livro

Page 1

Núcleo de Justiça Comunitária e Direitos Humanos

1

Caderno Temático


2


SUMÁRIO

4 6 13 21 29 37 42 46

A RESOLUÇÃO DE CONFLITOS A PARTIR DA MEDIAÇÃO E DA CAPACITAÇÃO DOS CIDADÃOS

A UTOPIA DOS DIREITOS HUMANOS NA PÓS-MODERNIDADE

OS MÉTODOS AUTOCOMPOSITIVOS DE SOLUÇÃO DE CONFLITOS E SUAS EFETIVIDADES

MEDIAÇÃO DE CONFLITOS À LUZ DA CULTURA DE PAZ(ES)

A MEDIAÇÃO E PROCESSOS JUDICIAIS PRÁTICAS JURÍDICAS FEEVALE

EXPERIÊNCIA NA PRÁTICA DE ATENDIMENTOS DO NJCDH

FOTOS

GRÁFICO DE ATENDIMENTOS

3


Roberto Jungthon

4


Mediação é o ato ou efeito de mediar. De servir como intermediário entre pessoas, grupos, nações, com o objetivo de eliminar divergências ou disputas. Uma intervenção por meio da qual se procura chegar a um entendimento. É com base neste conceito que atua uma das iniciativas mais relevantes do eixo que trata da prevenção social à violência do Programa de Desenvolvimento Municipal Integrado (PDMI): o Núcleo de Justiça Comunitária e Direitos Humanos. A ação já formou e capacitou 1.002 pessoas e realizou 578 atendimentos, que vão desde orientações jurídicas e psicossociais a visitas domiciliares e mediações de conflitos. Em Novo Hamburgo, os bairros Santo Afonso e Canudos foram escolhidos como prioritários para receber as atividades. Somados, possuem quase 90 mil habitantes, o que representa aproximadamente 35% da população do município. A metodologia potencializa ações de prevenção de situações de risco, fortalece vínculos familiares e comunitários, amplia a capacidade de garantia da proteção social, difunde as técnicas de mediação de conflitos e contribui para o desenvolvimento da cultura de respeito mútuo. Um processo voluntário que fomenta o protagonismo das pessoas em conflito no exercício de escuta e empatia com o próximo. O programa se baseia numa abordagem independente de viés ideológico, onde a presença de agentes capacitados é essencial para que seja semeado o diálogo. Mesmo que a ação posta em prática não resulte na imediata satisfação das partes e a contenda tenha que ser levada à justiça, não há razão para que o processo seja traumático. O processo pode e deve ser conduzido com serenidade. Dessa forma, é possível cooperar para a redução da judicialização excessiva, umas das causas da morosidade do sistema de Justiça brasileiro, ao mesmo tempo em que se estimula a formação de lideranças e se amplia o diálogo no âmbito das comunidades. Todas as pessoas são capazes de racionalizar as mais variadas questões, basta que seja oferecido a elas o ferramental necessário. Preparar a cidade para as próximas gerações não se resume a asfalto, concreto e canos. Tampouco à atração de investimentos, geração de empregos, retenção e prospecção de talentos. Ao projetar a Novo Hamburgo de amanhã, é necessário também pensar como seus cidadãos conviverão em sociedade, gerenciarão crises e atingirão o consenso nos mais variados temas. Ao humanizar e levar o processo de resolução de conflitos para dentro das comunidades, a Prefeitura Municipal de Novo Hamburgo contribui para a democratização e qualificação do acesso à Justiça. Ao ampliar o escopo e tornar esta iniciativa lei, – e, por consequência, um programa permanente – os gestores estão fomentando o exercício pleno da cidadania dos munícipes. 5


Dailor dos Santos¹

A utopia dos direitos humanos na pós-modernidade. Resumo: O estudo analisa a dificuldade de atribuição de sentidos aos Direitos Humanos e os apresenta como uma conquista histórica que deve continuamente preservar o seu caráter utópico, perspectiva necessária para que se possa opor ao Estado, ao Direito e ao Poder a dignidade da pessoa humana. Defende que o aprofundamento da noção de cidadania possibilita uma adequada compreensão dos Direitos Humanos mesmo na pós-modernidade. Funda-se o estudo em pesquisas bibliográficas e adota o método hipotético-dedutivo. Palavras-chave: Direitos Humanos. Dignidade da Pessoa Humana. Utopia. Cidadania. Pós-modernidade. Abstract: The study analyzes the difficulty of attributing meanings to Human Rights and presents them as a historical achievement that must continually preserve their utopian character, a necessary perspective in order to oppose the dignity of the human person to State, Law and Power. It argues that the deepening of the notion of citizenship enables an adequate understanding of Human Rights even in postmodernity. The study is based on bibliographic research and uses the hypothetical-deductive method. Keywords: Human Rights. Dignity of the human person. Utopia. Citizenship. Postmodernity.

¹ Doutorando em Direito – UNISINOS, Mestre em Direito Público – UNISINOS, Especialista em Direito do Estado - UFRGS, Professor de Direito Constitucional e de Direito Administrativo – FEEVALE.

6


1. INTRODUÇÃO A compreensão dos Direitos Humanos na pós-modernidade, época em que a liquidez das relações humanas confere novos contornos à própria democracia, impõe duas apropriações determinantes: que sentidos podem ser concedidos os Direitos Humanos e a suas prometidas utopias e que vínculos possuem os Direitos Humanos com a cidadania. O presente estudo abordará essas perspectivas a partir do método hipotético-dedutivo.

2. A UTOPIA DOS DIREITOS HUMANOS O que são os Direitos Humanos? Esse questionamento, aparentemente óbvio, esconde em sua própria formulação as dificuldades em atribuir um sentido linear aos Direitos Humanos (BOBBIO, 2004). A busca dos limites em que se situam os Direitos Humanos trata-se, todavia, de tarefa imprescindível porque, apesar de a Constituição Federal Brasileira apresentar um extenso rol de Direitos e Garantias Fundamentais, o que aponta para o longo caminho de esforços dedicados à consolidação da dignidade da pessoa humana, não são raros os debates que insistem em uma dicotomia inócua, fundada em uma visão desfocada da história e alicerçada na imaginária divisão entre os que são “favoráveis” e os que são “contrários” à afirmação dos Direitos Humanos (LAZZARINI, 2001). Essa anunciada oposição paradoxalmente reflete a sua própria insuficiência, justamente porque possui ela, intrinsecamente, um caráter totalizante e aglutinador de sentidos. Dizer-se “favorável” ou “contrário” aos Direitos Humanos escancara o grande equívoco de ignorar que historicamente o próprio Direito evoluiu na tentativa de limitação do poder estatal e na correlata valorização da dignidade humana, o que foi decisivo para que a atual noção de liberdade, ainda que persista em uma contínua vigilância para a sua própria afirmação, fosse alcançada. Não se trata, a defesa e a afirmação dos Direitos Humanos, do desejo de um grupo, da proteção exclusiva de algumas pessoas ou da afirmação de uma determinada ideologia. Os Direitos Humanos importam porque se consolidam historicamente como uma perspectiva de defesa da dignidade da pessoa humana, atributo inerente a todos os seres humanos. Foi o desenvolvimento histórico dos Direitos Humanos, na superação de contínuas resistências na busca de sua afirmação, que permitiu a promoção de Direitos Civis e Políticos (direito à justiça, direito à liberdade, direito à igualdade, direito à propriedade, direito à intimidade e à vida privada, direito ao devido processo legal, direito ao voto, entre outros), de Direitos Sociais (direito à educação, direito à saúde, direitos trabalhistas, direito à previdência social entre outros) e, também, dos chamados Novos Direitos 7


(BOBBIO, 2004), tão necessários quanto a busca de limitação do poder estatal, podendose citar, a título ilustrativo, o direito à memória e à verdade (SANTOS, 2019), o direito ao ambiente ecologicamente equilibrado, o direito à paz, o direito ao patrimônio genético e o direito ao esquecimento. A confluência histórica da luta por direitos, em suas diversas dimensões, sinaliza a importância dos Direitos Humanos. A compreensão da dignidade humana de qualquer ser humano amplia-se, graças à evolução histórica dos Direitos Humanos, a ponto de atingir a proteção de sua propriedade, de sua memória, de sua educação, de sua participação política, de sua liberdade de manifestação e expressão, enfim, de todos os direitos conquistados historicamente e que, em um sentido convergente, circunscrevem a própria dimensão dos Direitos Humanos, alçados a todos que comungam do mesmo estatuto de seres humanos. Os influxos históricos foram decisivos nessa construção de significados. Surgem os Direitos Humanos como perspectiva jurídica (declarações de direitos) na Inglaterra, com a Magna Carta de 1215, que passou a submeter o monarca às leis que ele próprio editava (COMPARATO, 2016). Tratou-se de uma compreensão embrionária para a vinculação do Estado à lei: em tempos de combate à corrupção, poderia alguém conceber a Administração Pública atuando à margem do princípio da legalidade? São os Direitos Humanos – tão questionados por muitos – que permitem essa vinculação do Estado à lei, tendo como premissa ética a dignidade humana. Embora a Idade Média seja tradicionalmente compreendida como a Idade das Trevas, permitiu ela o surgimento, com o feudalismo, de uma nova classe: a burguesia que, por sua vez, também se fez decisiva na fixação de novos limites ao absolutismo (CALAINHO, 2014). Acresça-se a isso o advento do iluminismo (por volta do séc. XVII e com o apogeu no séc. XVIII), o que implicou a superação de uma sociedade dividida em estamentos, anunciando a ideia de supremacia do indivíduo e da razão, o que aguçou a compreensão da liberdade e da igualdade como valores inerentes a todos os seres humanos. Esse cenário histórico culmina nas grandes revoluções, em especial a Revolução Francesa de 1789, em que as linhas gerais dos Direitos Humanos são esboçadas, sustentadas na premissa de que todos os homens nascem e permanecem livres e iguais em direitos (COMPARATO, 2016). Essa compreensão, todavia, esbarrou em sua própria insuficiência histórica, denunciando, além disso, uma visão limitada dos Direitos Humanos, fundados que estavam em uma significação eminentemente eurocentrista: a igualdade de todos os seres humanos não impediu a escravidão (BETHENCOURT, 2015), não cessou a dizimação de povos indígenas na América do Norte e na América Latina (BROWN, 2010; 8


BRAGATO, 2016), não atenuou a exploração de países latino-americanos (GALEANO, 2010), não evitou o advento de duas guerras mundiais e tampouco impossibilitou os genocídios do holocausto, em que milhões de judeus foram exterminados pela Alemanha nazista, e do Holodomor, a Grande Fome da Ucrânia gerada na Ucrânia por Stalin, que igualmente impôs a morte de milhões de pessoas (SNYDER, 2012). Dessas constatações históricas decorre o pertinente alerta de Bobbio (2004), ao apontar a dificuldade em buscar um fundamento absoluto para os Direitos Humanos, seja porque a afirmação “direitos do homem” é, por si só, extremamente vaga, seja porque os Direitos Humanos variam historicamente, conduzindo à constatação de que “não existem direitos fundamentais por natureza” (BOBBIO, 2004, p. 38). Esse dilema, porém, diante da própria conformação histórica da evolução dos Direitos Humanos, parece exigir algo maior do que a busca de um fundamento imanente: “o problema fundamental em relação aos direitos do homem, hoje, não é tanto o de justificá-los, mas o de protegê-los” (BOBBIO, 2004, p. 43). Persiste, todavia, o questionamento: o que são os Direitos Humanos? São os direitos mínimos e fundamentais da pessoa humana para que se torne possível a sua vida em sociedade, capazes de assegurar a sua liberdade e dignidade (SIQUEIRA JR.; OLIVEIRA, 2009). Porém, mais do que isso, os Direitos Humanos são a utopia de que as incertezas do tempo presente e as aspirações violentas de regimes políticos e de detentores do poder ainda encontram como horizonte de sentidos, e como limite a ser atingido e preservado, a dignidade da pessoa humana e o conjunto de direitos historicamente alcançados: “[...] eles constituem o elemento utópico por trás dos direitos legais” (DOUZINAS, 2009, p. 383). Os Direitos Humanos desafiam, assim, o Estado, o Direito e o Poder, justamente porque cortam transversalmente narrativas temporais e, a partir da memória, continuamente resgatam – em uma atualização e autoafirmação perenes – a noção de humanidade.

