Paisagem rural: modos de ver

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PAISAGEM RURAL: MODOS DE VER Rodrigo Pereira dos Reis



Universidade Federal de São João del Rei Bacharelado em Arquitetura e Urbanismo

Trabalho Final de Graduação Título: Paisagem Rural: Modos de Ver Subtítulo: Estudo de caso do bairro Paiol da Vargem, Toledo -MG. Aluno: Rodrigo Pereira dos Reis Orientadora: Prof. Dr. Márcia Saeko Hirata

São João del Rei, julho de 2017


Ă?ndice


06 08 13 16 19 23 23 29 35 39 41 45 50 57 61 64 82 86 90 97 107 109 110 112

Agradecimentos De onde tudo veio Introdução O campo e a cidade O campo natural e industrial A paisagem A paisagem rural O rural no Brasil O rural em Minas Gerais Toledo: aspectos históricos Toledo: panorama atual Área-estudo Paisagem natural? regularidade e tempo O bairro: aspectos históricos O bairro: panorama atual Os elementos da paisagem rural A paisagem em transformação Oralidade, memória e e topofilia Narrativas: de um ex morador e autor Modos de olhar: relato do processo Mundo campo: o filme Considerações metodológicas considerações finais Referências


Agradecimentos

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Dedico este trabalho aos meus pais, Afonso e Tereza, que fazem do rural sua morada e parte de nossa vida. Agradeço a minha família, de modo geral, e meus irmãos, especialmente Beto, pelo carinho e atenção de sempre. Um trabalho é resultado de um percurso, e por isso agradeço a todos os professores que cruzaram e iluminaram meu caminho até aqui. Dedico aos professores e colegas da E. M. Paiol da Vargem, da E. E. dos Pereiras, da E. E. Raimundo Corrêa, da UFSJ e da Università degli Studi Roma Tre. Em especial, agradeço a professora Simone Cortezão, que abraçou o tema do trabalho e me orientou na fase inicial das reflexões; a professora Márcia Hirata, que aceitou orientar o trabalho já em andamento e esteve sempre disposta a ajudar; as professoras Adriana, Liziane e Daniela, pelo acompanhamento e carinho; a Francesco Careri e Stephano Converso, por acreditarem em mim e me fazerem sentir mais em casa no intercâmbio. Reconheço também a importância do “SeNEMAU Cuiabá” e do Seminário “A Língua que Habitamos”, nos quais pude ouvir e mostrar um pouco sobre a paisagem rural, e dos que colaboraram com a discussão, em especial ao Antônio Junqueira, da UFMT. Agradeço, por fim, aos amigos que viram essa idéia nascer e me ajudaram a me manter bem até o fim, em especial a Tainara, Luiza, Gabriel, Sarah, Cícero, Lucas, Mariana, Eduardo, Débora, Karine e Júlia. Muito obrigado!

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DE ONDE TUDO VEIO

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Escrevi esse trabalho como se estivesse contando histórias e, nada mais justo, que começar contando a história do próprio trabalho. Neste ponto, não consigo separar absolutamente de onde veio o tema e de onde veio seu autor. Como gosto de brincar, nasci e cresci no campo, entre pastos e vacas, onde o tempo é lento e a cidade é vista de longe. Cresci valorando a terra, ouvindo que ela nos alimenta e vivendo a lentidão do rural e vendo o tempo da natureza. Aos 17 anos, quando fui para a cidade e ingressei no curso de Arquitetura e Urbanismo, esse tema passou a existir em mim. Ele foi alimentado por dúvidas e pelo estranhamento que via na cidade, em seus hábitos e pela diferença no tempo em que as coisas aconteciam. Nesse momento, tudo o que eu entendia do rural e urbano partia da minha vida no sítio e de minha mudança para a cidade. Muita coisa aconteceu ao longo dos últimos anos e, já ao fim do curso, quando comecei a pensar em um tema para o TFG, voltei a pensar no rural. Ainda quando a idéia ainda era apenas idéia, participei do Seminário Nacional de EMAUs, no Mato Grosso, que teve como temática “O direito à cidade além do perímetro urbano”. Durante aquela semana, acampando em um assentamento rural e discutindo - com estudantes, arquitetos, professores e camponeses aspectos do meio rural, esse trabalho foi nascendo. Longo foi o caminho até a decisão de levar adiante o tema, e maior ainda foi tempo até ver onde poderia chegar com ele. Foram meses de estudo, percalços. Inseguranças e satisfação que, ao fim, se materializaram nestas páginas.

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Foto 1 - Vista de parte do bairro Foto do autor, 2017.

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Foto 2 - Vista de parte do bairro Foto do autor, 2017.

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Introdução O presente trabalho surgiu como uma experimentação metodológica para compreensão das dinâmicas da paisagem (SANTOS, 2006; CULLEN, 1983) rural, de seus aspectos morfológicos e da imagem coletiva (LYNCH, 1995) do território. Tais tópicos são, de certo modo, recorrentes nas escolas de arquitetura e urbanismo, mas acabam por tratar quase exclusivamente das zonas urbanas, e muito pouco do rural. As cidades, porém, representam apenas 2% da superfície do planeta, como mostra Koolhaas em sua fala no Congresso Internacional da Fundación Arquitectura y Sociedad de Pamplona em 2016, “Devemos pensar em metodologias para uma paisagem que cedo ou tarde teremos que assumir.” (ARCHDAILY, 2016). A paisagem rural vem como um desafio e possibilidade de experimentação e compreensão territorial. O Bairro Paiol da Vargem, na zona rural da pequena cidade de Toledo, no sul do estado Minas Gerais aparece, então, como paisagem de estudo e aplicação das metodologias de análise. O ambiente em questão é tido aqui como rural por haver todas as características mostradas por Gomes (2008), como baixa densidade das ocupações, seu caráter agrícola e da predominância de atividades de coleta e cultivo de plantas e animais. O bairro analisado passa por processos comuns às zonas rurais do país, como o êxodo rural, a mecanização da indústria agropecuária e alterações das dinâmicas socioespaciais, causadas pela subtração de espaços públicos e a realização de obras de infraestrutura que parecem desconsiderar a memória coletiva local. O questionamento que move este trabalho é como essas metodologias de análise territorial inicialmente urbanas, poderiam ser aplicadas a uma paisagem rural. A análise do território (vias, ocupação), de suas relações socioespaciais (memória, cotidiano, 13


apropriação simbólica) e sua representação formam o corpo principal do texto. A metodologia aqui empregada parte da sobreposição e adaptação de metodologias de análise territorial, e sua aplicação no bairro a partir de entrevistas, mapas mentais, realização de percursos (CARERI, 2013) e identificação de elementos importantes (LYNCH, 1995). O trabalho se estrutura em três partes, trazendo cada um deles um ponto de vista e um ponto de partida. Para iniciar a discussão, trago uma apresentação das discussões atuais sobre o rural e o urbano, com base no estudo de alguns autores como Lefebvre, Argan e Monte-Mór e alguns apontamentos sobre o uso do termo “paisagem” (SCHAMA, SANTOS) e “paisagem rural” (PANZINI). Enquanto isso, a segunda parte do trabalho vem trazendo alguns dados estatísticos e mapas sobre o rural, sua população e economia no âmbito nacional, estadual e municipal. Por fim, o coração do trabalho vem ao final, com as leituras sobre o bairro Paiol da Vargem. Essa parte do trabalho vem na tentativa de suprir os principais objetivos do trabalho (experimentar novas metodologias de análise do território e analisar de várias formas a formação e dinâmicas de um ambiente dito rural). Para isso, inicio apresentando o bairro, sua história e algumas características gerais e parto para as leituras. Nesta altura do trabalho, trabalho com três níveis de leitura, sendo eles: 1- A paisagem vista: Se ocupa da apresentação de mapas a respeito da formação física do território, como as manchas de vegetação e a análise da paisagem nativa (florestas) e industrial (eucaliptos, lavouras e pastagens), de suas características gerais e seus diferentes tempos. 2- A paisagem ocupada: Analisa a ocupação das pessoas nesta paisagem vista, assim como a distribuição das residências, os percursos, centralidades, e outras informações que, neste trabalho, são transformadas em mapas. 3- A paisagem cultural: Nesta última abordagem, objetivo fazer 14


leituras mais pessoais e subjetivas sobre o bairro, de suas memórias e percepções dos moradores, a partir de narrativas e entrevistas. Os três níveis de leitura, apresentados, vem dialogando ao longo do trabalho e dando continuidade a discussão sobre o rural, a partir de diferentes pontos de vista. Para concluir, termino o trabalho com um vídeo documentário sobre o campo, com o objetivo de aproximar a realidade do campo e a percepção de seus moradores a nós.

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o campo e a cidade A discussão sobre o rural já vem carregada de vários conceitos e variantes, que valem a pena ser tratados. As próprias terminologias de campo, rural, cidade e urbano vem se modificando ao longo do tempo. Argan (1992) mostra como a cidade e a natureza eram vistas, sendo a cidade o recinto da civilização, a natureza aquilo desconhecido além dos muros urbanos, e o campo aquilo que fazia fronteira entre as duas realidades. Esse meio rural era retratado como lugar “habitado por seres cuja natureza parecia incerta e ambígua, entre o humano e o animal”, como mostra Argan (1992). A gente do campo é citada como seguidora de tradições arcaicas e certos rituais, ligados aos ritmos sazonais e ciclos lunares. Ele diferencia ainda, essas técnicas arcaicas das “técnicas civis, cultas e intelectuais do artesanato urbano”.

