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9LYHPRV XP NDLUyV 2 WHPSR FURQROyJLFR D GH RXWXEUR GH GDWD HP TXH VH UHDOL]D R 6tQRGR GD $PD]{QLD WRUQD VH XP WHPSR NDLUROyJLFR SHOD LUUXSomR QHOH GD $PD]{QLD FRPR QRYR VXMHLWR KLVWyULFR ³(VWH QRYR VXMHLWR TXH QmR IRL FRQVLGHUDGR VXILFLHQWHPHQWH QR FRQWH[WR QDFLRQDO RX PXQGLDO VHTXHU QD YLGD GD ,JUHMD DJRUD FRQVWLWXL XP LQWHUORFXWRU SULYLOHJLDGR ´ ,/ Q

$ $PD]{QLD &DVD &RPXP SRYRV RULJLQiULRV TXLORPERODV DPD]{QLGDV VmR RV 6XMHLWRV +LVWyULFRV GHVWH 319 (6&87$5 2 ',9,12 48( (0$1$ '$ $0$=Ð1,$ ³7LUD DV VDQGiOLDV GRV WHXV SpV SRUTXH R OXJDU RQGH WX HVWiV p VROR VDJUDGR´ ([ 1R PHLR GD VDUoD DUGHQGR HP FKDPDV 0RLVpV HVFXWRX D YR] 'LYLQD TXH OKH UHYHODYD SLVDU HP VROR VDJUDGR $ $PD]{QLD ID] RXYLU VXD YR] H QRV UHYHOD VHX VROR VDJUDGR (VFXWDU p R ILR FRORULGR TXH ERUGD WHFH H FRVWXUD DV UHIOH[}HV EtEOLFDV WHROyJLFDV VRFLDLV DSUHVHQWDomR GR 6tQRGR H[SHULrQFLDV H WHVWHPXQKRV GD SUHVHQoD GD 3DODYUD GR &(%, QD $PD]{QLD TXH FRPS}HP HVWD SURGXomR XP FRQYLWH j FRQYHUVmR $V DXWRUDV H RV DXWRUHV TXH HPSUHVWDUDP VXD YR] j $PD]{QLD QRV FRQYLGDP D WLUDU DV VDQGiOLDV DR SLVDU QHVWH VROR VDJUDGR DR HVFXWDU R 'LYLQR TXH HPDQD H WUDQVERUGD HP SOHQLWXGH GH 9,'$ (VFXWDU H SHUFRUUHU R FDPLQKR GD FRQYHUVmR HYDQJpOLFD GD FRQYHUVmR HFROyJLFD GD FRQYHUVmR VLQRGDO %RD HVFXWD

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Escutar o Divino que emana da Amazônia Tea Frigerio (Org.)

São Leopoldo/RS

2019


© Centro de Estudos Bíblicos Rua João Batista de Freitas, 558 B. Scharlau – Caixa Postal 1051 93121-970 – São Leopoldo/RS Fone: (51) 3568-2560 vendas@cebi.org.br cebi.org.br

Série: A Palavra na Vida – Nº 382 – 2019 Título: Escutar o Divino que emana da Amazônia Organização: Tea Frigerio 5HYLVmR RUWRJUi¿FD 6PLUQD &DYDOKHLUR Capa: José Nunes Imagem da capa: Bruno Silva – (Facebook – Brunno Ferreira PJ) Imagem original disponível em: https://bit.ly/2nYLoXN Editoração: Rafael Tarcísio Forneck ISBN: 978-85-7733-323-3

0ൺඋංൺ 7ൾඈൽඈඅංඇൽൺ )උං඀ൾඋංඈ, conhecida como Tea, Missionária de Maria – Xaveriana. Italiana de origem, vive no Brasil desde 1974. Atua no CEBI (Centro Estudos Bíblicos) desde 1985. Nos anos de 1994 a 2002 foi diretora adjunta no conselho nacional. De 1999 a 2011 coordenou o Programa de formação. Atualmente, encontra-se no CEBI-PA. Duas marcas estão ligadas à irmã Tea: seu engajamento na leitura feminista da Bíblia com vista a novas relações de gênero e à superação de todas as formas de violência. Uma segunda marca é ser referência em estudo da Bíblia sob a ótica dos povos amazônicos, tendo participação ativa nas CEBs e no CEBI da região, bem como no Conselho Amazônico das Igrejas Cristãs (CAIC) e no Comitê Inter-religioso do Pará.


Sumário Lista de siglas e abreviaturas .............................................................................

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Apresentação Tea Frigerio ...........................................................................................................

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Amazônia – A página ainda a escrever do Gênesis Tea Frigerio ...........................................................................................................

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Um Sínodo especial para a Amazônia: novos caminhos para a Igreja e para uma Ecologia Integral I Irene Lopes ............................................................................................................

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O que é a Ecologia Integral de Francisco na Amazônia? Roberto Malvezzi (Gogó).......................................................................................

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Amazônia: cenário de novos caminhos para o mundo de hoje – Dar de nossa pobreza Francisco Xavier Martínez ....................................................................................

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Sínodo para a Amazônia: novos caminhos que nascem da conversão Luis Miguel Modino...............................................................................................

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Mulheres tecendo a vida na Amazônia Margarida Chaves dos Santos e Maria de Jesus Ramos Pereira..........................

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O olhar de uma mulher – Primeira bispa da Igreja Anglicana na Amazônia Marinez Bassotto ...................................................................................................

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E assim a leitura popular chegou a Roraima, no chão amazônico Ivone Salucci, Nilva Baraúna e Rui Baraúna........................................................

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6tQRGR QRYRV FDPLQKRV QRV GHVD¿DQGR Alzira Fritzen, Anne Bribosia, Diego Aguiar, Ieda Bezerra e Nilda Nair .............

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Lista de siglas e abreviaturas CF

Campanha da Fraternidade

DAp

Documento de Aparecida. Texto conclusivo da V Conferência Geral do Episcopado latino-americano e caribenho (2017)

DP

Documento de Puebla. III Conferência Geral do Episcopado latinoamericano (1979)

DPSA

Documento Preparatório do Sínodo da Amazônia

EC

Episcopalis Communio

EG

Evangelli Gaudium, Exortação Apostólica do papa Francisco

IL

Instrumentum Laboris

LS

Laudato Si', carta encíclica do papa Francisco sobre o cuidado da Casa Comum

REPAM Rede Eclesial Pan-amazônica

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Apresentação

Este SĂ­nodo se desenvolve ao redor da vida: a vida do territĂłrio amazĂ´nico e de VHXV SRYRV D YLGD GD ,JUHMD D YLGD GR SODQHWD &RPR UHĂ€HWHP DV FRQVXOWDV jV FRPXQLGDGHV DPD]{QLFDV D YLGD QD $PD]{QLD VH LGHQWLÂżFD HQWUH RXWUDV FRLVDV FRP D iJXD 2 ULR $PD]RQDV p FRPR XPD DUWpULD GR FRQWLQHQWH H GR PXQGR Ă€XL FRPR YHLDV GD Ă€RUD H GD IDXQD GR WHUULWyULR FRPR PDQDQFLDO GH VHXV SRYRV GH suas culturas e de suas expressĂľes espirituais. Como o Éden (Gn 2,6), a ĂĄgua ĂŠ nascente de vida, na qual tudo estĂĄ interligado (LS, n. 16, 91, 117, 138, 240). “O rio nĂŁo nos separa, mas nos une, ajuda-nos a conviver entre diferentes culturas e lĂ­nguasâ€?.

Palavras que encontramos no Instrumentum Laboris n. 8 do SĂ­nodo para AmazĂ´nia: AmazĂ´nia: novos caminhos para a Igreja e para uma ecologia integral, que acontecerĂĄ em Roma do dia 6 ao dia 26 de outubro de 2019. 3DODYUDV TXH QRV FRQYLGDP D VXELU QD FDQRD GR 6tQRGR H Ă€XLU MXQWRV DV ĂĄguas do rio Amazonas. “E bom que agora sejais vĂłs prĂłprios a autodefenir-vos e mostrar-nos a vossa identidade. Precisamos escutar-vosâ€?, assim se expressou papa Francisco em janeiro de 2018, em Porto Maldonado, Peru. O SĂ­nodo para AmazĂ´nia, nas palavras de papa Francisco, ĂŠ uma convocação a nos colocar em atitude de escuta. Escutar, abrir os ouvidos Ă MĂŁe terra, nossa Casa Comum, aos povos RULJLQiULRV TXLORPEROD DPD]{QLGD j GHVDÂżDGRUD UHDOLGDGH XUEDQD (VFXWDU Escutar as comunidades cristĂŁs disseminadas ao longo dos rios, embreQKDGDV QD Ă€RUHVWD YLYHQGR H VREUHYLYHQGR QDV SHULIHULDV XUEDQDV H TXH DQVHLD

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por “uma Igreja com rosto amazônico, em sua pluriformes matizes, procura ser uma igreja em saída (EG, n. 20-23), que deixa atrás de si uma tradição colonial monocultural, clericalista e impositiva, que sabe discernir a assumir VHP PHGR DV GLYHUVL¿FDGDV H[SUHVV}HV FXOWXUDLV GRV SRYRV” (I.L, n. 110). Escutar as grandes culturas originais depois de quase havê-las exterminadas e os milhões de africanos escravizados. Escutar e assumir o compromisso que se impõe de contribuir a se refazerem biologicamente, resgatar sua sabedoria ancestral de verem reconhecidas suas tradições religiosas e espirituais de comunicação com o Divino. Escutar H DFROKHU R GHVD¿R TXH D FRPXQKmR QD Ip FULVWm QmR WHP R FRORULGR da uniformidade e assim acolher a busca de sua própria síntese de forma a dar origem a um cristianismo original, sincrético, afro-indígena-latino-americano. Escutar... Escutar, verbo fundamental para nós do CEBI, que somos amantes da Palavra. Escutar é atitude do discípulo, da discípula (Is 50,4-5). Escutar... A Palavra se fez carne e colocou sua tenda na Amazônia (Jo 1,14). Escutar... &RP HVWD ¿QDOLGDGH RUJDQL]DPRV R PNV 382 para juntas/os como família CEBI nos colocar à escuta... das vozes que nos falam através de seus escritos. Voz que não pretende ser exaustiva, mas oferecer a possibilidade de individuar umas vozes, que são vida, que nos solicitam estar interligados, interligadas, que nos interpelam e nos convocam a trilhar com coragem e ousadia as picadas já abertas e as novas que o Sínodo nos apontará. Boa escuta! Tea Frigerio Missionária de Maria – Xaveriana CEBI-Pará

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Amazônia: a página ainda a escrever do Gênesis1

Tea Frigerio2

Escutar... As palavras da música Pérola azulada, de Zé Miguel, cantautor macapaense, me acompanham e inspiram enquanto penso como colocar em palavras PLQKDV UHÀH[}HV Já aprendi voar dentro de você Ancorar no espaço ao sentir cansaço Ossos da jornada. Já aprendi viver como vive nu Um cacique arara cultivando aurora Luz de sua tiara. Eu amo você terra minha amada Minha oca meu iglu, minha casa. Eu amo você pérola azulada conta No colar de Deus, pendurada. A bênção, minha mãe! Já aprendi nadar em seu mar azul 1 Artigo escrito para Caderno CEMLA, n. 6, p. 87-105. Artigo escrito para Caderno CEMLA, n. 6, p. 87-105, 2019 2 Missionária de Maria – Xaveriana.

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Adorar água, homem-peixe, água Fonte iluminada. Já aprendi a ser parte de você Respeitar a vida em sua barriga Quantos mais vão aprender. Terra, terra por mais distante o errante Navegante quem jamais te esqueceria.

A música convida a silenciar para ouvir, escutar as palavras de um ancião zapoteco (CIMI, 2002, p. 56): Dizem que se vai à cultura dos índios, dela ninguém se interessa. Encontra-se já em ruína, dizem. A língua do meu povo. A língua do meu povo a levará o diabo, pois agora falam tão só a língua dos vencedores. Ah! Cultura da minha raça, língua do meu povo! Quem te dá as costas não sabe A grandeza da herança materna. Ah! Cultura da minha raça, Língua do meu povo! Eu sei que desaparecerás o dia que desapareça o sol.

São palavras profundamente tristes e ao mesmo tempo cheias de utopia, GH VRQKR 3DODYUDV TXH QRV GHVD¿DP D HVFXWi ODV FRPR 7H[WR 6DJUDGR SDUD transformar a tristeza em esperança. A experiência milenar dos povos amazônicos representa um caminho possível de convivência e inter-relação na Casa Comum. Os elementos e princípios dessa convivência são apresentados na letra da música Cuidar da Terra do grupo Imbaúba, composição dos músicos amazonenses Celdo Braga e Candinho, assim nos fala:

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Nós somos parte da terra, a terra Ê parte de nós. Um Ê a extensão do outro, nós não vivemos a sós. O que falta para entender, coisa tão simples assim Quando eu cuido do que Ê meu, estou cuidando de mim Quando eu cuido do que Ê meu, estou cuidando de mim. E preservar Ê tão simples, não requer tanta ciência Basta respeito e cuidado, e um pouco de consciência. $t WXGR VH UHVROYH $t D YLGD ÀRUHVFH Cada rio que eu deixo limpo, a natureza agradece. Cada rio que eu deixo limpo, a natureza agradece. Com muita sabedoria diziam nossos avós: Se nós cuidarmos da terra, a terra cuida de nós.

&RQYLWH TXH QRV GHVDÂżD D SHUFHEHU D FHQWUDOLGDGH GR FXLGDGR GD oikos, da Casa Comum. Cuidar da Casa Comum implica em cuidar primeiramente uns dos outros, uma das outras numa atitude de respeito pela vida e pela dignidade de cada um/a e de todos/as simultaneamente. PrincĂ­pio ancestral dos povos amazĂ´nicos: “NĂłs somos parte da terra, a terra ĂŠ parte de nĂłs. Um ĂŠ a extensĂŁo do outro, nĂłs nĂŁo vivemos a sĂłsâ€?. A consciĂŞncia da convivĂŞncia na interdependĂŞncia ĂŠ o princĂ­pio do respeito e do cuidado: “se nĂłs cuidarmos da terra, a terra cuida de nĂłsâ€? (REPAM, 2018, p. 15). O cuidado da Casa Comum nos conduz a perceber a utopia da sociedade justa fraterna que conhecemos no Mito da Terra sem Males, presente na letra da mĂşsica Guarani: Oh, quero ouvir as serenatas, ver crescer as nossas matas E tocar um violĂŁo. Ah, meu amigo, vem cantar, pois o dia vai raiar, E morar nesta canção. Ah, que saudades do poeta, do artista, do profeta, Que o tempo eternizou. $K FRPR HX IDOHL GDV Ă€RUHV OLEHUGDGH EHLMD Ă€RUHV Que meu coração sonhou.