03. DIREITOS HUMANOS E CIDADANIA Como implicam, por sua própria constituição, a imposição de limites à atuação do Estado em prol da preservação e garantia da dignidade da pessoa humana, os Direitos Humanos amplificam a noção de liberdade para que ela também contemple a possibilidade de participação dos indivíduos na vida política do Estado (SIQUEIRA JR.; OLIVEIRA, 2009). Essa ligação entre o indivíduo e o Estado, como faceta dos Direitos Humanos, solidifica, a um só tempo, três perspectivas: (I) a noção de que todos os cidadãos são detentores de direitos porque gozam de dignidade humana, atributo anterior a qualquer reconhecimento jurídico e, portanto, impossível de ser retirada de qualquer 9


indivíduo (SARLET, 2007); (II) a compreensão de que o respeito aos direitos do Outro, inclusive de minorias, é decisivo para a afirmação democrática por força do próprio pertencimento social (ELIAS, 1994) e (III) a necessidade do aprofundamento de práticas cidadãs e da educação e formação em Direitos Humanos para que se fortaleçam os Direitos Humanos já consolidados historicamente sem impedir que atualizados Direitos Humanos – principalmente em face dos atuais desafios das novas tecnologias – orientem as renovadas concepções de poder e de manifestação da violência (BYUNG-CHUL, 2017). Evidencia-se, assim, o íntimo vínculo entre cidadania, Direitos Humanos e democracia, em uma relação de interdependência: a cidadania permite a afirmação da democracia; os Direitos Humanos propiciam o exercício da cidadania; a democracia é o espaço possível tanto da afirmação cidadã como da amplificação dos Direitos Humanos. Essa dependência mútua da cidadania, dos Direitos Humanos e da democracia indica a importância da educação em Direitos Humanos como forma de dar respostas aos desafios da pós-modernidade: se a modernidade, momento em que assentaram os Direitos Humanos, admitia uma liberdade demasiadamente restrita para a busca da felicidade individual, a pós-modernidade, por sua vez, amplia a noção de liberdade de procura do prazer e em contrapartida diminui a noção de segurança individual (BAUMAN, 1998). A superação da modernidade sólida para a modernidade líquida implica a imprevisibilidade dos próprios Direitos Humanos, pois as relações humanas continuamente se refazem (BAUMAN, 2011). Paradoxalmente, a vulnerabilidade, ao invés de ser suplantada, aguça-se nessa sociedade líquida, em que o mundo parece efêmero, vazio e instantâneo: o futuro se torna incerto, as redes sociais aumentam a sensação de fluidez dos desejos, as novas tecnologias aguçam potencialidades até então improváveis e o indivíduo sente-se impotente perante o mundo. Rompe-se, assim, a antiga e segura perspectiva de dignidade de pessoa humana, admitindo-se, hoje, inclusive, falar em pósmoral, transumanismo e pós-humanidade (SANTOS, 2017), horizontes para os quais os Direitos Humanos fatalmente direcionarão o seu âmbito de proteção. A historicidade persiste definindo o âmbito de proteção dos Direitos Humanos. Alia-se a isso a ligação íntima entre Direitos Humanos e cidadania, perspectiva que deve ser aprofundada para que a democracia possa sobreviver (LEVITSKY; ZIBLAT, 2018) aos riscos que a sociedade líquida, imersa nas incertezas da pós-modernidade, enfrenta. Será o momento, então, de novamente recorrer – como antídoto ao abuso “dos poderes que proclamaram seu triunfo” (DOUZINAS, 2009, p. 384) – aos Direitos Humanos e a suas promessas utópicas e tão necessárias à pessoa humana.

10


4. UMA CONCLUSÃO LÍQUIDA A pós-modernidade, intrinsecamente complexa e desapegada de antigas seguranças, define-se em um paradoxo que igualmente situa os Direitos Humanos: a mudança tem um caráter contínuo e é ela a única certeza. A utopia dos Direitos Humanos é justamente a perspectiva que permite o enfrentamento desse novo tempo de liquidez pós-moderna sem desapegar-se da autenticidade do ser humano. Não são os Direitos Humanos, assim, a certeza esperada; ao contrário, são eles a abertura possível para que a humanidade admita o seu passado e comprometa-se pelo seu futuro.

REFERÊNCIAS BAUMAN, Zygmunt. O mal-estar da pós-modernidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1998. 271p. ___, Zygmunt. Vida em fragmentos: sobre a ética pós-moderna. Rio de Janeiro: Zahar, 2011. 413p. BETHENCOURT, Francisco. Racismos: das cruzadas ao século XX. Lisboa: Temas e Debates – Círculo de Leitores Editora, 2015. 582p. BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Rio de Janeiro: Elsevier, 2004. 232p. BRAGATO, Fernanda Frizzo. Direitos territoriais indígenas e prevenção de atrocidades no Brasil: o papel do Supremo Tribunal Federal discutido em Amicus Curiae. In: STRECK, Lenio Luiz; ROCHA, Leonel Severo; ENGELMANN, Wilson. Constituição, sistemas sociais e hermenêutica: anuário do programa de Pós-Graduação em Direito da UNISINOS: mestrado e doutorado. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2016, n. 12, p. 53-82. BROWN, Dee. Enterrem meu coração na curva do rio. Porto Alegre: L&PM, 2010. 456p. BYUNG-CHUL, Han. Topologia da Violência. Petrópolis: Vozes, 2017, 269p. CALAINHO, Daniela Buono. História medieval do ocidente. Petrópolis: Vozes, 2014. 125p. COMPARATO, Fábio Konder. A afirmação histórica dos direitos humanos. São Paulo: Saraiva, 2015. 619p. DOUZINAS, Costas. O fim dos Direitos Humanos. São Leopoldo: Unisinos, 2009. 417p. ELIAS, Norbert. A sociedade dos indivíduos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1994. 201p.

11


GALEANO, Eduardo. As veias abertas da América Latina. Porto Alegre: L&PM, 2010. 396p. LAZZARINI, Alvaro. Poder de polícia e direitos humanos. In: Revista do Instituto dos Advogados de São Paulo, São Paulo, RT, jan.-jun./2001, p. 11-21. LEVITSKY, Steven; ZIBLATT, Daniel. Como as democracias morrem. Rio de Janeiro: Zahar, 2018. 270p. SANTOS, Dailor dos. A memória dos próximos como perspectiva ética do Direito à Memória. In: DOS SANTOS, Dailor (Org.). A construção da Memória Política: (im)possibilidades e desafios do Direito à Memória e à Verdade [e-book]. São Leopoldo: Oikos, 2019, p. 95-111. ___, Dailor dos. Novas tecnologias, Estado e Direito: (re)pensando o papel do Direito Administrativo. In: ENGELMANN, Wilson; HUPFFER, Haide Maria. (Orgs.). Impactos sociais e jurídicos das nanotecnologias [e-book – recurso eletrônico]. São Leopoldo: Casa Leiria, 2017, p. 233-261. SARLET, Ingo. Dignidade da Pessoa Humana e Direitos Fundamentais. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007. 163p. SIQUEIRA JR., Paulo Hamilton; OLIVEIRA, Miguel Augusto Machado de. Direitos Humanos e Cidadania. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2009, 288p. SNYDER, Timothy. Terras de sangue. Rio de Janeiro: Record, 2012. 615p.

12


Alfredo Fuchs² | alfredofuchs@hotmail.com

Resumo: A Resolução do Conselho Nacional de Justiça nº 125, de 2010, estabeleceu uma nova política judiciária nacional de tratamento dos conflitos de interesse no âmbito do Poder Judiciário. Entre seus vários objetivos estão o acesso à Justiça, a consolidação dos mecanismos consensuais de solução de conflitos – como a mediação, a conciliação e os métodos restaurativos – e a prevenção dos litígios de modo a evitar sua desnecessária judicialização. O presente artigo introduz discussão sobre as efetividades desta nova política, em tempos de valorização de respostas imediatas e demonstração de resultados quantitativos. Como possível avaliar a eficácia das práticas autocompositivas? Palavras-chave: Métodos Autocompositivos. Mediação. Justiça Restaurativa. Efetividade.

² Bacharel em Direito e Licenciado em História. Especialista em Direito Ambiental. Conciliador, mediador e facilitador de Círculos de Construção de Paz. Instrutor na capacitação de conciliadores e mediadores. Supervisor do CEJUSCON da Justiça Federal de Novo Hamburgo/TRF4.

13


1. INTRODUÇÃO Os programas conciliatórios no Poder Judiciário brasileiro não são novos. Na Justiça do Trabalho, a tentativa conciliatória, ainda que não totalmente autocompositiva em sua essência, é regra desde a entrada em vigor da Consolidação das Leis do Trabalho, de 1943. Há mais de vinte anos estabeleciam-se os Juizados Especiais (Lei nº 9.099, de 26 de setembro de 1995) na Justiça Estadual e um pouco depois na Justiça Federal (Lei nº 10.259, de 12 de julho de 2001). É possível considerar, no entanto, a iniciativa do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), através da Resolução 125, de 29 de novembro de 2010, como um salto qualitativo no que se refere ao desenvolvimento dos métodos autocompositivos (consensuais, dialogados, normalmente facilitados por um terceiro) de solução de conflitos, tanto no âmbito judicial como também no extrajudicial. A Resolução 125 estabelece uma nova política de tratamento de conflitos que fortalece o diálogo, norteado por princípios como a horizontalidade, a responsabilização e a confidencialidade do diálogo. Orientada para a mediação e para a conciliação, a Resolução cria a estrutura judiciária necessária para atender a nova política, estabelece o Código de Ética e cria as diretrizes para a capacitação dos facilitadores. Aos poucos, a sociedade acostuma-se com a nova política e outros métodos e práticas autocompositivos começam a ser utilizados, como as constelações sistêmicas e o arcabouço de práticas que se denominou Justiça Restaurativa. Essa nova política judiciária deixa claro em suas considerações prévias seus objetivos. Dentre eles, podemos citar a valorização do diálogo, da responsabilização (ao invés de culpa), de construção de entendimento, descartando, quando possível, a intervenção do Judiciário. Em resumo, pode-se dizer que, visualizadas as consequências nefastas da excessiva judicialização das contendas, o Poder Judiciário propôs uma mudança de cultura: uma virada na direção da responsabilização do cidadão em relação aos atos e seus efeitos e a busca pela solução dialogada do conflito. Em 31 de maio de 2016, o CNJ editou a Resolução nº 225, que trata da Política Nacional de Justiça Restaurativa, no âmbito do Poder Judiciário. A Justiça Restaurativa abarca vários métodos e processos, resgatados mormente de práticas antigas de comunidades ao redor do mundo. Comungando de vários princípios com a mediação e da conciliação, as práticas restaurativas são voltadas, de um modo geral, à comunidade. Podem ser tratadas questões (conflitos) individuais, mas que repercutem na coletividade. É um olhar mais abrangente sobre os conflitos e sugere, assim, o envolvimento da comunidade ou de uma coletividade. As práticas restaurativas tratam tanto de danos da esfera criminal quanto da esfera civil. Para cada tipo de dano ou conflito pode haver um método específico com suas práticas peculiares, dirigido por facilitadores capacitados. 14


