZEL, 2008), es decir de aquellos que comenzaron a instalar la idea del fracaso argentino en los imaginarios sociales y políticos del país, al tiempo que sumaba nuevas perspectivas y propuestas marcadas, en buena medida, por el clima de la época. Por tal razón, los intelectuales, un grupo de ellos, que paulatinamente se iban definiendo a favor del antidemocratismo, jugarían un papel destacado, sobre todo a partir de sus esfuerzos por sistematizar la crítica al gobierno radical y por sus argumentos a favor de la necesidad de reorganizar al país y devolverlo a su destino de grandeza (ECHEVERRÍA, 2009, pp. 13-28). La llegada de Yrigoyen a su segunda presidencia, en 1928, luego de un período presidencial en manos del ala conservadora de la UCR, desató un desasosiego y un sentido de frustración inocultable que se transformó en una experiencia insoportable para muchos de los escritores de derecha que no sólo veían malograrse sus anhelos de poder sino también que se sentían inquietos por el arribo de advenedizos al selecto universo de los pensantes. En este sentido, hay que

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recordar que en 1918 se había producido la Reforma Universitaria que rompía con los tradicionales criterios elitistas de la educación superior y en algún grado abría las aulas universitarias a sectores “plebeyos”. Por ello, sintiendo amenazados todos sus ámbitos naturales, incluso desde antes que la toma de posesión del cargo se hubiese efectivizado, la conspiración para destituir a Yrigoyen ya se había puesto en marcha. Y en ella, los intelectuales pretendieron constituirse en la los intelectuales pretendieron constituirse en la los intelectuales pretendieron constituirse en la intelligentsia del nuevo orden que, indiscutiblemente, les reconocería su superioridad y capacidad directiva. Sin embargo, llegado el momento de la acción misma, el movimiento fue esencialmente militar, aunque avalado e impulsado por un amplio espectro conformado por liberales conservadores y nacionalistas que se consideraban desplazados del poder por la democracia. Los escritores de derechas resultaron, como mucho, acompañantes secundarios tanto del golpe de Estado como del gobierno provisional emergente y comenzó a producirse la fractura entre la derecha

liberal-conservadora

y

las

extremas

derechas

(nacionalistas,

tradicionalistas, hispanocatólicas y antisemitas). Lo indiscutible es que para llegar a la ruptura del orden constitucional, que resquebrajó las bases de legitimidad a las que habían apelado sistemáticamente los hombres del orden conservador, tienen que haber sido muchas las molestias, incertidumbres y descontentos que les provocaba la democracia mayoritaria y la participación de los sectores populares y medios. Lo cierto es que las razones de política económica — pocas veces explicitadas —, de formas ocupación del Estado y de republicanismo discursivo creciente, se articularon con nociones culturales que, aun con resignificaciones y cambios, han tenido un larga vida la historia del país y en los paradigmas intelectuales, pero que también han influenciado proyectos y prácticas políticas y se han instalado en los imaginarios políticos y sociales de diferentes grupos sociales, políticos e ideológicos que propiciaron o avalaron los golpes de Estado. Dichas premisas señalaban a la Argentina como víctima de un destino de grandeza malogrado por la demagogia y la corrupción de los dirigentes de la democracia tanto como por un infecto intervencionismo estatal y una malsana participación popular. Surgía así, la idea del fracaso argentino que ha trabajado 190


Andrés Kozel, y que se empieza a forjar, aun con anticipaciones fuertes, hacia los años 1929 y 1930 como resultado de las crisis política y económica. Se trata, obviamente, de una respuesta de ciertos sectores de la sociedad a otra percepción cultural previa que se asentaba sobre la presunción de que al país le correspondía un lugar de privilegio a partir de su incorporación al modelo civilizatorio y que hacía hincapié en una supuesta excepcionalidad argentina en el contexto latinoamericano. La “ilusión argentina” habría germinado en el tramo central del siglo XIX, y se habría vuelto hegemónica a medida que se consolidaba el paradigma liberal -conservador, para comenzar a declinar en las primeras décadas del siglo XX y dar paso al tópico del fracaso argentino hacia fines de la década del veinte y principios de los años treinta. Una noción que se extendería y achacaría a la participación política de los sectores populares los supuestos males de la Argentina contemporánea. Así, por ejemplo, Carlos Ibarguren, un intelectual a quien le gustaba definirse como patricio, ante el fracaso del proyecto de modificación y legitimación política basada en una necesaria unificación conservadora que había acompañado e impulsado, fue paulatinamente descreyendo de los beneficios de la reforma electoral de voto universal masculino y obligatorio y rechazando la forma en que Yrigoyen y su entorno, ocuparon los cargos y los espacios de poder, “dominando en el mando”, disponiendo absolutamente de todos los órganos políticos, y dando “participación a las masas de la clase media que lo acompañaban con la más vehemente de las adhesiones, desplazando de toda acción en la vida del Estado [...] al sector social exponente de alta cultura que ejercía positiva influencia en las esferas públicas” (1955, pp. 422-23). La democracia había implicado una degradación que se evidenciaba en los pasillos de la propia casa de gobierno, y en la antesala del despacho presidencial, donde las diferencias sociales y culturales no operaban como una barrera de diferenciación y separación entre las clases, generando un ambiente “pintoresco y bullicioso” repleto de personas inferiores, en su mayoría mal trajeadas, inmoderadas en sus gestos y palabras. A medida que pasaba el tiempo Ibarguren profundizó la idea de reformar el sistema electoral pues, decía, sólo basado en el criterio simplista del gobierno popular, sostenido por el número de votos

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se caía, como de hecho había sucedido con Yrigoyen, en un gobierno que exaltaba “la inferioridad y la ignorancia” (La Nación, 29 de marzo de 1922). Por su parte, un grupo de jóvenes de tendencia maurrasiana se unieron para colaborar con la campaña antidemocrática y destituyente, en 1927, ante la inminencia de una segunda presidencia de Yrigoyen, comenzaron a publicar La Nueva República, un órgano de prensa que cuestionaba la democracia y alentaba la reorganización nacional desterrando el voto universal. Al decir de Ernesto Palacio, uno de los integrantes de este colectivo nacionalista, como habían señalado Platón, Aristóteles, Santo Tomás, Bossuet, de Maistre, Bonald, Rivarol, Kant, Pareto, Renan, Comte, Maurras, Donoso Cortés y otras personas igualmente renombradas, el sufragio universal era un privilegio concedido a la incompetencia y la irresponsabilidad del número, de las bajas pasiones, de los intereses personales o partidarios, contra la competencia, la responsabilidad, el valor técnico y el culto del bien común de la Nación (Palacio, La Fronda, 16.12.1929).2 Las manifestaciones políticas y culturales de La Nueva República (LNR) respondían a lo que percibían como una amenaza del “país real” que comenzaba a penetrar en el reducto del país legal y político. Cuestionaban los excesos secularizadores y la abusiva tolerancia hacia las ideologías “desintegradoras”, reclamando volver media página de la historia atrás y construir una República aristocrática, camino que había sido desviado por la democracia yrigoyenista, un sistema de revancha y rencor, indigno e imperfecto, contrario a la moral cristiana, que no reconocía la superioridad de la posición y la cultura. Apelaban a una identidad republicana en tanto antipopular y sostenían que la democracia no estaba inscripta ni en la historia ni en la constitución argentina (Irazusta, R, LNR, abril de 1928: 1). Por el contrario, señalaban, las diferencias establecidas por la naturaleza en el organismo social, implicaba respeto por las superioridades de la posición y de la cultura (Irazusta, R., LNR, marzo de 1928, p. 1). A su vez, insistían en que ese desconocimiento de las jerarquías llevaba a la más torpe y peligrosas de las

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PALACIO, Ernesto. Carta abierta al Dr. Augusto Rodríguez Larreta apud TATO (2009).

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demagogias, como la que encarnaba Yrigoyen (Palacio, LNR, diciembre de 1927, p. 2) y que se sostenía en el absurdo de identificar la verdad y la justicia con el número de sufragios y a desconocer llanamente la existencia del derecho natural para ensalzar una confusión delirante (Pico, LNR, diciembre de 1927, p.1). Así, frente a la democracia, práctica “demagógica y disolvente” los jóvenes neorepublicanos se presentaban como portadores de una verdad irrefutable y que sostenía que sólo el orden, la autoridad y la jerarquía engrandecían a las naciones (Palacio, LNR, mayo de 1928, p.1) Por su parte, los sectores católicos también crearon una publicación que estimularía las críticas a la democracia y alentaría el golpe de Estado. Así, en 1928 surgió la Revista Criterio que, junto al accionar individual de algunos intelectuales católicos, se encargaría de señalar los defectos del régimen democrático y las virtudes de una nación católica organizada sobre premisas más trascendentes y sostenedoras del orden. Así, por ejemplo, sostenían que la democracia había llevado a una desmoralización creciente de las costumbres (Criterio, 12, 1928, p. 359) explotando la credulidad de los obreros y la petulancia infantil de los jóvenes universitarios (Criterio 14, 1928, p. 432). Si bien, estos católicos se recostaban en la Encíclica Rerum Novarum y señalaban que había capitalistas desalmados, no dudaban en sostener que había que actuar en “defensa de la vida y de la propiedad privada” (R.P: Grote, Criterio 114, 1930, p. 628). La democracia, hija de la revolución, cometía el absurdo de afirmar dos soberanías simultáneas: la del gobernante y la del pueblo y por lo tanto, habilitaba a que el pueblo cuestionara el principio de autoridad e incluso juzgara a sus mandatarios (Casares, Criterio 15, 1928, p. 461), Por ello, se imponía llevar adelante una reacción patriótica que alentase la esperanza de un país decepcionado (Criterio 15, 1928, p. 464). Como puede advertirse, la democracia era un sistema desestructurante, anti natural y pernicioso en sí mismo, pero además alimentaba la demagogia que operaba sobre un pueblo que no sabía que lo beneficiaba y era fácilmente engañado. Así, con un manifiesto desdén sobre las particularidades y experiencias culturales y políticas de los grupos subalternos, se conformaron como un “nosotros” distinguido por la 193


dimensión de un pensamiento superior, por una dignidad y honor específicamente delimitado y por la delicadeza y refinamiento de sus actos y apreciaciones. Frente a esa minoría selecta y elegante, aparecía un “ellos” que involucraba a los sectores populares, y en algunos casos a los “diferentes” (mujeres, inmigrantes, especialmente los judíos (LVOVICH, 2003), los pobres provenientes de los países de la Europa mediterránea, los comunistas) que sólo podían ser estigmatizados por sus comportamientos vulgares, por ser portadores de una estética errónea y por encarnar valores y prácticas alejadas del buen gusto, del decoro y la decencia. Sostenían que insolencia hacia las jerarquías sociales era una degradación moral y cultural que afectaba a toda la vida social y política del país. Como hemos sostenido, los discursos de los intelectuales derechistas contra las mayorías sociales se radicalizaron desde el momento en que esos actores sociales, considerados inferiores, fueron alcanzando también un rol político y decidieron al ocupante del sillón presidencial. La plebe, como gustaban denominar a los sectores populares y medios, evidenciaba una profunda e innata discapacidad para reconocer, deleitarse y aprovechar los atributos del pensamiento y de la cultura “verdadera” y esa ignorancia constituía la evidencia irrefutable de la incapacidad de los vulgares para comprender y proyectar su propio futuro y mucho menos el de toda la nación. Engañados por la demagogia de inescrupulosos líderes populares, susceptible de ser manipulados por la “prensa populachera” y los “literatos inmorales” (MED, Criterio 2, 1928, p. 49), arrastraban a todo el país al barro de sus miserias. Así como había un “país” de poseedores del gusto “legitimo”, existía otro “país”, como decía Julio Irazusta, “guarango y plebeyo” (Irazusta, LNR, junio de 1928, p. 2), que no conocía el “arte de vivir” y se manifestaba a través de actitudes deshonrosas e insultantes que, por su sola existencia, implicaban una provocación al orden, pero que además tenían el atrevimiento de tratar de fundar nuevos cánones estéticos que contradecían la verdadera belleza ensalzando formas repulsivas (Reyes, Criterio 15, 1928, p. 469). Ese desprecio sostuvo el golpe de Estado de 1930 y dio apoyo al régimen ilegítimo que lo sucedió, avalando, incluso, la virtud del fraude al que se señalaba como patriótico, ya que evitaba que los populistas recuperaran el poder político. Sin embargo, en ese mismo proceso se produjo el quiebre entre los sectores de la 194


extrema derecha, habitualmente llamados nacionalistas, y la derecha liberalconservadora que buscaba presentarse como más moderada y respetuosa de la constitución y la institucionalidad, aun cuando impulsaba golpes antidemocráticos. No obstante que esa fractura era explícita y los “nacionalistas” no ahorraron críticas a los “regiminosos” y antipatrióticos liberales conservadores, en los sucesivos golpes de Estado concurrirían unidos, aun con disidencias, en contra de la democracia y los movimientos populares y de izquierda. El peronismo como enemigo polivalente Y ambos grupos mantendrían ese hondo menosprecio hacia los sectores populares, que lejos de atenuarse con el transcurso del tiempo, se profundizaría con la llegada del peronismo al poder y se convertiría en un complejo argumento político que movilizaría a las extremas derechas, a la derecha liberal y a amplios sectores sociales, culturales e intelectuales que encontrarían en el antiperonismo el elemento de cohesión que no habían hallado por vías políticas más convencionales. 3 Dicho antiperonismo se nutre de dos postulados. Por un lado, la asociación del peronismo con el fascismo y el totalitarismo señalando como pruebas el juicio político a la corte suprema, la reforma de la constitución y la difícil relación con los medios de prensa y buena parte del campo intelectual (NALLIM, 2014). Curiosamente, el decidido anticomunismo de Perón no aparece como argumento fuerte en el antiperonismo ilustrado. El segundo postulado identitario del antiperonismo hunde sus raíces en el desprecio hacia lo popular que había nacido, como hemos escrito, conjuntamente con la democracia de voto universal masculino y obligatorio y que se había visto

El inicio del ciclo peronista puede datarse en el golpe de Estado de 1943. Un golpe que presenta particularidades como son su casi exclusivo componente militar, la conflictividad interna de los propios hombres de armas y tampoco puede desconocerse que actuó contra un gobierno marcado por la ilegitimidad del fraude que había depositado el destino de las futuras elecciones en la figura de un empresario conservador, Robustiano Patrón Costas.. No obstante ello, y sin excluir tensiones, claramente el gobierno militar emergente en 1943 puede calificarse como de derecha, nacionalista y católico pero con una perspectiva positiva de lo popular (CATTARUZA, 2009, pp. 181-189). También puede verse Potash (1986). 3

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impulsado por la política obrerista de perón y la politización de los trabajadores que emergieron como sujetos políticos y actores colectivos. Como señala Flavia Fiorucci, durante el peronismo florecieron las publicaciones y espacios intelectuales opositores, que manifestaban su crítica como una defensa del espíritu frente a un régimen que caracterizaban como una afrenta los valores de la civilización y la cultura. La guerra “político ideológica” devino en una guerra en defensa del “espíritu”, claro que en ésta no faltaban las connotaciones de naturaleza política. (2001, p. 25). El antiperonismo en el mundo intelectual fue tan fuerte que, en buena medida, se borraron diferencias. Según señala Morresi, quienes conformaron (con sus actos de habla) a mediados del siglo XX el campo de la derecha en la Argentina, el concepto que ocupó el lugar de exterior constitutivo, o mito fundante, fue el populismo, entendido como un movimiento igualador o nivelador que ponía en peligro o directamente subvertía al orden (sea natural, económico, moral, social o político). Así, el populismo, fue el factor aglutinante que les permitió a los liberal-conservadores alcanzar la hegemonía en el campo de la derecha. El mismo autor, advierte que esto no quiere decir que no hubiera otros sectores de derecha. Allí estaba el “nacionalismo de derecha” o la “derecha nacionalista”, que sin embargo, debieron resignarse a espacios menos destacados y subordinarse al liberalismo-conservador que lideró el campo en el período posterior a 1955 (2011, p. 12) como ya había sucedido tras el golpe de 1930. Esa derecha radicalizada no desapareció e incluso mantuvo gran cantidad de publicaciones donde hacían gala de su antisemitismo, anticomunismo y otras posturas extremas que no superaban el carácter de declamación testimonial. En la práctica y no sin disidencias, quedaron sometidos a los civiles y militares que se adscribían a las tradiciones del liberalismo conservador. Tampoco puede dejarse de mencionar que el propio peronismo había abierto grietas dentro la derecha de proyección nacionalista, ya que algunas de sus figuras referenciales, como Palacio,4 se habían sumado a la esperanza de un gobierno nacionalista, mientras otros Ernesto Palacio, proveniente de La Nueva República, fue parte del equipo interventor en la provincia de San Juan.