Mais recentemente, alguns autores como Santos (2012) e MonteMór (2004) vêm trazendo essa temática e trabalhando-as, de acordo com a evolução dos termos ao longo do tempo. A cidade, como mostra Monte-Mór, era local de concentração de “poder, da festa, das trocas e da concentração do excedente coletivo,” enquanto o campo “era o espaço natural circundante sempre referenciado a alguma centralidade urbana, constituiu no mais das vezes seu território complementar”. Nos últimos tempos, porém, muitas foram as transformações na cidade e no campo. Monte-Mór (2004) mostra que a cidade sofreu uma transformação com a entrada da produção industrial. O que era espaço privilegiado de festa e poder, passou a ser também espaço produtivo e assim, subordinando em definitivo o campo, “agora não apenas por sua organização, mas também por sua produtividade”. Logo, a vida urbana passou a significar “o mundo urbano-industrial” e alcançou também o interior do território das cidades. Lefebvre (2002) parte da hipótese de urbanização completa da sociedade. Para ele, a produção agrícola perdeu sua autonomia e não é mais um setor com características distintivas. Ele encara a 16


produção agrícola como um setor da produção industrial, mesmo que situado na chamada área rural. “O agrupamento próprio à vida camponesa, a saber, a aldeia, transforma-se; unidades mais vastas o absorvem ou o recobrem; ele se integra à indústria e ao consumo dos produtos dessa indústria.” (LEFEBVRE, 2002)

Então a vida urbana passou a se referir, também, ao processo produtivo. O campo, até então autossuficiente, passa a ser subordinado à cidade na medida que demandava de produtos e tecnologias oferecidas pela cidade. A partir do momento em que a cidade passa a dominar o campo, agora na política, comercial e produtivamente, surge uma terceira dimensão na relação campocidade. O urbano, então, passa a compreender também as zonas agrícolas e um tecido urbano-industrial que vai além dos muros das cidades. Argan (1992) trata desse tema, já em 1992, dizendo que a cidade é um sistema de serviços, e não apenas aquela edificada. Lefebvre (2002) ainda diz que o tecido urbano não designa o domínio edificado nas cidades, mas o conjunto das manifestações do predomínio da cidade sobre o campo. E, apesar de outros autores defenderem que vivemos uma urbanização total, entendo que o rural ainda exista. No seu sentido cultural, trata-se da simplicidade da autonomia em oposição à sofisticação da vida cotidiana, tal como afirma Monte-Mór. Esse sentido cultural do rural pode ser expresso até na cidade. Uma casa na zona urbana pode ter aspectos rurais, por exemplo, se tem uma árvore no quintal ou fogão de lenha. Quanto aos “espaços verdes”, última palavra das boas intenções e das deploráveis representações urbanísticas, o que pensar senão que constituem um substituto medíocre da natureza, um degradado simulacro do espaço livre, aquele dos encontros e dos jogos, dos parques, dos jardins, das praças?” (LEFEBVRE, 2002)

Existe também o fator de localização. Podemos falar de rural tratando do deslocamento para fora da centralidade, com maior presença de natureza. “Existe sem dúvida um sentido cultural permanente do rural, da roça, e se mantém. Na Amazônia, em na nova cidadezinha planejada de Tucumã, no sul do Pará, um chofer de táxi me disse quinze anos atrás que no final de semana ele “foge da confusão da cidade e vai pra roça”. (MONTE-MÓR, 2004). 17


Neste sentido cultural, existe ainda uma diferença entre a cidade (por menor que seja), e a roça, onde se pode tirar leite do gado, e onde não se ouve buzinas. A roça nesse caso também vem como fuga temporária, do contato com a natureza, tal qual se referiu Argan. O campo em seu sentido cultural, assim como sentido de fuga para a natureza são tratados ao longo do trabalho, seja na análise da área estudo ou nas reflexões teóricas.

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o campo natural e industrial Quando se fala em paisagem rural, podem surgir algumas dúvidas sobre o que esse termo abrange. O espaço natural, como florestas, são analisados como espaços rurais? E as diferenças entre o rural bucólico e pictórico e àquela paisagem industrial instalada no campo? Para Tuan (2012), o termo natureza perdeu muito significado com o passar do tempo, assim como a palavra paisagem. Ao longo da história e da literatura, o significado de natureza foi sendo transformado. “Na medida em que o termo adquiriu o significado de physis dos gregos pré-socráticos, designava a Totalidade ou o Todo. Ainda quando se fala filosoficamente de natureza, fala-se de muitas coisas; de sapatos e navios e cola, de repolhos e reis”“Natureza é “Os céus acima, a terra abaixo, e as águas sobre a terra.”” (TUAN, 2012, p.114)

Atualmente, falar de natureza é quase que o mesmo de falar de campo e de selvagem e, como veremos adiante, existe um conflito entre esses termos. A natureza sempre carregou um ar de mistério e desconhecido, como já dizia Argan (1992). Quando ele fala dos termos “rural”, “natureza” e “cidade”, o limite das cidades aparecia bastante claro, enquanto o rural e o natural pareciam ser separados mais pelo imaginário do que por algum limite racional. Tuan nos indica também esse sentido místico, mostrando que a Bíblia trata desse selvagem, ora como lar de demônios, ora como espaço de refúgio e contemplação. Os significados de natural e selvagem remetiam a uma realidade distante e intocável pelo ser humano. Mas mesmo tratando a natureza como esse espaço anterior e além do entendimento da sociedade humana, é difícil imaginar hoje algum sistema natural que não tenha sido modificado, para melhor ou pior. “E esse mundo irreversivelmente modificado, das calotas polares às florestas equatoriais, é toda a natureza que temos. “ SCHAMA (1996) 19


Panzini (2013) nos mostra que o Imperador Cícero, de Roma, já havia citado, em uma passagem do De Natura deorum, modificações sobre a natureza. Ao falar sobre a capacidade do homem sobre a intervenção na natureza, Cícero dizia que o esforço era para “construir,

no seio da natureza uma espécie de segunda natureza”

(PANZINI, 2013, p.14). Essa segunda natureza seria uma lugar mais aprazível e mais próximo da cultura. O campo e a cidade parecem geralmente ser encaradas como antítese, mas Tuan indica que na verdade a natureza virgem e selvagem seria a real antítese da cidade. O campo vem encarado por ele como uma paisagem intermediária. A modificação da natureza, de sua ocupação e até dos métodos de produção do campo traz novos paradigmas. Hoje podemos falar de um campo (rural) industrial, que envolve o grande mercado do agronegócio, das monoculturas e da racionalização dos mecanismos de produção e de venda de alimentos. Quando falamos da natureza e sua antítese, devemos pensar em uma outra questão. Para Tuan, os papéis do campo e da cidade podem acabar se invertendo ou, em certo momento, serem igualmente percebidas como inimigas dessa natureza selvagem, seja pela expansão das cidades ou das fazendas. Já vimos, anteriormente, que existem muitas linhas de entendimento sobre os limites entre rural e urbano. Essas reflexões se estendem para a discussão do que é o espaço natural. Os autores que tratam do tema, e o censo IBGE, acabam dividindo o território em perímetro urbano e rural, e as estatísticas e dados utilizados neste trabalho vão nesse sentido. A paisagem rural é caracterizada, também, pela maior presença do ambiente natural e, entre outras, pela existência de atividades de coleta de alimentos.

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Foto 3 - Paisagem com pastagens, รกrvores nativas e eucaliptos ao fundo. Foto do autor, 2017.

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Foto 4 - Vista de parte do bairro Foto do autor, 2017.

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A paisagem O termo paisagem é carregado de muitas discussões e diferentes entendimentos, e visto de diferentes maneiras nas diversas áreas de conhecimento. A raiz da palavra landscape [paisagem] (SCHAMA, 1996, p.20), é germânica e “significava tanto uma unidade de ocupação humana (...) quanto qualquer coisa que pudesse ser aprazível objeto de uma pintura”.

No sentido de ocupação humana, vimos um caminho mais fértil para essa pesquisa. Na geografia, Santos (2012) vem tratando desse conceito como uma acumulação de tempos. Ele nos aponta que esse termo é frequentemente utilizado em vez da expressão configuração territorial. “A rigor, a paisagem é apenas a porção da configuração territorial que é possível abarcar com a visão”. Para ele, mais que isso, as paisagens são objetos sociais, resultado de acumulação de atividades de várias gerações. É como um mosaico de cacos de história. “ As alterações por que passa a paisagem são apenas parciais. De um lado alguns dos seus elementos não mudam - ao menos em aparência - enquanto a sociedade evolui. São as testemunhas do passado.” ( SANTOS, 2012, p. 54)

Schama reforça esse caráter histórico, dizendo que a paisagem é composta tanto de camadas de lembranças. Para Santos, a paisagem seria o conjunto de formas que, num dado momento, exprimem as heranças que representam as sucessivas relações localizadas entre o homem e a própria natureza. “Uma paisagem urbana ou uma cidade de tipo europeu ou de tipo americano. Um centro urbano de negócios e as diferentes periferias urbanas. Tudo isso são paisagens, formas mais ou menos duráveis.” (SANTOS, 2012, p.53) 23


O sentido da palavra paisagem também foi sendo modificado ao longo dos tempos. Tuan diz que a partir do momento que as paisagens (associada a natureza) deixaram se ser encaradas como abrigo de espíritos da terra, elas passam a servir como pano de fundo para as atividades humanas diárias. Cortezão (2017) traz alguns autores, ao compreender a paisagem como espaço construído, que envolve percepção, concepção e ação, e tem uma formulação cultural. Schama (1996 apud Cortezão, 2017) define natureza como algo cultural antes que natural. Um ato de imaginação sobre a natureza. A paisagem é tratada também por Raffestin (2009). Ao discutir o tema, ele aponta que nem todo território é paisagem. Para ele, o homem produz o território, tendo o ambiente como matéria-prima, e só com a intermediação da imaginação condicionada se cria a paisagem. De certo modo, todos esses conceitos são adotados neste trabalho e colaboram para a leitura do campo de estudo. Em síntese, procuramos analisar a paisagem em seu sentido de conformação territorial, de ocupação e de acúmulos de tempo, como nos indica Santos (2003). Consideramos também a paisagem enquanto imagem formada e idealizada do campo, que frequentemente entra em conflito com a realidade das dinâmicas socioeconômicas dessa área.

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A paisagem rural O termo paisagem rural aparece ao longo da obra de Panzini (2013), e torna-se referência importante nesse trabalho. Segundo ele, as origens da agricultura e pecuária, e assim essa paisagem agrária, remontam ao neolítico, e vem se modificando de acordo com a gradual domesticação de plantas e animais. A difusão e o aprimoramento das técnicas agrícolas conduziu a modificações do ambiente original e “a paisagem natural cedeu lugar à paisagem agrária” (PANZINI, 2013, p.49). Essa paisagem veio se modificando nas diversas sociedades, de acordo com o clima, morfologia, hidrologia, características do solo, exigência das plantas e avanço tecnológico. Logo, de acordo com a variabilidade desses fatores, a superfície terrestre foi coberta de paisagens agrárias muito diferentes entre si. Ele nos mostra que a paisagem agrícola foi muito valorizada, esteticamente e visualmente. As grandes plantações, no ocidente e oriente, eram citadas pela sua beleza e funcionalidade: suas formas geometrizadas que atravessam a natureza e a transforma. Panzini (2013) ainda lembra que “com o desenvolvimento da agricultura, o homem foi se transformando de ser habitante da paisagem em construtor da própria paisagem” (p.49). O controle sob a natureza foi aumentando de acordo com o desenvolvimento das técnicas agrícolas. “O desenvolvimento das práticas agrícolas foi acompanhado da modificação, cada vez mais ampla e maciça, do ambiente natural, a fim de adaptá-lo aos cultivos.” (PANZINI, 2013, p.49)