Atualmente, iniciativas dos municípios (leis locais com apoio do Poder Executivo municipal) têm propiciado que as práticas autocompositivas se desloquem de dentro dos fóruns em direção à comunidade, seu local de origem. Exemplo disso são os programas desenvolvidos em Caxias do Sul e, a partir deste ano, também em Novo Hamburgo, com a instauração do Programa Restaura Novo Hamburgo, baseado na Lei Municipal 3.133, de 31 de agosto de 2018. Como na Resolução 125/10, do CNJ, o Programa Restaura Novo Hamburgo cria estruturas para gestão, operação e atendimento da comunidade e especifica órgãos e atribuições, além de tratar da capacitação e dos registros estatísticos de atendimentos e ações, inclusive para controle de execução orçamentária. Seja dentro ou fora do Judiciário, seja ligado ou não a alguma entidade pública, aparece sempre a preocupação, legítima, de tabular dados e registrar resultados. A questão que queremos colocar neste momento é se seria possível ou não e, caso positivo, até que ponto pode-se estabelecer como parâmetro de efetividade a quantidade de atendimentos ou de acordos realizados através dos métodos autocompositivos.

2. O PAPEL DO JUDICIÁRIO Ao menos nos últimos vinte anos, o Poder Judiciário tem sido chamado a atuar mais fortemente e decidir questões de todos os tipos. Algumas vezes substituindo os poderes Legislativo e Executivo em assuntos de grande repercussão social, outras vezes assumindo responsabilidades em decidir as mais singelas querelas privadas. De um lado temos o fenômeno da redemocratização, ocorrido no Brasil nos anos 1980, aliado a uma nova Constituição, abrangente e garantista. De outro, e também pelo fácil acesso ao Judiciário, o cidadão abdica do diálogo e de resolver suas questões, das responsabilidades sobre seus atos e consequências e lança-se em busca de alguém que resolva por ele: o PROCON, o Promotor de Justiça, o Juiz. O CNJ, no volume atualizado em 2019 da Justiça em Números, traz um panorama da chamada litigiosidade aportada no Judiciário, conforme verificamos na figura abaixo:

15


Percebemos, pela figura acima, a curva de processos novos, à época da Resolução 125/10 aparece num crescente até 2014 e a partir de 2017, iniciou um decréscimo. Por outro lado, o número de processos baixados (encerrados) aumentou, reduzindo o chamado acervo – a quantidade de processos em andamento, pendentes de solução. Parte da diminuição do acervo deve-se ao incremento da celeridade, da informatização e da produtividade do Judiciário. Aos poucos, os métodos autocompositivos vão se firmando no cotidiano dos tribunais e, a cada ano, os números (quantitativos e qualitativos) vão aumentando. É possível deduzir que os números apresentados pelo CNJ como sendo de “Conciliação” abarcam também as mediações e outros métodos autocompositivos, que geram acordos capazes de encerrar processos judiciais.

Em 2018 (CNJ, 2019), o índice oscilou para 11,5%, perfazendo 3.725.960 sentenças homologatórias num universo total de 32.399.651 sentenças proferidas. De fato, a mudança de cultura preconizada pela Política Judiciária Nacional de tratamento adequado dos conflitos também deve se dar dentro do Judiciário, entre os servidores e magistrados, além dos advogados, importantíssimos para a disseminação da autocomposição. Como exemplo, verifica-se em várias Subseções da Justiça Federal da 4ª Região Centros de Solução de Conflitos (CEJUSCONs) mal equipados ou inoperantes, seja por falta de capacitação ou de interesse em atuar na conciliação e outros métodos. Encontra-se também alguma dificuldade para que as Varas encaminhem processos ou conflitos para que sejam tratados nos CEJUSCONs. Os operadores do Judiciário vão conhecendo e aprendendo sobre os meios adequados de solução de conflitos aos poucos, mediante os contínuos estímulos do CNJ e pessoas que, isoladamente, desenvolvem e publicizam seus trabalhos e suas iniciativas. Assim, o Judiciário exerce um importante papel de irradiador da mudança cultural proposta. E mais: ao acompanhar as atividades dos Centros e ao controlar a formação dos facilitadores, o Judiciário forma um quadro importante de cidadãos que vão levar a cultura 16


do diálogo para as suas comunidades. Em algum momento, dependendo do grau de maturidade das comunidades para a cultura da paz, o Judiciário deixará de ser o local de referência para o qual as pessoas acorrem com seus conflitos. Naturalmente, a comunidade se organizará para atender as suas próprias questões. João Salm explica que “a Justiça Restaurativa não se encontra dentro do poder estatal”. De fato, nenhum método autocompositivo pertence ao Judiciário. Ali se pode encontrar espaços adequados e facilitadores capacitados à disposição caso seus serviços sejam necessários ou solicitados. do diálogo para as suas comunidades

3. O PONTO DE MUTAÇÃO A preocupação da gestão judiciária com a efetividade dos métodos autocompositivos leva em conta vários fatores: destinação de certa força de trabalho e recursos para administrar e atender os processos judiciais encaminhados aos Centros, para atender os usuários e realizar a atermação pré-processual; controlar o tempo médio de tramitação dos processos judiciais – essa é uma questão de grande relevância para os tribunais, a partir de um reclamo social pela maior celeridade na tramitação das causas; o modo de aferir tal efetividade. Como vimos pelas figuras acima, o Judiciário tem meios de aferir o que acontece nos processos judiciais. Ocorre que a aferição de mudança de comportamento é mais complexa e, talvez por isso, seja pouco contemplada nos relatórios institucionais, apesar de ser uma questão das mais relevantes. Fritjof Capra, em sua célebre obra “O Ponto de Mutação”, refere que a mudança social amadurece lentamente e, aos poucos, vai conquistando espaço em relação à cultura tradicional. E quanto mais se desenvolve maior é a resistência ao novo, até que há a ruptura, o ponto de mutação. Quem já passou pela experiência de participar de um procedimento autocompositivo e, em especial, seus facilitadores (pelas repetidas experiências e pelo olhar atento, treinado), consegue perceber seus benefícios imensuráveis. A experiência com os métodos autocompositivos vem apontando para um crescente número de usuários – pessoas interessadas em resolver suas questões de modo ágil e consensual; pessoas interessadas em conhecer melhor os métodos e utilizar algumas de suas ferramentas em suas vidas privadas; e, algumas outras, em capacitar-se como facilitadoras. Em Novo Hamburgo, por exemplo, parece que há um terreno fértil para os métodos autocompositivos, com dois Centros Judiciários bastante atuantes, com boa quantidade de facilitadores e voluntários, competentes, com apoio institucional e com boa aceitação 17


na comunidade. O CEJUSCON, na Justiça Federal de Novo Hamburgo, foi instalado em 2011. Já o CEJUSC, na Justiça Estadual em 2014, mesmo ano que iniciaram as atividades de Justiça Restaurativa (no mesmo prédio, mas em estrutura à parte). Aos poucos, os testemunhos sobre as mudanças de comportamento na direção da cultura da paz vão se consolidando. A pesquisa de satisfação, utilizada por alguns Centros, no Judiciário, auxilia na visualização de alguns elementos que podem dar uma ideia do efeito da autocomposição nos usuários. Durante o ano de 2017, foram realizadas 561 sessões de conciliação/ mediação e 442 usuários (partes e advogados) participaram de pesquisa de satisfação no CEJUSCON de Novo Hamburgo. Desses, 406 acreditam que a tentativa autocompositiva foi válida. Ainda, 369 usuários perceberam que participaram da construção da solução, e 389 usuários se sentiram satisfeitos ou muito satisfeitos com a sessão autocompositiva. Conforme a pesquisa, 90% dos participantes acreditam que foi possível ver o Poder Judiciário como um Centro de Paz, após a participação em algum procedimento autocompositivo. Esse indicador é importante para entender que a ideia de Centro de Paz é, na verdade, estimulada pelo uso dos métodos e não por ser no Judiciário. Como resultado, entende-se que é possível criar Centros de Paz fora do Judiciário, quando as condições sociais se mostrarem favoráveis. No caso de Novo Hamburgo, vários autores, ao passar desses 8 anos, conjugaram esforços no sentido de alavancar a aplicação dos métodos autocompositivos. O movimento foi crescendo até que, em 2018, sobreveio a Lei Municipal nº 3.133, estabelecendo o Programa Restaura Novo Hamburgo. O programa, gerido pelo poder executivo municipal instalou, neste ano, seu Núcleo no Bairro Santo Afonso, um dos maiores e mais carentes da cidade. Ali, a equipe de facilitadores atende tanto demandas encaminhadas pelo Judiciário como pela própria comunidade. Talvez essa nova fase no tratamento consensual de conflitos seja ela própria um indicador da eficácia da Política Judiciária, como preconizada pelo CNJ. Recém-lançado, o Programa mostrará, com o tempo, a aceitação ou não dessa proposta pela sociedade.