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Ah, ver crianças pelas praças, paz e pipa, pão de graça, Como o cheiro de hortelã. Ah, ågua pura ali na fonte e a gente olhar os montes, Sem ter medo do amanhã. Ah, o meu lindo continente que fez do sangue a semente Para ver o sol nascer. Ah, nossas matas tão bonitas, verdes mares, canto a vida Quando o dia amanhecer. Ah, quanta luta na fronteira, tanta dor na cordilheira Que o condor não voou. Ah, dança e terra guaranis, de uma raça tão feliz Que o homem dizimou. Ah, vou nos passos de um menino, No meu coração latino A esperança tem lugar. Ah, quando bate a saudade, abre as asas liberdade Que não paro de cantar. (CF 2006)

Os cantos, as poesias acordam a memĂłria para as palavras de Euclides da Cunha: “Realmente, a AmazĂ´nia ĂŠ a Ăşltima pĂĄgina, ainda a escrever-se, do GĂŞnesisâ€?. (OH ODQoD XP ÂżR HQWUH D $PD]{QLD H R *rQHVLV QRVVR 7H[WR 6DJUDGR e Texto Sagrado sĂŁo os cantos e as poesias. O Texto Sagrado cristĂŁo nasce de constantes releituras da experiĂŞncia fundante do povo de Israel: a libertação da opressĂŁo do Egito. Releituras provocadas pelo contexto histĂłrico, pela situação existencial que o povo vivia e que exigia uma constante atualização da 3DODYUD D ÂżP GH TXH IDODVVH SDUD RV QRYRV WHPSRV Cada povo tem seus Textos Sagrados, seja na tradição oral ou escrita. NĂłs, cristĂŁos, herdamos nosso Texto Sagrado do judaĂ­smo, quanto ao Primeiro 7HVWDPHQWR TXDQWR DR 6HJXQGR 7HVWDPHQWR QDVFHX GD WUDGLomR H UHĂ€H[mR teolĂłgica oral e depois escrita, das Primeiras Comunidades, sobre Jesus de NazarĂŠ. O texto bĂ­blico nos faz pensar num tecido, numa grande colcha de retalhos tecida a partir de um retalho fundamental. Texto originĂĄrio, texto fundante

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que tem um padrĂŁo inicial e com o tempo vai se alargando, enriquecendo. O padrĂŁo inicial inspira novos trançados, repetindo, inovando, introduzindo QRYRV GHVHQKRV VtPERORV $V WHFHOmV H RV WHFHO}HV XVDP QRYRV ÂżRV QRYDV cores. Ă€s vezes, prevalecem os tons escuros. Outras vezes, os tons luminosos, tons de desespero e de esperança. Tons que falam das experiĂŞncias da vida: dor e paixĂŁo, crueldade e doação, opressĂŁo e liberdade, egoĂ­smo e solidariedade, indiferença e luta, choro e alegria. Texto-tecido que articula a experiĂŞncia da Ip FRPR UHVSRVWD KXPDQD DRV GHVDÂżRV KLVWyULFRV RX j LQWHUSHODomR GLYLQD QD histĂłria. Texto fundante que reconhecemos ao acreditar em Deus libertador, VHPHQWH TXH YDL GHVDEURFKDU H Ă€RUHVFHU IUXWLÂżFDU QDV P~OWLSODV H[SHULrQFLDV do povo ao longo da histĂłria. Luz que ilumina histĂłrias antigas e as relĂŞ na YDULHGDGH GH QRPHV FRP TXH R SRYR YDL LGHQWLÂżFDU R 6HQKRU QD H[SHULrQFLD de Jesus de NazarĂŠ e das Comunidades. A rigor, esta experiĂŞncia nos convida a ir alĂŠm, pois o Deus do ĂŞxodo ĂŠ libertador porque ĂŠ o Deus da vida, o Deus presente na vida, ĂŠ Deus-Vida. $ 9LGD p R ÂżR FRQGXWRU 9ROWDQGR j LPDJHP GR WH[WR WHFLGR D YLGD p R ÂżR FRU que perpassa toda a trama do desenho, toda a colcha de retalhos. A cor-vida p R ÂżR FRQGXWRU GH WRGD UHOHLWXUD p R SDGUmR TXH FRPS}H R QRVVR 7H[WR Sagrado. Texto Sagrado que consideramos Palavra de Deus. Texto Sagrado que nĂŁo ĂŠ livro fechado, mas que se esparrama na histĂłria. Fonte que nos convida a escutar a Palavra de Deus no nosso cotidiano, na nossa histĂłria. Escuta que ilumina e alimenta criativamente nosso pensar, nosso agir, que nos torna capazes de reler e assim continuar a escrever o Texto Sagrado. A colcha de retalhos nĂŁo estĂĄ concluĂ­da, pois estamos ainda tecendo, estamos ainda escrevendo. $ 9LGD p R ÂżR TXH SHUSDVVD WRGR R 7H[WR 6DJUDGR $ 9LGD p R WUDQoDGR TXH FRPS}H D WUDPD GD $PD]{QLD $V Ă€RUHVWDV WURSLFDLV HVWmR HQWUH RV PDLV antigos ecossistemas terrestres. Isso vale por excelĂŞncia para a AmazĂ´nia onde

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a vida se manifesta nas centenas, senĂŁo milhares de inter-relaçþes entre as espĂŠFLHV QRV JUDWLÂżFDQGR FRP VXD H[SORVmR YLWDO $ $PD]{QLD WHP D VXD YRFDomR QLWLGDPHQWH Ă€RUHVWDO 3RU LVVR WHPRV TXH HQFDUi OD FRPR IRQWH LQHVJRWiYHO GH vida, luz, renascimento, regeneração e amor. Um milagre em cada amanhecer. O momento histĂłrico que estamos vivendo: o SĂ­nodo para AmazĂ´nia vai ser estrela guia que nos provoca a nos colocarmos a caminho como se colocaram a caminho os sĂĄbios e sĂĄbias que viram no cĂŠu a estrela, perceberam o novo despontando no antigo (Mt 2,2). $V UHĂ€H[}HV GR 6tQRGR (VSHFLDO VXSHUDP R kPELWR HVWULWDPHQWH HFOHVLDO DPDzĂ´nico, por serem relevantes para a Igreja universal e para o futuro de todo o SODQHWD 3DUWLPRV GH XP WHUULWyULR HVSHFtÂżFR GR TXDO VH TXHU ID]HU XPD SRQWH para outros biomas essenciais do nosso mundo: Bacia Fluvial do Congo, corUHGRU ELROyJLFR PHVRDPHULFDQR Ă€RUHVWDV WURSLFDLV GD ĂˆVLD 3DFtÂżFD H $TXtIHUR Guarani, entre outros. (DPSA, 2018, p. 6).

Silenciar... Silenciar: no silĂŞncio, criar as condiçþes para aguçar a vista e perceber a cor-vida que do Texto Sagrado nos acena e nos convida a sermos tecelĂŁs e tecelĂľes. No silĂŞncio, apurar os ouvidos para os sons que vĂŁo orientar nossas PmRV QR SDGUmR DQWLJR TXH VH WRUQD QRYR 1R VLOrQFLR SXULÂżFDU QRVVR VHQWLU H assim, perceber os cheiros que se desprendem e nos convidam a sair em busca, a nos tornar ousadas/os. Abrir nossas mentes, nosso coração para a Palavra de Deus que somos convidadas/os a escrever hoje a partir da AmazĂ´nia. • 6LOHQFLDU H VHQWLU D EULVD TXH VRSUD GD Ă€RUHVWD R IUHVFRU TXH YHP GDV iJXDV a pluriforme beleza que brota do ecossistema: Que mensagem nos ĂŠ anunciada e chega atĂŠ nĂłs na brisa, na ĂĄgua, na beleza do ecossistema? E Fritjof Capra, em seu livro O ponto de mutação DÂżUPD FRP SDODYUDV profĂŠticas:

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A nova visĂŁo da realidade [‌] baseia-se na consciĂŞncia do estado de interrelaçþes e interdependĂŞncia essencial de todos os fenĂ´menos – fĂ­sicos, biolĂłgicos, psicolĂłgicos, sociais e culturais. Esta nova visĂŁo transcende as atuais fronteiras disciplinares e conceituais. (CAPRA, 2000, p. 259).

O pensamento ecolĂłgico nos convida a pensar e viver a vida como rede de relaçþes, rede que forma o ecossistema. Pensamento ecolĂłgico que ĂŠ parte da elaboração de novos paradigmas de pensamento, entre eles a hermenĂŞutica EtEOLFD 2 SHQVDPHQWR HFROyJLFR WHP GHVDÂżDGR D UHOHU DV SULPHLUDV SiJLQDV GR nosso Texto Sagrado, GĂŞnesis 1-3. Cientes de que sĂŁo releituras de mitos da criação dos povos entre os quais vivia o povo de Israel. HĂĄ nele dois relatos da FULDomR KRMH Ki FRQVHQVR TXH VmR UHĂ€H[}HV GH Ip D SDUWLU GH FRQWH[WRV H[LVWHQciais de lugares e ĂŠpocas diferentes. NĂłs, cristĂŁos, reconhecemos, e disto precisamos pedir perdĂŁo, que esses textos, sobretudo Gn 1,26-28, foram lidos e interpretados na civilização ocidental para legitimar a construção de uma mitologia de poder, dominação e exploração indiscriminada sobre a natureza (Gn 1-3), embora escritos em ĂŠpocas diferentes (VI e X sĂŠculos), chegam a nĂłs em continuidade um do outro. Isto aponta a necessidade de uma leitura prĂłpria para cada texto, mas tambĂŠm perceber que um ĂŠ o complemento do outro, um esclarece o outro. GĂŞnesis 1,28 apresenta os verbos kabash (pisar na terra, subjugar), radah (dominar); por sua vez, GĂŞnesis 2,15 nos fala que o ser humano deve ‘abad (cultivar) e shamar (guardar o solo). Pisar na terra, cuidar, cultivar o solo para vida se multiplicar e ser fecunda ĂŠ a vocação humana inscrita nesses textos. Abraham Heschel escreve: NĂŁo se pode construir outra imagem do Todo-poderoso alĂŠm desta: nossa prĂłpria vida como representação de Sua vontade Homem e Mulher, criados Ă Sua imagem, devem imitar Sua misericĂłrdia. Ele delegou Ă humanidade o poder de agir em Seu lugar. Somos seus representantes quando aliviamos o sofrimento e trazemos alegria. (BRENNER, 2000, p. 36).

Parafraseando, ouso escrever:

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O Todo-amoroso nos criou Mulher e Homem, à Sua imagem e semelhança, para sermos no universo a continuação de Sua presença criadora e fecunda, para cultivar e cuidar da vida.

Em sua Carta aos Romanos, Paulo associa a humanidade ao gemido que sai da terra cativa. Anima-nos ao dizer que, ao nosso gemido, o Espírito vem em socorro, pois não sabemos escutar os gemidos que sobem do universo, não sabemos gemer (Rm 8,18-27). Palavras que nos convidam a nos deixar levar pela Divina Ruah, que une seu gemido ao nosso; acolher os novos paradigmas que estão sendo elaborados, e por eles iluminadas/os reler nosso Texto Sagrado. Deixar-nos conduzir pela Divina Ruah, que faz seu o nosso gemido e o da natureza, permitir que nos leve ao encontro das pessoas, cristãs e não cristãs que estão nesse caminho, entrelaçar nosso agir e responder às interpelações na história hoje. A Divina Ruah faça penetrar em nós o gemido da natureza que anseia por libertação e o universo libertado será a oikos, Casa Comum de todos os seres vivos e do próprio Deus. • Silenciar e ouvir o canto dos povos amazônicos, povos remanescentes, povos ressurgentes: O que estes povos estão cantando? Gerd Theissen, em seu livro La Religione dei primi cristiani – Uma teoria sul cristianismo delle origini, interroga-se a respeito da particularidade do sistema de sinais na religião. Responde dizendo que é uma combinação de três formas de expressão que se interligam: mito – rito – ethos. A partir da análise de cada elemento, desenvolve e aponta como o Movimento de Jesus se tornou Religião Cristã (THEISSEN, 2004, p. 16). Quero ressaltar isso porque não podemos ler a Bíblia a partir da Amazônia, olvidando esta realidade tão entranhada na vida dos povos indígenas. A Bíblia, nosso Texto Sagrado, está também entranhada de mitos, ritos, ethos. Os povos Tupi, em geral, e os Guarani, em particular, têm como elemento forte de sua teologia a superação do sofrimento pela conquista da “terra sem males”.

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Entre os vĂĄrios mitos, destaca-se este, dos Guaranis Apapocuva, recolhido por Curt Nimuendaju, no inĂ­cio do sĂŠculo XX. (CF, 2002).

No livro do Gênesis encontramos tambÊm relatos que nos falam de um jardim de harmonia plena, de åguas que tudo submergem e de um sinal no cÊu como memória de uma aliança entre Deus e os seres vivos que habitam a terra. Vamos lê-los em paralelo, percebendo os pontos de encontro e as peculiaridades de cada relato. TERRA SEM MALES

GÊNESIS 6.5 – 9,17

O grande Pai quer acabar com a terra por causa da maldade: Quando Nhanderuvuçu (nosso grande Pai) resolveu acabar com a terra, devido à maldade dos homens...

Deus tem uma atitude semelhante vendo a maldade humana: Iahweh viu que a maldade do homem era grande sobre a terra... farei desaparecer... Gn 6,5-7

AlguÊm merece ser avisado do que vai acontecer: Avisou antecipadamente Guiraypoty, o grande pajÊ, e mandou que dançasse. Este lhe obedeceu, passando toda noite em danças rituais. E quando Guiraypoty terminou de dançar, Nhanderuvuçu retirou um dos esteios que sustenta a terra, provocando um incêndio devastador.

NoĂŠ encontra graça e Deus lhe comunica seu propĂłsito: Mas NoĂŠ encontrou graça aos olhos de Iahweh... 'HXV GLVVH D 1Rp ÂłFKHJRX R ÂżP GH WRGD carne, eu o decidi, pois a terra estĂĄ cheia de violĂŞncia por causa do homem, e eu os farei desaparecer...â€? Gn 6,8-13

Guiraypoty se coloca a salvo com a família: Guiraypoty, para fugir do perigo, partiu com sua família, para o Leste, em direção ao mar. Tão råpida foi a fuga, que não teve tempo de plantar e nem de colher mandioca. Todos teriam morrido de fome, se não fosse seu grande poder que fez com que o alimento surgisse durante a viagem.

Da mesma forma, NoĂŠ coloca-se a salvo com sua famĂ­lia: 1Rp FRP VHXV ÂżOKRV VXD PXOKHU H DV PXOKHUHV GH VHXV ÂżOKRV HQWURX QD DUFD SDUD escapar das ĂĄguas do dilĂşvio. Passados sete dias chegaram as ĂĄguas do dilĂşvio sobre a terra... Quanto a ti, reĂşne todo tipo de alimento e armazena-o; isto servirĂĄ de alimento para ti e para eles. Gn 7,1-9; 6,21

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Guiraypoty constrói uma casa para resistir às åguas: Quando alcançaram o litoral, seu primeiro cuidado foi construir uma casa de tåbuas, para que quando viessem as åguas ela pudesse resistir. Terminada a construção, retomaram a dança e o canto.

Deus ordena a NoÊ de construir a arca, dando a maquete: Faze uma arca de madeira resinosa; tu a farås de caniços e a calafetarås com betume por dentro e por fora... Mas estabelecerei minha aliança contigo e entrarås na arca, WX H WHXV ¿OKRV WXD PXOKHU H DV PXOKHUHV GH WHXV ¿OKRV Gn 6,14-16

Hå uma grande inundação: O perigo tornava-se cada vez mais iminente, pois o mar, para apagar o grande incêndio, ia engolindo toda a terra. Quando mais subiam as åguas, mais Guiraypoty e sua família dançavam.

Conhecemos este acontecimento com o nome de dilĂşvio: Passados sete dias chegaram as ĂĄguas do dilĂşvio a terra... Nesse dia, jorraram todas as fontes do grande abismo e abriram-se as comportas do cĂŠu. A chuva caiu sobre a terra durante quarenta dias e quarenta noites. Gn 7,10-24

Guiraypoty tem medo, a mulher o incentiva Ă esperança: E para nĂŁo serem tragados pela ĂĄgua, subiram no telhado da casa. Guiraypoty chorou, pois teve medo, mas sua mulher lhe falou: – Se tens medo, meu pai, abre teus braços para que os pĂĄssaros que estĂŁo passando possam pousar. Se eles se sentarem em teu corpo, pede para nos levar para o alto. E mesmo em cima da casa, a mulher continuou batendo a taquara, ritmadamente, contra o esteio da casa, enquanto as ĂĄguas subiam. $ FDVD Ă€XWXD Guiraypoty entoou entĂŁo, o canto solene guarani. Quando iam ser tragados pela iJXD D FDVD VH PRYHX JLURX Ă€XWXRX subiu...