Mesmo não dizendo isso diretamente, Panzini nos mostra sobre a construção de uma imagem bucólica do campo, que remete muito a natureza, e acabou sendo desejada e valorizada pela população, de modo geral. “Deve-se aos gregos a concepção, que permanecerá também no mundo romano, do bosque natural, virgem e selvagem, ao qual é dado um significado religioso como morada de seres divinos” (PANZINI, 2013, p.77) 25


Ao longo da história das cidades, vimos vestígios de natureza e do rural sendo trazidos para os centros urbanos. Os famosos jardins da Babilônia, os parques temáticos, os grandes jardins urbanos e os espaços verdes da atualidade. São signos naturais que tentam ser inseridos no cotidiano de uma população urbana. Vemos, também, um movimento inverso: quando a população tipicamente urbana vai para o campo buscar esse contato natural, como uma fuga da cidade. Para Yi-Fu Tuan (2012), quando a sociedade se desenvolve e as cidades crescem, as pessoas começam a observar e apreciar os elementos da natureza. Em Toledo é notável a grande quantidade de chácaras e sítios, utilizadas predominantemente aos fins de semana, que vem cumprindo essa função de veraneio e fuga no ambiente rural. De modo similar, as villas, durante o império romano já remetiam a essa função. As villas urbanas, em especial, podem ser comparadas às chácaras, enquanto construção do ambiente rural para suprir necessidade de lazer e contato com a natureza, e utilizado apenas durante alguns períodos do ano. “A villa rústica era uma empresa agrícola dedicada à produção de culturas de alto valor, como a videira e a oliveira, e à criação de animais. A villa urbana era, por sua vez, um lugar de prazer [...]. Era o lugar para onde o rico cidadão romano se retirava durante alguns períodos do ano, distante da vida tumultuada da cidade, para buscar o contato com a natureza [...].” p.98 (PANZINI)

Os nobres e imperadores romanos, por exemplo, tinham propriedades nos campos ao redor de Roma. Hoje temos alguns exemplares dessas villas em Tivoli (próxima a Roma), como a Villa Adriana, Villa D’Este e Villa Gregoriana. Como nos mostra Tuan, os romanos e atenienses tinham escritos e elogios sobre a simplicidade da vida rural. “Durante o século dezoito o erudito europeu deificava a natureza. Para os filósofos e poetas, em particular, a natureza chegou a representar sabedoria, conforto espiritual e santidade; supunha-se que as pessoas podiam derivar dela entusiasmo religioso, retidão moral e uma compreensão mística do homem e de Deus.” (Tuan, p.123).

Na Europa e na América do Norte, o sentimento pelo campo permaneceu como convenção literária. Para Tuan, “A crescente apreciação do selvagem, como a do campo, foi uma resposta aos fracassos reais e imaginários da vida da cidade.“ (p.128). Ele traz 26


uma fala do ex-presidente americano Thomas Jefferson, no qual faz referĂŞncia ao povo que trabalha com a terra como um povo escolhido de deus, possuidores de importantes e genuĂ­nas virtudes. Enquanto a sociedade se urbaniza e se afasta do meio natural, os signos da natureza acabam aparecendo no cotidiano desse mundo urbano.

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O rural no Brasil Sabendo, de modo geral, sobre as diferentes abordagens de leitura e diferenciação do rural/urbano, e ainda que alguns autores dizem que a urbanização hoje atinge todo o território, caímos em um questionamento: “O “espaço rural” é um conceito geográfico, com localizações identificáveis, limitáveis em um mapa, ou se trata de uma representação social, de uma comunidade de interesses, culturas e modos de vida?” (GOMES, 2008, p.98)

Enquanto delimitação espacial, Gomes nos mostra que existem contradições e muito a se avançar na delimitação do espaço rural, e como a delimitação atual traz equívocos. A necessidade de delimitação “rural x urbano” aparece, porém, por uma questão de necessidade: tal delimitação torna-se essencial visto a necessidade de dados censitários. As contradições aparecem quando cada país, por exemplo, adota um conceito diferente do rural, e fica difícil comparar os dados entre eles. Não é difícil concluir, ainda, que não é possível chegarmos a uma porcentagem mundial precisa da população rural, visto tais inconsistências. No Brasil cabe aos municípios o papel de estabelecer onde se inicia o perímetro urbano e onde é o rural. Podemos observar, então, que o rural ainda sobressai na paisagem. A delimitação dos perìmetros urbanos ainda são muito discutidos e tem diferenças no conceito ao redor do mundo. Gomes (2008) nos aponta que a “ONU propõe a utilização de critérios como o predomínio de atividades agrícolas pela população economicamente ativa, o acesso a serviços e instalações considerados tipicamente urbanas e a densidade populacional.” Nesse momento do trabalho, adotaremos dados censitários para termos uma visão geral sobre a população rural e urbana no Brasil. Algumas dinâmicas da população brasileira entre 1950 e 2000 são mostradas no Atlas da Questão Agrária no Brasil (GIRARDI, 2017). O primeiro dado impactante que aparece é que nesse período a população brasileira teve um crescimento de 226,4%, enquanto a 29


população urbana cresceu 633,4% e a rural teve um crescimento negativo de 2,7%.A seguir, vemos dois gráficos que representam a evolução urbana e rural no período citado (figuras 1 e 2). Figura 1 -

Evolução da população rural regional 20 mi 18 mi 16 mi 14 mi 12 mi 10 mi 8 mi 6 mi 4 mi 2 mi 0

1950

1960

1970

1980 Sul Norte

Nordeste Sudeste

1990

2000

Centro -Oeste

Figura 2 -

Evolução da população urbana regional 70 mi 60 mi 50 mi 40 mi 30 mi 20 mi 10 mi 0

1950

1960 Nordeste Sudeste

1970

1980 Sul Norte

Dados IBGE, org. Eduardo Paulon Girardi, adaptado por Rodrigo Reis

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1990

2000

Centro -Oeste


Tais dados deixam mais evidente a diferença discrepante entre a evolução da população rural e urbana. Notamos que a região sudeste (onde se encontra nossa área de estudo), teve a maior diminuição da população rural e ainda o maior crescimento populacional urbano do país nesse período. A seguir, temos três mapas sobre a população rural no Brasil. O primeiro (Figura 3) mostra a predominância da população urbana e rural nos munípios brasileiros. Nas figuras 4 e 5 percebemos que e maior concentração de população rural brasileira concentra-se na região entre RJ, SP, MG e PR, mesmo essas sendo áreas muito urbanizadas e com predominância de população urbana. Na figura 6 percebemos que esse dado deve-se, de modo geral, pela grande densidade demográfica na região. Nessa área, portanto, a baixa porcentagem de população rural nos municípios se deve pelo número muito superior de habitantes de áreas urbanas. Na figura 7 vemos a evolução dessa população por município no país entre 1991 e 2000. Podemos notar, de modo geral, que o sudeste e o sul, e parte do centro-oeste e nordeste, tiveram uma queda grande no número da população rural nesse período. Existem algumas manchas de crescimento dessa população em São Paulo, e isso se justifica pelo grande crescimento da população total na região. Percebemos que, apesar do grande número de habitantes e da grande urbanização no sudeste e Centro-Oeste, existem algumas zonas onde a presença da população rural é bastante significativa.

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Figura 3 - Predominância de população rural ou urbana - 2000

Porcentagem da população urbana e rural Urbana

Rural

%

%

100

98,44

95

95

80

80

65

65

50

50

fonte: Girardi, 2017

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Figura 4 - População rural2000 em 2000 População rural em

População 621.065rural em 2000

350.000 180.000 habitantes 621.065 50.000 350.000 habitantes 1 180.000 fonte: Girardi, 50.000 2017 1

Taxa de ruralização em 2000 Figura 5 - Taxa de ruralização em 2000 % Taxa de ruralização em 2000 77,28 % 77,28

0 fonte: Girardi, 2017

0

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Figura 6 - Densidade Densidade demográfica demográfica em 2000

em 2000

% 12.897 800 100 50 25 10 5 0,13 fonte: Girardi, 2017

Figura 7 - Evolução da Evolução da população população rural - 1991 - 2000 rural - 1991 - 2000

%

273 25,8 0 -12,7 -20 -33,8

-84,6 fonte: Girardi, 2017

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34

O rural em minas Gerais Minas Gerais é um dos estados mais populosos do Brasil, com 20 milhões de habitantes, e está no sudeste, que é a região com a maior população do país. No ano 2000, o sudeste possuía 72 milhões de habitantes, dos quais 65,5 milhões residiam em áreas urbanas e 6,5 mi em áreas rurais. Nesse ano, a população do estado era de 17,8 mi, dos quais 14,6 mi moravam em áreas rurais e 3,2 mi em áreas rurais. No estado de Minas Gerais, segundo o Instituto Estadual de Florestas (IEF) (apud Gomes 2008), o espaço rural representa 69% do território do estado. A distribuição dos núcleos urbanos podem ser vistos na figura 8. Em 2010, o estado atingiu 19,5 mi de habitantes, enquanto sua população rural caiu para 2,8mi. Ainda assim, Minas Gerais é o segundo estado com maior população rural no Brasil, atrás apenas da Bahia, com 3,9 mi. Na figura 9 vemos as taxas de urbanização dos municípios mineiros que a região norte do estado conta com uma baixa taxa de população urbana, enquanto o centro sul do estado tem as cidades mais urbanizadas. Assinalamos, porém, que no sul do estado existem algumas cidades com altos índices de ruralidade, como é o caso da nossa área de estudo (Toledo).

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Figura 8 - Áreas Rurais e Urbanas em Minas Gerais.