4. CONCLUSÃO A questão proposta na introdução deste artigo reside em analisar as possibilidades de avaliação da efetividade dos métodos autocompositivos de solução de conflitos. Sem retirar legitimidade da atuação decisória dos magistrados, até porque há conflitos em que a solução heterocompositiva é a mais adequada, o CNJ propõe uma nova Política Judiciária que consiste, em linhas gerais, em devolver autonomia aos cidadãos. Autonomia para solucionar seus conflitos com diálogo e responsabilidade. 18


Ainda que programas pela conciliação sejam mais antigos, tomamos como marco do nosso trabalho a Resolução nº 125/2010, do CNJ, que institui a Política Judiciária de Tratamento de Conflitos de forma consensual. Após 9 anos, verificamos o aumento do número de conciliações (nomenclatura genérica utilizada pelo CNJ para referir os métodos autocompositivos, como também a mediação e os processos de Justiça Restaurativa). Verificamos o aumento do número de sentenças terminativas – homologatórias de acordos. Vemos também o aumento da quantidade de Centros Judiciários de Solução de Conflitos (CNJ, 2019) – local, no Judiciário, que concentra a gestão dos processos e métodos autocompositivos, bem como a coordenação dos facilitadores atuantes nesses métodos. Todos esses dados, tabulados pelos tribunais e compilados pelo CNJ apontam para o sucesso dessa Política, em níveis quantitativos. Em relação à mudança qualitativa, à cultura da paz, é possível detectar algum avanço, localizado, lento e suscetível a interrupções. Ainda assim, aos poucos vai se construindo uma rede de pessoas e instituições que atuam com métodos autocompositivos. Aí, os avanços tecnológicos atuam positivamente. As redes sociais virtuais auxiliam a conectar pessoas, trocar experiências e dar visibilidade a iniciativas e eventos. O aumento pela procura dos serviços de facilitação consensual de conflitos indica que há interesse da comunidade. Afinal, a verdadeira Justiça só poderá ser feita quando se sabe qual é a necessidade do cidadão (vítima e ofensor), quais são suas responsabilidades e o que lhe pode ser ofertado. Necessário dar-lhe voz e ouvidos. Assim pode-se construir a paz mediante o consenso. É importante anotar algumas condições para que a política da cultura da paz continue avançando: a) dar mais divulgação, inclusive institucional, aos programas de solução consensual de conflitos (natureza, tipos, objetivos e limites), para advogados, magistrados, servidores da justiça, membros do Ministério Público, força policial, escolas e redes de atendimento social em nível estadual e municipal, entre outros agentes, além da comunidade em geral; b) estimular aos operadores do direito a solicitar/remeter processos judiciais e conflitos ainda não judicializados, a tratamento adequado consensual, prestado pelos Centros Judiciais ou Núcleos comunitários de justiça; c) capacitar pessoas para atuar como facilitadores e fornecer condições adequadas ao seu trabalho; d) evitar ao máximo solução de continuidade dos programas e ações, especialmente quando há substituição de chefia, pois como diz Howard Zehr, “os interesses políticos e institucionais certamente afetam a ocorrência ou não das mudanças e a forma que elas assumem” (ZEHR, p. 209). Finalmente, é preciso mais tempo, porque transformação é um objetivo de longo prazo, que demanda dedicação e resiliência. Se é o caminho certo, não se pode julgar. O 19


que se pode dizer é que os frutos são maravilhosos. Experimente.

REFERÊNCIAS BARROSO,

Luís

Roberto. Judicialização,

ativismo

judicial

e

legitimidade

democrática. Disponível em https://www.direitofranca.br/direitonovo/FKCEimagens/ file/ArtigoBarroso_ para_Selecao.pdf, acessado em 03/09/2019. CAPRA, Fritjof. O ponto de mutação. São Paulo: Cultrix, 1996. CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. Conciliação: mais de três milhões de processos solucionados por acordo. Disponível em http://www.cnj.jus.br /noticias/cnj/87537conciliacao-mais-de-tres-milhoes-de-processos-solucionados-por-acordo, acessado em 03/09/2019. ____. Justiça em números 2019. Brasília: CNJ, 2019. Disponível em http://www.cnj. jus.br/files/conteudo/arquivo/2019/08/4668014df24cf825e7187383564e71a3.pdf, acessado em 03/09/2019. ____. Justiça restaurativa: horizontes a partir da Resolução CNJ 225. Brasília: CNJ, 2016. HOOKER, David Anderson. Transformar comunidades: uma abordagem prática e positiva ao diálogo. São Paulo: Palas Athena, 2019. SALM, João. A Justiça Restaurativa: multidimensionalidade humana e seu convidado de honra. Disponível em http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci _arttext &pid =S2177- 70552012000100009. Acessado em 04/09/2019. ZEHR, Howard. Trocando as lentes: um novo foco sobre o crime e a justiça. São Paulo: Palas Athena, 2008.

20


Júlia do Couto e Silva Freitas³

³ Advogada, mediadora de conflitos e facilitadora de círculos de construção de paz e círculos restaurativos. Mestranda em Paz, Desenvolvimento, Segurança e Transformação de Conflitos Internacionais, pela Universidade de Innsbruck, na Áustria. Pós-graduada em Transformação de Conflitos e Estudos de Paz (parceria entre Instituto Paz e Mente, a Universidade de Innsbruck, a Cátedra de Estudos de Paz da Unesco, o Santa Barbara Institute for Consciousness Studies e a Universidade Vicentina). Formação em Mediação de Conflitos, pela CLIP. Certificada em Mediação Familiar, com Juan Carlos Vezzulla pelo IMAP; Certificada em Mediação Transformativa, com Joseph Folger, pelo IMAB; Certificada em Mediação Circular-Narrativa, com Sara Cobb, pela Mediare. Participou de 2012 a 2017 como voluntária do Grupo de Mediação (GM) do Serviço de Assessoria Jurídica Universitária (SAJU) da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Professora Supervisora das atividades de prática em mediação no CRMC/DPERS, pelo Domus – Centro de Terapia Individual, de Casal e de Família. Instrutora e supervisora de cursos de Justiça Restaurativa.

21


1. INTRODUÇÃO Este artigo pretende apresentar a mediação de conflitos a partir da ótica da cultura de paz. Para isso, iniciaremos trazendo questionamentos sobre o próprio conceito de paz, no primeiro capítulo. Ofereceremos uma revisão histórica, especialmente no que se refere ao período da segunda guerra mundial, apresentando os reflexos que as experiências da guerra tiveram para os estudos de paz. Além disso, apresentaremos a paz como construção humana e a influência da linguagem na nossa percepção de mundo. A partir disso, proporemos o conceito de paz como plural, conforme a teoria de Wolfgang Dietrich sobre a Filosofia das Pazes Transracionais. O segundo capítulo está dedicado ao tema da cultura de paz. Nele, discorremos sobre a cultura de paz ser uma construção e, portanto, responsabilidade de todos nós e apresentamos três aspectos primordiais desta cultura: processo, marca do humano e abrangência. No último capítulo, a mediação de conflitos aparece como um método próprio e potente para promover transformações sociais, no campo dos estudos de paz, uma vez que pretende o desenlace das questões conflituosas. Apresentamos esta metodologia como uma forma de dar novos significados às relações e apoiamos este trabalho no papel do mediador, que seria o de fazer dar à luz a esses significados.

2. O QUE É PAZ, AFINAL? Como ponto de partida para esta jornada, convidamos o(a) leitor(a) a tomar para si alguns instantes, respirar fundo e pensar: o que é paz para mim? Este convite para a tomada de consciência das sensações, sentimentos, palavras e pensamentos que surgem ao contemplarmos o conceito de paz vem imbuído de uma intenção: a de refletirmos se há apenas uma concepção de paz no mundo. Até a segunda guerra mundial, a paz era tida como ausência de guerra. Johan Galtung foi um dos primeiros acadêmicos a problematizar essa noção. Pensar na paz como ausência de guerra é pensá-la pelo seu aspecto negativo, ou seja, pelo que ela não é. E isso, neste período histórico, já não se sustenta. Paz deve ser mais do que isso, afirma Galtung⁴ (2019). Isso porque os conceitos de violência estrutural e cultural apresentados por ele nos põem frente a frente com a noção de que, mesmo sem um estado de guerra declarada, há violência e, portanto, não haveria paz. Assim, Galtung nos provoca a pensar a paz como um valor em si, no seu sentido positivo, no que ela de fato é (DIETRICH, 2018). Wolfgang Dietrich, professor de estudos de paz e hoje detentor da Cátedra de ⁴ Johan Galtung foi um sociólogo norueguês e um dos principais fundadores da disciplina de estudos de paz e conflito. Além disso, fundou o Instituto de Pesquisa da Paz em Oslo (PRIO – Peace Research Institute of Oslo).

22


Estudos de Paz da Unesco, da Universidade de Innsbruck, na Áustria, sistematiza a ideia de que a paz, assim como a guerra, não está no mundo dada de antemão. Isso significa que a paz é construção humana e também que ela guarda relação com a nossa percepção de um estado de paz (DIETRICH, 2018). Além disso, ao perceber que a linguagem molda nossos pensamentos e nossa mente, passa-se a refletir sobre as consequências de se pensar paz no singular (a paz). No singular, ela parece ser única, estática, fixa, imutável – quase um ideal a ser atingido no futuro. E se permitíssemos, por um instante, que nossa linguagem se alargasse e acolhesse o conceito de pazes, no plural? (DIETRICH, 2012; 2016; 2018) Para apoiar esta discussão, voltemos um pouco no tempo e analisemos o preâmbulo da constituição da Unesco, datado de 1945: “Uma vez que as guerras começam na mente dos homens, é na mente dos homens⁵ que as defesas da paz devem ser construídas” (UNESCO, 2019). Esta declaração vem logo após a segunda guerra mundial, quando se tornou evidente a constatação de que antes mesmo de o primeiro campo de concentração se concretizar no mundo, ele existiu na mente de alguém. Ora, se atos violentos e de guerra são construídos na nossa mente, então assim também ocorre com as defesas para a paz. A consequência prática deste raciocínio é que temos tantos conceitos de paz no mundo quanto há mentes (DIETRICH, 2016). Inspirado por todas essas reflexões e depois de larga pesquisa sobre o que é paz, o professor Wolfgang Dietrich formulou uma teoria, chamada Filosofia das Muitas Pazes ou Filosofia das Pazes Transracionais, a qual sistematiza os valores que atribuímos ao conceito de paz em famílias de pazes, que correspondem a visões de mundo diversas e que, consequentemente, percebem o conflito e a paz com lentes diferentes. Estas famílias de pazes são: paz energética, vinculada ao valor da harmonia; paz moral, ligada à justiça; paz moderna, com uma concepção de segurança; paz pósmoderna, trazendo o valor da verdade; e paz transracional. Mencionarei aqui, numa apertada síntese, as concepções de paz e conflito para cada uma dessas famílias⁶. A visão energética entende a paz como relacional e está ligada ao equilíbrio na relação, ao equilíbrio das dualidades. Não há uma regra geral sobre o que é certo e o que é errado conforme esta visão de paz é tida como harmonia. A paz moral, por sua vez, vem como uma resposta à paz energética e está ligada às noções de justiça e injustiça. ⁵ Neste contexto, devemos entender que a palavra “homens” significa “pessoas”, ou seja, sem uma restrição de gênero. ⁶ Dois comentários são importantes aqui, para evitar confusões: a) estas perspectivas não estão isoladas em momentos históricos. Isso significa que, ainda hoje, todas estas visões de mundo operam. Como um exemplo, poderia citar o próprio sistema de justiça como arraigado na perspectiva moral e moderna, nas noções de “certo” e “errado” e de um terceiro (no caso, o juiz), sabedor da verdade, que julga e decide; b) todos nós, enquanto seres humanos, temos estas cinco perspectivas dentro de nós. O que acontece é que, em determinadas situações, uma se sobressairá em detrimento das outras.