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$ DUFD ÀXWXD Durante quarenta dias houve o dilúvio sobre a terra; cresceram as åguas e ergueUDP D DUFD TXH ¿FRX HOHYDGD DFLPD GD terra. As åguas subiram muito sobre a terra H D DUFD ÀXWXDYD VREUH DV iJXDV Gn 7,17-24

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Nasce dessa experiência o mito da terra sem males: ...subiu até chegar à porta do céu, onde ¿FDUDP PRUDQGR Esse lugar para onde foram chama-se Yvy marã ei (a “terra sem males”). Aí as plantas nascem por si próprias, a mandioca já vem transformada em farinha e a caça chega morta aos pés dos caçadores. As pessoas nesse lugar não envelhecem e nem morrem e aí não há sofrimento.

Uma nova aliança é vivenciada no sinal do arco-íris: Deus lembrou-se então de Noé e de todas as feras e de todos os animais domésticos que estavam com ele na arca. Deus fez passar um vento sobre a terra e as águas baixaram... Então assim Deus falou a Noé: “Sai da arca... Enquanto durar a terra, semeadura e colheita, frio e calor, verão e inverno, dia e noite não hão de faltar... Eis o sinal de aliança que instituo entre mim e vós e todos os seres vivos que estão convosco, para todas as gerações futuras: porei o meu arco na nuvem e ele se tornará um sinal de aliança entre mim e a terra. Quando o arco estiver na nuvem, eu o verei e me lembrarei da aliança eterna que há entre Deus e os seres vivos com toda carne que existe sobre a terra”. Gn 8,1.15-16.22; 9,9-16

Cada relato tem sua própria peculiaridade, mas a fonte de onde jorraram é a mesma: encontrar respostas às perguntas dos grupos humanos sobre seu destino, seu sofrimento, a inimizade existente entre as pessoas, das pessoas com a Casa Comum e com o transcendente. As pessoas buscam o porquê de sua vida, das relações, do seu comportamento. Na busca, as respostas são similares, mas revelam sua percepção peculiar do universo, dos/das outros/outras, do transcendente. Percebemos, no relato indígena, acentuações ligadas à cosmovisão destes povos: a pessoa humana é integrada no universo. A música, o canto, a dança, expressam a relação entre a realidade humana e a transcendência. O Ser divino comunica seu desígnio de castigo, deixando a criatividade humana encontrar seu caminho, suas saídas. A única ordem que o grande pajé recebe é dançar. Dançar é encontrar seu centro vital, é abrir seu canal de

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comunhĂŁo com a mĂŁe terra, com a transcendĂŞncia. Abrir-se ao mistĂŠrio para se abrir Ă comunhĂŁo mĂ­stica com as forças vitais. A mĂşsica, a dança e o canto ritual permeiam todo o relato. As mĂŁos marcando o ritmo. Os pĂŠs batendo, acariciando, tocando, mantendo contato com as forças vitais da terra. A voz seduzindo, invocando, suplicando, pedindo, subindo, tecendo laços com as forças vitais do cĂŠu. Nhanderuvuçu, deslocando um esteio, provoca o fogo que origina a busca de salvação. No castigo, brota a solidariedade. HĂĄ solidariedade na fuga rumo ao mar, lĂĄ onde as ĂĄguas podem deter o incĂŞndio. Solidariedade no novo perigo que vem das ĂĄguas. Solidariedade na procura de alimento, solidariedade no medo. Solidariedade com a natureza, com os pĂĄssaros. No perigo, Guiraypoty tem medo e chora. O socorro vem da boca da mulher que profere palavras de consolo, conselho e resistĂŞncia. Convida o marido a abrir-se Ă natureza, abraçar a natureza, alargar os braços, oferecer abrigo aos pĂĄssaros. Estes, ajudados, poderiam ajudĂĄ-los, salvĂĄ-los. Ao levantarem voo, os levam a um lugar seguro, salvando-os. (QÂżP D FRPXQKmR GRV VHUHV YLYRV FRP RV VHUHV GD QDWXUH]D ID] Ă€XWXDU atĂŠ alcançar as portas do cĂŠu: plenitude de vida. No relato judeu-cristĂŁo, sobressaem outros elementos. O grande protagonista da narração ĂŠ Deus. Ele comunica seu desprazer, castigo, desĂ­gnio de eleição. Deus ordena ao seu escolhido NoĂŠ, considerado justo, o que fazer, como e quando realizar seu comando. Predomina a palavra, tudo acontece pela palavra de Deus. NoĂŠ e sua famĂ­lia obedecem Ă palavra-ação de Deus. A natureza obedece Ă vontade divina: abre as comportas do cĂŠu durante quaUHQWD GLDV H TXDUHQWD QRLWHV 1Rp VXD PXOKHU RV ÂżOKRV H VXDV PXOKHUHV HP nenhum momento falam, expressam sentimentos. Mesmo nos dois momentos em que NoĂŠ toma a iniciativa na ação, nĂŁo escutamos sua voz. O vento de Deus faz baixar as ĂĄguas, e NoĂŠ abre a janela, soltando a pomba. Quando Deus ordena, NoĂŠ e sua famĂ­lia saem da arca. Ao sair, constrĂłi um altar e oferece um sacrifĂ­cio, que propicia a divindade, movendo-a a realizar uma nova aliança.

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O altar e o sacrifĂ­cio sĂŁo mediaçþes entre a famĂ­lia de NoĂŠ e o Divino. A mĂşsica, o canto, a dança sĂŁo mediaçþes entre a famĂ­lia de Guiraypoty e o Divino. O arco no cĂŠu ĂŠ o sinal da aliança, aliança ecolĂłgica, dirĂ­amos nĂłs hoje, sinal da relação entre Deus, a terra e os seres vivos que nela habitam. No mito da Terra Sem Males, a fartura ĂŠ o sinal de aliança da nova relação entre o povo e o Divino. Percebemos aqui uma diferença fundamental nos dois relatos. No relato bĂ­blico, a aliança ĂŠ proclamada pela palavra seguida pelo sinal. No relato guarani, a fartura ĂŠ o sinal de que nĂŁo precisa de palavra, pois fala por si. Nos dois relatos, a catĂĄstrofe acontece pela maldade humana, atingindo todo o universo. HĂĄ solidariedade no castigo, hĂĄ solidariedade na utopia. A salvação da natureza e da humanidade ĂŠ mediada por uma famĂ­lia. A utopia expressa no mito da Terra Sem Males faz ecoar em nĂłs a utopia alimentada em IsaĂ­as e no livro do Apocalipse: “Vi entĂŁo um cĂŠu novo e uma terra nova... Ele enxugarĂĄ toda lĂĄgrima dos olhos, pois nunca mais haverĂĄ morte, nem luto e nem dor... HĂĄ ĂĄrvores da vida que IUXWLÂżFDP GR]H YH]HV GDQGR IUXWRV D FDGD PrV H VXDV IROKDV VHUYHP SDUD FXUDU as naçþes...â€? (Ap 21,1-22,5; Is 65,17-25).

Sintonia de palavras, sintonia na esperança de vida plena, pois este ĂŠ anseio da humanidade de todos os lugares e todos os tempos. • Silenciar e escutar a voz do povo amazĂ´nida, povo nascido de uma histĂłria sofrida, povo da terra, povo dos rios: O que o povo amazĂ´nida estĂĄ nos falando? Falar do povo amazĂ´nida3, que povo? Hoje, o povo amazĂ´nida ĂŠ a mistura de muitos grupos: indĂ­genas, afrodescendentes, nordestinos, agroextrativistas, 3 Para superar o termo “cabocloâ€? que tem colorido de menosprezo usa-se o termo “ama]{QLGD´ SHVVRD TXH YLYH QD $PD]{QLD IUXWR GD FRQĂ€XrQFLD GH VXMHLWRV VRFLDLV GLVWLQWRV DPHUtQGLRV GD YiU]HD H RX WHUUD ÂżUPH QHJURV QRUGHVWLQRV H HXURSHXV GH GLYHUVDV QDFLRnalidades que inauguram novas e singulares formas de organização social nos trĂłpicos amazĂ´nicos.

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ribeirinhos, posseiros, colonos e migrantes, populaçþes urbanas. A histĂłria da colonização, da ocupação da AmazĂ´nia, fala-nos disso. HistĂłria que deve ainda ser escrita, pois atĂŠ agora foi escrita a partir do colonizador. AmazĂ´nia: um lugar de descobertas e revelaçþes. A sabedoria milenar DFXPXODGD QD YLYrQFLD GRV SRYRV WUDGLFLRQDLV GD Ă€RUHVWD TXH VH PDQLIHVWD HP suas atitudes ĂŠticas de respeito e admiração pelos seres da natureza. A tradição cultural dos povos amazĂ´nicos nos ensina que a terra nĂŁo ĂŠ um bem de especulação que possa ser vendido ou trocado (Lv 25,23). Os povos indĂ­genas que lutam pela demarcação de seus territĂłrios, os remanescentes de quilombos que reivindicam o reconhecimento da posse de suas terras, os agroextrativistas que HVWDEHOHFHP QRUPDV GH XVR GRV UHFXUVRV QDWXUDLV UHDÂżUPDP TXH D WHUUD QmR p um bem negociĂĄvel, mas fonte de vida. Na AmĂŠrica Latina existe, hĂĄ diversos anos, o esforço de reler a HistĂłria do Povo de Israel nĂŁo a partir dos projetos hegemĂ´nicos, mas a partir dos projetos de resistĂŞncia. Reler a formação do povo a partir dos grupos que estĂŁo na origem do Povo de Israel e iluminar as origens, a formação do povo amazĂ´nico. Reler o exĂ­lio a partir dos grupos que nestas terras viveram e vivem seu exĂ­lio. ExĂ­lio, experimentado como sendo exilado na prĂłpria terra e como caminho e busca de vida. Reler o pĂłs-exĂ­lio a partir dos projetos de reconstrução, nĂŁo do projeto vencedor, emergente, mas a partir dos grupos que resistiram e resistem com projetos alternativos do bem viver. Projetos de preservação dos rios, da WHUUD H GD Ă€RUHVWD GR SRWHQFLDO JHQpWLFR 5HOHU -HVXV GH 1D]DUp VHX 0RYLmento, as Primeiras Comunidades, como proposta e experiĂŞncia de espaços alternativos onde era e ĂŠ possĂ­vel experimentar e propor novas relaçþes, num mundo, numa religiĂŁo Ă s vezes excludente. HĂĄ anos vem-se fazendo isso. Mas, quem sabe, precisamos assumir esta hermenĂŞutica bĂ­blica como comunidade cristĂŁ, na formação nos seminĂĄrios, HP ÂżGHOLGDGH D -HVXV GH 1D]DUp DR SRYR DPD]{QLGD • Silenciar e perceber os cheiros que emanam das cidades antigas e novas, das periferias: Estes cheiros, o que revelam?

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$ UHDOLGDGH DPD]{QLFD QmR p PDLV VRPHQWH Ă€RUHVWD ULR KRMH p FLGDGH p urbana. As cidades, com suas periferias sĂŁo para as comunidades cristĂŁs, hoje R JUDQGH GHVDÂżR 6HPSUH PDLV HVFXWDPRV YR]HV DÂżUPDUHP TXH R IXWXUR p GR mundo urbanizado. As CEBs nasceram e desabrocharam no mundo rural. Ainda estamos num processo doloroso de busca: Como enxertar esta experiĂŞncia na realidade urbana? A Teologia da Libertação, a Leitura Popular da BĂ­blia e outras leituras bĂ­blicas tiveram como um dos paradigmas para ler o Texto BĂ­blico o conĂ€LWR &DPSR [ &LGDGH $ H[HJHVH H D KHUPHQrXWLFD VHMD GR 3ULPHLUR FRPR GR 6HJXQGR 7HVWDPHQWR j OX] GHVWH FRQĂ€LWR WRUQDP D FLGDGH R OXJDU GD RSUHVVmR H[FOXVmR HQÂżP VtPEROR GH WXGR TXH p PDX 'LVVHPRV QR LQtFLR GHVWD UHĂ€H[mR TXH R FRQWH[WR p R SRQWR GH SDUWLGD GH WRGD UHĂ€H[mR EtEOLFD (QWmR RV FKHLURV TXH VREHP GD FLGDGH GHYHP FRQWH[tualizar nossa exegese, nossa hermenĂŞutica. Na cidade nĂŁo hĂĄ somente cheiros desagradĂĄveis, hĂĄ tambĂŠm perfumes. LĂĄ onde tem homens e mulheres vivendo tecendo relaçþes hĂĄ cheiros desagradĂĄveis e perfumes. Temos Ă frente um labor sem igual, pois se faz necessĂĄrio uma conversĂŁo profunda. Mais do que nunca, tomar consciĂŞncia de que nĂŁo podemos nos isolar, mas nos misturar, nos embebedarmos desses cheiros, atĂŠ que entranhados/as e com as vĂ­sceras se contorcendo sintamos o perfume, a brisa leve e farejando ir atrĂĄs, capengando, errando, dando voltas atĂŠ que encontrar a ruela certa. Nesta tarefa, talvez possamos ter como companheiro o apĂłstolo Paulo. Paulo libertado dos moralismos doutrinĂĄrios. Paulo cidadĂŁo e amante da cidade, pois fez das pĂłlis greco-romanas seu chĂŁo evangelizador. • Silenciar, tirar as sandĂĄlias, pois estamos pisando em terra sagrada, o chĂŁo da religiosidade popular, povo mĂ­stico que resistiu e resiste: Que fĂŠ este povo mĂ­stico nos transmite? “Tira as sandĂĄlias dos pĂŠs porque o lugar em que pisas ĂŠ terra santaâ€? (Ex 3,5). Tirar as sandĂĄlias dos pĂŠs, pois estamos pisando em lugar sagrado, a terra mĂ­stica de um povo mĂ­stico.