Área rural Área urbana

Fonte: Ivair Gomes - editado pelo autor

Fonte: Ivair Gomes. Editado pelo autor

Figura 9 -População urbana por município (%) 18,56 a 49,8 49,97 a 63,12

Toledo 36

63,13 a 75,13 75,15 a 85,37 85,43 a 100


toledo: aspectos históricos Os registros históricos sobre o município de Toledo são escassos. O material encontrado a respeito é um misto de apanhados históricos que foram organizados, em sua maioria por professores, e ensinados nas escolas do município. O levantamento histórico, assim, se embasa em apontamentos e indícios com base em jornais e contos passados de geração em geração. O município de Toledo fica no sul do estado de Minas Gerais e faz fronteira com o estado de São Paulo. No fim do século XVIII existia uma controvérsia nessa região, sobre onde seriam as divisas dos estados. Foi nos anos 1770 que Simão de Toledo Piza, morador de São Paulo, encontrou ouro no Rio Camanducaia. Simão era membro de uma família espanhola muito influente, que veio ao Brasil quando Portugal estava sob governo espanhol, entre 1580 e 1640). Voltando às bandeiras, Rubens Borba de Moraes (apud Cândido, 2010) fala que as bandeiras de povoamento esvaziaram São Paulo e que a fixação das pessoas no sertão se iniciou pela mineração e pelo interesse em explorar a terra. A região onde Toledo Piza estava minerando era pertencente a São Paulo, porém foi para as autoridades mineiras de Ouro Fino (MG) que ele se dirigiu para dar notícias do ouro. Diz-se que quando Simão ia minerar, levava seus animais e os deixava pastando em torno da mineração. Por essa razão o lugar passou a ser chamado de “Campanha do Toledo” ou “Campos do Toledo”. As terras de Simão foram vendidas ao Padre Antônio Xavier Salles e posteriormente a Matheus da Silva Bueno. A região começaria, então, a ser ocupada por grandes fazendeiros escravagistas, que viam ali um ótimo clima para plantio de café. Existem contradições nos relatos sobre o início das ocupações, mas adota-se aqui o texto disponibilizado pela Prefeitura Municipal de 37


Toledo, que diz que “Em 1841 foi erguida uma capela, e dez anos mais tarde o povoado passa à categoria de distrito, pertencendo primeiramente, ao município de Camanducaia e, posteriormente, à Extrema.” (PMT. 2017)

A capela erguida foi dedicada a São José, e então a localidade passou a ser chamada de “Capela de São José da Campanha de Toledo”. Até pouco tempo, os moradores mais antigos chamavam Toledo de “Capela de São José”. É contado que houve um conflito entre São Paulo e Minas Gerais a respeito da posse das terras, e que a quantidade de ouro encontrada, no final das contas, era irrisória. O conflito sobre a posse das terras acaba apenas em 1936, quando ficou decidido que o território à margem esquerda do Rio Camanducaia pertencia a Minas Gerais. O Município recebeu os nomes de Campanha de Toledo e finalmente Toledo. Sua Emancipação política ocorreu em 27/12/1953.

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toledo: Panorama atual O município de Toledo está situado ao sul do estado de Minas Gerais, tem uma área de 136,776 km2 e uma população estimada de 6194 habitantes, segundo IBGE. O território do município é, como na maioria dos casos, predominantemente rural. A população urbana, de aproximadamente 2700 pessoas, está dividida entre o núcleo urbano principal e o perímetro urbano do bairro dos Pereiras, que tem a formação similar a um distrito, com pequenos serviços e estabelecimentos alimentícios. Existem duas vias principais no município, assinaladas no mapa seguinte (figura 11), que conectam Toledo às cidades vizinhas de Extrema, Munhoz e Pedra Bela (SP). Essas duas vias atravessam os dois núcleos urbanos acima citados. É possível observar, ainda, que a maior parte da população se localiza na região leste do município, ao redor do núcleo urbano central figura 12). A educação no município, de modo geral, tem grandes desafios a vencer. Segundo o Índice Mineiro de Responsabilidade Social (IMRS, 2016), a taxa de analfabetismo em Toledo em 2010 era de 20,2% enquanto que em Minas Gerais era de 10,36%. Observamos, ainda, que apenas 27,00% da população com 25 anos ou mais de idade em 2010, haviam completado o ensino fundamental e apenas 12,04%, o ensino médio. Para efeito de comparação, na mesma época, a proporção de adultos (25 anos ou mais) com fundamental completo no estado era de 46,40%, e com ensino médio era de 32,25%. Não existem dados específicos sobre o analfabetismo na zona rural da cidade, mas índices nacionais apontam que o analfabetismo na zona rural brasileira ultrapassa s 30% (SILVA et al. 2011). Tal contexto se agrava com a carência de escolas rurais, que passam por uma onda de fechamentos e transferência dos alunos para as áreas urbanas. Hoje, 56% da população toledense vive na zona rural, mas nenhuma escola está no campo. A administração pública fechou, nos últimos anos, as últimas escolas rurais, concentrando todos os alunos da cidade em apenas três escolas, todas na zona urbana. 39


Figurado 10 município - Localização geral do município Localização

MG

SP

Desenho do autor sob Google Maps.

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Figura 11 - Mapa geral do município

Mapa geral do Municípi o

Área rural Área urbana Bairro e entorno Principais vias

IBGE, 2010. Grifos do autor.

Figura 12 -

Densidade Demográfica no Município

20.84 - 26.27 26.38 - 28.84 31.79 - 675.45 688.08 - 1504.06 1579.46 - 3209.54 IBGE, 2010. Grifos do autor.

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Ao fazer um panorama da economia local, percebemos que a agropecuária tem grande importância na economia do município e que a produção de alimentos é variada (figura 13). Com base em entrevistas, verificou-se que essa produção é levada e vendida, em sua maioria, em São Paulo (CEAGESP), Campinas (CEASA) e, em pequena proporção, para o Rio de Janeiro (CEASA-RJ) (figura 14). Outro dado importante é que, ao contrário da maioria dos municípios no sul de Minas Gerais, Toledo tem mais de 50% de sua população morando em áreas rurais (figura 15). Esse dado é importante, considerando que a cidade está localizada em uma das regiões com maiores índices de urbanização do país e a 130km de São Paulo, a cidade mais populosa do Brasil. Em encontro a esses dados, verficamos (figura 16) que mais da metade da população trabalhadora atua em atividades agropecuárias (IMRS, 2016).

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Figura Alimentos mais cultivados no município O que13 se- produz?

Feijão

TomateB

BatataM

Pepino

Pimentão

Abobrinha

Mandioquinha

Vagem

Brócolis

Couve-flor

Figura 14 - Principais destinos dos alimentos produzidos no município.

Pra onde vai?

Belo Horizonte

Campinas Toledo Rio de Janeiro São Paulo

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Figura 15Onde - Taxa as de pessoas moradoresmoram na zona urbana e rural

Figura 16 - Distribuição dos Onde aspor pessoas trabalhadores áreas trabalham

Serviços ç

45%

Zona urbana a

Indústrias Construção ç

55%

Comércio

Zona rural

Agropecuária gp

Figura 17 - Principais contribuições na economia no município

Contribuição na economia por setores

Adm. Pública

Serviços

Agropecuária

Figura 18 - Distribuição do território rural nodo município Distribuição território

Florestas

Lavouras

Pastagens g

44

Outros

rural

Indústrias


Área estudo: do macro ao micro Segundo Rossi (2001. p.63), a área-estudo pode ser considerada como uma “abstração com respeito ao espaço da cidade. Ela serve para definir melhor determinado fenômeno.” Nesse sentido, o recorte da área estudada veio na tentativa de viabilizar uma análise mais aprofundada das questões do campo na atualidade. Em primeiro momento, o recorte abrange o bairro Paiol da Vargem e seu entorno (bairros Pereiras e Formigas) (figura 19). Vemos, em análise rápida da área, como se organiza a estrutura viária e a ocupação, de modo geral. Notamos, por exemplo, que a ocupação humana acompanha os cursos d´’agua e que, junto a isso, as vias e cursos d’água também estão próximos Ainda na figura 19, vemos que a densidade de edificações geralmente baixa e as casas são distantes, umas das outras. Existe uma área com maior aglomeração de edifícios no mapa: o bairro dos Pereiras. Essa é uma área tratada como perimetro urbano e possui alguns serviços, como açougues, mercado, padarias, pequenas lojas e uma escola municipal. O bairro dos Pereiras è tido como uma centralidade, e geralmente é lá que os moradores dos bairros vizinhos fazem as compras e estudam, por exemplo. Nas vivências, conversas e observação do local, notamos ainda que era possível identificar alguns núcleos residenciais, como se fossem sub-regiões dentro do bairro. Os mapas mentais elaborados pelos moradores reforçaram essa ideia, pois sempre abarcavam suas casas e uma região de entorno próximo. Esses agrupamentos foram sinalizados e encarados como núcleos de estudo, para facilitar a análise da área (figura 20). Os núcleos foram delimitados de acordo com fatores de afinidade, proximidade geográfica e maior relação entre os moradores. Com base nessa delimitação, se estruturaram as primeiras conversas com a população e estudos sobre a composição dessa paisagem. Foi possível identificar alguns fenômenos e relações interessantes 45


em alguns pontos do bairro e, com isso, foi concebível o aprofundamento em uma parte da área anteriormente determinada. Na figura 20 se pode perceber que adotamos, portanto, a área de três núcleos residenciais. Em um segundo momento, assim sendo, trazemos mais a fundo as leituras dessa paisagem e reflexões sobre seu contexto.

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47


Figura 19 - Mapa do bairro Paiol da Vargem e seu entorno.

metros (m) 0

500

cursos d’água vias edifícios

48

1000


49


A paisagem natural? regularidade e tempo A paisagem, fisicamente falando, é a composição de camadas e elementos que existem e se relacionam, mesmo com diferentes temporalidades e características. Esse mosaico de elementos se cristalizam como espelhos de seus tempos e usos, como lembra Santos (2006). Tuan (2012) chama atenção para as formas que estão mais presentes na cidade e no campo e, para ele, enquanto as cidades são mais retangulares, o campo e a natureza apresentam ambientes com menos ortogonalidade. No entanto, ele ainda mostra que as paisagens rurais não estão totalmente desprovidas de ortogonais. “os campos de cultivo freqüentemente são retangulares, apesar de que suas formas raramente se evidenciam a nível do terreno.” (TUAN, 2012, p.87)

Esse aspecto pode ser visto na área de estudo. Mesmo com as formas orgânicas dos cursos dos rios e das montanhas, a agricultura e as plantações de eucaliptos e, com menor regularidade, as estradas tornam essa paisagem com mais traços retos. É possível identificar algumas manchas que, mais permanentes ou efêmeras, formam essa paisagem (rural, agrária). Dividimos, então, esse conjunto em quatro elementos predominantes nessa paisagem física (visível): pastagens, áreas ocupadas pela agricultura, plantações de eucaliptos, vegetação nativa, como vemos na figura 20. As pastagens compõem, segundo o censo agropecuário (IBGE, 2010), aproximadamente 64% do território rural em Toledo. Esse elemento sempre foi marcante na cidade por dar suporte a cultura e economia pecuária na cidade. Enquanto isso, as lavouras representam 26%, mais de 1/4, dessa área. É preciso ressaltar que, mesmo tendo esses dados como auxiliares para o entendimento das proporções de manchas no território, os números variam de tempos em tempos, sendo difícil saber, por 50


exemplo, como essa porcentagem está hoje. As áreas de lavouras e pastagens não são permanentes e, inclusive, o revezamento do uso na terra é uma prática recomendada e seguida na região, semelhante ao que já se fazia nas primeiras paisagens agrárias gregas (PANZINi, 2013). Junto a essa paisagem agrária, vemos uma emergente paisagem de eucaliptos, que tende a crescer e tornar-se ainda mais presente nas áreas rurais.. Ainda na figura 19, vemos que essas plantações já ocupam significativa parcela da área e, em geral, tem formas mais regulares em seus limites. O eucalipto representa, aqui, uma corrente de industrialização da paisagem. As plantações de eucalipto são encaradas como produtos e, como produção, tem um tempo diferente das plantações que são tradicionalmente produzidas na região. O trabalho na agricultura familiar é constante. As lavouras variam, geralmente, entre 3 e 12 meses e carecem de atenção ao longo de seu plantio, crescimento e colheita. Nesses casos, vemos uma variedade nas atividades ao longo da plantação, além de uma variedade de tipos de lavouras ao longo dos anos. Enquanto isso,a produção de eucaliptos carece de menos atenção e trabalho a longo prazo. Várias são as destinações desse tipo de produção no mundo, mas no bairro em questão, a lenha é utilizada predominantemente para produção de carvão e, em menor escala, para produção de mourões para cercas. De modo geral, o tempo entre a plantação e a primeira extração da madeira fira em torno de seis anos e, nesse período, o trabalho concentra-se no plantio e corte. Além do maior tempo para produção, é possível perceber uma ruptura no modo de produção, quando comparamos essa plantação industrial e aquela familiar, onde o contato com a terra é constante.