4

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permanecían expectantes o bien expresaban su rechazo por considerarlo un nacionalismo desviado, más discursivo que real y una tiranía censurable, como fue el caso de Julio Irazusta (IRAZUSTA, 1956). De acuerdo a Estela Spinelli, el antiperonismo no fue homogéneo en la sociedad, ni en los partidos, ni en el gobierno que llegó al poder por el golpe de Estado. A ese amplio espectro lo unió un acuerdo inicial de intolerancia hacia el gobierno peronista que había perseguido a la oposición, atacado los intereses y valores culturales de las clases más establecidas, cultivado un estilo transgresor que fue visto como reñido con la moral, la austeridad republicana y la respetabilidad digna de la clase política. A ello se sumó el rechazo al modelo político-social igualitarista del peronismo y particularmente a Juan Domingo Perón fue unánime entre los sectores que adhirieron a la “Revolución Libertadora”. Este acuerdo constituyó el carácter distintivo del antiperonismo, su definición por el opuesto y su negativa a reconocerle legitimidad política alguna. Sin embargo, esto no excluyó que dentro del antiperonismo se construyeran, por lo menos, dos interpretaciones distintas sobre lo que el peronismo había significado en el desarrollo político de la Argentina. Hubo un antiperonismo tolerante con el “vencido” que vio en el peronismo un proyecto de cambio económico y social malogrado por el fuerte personalismo de Perón y que denunció la obsecuencia, corrupción e ineficiencia de su personal político. Pero también hubo un antiperonismo radicalizado que demonizó al peronismo en su totalidad, fue el que sus críticos contemporáneos, peronistas y antiperonistas, denominaron “revanchista”. Este centró su visión y su crítica en las prácticas políticas asociadas con los regímenes nazi-fascistas y desdeñó las transformaciones sociales, políticas y eocnómicas que el peronismo había implicado. Su preocupación fue la erradicación definitiva del peronismo, no ya sólo como partido sino como identidad política (SPINELLI, 2008). Lo cierto es que ese antiperonismo que buscaba perentoriamente la desperonización de la sociedad argentina y por ende manifestaba su desprecio a todo lo que remitiera al líder depuesto en 1955 era en sí mismo un proyecto antipopular y marcaría los decenios por venir y a las frágiles presidencias democráticas (deslegitimadas en origen por la proscripción del peronismo y el exilio 197


de Perón) tanto como a los gobiernos militares que emergieron de los golpes de 1962 y 1966. Entre sus filas se contarían representantes de las extremas derechas tanto como de la derecha liberal. Y también entre ellas, como hemos señalado, las divergencias serían notorias desde posturas conservadoras simplistas que reducían el fenómeno a una patología social o experiencia de “sugestión colectiva” y otras que consideraba al proyecto desperonizador como una suerte de “desratización”, hasta una asimilación del peronismo a una manifestación local de un movimiento antiimperialista. Así surgieron, dentro de las derechas, sectores que propiciaban un peronismo sin Perón y obviamente dirigido por sus propios referentes. Estos sectores fueron reabriendo la brecha con los sectores liberales y conservadores y paulatinamente se fueron convirtiendo en opositores a los gobiernos de la Revolución Libertadora y a las democracias emergentes del mismo proceso (GALVAN, 2013, pp. 1-4), repitiendo un proceso que ya habían vivido tras el golpe de 1930. Y también en este período volvieron a reconsiderar la idea de incorporar al pueblo a la arena política, desde una perspectiva disciplinadora que canalizara la participación, al mismo tiempo que debilitara la influencia de las izquierdas. Para grupos “nacionalistas” como los de la revista Azul y Blanco, que comandaba Sánchez Sorondo, el fantasma del comunismo seguía siendo visto como el mayor peligro que enfrentaba la nación (GALVÁN, 2014, pp. 205-224). Al mismo tiempo, reflotarían algunos conflictos de larga data y que podrían pensarse como rasgos identitarios de la sociedad argentina. Tal es el caso de la cuestión educativa y la función del Estado en relación a ella. La llamada “Revolución Libertadora”, tras el derrocamiento de Perón, había impulsado un proyecto que establecía la posibilidad de “crear universidades libres, que estarán capacitadas para expedir diplomas y títulos habilitantes siempre que se sometan a las reglamentaciones que se dictarán oportunamente” (Decreto 6403, 1955). Dicho decreto, impulsado por el Ministro de Educación Atilio Dell ́Oro Maini, un histórico representante de las derechas extremas y defensor de la supremacía católica en lo cultural y educativo, permitió observar como muchos de los planteos de la Iglesia y de las derechas de proyección católica tenían cabida en los imaginarios sociales de vastos sectores. El 23 de diciembre de 1955 se presentó el decreto que incluía la 198


legalización del gobierno tripartito y la autonomía universitaria, como un modo de conformar a sectores diversos. Sin embargo, no lograron evitar el conflicto y el decreto nunca se promulgó. Sería Frondizi, desarrollista, elegido democráticamente y con apoyo del voto peronista proscripto, quien volvería sobre el tema. Paradójicamente, uno de los referentes de la oposición a la ley sería el rector de la Universidad de Buenos Aires, Risieri Frondizi, hermano del presidente, a quien acusó de actuar inmoralmente, por no haber cumplido con los compromisos contraídos (Discurso Apertura ciclo lectivo, UBA, abril de 1959). El enfrentamiento llegaría a las calles. Así, el 15 de septiembre de 1958, sesenta mil personas se congregaron frente al Congreso de la Nación, en Buenos Aires, para reclamar una ley que permitiera a la Iglesia Católica establecer centros universitarios confesionales. La llamada educación libre, convocaba a alumnos de colegios religiosos, sacerdotes, monjas, fieles, militantes de las derechas nacionalistas y representantes de los sectores dominantes del país. Cuatro días después, el 19 de septiembre, unas ciento sesenta mil personas, ocuparon el mismo espacio al grito de “¡Laica, Laica!”. Eran estudiantes universitarios Reformistas, alumnos de colegios estatales, familias de clase media y de barrios populares, profesionales, docentes, trabajadores de distintos sectores y militantes de izquierda (La Nación, 20 de septiembre de 1958) Se confrontaban dos sectores, por un lado la Iglesia Católica que buscaba recuperar su predominio sobre la enseñanza y la cultura, y por otro lado, un heterogéneo grupo que defendía el carácter público y estatal de la educación. Frondizi cedió (o articuló) con los militares en muchas cuestiones. Aun así fue derrocado el 29 de marzo de 1962. Su relación con intelectuales como Rogelio Frigerio, que para los sectores más conservadores no dejaba de ser un peligro, o al menos, un riesgo, por su pasado izquierdista, tanto como el pacto con el peronismo y el resultado de las elecciones intermedias realizadas unos diez días antes del golpe de Estado que dieron el triunfo al justicialismo (peronismo) bonaerense, fueron aspectos claves para la destitución del gobierno, pues generaron una honda desconfianza en los grupos sociales que dominaban el mapa político desde la Revolución Libertadora. A ese panorama hay que sumar el impacto de la Revolución 199


cubana que encendió una alarma anticomunista y se convirtió en una verdadera ola de macartismo que se instaló entre la oficialidad de las Fuerzas Armadas y estrechó, aún más, los márgenes de maniobra del presidente. De hecho, la destitución de Frondizi se argumentó a partir de la acusación de comunista pero también por haber dado al peronismo la posibilidad de participar en las elecciones de medio término (HUDSON, 2014). Arturo Illia, asumió, el 12 de octubre de 1963, con debilidades estructurales que se expresaron en el hecho de que el golpe fuera una amenaza constante durante toda su gestión. Por un lado, su partido tenía fuertes vínculos con el sector colorado de los militares, que habían sido derrotados en los enfrentamientos de 1962 y 1963, y por lo tanto, se encontraba en una relación de fuerzas desfavorable respecto de los azules, cuyo mayor exponente, Onganía, era el comandante en jefe del Ejército. Por otro, la proscripción del peronismo se había traducido en un importante caudal en votos en blanco, mientras que el triunfo de Illia había sido electoralmente muy ajustado. Para asumir el Poder Ejecutivo siendo primera minoría había tenido que recurrir a electores ajenos para imponerse. Incluso en un sentido amplio, y en términos prospectivos, las debilidades políticas de origen del gobierno de Illia y la exclusión del peronismo de la escena electoral —y por lo tanto la falta de legitimidad y consenso en los sectores populares— limitaron la concreción de su proyecto económico y contribuyeron a la desestabilización del gobierno. La “amenaza comunista” fue utilizada también como argumento contra toda movilización popular, para mantener la proscripción del peronismo y para impugnar los rasgos de estatismo y nacionalismo económico que expresaban algunas de las políticas de Arturo Illia. Así, en especial desde 1964, y en pleno auge de la Guerra Fría, el discurso anticomunista fue bastión de diversos sectores de las clases dirigentes, otorgándole distinto carácter y contenido. La negativa del gobierno para que el Ejército se hiciera cargo de la lucha anticomunista, exacerbó los ánimos en las propias Fuerzas Armadas. Así, el Contralmirante Mario Lanzarini diría:

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El comunismo, que ha aprovechado toda circunstancia favorable para poder realizar su acción destructiva. El peronismo, con su intolerancia política y religiosa, su totalitarismo partidario y sindical y sus intentos de destrucción de la familia y de la Iglesia, a la par que una equivocada política internacional. El tercer factor negativo es la mentalidad estatista de aquellos que, basados en un falso nacionalismo, han logrado amplia intervención estatal en sindicatos, grandes empresas y desarrollo industrial (Mario Lanzarini, alocución del 1/04/1963, en Altamirano, 2001, pp. 300-301).

Como puede advertirse, el anticomunismo (BOHOSLAVSKY y VICENTE, 2014) articuló a diversos sectores e intereses y legitimó la voluntad de derrocar al gobierno, evitar la llegada al poder del peronismo e instalar una dictadura cuyo líder fuera justamente Onganía, quien encabezaría desde el golpe de Estado de junio de 1966, un proceso de “modernización autoritaria” basado en la concentración y extranjerización de la economía (MÍGUEZ, 2013, pp. 71-72). La política económica de la llamada Revolución Argentina, evidencia que aspectos del proyecto económico de Illia causaban malestar en los sectores dominantes, por ejemplo el impulso a la demanda interna a través del gasto público y los diversos mecanismos de distribución del ingreso, la regulación del mercado farmacéutico, la Ley de Salario Mínimo, Vital y Móvil, la política de precios máximos y el control de cambios, sus rasgos de estatismo y nacionalismo económico expresados en el ámbito interno e internacional. Todas esas críticas fueron sostenidas a la vez que disimuladas por una campaña de la prensa que insistía en la ineficiencia del presidente (TARONCHER, 2009, MAZZEI, 1997). Ante una sociedad movilizada y cuestionadora Cómo podemos ver, la extrema derecha mantuvo buena parte de sus posicionamientos históricos y su ambigua relación con la derecha liberal, a la que cuestionaba pero con la cual colaboraba en los golpes de Estado, en los gobiernos emergentes y en las políticas represivas. En algún sentido, compensó su debilidad frente a la derecha liberal conservadora, denunciando las ambigüedades de esta y haciendo frente a las transformaciones sociales que comenzaron a ser notorias en 201


los años sesenta y radicalizando sus postulados antisemitas y anticomunistas. Ante una sociedad en movimiento, que, aunque modestamente, comenzaba a romper con los mandatos morales (COSSE, 2010), y veía como se politizaban sus jóvenes, ya sea hacia perspectivas izquierdistas inspiradas en la revolución cubana o en la masiva peronización de los hijos de la clase media (SPINELLI, 2013), esta derecha encontró un espacio claro donde evidenciar la urgente necesidad de encarar la defensa de la familia, de los valores tradicionales, del catolicismo y la estructura patriarcal. Y desde allí intentó convocar a la ofensiva contra el heterogéneo grupo de jóvenes que se oponían al Estado, al establishment y a la cultura imperante, señalando la peligrosidad de un movimiento que -a partir del No a la Guerra de Vietnam y con la consigna de “Paz y Amor”- se expandía como una revolución juvenil occidental, pero con características propias en cada contexto (KRIEGUER, 2014, p. 585). Esa juventud, en América Latina, y por razones socio-económicas, se vio menos atraída por el hipismo que por formas de expresión más radicalizadas, que lograban integrar las consignas de “amor y revolución” a la lucha armada revolucionaria contra el Estado capitalista y el imperialismo. No obstante, en Buenos Aires y en algunas ciudades de la costa atlántica y a pesar de que el hipismo no era muy numeroso, hubo políticas represivas llevadas adelante por el Estado (las conocidas razzias, cortes de pelo, palizas, etc) y por agrupaciones derechistas parapoliciales como la Federación Argentina de Entidades Democráticas Anticomunistas (FAEDA) que en su ensañamiento contra los hippies y rockeros mostraba la centralidad de sus preocupaciones morales, su carácter represivo y también su debilidades en las lecturas políticas, puesto que como denunciaron en una conferencia de prensa concebían a los hippies como engranajes de un plan mundial diabólico, orquestado por el comunismo (Primera Plana, 8 de febrero de 1968, pp. 39-43), en tanto que los hippies argentinos que se hacían llamar Náufragos insistían en propiciar “que el hombre se lance a la acción creadora de sí mismo, que aprenda a amarse, a no tenerle miedo a las estrellas; que escuche el canto de la vida, porque en todo corazón existe una melodía natural, una fuente oscura” (Manifiesto, 1967, en Primera Plana, 8 de febrero de 1968, p. 39). Como señaló John King, hace ya varias décadas, la represión a los jóvenes no politizados ha pasado desapercibida frente a la 202


desmesurada persecución que vivieron los que definían su identidad en la militancia (1985). Por su parte, los grupos politizados, que habían precisado con claridad que sus enemigos eran la burguesía explotadora y los agentes represivos del Estado, (Carnovale, 2011) vieron cómo se articulaban diferentes sectores y agrupaciones para combatirlos. Las fuerzas de seguridad, los grupos parapoliciales de derecha y hasta el surgimiento de una ortodoxia peronista, también llamada derecha peronista, que se opondría al proyecto socialista de los jóvenes peronistas radicalizados (CARNAGUI, 2010, pp. 1135-1154). Los enfrentamientos entre la “derecha” y la “izquierda” peronista han ocupado buena parte de la atención de quienes estudian el período de recuperación democrática en 1973, prestando atención al campo de las derechas (BESOKY, 2016; LADEUIX, 2012). Sin embargo, la extrema derecha nacionalista no ha desaparecido del escenario y tenía sus propias batallas y sus propias elaboraciones. Cámpora, Perón y el golpe de Estado desde la perspectiva de la derecha radicalizada de tradición hispano católica El 11 de marzo de 1973 se realizaron las elecciones que representaban la vuelta de la institucionalidad democrática a la Argentina y el retorno del peronismo al juego electoral, aunque Perón permanecía proscripto. El triunfo electoral correspondió al FREJULI (Frente Justicialista para la Liberación) con la fórmula Héctor Cámpora-Vicente Solano Lima, quienes asumirían la presidencia el 25 de mayo del mismo año ante una impresionante movilización popular y una fuerte algarabía de los sectores juveniles encuadrados en la tendencia izquierdista del peronismo.5 A las pocas horas de asumir el nuevo presidente, multitudes (se estiman entre 30000 y 50000 personas) se dirigieron a la cárcel de Devoto para reclamar la inmediata liberación de los presos políticos. A la medianoche, Cámpora firmaría el

El triunfo de Cámpora (delegado y candidato elegido por Perón) pareció consagrar la creciente influencia política del ala radical del peronismo, ya hegemonizada por Montoneros, conocida como la “Tendencia revolucionaria”, cuyo protagonismo en la campaña electoral había sido indiscutible (BARLETTA y CERNADAS, 2006, pp. 7-8).