23


Neste sistema moral, temos a ideia de um deus que vê tudo, sabe tudo, julga e pune. A paz é percebida como aquilo que é justo e o conflito, portanto, esbarra na noção de injustiça. A visão moderna de mundo, mecanicista e cartesiana, está ligada à família da paz moderna, cujo mote principal é a segurança. A paz pós-moderna, por sua vez, surge como uma resposta à paz moderna, no seguinte sentido: passa a duvidar de todas as certezas apresentadas pela visão moderna de mundo. É uma perspectiva que traz o questionamento de todas as verdades, mas não apresenta uma outra verdade para substituir as anteriores. A perspectiva transracional busca integrar todas as perspectivas (energética, moral, moderna e pós-moderna) e seus respectivos valores (harmonia, justiça, segurança e verdade). Nesse sentido, não descartamos por completo nossa racionalidade. Ao contrário: a transracionalidade legitima nosso potencial para sermos racionais. E, ao mesmo tempo, inclui a potencialidade espiritual de cada ser humano, resgatando uma perspectiva mais energética de compreensão de mundo (Dietrich, 2012). Neste ponto, convém retomar a pergunta inicial e convidar o(a) leitor(a) a novamente refletir sobre a seguinte questão: o que é paz para mim, neste momento? Cada um de nós provavelmente respondeu à pergunta o que é paz para si de maneira diversa – e esta é a riqueza e a potência dos estudos de paz. Esta pergunta é central para o que buscamos fazer neste primeiro capítulo, que foi trazer luz para a ideia – por vezes incômoda e provocativa - de pensar a paz como um conceito plural. Além disso, colocamos em evidência a noção de paz como algo dinâmico, percebido na relação com o outro, e não como algo externo e atingível apenas no futuro.

3. CULTURA DE PAZ(ES) No capítulo anterior, transitamos pelas nuances do conceito de paz. Cumpre agora pensarmos no que uma cultura de paz significa. Como vimos, até a segunda guerra mundial paz significava ausência de guerra. Uma vez que guerras são declaradas entre nações, a construção de uma cultura de paz era um assunto restrito à diplomatas e governantes. Quando a segunda guerra chega ao fim, vários esforços acadêmicos vêm no sentido de questionar a premissa de que paz é assunto que deva ficar exclusivamente nas mãos de diplomatas e governantes. E um dos grandes questionadores desta premissa foi Adam Curle. Ele começou a diferenciar os estudos de paz das relações internacionais, abrindo o campo para perceber a paz de forma relacional, ou seja, como equilíbrio entre os âmbitos intra e inter-relacional, como equilíbrio entre o público e o privado (KOPPENSTEINER, 2016). 24


Adam Curle entende que o trabalho de paz é muito importante para ser restrito a diplomatas, ou seja, o trabalho de paz se faz no dia a dia, com as pessoas ao nosso redor (KOPPENSTEINER, 2016). Nesta época, esta ideia é revolucionária, pois traz de volta ao chão da vida a possibilidade da construção de caminhos de paz. Com isso, também vem a responsabilidade de que nossa atuação no mundo reflete, inevitavelmente, na cultura de paz que queremos construir, ou seja, “o que fazemos no mundo não pode ser separado de quem somos” (KOPPENSTEINER, 2016). Nesse sentido, a cultura de paz se sustenta em três aspectos primordiais, que se entrelaçam: o processo, a marca do humano e a abrangência (BRASCHI, FAGANELLO, 2016). Quanto ao primeiro aspecto, o processo, podemos afirmar que cultura de paz não é uma situação dada ou algo a ser atingido no futuro. Trata-se de processo, de jornada, de caminho. É uma construção social. E essa percepção é importante, pois coloca a responsabilidade da ação de cada um de nós no dia a dia, em cada interação social que temos, como havíamos mencionado. Além disso, justamente por ser cultura, é algo tipicamente do humano – o segundo aspecto. Marca do humano significa que essa cultura é algo que se constrói e que se aprende. As guerras, como já vimos no primeiro capítulo, são construções humanas, não são algo dado pela natureza. Assim também acontece com a cultura de paz. Resgatando o preâmbulo da Constituição da UNESCO, é na mente de cada um de nós que podemos construir as defesas da paz. Quanto ao terceiro aspecto mencionado, a abrangência da cultura de paz, já vimos que ela em nada se restringe à atuação de governantes ou de diplomatas. A cultura de paz se dá em todos os âmbitos: - No intrapessoal: como eu me trato? Como eu me cuido? Estou atento(a) aos meus sentimentos e as minhas necessidades? Como vejo o mundo? - No interpessoal: como trato as pessoas ao meu redor? Como lido com os conflitos? Estou aberto(a) a escutar e a dialogar sobre os sentimentos e necessidades de outras pessoas? Como posso construir relacionamentos saudáveis? - No sistêmico: como minhas ações impactam a sociedade? Quais são as condições necessárias para construirmos a sociedade que queremos viver? Como lido com relações de poder? Como contribuo para a criação e o cultivo de sistemas sociais, políticos, econômicos e etc. voltados para uma cultura de paz? Se a paz é conceito percebido por cada pessoa e se cultura de paz tem todos esses elementos envolvidos, não parece haver uma fórmula mágica para a construção da cultura de paz(es). Não há uma prescrição, não há garantias ou certezas. Ao escolhermos trabalhar na construção de uma cultura de paz, estamos adentrando no universo do risco, 25


do desconhecido, do vulnerável, e devemos estar dispostos a arriscar. Finalizamos este capítulo com as palavras de John Paul Lederach⁷, que transparecem esta ideia com poética precisão. Diz ele que arriscar (...) é dar um passo para o desconhecido, sem nenhuma garantia de sucesso ou mesmo de segurança. O risco, por sua própria natureza, é misterioso. Ele é o mistério vivido, pois se aventura por terras não controladas ou mapeadas. As pessoas que vivem em cenários de conflito profundamente arraigado enfrentam uma ironia extraordinária. A violência é conhecida; a paz é um mistério. Por sua própria natureza, portanto, a construção da paz exige uma jornada guiada pela imaginação do risco (LEDERACH, 2011, p. 43)

4. MEDIAÇÃO DE CONFLITOS O caminho trilhado neste artigo foi pensado para dar a(o) leitor(a) a noção de que a mediação de conflitos é um procedimento extremamente conectado com a construção de uma cultura de paz(es), a partir de todo o potencial transformativo que este método revela. A proposta deste capítulo não é descrever o procedimento de mediação, nem discorrer sobre seus princípios ou ferramentas. Gostaríamos de oferecer uma imagem do processo de mediação, algo como uma metáfora sobre o que se almeja alcançar através da mediação. Jean-Marie Muller, filósofo francês especialista em não-violência, relembra a história de Alexandre, o Grande, que cortou o nó que prendia a carroça de Górgio ao Templo de Zeus, na esperança de obter o império da Ásia conforme prometido por um oráculo. O oráculo procurava alguém que desatasse o nó, não alguém que o cortasse (MULLER, 1995). O corte da corda simboliza exatamente o rompimento da relação, em contrapartida ao esperado desenlace, que estaria mais conectado à transformação do conflito. Através desta história, começa a se desenhar a transição do conflito como problema em direção ao conflito como oportunidade. Ao fim e ao cabo, é este o trabalho de um(a) mediador(a): auxiliar pessoas em conflito a desatarem seus nós, por si mesmas. Desatar o nó muitas vezes passa por dar novos significados à relação e aos papéis que exercemos. Jean-Marie Muller afirma que mediação é a arte da maiêutica, a arte de fazer dar à luz. Nesse sentido, os(as) mediadores(as) auxiliariam os mediandos a darem à luz a suas próprias verdades: suas emoções, necessidades, expectativas, frustrações, pedidos... Trata-se não apenas de contar os fatos, mas de como cada um experimentou, vivenciou ⁷ John Paul Lederach é pesquisador reconhecido na área de transformação de conflitos. É professor na Universidade Notre Dame, no Kroc Institute for International Peace Studies.

26


e interpretou estes fatos (MULLER, 1995). Trata-se de oferecer uma moldura para que as pessoas experimentem os significados que a paz tem para cada um(a), numa pintura que só elas mesmas poderão colorir. Trata-se de sustentar um espaço seguro para que as pessoas desatem seus nós e construam seus significados. Entretanto, este espaço não tem garantia de um resultado de antemão. É espaço construído a todo instante, por todos os envolvidos: mediandos(as) e mediadores(as). Por todo o exposto neste artigo, a mediação de conflitos pode ser entendida como uma metodologia capaz de fazer nascer, pelas narrativas dos(as) mediandos(as), a construção da paz possível para aquelas pessoas, naquela relação, naquele determinado espaço-tempo.

5. CONCLUSÃO Neste artigo, pretendemos ter oferecido novas perspectivas a respeito do conceito de paz, cultura de paz e mediação de conflitos. Trata-se, especialmente, de questionar os significados tradicionalmente percebidos e ampliar nossos horizontes conceituais e vivenciais. O caminho percorrido aqui foi o de apresentar o conceito de paz como plural e a experiência de paz como algo dinâmico, a partir da teoria da Filosofia das Pazes Transracionais. Entendendo a paz como conceito plural, passamos a analisar a cultura de paz. Vimos que é algo construído socialmente e que não é um resultado, se não apenas um processo, um caminho. Além disso, abrange todas as esferas da nossa vida e envolve risco, pois não é um caminho conhecido ou que tenha uma fórmula. Em consonância com esta perspectiva, apresentamos a mediação de conflitos como um espaço no qual novos significados para paz podem ser construídos pelas partes e sugerimos que o papel do mediador seria o de auxiliar as partes no desenlace de seus conflitos, por si mesmas, através de suas narrativas.

REFERÊNCIAS DIETRICH, Wolfgang. Interpretations of peace in history and culture. Trad.: Norbert Koppensteiner. Basingstoke: Palgrave Macmillan, 2012. 319 p. ______. “Módulos 1 e 2: Introdução à transformação elicitiva de conflitos e metodologias transformativas. Filosofia das pazes transracionais I: paz energética”. Pós-graduação em transformação de conflitos e estudos de paz. Instituto Paz e Mente. Florianópolis: 29.set.2016. Notas de aula. ______. “Módulos 1: Introdução à transformação elicitiva de conflitos e metodologias 27


transformativas. Filosofia das pazes transracionais”. Pós-graduação em transformação de conflitos e estudos de paz. Instituto Paz e Mente. Ibiraquera: 14.mai.2018. Notas de aula. ______. Uma breve introdução à pesquisa sobre paz-transracional e método de transformação de conflitos elicitivo. Trad.: Neuza L. R. Vollet. Disponível em <https:// www.uibk.ac.at/peacestudies/downloads/peacelibrary/dietrich_portuguese.pdf

>

Acesso em 10 de outubro de 2016 ______. Peace: remarks on the difficult history of a key cultural term. Disponível em: <https://www.uibk.ac.at/peacestudies/downloads/peacelibrary/peace.pdf> Acesso em 10 de outubro de 2016 BRASCHI, Olívia; FAGANELLO, Edite. “Módulo IV: Metodologias Transformativas I”. PósGraduação em Transformação de Conflitos e Estudos de Paz. Instituto Paz e Mente. Florianópolis: 28-30 out. 2016. Notas de aula. GALTUNG, Johan. Violence, peace and peace research. Disponível em: <http:// www2.kobe-u.ac.jp/~alexroni/IPD%202015%20readings/IPD%202015_7/Galtung_ Violence,%20Peace,%20and%20Peace%20Research.pdf> Acesso em: 01.set.2019. KOPPENSTEINER, Norbert. “Módulos 5 e 6: Filosofia das pazes transracionais III: paz pósmoderna e paz transracional”. Pós-graduação em transformação de conflitos e estudos de paz. Instituto Paz e Mente. Florianópolis: 01dez.2016. Notas de aula. LEDERACH, John Paul. A imaginação moral: arte e alma da construção da paz. Trad.: Marcos Fávero Florence de Barros. São Paulo: Palas Athena, 2011. 242 p. ______. Transformação de Conflitos. Trad: Tânia Van Acker. São Paulo: Palas Atena, 2012. 92 p. MULLER, Jean-Marie. O princípio de não-violência: percurso filosófico. Trad.: Maria Fernanda Oliveira. Lisboa: Instituto Piaget, 1995. 288 p. UNESCO. Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura. Constituição

(1945).