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metros (m) 0

500

1000

vegetação nativa eucaliptos cursos d’água vias via asfaltada edifícios pastagens e lavouras núcleos residenciais núcleos foco do estudo

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Figura 20 - Vegetação e núcleos residenciais no bairro e entorno

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Foto 5 - A regularidade do eucaliptal e das cercas nas pastagens.. Foto do autor, 2017.

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Foto 6 -Escrito encontrado em uma das casas mais antigas o bairro. Lê-se “Fazenda São José - F. P. R. (Francisco Pereira dos Reis) - 20/8/1947. Foto do autor, 2017.

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O bairro: apontamentos históricos Cândido (2010), ao falar dos tipos de povoamento, destaca algumas características das configurações dos núcleos adensados (aqueles centros de poder), e destaca a compreensão destes locais que se baseia em fatos históricos e relatos de vida em outros tempos. Porém, os povoadores isolados são para ele sem história, e fazem parte da história apenas quando, de alguma forma, se relaciona com o meio urbano. Nesse sentido, o rural não vem retratado, a não ser pela história oral e por essas relações socioeconômicas com a cidade. O Paiol da Vargem é um dos principais bairros de Toledo, e seus indícios históricos também estão postos nesse sentido. Segundo a história informal, sua ocupação se iniciou com a construção de um paiol feito por por Felisberto Gomes. Essa construção era utilizada como depósito de alimentos e moradia. “Era tudo mato, ele foi limpando ao redor do paiol e foram surgindo outras casas”. (DESCONHECIDO)

O bairro veio, ao longo das décadas, mantendo suas tradições rurais e sua economia voltada para agricultura e pecuária. Não foram encontrados relatos de alguma data a respeito do início desta ocupação. Os registros mostram, porém, que não existiam escolas no local e existem relatos de “pais de família” que contratavam professores (vindos de fora) para dar aula aos filhos (foto 7). A primeira data citada em textos a respeito do bairro é de 1956, ano em que foi construída a primeira escola. Essa obra era pequena, e foi construída em um terreno cedido pelo fazendeiro e vereador Francisco Pereira dos Reis. Esse primeiro edifício, porém, foi utilizado apenas durante três anos. Em 1959 foi feita uma nova escola no centro do bairro, pois a primeira era “afastada”. Essa segunda recebeu o nome de Escola Municipal Paiol da Vargem, tinha apenas uma sala de aula e funcionou por 37 anos (figura 8). Em 1996, foi construído um prédio novo para a escola ao lado da 57


antiga (com mesmo nome). Este prédio era maior que o anterior e contava com 2 amplas salas de aula, além de depósito, campo de futebol, cozinha, banheiros e horta (fotos 9 e 10).

Foto 7 - Casa do Chico Reis primeira escola do bairro. Foto do 2017.

autor,

Foto 8 - Primeiro prémio da Escola M. Paiol da Vargem. Foto: Eva Suzana Azevedo, 2003.

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Foto 9 - PĂĄtio da Ăşltima Escola do bairro, e ao fundo a velha escola abandonada. Foto: Eva Suzana Azevedo, 2003.

Foto 10 - Escola Munucipal do Paiol da Vargem em 2003. Foto: Eva Suzana Azevedo, 2003.

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O bairro: panorama atual O bairro é encarado como rural por haver todas as características definidas por Sorokin, Zimmerman; Galpin e Clout (1976 apud GOMES 2008), como baixa densidade das ocupações, seu caráter agrícola e da predominância de atividades de coleta e cultivo de plantas e animais. Paiol da Vargem vem passando por processos comuns às zonas rurais do país, como o êxodo rural, a mecanização da indústria agropecuária e as alterações das dinâmicas socioespaciais causadas por influências do meio urbano. Algumas das transformações que parecem vir ocorrendo, são expostas a seguir. O perfil dos proprietários de casas e sítios presentes na região parecem ter sofrido uma pequena mudança: Enquanto antes as residências eram de, quase em sua totalidade, trabalhadores da agropecuária (quase familiar), passam a ser também sítios e chácaras de veraneio de uma população urbana que, como já disse Argan (1992), busca a fuga da cidade no campo. Panzini (2013) também relatou situação parecida na Itália no século XV, quando famílias urbanas mais nobres passaram a adquirir propriedades agrícolas como refúgio e investimento. Vale lembrar que, no último ano, houve uma tentativa de fazer um chacreamento na área, o que fortaleceria essa mudança acima citada. Junto a isso, temos uma ação muito simbólica, que de certo modo altera as dinâmicas do bairro. A Escola Municipal Paiol da Vargem, que desde 1956 vinha (com outros nomes) atendendo a população rural, foi fechada em 2014, e os alunos transferidos para as escolas da cidade. O fenômeno traz uma mudança significativa na relação das crianças com o território no bairro: O caminho para a escola, que antes era feito, geralmente, a pé pelo bairro, hoje é feito com o ônibus, num percurso até a cidade. Cabe lembrar que o ônibus escolar transporta somente os alunos diariamente, enquanto a o restante da população só tem acesso ao transporte público três vezes na semana, em apenas um horário de ida e um horário de volta. De certo modo, o ato de caminhar pelo bairro vem sendo deixado de lado. 61


Foto 11 - Vista de parte do bairro, onde se situava a Escola Municipal. Foto do autor, 2017.

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Os elemtentos da paisagem As ocupações consideradas rurais têm aspectos comuns que as definem como tal, como já foi tratado no início deste trabalho. Mas não devemos, de modo algum, generalizar as ocupações rurais ao redor do mundo e desconsiderar suas peculiaridades. Densidade da ocupação, história, localização, relevo, clima, cultura e economia são alguns dos fatores que moldam as aglomerações humanas, tanto urbanas como rurais, e as tornam únicas. Os elementos da paisagem são tratados por Lynch (1995), reforçados por Panerai (2006), e geralmente discutidos nos cursos de Arquitetura e Urbanismo ao redor do mundo. As centralidades (núcleos), marcos, percursos e limites são identificáveis com maior ou menor intensidade em diferentes cidades. A legibilidade é essa facilidade (ou não) com que cada uma das partes da cidade pode ser reconhecida, e varia de cidade para cidade. Inevitavelmente, os olhares e leituras provém de conhecimento adquirido anteriormente e pré-concepções sobre padrões e, dentro da área de arquitetura e urbanismo, tendemos a interpretar o território com base no arcabouço de teóricos urbanos. As ocupações rurais podem apresentar os elementos acima citados, de forma mais ou menos evidentes, e variando de acordo com cada caso. A leitura do espaço rural com base em metodologias e conceitos originais de centros urbanos deve, no entanto, ser ponderada e crítica. Desse modo, a seguir tratamos da área-estudo a partir da discussão de tais conceitos. Esse trabalho não se baseia fundalmentalmente nos conceitos tratados por Lynch (1995), tampouco pelas análise de uso e ocupação, tão utilizadas nas cidades, mas se apoia, em certo momento, em reflexões sobre centralidades, marcos e percursos. Na próxima figura (21) vemos a área do bairro onde as pesquisas serão aprofundadas. Esse mapa nos mostra as vias, as manchas de vegetação e os edifícios; e indica a localização das fotos 12 a 20, que 64


registra imagens do percurso ao longo do bairro. A sequência de fotos traz uma noção das variação da paisagem ao longo do percurso. Vemos uma sequência que parte de uma paisagem mais regular (asfalto e eucaliptais), passa por alguns pontos marcantes no bairro (igreja, campo, antiga escola e venda), e termina em uma região mais residencial onde não existe a presença do asfalto. È possível notar a mudança serial da paisagem, tal como Panerai (2006) traz. A grande diferença entre a análise serial desse autor e essa aplicada ao campo é o intervalo de imagens, por causa da grande escala e distância do percurso no campo. Em síntese, é preciso percorrer uma distância maior no campo para que se possa perceber uma mudança significativa nos padrões dos elementos da paisagem. os edifícios residenciais A figura 22 mostra um panorama sobre as casas do bairro. Percebe-se que enquanto existe um movimento de pessoas migrando para a cidade, provavelmente em busca de empregos ou estudos, há uma parcela de pessoas provenientes de centros urbanos e que, para fins de descanso e lazer, frequenta o bairro durante fins de semana e feriados.

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Figura 21 - Mapa base da área estudo com localização das fotos (ver página seguinte) localização das fotos (próxima página)

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Fotos 12 a 20 - Fotos do bairro: percurso pelas estradas. Fotos do autor, 2017. (ver localizações na página anterior)

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asfalto e eucaliptal

campo e igreja

via asfaltada na região do antigo campo (ver figura 26)

venda da Eliana


nova estrada pavimentada (ver figura 25)

prédio da antiga escola fechado e leiloado

estrada sem pavimentação

região sem asfalto

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Figura 22 - EdifĂ­cios residenciais e seus moradores

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Centralidades O estudo das centralidades e dos usos dos espaços é um modo de buscar entender as dinâmicas de um espaço. Talvez uma das maiores diferenças entre as relações no campo e na cidade se deve a disponibilidade de espaços de encontro. A baixa densidade da população, em si, já nos indica que existem menos pessoas compartilhando um mesmo espaço e, ainda, menos espaços para que esses encontros aconteçam. Na figura 23 vemos os principais pontos de encontro do bairro. O mapa mostra também os pontos comerciais por serem eles os principais espaços de troca coletiva dessas áreas. Percebemos que no Paiol da Vargem existem apenas dois comércios em funcionamento diário (a venda e o açougue) e e que, além desses espaços, o encontros acontecem na igreja (seja em celebrações religiosas ou festas), no campo (em jogos de futebol ou em confraternizações em datas especiais). Além desses, existe a barraca da Rosana, onde se vende hot dogs e bebidas, somente aos fins de semana. O ambiente escolar também caracteriza espaço de convívio e encontro e, assim, a escola do bairro também era espaço de troca social e referência (marco) do lugar. A figura 24 mostra a localização dos espaços escolares no bairro ao longo das décadas. Hoje o bairro não conta mais com uma escola: ela foi fechada e algumas relações se alteraram com esse processo. O percurso até a escola, por exemplo, mudou e, com isso, certas relações com o espaço. percursos A figura 25 apresenta alguns caminhos percorridos a pé pelos moradores do bairro. Esses caminhos peatonais nos faz pensar sobre a relação e apropriação do espaço. Os percursos a pé geralmente não corresponder àqueles de carro: esse caminhos peatonais atravessam pastagens e lavouras, em geral, em propriedades privadas. Na página 89 iniciamos uma série de narrativas que acabam mostrando as relações com o espaço através desses percursos e como ela se modifica quando “olhamos a paisagem da janela”.