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decreto y a los pocos días el Congreso decretaría la amnistía. (FONTE, 2014, pp. 175-187). La movilización por el pedido de la libertad de los presos políticos fue duramente reprimida, provocándose algunas muertes, incluso. Ese acto del primer día de gobierno de Cámpora mostraría el clima que se viviría de ahí en más y se agudizaría en el período que le siguió con el regreso de Perón, la ruptura de éste con los jóvenes de la izquierda peronistas y luego con la asunción de Isabel perón tras la muerte del líder el 1 de julio de 1974 (TOCHO, 2014, p. 17). Todos esos procesos alimentaron el crecimiento de la derecha peronista pero también el resurgimiento de las derechas nacionalistas de raigambre católica. Estas corrientes, que se declaraban herederas de la vieja tradición nacionalista antidemocrática y reivindicaban a los militares asesinados por las organizaciones armadas de izquierda, decían representar la “voz sana de la patria enferma” y se mostraban dispuestas a enfrentar al enemigo interno que había llevado al país a un momento límite de su historia. Sin distinguir entre el ala derecha e izquierda del peronismo y sumando a otras fuerzas políticas e ideologías, sostenían que el desborde era el resultado inevitable de la democracia, puesto que quienes destruían al país habían nacido al “calor húmedo y pegajoso de la democracia Universal”. Y como sus ancestros, de las décadas del veinte y del treinta, entendían que esa democracia era sensualismo desenfrenado, impudicia, egoísmo y corrupción (Restauración 1, junio de 1975, p. 3). Antidemocráticos extremos, anti comunistas, antiperonistas y antisemitas, rengaban de la proletarización de la Argentina, entendida ésta como una decadencia moral, intelectual y cultural en la que sólo había lugar para asalariados manipulables y gestores de desorden y del irrespeto a las jerarquías. La decadencia era total y se expresaba por el triunfo del número por sobre la inteligencia (Restauración 2, julio 1975, p. 3). Destinados a superar la disolución y el enervamiento, se presentaban como los únicos capacitados para devolverle la grandeza a la Argentina (Cabildo 1, mayo de 1973, p. 1). Como en etapas anteriores, la extrema derecha argentina expresaba, en este ciclo tan convulsionado, su irritación por su lejanía del poder y mostraba su repulsión hacia la “oligarquía liberal” (a la que concebía como traidora a la patria) y de todas las expresiones populares/populistas. No era menor su rechazo del parlamentarismo 204


y de las miserias humanas que decoraban a la democracia y a sus dirigentes: codicia, cobardía, vanidad, hipocresía (Restauración 2, julio 1975, p. 17) sin dejar de subrayar la matriz corrupta de la democracia (Restauración 6, diciembre de 1975, p. 1). Es decir, cuestionaban los valores liberales, a los que consideraban atados a su avaricia pero también y ferozmente al peronismo que venían a coronar un proceso de desintegración con esa “irresistible atracción por las cosas inferiores, sucias y deshonestas”. De tal modo, el peronismo no era más que un epifenómeno inevitable ante tantas décadas de caos, y como tal, era la expresión del peor gusto, de la más profunda ignorancia y de la voracidad de los que siempre miraron desde abajo (Esteva, Cabildo 1, 2° época, agosto 1976, p. 10). Como era previsible, entendían que la salida era un nuevo golpe de Estado. Sin embargo, daban un giro interesante a las premisas habituales y manifestaban que no se trataba de destituir al gobierno para mantener al “Régimen” con otro formato y reproducir la relación dialéctica de golpes de Estado y democracias sin que nada cambiase. Por lo tanto, llamaban a realizar una “Cruzada” que actuara en defensa de lo permanente y permitiera a la espada ceñir la tierra y el campo e instaurar una Patria que, inexorablemente, debería ser Católica, Nacionalista y Jerárquica (Restauración 2, julio de 1975, p. 18). Es decir, el golpe de Estado debía desarrollar e imponer una revolución nacionalista y católica que arrasara con el orden burgués y el caos marxista y peronista (Restauración 2, julio de 1975, p. 20). En el mismo sentido, la Revista Cabildo, al volver a editarse tras el golpe de Estado del 24 de marzo de 1976,6 expresaba que dicha asonada militar era la más necesaria y esperada de las seis que se habían producido en el siglo XX, pero que pasados unos meses comenzaba a mostrar la misma indecisión de las otras y no se decidía a encarar la revolución que el país requería. Los militares que habían asumido el poder parecían limitados a realizar una tarea “higienizadora” y no la restauración profunda que los nacionalistas esperaban (Curuchet, Cabildo, 2° época 1, agosto 1976, p. 3). En ese sentido, la presencia de referentes liberales y la dependencia del

Cabildo había sido clausurada en febrero de 1975. Sus editores habían migrado hacia El Fortín, que corrió la misma suerte y recalaron luego en Restauración. Sobre estas publicaciones nacionalistas puede verse ORBE, (2012, pp. 41-66) y Saborido (2005). 6

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capital financiero internacional era una clara señal del desplazamiento de los sectores nacionalistas (Cabildo, 2 época 1, agosto 1976, p. 10). Pero además, entendían que no se estaba haciendo lo suficiente para aniquilar al marxismo y al peronismo y el deshonor que ellos implicaban y que habían arrastrado al país a compartir el destino con las tribus africanas o las factorías bolcheviques (Cabildo 18, 2° época, septiembre de 1978, p. 16). Andrés Avellaneda sostiene que tanto el golpe argentino de 1930 como el de 1976 se construyeron sobre una totalización de la violencia “en la vida social y en la individual, en la reflexión, en los afectos, en la actividad económica, en la práctica espiritual” (1989, p. 13). La ideología autoritaria del último régimen no se ciñó en Argentina al control y desaparición de personas, sino que intervino la cultura y la educación, considerándolas territorios primordiales de lucha. Los canales marginales de producción ideológica fueron interceptados o eliminados (universidad, editoriales, prensa opositora, partidos políticos, etc.) y hubo un fuerte esfuerzo institucional por imponer un nuevo sistema de valores nacionales. El estilo de vida argentino propugnado por la dictadura estuvo basado (AVELLANEDA, 1989, pp.14-15) en dos ejes: la moral del cristianismo católico y el respeto a la propiedad privada. Lo inmoral, por su parte, abarcaba tres zonas: la obscenidad, el cuestionamiento de la familia (OSUNA, 2016, pp. 1-17) y el ataque a la Iglesia o a la seguridad nacional. En su tarea de depuración ética, la Junta consideró necesaria la intervención de clases dirigentes, escogidas de entre las élites aptas para gobernar a las masas. Este mesianismo fue acompañado de la idea de una grandeza original perdida, de una Edad de Oro argentina, destruida por el laicismo liberal y la democracia. En algunos casos, el mesianismo derivó en una fantasía de omnipotencia divina, no exenta de cinismo (MARTÍNEZ CABRERA, 2012, p. 110). Por su parte, Crenzel entiende que la práctica sistemática de las desapariciones a partir del golpe de Estado de marzo de 1976, supuso dos cambios radicales con respecto a los grados y formas que había asumido la intensa violencia política que experimentó Argentina durante el siglo XX. En primer lugar, a diferencia de la represión contra opositores políticos o militantes sindicales del pasado, las desapariciones objetivaron el desenvolvimiento desde el Estado de una decisión de 206


exterminio. En segundo lugar, comportaron la emergencia de una forma novedosa de la muerte por causas políticas, su práctica clandestina. Estas particularidades, diferenciaron al caso argentino, incluso, del resto de las dictaduras que, en los años setenta, se establecieron en los países de la región (2007, p. 160). No obstante, entendemos que la ferocidad de la represión no puede comprenderse sin tener en cuenta las experiencias previas y las nociones culturales despectivas y revanchistas instaladas en los imaginarios sociales argentinos a lo largo del siglo XX y los sucesivos quiebres de la institucionalidad democrática.7 Por otro lado, si bien la Jerarquía católica siempre acompañó los golpes de Estado, en la última experiencia dictatorial y extremadamente represiva, la Iglesia no sólo legitimaría el accionar militar sino que lo convertiría en un hecho trascendente, una “guerra justa” y justificaría en Dios la necesidad de torturar y matar (BILBAO & LEDE, 2016, p. 105). Esto es una indicación más de cuán extendida y normalizada estaba la idea de que el otro era un enemigo que podía (y debía) aniquilarse. Algunas reflexiones finales A partir de esta caracterización general, atendiendo a la fuerte y omnipresente disposición antipopular de las derechas de la Argentina del siglo XX y sin descuidar a los objetivos plurales (tanto los explícitos como los silenciados y, los más o menos, subliminalmente formulados) que confluyeron en cada golpe de Estado producido en el siglo XX argentino, entendemos que es necesario reflexionar sobre los postulados y prácticas violentas que desplegó la derecha en Argentina (tanto en su versión liberal como en las tendencias extremas, siendo éstas más explícitamente irascibles) y que van desde la temprana aplicación de la tortura, los asesinatos, los fusilamientos y las desapariciones, que nos permiten pensar que uno de sus rasgos identitarios fue (y es) la inclinación a la agresión, a la destrucción y con ello también a la crueldad, según la terminología de Freud, en El malestar en la cultura ([1930]1996:3051-3052). Con el propio Freud, nos preguntamos si ese otro, que son

7

Sobre la historiografía de la última dictadura se sugiere ver Aguila (2008).

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los sectores populares, representan paras las derechas elitistas y jerárquicas, entre otras cosas, un motivo de tentación para satisfacer sus pulsiones agresivas, para explotar su capacidad de trabajo sin retribuirla, para humillarlo, ocasionarle sufrimientos, martirizarlo o incluso matarlo (ídem, p. 3046). La voluntad destructiva, obtiene una satisfacción que acompaña un placer narcisista, pues ofrece al yo la realización de sus más arcaicos deseos de omnipotencia (Freud, [1930]1996:3052), al mismo tiempo, si ese individuo recibe una provocación, o así vive determinadas conductas ajenas, acusa recibo de la distancia entre su yo y su Ideal del yo y reaccionará con todo el odio que surge de su frustración y con la violencia del terror que le inspira el semejante con su propia división subjetiva, cuando lo que busca es una unidad autogenerada y autosuficiente, para evitar el sufrimiento, la indefensión y el desamparo (BEREZIN, 2003, p. 4). Es decir el desprecio violento que han manifestado las derechas argentinas hacia los sectores populares, buscan una separación radical de ese otro que le marca sus limitaciones y se ilusiona con que su destrucción le permitirá alcanzar la omnipotencia fantaseada. Sin embargo, ese otro, en su “debilidad” era, en sí mismo, el elemento identitario que los ayudaba a constituirse como el opuesto positivo de lo excluido, lo que evidenciaba su supuesta superioridad. Como señala Hassoun, quien asume la posición del odio “es aquel que se considera el único perfecto, todos los demás son deshechos que él tiene que ignorar o eliminar. Todo odio es odio de la diferencia y es, en sí mismo, una fuente de segregación y por lo tanto requiere de un accionar político e ideológico (1999). La detracción — radicalizada — de lo popular y su cultura y la violencia simbólica y material que de ella se derivaba, tenía sin duda, un objetivo político que implicaba la negación de toda posibilidad de que el pueblo se convirtiese en sujeto político y es allí donde los intereses contrapuestos cobran su total dimensión. Sin embargo, no terminaban allí las razones del encono, sino que en última instancia respondían

a

comportamientos

psíquicos

profundos

y rasgos

identitarios

indispensables para la propia sobrevivencia y cumplimiento de sus objetivos como colectivo social e ideológico que se consideraba superior. En ese sentido, es necesario recordar que la cuestión del pueblo, de la cultura popular, es casi siempre 208


un discurso pronunciado sobre el pueblo, hacia el pueblo tanto como hacia otros sectores sociales, por personas instruidas. Por lo tanto, se trata de un discurso que pone a quien lo enuncia en una curiosa situación: habla para evidenciar el alejamiento de un sujeto que su misma palabra ha separado (BOLLÈME, 1990, p. 66). Como decíamos, ese rasgo segregacionista, es común a todas las tendencias de derechas. Sin embargo, hay otros aspectos que marcan diferencias, una de ellas es la consideración del rol del Estado. Para la derecha liberal, el estatismo es uno de los grandes males de la Argentina, en tanto que la derecha de proyección nacionalista y católica sostiene lo contrario, aunque es habitualmente crítica a las formas de intervención del Estado realmente existente en Argentina. Lo cierto es que las diferentes variantes de las derechas parten de considerar que la historia contemporánea argentina es la historia de un fracaso. Ahora bien, ¿cuál habría sido esa experiencia decepcionante que llevó a que los idearios de grandeza, sin terminar nunca de morir, construyeran su propio opuesto y se acostumbraran a trascurrir en un entramado “bipolar”? Entendemos que la decadencia del modelo económico agroexportador y la crisis de la hegemonía imperante durante su desarrollo, implicó la decepción y frustración de la clase que había conducido — y se había beneficiado — de ese proceso político, social y económico. El sentimiento de fracaso que invadió a los sectores dirigentes los llevó a cerrarse sobre sí mismos y a buscar las razones externas — exculpatorias — de esa situación, en buena medida, inesperada y dramática que juzgaban injusta. Así, encontrando al responsable en los sectores populares y en la democracia, comenzaron a mirar sus presentes como un infortunio que se extendía también al futuro del país.

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Los

intelectuales

antidemocráticos

frente

a

lo

popular.

Argentina,

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Miguel Reale e o pensamento autocrático Rodrigo Jurucê Mattos Gonçalves1

Introdução Neste texto, analisamos a trajetória pós-integralista de Miguel Reale (19102006), sobretudo com a abordagem de sua principal obra jusfilosófica: Filosofia do Direito (1953). Neste livro, Reale traz a lume, de forma mais acabada, a teoria autocrática que começa a desenvolver a partir do ocaso do integralismo em 1938. À ostensividade do fascismo integralista, o jurista paulista buscará a alternativa da formulação de uma ideologia autocrática plástica, capaz de unir fascistas, liberais e populistas, de combater o socialismo e a democracia de massas, além de fundamentar teórica e ideologicamente o programa de autoritarismo crescente da autocracia burguesa. O autor é amplamente conhecido por ter pertencido à Ação Integralista Brasileira (AIB). Não se encontra na literatura especializada divergência sobre seu passado fascista, apesar de ser costumeira a omissão de que o jurista paulista tenha sido fascista. Paulo Mercadante, por exemplo, o coloca como um “democrata”, encobrindo sua associação ao integralismo, à ditadura estado-novista e à ditadura civil-militar de 1964-1985 (MERCADANTE, 1992). Intrigante é a forma reiterada pela qual normalmente se crê que o jurista paulista tenha abandonado o fascismo. Se ele realmente deixou de ser fascista após o ocaso do integralismo, em 1938 (com a “intentona” fascista que visava derrubar o governo do regime que

Professor da Universidade Estadual de Goiás (UEG). Doutor em História pela Universidade Federal de Goiás (UFG). E-mail: jurucemattos@gmail.com. 1

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praticamente cumpriu grande parte do programa político integralista), também devese levar em consideração que ele nunca fez uma autocrítica, nem renegou o fascismo. Todavia a concepção que Reale desenvolve de 1940 em diante não é meramente fascista. Denominamos a ideologia realiana pós-integralista de “autocratismo”, já que ela é suficientemente plástica e adaptável às diferentes formas políticas da autocracia, sejam elas liberais, populistas, autoritárias ou fascistas — ou a mescla de tudo isso, que é o que caracteriza o autocratismo. Após o esfacelamento da AIB e, mais adiante, do Estado Novo, em 1945, Reale buscará a nova veste de jurista cultor da filosofia do direito, quando conquista cátedra na Universidade de São Paulo; de homem de Estado, ao assumir, entre 1949 e 1950, a reitoria daquela instituição; e de eminente intelectual, ao fundar, em 1949, o Instituto Brasileiro de Filosofia (IBF) na cidade de São Paulo. O jurista paulista abandona a vulgar camisa verde integralista, e adota o autocratismo. O autocratismo é uma “mescla” de ideologias. Está aí a força e a sagacidade dos intelectuais autocráticos de não descartar a priori nenhuma ideologia que lhes sirva no combate à democracia de massas e ao socialismo. A ideologia autocrática é marcada pela recusa e temor em relação à mobilização das classes subalternas, ideia-força em torno da qual se compreende um conjunto de ideologias, como o anticomunismo, a tutela estatal corporativista, o binômio “desenvolvimento econômico e segurança nacional”, o liberalismo conservador e o fascismo. Os intelectuais orgânicos da autocracia brasileira costuraram tão bem a questão ideológica que suas artimanhas passaram incompreendidas — talvez desapercebidas — para muitos intelectuais críticos, como Roberto Schwarz, que viu aí “ideias fora do lugar” (SCHCHWARZ, 2000). E Miguel Reale (1910-2006), um dos principais intelectuais autocráticos do pós-1945, captou o “espírito” autocrático, fundamentando na obra Filosofia do Direito (1953) a necessidade de colocar o autocratismo na linha de avanço irrefreável, com autoritarização constante e crescente. Essa época do autocratismo pós-integralista e pós-estadonovista marca o momento em que o jurista paulista coloca-se como legítimo intelectual autocrático que, sem abandonar o fascismo, adota o populismo e o liberalismo, aparando-lhes as arestas democráticas. 215


A Filosofia do Direito (1953), de Miguel Reale Extensa, a obra em foco é uma “floresta de papel impressa”, como diria Leandro Konder (2009, p. 23), o que pode impedir a compreensão do autoritarismo jurídico desenvolvido por Reale no período pós-integralista e pós-estadonovista, se não nos atermos aos trechos mais significativos. O que move a discussão de Reale é a necessidade da fundamentação normativa da autocracia burguesa, com o estabelecimento de princípios norteadores para a edificação robusta e atualização do arcabouço jurídico autocrático, bem como da legitimação da superestrutura político-jurídica. De acordo com um de seus mais eminentes discípulos, Celso Lafer, Reale busca a legitimidade na correlação entre direito e poder, estabelecendo a essencialidade entre estes. Essencialidade esta que confere ao “papel da legalidade” (isto é, o conjunto das normas jurídicas) a “qualidade do exercício do poder” (LAFER, 2000, p. 98). A chamada “teoria tridimensional do direito” — que o autor já vinha desenvolvendo desde as obras publicadas nos anos 1940 e que começa a dar pleno acabamento na Filosofia do Direito — significou o empenho por uma forma superior e plenamente adaptada às condições nacionais do autoritarismo jurídico. A “teoria tridimensional do direito” é a forma ideológica pela qual se busca a construção do consenso, imprescindível à hegemonia autocrática, através de uma construção teórica que lança amplos recursos argumentativos dissuasórios. É o que demonstraremos a seguir, quando faremos a exposição e a problematização de pontos específicos, mas vitais, da obra em foco. De nossa perspectiva, importa extrair da historicidade da obra de Reale seus desdobramentos políticos e sociais. É certo que o Direito, enquanto ciência e objeto, constitui um “banco de areias movediças privado de uma autonomia e consistência autênticas” (CERRONI, 1978, p. 113), sem que se possa concluir uma abordagem unívoca e definitiva. Diante das variadas abordagens possíveis, buscamos o caminho em que o Direito aparece como mais um campo disputado na sociedade de classes, como forma ideológica componente da superestrutura do poder burguês (MARX & ENGELS, 2007).