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É interessante notar alguns elementos: MoisĂŠs estĂĄ na labuta cotidiana, o pastoreio. Desconhece que o chĂŁo da tarefa cotidiana ĂŠ chĂŁo sagrado. EntĂŁo os sentidos se abrem como que misteriosamente. Os olhos veem. O ver suscita curiosidade, querer conhecer. O ver coloca em movimento seus pĂŠs. O corpo todo responde a estes estĂ­mulos. Sair do caminho traçado, se aproximar para ver de perto, para conhecer. E acontece o encontro: quem vĂŞ ĂŠ visto e principia um diĂĄlogo que dos olhos alcança todos os outros sentidos atĂŠ chegar ao conhecimento, ao coração. No encontro, no diĂĄlogo a revelação: a terra do cotidiano ĂŠ lugar sagrado. Sair do traçado, enveredar por caminhos desconhecidos, ir ao encontro, conhecer de perto, o corpo todo empenhado nesta busca. Quem sabe seja o caminho que necessitamos percorrer para chegar ao coração desta terra mĂ­stica, deste povo mĂ­stico. Na regiĂŁo amazĂ´nica onde ĂĄgua e cĂŠu se encontram; onde o verde da mata se confunde com o azul do cĂŠu; onde a vida ĂŠ marcada pelo ritmo da marĂŠ; onde, apesar da tecnologia, as pessoas ainda se integram com a natureza; onde a tradição indĂ­gena, negra, lusitana, nordestina deixaram uma marca profunda; onde os espĂ­ritos, os encantados, os encostados, o saci-pererĂŞ, a matintaperera e o boto sĂŁo realidades vivas para o povo. A relação mĂ­stica que o povo indĂ­gena tem com a natureza. A relação mĂ­stica que o ribeirinho tem com o rio, as marĂŠs... A relação mĂ­stica que o agricultor tem com o solo. A relação mĂ­stica que as mulheres tĂŞm com a vida. A relação mĂ­stica‌ Deixo vocĂŞs continuarem esta ladainha. E, aqui, sinto a proximidade que o povo tem com o transcendente, proximidade com o povo bĂ­blico. Agar chama Deus de El Roi – Vejo ainda aqui, depois daquele que me vĂŞ. Proclama seu credo no lugar aonde Deus veio ao VHX HQFRQWUR *Q 5DTXHO H /LD TXH ID]HP WHRORJLD QRV ÂżOKRV H QD ÂżOKD TXH GmR j OX] HVFUHYHQGR QHOHV QRPHV GH 'HXV GDU j OX] VH WRUQD H[SHriĂŞncia mĂ­stica (Gn 29,31-30,24). Lugares que recebem nomes, memĂłria da experiĂŞncia com o Divino. ExperiĂŞncias de um Deus que se manifesta sempre em novidade. Nomes que revelam Deus Rocha, Pastor, Pai, Libertador,

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Redentor, MĂŁe, Esposo, Parteira (Sl 92,16; Sl 23 Ex 15,21; Is 44,24; Is 49,14-16; Is 62,4-5; Jo 38,28-29). ExperiĂŞncia de Deus que brota do vivido. -HVXV GH 1D]DUp p ÂżOKR GHVWD H[SHULrQFLD PtVWLFD GHVWH SRYR PtVWLFR Ao se encarnar, ao colocar sua tenda em nosso meio nos convida a colocar-nos Ă escola do povo. Sair para ir ver, para conhecer de perto, para se aproximar e descobrir o sagrado no cotidiano, nos corpos, na natureza, nas expressĂľes religiosas do povo, nomear o Divino nas experiĂŞncias cotidianas. Quem sabe aqui na AmazĂ´nia consigamos realizar o impossĂ­vel: a convivĂŞncia da ritualidade RÂżFLDO FRP D ULWXDOLGDGH GLYHUVLÂżFDGD GR SRYR DPD]{QLGD • Silenciar, ver, escutar, descer, conhecer para escrever uma nova pĂĄgina... A AmazĂ´nia atravĂŠs do SĂ­nodo, mais do que nunca veio Ă ribalta: falada, conhecida, discutida... serĂĄ vivida? ContinuarĂĄ a ser mais mito que realidade? )D] VH QHFHVViULR EXVFDU R VLJQLÂżFDGR PtWLFR GDV iJXDV Ă€RUHVWDV herança da cultura regional e fonte de vida. Interpretar a natureza amazĂ´nica agradecendo sua generosa e exuberante beleza e todos os recursos que ela nos oferece: remĂŠdios, folhas, raĂ­zes, frutas, madeiras, alimentos, beleza a ser mantida, cultura a ser preservada. Estabelecer uma relação amorosa, afetiva que transmita nosso desejo que ela continue existindo atravĂŠs de açþes concretas no nosso cotidiano. Convocando outras pessoas para que se juntem a nĂłs na defesa da AmazĂ´nia. &RQIHVVDU QRVVD LJQRUkQFLD SHUDQWH HVWD H[SORVmR GH YLGD H D VXD FRPplexidade e enxergĂĄ-la como fonte de prazer, vida, felicidade, alegria. Ser humildes, pedir perdĂŁo por tanto desconhecimento, ingratidĂŁo e maldade, querer mudar. Adotar uma atitude de reconhecimento, gratidĂŁo e compromisso FRP D PDQXWHQomR FRP R ÂżR GD YLGD 3URWHVWDQGR FRQWUD RV YHUGHV TXH HVWmR sendo mortos, contra os criminosos que ateiam fogo na mata, poluem os rios e ODJRV H[WHUPLQDP D IDXQD H PDWDP VHXV OHJtWLPRV ÂżOKRV H ÂżOKDV A AmazĂ´nia nos fala de uma realidade que ultrapassa os limites do Brasil, do continente latino-americano. Sentirmos cidadĂŁos e cidadĂŁs

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SODQHWiULRV GHVDÂżDGRV D DSUHQGHU EXVFDU DOWHUQDWLYDV SDUD ID]HU UHQDVFHU constantemente a vida. Vida que renasce das cinzas que viram adubo fertilizando a terra. O ser humano e a terra sĂŁo casados. Formam um Ăşnico e indissolĂşvel casamento. Rompido esse casamento, as pessoas tombam num exĂ­lio feito de poeira amarga e estĂŠril. Que este nĂŁo seja o nosso futuro. A fantĂĄstica biodiversidade da AmazĂ´nia nos leva a transformar os “aisâ€? em “benditosâ€? com as palavras do Salmo: Bendize ao Senhor que faz brotar fontes de ĂĄguas, elas correm e dĂŁo de beber a todos os animais; regam montes e planĂ­cies, a terra se sacia dando fruto. Fazes brotar relva para o rebanho, plantas Ăşteis para o povo, que da terra tira seu pĂŁo. Nas ĂĄrvores frondosas os pĂĄssaros se aninham alegrando o universo com seu canto. Bendize ao Senhor que fez a lua para marcar o ritmo do tempo, o sol para iluminar e fecundar a terra. QuĂŁo bela ĂŠ tua obra, Senhor, a terra estĂĄ repleta da tua sabedoria. Louvem ao Senhor, sol e lua ĂĄguas, plantas, animais. Homens e mulheres louvem celebrem o Deus na vida. (Salmo 104,1.10-17; 149,3)

ReferĂŞncias ASSEMBLEIA ESPECIAL DO SĂ?NODO DOS BISPOS PARA A REGIĂƒO PANAMAZĂ”NICA. Documento preparatĂłrio do SĂ­nodo para AmazĂ´nia. AmazĂ´nia: novos caminhos para Igreja e para uma ecologia integral. 2018. DisponĂ­vel em: http://www.sinodoamazonico.va/content/sinodoamazonico/pt/documentos/documento-preparatorio.html. Acesso: 18 mar. 2019.

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BRENNER, Athalia. Gênesis, a partir de uma leitura de gênero. São Paulo: Paulinas, 2000. CAPRA, Fritjof. O ponto de mutação. A ciência, a sociedade e a cultura emergente. São Paulo: Cultrix, 2000. CIMI. A terra sem males em construção. IV ENCONTRO DE TEOLOGIA ÍNDIA. Belém: Mensageiro, 2002. CROATTO, Severino. A vida e a natureza em perspectiva bíblica. Apontamentos para uma leitura ecológica da Bíblia. Revista de interpretação Bíblica Latino-Americana, Petrópolis, n. 21, p. 42-49, 1995/2. MEIRELLES FILHO, João Carlos. O livro de ouro da Amazônia. Mitos e verdades sobre a região mais cobiçada do planeta. Rio de Janeiro: Ediouro, 2004. RAIMER, Aroldo. Toda a criação. Bíblia e ecologia. São Leopoldo: Oikos, 2006. THEISSEN, Gerd. La religione dei primi cristiani. Una teoria sul cristianismo delle origini. Torino, 2004.

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Obra: MĂŁe Caboca. Autor: Jonavegante (jonavegante33@gmail.com).


Um Sínodo especial para a Amazônia: novos caminhos para a Igreja e para uma Ecologia Integral Irmã Irene Lopes4

Em outubro de 2019 será realizado, em Roma, o Sínodo especial para a Amazônia. Convocado pelo papa Francisco, em outubro de 2017; o evento eclesial é uma resposta à realidade sofrida da Amazônia e de seus povos. De acordo com o próprio Francisco5, “o objetivo principal desta convocação é LGHQWL¿FDU QRYRV FDPLQKRV SDUD D HYDQJHOL]DomR GDTXHOD SRUomR GR 3RYR GH Deus, especialmente dos indígenas, frequentemente esquecidos e sem perspectivas de um futuro sereno, também por causa da crise da Floresta Amazônica, SXOPmR GH FDSLWDO LPSRUWkQFLD SDUD QRVVR SODQHWD´ O Sínodo “considera a Amazônia não apenas como um território sociocultural, mas como uma Igreja com rosto próprio, como novo sujeito eclesial” (SIMPÓSIO TEOLÓGICO DE ESTUDO EM PREPARAÇÃO AO SÍNODO PARA A AMAZÔNIA, 2019).

4 Assessora da Comissão Episcopal para Amazônia da CNBB, secretária executiva da REPAM-Brasil e membro do Conselho Pré-Sinodal. 5 Discurso do papa Francisco em 15 de outubro de 2017, no anúncio da convocação do Sínodo para a Amazônia.

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O que ĂŠ um SĂ­nodo De acordo com o dicionĂĄrio da lĂ­ngua portuguesa, ĂŠ uma “assembleia periĂłdica de bispos de todo o mundo que, presidida pelo papa, se reĂşne para tratar de assuntos ou problemas concernentes Ă Igreja universalâ€?. SĂ­nodo, por VXD YH] p XPD SDODYUD TXH WHP RULJHP QR JUHJR H VLJQLÂżFD Âłsynâ€?, juntos, e “hodosâ€?, estrada ou caminho. Desta forma, ĂŠ uma assembleia na qual se busFDP FDPLQKRV FROHWLYRV SDUD VH GHFLGLU VREUH DOJR HVSHFtÂżFR Segundo a professora e pesquisadora MĂĄrcia Oliveira (2018), uma das especialistas convidadas pelo Vaticano para contribuir na redação do Documento PreparatĂłrio e de Trabalho, na Igreja “essa modalidade de assembleia foi instituĂ­da pelo papa Paulo VI e foi assumida como uma prĂĄtica metodolĂłgica participativa da Igreja CatĂłlica desde setembro de 1965â€?. Para o papa Paulo VI, o SĂ­nodo representa, na prĂĄtica, “um estudo comum das condiçþes da Igreja e a solução concorde das questĂľes relativas Ă sua missĂŁo. NĂŁo ĂŠ um ConcĂ­lio, nĂŁo ĂŠ um Parlamento, mas um SĂ­nodo de particular naturezaâ€? FRQYRFDGR VHPSUH TXH KRXYHU DOJXPD QHFHVVLGDGH HVSHFtÂżFD HP GHWHUPLQDGD realidade e contexto histĂłrico.

Um SĂ­nodo especial para a AmazĂ´nia Convocado pelo papa Francisco, o SĂ­nodo terĂĄ como tema: “AmazĂ´nia: novos caminhos para a Igreja e por uma ecologia integralâ€?. Ele serĂĄ a oportunidade para se conhecer a riqueza do bioma, os saberes e a diversidade dos povos da AmazĂ´nia, especialmente dos indĂ­genas, suas lutas por uma ecologia integral, seus sonhos e esperanças. Pretende-se, tambĂŠm, que a assembleia dos bispos seja um momento para reconhecer as lutas e resistĂŞncias dos povos da AmazĂ´nia que enfrentam mais de quinhentos anos de colonização e de projetos desenvolvimentistas SDXWDGRV QD H[SORUDomR GHVPHGLGD H QD GHVWUXLomR GD Ă€RUHVWD H GRV UHFXUVRV naturais.

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Outra expectativa que se tem para o SĂ­nodo ĂŠ da convivĂŞncia com a AmazĂ´nia, com o modo de ser de seus povos, com seus recursos de uso coletivo compartilhados num modo de vida nĂŁo capitalista adotado e assimilado milenarmente E, ainda, que todo o processo sinodal contribua para defesa da AmazĂ´nia, seu bioma e seus povos ameaçados em seus territĂłrios, injustiçaGRV H[SXOVRV GH VXDV WHUUDV WRUWXUDGRV H DVVDVVLQDGRV QRV FRQĂ€LWRV DJUiULRV H socioambientais, humilhados pelos poderosos do agronegĂłcio e dos grandes projetos econĂ´micos desenvolvimentistas.

Realidade da Pan-AmazĂ´nia É preciso que se tenha consciĂŞncia de que o foco do SĂ­nodo ĂŠ toda a Pan-AmazĂ´nia e nĂŁo apenas a AmazĂ´nia brasileira. EstĂĄ em pauta no SĂ­nodo a realidade de todos os paĂ­ses que compĂľem a regiĂŁo: Brasil, BolĂ­via, Equador, Venezuela, ColĂ´mbia, Peru, Guiana, Guiana Francesa e Suriname. De acordo com o Documento PreparatĂłrio do SĂ­nodo, “a bacia amazĂ´nica representa para nosso planeta uma das maiores reservas de biodiversidade D GD Ă€RUD H IDXQD GR PXQGR GH iJXD GRFH GD iJXD GRFH QmR FRQJHODGD GH WRGR R SODQHWD H SRVVXL PDLV GH XP WHUoR GDV Ă€RUHVWDV SULPiULDV GR SODQHWD´ 'Dt D LPSRUWkQFLD FDSLWDO VLQDOL]DGD SHOR SDSD )UDQFLVFR GH cuidado que se precisa ter com esse territĂłrio. Os recentes movimentos migratĂłrios merecem destaque na regiĂŁo. “Atualmente, entre 70 e 80% da população da Pan-AmazĂ´nia vive nas cidades. Muitos deles estĂŁo sem documentos ou irregulares; sĂŁo refugiados, ribeirinhos, ou pertencem a outros grupos de pessoas vulnerĂĄveisâ€?. Estima-se que na Pan-AmazĂ´nia vivam trĂŞs milhĂľes de indĂ­genas, de 390 povos de nacionalidades diferentes. As populaçþes indĂ­genas estĂŁo no IRFR GD GLVFXVVmR GR 6tQRGR FRQYRFDGR SRU )UDQFLVFR TXH TXHU UHĂ€HWLU VREUH D realidade da Igreja e da ecologia integral, com olhar aprofundado na realidade dos mais vulnerĂĄveis. De acordo com o Papa em sua encĂ­clica Laudato Si', “nĂŁo podemos deixar de reconhecer que uma verdadeira abordagem ecolĂłgica

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sempre se torna uma abordagem social, que deve integrar a justiça nos debates sobre o meio ambiente, para ouvir tanto o clamor da terra como o clamor dos pobres” (Laudato Si', 49).