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Figura 23 - Pontos de comĂŠrcio e/ou encontro entre 2000 e 2017

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Figura 24 - Edifícios escolaes ao longo das décadas

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Figura 25 - Percursos peatonais recorrentes

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Foto 21 - Moradoras durante conversa sobre o local

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Foto 22 - Percurso atravĂŠs de pastagem

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A paisagem em transformação

As paisagens mudam, dia a dia, seja no campo ou na cidade. Para essa reflexão, tratamos do termo paisagem sob dois olhares: A paisagem vista, que engloba aspectos físicos naturais e de ocupação; e a paisagem vivida, que é composta pelas relações e dinâmicas humanas e de sua cultura. Os elementos da paisagem vista muda o tempo todo, mesmo que, muitas vezes, de modo discreto e despercebido. A vegetação, por exemplo, que compõe majoritariamente a paisagem rural, muda de acordo com as estações, com o clima, as épocas de plantio e colheita, e ao longo dos anos com seu crescimento. Esse tipo de transformação segue, uma lógica, em geral, prevista e faz parte do cotidiano econômico e produtivo da população campesina. Esse processo constantemente em mudança compõe uma paisagem vista que, apesar das mudanças biológicas, pouco muda em sua composição, lógica e sistema. Já vimos, nas páginas anteriores, que existe uma emergente paisagem de eucaliptais na região e como esse sistema produtivo tem um tempo diferente do antigo tempo rural. Fora isso, vimos que a composição natural se mantém, e as principais mudanças são causadas por infraestrutura e ocupação humana, ainda que em pequena escala. Essas mudanças de ocupação se dão pela construção de novas residências ou pela alteração de vias, estradas ou trilhos peatonais. No recorte da área notamos que, apesar de algumas pessoas mudarem de casa, os edifícios geralmente permanecem no local, sendo ocupado por outras famílias ou mesmo abandonados. Em conversas com moradores, foram identificadas apenas três casas construídas recentemente e algumas reformas e ampliações de cômodos em casas já existentes. Além disso, a escola municipal do bairro foi fechada recentemente e o prédio, depois de alguns meses vazio, foi leiloado. Em termos de obras e vias, a pavimentação de parte das estradas do bairro, em 2016, representa a maior mudança no bairro. Além do 82


alargamento das vias para as obras, houve a mudança de algumas estradas, na tentativa de tornar o percurso mais retilíneo e regular. Na figura26 e 2 vemos dois exemplos dessas alterações. Apesar de relevantes, o conjunto de transformações citadas não alteram drasticamente a paisagem, tampouco quando representada em mapas. É certo, porém, que o fechamento da escola, o abandono das casas e a pavimentação das vias têm grande importância no delineamento da dinâmica social do bairro. A paisagem vivida, nesse sentido, vem se transformando ao longo dos anos. A urbanização que chega ao campo, hoje, impacta no modo com que as pessoas se comunicam, nos processos produtivos, na economia e na relação do morador com o espaço ao seu redor. São mudanças e fenômenos que, ora objetivos ora subjetivos, necessitam de modos de compreensão e representação que extrapolam os mapas e desenhos. Esse aspecto não visível da paisagem carece de outros meios de análise e é nesse sentido que estruturo as próximas páginas.

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Figura 26 - Esquema da região da escola e do campo do antigo campo antes das obras para pavimentação do bairro

fonte: Google maps e grifos do autor

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Figura 27 - Esquema da região da escola e do campo do antigo campo durante as obras para pavimentação do bairro

fonte: Google maps e grifos do autor

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Oralidade, memória e topofilia

A memória constitui uma faculdade humana, encarregada de reter conhecimentos adquiridos previamente. É uma função do nosso corpo que constitui o elo entre o que percebemos e o que criamos, o que fomos e o que somos. Zilberman (2010) mostra uma cronologia das memórias, que antes eram transmitidas somente através da oralidade, e passaram a ser consolidadas em textos. A autora ainda trata da oralidade e da representação como condição para que as narrativas exerçam o papel para o qual foram geradas. Godoi (1999) estuda e faz uso da memória para entender o cotidiano e a história do sertão piauiense. Ela propõe o estudo do conjunto de práticas para chegar no modo de vida do camponês, se atentando ao universo simbólico das memórias. Seu trabalho traz duas abordagens para a estruturação de sua pesquisa: a diacrônica, baseada no aprofundamento histórico, e a sincrônica, que se aprofunda no estudo do tempo presente, através do registro etnográfico. Godoi (1999) nos aponta que o estudo do todo difere do estudo de tudo. Para a apreensão da totalidade, devemos atentar-nos às realizações parciais. Com isso, sigo o caminho indicado por ela, que parte da seleção de alguns elementos a serem pesquisados e, a partir deles, a reflexão sobre o modo de vida no meio estudado. Além disso, damos importância ao olhar e as experiências dos usuários/ produtores do espaço. Devemos pensar também nos laços afetivos com o meio ambiente e Tuan (2012) nos fala exatamente a esse respeito, quando trata da topofilia. A superfície terrestre é muito variada mas, segundo Tuan (2012), mais variadas são as formas que as pessoas a percebem e avaliam. Mesmo que estejamos limitados a perceber o mundo pelos mesmos meios e sentidos (visão, olfato, audição, tato e paladar), todos captam o mundo de uma forma única. Dentre as possíveis leituras e usuários, ressaltamos alguns fatores considerados durante a elaboração desta pesquisa. Tuan (2012) 86


destaca as diferenças entre a visão do visitante e o nativo em sua obra e, como essas diferenças devem ser levadas em conta na análise. Para ele, as visões passageiras não devem ser negligenciadas. “Em geral, podemos dizer que somente o visitante (e especialmente o turista) tem um ponto de vista; sua percepção freqüentemente se reduz a usar os seus olhos para compor quadros. Ao contrário, o nativo tem uma atitude complexa derivada da sua imersão na totalidade de seu meio ambiente.” (TUAN, 2012, p.73)

O ponto de vista do visitante tende a ser mais simplificada, e facilmente representada, enquanto a visão do nativo, mais complexa e carregada, só pode ser expressa através de seu comportamento, de seu conhecimento e da tradição local. “A avaliação do meio ambiente pejo visitante é essencialmente estética. É a visão de um estranho. O estranho julga pela aparência, por algum critério formal de beleza .É preciso um esforço especial para provocar empatia em relação às vidas e valores dos habitantes.” (TUAN, 2012, p.74)

Com base nisso, entendemos que enquanto um visitante pode não gostar de um lugar por considerar feio, descuidado ou desordenado, um nativo pode estar orgulhoso e satisfeito de onde vive, por relações e sensações que não podem ser apreendidas em uma visita. Tuan (2012) ressalta, ainda, que a apreciação da paisagem é mai duradoura e rica quando é misturada com lembranças e relação afetiva e que, apesar do turismo aumentar o contato do homem com o meio ambiente natural, as relações são muito mais ricas quando são realmente vivenciadas no cotidiano. O trabalhador rural e a natureza* são ligados por um sentimento construído a partir do contato físico, e pelo fato da dependência material com a terra. A terra é vista pelos camponeses, segundo Tuan (2012), como um depósito de lembranças e, raramente, o valor estético é levantado por eles. A vida dos agricultores está atrelada aos grandes ciclos da natureza. Sabe-se que a vida dos camponeses depende do sucesso das plantações e da relação com o meio natural de modo geral. Tuan levanta uma questão, porém, que nos faz pensar: “De fato, pouco se sabe sobre as atitudes dos agricultores para com a natureza. O que existe é uma vasta literatura, em grande parte 87


sentimental, sobre a vida rural, escrita por pessoas com mãos sem calosidade.” (TUAN, 2012, p.114).

Mesmo valorando a topofilia e o olhar dos moradores em relação ao espaço, as análises, em geral, parecem carregar mais das relações do pesquisador do que dos próprios moradores. Apesar de compreensível, esse é um fator que foi pensado ao longo dessa pesquisa e vem tratada a seguir.

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Figura 28 - Croqui da paisagem - igreja, campo e residĂŞncias. Desenho do autor, 2017.

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Narrativas: De um ex morador e autor

A familiaridade e afeição acompanham esse trabalho desde sua idealização. Ainda com base nos dizeres de Tuan (2012), que relaciona o sentimento em relação ao lugar com as nossas memórias e afeição pessoais, trago alguma experiências pessoais em torno do bairro estudado. A memória e afeições com a paisagem são mostradas adiante em forma de narrativas, que descrevem situações e impressões durante minha infância e adolescência, no Paiol da Vargem. A visão em questão é uma junção de um olhar nativo e estrangeiro, simultaneamente. As lembranças que compõem essas narrativas, apesar de genuínas e reais, também nasceram de reflexões teóricas sobre o tema.

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Foto 23 - PrĂŠdio da antiga escola do bairro. Foto do autor, 2017.

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Todo dia perdendo tempo

“Quem perde tempo ganha espaço”. O dizer de Careri, relaciona-se à prática de caminhar como prática estética e sobre reconhecimento do território. Para ele, andare a zonzo, sem limitar-se ao tempo é uma prática estética, e somos indagados a fazê-lo, para conhecer as verdadeiras cidades. A indagação, porém, poderia estar referindo-se facilmente ao caminho entre a escola e nossas casas, na zona rural. Éramos três ou quatro, no primeiros anos do nosso século, voltando da escola, em um percurso que variava entre 30 minutos e 3 horas. O caminho, de estradas de terra, ora ou outra era substituído por seus “entres”, que podia ser um atalho ou uma aventura de descoberta. Se a gente cortasse (sic) caminho pelo campo de futebol, podíamos seguir uma trilha por entre uma pequena mata, subindo um morro, atravessando algumas cercas e quem sabe chegar mais rápido em casa. O atalho, no final das contas, costumava ser mais lento que o caminho tradicional, pois era repleto de surpresas e espaços de brincar. Mais perto de casa havia uma ponte sobre um córrego, que servia, além de travessia, como um mini parquinho. De cima da ponte, pulava-se para as margens do rio, geralmente sem cair na água, e o fazíamos em fila: pulávamos em uma margem, subíamos o barranco, e saltávamos novamente, até que a canseira nos dominasse ou nos déssemos conta de que era tarde. O caminho entre a casa e a escola era fisicamente o mesmo, mas as experiências faziam que tivéssemos um caminho diferente a cada dia. Quanto mais tempo demorávamos para percorrer, mais ganhávamos o espaço.