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Reveladora da concepção de filosofia do direito que Reale constrói é sua posição tomada perante o jurista e filósofo austríaco Hans Kelsen (1881-1973). No que se refere à política, Kelsen notabilizou-se pela defesa de ideais liberaldemocráticos, sendo que, em 1920, aceitou a proposta do chanceler austríaco, Karl Renner, para participar da escrita da primeira constituição liberal-democrática e federal da República austríaca. É um dos juristas mais influentes do século XX. O jurista paulista corrobora, em parte, a concepção que Kelsen desenvolve de 1934 em diante e, principalmente, depois de 1940, quando nos Estados Unidos entra em contato com o “Direito banhado na experiência social” (REALE, 1953, p. 417). Mais precisamente, diz Reale que, a partir de então, Kelsen passa a ver o dever ser, isto é, a sociedade, em sua composição futura determinada, não mais no plano puramente lógico, segundo o formalismo jurídico acentuado do meio cultural germânico. Após essa evolução de concepção, para Kelsen o dever ser tende a converter-se em realidade — concepção esta adotada por Reale (1953, pp. 416420). A partir desta leitura, o jurista paulista iniciará algumas operações: (1) pensará o ser do homem segundo o seu dever ser, ou seja, concebe o futuro do homem segundo o enquadramento normativo e a regulação jurídica colocadas no presente, enquadrando o presente do homem, e logo do futuro, dentro de balizas sociais limitadas e determinadas por leis-regras; (2) procederá um giro autoritário da elaboração kelseniana, alocando o centro normativo no poder da autoridade e em seus atos de vontade.

É verdade que do mundo do ser não se pode passar para o dever ser, porque aquilo que é não se transforma naquilo que deve ser; a recíproca, porém, não é verdadeira, porque o dever ser, que jamais possa ou venha a ser, é sonho, é ilusão, é quimera, não é dever ser propriamente dito. Quando reconhecemos que algo deve ser, não é admissível que jamais venha a ser de algum modo. Um dever ser que nunca se realize parcialmente é uma abstração sem sentido. O que acontece, porém, é que, por outro lado, jamais o dever ser poderá converter-se totalmente em ser. Para que haja dever ser, é necessário que o ser jamais o esgote totalmente.

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O dever ser está, pois, em correlação com o ser, no sentido de atualizar-se, o que, no domínio jurídico, só pode ocorrer pela interferência de um ato de vontade, como Kelsen o reconhece, quando pondera que nenhuma norma particular resulta da “norma fundamental” [Grundnorm], por simples inferência lógica, ou uma operação intelectual, mas é necessariamente estabelecida por uma autoridade investida pela norma fundamental do poder de emanar normas (norm-creating power). “As normas de um sistema dinâmico devem ser criadas através de atos de vontade por aqueles indivíduos que se acham autorizados a criar normas por alguma norma mais alta” (REALE, 1953, pp. 420-421 apud KELSEN, 1946).2

Reale estabelece, por meio do ato de vontade, um diálogo com a tradição fascista, particularmente com Giovanni Gentile, filósofo do primeiro fascismo italiano. Segundo Umberto Cerroni, Gentile analisava o direito exclusivamente do ponto de vista do enunciado volitivo: “se o direito é somente o que se quer (o já querido), encontra seu próprio segredo no ato mesmo de querer. [...] Fenômenos e instituições não são mais que as folhas mortas da árvore perene do ‘querer que quer’” (CERRONI, 1978, pp. 102-103). O filósofo italiano reduz o direito àquele que se quer, que quer, a querer, como atividade pura e simples, fundada na lei do querer: “O filósofo retrocedeu do conhecimento do direito ao descobrimento da lei do querer” (idem, p. 105). Obviamente, Reale não faz uma adesão pura e simples à concepção gentiliana. O jurista paulista procede a construção de sua concepção pós-integralista com o exercício de interpretar e adaptar as elaborações do fascismo europeu, conjugado ao exercício de revisionismo do liberalismo, sublinhando os aspectos autoritários da teoria liberal e/ou fazendo um revisionismo de “correção” dos aspectos democráticos. Esse procedimento de filosofia política corresponde ao método adotado por Reale, observado por Theophilo Cavalcanti Filho: “Reale vai fixando, através de análises das doutrinas, o que nelas existe com capacidade de servir para a construção de uma concepção atual e de grande alcance não só do ponto de vista filosófico geral, como da filosofia especial do Direito” (CAVALCANTI F.º, 1972, p.

2

Os negritos são sempre nossos. Os itálicos, sempre originais dos autores.

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XXIV). Quando necessário, quando possível, complementará essa atualização do autocratismo pós-integralista com o resgate daqueles autores nacionais que contribuem para o aggiornamento (atualização e conservação) jusfilosófico autocrático. O procedimento filosófico segundo o qual o direito torna-se positivo, isto é, real, concreto, por meio de atos de vontade liga-se aos casos históricos em que o direito perdeu seu papel de colocar limites ao exercício do poder, nos quais foi instaurado o “Estado capitalista de exceção (fascismo, ditaduras militares)” (POULANTZAS, 2000, p. 90), sendo que, no Brasil, tomou a forma da ditadura do Estado Novo (1937-1945) e, mais tarde, da ditadura civil-militar (1964-1985). A função do direito que coloca limites ao exercício do poder é uma imposição advinda da luta da classe operária no plano político, de forma que o “direito organiza o quadro de um equilíbrio permanente de compromisso imposto às classes dominantes pelas classes dominadas” (idem, ibidem). Assim, quanto mais liberdade se concede aos atos de vontade da autoridade (até o momento máximo da liberdade absoluta do ato de vontade), menos se terá na relação de forças a presença política das classes dominadas (até o extremo de sua completa supressão). Essa correlação entre liberalismo e fascismo realizada por Reale também foi observada pelo ibeefeanos. Irineu Strenger diz que diante da obra de Carl Schmitt (jurista alemão que aderiu ao nazismo), o jurista paulista irá operar uma correção da concepção schmittiana do “conceito de decisão” que concebe que “Decidir é o fato político por excelência” (STRENGER, 1961, p. 237). Segundo Strenger, o jurista alemão estava preso à concepção do líder carismático. Reale, por sua vez, criticará os limites colocados pela “ação criadora dos ‘heróis’ ou ‘super-homens’”, interessando-lhe o “longo e complexo processo de integração e discriminação” (idem, p. 238). Esta concepção de Reale implica formas institucionalizadas de fascismo e uma atitude diferenciada perante o liberalismo, não de repúdio veemente, como faziam alguns dos líderes fascistas dos anos 1920 e 1930, mas de “diálogo”, interpretação e revisão. Aliás, essa atitude de caminhar nos interstícios do fascismo e do liberalismo (e mesmo do keynesianismo) vinha desde a juventude, na fase integralista, conforme afirma José Guilherme Merquior:

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O Estado Moderno [obra publicada por Reale em 1934] revela admiração pelo Duce, mas também pelo intervencionismo antiDepressão de Roosevelt. Usa várias vezes o teórico oficial, Alfredo Rocco, mas não se esquece de render tributo a Jellinek, cuja “grande superioridade’, na teoria do estado, fora de “salvaguardar a autonomia dos indivíduos” (MERQUIOR, 1992, p. 31 apud REALE, 1934).

Portanto Reale posta-se como legítimo intelectual autocrático, sem abandonar o fascismo, e endossa o liberalismo conservador, revelando uma postura pragmática de relativo desprendimento e heterodoxia. A partir destas operações filosóficas, Reale evoluirá para a crítica da democracia burguesa (propugnada por Kelsen) e para a acentuação do autoritarismo jurídico que formula normas — leis-regras — imperativas com conteúdo certo, evitando que o direito seja puramente indicativo, mas avance no sentido de determinações categóricas cujo termo é a imperatividade. Reale aprofunda a crítica de Kelsen: Pretende o jurista austríaco [Kelsen] manter-se alheio a qualquer ideologia, a qualquer pressuposto metafísico transcendente ou jusnaturalista, mas a verdade é que todo o seu sistema obedece a inspiração de um relativismo estimativo que consagra a equivalência de todos os valores, cabendo à Ciência do Direito, como Técnica de organização social e coordenação feliz de processos coercitivos, tornar respeitadas as normas correspondentes à força histórica dominante. Um liberalismo cético, afinalista, porque aberto igualmente a todos os fins, anima as ideias desse campeão da democracia, sem conteúdo social e econômico determinado, tal como no-lo revelam as páginas de sua Teoria Geral do Estado ou de Essência e valor da Democracia. Embora pouco sensível ao problema das estimativas, e timbre em declarar-se livre de qualquer ideologia política, é ele bem um lídimo campeão do liberalismo relativista e cético, o que, como adianta Legaz Lacambra, “na falta de um conteúdo vital próprio, está pronto a deixar-se encher pelos mais variados conteúdos subministrados pelos distintos partidos políticos”. Afirmação aceitável desde que se reconheça como essencial em sua doutrina o alto objetivo de assegurar a todas as correntes igual possibilidade de manifestar-se no plano político, a salvo de qualquer solução totalitária (REALE, 1953, pp. 423-424).

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Assim, Reale estabelece um nexo do liberalismo de Kelsen, quando corrobora o princípio de assegurar às diferentes correntes a manifestação no plano político, com o autoritarismo jurídico, e quando critica o fato de que a concepção liberal do jurista da Escola de Viena não tem um conteúdo teleológico determinado no que se refere à esfera social e econômica. Desta crítica, o jurista ibeefeano procede à crítica do normativismo de Kelsen, que sustenta um “Direito puramente indicativo” (idem, p. 425). O “imperativo hipotético” de Kelsen, diz Reale, “depende de determinadas e particulares condições”, enquanto que o “imperativo categórico”, de outro modo, “é aquilo que deve ser em todas as condições possíveis de execução do ato” (idem, ibidem). Para Reale, a atitude cética ou relativista adotada pelo jurista austríaco “esvazia as normas de conteúdo certo” (idem, p. 428). Na verdade, estamos diante do autoritarismo jurídico pós-integralista de Reale, que não encontra entraves em propugnar o liberalismo, desde que o teor autoritário seja garantido pela lei-regra imperativa, a qual cabe a “coordenação feliz” (idem, ibidem) da coerção. Todavia, Kelsen é também um representante do autoritarismo jurídico burguês. No âmbito da filosofia jurídica, é Kelsen quem leva as possibilidades da concepção burguesa ao extremo de suas consequências: Não podemos negar a Kelsen um grande mérito. Graças à sua lógica audaz ele levou até o absurdo a metodologia do neokantismo, com as suas duas espécies de categorias científicas. Com efeito torna-se evidente que a categoria científica “pura” do Dever-Ser libertada de todas as aluviões do Ente, da faticidade, de todas as “escórias” psicológicas e sociológicas, não tem e não pode de nenhum modo ter determinações de natureza racional. Para o imperativo puramente jurídico, isto é, incondicionalmente heterônomo, a própria finalidade é, em si mesma, secundária e indiferente. [...] Com relação ao DeverSer jurídico, nada mais existe do que a passagem de uma norma a outra de acordo com os degraus de uma escala hierárquica, em cujo cimo se encontra a autoridade suprema que formula as normas e que engloba o todo (PACHUKANIS, 1988, p. 19).

Assim, Evgeni B. Pachukanis traz o autoritarismo jurídico de Kelsen, que coloca a autoridade suprema que formula leis-regras visando a totalidade. Em vista disso, Reale dará um passo adiante, quando traz a necessidade da lei-regra 221


imperativa, de conteúdo certo, projetando o ser de um dever ser, instrumentalizando juridicamente a autoridade autocrática. Como viemos abordando, a discussão de Reale com Kelsen — na qual ele busca assimilar o liberalismo político ao autoritarismo jurídico, com nova articulação do fascismo pós-integralista — é uma das maneiras de entrada à abordagem do pensamento do jurista paulista. No entanto, o cerne de suas formulações jusfilosóficas se constitui na chamada “teoria tridimensional do direito”, denominada por ele de “fórmula Reale” (REALE, 1953, p. 456). Na formulação desta teoria, buscase uma explicação culturalista para o autoritarismo jurídico. O autoritarismo jurídico burguês é peculiar da época histórica em que a burguesia abandonou a perspectiva revolucionária para buscar a estabilidade de seu poder dominante. Segundo Pachukanis, à época dos grandes monopólios capitalistas e da política imperialista corresponde a tendência do pensamento jurídico que faz da “ideia de regulamentação externa o momento lógico fundamental do direito” e o identifica com a ordem social estabelecida autoritariamente: “O capital financeiro dá muito mais valor a um poder forte e à disciplina do que ‘aos direitos eternos e intocáveis do homem e do cidadão’” (PACHUKANIS, 1988, p. 61). Em relação ao desenvolvimento autoritário que Reale dá ao Direito desde os anos 1940, pode-se reconhecer o paralelismo com a implantação do capitalismo monopolista no país. Reale faz uma discussão da validez do direito e da pressuposição de três diferentes perspectivas que podem validar o direito: a jurídica (derivada da lógica normativa do direito, ou simplesmente norma); a ética (do valor); ou a sociológica (do fato). Todas estas autenticações são consideradas insuficientes em sua parcialidade que exclui as demais; é diante destas que Reale irá construir a chamada “tridimensionalidade”, que, segundo ele, abrangeria essas validações díspares do direito, ou, conforme a problemática por ele colocada, que lhe servirá de gatilho para a construção da ideologia tridimensionalista do direito, quando afirma: “Como conciliar esses três pontos de vista, dado que um imperativo, formalmente válido, deve ser incondicionalmente cumprido, mesmo sendo injusto ou não tendo correspondência efetiva no viver comum?” (REALE, 1953, p. 475). O autor parte do 222


pressuposto básico da jurisprudência burguesa da época do capitalismo monopolista, que já perdeu o apelo “aos direitos eternos e intocáveis do homem e do cidadão” (PACHUKANIS, 1998) da época revolucionária da burguesia, articulando suas teorizações em torno do normativismo autoritário. A perspectiva pragmática de Reale é aquela que articula o conteúdo axiomático do direito com objetivos e metas teleológicas: “Não existe possibilidade de qualquer fenômeno jurídico sem que se manifeste esse elemento de natureza axiológica, conversível em elemento teleológico” (REALE, 1953, p. 480). Segundo o autor, este é o “problema crucial” da “relação entre valor e fim”, ou, colocado de outra maneira, “todo dever ser se funda em valores” (idem, pp. 481-482). O autor não limita o dever ser ao devir do tempo futuro, segundo ele se refere à “temporalidade total, ou seja, ao passado, ao presente e ao futuro. No fundo, o dever ser é o valor mesmo em sua projeção temporal, no sentido histórico de seu desenvolvimento total, não ficando circunscrito apenas à perspectiva do futuro” (idem, ibidem). Portanto, o dever ser não se refere à projeção abstrata futura, mas, antes, liga-se ao dever ser vigente no passado e no presente. O dever ser (móvel axiomático do autoritarismo jurídico) se materializa na lei-regra, que cria direitos, mas também é criadora de deveresobrigações, obrigando a fazer ou proibindo (POULANTZAS, 2000, p. 82). Segundo Poulantzas: Não há nessa sociedade lei ou direito sem aparelhagem que obrigue sua aplicação e assegure sua eficiência, em resumo, a existência social: a eficacidade da lei jamais é a do puro discurso, da palavra ou da regra emitida. Se não há violência sem lei, a lei pressupõe sempre a força organizada a serviço do legiferante (o braço secular). Mas prosaicamente: a força permanece na lei (2000, p. 84).