Em busca de novos caminhos No processo sinodal, foram realizadas escutas com as mais diferentes realidades da Pan-Amazônia. A proposta do papa Francisco era de que as pessoas da Amazônia contribuíssem com o Sínodo respondendo a um questionário, levantando questões que merecem ser discutidas pela assembleia em outubro de 2019. A presença das mulheres na Igreja, novos ministérios, evangelização das populações tradicionais, a realidade dos povos indígenas e comunidades tradicionais, inculturação, grandes projetos e os impactos na Amazônia e a Ecologia Integral foram destaque nas escutas. De acordo com relatório da Rede Eclesial Pan-Amazônica/REPAM, cerca de 170 atividades foram realizadas pela Rede em toda a Amazônia brasileira como forma de reunir os gritos e clamores dos povos dos territórios. Assembleias, fóruns temáticos e rodas de conversas ocorreram nos seis regionais da Igreja que estão presentes na Amazônia. Nas escutas, além de levantar dados relacionados à realidade dos povos, seus gritos e clamores, foram apontados caminhos e sonhos para a Igreja na Amazônia. Todas as contribuições recolhidas foram sistematizadas por uma equipe de especialistas e enviadas para a equipe do Sínodo, em Roma. A partir desse trabalho, peritos e especialistas, três deles brasileiros convocados pelo papa, redigiram o Instrumentum Laboris, o Documento de Trabalho do Sínodo, que foi aprovado pelo Conselho Pré-Sinodal no mês de junho e enviado aos bispos que participarão da assembleia em outubro. O material será a base toda a discussão do Sínodo para a Amazônia. O material foi construído a partir da metodologia do ver-julgar-agir, com base nas três conversões às quais Francisco nos convida: a conversão

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pastoral, a qual nos chama por meio da Exortação ApostĂłlica Evangelii Gaudium (ver escutar); a conversĂŁo ecolĂłgica, mediante a EncĂ­clica Laudato Si', que orienta os rumos do SĂ­nodo (julgar atuar); e a conversĂŁo Ă sinodalidade eclesial, advinda da Constituição ApostĂłlica Episcopalis Communio, que estrutura o caminhar juntos. 'LVFXVV}HV GHVDÂżRV SURSRVWDV H VRQKRV WrP VLGR WHFLGRV DR ORQJR GH todo esse processo sinodal e que vem proporcionando tamanha caminhada Ă Igreja, em especial Ă Igreja da AmazĂ´nia. Novos caminhos estĂŁo sendo gestados e esperanças de uma nova evangelização e de uma ecologia integral estĂŁo sendo pautados em toda a Pan-AmazĂ´nia. O movimento levantado pelo SĂ­nodo jĂĄ trouxe consigo centelhas de uma nova Igreja para a realidade amazĂ´nica. “Dadas as caracterĂ­sticas prĂłprias do territĂłrio amazĂ´nico, sugere-se considerar a necessidade de uma estrutura episcopal amazĂ´nica que leve adiante a aplicação do SĂ­nodoâ€? (IL 129 f 3). A realização do SĂ­nodo, em outubro de 2019, pode ser decisiva para a caminhada da Igreja naquele territĂłrio. Entretanto, a caminhada que se construir a partir das indicaçþes vindas pelo SĂ­nodo darĂĄ a dimensĂŁo, de fato, desse novo tempo que pode ser descortinado na Igreja da Pan-AmazĂ´nia.

ReferĂŞncias EDIÇÕES CNBB (Ed.). AmazĂ´nia: Novos Caminhos para a Igreja e para uma ecologia integral. Documento preparatĂłrio. 2018. DisponĂ­vel em: http://repam.org.br/?page_id=965. Acesso em: 22 set. 2019. OLIVEIRA, MĂĄrcia. SĂ­nodo Especial para AmazĂ´nia. 2018. DisponĂ­vel em: https://amazonasatual.com.br/sinodo-especial-para-amazonia/. Acesso em: 22 set. 2019. PAPA FRANCISCO. Carta encĂ­clica Laudato Si'. SĂŁo Paulo: Paulinas, 2015. SIMPĂ“SIO TEOLĂ“GICO DE ESTUDO EM PREPARAĂ‡ĂƒO AO SĂ?NODO PARA A AMAZĂ”NIA (Roma). Repam. 5HODWyULR ÂżQDO 2019. DisponĂ­vel em: http://repam.org. br/?p=2711. Acesso em: 22 set. 2019. http://aulete.com.br/s%C3%ADnodo Acesso em 22.set.2019.

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O que ĂŠ a Ecologia Integral de Francisco na AmazĂ´nia? Roberto Malvezzi (GogĂł)6

1 Como entender a Ecologia Integral? Dado que tudo estĂĄ intimamente relacionado e que os problemas atuais requerem um olhar que tenha em conta todos os aspectos da crise mundial, proponho TXH QRV GHWHQKDPRV DJRUD D UHĂ€HWLU VREUH RV GLIHUHQWHV HOHPHQWRV GXPD ecologia integral, que inclua claramente as dimensĂľes humanas e sociais. (Laudato Si' 137).

O pensamento complexo ĂŠ a proposta de um novo paradigma para a FLrQFLD 8P GH VHXV WHyULFRV (GJDU 0RULQ DÂżUPD TXH R SHQVDPHQWR FRPSOH[R QmR p D UHVSRVWD SDUD RV SUREOHPDV GD KXPDQLGDGH PDV XP GHVDÂżR 9DPRV H[HPSOLÂżFDU FRP D DWLYLGDGH PLQHUiULD QD $PD]{QLD 8PD PLQHradora olha para as reservas de determinado minĂŠrio, seu valor de mercado, quanto poderĂĄ ganhar operando aquele negĂłcio e prepara toda a sua logĂ­stica para viabilizar seu negĂłcio. Ela nĂŁo se importa com a biodiversidade a ser desmatada, com a ĂĄgua a ser consumida, com os rejeitos minerĂĄrios a longo prazo, se aquele territĂłrio tem pessoas, se elas serĂŁo removidas, se seu ambiente serĂĄ GHVWUXtGR VH DTXHOD FXOWXUD WHP LPSRUWkQFLD KLVWyULFD HQÂżP QmR VH LPSRUWD com o que o capital chama de “externalidadesâ€? ao processo econĂ´mico. 6 Atua na ComissĂŁo Pastoral da Terra (CPT) e no Conselho Pastoral dos Pescadores na regiĂŁo do SĂŁo Francisco. Articulista do Portal EcoDebate, e possui formação em FiloVRÂżD 7HRORJLD H (VWXGRV 6RFLDLV ( p PHPEUR GD HTXLSH GH DVVHVVRULD GD REPAM (Rede Eclesial Pan AmazĂ´nia).

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Um raciocínio complexo não segue a lógica da mineradora ou de outras atividades do capital. Todos esses aspectos considerados externalidades ao processo econômico, no pensamento complexo são considerados premissas de uma abordagem daquela atividade. Assim, a resposta a uma realidade complexa serå necessariamente complexa. Preservar o ambiente, as pessoas, suas culturas, vai implicar em gastos, em respeito, em valorar o que economicamente não Ê valoråvel, em outros valores e, pode ser, talvez seja melhor que aquela atividade econômica não seja realizada. Assim pensaram os noruegueses quando decidiram deixar seu bilionårio petróleo onde estå, isto Ê, debaixo das åguas do mar. Não Ê possível calcular economicamente a riqueza do bioma Amazônia, com suas åguas, sua biodiversidade, sua sociodiversidade, seu papel no ciclo GDV iJXDV SHORV ULRV YRDGRUHV QD ¿[DomR GR FDUERQR QR FLFOR GR FDUERQR na regulação do clima. Mesmo assim, hå quem calcule em cinco trilhþes de GyODUHV DV SHUGDV FRP VXD GHVWUXLomR 8P YDORU LQVLJQL¿FDQWH VH FRPSDUDGR DSHQDV FRP D LPSRUWkQFLD GR FLFOR GDV iJXDV SDUD WRGR WHUULWyULR EUDVLOHLUR parte do Uruguai, Argentina e Paraguai. Portanto, a Ecologia Integral quer abordar essa realidade a partir de sua complexidade, superando as dicotomias, os discursos economicistas simplórios, que enxergam apenas os interesses do mercado e excluem toda a gama de elementos que fazem parte daquele empreendimento.

2 As trĂŞs dimensĂľes da Ecologia Integral segundo Francisco: ecologia ambiental, econĂ´mica e social (Laudato Si' 138-155) A ecologia estuda as relaçþes entre os organismos vivos e o meio ambiente onde se desenvolvem. E isto exige sentar-se a pensar e discutir acerca das condiçþes de vida e de sobrevivĂŞncia duma sociedade, com a honestidade de pĂ´r em questĂŁo modelos de desenvolvimento, produção e consumo. Nunca ĂŠ demais insistir que tudo estĂĄ interligado. O tempo e o espaço nĂŁo sĂŁo independentes entre si; nem os prĂłprios ĂĄtomos ou as partĂ­culas subatĂ´micas se podem considerar separadamente. Assim como os vĂĄrios componentes do planeta – fĂ­sicos, quĂ­micos e biolĂłgicos – estĂŁo relacionados entre si, assim

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tambÊm as espÊcies vivas formam uma trama que nunca acabaremos de individuar e compreender. Boa parte da nossa informação genÊtica Ê partilhada com muitos seres vivos. Por isso, os conhecimentos fragmentårios e isolados podem WRUQDU VH XPD IRUPD GH LJQRUkQFLD TXDQGR UHVLVWHP D LQWHJUDU VH QXPD YLVmR mais ampla da realidade. (Laudato Si' 138).

Então, uma Ecologia Integral exige na pråtica cotidiana, o respeito pelas pessoas e por toda a comunidade de vida. O conhecimento fragmentado de uma mineradora, ou de um plantador de soja, ou criador de gado, por ser IUDJPHQWDGR H YROWDGR SDUD VL PHVPR SRGH VH WRUQDU XPD IRUPD GH LJQRUkQcia, porque resiste a integrar-se numa visão mais ampla da realidade. Essa Ê a razão subjacente à Ecologia Integral, isto Ê, ler o mundo na complexidade com que ele se apresenta. Se outras premissas entram no raciocínio, o resultado Ê diferente que aquele de um pensamento fragmentado. Quando estamos debatendo a Ecologia Integral em grupos onde os indígenas estão presentes, com a educação e o cuidado que lhes Ê peculiar, eles sempre replicam: isto Ê para vocês, que são brancos, nós jå vivemos assim.

3 Ecologia polĂ­tica Uma das lacunas da Laudato Si' ĂŠ a ecologia polĂ­tica. Ela compreende o conjunto da legislação de um paĂ­s ou mundial, as instituiçþes de Estado que cuidam da questĂŁo como o Ibama e o ICMBIO H DV ÂżJXUDV MXUtGLFDV TXH PDWHULDOL]DP RV GHVDÂżRV FRPR DV 5HVHUYDV ([WUDWLYLVWDV (RESEX), Parques, ĂˆUHDV GH 3UHVHUYDomR 3HUPDQHQWH 0RVDLFRV HWF DOpP GH iUHDV SUHVHUYDGDV pela prĂłpria tradição cultural como os territĂłrios indĂ­genas, quilombolas e de outras comunidades tradicionais. É necessĂĄrio lembrar que esse instrumental da luta ecolĂłgica estĂĄ sendo destruĂ­do no Brasil pelo atual governo. Em nome do destravamento econĂ´mico, o MinistĂŠrio do Meio Ambiente atua como inimigo do ambiente, favorecendo toda e qualquer atividade econĂ´mica, como se ĂĄgua, solos, biodiversidade, clima, etc., nĂŁo fossem riquezas fundamentais para a existĂŞncia de um paĂ­s e para todas as formas de vida na face da Terra.

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4 O modelo econĂ´mico PorĂŠm, o que decide a questĂŁo ambiental ĂŠ o modelo econĂ´mico. De nada valem as leis, a determinação dos povos, as necessidades humanas e da comunidade da vida, se o modelo econĂ´mico que se impĂľe pela força do dinheiro e da repressĂŁo ĂŠ predador e destrutivo. Essa ĂŠ a questĂŁo-chave na AmazĂ´nia. HĂĄ um modelo predador do agronegĂłcio e da mineração, outro da chamada “economia verdeâ€? ou “economia do carbonoâ€? e hĂĄ a economia tradicional dos povos. SĂł o Ăşltimo ĂŠ realmente sustentĂĄvel e preservador do ambiente, sem que os povos percam a autonomia de seus territĂłrios. Entretanto, ele tambĂŠm pode avançar, com novas formas organizativas, em rede, DOLPHQWDQGR VH H DOLPHQWDGR D YLGD GD Ă€RUHVWD $TXL p TXH VH GHFLGH UHDOPHQWH uma ecologia integral para a AmazĂ´nia. (QÂżP SDUD GHIHQGHU D (FRORJLD ,QWHJUDO QD $PD]{QLD DOpP GH QRV SRVLFLRQDUPRV ÂżUPHPHQWH VREUH WXGR R TXH IRL GLWR DFLPD p QHFHVViULR WHU partido e defender o modelo econĂ´mico adequado a esse ambiente. Esse ĂŠ um dos objetivos do papa Francisco quando insiste em ouvir os povos originĂĄrios e tradicionais da AmazĂ´nia, particularmente as populaçþes indĂ­genas. Eles nĂŁo sĂŁo o atraso, mas integrantes da solução.

ReferĂŞncias BOFF, Leonardo. 5HĂ€H[}HV GH XP YHOKR WHyORJR SHQVDGRU. PetrĂłpolis, RJ: Vozes, 2018. MORIN, Edgar. Introdução ao pensamento complexo. 5. ed. Porto Alegre: Sulina, 2001 . PAPA FRANCISCO. Laudato Si'. Sobre o cuidado da Casa Comum. DisponĂ­vel em: http:// w2.vatican.va/content/francesco/pt/encyclicals/documents/papa-francesco_20150524_ enciclica-laudato-si.html. Acesso em: 2 ago. 2019.

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AmazĂ´nia CenĂĄrio de novos caminhos para o mundo de hoje. Dar de nossa pobreza7

Francisco Xavier MartĂ­nez8

Introdução Historicamente, e atĂŠ hoje, a AmazĂ´nia tem sido parte do imaginĂĄrio sobre o qual inĂşmeros mitos foram construĂ­dos. E sempre, paralelamente, a regiĂŁo tem sido tambĂŠm foco de intensa exploração de seus recursos naturais desde o processo de colonização. $WXDOPHQWH R VLJQLÂżFDGR GD UHJLmR HVWi FRQGLFLRQDGR j FHQWUDOLGDGH que assumiu a sustentabilidade da Terra. A AmazĂ´nia ĂŠ compartilhada por oito paĂ­ses e um territĂłrio. Ocupa mais de 40% da superfĂ­cie da AmĂŠrica do Sul, com 7,5 milhĂľes de quilĂ´metros quadrados, habitados por 30 milhĂľes de pessoas. Sabemos que no imaginĂĄrio mundial ĂŠ recorrente pensar na AmazĂ´nia como sinĂ´nimo de Brasil. Essa associação tem origem, entre outros, no fato de que 68% da bacia amazĂ´nica e das Ă€RUHVWDV WURSLFDLV VH HQFRQWUDP QR WHUULWyULR EUDVLOHLUR 0DV QR 3HUX GRQR GH 13% da bacia, 74% do territĂłrio ĂŠ amazĂ´nico. Na BolĂ­via, conhecida mundo afora pelas belezas andinas, 75% das terras sĂŁo amazĂ´nicas, representando 11,2% da bacia. Metade do territĂłrio equatoriano ĂŠ amazĂ´nico. 7 Artigo escrito para Caderno CEMLA, n. 6, p. 107-124. Artigo escrito para Caderno CEMLA, n. 6, p. 87-105, 2019. 8 MissionĂĄrio xaveriano.

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Os debates sobre a AmazĂ´nia brasileira e a Pan-AmazĂ´nia se iniciam no sĂŠculo XX e ainda demonstram contemporaneidade nos congressos, artigos e livros acadĂŞmicos no Brasil, na AmĂŠrica do Sul e no mundo. Esta revalorização da regiĂŁo ĂŠ pautada, principalmente, pela sua posição geoestratĂŠgica e pelos recursos naturais estratĂŠgicos. Devido Ă enorme quantidade de recursos naturais estocados na regiĂŁo, bem como o papel importante que joga na regulação do clima do globo, a AmazĂ´nia tornou-se relevante para o mundo, e questiona-se qual serĂĄ seu futuro (ARAGĂ“N, 2016). Dum ponto de vista eclesial, a convocação do sĂ­nodo Pan-AmazĂ´nico a ser realizado em Roma no mĂŞs de outubro de 2019 pĂľe de manifesto como a AmazĂ´nia ĂŠ um tema presente na agenda da Igreja, porque na defesa da AmazĂ´nia estĂĄ a defesa do futuro do planeta Terra. No ambiente eclesial latino-americano, foi a ConferĂŞncia de Aparecida (2007) que lembrou ÂłD LPSRUWkQFLD GD $PD]{QLD SDUD WRGD D KXPDQLGDGH´ DAp 475), e papa Francisco o fez num contexto de Igreja universal na encĂ­clica “Laudato Si' sobre o cuidado da Casa Comumâ€? (LS 38). Animados pela ConferĂŞncia de Puebla, que jĂĄ celebramos os 40 anos de VXD UHDOL]DomR RQGH VH FRQYLGD D ÂłGDU GD QRVVD SREUH]D´ DÂżUPDQGR D FDSDcidade de nossas igrejas de “oferecer algo de original e importanteâ€? (DP 368), queremos apresentar a AmazĂ´nia como o lugar onde se percorrem “os novos caminhos para a Igrejaâ€? e o lugar onde se ensaia “a ecologia integralâ€? como novo paradigma civilizacional.