Disponível

em:

<http://portal.unesco.org/en/ev.php-URL_

ID=15244&URL_DO=DO_TOPIC&URL_SECTION=201.html> Acesso em: 01.09.2019 WOODHOUSE, Tom; LEDERACH, John Paul. Adam Curle: Radical Peacemaker. Stroud: Hawthorn Press, 2016. 264 p.

28


Dra. Lisiana Carraro¹ Nicolas Rafael Glaser² Graziela Marisa Prusch Gonçalves³ Sandra Viau⁴ Jaira Adriana Kochemborger Garske⁵ Cláudia Correia Coelho⁶ Jacqueline Xavier Volino⁷

A mediação e Processos Judiciais - Práticas Jurídicas Feevale ¹ Doutora em Diversidade Cultura e Inclusão Social pela Universidade Feevale. Mestre em Direitos Fundamentais pela Universidade Luterana do Brasil – ULBRA/Canoas. Graduada em Ciências Jurídicas e Sociais pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos.Professora universitária do Curso de Direito da Universidade Feevale e ULBRA/Gravataí-RS. ² Graduando em Direito pela Universidade Feevale. ³ Assistente Social, formada pela Universidade Luterana do Brasil, Pós Graduada em Gestão de Projetos Sociais pela Faculdade São Luis, Facilitadora de Círculos de Construção de Paz/Justiça Restaurativa, pelo Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, Conciliadora pelo Tribunal de Justiça Federal, Supervisora Acadêmica do Curso de Serviço Social da Universidade Paulista/SP. ⁴ Advogada. Mestre em Direitos Humanos certificada pela Universidade do Minho, Braga-PT, com reconhecimento de título pela Universidade Federal da Paraíba-UFPB. Pós-graduada em Direitos Humanos certificada pela Faculdade de Ciências Sociais de Florianópolis. Pós-graduada em Processo Civil certificada pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos - Unisinos. Graduada em Direito pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos – Unisinos. Mediadora de conflitos em formação pelo Domus – Centro de Terapia Individual, de Casal e de Família. Facilitadora de círculos de construção de paz – Justiça Restaurativa, certificada pela Ajuris - Escola Superior da Magistratura. ⁵ Assistente Social, Mediadora de Conflitos em formação pelo Domus – Centro de Terapia Individual, de Casal e de Família. Facilitadora de Círculos de Construção de Paz e Círculos Conflitivos/Justiça Restaurativa, certificada pela Ajuris – Escola Superior de Magistratura. Graduada em Serviço Social pela Universidade da Vale do Rio do Sinos-Unisinos. Graduada em Publicidade e Propaganda pela Universidade do vale do Rio dos Sinos - Unisinos. ⁶ Assistente Social, formada pela PUCRS, pós graduada em projetos sociais e culturais - políticas sociais e escola aberta, pela UFRGS e Facilitadora de Círculos de Construção de Paz e Círculos Conflitivos/Justiça Restaurativa, certificada pela Ajuris – Escola Superior de Magistratura. ⁷ Psicóloga, formada pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, pós graduada pela universidade Castelo Branco e Facilitadora de Círculos de Construção de Paz e Círculos Conflitivos/Justiça Restaurativa, certificada pela Ajuris – Escola Superior de Magistratura.

29


Os conflitos cercam a sociedade atual, seja em opiniões quanto às questões familiares, políticas ou sociais. A divergência de opiniões é algo que se dá constantemente visto que somos pessoas de diferentes constituições sociais e podemos afirmar que o que gera os conflitos sociais e jurídicos é quando as discussões não observam o respeito às divergências manifestadas entre as pessoas. Diante dos fatos ocorridos frente a conduta dos indivíduos quando das situações conflituosas, a grande demanda junto ao Poder Judiciário para atender as questões jurídicas advindas das relações pessoais desperta a necessidade de se pensar meios alternativos de jurisdição, como a mediação e a conciliação para atender um princípio processual que é o do acesso à justiça.⁸ A mediação, como forma de solução dos conflitos é tido como um aliada, sendo que com ela, se retoma práticas que historicamente eram utilizadas por meio das consultas aos sacerdotes, pessoas com mais idade, filósofos e estudiosos da época.⁹ Para tanto se faz necessário fazer uma abordagem das legislações e práticas extrajudiciais que somam para um objetivo comum de cultura de pacificação, movimento que segue no Judiciário e é acompanhado na formação curricular profissional nos cursos de graduação de Ciência Jurídicas e Sociais. O presente artigo utiliza como metodologia a revisão bibliográfica, estudo de caso por meio de diários de campo e observação participativa na atuação do Projeto de Justiça Comunitária junto ao bairro Canudos e Santo Afonso no município de Novo Hamburgo/ RS. Os meios alternativos de jurisdição se destacam no direito contemporâneo como uma forma de retomada de diálogo entre as partes envolvidas no conflito para além do viés processual. Nota- se, diante da realidade apresentada na comunidade a importância de estabelecer uma prática, um procedimento de enfrentamento para novas situações conflituosas. Historicamente a solução dos conflitos no âmbito jurídico se dava pela Lei das XII Tábuas, o conhecido “Olho por Olho Dente por Dente” onde as pessoas faziam justiça com as próprias mãos.¹⁰ Frente esta prática não atender as demandas que surgiam vem a necessidade de o Estado se organizar como prestador da jurisdição, cabendo a ele o “jus imperium” o que muitas vezes também não atende a satisfação das sentenças com as expectativas das partes. A mediação, diferente da conciliação passou a compor o histórico legislativo recentemente. Por meio do projeto de Lei de Mediação, proposto em 1998, pela Deputada Zulaiê Cobra Ribeiro, surgiram outros tantos que resultaram recentemente na alteração do Código de Processo Civil, Lei 13.140 de 26 de junho de 2015, onde regulou a mediação entre particulares e a autocomposição envolvendo a Fazenda. O papel deste “terceiro” entre as partes é de restabelecer o diálogo entre as partes, onde, por si, encontrarão a solução para o conflito vigente.¹¹ A mediação é proposta pela legislação processual civilista para atuar em casos em que houver vínculo anterior entre as partes e ainda auxiliando os interessados inclusive na administração em conjunto de 30


possíveis conflitos futuros, face sua estreita relação (art. 165, § 3o, do CPC). Assim, o objetivo da mediação, pode- se dizer, propõe que o acordo final trate o problema com uma proposta mutuamente aceitável, estruturada a manter a continuidade das relações das pessoas envolvidas no conflito. No âmbito familiar a mediação recebe grande destaque inicialmente nos Estados Unidos da América, na Europa e Inglaterra. As técnicas utilizadas para este método são técnicas de psicologia e do serviço social, identificando necessidades e interesses para produzir decisões consensuais com a ajuda do direito.¹² O presente método de solução apresenta algumas características, como a consensualidade, a confidencialidade, a autonomia da vontade das partes e a informalidade, claramente dispostos no CPC no artigo 166. A intenção clara deste método é o restabelecimento da comunicação entre os envolvidos, mas também de prevenir e tratar os conflitos como forma de inclusão social e objetivando a paz social.¹³ Para BUITONI (2014), “Há que se referir que a mediação é não-poder, uma vez que o mediador não dá sentença como o juiz ou o árbitro e não sugere soluções como o conciliador. Este terceiro desenvolve o papel que foge do sistema binário do conflito jurídico tradicional, as partes podem criadas soluções a partir de suas diferenças. Destaca-se que uma das bases da mediação é trabalhar a subjetividade do conflito, o não verbal, que se difere do conteúdo manifesto do conflito visa investigar os pressupostos implícitos do conflito.”¹⁴

O ordenamento jurídico brasileiro, tem, ao longo da sua história, cultivado uma cultura de adversidade como forma de resolução dos litígios. Tal cultura, acabava por se concretizar em desafios para os operadores do direito que, veem na mediação, uma alternativa a fim de propiciar uma melhor solução dos conflitos. Com o advento da Constituição de 1988, a Constituição Cidadã, que teve como foco principal a garantia de novos direitos, sem, entretanto, idealizar uma forma de concretizá-los, coube ao sistema judiciário servir de instrumento de buscar e efetivação destes direitos quando violados. O aumento de consumo, a expansão dos centros urbanos e o constante aumento na complexidade das relações entre as pessoas, somados a uma cultura do litígio e a introdução dos novos direitos, fez o judiciário se sobrecarregar com os conflitos surgidos entre as partes buscando uma resolução. Ao longo dos anos o poder judiciário vem buscando formas de aliviar os crescentes números de processos que se acumulam nas comarcas pelo Brasil a espera de uma decisão. O Concelho Nacional de Justiça (CNJ) teve a primeira iniciativa para propiciar um sistema de resolução de conflitos baseada na mediação e conciliação das partes.¹⁵ A resolução n° 125 de 29 de novembro de 2010, instituiu as bases para a implantação de uma política nacional de conciliação, que passou a ser conhecida como “sistema multiportas de acesso à justiça”. O sistema multiportas contava com dois 31


objetivos básicos, o primeiro, era estabelecer entre os operadores do direito um entendimento de que a prevenção dos litígios e a rápida resolução dos mesmos é mais importante do que recorrer ao judiciário. O segundo objetivo básico, era propiciar aos tribunais, espaços e ferramentas de mediação e conciliação, como núcleos de medicação ou centros de conciliação, com o intuito de resolver os conflitos antes de adentrar ao judiciário.¹⁶ Apesar da resolução do CNJ introduzir a mediação no sistema jurídico, somente com a implementação do Novo Código de Processo Civil (CPC/2015)(lei n° 13.105) em 16 de março de 2015 que o instituto da mediação judicial passou a ter força de lei e vigorar em todo o território nacional. Após a implementação da mediação judicial pelo CPC/2015, outro passo importante foi a regulamentação da mediação extrajudicial com o advento da lei 13.140 de 26 de junho de 2015. A presente lei, disciplina sobre a mediação e autocomposição de conflitos no âmbito privado e na administração pública, conceituando características importantes e necessárias para a correta aplicação do instituto. Deste modo, o estado deixa de incentivar o modelo litigioso de resolução de conflitos que, passava exclusivamente pelo sistema judiciário, passando a adotar métodos autocompositivos que buscam uma maior satisfação das partes e uma menor burocratização dos conflitos.¹⁷ Tendo em vista estarem as relações cada vez mais saturadas entre as pessoas, as famílias, as comunidades e aqueles que se relacionam de diversas formas, fez com que recaísse um especial olhar para as relações interpessoais com a intervenção de um terceiro, comum entre eles, para que administre conflitos que possam vir a se repetir, durante sua trajetória de vida e convívio. Pensar que, através de políticas públicas se possam fazer, por meio de projetos, a formação de mediadores, capacitando pessoas da comunidade para que consigam lidar com essas divergências, tem-se uma excelente alternativa. Por meio desta política pública podem se formar mediadores os professores da rede pública e particular, para atuarem em conflitos nas escolas, podem ser familiares, nos casos em que há idosos ou pensionistas na família onde surjam questões que versem sobre divergências quanto a administração das econômicas e pensão destes idosos, podem ser agentes comunitários que possam em seus grupos de atuação profissional, auxiliar sendo aquele “terceiro” imparcial que, em qualquer dos casos exemplificados, onde, com técnicas e ferramentas que lhe são passadas, em um ambiente extrajudicial, auxiliar a restabelecer o diálogo entre as partes e ainda auxiliá-las a chegar em uma solução. No Brasil, diversos projetos nesta seara buscam habilitar e fortalecer os membros da sociedade, cidadãos, para que possam cada vez mais serem protagonistas da resolução dos conflitos que surgem. Inegável que eles se dão, como já dito, contudo há a necessidade de maturidade dos indivíduos para compreender que muitos deles evoluem em razão da cadeia “ação-reação”, conhecida 32