Assim sendo, Reale liga o dever ser futuro com a normatividade imperativa do passado e do presente autocrático. O jurista reforça a concepção de Nicolai Hartmann do dever ser atual, que reafirma uma “conduta imperativa”, “atuante” e “positiva” que fazem do valor uma obrigação (“os valores obrigam”) (REALE, 1953, pp. 483-484 apud HARTMANN, 1945).

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Como vimos, em sua crítica à Kelsen, Reale concebe o direito com fins determinados e objetivos com conteúdo certo, exacerbando o conteúdo imperioso do direito burguês. Em relação aos fins, Reale fará dois desenvolvimentos: (1) da autoridade que ordena; (2) da necessidade da atualização constante dos fins. Em relação ao primeiro ponto, o jurista reafirma a “interferência da vontade”, o primado do Poder e a visão voluntarista que o autor consolida sobre este: A correlação essencial entre nexo normativo e Poder é de suma importância para uma compreensão realista do Direito, devendo notar-se que a decisão, que é a alma do Poder, não se verifica fora do processo normativo, mas inserindo-se nele, para dar-lhe atualidade ou concreção. [...] Repetimos, a importância do problema do Poder no processo de formação de cada complexo de relações jurídicas, visto como existe sempre um ato de decisão, de opção e de ação consequente, marcando o surgimento da norma, no quadro das múltiplas vias de possível e legítimo acesso (REALE, 1953, p. 495).

Desta forma, a visão de Reale insere-se na perspectiva da escola normativista, cujo ato de legiferar depende sempre da “autoridade suprema”. Segundo Celso Lafer, para Reale “não se cria uma norma jurídica sem a voluntas [vontade] de um ato decisório do poder com validade para outrem” (LAFER, 2000, p. 98). Não é difícil perceber aí o fundamento de uma concepção autocrática aberta à perspectiva do desenvolvimento amplo da ditadura burguesa, de modo que a chamada “teoria tridimensional do direito” insere-se plenamente na ideologia autocrática. Lafer — que escreve praticamente cinco décadas depois da conceituação da ideologia tridimensionalista autocrática (o que demonstra que esta ecoa no presente entre os juristas conservadores) — reafirma o direito como apêndice do poder, que se converte no eixo centralizador e unificador de diferentes “propostas normativas”: As posturas direcionais diante de um complexo de circunstâncias de fato caracterizam-se por um pluralismo de perspectivas que leva a diversas a múltiplas propostas normativas que, para se transformarem em norma jurídica, exigem uma opção decisória do poder. É essa interferência decisória do poder que converte o centrífugo das propostas normativas no centrípeto de uma diretriz de conduta, dotado de validade objetiva (idem, p. 99).

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Reale e Lafer desenvolvem a ideologia tridimensional do direito de acordo com a evolução da autocracia burguesa. No Brasil, historicamente, o Estado aparece especificamente como o vetor principal do modelo de desenvolvimento do capitalismo monopolista que tem na superestrutura estatal seu dínamo de poder. Segundo Florestan, o fator “decisão interna” tem uma cristalização paulatina, que se inicia após a Revolução de 1930; fixa-se no fim dos anos 1950, mas de maneira vacilante; e no pós-1964, quando se converte, sem qualquer rebuço, no principal impulso político de todo o processo, conferindo à burguesia “liberdade de ação quase total” (FERNANDES, 2006, p. 303). Deste modo, o primado do poder e do ato de decisão que não deveria encontrar qualquer entrave — na concepção autocrática de Reale e Lafer — só é possível com uma ditadura de classe, mais ou menos encoberta e dissimulada. Uma das questões colocadas por Reale é a da atualização dos fins, continuamente realizada de modo que o ser nunca realiza completamente o dever ser. Dessa forma, a norma (lei-regra considerada como materialização do dever ser), sendo constantemente atualizada no processo geral do aggiornamento autocrático, mantém sua qualidade impositiva. Na concepção do jurista paulista, o direito é o meio de enquadramento do homem na lei-regra burguesa, em outros termos, na fixação do ser de um dever ser: O Direito insere-se nesse processo de integração do ser do homem no seu dever ser, representando um de seus fatores primordiais, sendo, como é, uma das mais poderosas tomadas de contato do Homem com o dever ser de sua existência individual e social, em uma clara postulação de fins (REALE, 1953, p. 485).

O direito é assim um instrumento político-partidário, voltado à consecução de fins determinados (que só podem ser estabelecidos de acordo com um projeto político, social, de nação). Atualização que Reale concatenará com a conservação do chamado “núcleo resistente”, o qual abordaremos adiante. A atualização do direito, segundo o filósofo ibeefeano, coloca-se como uma “adequação entre a ordem normativa e as múltiplas e cambiantes circunstâncias

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espaço-temporais”, em uma dinâmica dominada pela “estabilidade reclamada pela certeza e pela segurança” (REALE, 1953, p. 498). Reale, portanto, coloca a atualização em perspectiva da conservação (estabilidade/certeza/segurança). A partir dessa perspectiva, o autor indaga a “existência de algo insuscetível de alteração substancial”, e conclui: Na história da experiência axiológica, há bens ou formas de atualização dos valores que, uma vez adquiridos, não sofrem erosão comprometedora do tempo. Temos a convicção de que, apesar das inegáveis mutações históricas das experiências de estimativas, há, todavia, um núcleo resistente, uma “constante axiológica do Direito”, a salvo de transformações políticas, técnicas ou econômicas (idem, p. 512).

Segundo Gláucio Veiga: Em que pesem as mutações históricas, para Reale, há um núcleo irredutível, algo como uma “barca de Noé”, sobrenadando em todos os dilúvios. Esta constante, qualificada de constante axiológica do Direito servirá de ponto de apoio para seu eticismo e a constante axiológica jurídica não está divorciada do processus histórico exatamente porque somente através da História revela-se a presença desta constante axiológica (VEIGA, 1956, pp. 228-229).

Neste sentido, a formulação, o desenvolvimento e a disseminação da ideologia autocrática, como uma ideologia ao mesmo tempo flexível e estável às oscilações e crises da autocracia burguesa, dependiam, assim, da formação do núcleo duro autocrático, impassível às crises do capital e de sua superestrutura político-jurídica. Aqui, o filósofo ibeefeano define o chamado “núcleo resistente”, que deve estar “a salvo” das transformações históricas e oscilações que marcam a trajetória histórica do capital e da autocracia burguesa. Reale elege a filosofia jurídica como a via de acesso para o núcleo duro autocrático e define este “núcleo resistente” às normas jurídicas que são obedecidas, que possuem vigência de fato:

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A Filosofia do Direito busca os valores supremos que condicionam a totalidade do sistema jurídico, assim como cada preceito particular, inclusive para focalizar o problema das regras jurídicas imperfeitas, pois, a rigor, devem ser consideradas perfeitas só as normas de Direito dotadas de fundamento ético e que, originadas de um processo coerente e lógico de competências, sejam efetivamente obedecidas pelos membros da comunidade de uma convivência: nelas, por conseguinte, atende-se a exigências axiológicas, psicossociológicas e técnico-formais. Infelizmente, pode haver as nascidas puramente do arbítrio ou de valores aparentes, que só o legislador reconhece. Entretanto, não deixam de ser jurídicas, porque possuem vigência (REALE, 1953, p. 513).

Assim, o autor coloca a vigência (efetiva obediência às leis-regras) como o fundamento do “núcleo resistente”, de acordo com a formulação da ideologia tridimensional e a imagem das “três dimensões” do direito como valor (que aparece aqui como “exigências axiológicas”); fato (exigências “psicossociológicas”); e norma (exigências “técnico-formais”) — dimensões estas que são contempladas à medida que o direito se torna positivo, isto é, à medida que suas normas são efetivamente obedecidas. Indagamos por que o autor, mesmo tendo eleito a eficácia do direito vigente (e a obediência decorrente) como o fulcro do núcleo resistente, não abre mão do fundamento axiológico coligido na doutrina tridimensional? A resposta vem a seguir: “Entendemos por fundamento, no plano filosófico, o valor ou o complexo de valores que legitima a uma ordem jurídica, dando a razão de sua obrigatoriedade” (idem, p. 515). Assim, o fundamento axiológico é um fator de legitimação da ordem vigente, reafirmando a disciplinarização social. Mesmo à hipotética ordem tão somente coercitiva, Reale não nega o cumprimento do “mínimo de exigência axiológica” — sendo a ordem a causa primordial ou, nas palavras de Reale, “o valor mais urgente”: Lembrar-se-á a existência de leis puramente coercitivas, válidas em virtude do Poder de que emanam, mas não é menos verdade que do simples fato de existir uma regra jurídica já representa, apesar dos pesares, a satisfação de um mínimo de exigência axiológica: a da ordem ou da segurança, condição primordial do Direito, mesmo para que seja possível preparar-se o advento de outra “ordem” mais plena de conteúdo estimativo.

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A ideia de justiça liga-se minimamente à ideia de ordem. No próprio conceito de justiça é inerente uma ordem, que não pode deixar de ser reconhecida como o valor mais urgente, o que está na raiz da escala axiológica (REALE, 1953, pp. 515-516).

Desta forma, Reale encaminha a filosofia dos valores e a forma axiomática do direito ao destino da exigência de consolidação do núcleo duro autocrático que, uma vez consolidado e “apesar das rupturas que às vezes se verificam, tende a restabelecer-se paulatinamente” (idem, p. 517). Desse modo, a formulação teórica em foco coloca-se na perspectiva da restauração, como revolução passiva, eliminando a possibilidade da ruptura revolucionária. Neste sentido, a atualização do núcleo axiomático da autocracia coloca-se no sentido do aggiornamento (atualização e conservação), já que a vigência e eficácia do direito autocrático colocam-se diante da “indeclinável necessidade de atualizá-lo no decurso da história” (idem, p. 519). Reale contribuiu para a formulação da ideologia autocrática pós-integralista, mas não pós-fascista. A partir do autoritarismo jurídico e jusfilosófico, Reale buscará a fundamentação de uma concepção jurídica que visa construir o maximum autocrático possível nos diferentes regimes políticos (“democracia” populista, ditaduras), partindo da base do minimum autoritário/autocrático — expressado na fórmula sobredita do “mínimo de exigência axiológica: a da ordem ou da segurança” (idem, ibidem). Se considerarmos que em nosso país nunca se viveu uma democracia plena de massas (para além do sistema do capital), observa-se que os diferentes períodos “democráticos” (1945-1964; pós-1985) sempre contaram com resíduo autoritário bastante significativo — este seria o minimum autocrático que não se desconstruiu e se procurou preservar como base e reserva de poder. A partir do autoritarismo jurídico trabalha-se e desenvolve-se esta reserva de poder, por meio de sua institucionalização (inclusive jurídico-normativa), visando estabelecer o maximum autocrático possível. Trata-se perpassando

da as

autocracia crises

e

burguesa

contornando

articulando-se as

e

reconstruindo-se,

adversidades colocadas

pela

movimentação das classes subalternas. É um movimento rastejante, constante e vagaroso, como no pós-1945. Mas a autocracia pode movimentar-se de forma 228


desenfreada e veloz, como nos golpes de Estado de 1937 e 1964, para romper a resistência popular ou o que sobrou dela. A teorização de Reale expressa, desse modo, a revolução passiva brasileira, ou seja, a forma pela qual historicamente os processos de abertura política (pós-1945 e pós-1985) são truncados pela classe dominante e suas frações, que produzem regimes de democracia restrita, com direitos políticos limitados e seus efeitos resumidos às formalidades eleitorais, sem implicações progressistas no âmbito da economia e da sociedade. No pós-1945, a revolução passiva veio na forma de cerceamento da organização política e sindical, com a ilegalização, em 1947-1948, do Partido Comunista Brasileiro (PCB) — que, naquele momento, era a mais importante organização da esquerda — e a depuração dos sindicatos de elementos da esquerda, seja pela forma repressiva (governo Dutra), seja pelo peleguismo que converteu o sindicato em correia de transmissão dos governos de Vargas, Kubitschek e Goulart. O voto popular foi, entre 1945 e 1964, mutilado pela exclusão vigente dos analfabetos e dos militares de baixo escalão (praças e baixo oficialato). A revolução passiva — e seus constantes intentos de apassivamento dos trabalhadores por parte dos setores dominantes — refletiram-se na pauperização da classe operária, cujos salários geralmente baixos eram “devorados” pela inflação, e na miséria de outros setores populares, que viviam carestia crescente. De fato, nos períodos “democráticos” preservou-se significativo núcleo autoritário apto a crescer e desenvolver-se em velocidade e intensidade variáveis — mas não proporcionais (a onda repressiva é marcada por sua desproporcionalidade e mesmo exagero absurdo) —, conforme a “ameaça” representada pela movimentação da classe trabalhadora, em um processo de autoritarização crescente (FERNANDES, 1979). Em suma, a revolução passiva brasileira expressou-se nesse processo de truncamento da democracia, evitando uma democracia popular de massas, e, a partir destes limites estreitos colocados ao regime democrático, capacita-se a autocracia burguesa para autoritarizar-se de forma crescente. Pode-se abordar o pensamento autocrático pós-integralista na perspectiva do programa nacional-democrático da revolução brasileira, esposado na época pelo PCB. O programa nacional-democrático, elaborado em meados dos anos 1940 na 229


luta contra o Estado Novo, partia da necessidade do estabelecimento de um mínimo de condições de abertura política, no âmbito da democracia formal burguesa, que permitiriam a organização da classe trabalhadora e a movimentação dos comunistas. Após o breve abandono do programa, no período de 1947-1954, quando radicalizou suas posições após a cassação do registro partidário, em 1947, o PCB retorna à perspectiva nacional-democrática com o suicídio de Vargas, em 1954. A partir de então, os comunistas passaram “[...] a conceber a democracia principalmente como resultado cumulativo das conquistas da classe operária, dos demais trabalhadores e, no campo, da reforma agrária. Portanto como democratização da sociedade. Às vésperas do golpe [de 1964], essa concepção encontrou nas ‘reformas de base’ do governo João Goulart seu maior impacto programático” (MORAES, 2007, p. 165). Assim sendo, pode-se dizer que os comunistas partiam de um minimum democrático, visando alcançar, com o acúmulo de forças, o objetivo da democratização da sociedade. O autocratismo pós-integralista faz o caminho inverso/antagônico ao projeto da revolução brasileira: parte da reserva de poder do mínimo de autoritarismo (que definimos como o minimum autocrático), para buscar o estabelecimento do maximum autocrático, no processo de revolução-restauração, com o paulatino restabelecimento do núcleo duro autocrático diante das rupturas. A perspectiva autocrática encontrou seu êxito máximo com o regime de oligarquia perfeita da ditadura militar (1964-1985). A citação a seguir dá bem a medida das articulações revanchistas do autocratismo, sobre as quais Reale revela plena consciência: Ao longo de minha vida, jamais deixei de contar com esses adversários encapuçados ou subterrâneos, que não temem, por certo, o Integralismo (fato remoto e superado) mas sim o fortalecimento de qualquer diretriz política em condições de abrir caminhos novos à democracia, tornando inviáveis suas aspirações marxistas-leninistas ou revelando o ridículo de suas posições de esquerda festiva (REALE, 1987, p. 257).

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Considerações finais À guisa de conclusão, é importante dizer que Reale não desenvolveu sua concepção autocrática no isolamento de gabinete. Este intelectual orgânico da oligarquia paulista ocupou altos cargos públicos no estado de São Paulo, como a reitoria da USP e a Secretaria de Justiça. Ele foi o responsável pela criação do IBF, fundado, em 1949, na capital paulista. O IBF foi responsável pela formulação, desenvolvimento e disseminação da ideologia autocrática que, na obra de Reale, encontra na forma da filosofia jurídica autocrática e tecnocrática uma das suas expressões mais acabadas. Encontramos aí também o autocratismo pós-integralista, que adquiriu no autoritarismo jurídico-normativista uma forma acabada e uma capa ideológica. Destes desenvolvimentos, nos quais o jurista paulista ocupa lugar de destaque, reconhecemos a tentativa da formação e consolidação do núcleo duro autocrático, imune às oscilações provenientes das conjunturas que se refletem na história da autocracia, como reviravoltas políticas e crises de hegemonia. Aí não se deve ver nada de extraordinário (como costumeiramente enxergam no jurista paulista seus correligionários), mas, ao contrário, a função mesma requerida pela autocracia de seus intelectuais orgânicos, permitindo um grau significativo de previsibilidade e uma medida considerável de segurança nos golpes de “oportunidade e conveniência” da classe dominante, bem como o fulcro da estabilização e da manutenção do poder autocrático no tempo e no espaço.