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Foto 24 - VIsta de pasatagens e estrada de terra. Foto do autor, 2017.

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O bom ano

Lá no sítio tem uma tradição, que não é comum a todo território brasileiro. Acontece que no ano novo (o primeiro dia do ano) as crianças saem de madrugada e passam em todas as casas do bairro pedindo “Bom ano pra nós”. É uma cultura que se assemelha ao “doces ou travessuras” do Halloween na cultura americana, mas no nosso caso são dadas moedas em vez de doces. Relembro esta cultura tradicional no bairro por ser um momento ímpar no ano quando se pensa em território. É, talvez, o único momento em que as crianças têm a oportunidade de percorrer todo o bairro, de conhecer novos caminhos, pessoas e ainda ter a percepção do território durante a madrugada. O preparativo para o “bom ano” também pode gerar uma diferente forma de percepção para as crianças. Lembrei-me, no início deste trabalho, que foi em uma dessas ocasiões que esbocei o que provavelmente foi meu primeiro mapa. Tinha uns 9 anos e ele me parecia bastante claro: as linhas representavam as estradas e havia daqueles tradicionais desenhos de casas (pictóricos), representando todas as casas, para que nenhuma fosse esquecida. Além disso, havia linhas e setas que representavam o percurso a ser feito, revelando uma ordem das casas a serem visitadas. A questão é que talvez o exercício de produção de mapa e percurso seja o modo em que se possa ter mais entendimento da área como um todo, de sua malha e ocupação.

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Foto 25 - Ônibus escolar passando pelo bairro. Foto do autor, 2017.

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a paisagem da janela

A partir da quinta série era diferente. A escola do bairro só atendia os alunos do primário, então depois da quarta a gente tinha que ir para a escola estadual dos Pereiras ou a de Toledo. A partir de então, o percurso até a escola era de ônibus. Passava um ônibus só pra buscar a gente. Eu era o segundo a entrar e ele passava lá perto de casa por volta das 6 da manhã. Quando eu não perdia a hora, era assim: Minha mãe me acordava, eu tomava o café, escova os dentes e ficava na área, só escutando pra ver se o ônibus estava vindo. Quando ouvia o barulho vindo lá longe, ia logo correndo pro ponto e chegava antes dele. Por sorte, sempre que eu me atrasava o motorista parava lá em cima e começava a buzinar. Se eu ainda estivesse dormindo, acordava em desespero e logo subia correndo pra mais um dia. Eu sempre me sentava na frente, no banco mais alto e ia conversando ao longo de todo o caminho. A ida sempre era tranquila, e o sono sempre colaborava para isso. Apesar da distância não ser tanta, o percurso era de 40 minutos, de idas e vindas, paradas e esperas. As memórias destes trechos são várias: a tentativa de equilibrar com ônibus em movimento sem segurar com as mãos, as conversas e encrencas dos colegas e os segredos que de lá nunca saíram, Mas de fora, a paisagem, não me lembro muito. Via o rural passando pela janela, quando por ela olhava, e, vez ou outra, as mudanças que o espaço vinha sofrendo. Era espectador da poeira sendo levantada, da lama nos dias de chuva e da geada nos dias de frio. Via tudo pela janela!

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Modos de olhar: Relatos do processo

Para entender e poder termos um retrato das dinâmicas sociais necessitamos, primordialmente, de ouvir quem vive e produz tais dinâmicas. Para isso, trago percepções resultantes de uma série de visitas, conversas e entrevistas no bairro, nas quais foram tratados assuntos relativos ao dia-a-dia da população camponesa e de seu olhar sobre a paisagem rural. Retomo aqui alguns temas tratados ao longo do trabalho, mas agora partindo da visão da população local e de relatos pessoais. Para leitura de diversos pontos de vista, o corpo de entrevistados engloba homens, mulheres, crianças, jovens, adultos e idosos, moradores do bairro ou ex-moradores que se mudaram para a cidade. Inicialmente, em busca da visão dos moradores sobre o próprio bairro, foram aplicados alguns mapas mentais e, em ocasião posterior, perguntado sobre como era o bairro. Apesar da paisagem ser predominantemente verde,os mapas produzidos priorizaram as edificações (casas). Apenas dois desenhos mostraram alguma presença de natureza, e nesses casos foram em plantas nos quintais das casas. A impressão é que o natural é o comum, o fundo, enquanto o edificado é que diferencia estes espaços. Todos os desenhos partiram da casa do entrevistado, e contiveram-se em abarcar e região entorno de suas casas. As entrevistas mostram que a paisagem verde é lembrada de modo secundário, enquanto os elementos principais do bairro são o bar, a igreja e o campo de futebol. Ao desenhar, todos os adultos entrevistados citaram o nome dos moradores de todas as casas desenhadas, mostrando a proximidade entre os habitantes do bairro. Nas entrevistas esse aspecto foi reforçado, pois a proximidade entre os moradores apareceu em vários momentos e, inclusive, o apego e valorização dessa relação de proximidade e familiaridade. A interpretação dos mapas segue a lógica que defendem Andrade e Almeida (2016). Para eles, a representação dos adultos parte de dois 97


horizontes. Aquele infantil (com homem, casas e árvore), e outro geométrico da conhecida carta topográfica. Enquanto isso, para eles, as crianças tentam representar o mundo que as circunda geralmente em imagens bidimensionais, sem dar tanta importância ao entorno e sim ao objeto em si. Nos mapas produzidos pelos adultos, vê-se claramente uma racionalização na disposição dos elementos, e com muita ênfase às vias e acessos. Observa-se, ainda, que elementos naturais dificilmente aparecem nestes mapas. Nos mapas produzidos pelas crianças, porém, vimos uma despreocupação com a racionalização da disposição e da lógica cartográfica. Nesses desenhos aparecem, por exemplo, animais, plantas e detalhes mais lúdicos e imaginários, como o milho dentro do paiol. A escola e a igreja, apesar de aparecer nos desenhos, em termos de memória, pouco se sobressaem em relação aos edifícios residenciais.

Figura 29 - Mapa mental 1

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Figura 30 - Mapa mental 2

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Figura 31 - Mapa mental 3

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Cabe dizer que as relações entre campo e cidade já tratadas neste trabalho são percebidas, de modo simplificado, pela população do bairro. Já é claro para nós, nesta altura do trabalho, que o campo e a cidade se relacionam de modo muito ágil e que, às vezes, a divisão dicotômica campo-cidade já parece não existir. Essa divisão, porém, pareceu necessária nas conversas, para facilitação do diálogo. Dentre as relações entre a zona urbana e a rural, a produção de alimentos no campo e a venda nos centros urbanos aparece como a mais evidente e característica. Sob esse aspecto, a dependência aparece de forma unilateral, onde o campo é o agente produtor e a cidade o agente consumidor. O uso de agrotóxicos, sementes e equipamentos, que abastecem o campo e são provenientes de uma indústria urbana, não foram lembrados durante o processo. “O povo da cidade depende do povo do sítio para se alimentar [...] é como se fosse uma horta do povo da cidade” Inácio “Acredito que a cidade depende mais do sítio do que o sítio da cidade. Se acabar o sítio hoje, naturalmente acaba a cidade porque não vai ter o que comer na cidade.” José

Além disso, como o bairro é quase totalmente residencial, existe a dependência de áreas urbanas para atendimento à saúde, educação, tal como para acesso a comércio e serviços em geral. Essas carências são alguns dos fatores que levam parte da população a morar nas cidades. “Eu fui para a cidade para ter uma melhoria na vida mesmo, porque as condições de vida do sítio são precárias, é muito atrasado. Em relação a estudo, a gente tem que andar muito para estudar; em relação a médico, não tem também. Nessa parte o sítio depende muito da cidade.” José

Percebemos, no entanto, uma grande parcela da população rural resiste no campo, mesmo com as dificuldades apresentadas. Existe um sentimento de amor e orgulho com o lugar, seja pela história familiar ou pelo apego às atividades cotidianas, como mostra a fala adiante: “Eu vivi toda a minha vida no sítio, com meus avós e meus pais, sempre aprendendo a mexer com gado, trabalhar na roça. Toda a vida gostei disso. Daí quando eu tinha 16 anos eu fui embora para a cidade. Meu tio queria que eu fosse para lá para continuar estudando, fazer um curso, alguma coisa. Mas eu achei muito diferente: senti muita falta do sítio. Senti falta de mexer com o gado, da natureza, do barulho que 101


é muito diferente. Então eu não me acostumei com a cidade. Fiquei três meses lá estudando e depois eu voltei porque eu senti muita falta. Eu fui criado aqui e eu gosto muito do que eu faço aqui no sítio, dos animais e tudo.” Severino

A não adaptação à vida urbana citada pode refletir uma outra diferença entre a vida rural e a urbana: o tempo. Nas entrevistas com pessoas que se se mudaram para centros urbanos, a diferença de tempo sempre é citada. Segundo eles, o sítio é mais calmo, enquanto a cidade é mais rápida, onde não sobra tempo para as verdadeiras relações entre pessoas. Muitas são as mudanças que o campo vem sofrendo ao longo das décadas. De modo geral, esse tema foi o que tomou mais tempo e empolgação nas conversas, e sempre foi bastante amplo, abrangendo histórias pessoas e impressões sobre as melhorias no modo de vida. O avanço da tecnologia e a facilidade de acesso aos serviços da cidade são citados como principais mudanças na zona rural. Se comparado com algumas décadas atrás, encontramos mudanças muito fortes, desde saneamento até a estrutura viária, como vemos a seguir. “Hoje em dia está muito melhor de viver. Antigamente era mais sacrificado: não tinha farinha, tinha que moer o milho; café era torrado na casa. Era mais difícil, hoje em dia está mais moderno. [...] Não tinha água, era difícil. Tinha uma tirada d’água, que levava água até a bica para lavar a roupa. Hoje em dia tem máquina, é melhor. Também não tinha médico, não tinha condução (transporte), tinha que ir no farmacêutico se fazia algum corte e precisava de algum ponto, por exemplo. Hoje em dia é bem diferente”. Capitu “Não tinham estradas, tinha que andar pelo meio do pasto. Era como um trilho, não dava para chegar de carro, mas nem tinha carro. Hoje em dia todas as casas têm chegada, é mais fácil. Para as crianças irem na escola era difícil porque tinha que acordar de madrugada e as crianças iam a pé. Era longe, e tinha que levar marmita porque na escola não tinha nada, não tinha merenda. “ Capitu “Antigamente a gente comprava só açúcar, sal e macarrão… o resto a gente colhia. Hoje em dia a gente compra tudo. Antes tinha mais trabalhadores, hoje não tem mais… eles foram embora.” Bento

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- Esquema de uma “Tirada d ’água”, f eita com base nas Figura Figura 32 conversas e indicações do local onde passava a água para o abastecimento parcial das casas.