Originalidade amazĂ´nica: Diversidade sociocultural e riqueza ambiental A bacia amazĂ´nica representa para o nosso planeta uma das maiores UHVHUYDV GH ELRGLYHUVLGDGH D GD Ă€RUD H IDXQD GR PXQGR GH iJXD GRFH (20% da ĂĄgua doce nĂŁo congelada de todo o planeta), e possui mais de um terço

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GDV Ă€RUHVWDV SULPiULDV GR SODQHWD 7DPEpP D FDSWDomR GR FDUERQR SHOD $PD]{QLD p VLJQLÂżFDWLYD HPERUD RV RFHDQRV VHMDP RV PDLRUHV FDSWDGRUHV GH FDUERQR9. A denominada “Ilha Guianaâ€?, delimitada pelos rios Orinoco e Negro, SHOR $PD]RQDV H SHODV FRVWDV $WOkQWLFDV GD $PpULFD GR 6XO HQWUH DV GHVHPERcaduras do Orinoco e do Amazonas, faz tambĂŠm parte deste territĂłrio. Outros espaços compĂľem igualmente o territĂłrio porque se encontram, por causa de VXD SUR[LPLGDGH VRE D LQĂ€XrQFLD FOLPiWLFD H JHRJUiÂżFD GD $PD]{QLD Esses dados nĂŁo representam uma regiĂŁo homogĂŞnea. Observamos que a AmazĂ´nia abriga muitos tipos de “AmazĂ´niaâ€?. Nesse contexto, ĂŠ a ĂĄgua, atravĂŠs de suas cachoeiras, rios e lagos, que representa o elemento articulador e integrador, tendo como eixo principal o Amazonas, o rio mĂŁe e pai de todos. Num territĂłrio tĂŁo diverso, pode-se imaginar que os diferentes grupos humaQRV TXH R KDELWDP SUHFLVDYDP DGDSWDU VH jV GLVWLQWDV UHDOLGDGHV JHRJUiÂżFDV ecossistĂŞmicas e polĂ­ticas. 'DGDV DV SURSRUo}HV JHRJUiÂżFDV D $PD]{QLD p XPD UHJLmR QD TXDO vivem e convivem povos e culturas diversas, e com modos de vida diferentes. $ RFXSDomR GHPRJUiÂżFD GD $PD]{QLD DQWHFHGH R SURFHVVR FRORQL]DGRU SRU PLOrQLRV 5HFRQVWUXo}HV DWXDLV GH SHVTXLVDGRUHV H HVWXGLRVRV FRQÂżUPDP as crĂ´nicas de Carvajal e de outros exploradores que registraram a existĂŞncia de assentamentos permanentes, abrigando de alguns milhares a dezenas de milhares de indivĂ­duos, ou possivelmente mais. Descobertas recentes indicam uma gama de comunidades culturalmente diversas, de variados tamanhos, que viveram em toda a bacia, conectadas por redes de comĂŠrcio e guerras (SCHMINK, 2012, p. 75ss). Os portugueses avistaram a costa leste do continente sul-americano pela primeira vez em 22 de abril de 1500, porĂŠm, mais de um sĂŠculo se passou antes que eles estabelecessem assentamentos permanentes na AmazĂ´nia. No inĂ­cio do sĂŠculo XVII RV SRUWXJXHVHV LQÂżOWUDUDP VH JUDGXDOPHQWH UXPR DR RHVWH ao longo do rio Amazonas e seus principais tributĂĄrios, em busca de cravo, 9 Para ver mais dados sobre a rica biodiversidade amazĂ´nica, consulte Caderno CEMLA, n. 4, p. 47-49, 2017.

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salsaparrilha, cacau, canela, raĂ­zes aromĂĄticas e Ăłleos de palmĂĄceas. Outros itens bastante procurados incluĂ­am madeiras nobres, frutas e caças, principalmente o peixe-boi, tartarugas gigantes de rio e onças pintadas. As expediçþes dependiam de amerĂ­ndios como canoeiros, coletores e guias. IncursĂľes mata a dentro que, frequentemente, se constituĂ­am em expediçþes para a captura de Ă­ndios a serem escravizados, introduziram doenças europeias e a morte em interiores bem distantes. As congregaçþes religiosas10, e especialmente a recĂŠm-criada Companhia de Jesus, acabaram se tornando, por um lado, grandes defensores dos amerĂ­ndios, mas, por outro, instrumentos da completa transformação da vida material e cultural dos indĂ­genas. Os jesuĂ­tas, sob a liderança de AntĂ´nio Vieira, começaram a estabelecer missĂľes ao longo dos principais tributĂĄrios do Amazonas. Grupos amerĂ­ndios foram realocados em grandes assentamentos, os chamados aldeamentos. A polĂ­tica de acomodação, adotada pelos jesuĂ­tas em todas as suas missĂľes extraeuropeias, fez com que os missionĂĄrios tolerassem H DWp FRQÂżUPDVVHP WDPEpP QD YDVWLGmR GD $PD]{QLD FRQFHLWRV H FRVWXPHV RULJLQiULRV GDV FXOWXUDV LQGtJHQDV $VVLP D RUJDQL]DomR FOkQLFD D SURGXomR e a propriedade comunitĂĄria, o saber terapĂŞutico, certas danças rituais e a “lĂ­ngua geralâ€? – o nheenhgatu – tornaram-se traços tĂ­picos no quotidiano nas PLVV}HV LQDFLDQDV $ SUHVHUYDomR GHVVHV HOHPHQWRV HP FRQGLo}HV GH FRQÂżQDmento, resultou no surgimento de uma nova cultura que, aliĂĄs, encontra a sua continuidade no modo de viver dos ribeirinhos ou caboclos da AmazĂ´nia atual (ARENZ, 2012, p. 7ss). SĂŁo os estudos do antropĂłlogo Moreira Neto que analisam o aparecimento do tapuio como o Ă­ndio destribalizado, genĂŠrico, que surge dos aldeamentos missionĂĄrios, que mostram como a sociedade amazĂ´nica que

10 Para ver os principais grupos missionĂĄrios que atuaram na AmazĂ´nia brasileira, consulte HOORNAERT, Eduardo (org.). HistĂłria da igreja na AmazĂ´nia. PetrĂłpolis, RJ: Vozes, 1992, p. 63-106.

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HPHUJH GR 5HJLPH GDV 0LVV}HV ÂżFD FRQÂżJXUDGD WDQWR JHQpWLFD FRPR FXOWXralmente como uma sociedade essencialmente indĂ­gena (1988). Outro elemento importante na formação sociocultural amazĂ´nica ĂŠ a presença do negro escravo africano. Estudos recentes indicam que AmazĂ´nia IRL FRQHFWDGD jV UHGHV GR WUiÂżFR DWOkQWLFR DLQGD QR ÂżP GR VpFXOR XVII, com certa irregularidade nos desembarques atĂŠ a segunda metade do sĂŠculo XVIII, quando foi criada a Companhia Geral de ComĂŠrcio do GrĂŁo-ParĂĄ e MaranhĂŁo. A partir daĂ­, coube Ă nova empresa a tarefa de ampliar a oferta de escravos para os proprietĂĄrios da regiĂŁo, em especial porque a coroa portuguesa resolveu, no mesmo perĂ­odo, abolir a escravidĂŁo dos Ă­ndios (1755). Assim, no sĂŠculo XIX jĂĄ era bastante evidente a presença da população escrava africana nas vastidĂľes amazĂ´nicas. Nas cidades de Manaus e BelĂŠm os dados mostram que existia, ao lado de uma grande maioria de Ă­ndios vivendo nas cidades, dos escravos africanos e dos chamados brancos, uma grande variedade de tipos mestiços que tornava a AmazĂ´nia um laboratĂłrio extraordinĂĄrio para estudo dos efeitos das “misturas raciaisâ€? (MELO SAMPAIO, 2011, p. 13-42). Com o Ciclo da Borracha, inĂşmeras levas de imigrantes do Nordeste brasileiro, especialmente do CearĂĄ, chegaram atraĂ­das pelas riquezas do lĂĄtex e SHOD QHFHVVLGDGH GH PmR GH REUD PXGDQGR R SHUÂżO SRSXODFLRQDO GD $PD]{QLD Em 1870, quando a borracha começa a dar sinais de valorização, a AmazĂ´nia HUD TXDVH XP GHVHUWR GHPRJUiÂżFR FRP VXDV SRSXODo}HV WUDGLFLRQDLV GL]LPDdas por sĂŠculos de escravização, prĂĄticas predatĂłrias e pela polĂ­tica repressiva do ImpĂŠrio no combate Ă Cabanagem. Apesar da terrĂ­vel exploração humana que supunha o trabalho da extração do lĂĄtex, no sistema do aviamento, os nordestinos mostraram sua tenacidade e capacidade de sobreviver, mesclaram-se com as populaçþes tradicionais e enriqueceram a cultura regional, interpretando o grande vale atravĂŠs de seu colorido folclore, da mĂşsica, da culinĂĄria e da literatura de cordel (SOUZA, M., 2015, p. 96). Outras correntes migratĂłrias foram os judeus sefaraditas marroquinos, sĂ­rio-libaneses, norte-americanos, europeus, japoneses (ibid., p. 97ss).

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Com os projetos econĂ´micos do regime militar de 1964, e a abertura de faixas de terra para a colonização, levas de trabalhadores sem-terra, vindos do ParanĂĄ e Rio Grande do Sul, entraram na AmazĂ´nia, trazendo seus costumes e tradiçþes. O modelo de desenvolvimento regional baseado em grandes projetos, imposto por um regime autoritĂĄrio, acabou por trazer graves consequĂŞncias para a AmazĂ´nia e seu povo. Por outro lado, as cidades da AmazĂ´nia cresceram muito rapidamente, e integraram muitos migrantes, forçosamente deslocados de suas terras, empurUDGRV DWp DV SHULIHULDV GRV JUDQGHV FHQWURV XUEDQRV TXH DYDQoDP Ă€RUHVWD adentro (BECKER, 2013, p. 46ss). Em sua maioria, sĂŁo povos indĂ­genas, ribeirinhos e afrodescendentes expulsos pela mineração ilegal e legal ou pela indĂşstria de extração petroleira. Os movimentos migratĂłrios mais recentes na regiĂŁo amazĂ´nica estĂŁo caracterizados, sobretudo, pela mobilização de indĂ­genas de seus territĂłrios originĂĄrios para as cidades. O crescimento desmedido das atividades agropecuĂĄrias, extrativistas e PDGHLUHLUDV GD $PD]{QLD QmR Vy GDQLÂżFRX D ULTXH]D HFROyJLFD GD UHJLmR GH VXDV Ă€RUHVWDV H GH VXDV iJXDV PDV WDPEpP HPSREUHFHX VXD ULTXH]D VRFLDO H cultural, forçando um desenvolvimento urbano nĂŁo “integralâ€? nem “inclusivoâ€? da bacia AmazĂ´nica.

'HVDÂżRV FRQWHPSRUkQHRV Nos nove paĂ­ses que compĂľem a Pan-AmazĂ´nia, registra-se uma presença aproximada de trĂŞs milhĂľes de indĂ­genas, constituĂ­da por cerca de 390 povos e nacionalidades diferentes. Vivem nesse territĂłrio tambĂŠm, segundo dados de instituiçþes especializadas da Igreja e outras, ente 110 e 130 “povos livresâ€?, ou “Povos IndĂ­genas em Situação de Isolamento VoluntĂĄrioâ€?. AlĂŠm disso, nos Ăşltimos tempos, surge uma nova situação, constituĂ­da pelos indĂ­genas que vivem no tecido urbano; alguns reconhecidos como tais, e outros, que desaparecem nesse contexto e, por isso, sĂŁo chamados “invisĂ­veisâ€?. Cada

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um desses povos representa uma identidade cultural particular, uma riqueza KLVWyULFD HVSHFtÂżFD H XP PRGR SUySULR GH YHU R PXQGR H GH UHODFLRQDU VH FRP HVWH D SDUWLU GH VXD FRVPRYLVmR H WHUULWRULDOLGDGH HVSHFtÂżFD Papa Francisco, em discurso aos povos indĂ­genas da Pan-AmazĂ´nia, no 3HUX DÂżUPDYD Âł3URYDYHOPHQWH QXQFD RV SRYRV RULJLQiULRV DPD]{QLFRV HVWLveram tĂŁo ameaçados nos seus territĂłrios como o estĂŁo agoraâ€?. Ele constatava como AmazĂ´nia ĂŠ uma terra disputada em vĂĄrias frentes, e concluĂ­a: “devemos romper com o paradigma histĂłrico que considera a AmazĂ´nia como uma despensa inesgotĂĄvel dos Estados, sem ter em conta os seus habitantesâ€? (2018). O defensor dos direitos humanos e Procurador Regional da RepĂşblica do Brasil, FelĂ­cio Pontes, analisa o modelo de desenvolvimento predominante KRMH QD $PD]{QLD DR TXDO GHQRPLQD GH ÂłSUHGDWyULR´ $ÂżUPD TXH HVVH PRGHOR se “implantou na AmazĂ´nia com cinco atividades bĂĄsicas: madeira, pecuĂĄria, mineração, monocultura e energia hidrĂĄulicaâ€?. Nesses Ăşltimos 40 anos quase 20% da AmazĂ´nia foram destruĂ­dos. Em 1960, 35% da população da Ama]{QLD HUD XUEDQD KRMH DSyV D PDVVLÂżFDomR GHVVHV SURMHWRV HVWDPRV EHLUDQGR GHVVD SRSXODomR QDV FLGDGHV ( LVVR QmR VLJQLÂżFD TXH D YLGD WHQKD PHOKRrado, “um terço da população das grandes e mĂŠdias cidades da AmazĂ´nia vive HP WHUULWyULRV GR WUiÂżFR H FRP YLRODo}HV GH GLUHLWRV KXPDQRV 1DV SHULIHULDV GD PDLRU Ă€RUHVWD WURSLFDO D TXDOLGDGH GH YLGD p SLRU TXH QRV PRUURV H QDV favelas de Rio de Janeiro e SĂŁo Pauloâ€? (2017, p. 81ss). A pesquisadora social e professora da Universidade Federal do ParĂĄ, 9LROHWD 5HINDOHIVN\ /RXUHLUR DÂżUPD TXH ÂłGHVGH RV WHPSRV FRORQLDLV H DWp os dias atuais a AmazĂ´nia brasileira tem sido um lĂłcus de exploração de matĂŠrias-primas de toda a ordemâ€? (2015, p. 111). Hoje este modelo primĂĄrio-exportador teria se aprofundado apresentando caracterĂ­sticas bastante claras: ĂŠ persistente, concentrador de renda, voltado para fora e de costas para as SRSXODo}HV UHJLRQDLV 'LVVR DÂżUPD D SHVTXLVDGRUD UHVXOWDP DOJXPDV FRQsequĂŞncias graves: a AmazĂ´nia tem servido mais a outros paĂ­ses e a outras regiĂľes que Ă s suas prĂłprias populaçþes, sejam elas seus povos originais, sejam os que para ela se dirigiram escolhendo-a como lugar de destino. E Ă