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Um beijo autoritário através do Atlântico: os diálogos entre a intelligentsia brasileira e portuguesa na Revista Brasília (1942-1944) Marcello Felisberto Morais de Assunção1

Introdução Francisco Carlos Palomanes Martinho e António Costa Pinto, dois importantes intérpretes do corporativismo e autoritarismo, na introdução de um livro relativamente recente sobre o corporativismo no Brasil e em Portugal, explicitaram a necessidade de contornar o vácuo em torno dos estudos comparados entre o salazarismo e o varguismo. Além deste vácuo, os autores citam a importância de analisar esses regimes por meio de suas respectivas dinâmicas internas, compreendendo como tais regimes expressam diferentes respostas à crise do liberalismo. Diante deste vácuo comparativo, tentaremos compreender a leitura/escrita que certos intelectuais portugueses contemporâneos ao varguismo fizeram do Estado Novo brasileiro, enfatizando a comparação proposta por eles entre o autoritarismo e corporativismo no Brasil e em Portugal. Desta forma, buscaremos perscrutar como e por que os intelectuais portugueses, no seio da Universidade de Coimbra, realizavam uma série de leituras espelhadas sobre o Estado Novo no Brasil, em um período em que Brasil e Portugal detinham regimes de “terceira via”. Essas

Doutor em História pela Universidade Federal de Goiás (UFG), com tempo “sanduíche” no Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa. E-mail: marcellofma@gmail.com. 1

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comparações, nascidas ainda na primeira dobra do acontecimento (no tempo da memória), visavam demonstrar, como tentaremos evidenciar mais adiante, que ambos os países estavam em uma mesma “realidade política”, identificada pelo corporativismo e autoritarismo. Este espelhamento vai ser perscrutado ao longo do texto por meio das críticas divulgadas, entre 1942 e 1944, pela revista Brasília — uma publicação do Instituto de Estudos Brasileiros da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra.2 A partir da análise da seção “resenhas”, no período de vivência conjunta do Estado Novo no Brasil e em Portugal, mapearemos as visões e leituras sobre o corporativismo e autoritarismo, em um diálogo que encontrou o respaldo de uma grande diversidade de instituições e produções culturais nas duas margens do Atlântico. Desta forma, teremos como critério metodológico o confronto entre o conteúdo das críticas e a concepção de mundo autoritária e corporativa hegemônica em Portugal nos anos do salazarismo. No interior da Brasília, daremos foco, em particular, a três campos de conhecimento, os quais são portas de acesso à compreensão da escrita/leitura que aqueles intelectuais portugueses faziam dos intelectuais brasileiros, e, portanto, do Estado Novo no Brasil, a saber: pedagogia, direito e história. Todavia, para abordamos a inserção daqueles intelectuais no interior de uma perspectiva autoritária e corporativa por meio das críticas, é preciso, antes, explorar sua materialidade institucional, ou seja, a relação entre a Universidade de Coimbra, espaço dos intelectuais que publicavam na revista, e o projeto oficial do salazarismo de criação do “novo homem” português. O espaço social dos intelectuais da revista Brasília: a Universidade de Coimbra em tempos de autoritarismo A Universidade de Coimbra foi o espaço intelectual por excelência de produção e reprodução de uma concepção de mundo autoritária e corporativista. Em nenhuma outra universidade de Portugal as relações entre produção intelectual Sobre as diversas nuanças da revista Brasília, cf. Marcello Felisberto Morais de Assunção, Ver o outro nos próprios olhos: a revista Brasília e o projeto de lusitanização do Atlântico Sul. Dissertação (Mestrado em História). Universidade Federal de Goiás. Goiânia, 2014.

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e o salazarismo foram tão explícitas. Em um folheto sem autor, divulgado em Coimbra no início dos anos 1930, discute-se o problema universitário em Portugal, de modo que encontramos claramente o sentido instrumentalizado que a universidade deveria ter em um momento de “ressurgimento”: Dentro do Estado Novo não há e não pode haver duas opiniões: Estado de tendências totalitárias, o problema universitário o terá que subordinar-se, na sua solução, às diretrizes ideológicas que inspiram o Estado Novo. A Universidade terá que viver integrada no Estado Novo, e não à margem do Estado, alheio ao Estado, e quando Deus quer, inimigo do Estado. A Universidade, vivendo integrada no Estado, tem que pôr as suas atividades todas as suas conversas ao serviço do Estado, no campo que lhe é próprio. Dentro da atmosfera do Estado Novo ela tem que ser nacionalista, e não internacionalista; corporativa e não liberalista; organicista e não democrática (S/A “O problema universitário em Portugal” apud TORGAL, 1999, p. 88).

Como aponta o estudo de Pinto (1994), não é por mero acaso que um amplo espectro da elite ministerial do salazarismo fosse formado por professores universitários de Coimbra (fundamentalmente do direito). A maioria destes, como é o caso do próprio Salazar e de Marcelo Caetano, tiveram a sua formação em Coimbra que, desde a década de 1920, tornou-se espaço de uma maioria católica, monárquica, integralista e também de alguns núcleos do nacional-sindicalismo (PINTO, 1994, p. 25). A partir do domínio da imprensa da Universidade de Coimbra, ela foi alvo de uma tentativa sistemática de controle por parte do regime, que passou a controlar o conteúdo ensinado e a demitir e perseguir professores críticos ao regime, o que também ocorreu de forma mais branda em Lisboa e no Porto (TORGAL, 2002, p. 75). Tal perseguição se institucionaliza através de dois decretos-lei: o de n. 22.469, de 11 de abril de 1933, e o de n. 27.00314, de dezembro de 1936. O primeiro explicita o objetivo da censura:3 Como mostra Torgal (2009; 2010), tal censura expande-se para uma série de instituições da sociedade civil: as editoras, a literatura oficial (consagrada através de prêmios), as casas do povo, os sindicatos nacionais, as bibliotecas do povo, os jornais (A verdade, Diário da manhã e o Diário de notícias), a rádio (Emissora Nacional), o cinema. A censura também ocorre dentro da sociedade 3

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A censura terá somente por fim impedir a perversão da opinião pública na sua função de força social e deverá ser exercida por forma a defendê-la de todos os fatores que a desorientem contra a verdade, a justiça, a moral, a boa administração e o bem comum, e a evitar que sejam atacados os princípios fundamentais da organização da sociedade (Artigo n. 3 do decreto-lei n. 22.469 apud TORGAL, 2010, pp. 112-113).

Já o segundo decreto-lei se refere mais diretamente aos funcionários públicos e, por extensão, aos professores universitários, que eram obrigados a fazer o seguinte juramento público: “Declaro por minha honra que estou integrado na ordem social estabelecida pela Constituição política de 1933, com ativo repúdio do comunismo e de todas as ideias subversivas”4 (Decreto-lei n. 27.00314 apud TORGAL, 2010, p. 115). A militância anticomunista foi um fato rotineiro da vida de Coimbra, sendo um elemento agregador e mobilizador de uma série de grupos. É no seio deste espaço social imerso em um nacionalismo ufanista que se formula o ambiente para os comícios anticomunistas em Coimbra, as mobilizações de instituições com imbricadas relações com a direita radical (Cruzada D. Nuno Álvares Pereira e a Legião Portuguesa) e a consagração de diversos intelectuais (dois reitores de posição falangista são consagrados como doutor honoris causa: Felipe Gil Casares e Leonardo Perro)5 e estadistas (o próprio Franco) que estão de acordo com uma perspectiva de “terceira via” (TORGAL, 1999, p. 114).

política: no Secretariado de Propaganda Nacional, nos tribunais militares especiais, na Polícia de Vigilância do Estado (PVDE), na Polícia Internacional de Defesa do Estado (Pide), etc. O anticomunismo foi um grande fator de mobilização da sociedade portuguesa do período, como afirma Fátima Patriarca: “[…] O anticomunismo estado-novista elaborará uma noção de harmonia social, definindo os indivíduos que estão socialmente adaptados e resignados com o ‘espírito’ aquiescente da Ordem […] e aqueles que se situam à margem desse ‘espírito’. Este quadro é profundamente negro, apresentando uma espécie de seletividade entre o que é socialmente desejável pelo confronto do que é socialmente criminoso, ou antissocial” (PATRIARCA, 1992, p. 61). 4

Esta consagração também se expandia para aqueles que defenderam em suas produções intelectuais a “civilização cristã ocidental” e o sentimento “rácico” da lusitanidade, como é o caso dos brasileiros Afrânio Peixoto, Pedro Calmon e o inglês James Entwistle. 5

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Há, portanto, uma identificação muito clara e ativa entre a concepção de mundo oficial do salazarismo (autoritária e corporativa) e aquela que aparece na grande maioria dos intelectuais de Coimbra (idem, p. 112). A identificação da Universidade de Coimbra com a concepção de mundo oficial (autoritária, corporativa, imperialista e cristã) pode ser visibilizada em uma série de produções culturais do período, como é o caso da revista Portuguesa de História, o Boletim da Faculdade de Direito, a revista Biblos, o Boletim do Instituto de Estudos Germânicos, o Boletim do Instituto de Estudos Franceses e, por fim, a própria revista Brasília. Poderíamos dizer que estas produções e grande parte da intelectualidade da Universidade de Coimbra estão imersas em um projeto de hegemonização cultural institucionalizado pela “política do espírito” desde a fundação, em 1933, do Secretariado de Propaganda Nacional, cujo principal protagonista é Antônio Ferro.6 A política cultural oficial salazarista, verbalizada por Ferro em diversos momentos,7 pensava o espírito lusitano como matéria-prima a ser moldada segundo a defesa de um “ressurgimento”, concepção tão cara aos fascismos. Tal política busca instituir, em um âmbito estritamente estético,8 uma concepção harmônica e

António Ferro (1885-1956) foi um importante intelectual modernista do regime salazarista, sendo um dos poucos a ocupar cargos importantes e ter vinculações diretas com a direita radical (entrevistou, durante os anos 1920, Mussolini, Primo de Rivera, dentre outros). Durante o salazarismo, foi diretor do Secretariado de Propaganda Nacional e, posteriormente, do Sistema Nacional de Informação, sendo considerado “o publicista do regime” (ADINOLFI, 2007, p. 111). Para saber mais sobre sua trajetória institucional, em suas distintas fases, cf.: Adinolfi (2007); Leal (1994). 6

Como o mesmo reitera em um certo momento, ao explicitar o tom pedagógico, autoritário e nacionalista de sua política cultural: “A política do espírito […] não é apenas necessária, se bem que indispensável em tal aspecto, ao prestígio exterior da nação. Ela é também necessária ao prestígio interior da nação. Um povo que não lê, que não ouve, que não vibra, que não sai da sua vida material, do Deve e Haver, torna-se inútil e mal-humorado. […] Mas que se faça uma política do Espírito, Inteligente e constante, consolidando a descoberta, dando-lhe altura, significação e eternidade. Que não se olhe o espírito como uma fantasia, como uma ideia vaga, imponderável, mas como uma ideia definida, concreta, como uma presença necessária, como uma arma indispensável para o nosso ressurgimento. O espírito, afinal, também é matéria, a matéria-prima da alma dos povos” (FERRO, 1936, pp. 273-276). 7

A estetização da política como um dos fenômenos do fascismo objetivava, para João Bernardo (através de uma clara influência da noção inicialmente criada por Walter Benjamin), em um âmbito estético, extinguir o conflito de classes (BERNARDO, 2004, p. 734). Portanto, o fascismo não foi uma estética por opção, mas por necessidade (idem, p. 735). A política estetizada é necessariamente instituída através do ritual, por isto a necessidade de a política fascista se desenvolver sobre a forma

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corporativista das relações sociais que supostamente dissolve o conflito de classe. Para realizar tal pretensão, o Estado Novo português, ao longo dos anos 1930 e 1940, projeta em seus discursos um ethos português, condizente com essa perspectiva da harmonia social, bem como difunde, apesar das suas fissuras e nuanças internas, 9 um discurso agressivo e combativo que produz e institui uma memória histórica, de tipo nacional, que pretende ser ontológica e científica frente a qualquer memória desviante (ROSAS, 2001, p. 1033). Essa pretensão totalizante do projeto cultural do Estado Novo será materializada a partir da atração e adesão de agentes e também da montagem de um dispositivo cultural que exerce o papel fundamental de organização da propaganda nacional e da cultura (RAMOS DO Ó, 1999, p. 74). Esse dispositivo cultural buscou criar um processo de “regeneração nacional”, a fim de reconduzir os portugueses à sua “ordem natural”, combatendo toda e qualquer “degenerescência do espírito”, a partir da “reeducação”, fazendo-os encontrar com a sua “essência natural” (ROSAS, 2001, p. 1034). O Secretariado de Propaganda Nacional e a ''política do espírito'', idealizada por António Ferro, foram, em grande parte, produtos desse esforço em agrupar e concentrar a propaganda política e cultural, para criar um sistema de representações monolítico, que buscasse orientar toda teoria e prática do período, não podendo existir nada fora dele (RAMOS DO Ó, 1999, p. 19). Segundo Ramos do Ó (1999), os anos de 1933-1949 foram o auge da tentativa do salazarismo de edificar no seio do campo cultural um sistema normativo e, portanto, institucional, que angariasse instituições e agentes produtores de bens simbólicos que colocassem as classificações e divisões do mundo social, próprias dos valores do regime, no topo da hierarquia do campo cultural.

de cerimônias, festivais, paradas e desfiles. Assim, é na encenação coletiva que o fascismo encontra o meio de transfigurar o discurso (idem, p. 739). Para entender algumas disfunções da “Política do Espírito” do Estado Novo na conjuntura das décadas de 1930 e 1940, cf.: Ramos do Ó (1999) e Adinolfi (2007).

9

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A portugalidade que o regime buscava defender, pelo combate sistemático ao “degenerado” e “satânico”, era descrita/narrada no discurso da intelligentsia salazarista por uma série de mitos que foram fundamentais na pulsão nacional. Entre os vários mitos que mobilizaram a intelectualidade lusitana podemos destacar dois que faziam parte das discussões do campo intelectual do período: o mito da vocação imperialista — herdado da tradição republicana e monárquica, na sua dupla dimensão da vocação histórica providencial de colonizar e evangelizar (ROSAS, 2001, p. 1034) — e o mito da ordem corporativa — a ideia de que a ordem natural das coisas é espontaneamente hierárquica e harmônica (se colocada em “ordem”). Desdobra-se em uma visão infantilizadora do povo português, que deve ser guiado por um Estado fraternal (ROSAS, 2001, p. 1036). A construção de um ser nacional lusitano foi, portanto, uma peça chave no discurso da intelligentsia portuguesa desde a crise orgânica do liberalismo que se arrastou desde o fim do século XIX e, em particular, a partir do Ultimatum de 1890. A regeneração das glórias lusitanas por meio da reconstrução nacional, através do império, do corporativismo e do autoritarismo, esteve presente nesse processo de “olhar para dentro” nos tempos da política do espírito salazarista. Este engajamento e adesão dos intelectuais à realidade nacional por meio da invocação de um Estado capaz de unificar e harmonizar as distintas perspectivas é indício de uma certa homologia do campo político e intelectual. Estas representações do político encontram-se em Portugal e no Brasil,10 em tempos de autoritarismos, como aspectos de uma cultura política que demandava uma grande responsabilidade dos intelectuais na sua intervenção pública para a construção da nação. A figura paradigmática deste momento é, portanto, a do “intelectual profeta”, aquele que detém como “vocação” o desvelar do “subconsciente coletivo”, como afirmavam Azevedo de Amaral, Oliveira Viana e outros pensadores do período.11

10

Para o caso brasileiro cf.: Velloso (1987); Pecault (1990); e Gomes (2007).