como a “espiral dos conflitos”. Muitas vezes as pessoas que estão envolvidas no contexto contencioso não conseguem resolver as questões necessitando de um intermediário, o mediador, pessoa próxima e que tenha as ferramentas para desenvolver as técnicas de restabelecimento do diálogo, restabelecendo a harmonia e podendo auxiliar as partes trazendo um resultado comum aos envolvidos. Traz-se aqui uma salutar e exitosa aplicação de um projeto, que envolveu apoio do BID para que a Prefeitura Municipal de Novo Hamburgo/RS, em parceria com a Universidade Feevale, executasse um núcleo que trabalhasse mediação na comunidade fortalecendo-a, bem como também a rede de articulação do município. Este projeto se deu em parte do ano de 2018 e de 2019 denominado Núcleo de Justiça Comunitária e de Direitos Humanos que atuou mediando e capacitando pessoas de diferentes áreas a serem mediadores em situações que surgiriam em espaços diversos de seu convívio. Descreve-se a atuação do projeto e os impactos observados como forma de contribuição e melhoramento de ações como esta. O NJCDH – Núcleo de Justiça Comunitária e Direitos Humanos iniciou suas atividades em Junho de 2018, na sede da base Pronasci, bairro Santo Afonso, Novo Hamburgo, composta por uma equipe formada por uma coordenadora, uma auxiliar administrativo, uma psicóloga, uma advogada, duas assistentes sociais e estagiárias das respectivas áreas técnicas. Como primeira atividade, foi realizado o Mapeamento das Redes Sócio Assistenciais nos Bairros Santo Afonso e Canudos, área de abrangência atendida pelo projeto. Concomitantemente passou-se a integrar a Rede, participando das reuniões mensais a fim de apresentar a estas comunidades a proposta que logo iniciaria. Esta participação se fez importante para o reconhecimento do território. Algumas instituições mapeadas atendem especificamente os bairros Santo Afonso e Canudos, outras, todo o município com serviços que possuem maior amplitude dentro de suas especificidades. O Núcleo de Justiça participou ao longo destes onze meses de diversas atividades organizadas pela Rede, dentre estas, a participação em reuniões da rede socioassistencial Canudos e Santo Afonso. Também ocorreram participações em plenárias dos Conselhos Municipais de Direitos, como o Conselho da Criança e do Adolescente (CMDCA), Conselho da Mulher (COMDIM), Conselho do Idoso (CMDCI), Conselho da Pessoa com Deficiência (CMDCP) e Conselho de Assistência Social (COMAS). Além disso, fomos facilitadoras nas Conferências Livres e Conferências da Criança e do Adolescente e do Idoso, sendo que na Conferência da Criança e do Adolescente trabalhamos a temática do orçamento e financiamento de políticas para crianças e adolescentes (Eixo 3), em âmbito municipal e estadual. Na Conferência do Idoso houve atuação da equipe como facilitadores sobre o tema de Enfrentamento à Violação dos Direitos Humanos da Pessoa Idosa – Eixo 3. Foi verificado na execução da atividade “Mapeamento”, que as políticas públicas de Assistência 33


Social, Educação e Saúde são as mais presentes, com equipamentos locais que atendem a população nestes territórios. Também se entendeu que estar junto a esta Rede possibilitou conhecer a realidade do território e observar a consistência, organização e efetividade das políticas a partir da participação dos atores que a compõem, especialmente no território do bairro Santo Afonso, onde a troca de informações, tanto do NJCDH, como os demais integrantes somaram ao conjunto de ações deste território. Inclusive, nos encontros da Rede Santo Afonso foi possível identificar um cenário historicamente marcado pela violência, podendo-se constatar a importância e necessidade da efetivação e fortalecimento das políticas públicas aplicadas na comunidade. Acredita-se que essa identificação só foi possível pela forma consolidada pela qual essa Rede se apresenta, marcada pelo seu pioneirismo no município. Neste sentido, considera-se que houve demasiado empenho por parte da executora e equipe interdisciplinar do projeto, para que a experiência tenha sido executada com pleno êxito e colaborado para a construção de uma justiça pautada na cidadania, na paz e na solidariedade. Constatou-se que diante da experiência técnico-profissional interdisciplinar vivenciada nas comunidades dos bairros Santo Afonso e Canudos, todas as atividades desenvolvidas durante a execução deste Projeto, contribuiu positivamente na prevenção à violência, contemplando o principal objetivo do Programa do Banco Interamericano de Desenvolvimento - BID, onde o Núcleo de Justiça está inserido. Destaca-se aqui a execução de oficinas sobre a temática Direitos Humanos e Mediação de Conflitos, desenvolvidas para alunos e professores da rede de educação do município e servidores da segurança pública, bem como os atendimentos individualizados de orientação jurídico e psicossocial e sessões de mediação. Outros públicos beneficiados com as oficinas foram os usuários referenciados no CRAS Santo Afonso e Canudos, através das Unidades de Referência em Assistência Social – URAS, assim como o público acompanhado pelo Serviço de Proteção e Atendimento Integral à Família – PAIF. Quanto as oficinas realizadas, salienta-se a importância desses momentos para a reflexão sobre a realidade, como também o entendimento da necessidade de compor estratégias de enfrentamento numa perspectiva de transformação, além do exercício conjunto para pensar ações de prevenção à violência. A ferramenta da mediação como instrumento de resolução de conflitos foi levada, especialmente às escolas com o intuito de apresentar uma forma não violenta de resolver situações difíceis que acontecem diariamente no ambiente escolar, possibilitando a prática contínua da técnica, tanto pelo corpo discente, quanto pelo corpo docente na sua rotina escolar. Direitos Humanos, foi outro conteúdo apresentado durante as oficinas, de forma com que os participantes identificassem a importância destes nas suas vidas e 34


como se apresentam, desmistificando o conteúdo. As oficinas com a segurança pública viabilizaram a apresentação de novas formas de abordagem aos participantes, reforçando o entendimento de que se faz necessária a parceria entre o órgão que representa a segurança no território e a própria comunidade na construção de soluções de conflito e na prevenção à violência. Neste sentido, destaca-se a receptividade destes agentes em adquirir novos conhecimentos, bem como, se instrumentalizarem com ferramentas pacificadoras na resolução de conflitos, reafirmando a necessidade de novas técnicas e estabelecer um vínculo cada vez maior e mais próximo das comunidades em que atuam. Nos atendimentos individualizados percebeu-se que inúmeras vezes as relações, tanto familiares como comunitárias, podem passar por problemas e conflitos que desgastam todos os envolvidos. Os desentendimentos ocorrem, na maioria das vezes por divergência de opiniões e são potencializados por fatos que não foram bem elaborados em outras ocasiões. Quando as pessoas não têm êxito ao entender que existem dificuldades de comunicação e não conseguem lidar com as discordâncias, acabam não alcançando a compreensão da real situação e ficam impossibilitadas de aceitar o diferente, reagindo de forma agressiva diante às situações conflituosas. O propósito da mediação de conflitos é possibilitar a desconstrução de um cenário de brigas e discussões e criar uma nova relação, mais madura e equilibrada, onde os envolvidos sejam contemplados, oportunizando a solução de suas diferenças através do diálogo. Por meio das ações do Núcleo, também foi possível identificar famílias em situação de vulnerabilidade e risco social que ainda não estavam no Cadastro Único - CadÚnico e com isso cerceadas de direitos, dessa forma reforçamos a parceria com o CRAS Santo Afonso e Canudos, este último, inclusive com a realização de atendimentos individualizados in loco. Como bem observado por BUITON (2014) “a mediação valoriza o verbal e o não verbal, o sensorial, a postura corporal, o que acontece no nível energético das pessoas, e nada, em princípio, deve ser desprezado. Estamos acostumados a resolver tudo pelas palavras, sobretudo em direito, em que a lei positiva dá os parâmetros para a solução dos conflitos. O litígio resolvido racionalmente pode continuar existindo sensorialmente.”¹⁸ A equipe, após o período de atuação e o desenvolvimento de diversas atividades previstas no projeto, entendeu que o projeto NJCDH, foi reconhecido pela Rede de Atendimento como um suporte aos serviços já oferecidos no território, fortalecendo a interlocução e o fluxo de atendimento das entidades, tanto da assistência social, educação ou saúde. Neste sentido, com base na atuação e execução do projeto, bem como as práticas e vivências profissionais da equipe, dos envolvidos direta e indiretamente neste, acredita-se na idealização futura de projetos como esse, que contribuam para a 35


emancipação do sujeito no ambiente privado e comunitário. Pensar a implementação de um núcleo comunitário itinerante, se apresentando na forma de uma política pública nos municípios, disponibilizando mediadores capacitados para que sejam mais um braço na rede de atendimento municipal, em que se possa acolher a comunidade em seus territórios, auxiliando-as no restabelecimento do equilíbrio das relações entre as partes. Alguns podem dizer ser um sonho querer um mundo melhor, então pode-se afirmar não sermos sonhadores, mas sermos a mudança que desejamos querer para o mundo.¹⁹