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medida que a indĂşstria mundial e as corporaçþes econĂ´micas se desenvolvem H VH DUWLFXODP WrP ÂżFDGR FDGD YH] PDLV UHVWULWDV DV SRVVLELOLGDGHV GH D UHJLmR se valer de sua prĂłpria riqueza para a melhoria das condiçþes de vida de suas populaçþes. Tornou-se difĂ­cil para a AmazĂ´nia brasileira construir sua prĂłpria KLVWyULD TXH WHP VLGR GHÂżQLGD D SDUWLU GH IDWRUHV H[WHUQRV j VXD QDWXUH]D H j sua gente. No seu discurso aos povos indĂ­genas da Pan-AmazĂ´nia, papa Francisco DÂżUPD TXH D $PD]{QLD DOpP GH FRQVWLWXLU XPD UHVHUYD GD ELRGLYHUVLGDGH p tambĂŠm uma reserva cultural que deve ser preservada em face dos novos colonialismos. E alerta: “exige-se nos um cuidado especial para nĂŁo nos deixarmos prender por colonialismos ideolĂłgicos mascarados de progresso, que entram pouco a pouco dilapidando identidades culturais e estabelecendo um pensamento uniforme, Ăşnico e dĂŠbilâ€?. A prĂłpria ideia de “desenvolvimentoâ€? que na AmazĂ´nia trouxe agressĂŁo Ă natureza e agressĂŁo aos direitos das populaçþes locais com o aumento da desigualdade social, “implicaria uma leitura crĂ­tica do processo de estruturação do pensamento ocidental, suas matrizes teĂłricas, ideolĂłgicas, seus crivos polĂ­ticos e sua intencionalidade, mais preponderante e veloz a partir do capitalismo industrialâ€? (AA. VV. 2018, p. 16), como sustenta a pesquisadora do NĂşcleo de Altos Estudos AmazĂ´nicos da Universidade Federal do ParĂĄ, Edna Maria Ramos de Castro11, no trabalho citado. A racionalidade de mercado e a ideologia do progresso produziram uma maneira de visualizar as populaçþes regionais como estando na contramĂŁo da histĂłria. A suposta racionalidade de mercado e a ideologia do progresso forjaram um modo de ver como opostos e inconciliĂĄveis – o crescimento econĂ´mico, o “desenvolvimentoâ€? ou o “progressoâ€?, de um lado; e de outro – as minorias, os pobres, os sem-voz na sociedade, todos aqueles considerados inferiores, indesejĂĄveis, inexpressivos ou “obstaculizantesâ€?.

11 Professora Titular do Programa de PĂłs-Graduação em Desenvolvimento SustentĂĄvel do TrĂłpico Ăšmido, NĂşcleo de Altos Estudos AmazĂ´nicos da UFPA. Doutora em Sociologia.

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Como expressa com lucidez a antropĂłloga Liliana Suarez Navaz, o colonialismo nĂŁo ĂŠ um perĂ­odo histĂłrico superado, ĂŠ uma semente que ainda dĂĄ frutos, suas sequelas estĂŁo presentes nas novas formas de imperialismo econĂ´mico e polĂ­tico liderado por capitalistas neoliberais em todos os cantos do mundo (2008, p. 31-32). Para o sociĂłlogo peruano Anibal Quijano e o grupo de intelectuais latino-americanos que compĂľem o Grupo Modernidade/Colonialidade/Decolonialidade, nĂŁo existe modernidade sem colonialidade. A conhecida “modernidadeâ€?, aparentemente positiva, esconde uma face oculta: a colonialidade. A sua lĂłgica operaria em quatro domĂ­nios: econĂ´mico, polĂ­tico, social e epistĂŞmico, e incapacitou e incapacita para descobrir os valores culturais, religiosos, ĂŠticos e estĂŠticos de outras cosmovisĂľes (2016).

Dar de nossa pobreza: novos caminhos para a Igreja e para uma Ecologia Integral O sĂ­nodo pan-amazĂ´nico a ser realizado em outubro de 2019 em Roma, apesar de sua temĂĄtica regional, serĂĄ um sĂ­nodo da Igreja Universal. A regiĂŁo DPD]{QLFD VHUYLUi FRPR SRQWR GH SDUWLGD SDUD UHĂ€HWLU VREUH R IXWXUR QmR Vy dessa regiĂŁo, mas do planeta Terra e da humanidade. $FUHGLWDPRV TXH DV UHĂ€H[}HV GR 6tQRGR (VSHFLDO YmR VXSHUDU R kPELWR estritamente eclesial amazĂ´nico e serem relevantes para a Igreja na sua universalidade, uma Igreja que deve avançar “no caminho duma conversĂŁo pastoral e missionariaâ€? (EG 25) segundo o desejo do papa Francisco. $VVLP PHVPR GLDQWH GRV JUDQGHV GHVDÂżRV DWXDLV FRPR D JUDYH FULVH social mundial originada pelo modo de produção capitalista, Ă mudança climĂĄtica e Ă insustentabilidade da exploração da Terra se impĂľe uma mudança de paradigma civilizacional, que implique uma nova relação de sinergia e de mĂştua pertença entre a Terra e a humanidade, uma “ecologia integralâ€?, segundo a proposta da EncĂ­clica Laudato Si'.

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Novos caminhos para a Igreja Os novos caminhos para Igreja apontam para a construção de uma Igreja com “rosto amazĂ´nico e rosto indĂ­genaâ€?. No discurso de Puerto MalGRQDGR DRV SRYRV SDQ DPD]{QLFRV SDSD )UDQFLVFR DÂżUPDYD Âłe ERP TXH DJRUD VHMDLV YyV SUySULRV D DXWRGHÂżQLU YRV H D PRVWUDU QRV D YRVVD LGHQWLGDGH Precisamos de vos escutar [...]. Precisamos que os povos indĂ­genas plasmem culturalmente as Igrejas locais amazĂ´nicas [...] ajudai os vossos bispos, os missionĂĄrios e as missionĂĄrias a fazerem-se um sĂł convosco e assim, dialogando com todos, podeis plasmar uma Igreja com rosto amazĂ´nico e uma Igreja com rosto indĂ­gena. Com este espĂ­rito, convoquei um SĂ­nodo para a AmazĂ´nia no ano de 2019â€?. Segundo o teĂłlogo Paulo Suess12, num sentido amplo, o sĂ­nodo foi convocado para desencadear uma “viragem descolonialâ€? na AmazĂ´nia. A EXVFD GH QRYRV FDPLQKRV VLJQLÂżFD D ÂłEXVFD GH XP QRYR SDUDGLJPD SDUD a evangelizaçãoâ€?, “porque, mesmo depois de 500 anos, nos caminhos da primeira evangelização ainda hĂĄ entulho teolĂłgico-pastoral da ĂŠpoca do impĂŠrio e da colonização impedindo que se forje uma Igreja autĂłctoneâ€? (SUESS, 2018, p. 34). A histĂłria da evangelização da AmazĂ´nia mostra uma constante, “onde o distanciamento cultural entre o agente de pastoral, de origem ou formação ocidental-europeia, e a massa do povo, de origem indĂ­gena, ĂŠ enormeâ€?. PodePRV DÂżUPDU TXH FHUWD ÂłDYDOLDomR SRVLWLYD´ GD UHOLJLmR LQGtJHQD QR SHUtRGR GD era missionĂĄria e do clero lusitano e prĂŠ-romanizado – mesmo com todas as restriçþes – nĂŁo resistiu Ă romanização e Ă internacionalização da evangelização na AmazĂ´nia do Ăşltimo perĂ­odo histĂłrico. Neste se abriu uma guerra declarada contra a religiĂŁo dos indĂ­genas, tapuios e caboclos, assim como o receio desse cristianismo amazĂ´nico

12 Estudou nas Universidades de Munique, Lovaina e Mßnster, onde se doutorou em Teologia Fundamental. Atualmente Ê assessor teológico do CIMI e do COMINA, e professor no ciclo de pós-graduação em Missiologia, no ITESP.

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popular, de horizontes predominantemente nĂŁo europeus – mas indĂ­gena e africano – que se manifesta nas devoçþes populares, irmandades, festividades e procissĂľes como o CĂ­rio de NazarĂŠ em BelĂŠm do ParĂĄ (HOORNAERT, 1992, p. 393-403). O encontro de Melgar (ColĂ´mbia), organizado pelo Departamento de MissĂľes do CELAM em 1968, sustentava uma pastoral diferenciada junto Ă pluralidade cultural na AmĂŠrica Latina, que valorizasse a histĂłria de cada povo (“lĂ­nguas, costumes, instituiçþes, valores e aspiraçþesâ€? – Melgar 3), assim como a diversidade de cada igreja local, questionando um modelo de igreja colonial “monoculturalâ€?. Dom Samuel Ruiz, quem foi bispo de Chiapas no MĂŠxico, em conferĂŞncia pronunciada em MedellĂ­n 1968, sobre “A evangelização na AmĂŠrica Latinaâ€?, aludia a realidade indĂ­gena como um antissinal pelo fato que se passaram vĂĄrios sĂŠculos de cristianismo e o problema nĂŁo foi resolvido: destroem-se suas culturas, desintegram-se suas comunidades, perdem-se seus valores culturais (1969, p. 171). No 1Âş Encontro de Pastoral das MissĂľes no Alto Amazonas, realizado em Iquitos, Peru, em março de 1971, frisou-se bastante a questĂŁo da encarnação da Igreja nas culturas da AmazĂ´nia, “nos seus ritos, nos seus ministros e nas suas estruturas, e dando-se a si mesma, estruturas de maior unidade, propondo-se de ser fermento daquela cristĂŁ comunhĂŁo que se realiza na caridadeâ€? (Iquitos 2 'RFXPHQWR GHVWDFDYD WDPEpP D LPSRUWkQFLD GD TXHVWmR celebrativa: posto que para muitos indĂ­genas os gestos litĂşrgicos eram “atos incompreensĂ­veis sem nenhuma relação com a vida do indivĂ­duo ou da comunidadeâ€? (Iquitos, 45), nĂŁo havia outra alternativa do que “uma fĂŠ encarnada na cultura, que encontre seus prĂłprios meios de expressĂŁo em sĂ­mbolos culturais que revelem ao mesmo tempo a personalidade de cada grupo humano e sua prĂłpria vivĂŞncia da fĂŠ com dimensĂľes e aspectos do mistĂŠrio cristĂŁo desconhecido atĂŠ o momentoâ€? (Iquitos, 46). A Igreja com rosto amazĂ´nico, portanto, visa Ă construção de uma Igreja descolonizada, inculturada e contextualizada, situando-se num processo que começou com o ConcĂ­lio Vaticano II (1962-1965), e aprofundou-se com

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as grandes ConferĂŞncias do Episcopado latino-americano, com suas palavraschave de “libertaçãoâ€?, “opção pelos pobresâ€?, “inculturaçãoâ€? e “missĂŁo como Igreja em saĂ­daâ€?. Hoje, processo enriquecido pelo carisma do papa Francisco, que na “conversĂŁo pastoralâ€? (EG 25, 27, 32) integrou a “conversĂŁo ecolĂłgicaâ€? (LS 216ss) oferecendo na Evangelii Gaudium novas palavras-chave como “diĂĄlogoâ€? (EG 142), “encontroâ€? (EG 239) e “Igreja em saĂ­daâ€? (EG 20ss).

Novos caminhos para uma ecologia integral Desde a realidade amazĂ´nica se evidencia com mais clareza o urgente convite do papa Francisco na encĂ­clica Laudato Si' “para renovar o diĂĄlogo sobre a maneira como estamos construindo o futuro do planetaâ€? (LS 14). ,PS}H VH R XUJHQWH GHVDÂżR GH SURWHJHU D QRVVD &DVD &RPXP H SDUD LVVR “precisamos converter o modelo de desenvolvimento globalâ€? (LS 194), encontrar e viabilizar um novo paradigma civilizatĂłrio. 3DSD )UDQFLVFR DÂżUPD QD Laudato Si', “dado que os problemas atuais requerem um olhar que leve em conta todos os aspectos da crise mundialâ€?, SURS}H UHĂ€HWLU ÂłVREUH RV GLIHUHQWHV HOHPHQWRV GH XPD HFRORJLD LQWHJUDO TXH inclua claramente as dimensĂľes humanas e sociaisâ€? (LS 137). Assim, no capĂ­tulo IV da encĂ­clica, vai explicitando os diferentes aspectos de uma ecologia integral detendo-se nos conceitos de ecologia ambiental, econĂ´mica e social; ecologia cultural; ecologia da vida cotidiana e no princĂ­pio do bem comum e da justiça intergeracional. 2 WHyORJR EUDVLOHLUR /HRQDUGR %Rŕľľ SRXFR WHPSR GHSRLV GH VHU SXEOLFDGD D HQFtFOLFD DÂżUPDYD VREUH R FRQFHLWR GD HFRORJLD LQWHJUDO ÂłUHFHLR TXH ela nĂŁo seja entendida pela grande maioria, colonizada mentalmente apenas pelo discurso antropocĂŞntrico de ambientalismo dominante nos meios de FRPXQLFDomR VRFLDO H LQIHOL]PHQWH QRV GLVFXUVRV RÂżFLDLV GRV JRYHUQRV H GDV instituiçþes internacionais como a ONUâ€?. Ele sustenta que a visĂŁo da ecologia integral ĂŠ sistĂŞmica, integra todas as coisas num grande todo dentro do qual nos movemos e somos. Todos formamos um grande e complexo todo,

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hĂĄ uma rede de relaçþes que perpassam todos os seres, ligam e religam todas as ordens (2015). A proposta da ecologia integral contradiz o paradigma tecnocrĂĄtico (LS 106) e o atual modelo de produção capitalista que ainda impera no mundo WRGR 6XD GLQkPLFD OHYD D XPD DFXPXODomR H[DFHUEDGD GH ULTXH]D HP SRXcas mĂŁos Ă custa de um espantoso saque da natureza e do empobrecimento das grandes maiorias dos povos. Este sistema deve ser denunciado como inuPDQR FUXHO VHP SLHGDGH H KRVWLO j YLGD $OpP GR PDLV FRP D GRPLQkQFLD FUHVFHQWH GR FDSLWDOLVPR ÂżQDQFHLUR VH LPS}H XP JUDQGH HVTXHPD GH FRUUXSção sistĂŞmica, que implica superexplorar e enganar as classes sociais abaixo GHOD FDSWXUDU R (VWDGR H D SROtWLFD SDUD VHXV ÂżQV H LQVWDXUDU XPD LPSUHQVD e uma esfera pĂşblica que implicam distorção sistemĂĄtica da realidade (SOUZA, 2017, p. 162-166). A “cultura ecolĂłgicaâ€? que opĂľe resistĂŞncia ao avanço do paradigma tecnocrĂĄtico e Ă tirania do capital, “deveria ser um olhar diferente, um pensamento, uma polĂ­tica, um programa educativo, um estilo de vida e uma espiritualidadeâ€? (LS 111). Na AmazĂ´nia jĂĄ existem iniciativas que contradizem o modelo de desenvolvimento imposto. Iniciativas que se orientam para outro tipo de sociedade, que tĂŞm por base outra forma de entender e valorizar o trabalho das pessoas, que revelam que sĂŁo possĂ­veis empreendimentos econĂ´micos e culturais com D Ă€RUHVWD HP Sp Nesse sentido os povos indĂ­genas sĂŁo referĂŞncia viva de um outro modo de habitar a Casa Comum, de produzir, de distribuir e de consumir em consoQkQFLD FRP RV ULWPRV GD QDWXUH]D QD HTXLGDGH H QD SDUWLFLSDomR GRV EHQV H serviços naturais. A sabedoria ancestral dos povos indĂ­genas assim como a sua identidade se expressa nos antigos paradigmas do Bem Viver e da Terra sem Males. O Bem Viver, “Sumak Kawsayâ€? em quĂŠchua, expressa uma forma de ser e estar no mundo. Vincula o ser humano com a natureza numa relação recĂ­proca de harmonia. Somente se realiza coletivamente. A noção do Bem Viver fala

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de repartição das riquezas, do respeito à diversidade, da Êtica na convivência humana, da descolonização da vida, da história e do futuro... exige o exercício e a garantia dos direitos das pessoas e dos povos... O Bem Viver remete à compreensão da terra como mãe (CEMLA 3, p. 52). Segundo o sociólogo uruguaio Eduardo Gudynas, o Bem Viver implica XP TXHVWLRQDPHQWR VXEVWDQFLDO jV LGHLDV FRQWHPSRUkQHDV GH GHVHQYROYLPHQWR e, em especial, ao seu vínculo com o crescimento econômico e sua incapacidade de resolver os problemas da pobreza, sem esquecer que suas pråticas acarretam severos impactos sociais e ambientais. O Bem Viver escreve, enquanto conceito plural e em construção, discorre no campo dos debates teóricos, mas tambÊm avança nas pråticas, quer sejam naquelas dos povos indígenas e nos movimentos sociais, como na construção política, dando seus primeiros passos nas recentes constituiçþes da Bolívia e do Equador (2011 p. 1-20).