Azevedo de Amaral (1881-1942), intelectual de perspectiva autoritária e corporativa do período, expressa muito bem essa visão dos intelectuais: “Emergidos da coletividade como expressões mais lúcidas do que ainda não se tornou perfeitamente consciente no espírito do povo, os intelectuais são investidos da função de retransmitir às massas sob forma clara e compreensiva o que nelas é apenas uma ideia indecisa e uma aspiração mal definida. Assim a elite cultural do país tornou-se no Estado 11

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Desta forma, não é arbitrário que em uma revista de cultura luso-brasileira como a Brasília, e, também a Atlântico,12 apareçam intelectuais, portugueses e brasileiros, de diversos matizes, na busca por forjar uma cultura nacional que trata de forma elogiosa as práticas do autoritarismo de ambos os regimes. Na realidade, não há só elogios no caso particular destes Estados Novos, mas uma concepção de mundo comum no que concerne aos diagnósticos e soluções para os “problemas nacionais”, a saber: a rejeição ao liberalismo e à democracia política, a ideia de que os intelectuais são uma elite dirigente acima do social, a invocação sistemática da ação do Estado na cultura, política e economia e, por fim, uma concepção corporativista própria de uma visão de mundo das “harmonias sociais”. Esta unidade das representações do fenômeno político tende a ser compartilhada pela intelligentsia no Brasil em Portugal, nos anos da vaga autoritária (décadas de 1920 e 1940),13 e se reproduz institucionalmente, como veremos logo adiante, no caso da própria revista Brasília. Em defesa dos Estados Novos: representações do Brasil nas resenhas da intelligentsia “autoritária” e “corporativa” da revista Brasília (1942-1944) Nas resenhas da Brasília, encontramos a presença recorrente a livros brasileiros selecionados que defendem, em diversos âmbitos, uma concepção de mundo “autoritária” e “corporativa”. Dentre os temas nos deparamos com textos sobre a pedagogia “renovada” do Estado Novo, de autoria de Francisco Campos e Fernando Azevedo, sobre a política eugenista e sobre a ascensão de Vargas e suas transformações em âmbito econômico e político. Dentre estas críticas, daremos ênfase às três grandes áreas discutidas: pedagogia, direito e história.

Novo um órgão necessariamente associado ao poder público como centro de elaboração ideológica e núcleo de irradiação do pensamento nacional que ela sublima e coordena” (AMARAL apud VELLOSO, 1987, p. 18). 12

Para uma análise da revista Atlântico, cf.: Silva (2011); Serrano (2009).

13

Para uma análise global da vaga autoritária dos anos 1920-40 em Portugal, cf.: Pinto (2007).

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O projeto pedagógico varguista foi amplamente discutido ao longo das críticas da revista Brasília. Um aspecto recorrente na discussão dos livros resenhados foi a questão da “escola nova” no Brasil e, portanto, o projeto de formação de uma elite técnica, capaz de “guiar” a nação para a sua modernização institucional, identificada tanto pela racionalização da burocracia como pela criação de infraestruturas. Para estes intelectuais no Brasil e em Portugal, a educação era também um instrumento para a moralização cívica de um “novo homem”, moldado pelo Estado. Um exemplo claro desta visão pedagógica pode ser encontrado na resenha de Emile Planchard (belga radicado em Portugal) ao livro de Humberto Grande, A pedagogia no Estado Novo. Como o mesmo reitera: A pedagogia no Estado Novo é a educação dirigida, capaz de renovar e organizar uma sociedade pela cultura; é a pedagogia da disciplina e da autoridade que quer formar no espírito das novas gerações uma mentalidade vigorosa e confiante, desejando esclarecer a inteligência brasileira para a compreensão exata dos grandes problemas nacionais (GRANDE apud PLANCHARD, 1943, p. 877).

A exortação das práticas pedagógicas no Brasil por Emile Planchard revela a proximidade entre o conceito de pedagogia reproduzido por intelectuais no Brasil e os pressupostos da “política do espírito” salazarista, fundamentalmente no que concerne à sua visão das massas como matéria-prima a ser moldada, por meio de políticas culturais. Para Planchard, em sua leitura do livro de Humberto Grande, a pedagogia de ambos Estados Novos buscava os fundamentos científicos para a realização de uma ampla intervenção pública, com o intuito de transformar os pressupostos da antiga prática pedagógica, ainda muito liberal e individualista (PLANCHARD, 1942, p. 877). A despeito de criticar o livro de Grande por não trazer nenhuma novidade significativa, elogia a sua capacidade de explicar sinteticamente as inovações que o conceito de pedagogia moderna, oriundo da “Escola Nova”, traz ao público brasileiro (PLANCHARD, 1942, p. 879). A retórica pedagógica “bacharelesca”, própria do período liberal, deveria desaparecer mediante iniciativa do Estado, em prol de

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práticas direcionadas a uma verdadeira “renovação nacional” da educação, desde a infância até a fase adulta (PLANCHARD, 1942, p. 880). A mesma crítica à pedagogia liberal e o elogio das práticas pedagógicas no Brasil apareceram em uma outra resenha de Emile Planchard ao livro “A educação pública em São Paulo” de Fernando de Azevedo, um dos principais idealizadores da renovação pedagógica do varguismo. Planchard elogia a grande capacidade analítica de Azevedo, exortando as suas propostas para a transformação da educação pública no Brasil por meio da invocação de uma proposta unitária que vise a organização pedagógica, cujo maior protagonista seria o Estado. Planchard (1942, p. 824) afirma também que as deficiências educacionais encontradas por Azevedo em seu estudo da instrução nacional estão em processo de transformação devido à institucionalização da “revolução nacional que se completou no Brasil” desde a emergência do Estado Novo em 1937. Ademais, explicita que o maior mérito do trabalho de Azevedo é a conciliação entre a sua prática como diretor geral da instrução e os seus escritos pedagógicos. O autor finaliza sua resenha considerando Azevedo um dos principais protagonistas da renovação pedagógica estado-novista (PLANCHARD, 1942, p. 824). Aliás, essa apologia de Emile Planchard à renovação pedagógica no Brasil não é arbitrária, dado que ele foi o principal divulgador da Escola Nova em Portugal, introduzindo uma pedagogia capaz de fomentar as “solidariedades sociais”, como é próprio de sua matriz corporativista de inspiração durkheimiana. Em uma outra resenha no mesmo volume, Duque Vieira analisa a obra Educação e cultura, de Francisco Campos, outro arauto da renovação pedagógica do Estado Novo no Brasil. Vieira inicia sua resenha elogiando as virtudes de Campos como “homem público”. Tais elogios constam de suas intervenções publicadas no livro ofertado pela Seção Brasileira do Secretariado de Propaganda Nacional ao Instituto de Estudos Brasileiros. Segundo Vieira, os discursos de Campos, enquanto diretor da Secretaria da Instrução, e os mais contemporâneos, como ministro da Educação Federal, revelam páginas de verdadeiro brilhantismo de um estadista-escritor, pois os seus escritos não são mera retórica, mas espelhos de sua própria prática enquanto homem de 243


Estado (VIEIRA, 1946, p. 909). Ainda sobre o livro de Campos, Vieira cita a importância que a “formação moral e patriótica” deve ter na reforma da instrução nacional no Brasil. Essa reforma, segundo Vieira, em sua interpretação de Campos, deveria criar uma educação que não forme meramente “bacharéis” (como é próprio da pedagogia de até então), mas quadros da elite capazes de orientar os rumos da nação (VIEIRA, 1946, p. 911). Para o crítico, a renovação pedagógica orientada no Brasil e em Portugal, ao guiar-se a partir de suas respectivas particularidades nacionais e culturais, gera, por si, uma autonomia destas nações, até então muito presas aos “estrangeirismos”, que eram, para Vieira, verdadeiros empecilhos à autonomia nacional (VIEIRA, 1946, p. 912). Vieira encerra sua resenha explicitando que essa autonomia permitiria que o Brasil e Portugal fossem capazes de ocupar o lugar de protagonistas de um “novo eixo mundial”, que teria a língua e a cultura luso-brasileira como constitutivas desta nova civilização, cujo epicentro seria o Atlântico (VIEIRA, 1946, p. 912). A apologia ao projeto pedagógico destes autores pelos resenhistas portugueses, tem uma estrutura comum: a defesa intransigente de um modelo de “instrução nacional” arregimentado pelo Estado com um forte teor elitista e corporativista. Este projeto autoritário e corporativo é visto por estes autores como um “desdobramento natural do tempo”, portanto, como uma realidade dos regimes que buscam uma modernização institucional por meio daquilo que existe como mais “cientifico” no período. Entretanto, não é somente no campo pedagógico que estas noções aparecem; no campo jurídico e historiográfico há uma repetição recorrente das “soluções” aos problemas nacionais pelos brasileiros lidos pelos portugueses, como o elogio apologético a estas mesmas resoluções. Em uma crítica de José de Alberto Reis ao Código do Processo Civil Brasileiro de 1937, redigido por Pedro Batista e revisado por Francisco Campos, há uma análise laudatória do autoritarismo das resoluções estado-novistas no âmbito jurídico e, em particular, uma exortação indiscreta à Constituição de 1937 (“Polaca”). Reis (1942, p. 830) inicia sua crítica avaliando positivamente a substituição de “um regime da pluralidade para a unidade do Código Civil” orquestrada pelo Estado Novo de 244


Vargas, sob o protagonismo de Francisco Campos. Além disso, reitera sua defesa a estas mudanças constitucionais, citando uma série de reflexões de Francisco Campos que, em um relatório, afirma que o processo civil deixou de ser “instrumento das classes privilegiadas” para, assim, “assumir uma feição de cunho eminentemente popular” (CAMPOS apud REIS, 1942, p. 930). Segundo o crítico, essas mudanças visavam a simplificação e universalização do processo jurídico, superando os entraves de uma institucionalidade burocrática — que propiciava, em sua lentidão, a vitória das “classes dominantes” frente às massas — e almejando, por meio desta transformação, a harmonização entre as partes (REIS, 1942, p. 830). Essa “harmonia” seria alcançada mediante um maior fortalecimento da figura do juiz que agora deve intervir contra o “privatismo” e “individualismo”, para, assim, ter uma solução de fato “harmônica” (REIS, 1942, p. 830). Esta concepção das “harmonias sociais”, implícita na Constituição e no discurso analisados por Reis, aparece de forma mais explícita na citação que ele destaca do relatório supracitado de Campos: A concepção duelística substitui-se a concepção autoritária: o processo deixou de ser encarado como um instrumento de luta entre particulares e passou a ser considerado como instrumento de investigação da verdade e da distribuição da justiça. E como distribuição da justiça é uma das funções e uma prerrogativa do Estado, daí vem que este não pode assistir, impassível e inerte, o desenrolar do drama judiciário: tem de intervir nele ativamente como interessado, para que o resultado corresponda ao fim, para que triunfe a verdade e a justiça, em vez de triunfar a força ou a astúcia (CAMPOS apud REIS, 1942, p. 831).

Desta forma, a “verdade” constituída no processo jurídico não seria mais a cargo das partes (como era no processo duelístico), mas da intervenção do juiz, representante do Estado, o único capaz, conforme Reis (1942, p. 832), de harmonizar os conflitos segundo “uma construção científica”. Essa justiça distributiva superaria, portanto, a “ficção liberal” que fazia uso do “poder público” para interesses “privados”, “individuais”. Reis (1942, p. 833) ainda afirma que esta concepção “autoritária” é erroneamente enquadrada como “fascista”, pois apesar de sua 245


proximidade com aquilo que se encontrava nos Estados “totalitários” há algumas diferenças que devem ser resguardadas. Reis (1942, p. 834) reitera também que a despeito da figura do juiz forte e ativo, este só deve intervir, nos regimes ditos autoritários, para impedir “desequilíbrios aplicando a justiça”. Na verdade, para o crítico, o Código Civil, em particular, era tributário e, portanto, mais próximo do Código Civil português de 1936, de modo que afirma que certos artigos são diretamente inspirados no código português, apesar de não os citar comparativamente na crítica. Entretanto, entra em dissenso quando Campos afirma a sua interpretação do processo jurídico sobre a herança dos publicistas americanos, não afirmando a autoridade dos portugueses na construção do código português. A despeito destes desvios pontuais, a leitura de Reis é otimista, sobressaindose na defesa intransigente do autoritarismo e corporativismo que a Constituição de 1937 representava no Brasil, espelhando até uma certa proximidade entre Portugal e Brasil no âmbito jurídico. Esta apologia não é arbitrária: Reis foi autor do Código de Processo Português, de 1939, bem como professor de Direito da Faculdade de Coimbra e Presidente da Assembleia Nacional, o que o coloca em um lugar institucional bastante propício para uma leitura positiva da institucionalidade proposta pelo Estado Novo no Brasil, em clara consonância com o regime português. Esta proximidade é ainda mais clara no âmbito historiográfico. A historiografia publicada na Brasília não só afirmou um “olhar comum” em um passado longínquo, conforme já estudamos em outro momento,14 como também buscou no presente aspectos que vinculassem intimamente Brasil e Portugal. Essa aproximação política foi marcante no que concerne aos três primeiros volumes (1942, 1943, 1944-46), mesmo porque essa produção emerge no período em que o Estado Novo brasileiro e português está no auge de sua aproximação política e cultural. Além destes intelectuais compartilharem uma visão consensual sobre o legado português no mundo, também coadunam com o pensamento autoritário, corporativo, antissocialista, antiliberal e antidemocrático.

14

Cf.: Assunção (2014) e Serpa (2010).

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Em geral, as obras historiográficas resenhadas sobre o Estado Novo brasileiro abordavam a questão da ascensão do varguismo, pensando neste sempre como um contraponto ao liberalismo. A grande maioria das resenhas afirmava explicitamente sua posição dentro dos marcos de uma concepção “autoritária” e “corporativa”, o que fazia com que os autores fossem exaustivamente elogiados pelos críticos. Além de tudo, é frequente também a comparação entre as práticas do Estado Novo brasileiro com o português, reiterando um certo espelhamento entre os regimes. Um exemplo disso é a resenha de Duque Vieira do livro escrito por Azevedo de Amaral: Getúlio Vargas estadista (1941). O resenhista ressalta uma biografia de Getúlio Vargas e de seu tempo; a constante apologia a Vargas é amenizada em virtude deste estudo ser “filho da verdadeira sinceridade e de visível convicção” (VIEIRA, 1946, p. 915). Um elemento ressaltado pelo resenhista como ponto de referência de consenso é a proximidade de olhares e de práticas de Estado entre Brasil e Portugal, em um contexto evidenciado pelo livro: Como é sabido, há muitos pontos de semelhança entre a moderna orientação política do Brasil e de Portugal. Verificá-lo é um grato prazer para os portugueses, para quem é caro tudo quanto diz respeito ao Brasil e que veem com alegria tudo quanto assemelhe ou aproxime os dois países, sobretudo quando eles chegam ambos, como agora, por conclusão autônoma a situações pelo menos parcialmente idênticas (VIEIRA, 1946, p. 916).

Para Duque Vieira (1946, p. 917), esta situação ‘‘parcialmente idêntica’’ é a própria crítica ao liberalismo e à semelhança como em ambos países a questão social e econômica estava sendo gerida, a partir de um Estado que se colocava ‘‘em um plano superior à controvérsia travada entre o capital e o trabalho”, rompendo, por meio de uma série de práticas, com a supremacia do privado sobre o público. Vieira (1946, p. 917) também registra, fundamentado em Amaral, que a resolução deste conflito se daria a partir de um Estado que impusesse ao capital e ao trabalho o conceito do ‘‘primado do bem público sobre todas as conveniências de caráter privado”. Segundo o crítico, esta semelhança entre ambos os regimes era compartilhada em razão da política financeira (explicitando a política protecionista 247


de Vargas como semelhante à de Salazar) e da proximidade de ambos como estadistas, pois os dois supostamente incorporam e sintetizam ‘‘as qualidades e a maneira de ser de seu povo” (idem, ibidem). Duque Vieira finaliza sua crítica registrando que o historiador futuro deve direcionar seu olhar para a ‘‘revolução operada por Getúlio Vargas’’, já que esta, por suas “inúmeras virtudes”, preservou a unidade nacional e afirmou a autonomia e soberania do Brasil frente à hegemonia externa (fundamentalmente o panamericanismo), antagonizando-se à política liberal em prol da “reconquista da unidade interna do Brasil” (VIEIRA, 1946, p. 918). Ele ainda afirma que esta reconquista significaria para o Brasil ser mais ‘‘igual a si mesmo’’, ou seja, ser mais fiel à sua herança e, portanto ‘‘mais simpáticos para os seus amigos deste lado oriental do Atlântico” (idem, ibidem). A ascensão do varguismo é vista pelos resenhistas (através dos livros selecionados) em uma dimensão “fatalista” e “natural”. Vargas e Salazar são considerados como expressões, segundo o discurso dominante, de um Estado “regenerado” que superou, por meio da centralização do poder em suas mãos, o período “negro” do liberalismo. Esta interpretação consagrada nos manuais didáticos e na historiografia oficial é explícita na resenha de Souza ao livro O Brasil de ontem e de hoje, de J. De Mattos Ibiapina, publicado pelo Departamento de Imprensa e Propaganda. O resenhista inicia seu texto elogiando o livro de Ibiapina por ser uma crítica contra os políticos que levaram o Brasil ao “descalabro” e uma defesa intransigente da ação de Vargas em seus diversos aspectos (SOUZA, 1946, p. 919). Souza (idem, ibidem) considera que a crise descrita pelo autor não é peculiar apenas ao Brasil, mas se trata de “um fenômeno geral, atingindo até uma maior intensidade nesta velha Europa, teatro de experiências dolorosas em busca de um rumo político e social definido”. Ainda sobre a crise, Souza (1946, p. 919) afirma que as resoluções tomadas mediante o caos geral do liberalismo foram, em alguns casos, exageradas, no que concerne à “estatolatria” e ao culto da filosofia da força. Desta forma, critica o nazismo e os regimes que considera como “totalitários”, enquadrando o caso 248


português e brasileiro como fora dessa órbita. Esta diferenciação é recorrente não só nos intelectuais portugueses e brasileiros do período, mas também no discurso dos homens do Estado que contrapõem o fascismo (“totalitarismo”, próprio de “povos violentos”) a uma “ditadura de direito” própria de um “povo pacífico”. Como reitera o próprio Salazar: A nossa ditadura aproxima-se, evidentemente, da Ditadura fascista no reforço da autoridade, na guerra declarada a certos princípios da democracia, no seu caráter acentuadamente nacionalista, nas suas preocupações de ordem social. Afasta-se, porém, nos seus processos de renovação. A ditadura fascista tende para um cesarismo pagão, para um estado novo que não conhece limitações de ordem jurídica ou moral, que marcha para o seu fim, sem encontrar embaraços nem obstáculos. [...] O Estado Novo português, ao contrário, não pode fugir a certas limitações e ordem moral que julga indispensável manter, como balizar, à sua ação reformadora [...]. As nossas leis são menos severas, os nossos costumes menos policiados, mas o Estado, esse, é menos absoluto e não o proclamamos onipotente (1955, p. 74).