Curso d’água artificial

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Nesse processo, percebeu-se que um marco importante na memória dos entrevistados mais velhos é a antiga casa do Chico Reis, onde ocorreram as primeiras aulas do bairro, no porão da residência com uma professora particular contratada por Chico. Pelas entrevistas, pudemos constatar e mapear, de modo preliminar as mudanças na ocupação da região do entorno dessa casa. Tentou-se, durante o tempo de entrevista, espacializar as histórias e lembranças, a fim de ter uma idéia de como era a região na época das recordações. Na página seguinte, temos um esboço produzido durante uma entrevista. Esse desenho registrou, de forma experimental, a localidade e número das antigas residências em parte do bairro, nos anos 50/60. Em seguida, foi produzido um pequeno mapa que ilustra o que seria a composição espacial nessa época. Mesmo com as mudanças citadas, existem limitações e barreiras na área-estudo. O acesso a comunicação (celular e internet) ainda é escasso e o transporte se restringe basicamente ao individual. Monte-Mór (2004) fala sobre ilhas de ruralidade, que são locais onde aspectos da urbanização ainda não alcançou e, nesse sentido, entendo que o bairro ainda está nesta situação.

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Figura 33 - Rascunho feito durante conversa com morador

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Figura 34 - Recomposição da ocupação do bairro, segundo entrevistas

Mapa - Composição da ocupaçâo nos anos 60.

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3 5

1- Casarão 2 e 3- Casas dos espanhóis 4- Casas dos Japoneses 5-Primeira casa do núcleo 6- Tirada d’água

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6

2

Mapa - Composição da ocupaçâo nos dias atuais


MUndo campo: o filme O trabalho vem mostrando várias perspectivas e reflexões sobre a paisagem rural: da teórica ao olhar dos camponeses, a fim de experimentar e entender o campo de diferentes formas. Com isso, a última parte do trabalho é composta por um vídeo documentário, que apresenta o bairro Paiol da Vargem através de seus moradores. O filme objetiva trazer a paisagem vivida, e não apenas aquela percebida, para aproximar o espectador do real mundo rural. Ele se estrutura no cotidiano e nas contradições que o campo vem vivendo. O vídeo traz aspectos de um campo bucólico e industrial, onde os sons, os padrões e as escalas se misturam. Ele toma partido do tempo do campo e foge da velocidade. Mais que mostrar o campo, o documentário busca trazer as pessoas do campo para mais perto. As perspectivas, visões e concepções dos moradores refletem a real paisagem rural, porque só eles percebem efetivamente o espaço que habitam. As falas do documentário são resultado de entrevistas semi estruturadas sobre o cotidiano do campo, das transformações que ele vem sofrendo e das perspectivas para o futuro da paisagem rural.

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Acesse o documentĂĄrio atravĂŠs do QR code

ou clicando no link

http://bit.ly/omundocampo

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Considerações metodológicas Inúmeras foram as barreiras e limites que surgiram ao longo do trabalho. O pensamento, de modo geral, foi sendo refinado, embasado e transformado ao decorrer dos meses de produção. O trabalho foi inicialmente idealizado com o objetivo de entender as dinâmicas socioespaciais da paisagem rural a partir do cruzamento de dados e relatos em uma base cadastral mapeável. De certo modo, esperava obter respostas a partir de mapeamentos e análises temáticas (centralidades, percursos, vias, ocupação). Com elaboração de alguns mapeamentos, de entrevistas, leituras, da redação do texto e com base em orientações, percebi que que a metodologia se esgotava em si mesma. As metodologias de análise tradicionalmente empregadas em áreas urbanas serviram de base para reflexão e para representação inicial no trabalho, mas não se exauriram em certo momento da pesquisa. As metodologias foram sendo adaptadas e criticadas ao longo do processo, com objetivo de extrair o máximo de informações possíveis, de diferentes tipos e camadas. De modo geral, vimos que as metodologias de mapeamento tradicionais de leitura da paisagem tem seus limites e, sozinhas, não são suficientes para o entendimento de uma área. Retomo aqui a percepção de que, às vezes a paisagem natural permanece a mesma, com suas ocupações e vias, mas com relações que se alteram completamente. Isto mostra que os maiores conflitos encontrados não são visualizados em toda sua potencialidade em mapas. As narrativas e a busca pela oralidade ganharam espaço, então, como forma de enriquecer a obtenção e representação dessas dinâmicas, memórias e impressões. O audiovisual aparece, então, como uma saída e experimentação, na tentativa de mostrar o território e sua dinâmica. Cabe dizer que parte das pessoas procuradas não se sentiu à vontade para ser filmada, mas quando o convite foi aceito, obtivemos resultados muito interessantes. No geral, as respostas e depoimentos eram mais concretos e mais conectados quando a filmagem estava acontecendo. 109


Considerações Finais Vimos, ao longo do trabalho, que a paisagem rural ,e a vida dos camponeses, vem mudando em vários aspectos. Questiona-se, com isso, qual será o futuro do campo. Podemos concluir que o campo vem sofrendo mudanças e aproximando-se, cada vez mais, de uma dinâmica global e urbana. Vemos, ainda, que a flora, com menor força no bairro-estudo, vem sendo alterada e passa a ser composta, cada vez mais, por produtos de monoculturas que funcionam como grandes indústrias de alimentos e energia. Notamos que existe uma cultura rural forte no Paiol da Vargem e que ela resiste, apesar do avanço do mercado urbano industrial sobre o território e, além disso, um carinho e orgulho dos moradores resilientes em relação ao lugar. Esse modo de viver no campo, no entanto, vem sendo comprometido. A dificuldade financeira dos pequenos agricultores, o difícil acesso a saúde e educação faz com que parte da população opte por viver nas cidades, o que tem efeitos sobre o território. Enquanto isso, essas áreas que ficam esvaziadas são ocupadas como casas de veraneio, seja pelos próprios ex moradores, ou por pessoas de cidades próximas que acabam comprando as propriedades. Com isso, o bairro tende a ficar mais esvaziado durante os dias de semana e mais cheios aos fins de semana. A diminuição da população fixa altera as dinâmicas do cotidiano, de oferta e procura de serviços e no modo de produção. Por fim, sendo difícil conclusões sobre o futuro, devemos pensar e estudar sobre as áreas rurais, de sua dinâmica, cultura e esvaziamento. O futuro do campo, seja qual for, certamente terá efeitos sobre o futuro das cidades.

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Referências

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LYNCH, Kevin. A Imagem da Cidade. SP: Martins Fontes, 1995 GIRARDI, Eduardo Paulon. Atlas da Questão Agrária Brasileira. Disponível em http://www2.fct.unesp.br/nera/atlas/questao_agraria. htm. Acessado em 2017. MONTE-MÓR. A Relação Urbano-Rural no Brasil Contemporâneo. II Seminário Internacional sobre Desenvolvimento Regional. Santa Cruz do Sul, RS, 2004. OSSERVATORIO NOMADE. Stalker Attraverso i territori attuali. Disponível em http://www.osservatorionomade.net/tarkowsky/manifesto/manifest.htm. Acessado em 2017. PANZINI, Franco. Projetar a Natureza: arquitetura da paisagem e dos jardins desde as origens até a época contemporânea - SP: Editora Senac São Paulo, 2013. PMT - Prefeitura Municipal de Toledo. Portal de Toledo, Sul de Minas. Disponível em http://www.toledo.mg.gov.br/. Acessado em maio de 2017. RAFFESTIN, Claude. A produção das estruturas territoriais e sua representação. In_____: SAQUET, Marcos Aurélio; SPOSITO, Eliseu Savério. Território e Territorialidades: Teorias, Processos e Conflitos. Editora Expressão Popular. São Paulo, 2009 TOCANTINS, Leandro. Amazonia-natureza, homem e tempo: uma planificacao ecologica. 2 ed. Rio de Janeiro: Biblioteca do Exercito, 1982. TUAN, Yi-Fu. Topofilia: Um estudo da Percepção, Atitudes e Valores do Meio Ambiente. Tradução de Livia de Oliveira. Londrina: Eduel, 2012. SANTOS, Milton. A Natureza do Espaço: Técnica e Tempo, Razão e Emoção - 4. ed. 2. reimpr. - São Paulo: Editorada Universidade de São Paulo, 2006. SCHAMA, Simon. Paisagem e Memória. São Paulo:Companhia das letras, 1996. SCHNEIDER, Sérgio; BLUME, Roni. Ensaio para uma abordagem territorial da ruralidade: em busca de uma metodologia. Revista Paranaense de Desenvolvimento, Curitiba, n.107, p.109-135, jul./dez. 2004 112


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Anexo - roteiro / filme documentário

Título Mundo Campo Duração 29’50’’ Local Bairro Paiol da Vargem, Toledo - MG Período de filmagem 15 a 20 de julho Entrevistados Afonso Pereira dos Reis, 65 (pecuária familiar) ngelo Augusto Chimentão, 27 (ex morador do bairro) Eduardo Ramalho, 9 Filipe Torquato Ramalho, 21 (cortador de lenha) Luciana Pereira dos Reis, 34 (ex morador do bairro) Otávio Torquato Ramalho, 24 (trabalhador na agricultura) Tereza Bernardes dos Reis, 66 (pecuária familiar) Tópicos abordados

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Qual a relação da roça com a cidade? Qual a importância do campo na sua vida? Conte um pouco sobre você. Se você pudesse falar alguma coisa do bairro, contar a história de algum lugar ou de algum costume, o que contaria? Se você fosse nos mostrar um lugar aqui no bairro, qual seria? Qual sua rotina? Você se locomove como? Pra onde você vai? De certo modo, as cidades estão crescendo, e o sítio está mudando com o tempo. Você vê alguma mudança ao longo dos últimos anos? Qual sua relação com a cidade? Você gostaria de morar na cidade? / Por que você se mudou para a cidade? Temas extras Transporte público Espaços de convívio Saneamento Emprego Equipamentos Necessários Câmera DSLR Nikon D3200 Lente 18-105mm Nikon Tripé Td-651an Digipoid Gravador de som Lapel (microfone)

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Trabalho apresentado em 10 de julho de 2017. Banca avaliadora: Daniela Abrita Cota FlĂĄvio SilvĂŠrio Liziane Mangili

Aprovado!

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