⁸ BARROSO, Carlos Eduardo Ferraz Mattos. Processo civil: teoria geral do processo e processo de conhecimento. 16. ed. São Paulo: Saraiva. 2019. Disponível em E-Book. Acessado em 27 ago. 2019. ⁹ Silva, Luciana Aboim Machado Gonçalves (Org.). Mediação de conflitos. São Paulo: Atlas, 2013. Disponível em E-Book. Acessado em 27 ago. 2019. ¹⁰ RODRIGUES, Horácio Wanderlei, LAMY, Eduardo Avelar. Teoria Geral do Processo. 6. ed. São Paulo: Atlas, 2019. Disponível em E-Book. Acessado em 27 Ago. 2019. ¹¹ DELLORE, Luiz. Teoria geral do processo contemporâneo / Luiz Dellore et. al. – São Paulo : Atlas, 2016. São Paulo: Atlas, 2016. ¹² MORAIS, José Luis Bolzan de. Mediação e arbitragem alternativa à jurisdição! / José Luis Bolzan de Morais. Fabiana Marion Spengler. 2.ed. rev. e a ampl. – Porto Alegre : Livraria do Advogado Editora, 2008. ¹³ SALES, Lília Maia de Morais. Justiça e mediação de conflitos. Belo Horizonte: Del Rey, 2004. ¹⁴ BUITONI, Ademir. A FUNÇÃO DA INTUIÇÃO NA MEDIAÇÃO. Revista de Arbitragem e Mediação | vol. 19/2008 | p. 50 - 59 | Out - Dez / 2008 Doutrinas Essenciais Arbitragem e Mediação | vol. 6/2014 | p. 371 - 384 | Set / 2014. ¹⁵ ROCHA, Caio Vieira; SALOMÃO, Luis (coord.). Arbitragem e Mediação - A Reforma da Legislação Brasileira. 2. ed. São Paulo: Atlas, 2018. Disponível em E-Book. Acessado em: 27 Ago. 2019. ¹⁶ ROCHA, Caio Vieira; SALOMÃO, Luis (coord.). Arbitragem e Mediação - A Reforma da Legislação Brasileira. 2. ed. São Paulo: Atlas, 2018. Disponível em E-Book. Acessado em: 27 Ago. 2019. ¹⁷ COELHO, Renata Moritz Serpa. ATUALIDADES SOBRE A MEDIAÇÃO DE CONFLITOS NO BRASIL A PARTIR DE 2015. São Paulo: Revista de Processo. v. 2. pg. 453-463. Out. 2017. Disponível em: <https:// www.revistadostribunais.com.br/maf/app/widgetshomepage/resultList/document?&src=rl&srgu id=i0ad82d9b0000016ceae535a83353a917&docguid=I61ba7c00951611e79908010000000000&hitgui d=I61ba7c00951611e79908010000000000&spos=2&epos=2&td=594&context=20&crumb a c t i o n = a p p e n d & c r u m b label=Documento&isDocFG=false&isFromMultiSumm=true&startChunk=1&endChunk=1>. Acessado em: 01 Set. 2019. ¹⁸ BUITONI, Ademir. A FUNÇÃO DA INTUIÇÃO NA MEDIAÇÃO. Revista de Arbitragem e Mediação | vol. 19/2008 | p. 50 - 59 | Out - Dez / 2008 Doutrinas Essenciais Arbitragem e Mediação | vol. 6/2014 | p. 371 - 384 | Set / 2014. p.06 ¹⁹ GANDHI, Mahatma.

36


Experiência na prática de atendimentos do NJCDH.

37


O NJCDH – Núcleo de Justiça Comunitária e Direitos Humanos iniciou suas atividades em junho de 2018, na sede da base PRONASCI – Programa Nacional de Segurança Pública com Cidadania, bairro Santo Afonso, Novo Hamburgo, composta por uma equipe formada por uma coordenadora, uma auxiliar administrativa, uma psicóloga, uma advogada, duas assistentes sociais e estagiárias das respectivas áreas técnicas. Como primeira atividade, realizamos o Mapeamento das Redes Sócio Assistenciais nos Bairros Santo Afonso e Canudos, área de abrangência atendida pelo projeto. Concomitantemente, passamos a integrar a rede, participando das reuniões mensais a fim de apresentarmos a estas comunidades a proposta que logo iniciaria. Esta participação se fez importante para o reconhecimento do território. Algumas instituições mapeadas atendem especificamente os bairros Santo Afonso e Canudos, outras, todo o município com serviços que possuem maior amplitude dentro de suas especificidades. O Núcleo de Justiça participou, ao longo destes onze meses, de diversas atividades organizadas pela rede, dentre estas, a participação em reuniões da Rede Socioassistencial Canudos e Santo Afonso. Também ocorreram participações em plenárias dos Conselhos Municipais de Direitos, como o Conselho da Criança e do Adolescente (CMDCA), Conselho da Mulher (COMDIM), Conselho do Idoso (CMDCI), Conselho da Pessoa com Deficiência (CMDCP) e Conselho de Assistência Social (COMAS). Além disso, fomos facilitadoras nas Conferências Livres e Conferências da Criança e do Adolescente e do Idoso, sendo que na Conferência da Criança e do Adolescente trabalhamos a temática do orçamento e financiamento de políticas para crianças e adolescentes (eixo 3), em âmbito municipal e estadual. Na Conferência do Idoso, facilitamos sobre o tema de Enfrentamento à Violação dos Direitos Humanos da Pessoa Idosa (eixo 3). Verificamos na execução da atividade “Mapeamento”, que as políticas públicas de Assistência Social, Educação e Saúde são as mais presentes, com equipamentos locais que atendem a população nestes territórios. Também entendemos que estar junto a esta Rede nos possibilitou conhecer a realidade do território e observar a consistência, organização e efetividade das políticas a partir da participação dos atores que a compõem, especialmente no território do bairro Santo Afonso, onde a troca de informações, tanto do NJCDH, quanto dos demais integrantes, somaram ao conjunto de ações deste território. Inclusive, nos encontros da Rede Santo Afonso foi possível identificar um cenário historicamente marcado pela violência, podendo-se constatar a importância e necessidade da efetivação e fortalecimento das políticas públicas aplicadas na comunidade. Acreditamos que essa identificação só foi possível pela forma consolidada pela qual essa Rede se apresenta, marcada pelo seu pioneirismo no município. Neste sentido, consideramos que houve demasiado empenho por parte da 38


executora e equipe interdisciplinar do projeto para que a experiência tenha sido executada com pleno êxito e colaborado para a construção de uma justiça pautada na cidadania, na paz e na solidariedade. Constatamos que, diante da experiência técnico-profissional interdisciplinar vivenciada nas comunidades dos bairros Santo Afonso e Canudos, todas as atividades desenvolvidas durante a execução deste projeto contribuíram positivamente na prevenção à violência, contemplando o principal objetivo do programa do Banco Interamericano de Desenvolvimento – BID, onde o Núcleo de Justiça está inserido. Destacamos aqui a execução de oficinas sobre a temática Direitos Humanos e Mediação de Conflitos, desenvolvidas para alunos e professores da rede de educação do município e servidores da segurança pública, bem como os atendimentos individualizados de orientação jurídico e psicossocial e sessões de mediação. Outros públicos beneficiados com as oficinas foram os usuários referenciados no CRAS Santo Afonso e Canudos, através das Unidades de Referência em Assistência Social – URAS, assim como o público acompanhado pelo Serviço de Proteção e Atendimento Integral à Família – PAIF. Quanto as oficinas realizadas, salientamos a importância desses momentos para a reflexão sobre a realidade, assim como o entendimento da necessidade de compor estratégias de enfrentamento numa perspectiva de transformação e o exercício conjunto de pensar ações de prevenção à violência. A ferramenta de mediação como instrumento de resolução de conflitos foi levada, especialmente às escolas, com o intuito de apresentar uma forma não violenta de resolver situações difíceis que acontecem diariamente no ambiente escolar, possibilitando a prática contínua da técnica, tanto pelo corpo discente, quanto pelo corpo docente na sua rotina escolar. Os Direitos Humanos foi outro conteúdo apresentado durante as oficinas. O objetivo era que os participantes identificassem a importância destes nas suas vidas e como se apresentam, desmistificando o conteúdo. As oficinas sobre segurança pública viabilizaram a apresentação de novas formas de abordagem aos participantes, reforçando o entendimento de que se faz necessária a parceria entre o órgão que representa a segurança no território e a própria comunidade na construção de soluções de conflito e na prevenção à violência. Neste sentido, destacamos a receptividade destes agentes em adquirir novos conhecimentos, bem como se instrumentalizarem com ferramentas pacificadoras na resolução de conflitos, reafirmando a necessidade de novas técnicas e estabelecer um vínculo cada vez maior e mais próximo das comunidades em que atuam. Nos atendimentos individualizados percebemos que inúmeras vezes as relações, 39


tanto familiares como comunitárias, podem passar por problemas e conflitos que desgastam todos os envolvidos. Os desentendimentos ocorrem, na maioria das vezes, por divergência de opiniões e são potencializados por fatos que não foram bem elaborados em outras ocasiões. Quando as pessoas não têm êxito ao entender que existem dificuldades de comunicação e não conseguem lidar com as discordâncias, acabam não alcançando a compreensão da real situação e ficam impossibilitadas de aceitar o diferente, reagindo de forma agressiva diante às situações conflituosas. O propósito da mediação de conflitos é possibilitar a desconstrução de um cenário de brigas e discussões e criar uma nova relação, mais madura e equilibrada, onde os envolvidos sejam contemplados, oportunizando a solução de suas diferenças através do diálogo. Por meio das ações do Núcleo, também foi possível identificar famílias em situação de vulnerabilidade e risco social que ainda não estavam no Cadastro Único para Programas Sociais – CadÚnico, e, com isso cerceadas de direitos. Dessa forma, reforçamos a parceria com o CRAS Santo Afonso e Canudos, este último, inclusive, com a realização de atendimentos individualizados in loco. A equipe entende que o projeto NJCDH, foi reconhecido pela Rede de Atendimento como um suporte aos serviços já oferecidos no território, fortalecendo a interlocução e o fluxo de atendimento das entidades em assistência social, educação ou saúde. Neste sentido, acreditamos na idealização futura de projetos como esse, que contribuam para a emancipação do sujeito no ambiente privado e comunitário.

40


41


Atendimento

Atendimento

Atendimento

Atendimento

42


Formação Permanente

Oficina Servidores

Seminário Justiça Comunitária

Apresentação USF Vila Kroef

Oficina EJA 43


Oficinas Educação Direitos Humanos

Oficinas Educação Direitos Humanos

Oficinas Educação Direitos Humanos

Oficinas Educação Direitos Humanos 44


Conferência Livre - CMDCA

Conferência Livre - CMDCA

Apresentação Plenária COMAS 45


FORMAS DE ENTRADA 9 7 5 3 0 Procura Espontânea

Encaminhamento da Rede

MOTIVO DO ATENDIMENTO 4 3 2 1 0 Direito de Acesso a família direitos sociais

Direito Orientações Direito do previden- atreladas ao consumidor criário direito penal

46


ETNIA DO PÚBLICO ATENDIDO 28

30 23 15 8

5

0 Parda

Branca

FAIXA ETÁRIA DO PÚBLICO ATENDIDO 5 4 3 2 1 0 19 a 25 anos

26 a 35 anos

36 a 45 anos

46 a 60 anos

61 a 75 anos

76 ou mais

COMPOSIÇÃO FAMILIAR DO PÚBLICO ATENDIDO 8 8

7

6 4 1

2 0 1a2 membros

3a5 membros

6a8 membros

47


ESCOLARIDADE DO PÚBLICO ATENDIDO 6% 6%

Ensino Fundamental Incompleto Ensino Fundamental Completo Educação de Jovens e Adultos Ensino Superior Completo

13%

75%

TIPOS DE ATENDIMENTO

17%

48%

2%

10%

16%

Orientação Jurídica Orientação Psicológicas Orientação Social Orientação por Telefone Agendamento Mediações Atendimento em Grupo/Círculos de Construção de Paz

4% 2%

ATENDIMENTO COM ALGUM VÍNCULO COM A REDE

38% Sim Não 63%

48


SEGMENTO DA REDE EM QUE OS ATENDIDOS POSSUEM VÍNCULO

100%

Assistência Social

USUÁRIOS QUE RECEBEM BENEFÍCIO

38% Sim Não 63%

TIPO DE BENEFÍCIOS UTILIZADOS 5 4 3 2 1 0 Bolsa Família

Aposentadoria

Auxílio Doença

49


TELEFONES ÚTEIS

188

CENTRO DE VALORIZAÇÃO DA VIDA

190

BRIGADA MILITAR

50


51


52


Turn static files into dynamic content formats.

Create a flipbook
Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.