Voltando à crítica, ao analisar a História do Brasil recente, interpretada por Ibiapina, Souza (1946, p. 920) critica as ações das lideranças do Brasil republicano, uma vez que, ao tentarem implantar ideias “estranhas à realidade brasileira”, não souberam dar continuidade à herança da monarquia de uma “pátria unida e forte”. Segundo o crítico, a crise do Brasil republicano deve-se à política “privatista” dos Estados. Esta política é reforçada pela Constituição de 1891 através de seu “utopismo transposto” (idem, p. 921). O caso do café e da borracha são exemplos claros, para Souza, de como o Brasil se tornou uma colônia financeira internacional, um “feudo do capitalismo estrangeiro” (SOUZA, 1946, p. 921). Ele afirma que, se não fosse a “revolução” operada por Vargas, o país caminharia a “passos largos para a derrocada social” (idem, p. 922), bem como elogia o “amor pátrio” de Ibiapina em sua descrição das diversas medidas que Vargas implanta para a superação da crise: lei de proteção ao trabalho, lei da aposentadoria, lei da sindicalização, lei das oito horas de trabalho

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e o confronto com os “privatistas paulistas” e a consequente centralização do poder político e econômico (idem, p. 923). Esta perspectiva da história recente, que enquadra como “negro” o passado recente, liberal-individualista, e afirma um presente “renovado” e “regenerado” é própria de uma certa noção de tempo histórico dominante do período, que vê a história nos marcos de “momentos áureos” (o “hoje”) e momentos “decadentes” (o “ontem”), tendo os primeiros como “exemplos” para práticas futuras. Tal visão da história não aparece somente na crítica ao livro de Ibiapina, mas também em pelo menos duas outras resenhas que se remetem à superação da crise econômica do Brasil. Na primeira resenha, escrita por Fernando Pinto Loureiro ao livro de Luís Dias Rollemberg, Aspectos e perspectivas da economia nacional, publicado como parte da coleção “Decenal da Revolução Brasileira”, há uma análise da história econômica do Brasil recente. Tal resenha evidencia a mudança recente no Brasil de uma política econômica particularista para uma verdadeira política nacional em Vargas (LOUREIRO, 1943, p. 884). O crítico elogia a visão de Rollemberg sobre o passado e o presente do Brasil, reiterando a perspectiva de um passado recente caótico, em razão do privatismo protagonizado pelos cafeicultores, sendo somente com Vargas o início de um longo caminho para a autonomia do Brasil (idem, ibidem). De forma análoga a esta resenha, Afonso Rodrigues Queiró — no livro As autarquias e as sociedades de economia mista no Estado Novo, publicado pelo Departamento de Imprensa e Propaganda — critica o que denomina como “Estado individualista-liberal” em prol de um “Estado intervencionista” que lute contra o privatismo, segundo uma perspectiva dirigista da política e da economia (QUEIRÓ, 1943, p. 885). Queiró registra ainda que o Estado intervencionista deve harmonizar o bem público e “coletivo” com os distintos interesses privados (idem, ibidem). Para o autor, com a proclamação da República há uma dominância negativa do poder privado sobre o poder público, a despeito de inúmeros indivíduos no seio do Estado estarem “preocupados com o bem comum”. Ele ainda afirma que:

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[... a] economia entregue a si própria, colocada ao lado ou acima do Estado, dominando-o e enfraquecendo-o, justificou plenamente a revolução de 1930, expressão da necessidade nacional de um Estado forte e autoritário, de um Estado Novo, disposto a agir positivamente, em especial no domínio econômico (QUEIRÓ, 1943, p. 886).

Para o crítico, é com as Constituições políticas de 1934 e 1937 que se concretizam os princípios programáticos do Estado Novo Brasileiro, tendo como base a ideia de harmonização do público com o privado. Queiró cita a Constituição para reiterar seu argumento: Na iniciativa individual, no poder de criação, de organização e de invenção do indivíduo, exercido nos limites do bem público, funda-se a riqueza e a prosperidade nacional. A intervenção do Estado no domínio econômico só se legitima para suprir as deficiências da iniciativa individual e coordenar os fautores da produção, de maneira a evitar ou resolver os conflitos e introduzir no jogo das competições individuais o pensamento dos interesses da Nação, representada pelo Estado (Art. 135 da Constituição de 1937 apud QUEIRÓ, 1943, p. 887).

Em sua leitura da obra de Eryma, a suposta harmonização descrita pelo autor invade também o âmbito da representação corporativa, muito mais “democrática”, segundo Queiró, que a representação meramente política liberal, criando, assim, uma ação conjunta entre as diversas “forças econômicas”, as “forças vivas da nação”, em prol do “crescimento nacional” (QUEIRÓ, 1943, p. 887). Para Queiró, esta integração da sociedade, mediante as corporações e, em particular, no seio do “Conselho da Economia Nacional” é análoga ao que o governo português fazia por meio da “Câmara corporativa portuguesa”, e mesmo da “Câmara dos fáscios” na Itália (idem, p. 888). Estas práticas são visíveis, seja nas “autarquias” (institucionais) — controle e gestão direta de empresas por meio de entidades paraestatais: Departamento Nacional do Café, Caixa Econômica Federal, Institutos de Pensões e aposentadoria —, seja nas “sociedades de economia mista” — participação financeira e 251


administrativa do Estado em empresas mercantis, constituídas por meio do direito privado: Banco do Brasil, Instituto de Resseguros do Brasil —, que demonstram a maior intervenção do Estado, a fim de harmonizar os interesses privados com o poder público (idem, p. 890). A defesa intransigente à concepção de mundo autoritária e corporativa é ainda mais explícita quando confrontada por uma voz de dissenso. Duarte de Montalegre, em uma resenha à revista do Arquivo Municipal de São Paulo, destaca o artigo de António Piccarolo, “História das doutrinas políticas”, tecendo diversas críticas à posição “difamatória” do autor em sua análise aos regimes “totalitários e autoritários”, bem como afirmando a posição que um historiador das doutrinas políticas deve assumir: Uma das qualidades imprescindíveis ao autêntico historiador, das doutrinas sociais, da literatura ou dos fatos políticos é, não há que negar, a isenção de juízos críticos, a imparcialidade, a honestidade, numa palavra. É esta uma virtude de carácter moral, necessária para que o historiador possua inconcussa autoridade, como se faz mister. Faltando ela, tudo se afundará (MONTALEGRE, 1946, p. 938).

Além disso, ele afirma que a despeito de este artigo ser um trabalho sério até a primeira e segunda parte da sua obra, na terceira, quando procura analisar as doutrinas do nacional-socialismo e da democracia, “deixa-se por completo obcecar pelo paroxismo de suas latrias e das suas fobias políticas” (MONTALEGRE, 1946, p. 938). Piccarolo, segundo a crítica de Montalegre, ao contrário de uma atitude própria de um “homem de ciência”, teve um comportamento sectário ao tratar de forma elogiosa a democracia e negativizar as doutrinas do nacional-socialismo (idem, p. 939). Para Montalegre (1946, p. 942), o historiador deve se limitar aos fatos políticos, e “narrá-los tais como aconteceu”, visto que, segundo a sua perspectiva essencialista, “[o]s fatos... são fatos e não vale deformar o seu sentido positivo, mesmo quando eles reduzem o pensamento doutrinário a sua expressão mais simples”. Mais à frente, cita Piccarolo, a fim de demonstrar a sua parcialidade e, portanto, falta de cientificidade com relação à sua análise: “Fascismo e Nazismo, de 252


fato, não são doutrinas, mas simplesmente negações dos princípios fundamentais que constituem o glorioso patrimônio político dos últimos séculos, conquistado através das gloriosas lutas do pensamento e da ação” (PICCAROLO apud MONTALEGRE, 1946, p. 942). O resenhista considera tal interpretação como própria de um “arrivista” ou “demagogo”, não de um historiador sério, mesmo porque, segundo ele, o problema não é se o mesmo é antifascista, mas se ele não se limita aos “domínios da história das ideias”, sem “formular juízos de valor”, reiterando que, se um outro intelectual se manifestasse como Piccarolo com relação ao fascismo e nazismo, procederia também de forma “parcial” e “deformada” (MONTALEGRE, 1946, p. 950). Montalegre termina o texto afirmando que em razão da fobia de Piccarolo a tudo que “não seja democrático”, acaba sendo mais apologista dos seus “ideais doutrinários” do que propriamente historiador (idem, p. 951). Essa contradição entre o discurso da “neutralidade” e “imparcialidade” e a defesa intransigente ao regime está presente de forma unânime nas narrativas da Brasília. Ao revelarem o Brasil a Portugal, buscavam uma imagem da História do Brasil que correspondesse a uma concepção de mundo marcadamente imperialista, autoritária e corporativa. Todo critério de seleção e avaliação foi orientado para a defesa de uma concepção de mundo oficial formada por certos valores, constitutivos de um certo caráter lusitano. Um outro aspecto geral das críticas, fundamentalmente no âmbito historiográfico, reside no fato de que estas estão enquadradas naquilo que poderíamos chamar de “narrativas salvacionistas”. Para José Gil (1996), o discurso salazarista se assemelha às narrativas canônicas das grandes sagas mitologias. O seu conteúdo divide-se segundo etapas definidas que narram a saga do Estado Novo: [...] primeiro a situação de desordem de mentira, de anarquia, de humilhação (“aviltamento”) do País antes do golpe de Estado que impõe, a 28 de maio de 1926, a Ditadura Militar. O “negativo” estendese a todos os setores da vida nacional: financeiro, econômico, social, político, moral. Mas por de trás deste passado, próximo, existe o passado longínquo, mítico, da nossa história gloriosa. O passado próximo é vulnerável como o presente, o passado distante marca um

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tempo forte[...]. Na segunda etapa há o sacrifício financeiro, do trabalho, do capital para superar a tendência de morte, da doença para a cura15 (GIL, 1996, p. 24).

Este modelo de narração global da história do regime, desde os seus primórdios até a sua fase de regeneração e consequente era de ouro, não é só presente no discurso do próprio Salazar, mas reproduzido pela intelligentsia salazarista e, também, na própria interpretação dela em relação ao Estado Novo no Brasil. Como vimos nas críticas, em particular na área de história, há sempre uma estrutura comum no que concerne à análise global do varguismo: primeiro a crise institucional ocasionada pelo liberalismo e, por conseguinte, o despertar da nação oriundo de um Estado Novo que harmonize o conflito por meio da intervenção “regeneradora”. Esta estrutura comum, no que concerne à interpretação geral do fenômeno estado-novista no Brasil e em Portugal, é um indício de uma concepção autoritária e corporativa, compartilhada por esta intelligentsia nas duas margens do Atlântico. Em ambas o herói é o próprio Estado Novo que invoca a nação a se sacrificar em prol do “ressurgimento” nacional. Esse sacrifício não deveria ser feito somente pelo “capital” e “trabalho”, mas também pelos intelectuais que deveriam largar os seus “barroquismos” e “particularismos ideológicos” em prol de um engajamento ativo em torno da reconstrução da nação no Brasil e em Portugal. Desta forma, poderíamos dizer que há um espelhamento em torno de pelo menos quatro temas estruturantes na cultura política da intelligentsia luso-brasileira do período: a invocação de um Estado forte e centralizado, a defesa de uma democracia social (por meio da organização corporativa) em detrimento de uma democracia política, a formação de uma elite engajada no processo de modernização institucional da estrutura burocrática e, por fim, a defesa intransigente de um Executivo forte e, portanto, de um crescimento da

Como fica claro no discurso de Salazar (apud GIL, 1996, pp. 24-25): “[...] primeiro agitação permanente, mutações rápidas de cena política, desordem nas ruas e nos espíritos, anarquia e insuficiência dos serviços, falta de segurança das pessoas e dos bens, descrédito, ruína da economia, atraso geral, muitas revoluções, nenhuma revolução, depois a Ditadura que estabelece a paz”. 15

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figura do Estado por meio da eliminação dos “corpos intermediários”, resquícios da política privatista e individualista do liberalismo. Em suma, essa matriz comum na representação do político é objetivamente um indício de uma cultura política arraigada ao corporativismo e autoritarismo dos tempos da vaga autoritária dos anos 1920-40, o que não é arbitrário, pois a grande maioria dos autores resenhados na Brasília tiveram alguma relação direta ou indireta com o poder no Estado Novo brasileiro, como demonstram os casos emblemáticos de Azevedo de Amaral, Francisco Campos e Fernando de Azevedo. Além disso, as suas obras, em sua grande maioria, foram publicadas por órgãos oficiais do regime, como o Departamento de Imprensa e Propaganda, Editora da Companhia Nacional, Comissão Brasileira dos Centenários, Seção Brasileira do Secretariado de Propaganda Nacional, Coleção Decenal da Revolução Brasileira, etc. Tanto os autores como os resenhistas detêm uma série de vínculos institucionais diretos (com a burocracia dos regimes militares, homens de Estado) ou indiretos (por meio de órgãos da sociedade civil: universidades, bibliotecas, escolas públicas, etc.) que evidenciam uma homologia entre as suas respectivas interpretações intelectuais no âmbito pedagógico, jurídico e historiográfico com aquilo que é hegemônico no campo político, ou seja, uma visão uníssona laudatória do significado do Estado Novo. Isso, contudo, não é exclusivo da Brasília, pois, como reiteram Silva (2011) e Serrano (2009), as produções intelectuais emergidas nos anos de fortalecimento da “Política do Atlântico” (a revista Atlântico, o boletim da Seção Brasileira do Secretariado de Propaganda Nacional e as coleções de livro publicadas com o incentivo do Acordo Cultural de 1941) foram publicadas por órgãos oficiais sintonizados com os valores dos regimes de “terceira via”. No entanto, é preciso ressaltar que esse diálogo entre as intelectualidades e as instituições no Brasil e em Portugal, durante o Estado Novo, ultrapassou a questão do corporativismo e autoritarismo, pois a política cultural luso-brasileira, a denominada por Antônio Ferro “Política do Atlântico”, foi defendida por distintas matrizes políticas, mesmo por aqueles que confrontavam o salazarismo. Portanto, não é ocasional que a mesma se perpetue no pós-guerra, já sob um regime

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constitucionalmente democrático com sua consagração institucional na assinatura do tratado de amizade e consulta de 1953. Entretanto, sabemos que estas relações devem ser compreendidas quando inseridas em um processo de longo prazo das relações entre Brasil e Portugal. Tais relações dão um salto qualitativo e quantitativo durante a institucionalização de ambos Estados Novos, oferecendo àqueles intelectuais muito mais do que a justificativa do legado, para, assim, unirem-se em torno de uma bandeira comum: a nação luso-brasileira de matriz autoritária, corporativa e cristã contra o “satanismo” do liberalismo, comunismo e totalitarismo. Tal visão tem seu lugar social no seio da revista Brasília e de outras revistas e produções luso-brasileiras (a despeito dos conflitos e contradições ocultadas sistematicamente nestas produções), desde o período de institucionalização do salazarismo e varguismo e afirmação das políticas culturais entre Brasil e Portugal até o fim da Segunda Guerra Mundial.

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Esta obra foi composta em Helvetica, em setembro de 2018. Capa baseada na litografia The Bosses of the Senate, de Joseph Keppler. Goiânia/GO, setembro de 2018, 260p.


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