&RQVLGHUDo}HV ÂżQDLV A realidade amazĂ´nica, sua rica sociobiodiversidade, seu processo hisWyULFR VHXV SRYRV H RV GHVDÂżRV DWXDLV TXH HQIUHQWD QRV OHYDP D GHVFREULU QR seu chĂŁo a possibilidade de novos caminhos e paradigmas eclesiais e sociais. O mote do sĂ­nodo pan-amazĂ´nico “novos caminhos para a Igrejaâ€?, SRGH DMXGDU D UHVSRQGHU D XP GRV JUDQGHV GHVDÂżRV KRGLHUQRV GD ,JUHMD RX do cristianismo na AmĂŠrica Latina: a encarnação nas culturas indĂ­genas e afro-americanas. Depois de haver quase exterminado as grandes culturas originĂĄrias e escravizado milhĂľes de africanos, impĂľe-se a tarefa de ajudĂĄ-los a se refazerem biologicamente e a resgatarem sua sabedoria ancestral e de verem reconhecidas suas tradiçþes religiosas como formas de comunicaomR FRP 'HXV 3DUD D Ip FULVWm R GHVDÂżR FRQVLVWH HP DQLPi ORV D ID]HUHP a sua sĂ­ntese de forma a dar origem a um cristianismo original, sincrĂŠtico, afro-indĂ­gena-latino-americano.

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3RU RXWUD SDUWH R FRQWtQXR SURFHVVR GH GHVWUXLomR GD Ă€RUHVWD DPDzĂ´nica , a vigĂŞncia do atual paradigma hegemĂ´nico mundial predominante (LS 106-114), que modela atĂŠ o estilo de vida das pessoas, nos leva a reconsiderar a sĂŠria advertĂŞncia feita pelo papa Francisco na Laudato Si': As SUHYLV}HV FDWDVWUyÂżFDV Mi QmR VH SRGHP ROKDU FRP GHVSUH]R H LURQLD ÂŹV SUy[LPDV JHUDo}HV SRGHUtDPRV GHL[DU GHPDVLDGDV UXtQDV GHVHUWRV H OL[R O ritmo de consumo, desperdĂ­cio e alteração do meio ambiente superou de tal maneira as possibilidades do planeta, que o estilo de vida atual – por ser insustentĂĄvel – sĂł pode desembocar em catĂĄstrofes, como aliĂĄs jĂĄ estĂĄ D DFRQWHFHU SHULRGLFDPHQWH HP YiULDV UHJL}HV $ DWHQXDomR GRV HIHLWRV GR GHVHTXLOtEULR DWXDO GHSHQGH GR TXH Âż]HUPRV DJRUD VREUHWXGR VH SHQVDUPRV na responsabilidade que nos atribuirĂŁo aqueles que deverĂŁo suportar as piores consequĂŞncias (LS 161). Para se resolver uma situação tĂŁo complexa como esta que enfrenta o mundo atual, nĂŁo basta que cada um seja melhor, aos problemas sociais responde-se, nĂŁo com a mera soma de bens individuais, mas com redes comunitĂĄrias. “A conversĂŁo ecolĂłgica, que se requer para criar um dinamismo de mudança duradoura, ĂŠ tambĂŠm uma conversĂŁo comunitĂĄria.â€? (LS 219). 'HVGH D PDLV H[WHQVD Ă€RUHVWD WURSLFDO GR PXQGR TXH DOEHUJD D PDLRU biodiversidade do planeta e povos e culturas milenares, lançasse uma mensagem de esperança, vislumbram-se novos caminhos e paradigmas. Queremos WHUPLQDU SURSRQGR DTXHOH FRQVLGHUiYHO GHVDÂżR GD Âł&DUWD GD 7HUUD´ UHWRPDGR por papa Francisco na Laudato Si': “Como nunca antes na histĂłria, o destino comum obriga-nos a procurar um novo inĂ­cio [...]. Que o nosso seja um tempo TXH VH UHFRUGH SHOR GHVSHUWDU GXPD QRYD UHYHUrQFLD IDFH j YLGD SHOD ÂżUPH UHVROXomR GH DOFDQoDU D VXVWHQWDELOLGDGH SHOD LQWHQVLÂżFDomR GD OXWD HP SURO da justiça e da paz e pela jubilosa celebração da vida.â€? (LS 207). 13

13 Ver os Ăşltimos dados da MapBiomas AmazĂ´nia. DisponĂ­vel em: http://mapbiomas.org/ e https://www.amazoniasocioambiental.org/es/. Acesso em: 24 mar. 2019.

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SĂ­nodo para a AmazĂ´nia: novos caminhos que nascem da conversĂŁo Luis Miguel Modino14

A Igreja Ê uma instituição milenar e isso repercute nela de forma decisiva. Tudo anda devagar, as mudanças não chegam de um dia para outro, e isso, na atual sociedade, onde as mudanças acontecem em grande velocidade, provoca leituras que passam por cima dessa dimensão temporal que determina a vida da Igreja. O papa Francisco Ê consciente disso, muito consciente. O discernimento inaciano o tem acompanhado durante dÊcadas, e isso o ajuda a entender os ritmos eclesiåsticos. Em um encontro com os jesuítas, durante sua visita ao Chile, em janeiro de 2018, ele disse que as conclusþes do Concílio Vaticano II demorariam cem anos para serem aplicadas na Igreja. Muito tempo para uma sociedade que quer tudo para ontem. Desde 15 de outubro de 2017, a Igreja, especialmente na região Pan $PD]{QLFD VH SUHSDUD SDUD R 6tQRGR SDUD D $PD]{QLD +i TXHP GH¿QH esse Sínodo como um momento histórico, que vai provocar muitas mudanças decisivas, mas em se tratando da Igreja Católica Romana acredito ser mais adequado dizer que pode ser um tempo de plantio, de semeadura, ou de cuidado do que jå foi colocado na vida da Igreja no Concílio Vaticano II, entre 1962 e 1965, na terra latino-americana na Conferência de Medellín, em 1968, 14 Assessor de comunicação da Rede Eclesial Pan-Amazônica (REPAM).

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no chĂŁo amazĂ´nico no Encontro dos Bispos da AmazĂ´nia brasileira, em SantarĂŠm, em 1972.

Uma Igreja que escuta 8P PRPHQWR GH SDUWLFXODU LPSRUWkQFLD QR 6tQRGR SDUD D $PD]{QLD tem sido o processo de escuta. Ao longo de um ano a Igreja institucional se dispĂ´s para escutar os povos da AmazĂ´nia, e o primeiro a escutar foi o papa Francisco, que chegou a Puerto Maldonado, em 19 de janeiro de 2018, para escutar os povos da AmazĂ´nia. A escuta ĂŠ uma atitude fundamento na vida e no magistĂŠrio do papa Bergoglio, que insiste nessa dimensĂŁo na Constituição ApostĂłlica Episcopalis Communio, em que disse: “O SĂ­nodo dos Bispos deve tornar-se cada vez mais um instrumento privilegiado de escuta do Povo de Deus: ‘Para os Padres sinodais pedimos antes de mais nada, do EspĂ­rito Santo, o dom da escuta: escuta de Deus, atĂŠ ouvir com Ele o grito do povo; escuta do povo, atĂŠ respirar nele a vontade a que Deus nos chama’â€? (EC, 6). Para uma Igreja que durante muito tempo sentiu-se dona da vida do povo, defendeu seus privilĂŠgios, e promoveu uma estrutura piramidal e o clericalismo, “a escuta nĂŁo ĂŠ nada fĂĄcilâ€?, como reconhece o Instrumentum Laboris do SĂ­nodo para a AmazĂ´nia. Mas a escuta ĂŠ uma atitude que enriquece, que nos aporta saberes, nos coloca na frente de realidades que nos contrastam e que, como Igreja, nos mostram que nĂŁo somos donos de um Deus que transcende qualquer tentativa de aprisionĂĄ-lo numa instituição. Podemos imaginar a quantidade ingente de informação que a Igreja tem descoberto no processo de escuta sinodal ao territĂłrio e ao povo de Deus. $V FLIUDV RÂżFLDLV UHFROKLGDV SHOD 5HGH (FOHVLDO 3DQ $PD]{QLFD Âą REPAM, falam de 87.000 participantes, mas hĂĄ suspeitas de que essa cifra foi amplamente superada. Nas comunidades mais afastadas nas cabeceiras dos igarapĂŠs, nas dioceses, nos encontros da vida religiosa, das pastorais e movimentos, no mundo acadĂŞmico, e em tantos outros espaços o Documento PreparatĂłrio foi UHĂ€HWLGR H JHURX SUHFLRVDV LQIRUPDo}HV TXH GHYHP HQULTXHFHU D YLGD GD ,JUHMD na AmazĂ´nia nas prĂłximas dĂŠcadas.

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SĂ­nodo para a AmazĂ´nia: um chamado Ă conversĂŁo O chamado Ă conversĂŁo sempre tem sido presente na vida do papa Francisco, inclusive desde bem antes de ser escolhido bispo de Roma. No documento de Aparecida, onde ele foi relator geral, um dos pontos-chave ĂŠ a conversĂŁo pastoral. Isso tem permeado a vida da Igreja, em primeiro lugar na AmĂŠrica Latina e mais tarde na Igreja universal. O Instrumentum Laboris retoma esse chamado Ă conversĂŁo desde trĂŞs dimensĂľes, a conversĂŁo pastoral, que tem como referĂŞncia a Evangelii Gaudium, a conversĂŁo ecolĂłgica, que nos remete Ă Laudato Si', e a conversĂŁo Ă sinodalidade, abordada na Episcopalis Communio.

A conversĂŁo pastoral (Evangelii Gaudium) A conversĂŁo pastoral sempre ĂŠ referida a atitudes, o que deve nos levar a assumir pessoalmente e como Igreja as atitudes de Jesus, que no Evangelho se mostra como um homem de diĂĄlogo e de encontro. Ă€ medida que nĂŁo estaPRV GLVSRVWRV D GLDORJDU D HVFXWDU HQWUDPRV HP XPD GLQkPLFD GH LPSRVLomR que nos afasta dos outros e faz com que nĂŁo tenhamos a capacidade de se encontrar, de se comunicar, de conviver. É por isso que o Instrumento de trabalho do SĂ­nodo faz um chamado para fazer presente na AmazĂ´nia “uma Igreja hospitaleira e missionĂĄria que se encarna nas culturasâ€?. Que as pessoas se sintam acolhidas na Igreja, especialmente aquelas que a sociedade rejeita, ĂŠ elemento primeiro dentro de um processo de evangelização, pois isso torna possĂ­vel maior capacidade de recepção da mensagem de Jesus. Ao mesmo tempo, a missĂŁo ĂŠ uma dimensĂŁo fundamental na vida de todo batizado, e essa missĂŁo, na AmazĂ´nia, tem que se encarnar necessariamente na vida dos povos, nas suas culturas e cosmovisĂľes. 1HVVH VHQWLGR SRGHPRV GL]HU TXH VH ID] QHFHVViULR ÂłSURJUHGLU QD HGLÂżFDomR de uma Igreja inculturadaâ€?. O SĂ­nodo sugere “evitar a homogeneização cultural, para reconhecer e promover o valor das culturas amazĂ´nicasâ€?. Numa sociedade onde a cultura

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dominante tenta se impor, a Igreja ĂŠ chamada a realizar um trabalho pastoral que promova “as culturas e os direitos dos indĂ­genas, dos pobres e do territĂłrioâ€?. Junto com isso, ĂŠ pedido “superar qualquer clericalismo, para viver a fraternidade e o serviço como valores evangĂŠlicos que animam o relacionamento entre a autoridade e os membros da comunidadeâ€?. Isso deve levar D ÂłWUDQVSRU SRVLo}HV UtJLGDV TXH QmR WrP VXÂżFLHQWHPHQWH HP FRQVLGHUDomR D vida concreta das pessoas, nem a realidade pastoral, para ir ao encontro das necessidades concretas dos povos e das culturas indĂ­genasâ€?. A conversĂŁo pastoral tem que levar a Igreja a chegar Ă s periferias e se deixar interpelar por elas. Numa regiĂŁo como a AmazĂ´nia, marcada pelas JUDQGHV GLVWkQFLDV H D PHJDGLYHUVLGDGH FXOWXUDO D ,JUHMD GHYH HVWDU DEHUWD D essas realidades, descobrindo nelas uma fonte de enriquecimento e nunca uma ameaça. Frente a posturas extremas, que veem o SĂ­nodo como um perigo para a “integridadeâ€? da fĂŠ catĂłlica, temos que dizer que essa abertura gera novos caminhos, um aspecto fundamental no futuro da Igreja, sempre chamada a ser fermento na massa. 8P GRV JUDQGHV GHVDÂżRV TXH R 6tQRGR SDUD D $PD]{QLD ID] p VREUH D presença da Igreja no meio do povo. O Instrumentum Laboris explicita isso TXDQGR UHIHUH TXH ÂłDV GLVWkQFLDV JHRJUiÂżFDV DEUDQJHP WDPEpP GLVWkQFLDV FXOturais e pastorais que, portanto, exigem a passagem uma “pastoral de visitaâ€? SDUD XPD ÂłSDVWRUDO GH SUHVHQoD´ D ÂżP GH YROWDU D FRQÂżJXUDU D ,JUHMD ORFDO HP todas as suas expressĂľes: ministĂŠrios, liturgia, sacramentos, teologia e serviços sociaisâ€?. No interior da AmazĂ´nia, a desobriga (visita uma vez por ano) nas comunidades tem sido um mĂŠtodo muito presente. Quase sempre tem sido uma presença muito rĂĄpida, que nĂŁo responde Ă s necessidades de um povo que tem outro modo de entender o tempo e as relaçþes pessoais. O SĂ­nodo faz a sugestĂŁo de mudar o modo de entender os sacramentos, propondo que seja desde a necessidade da comunidade. Nesse sentido, nas FRPXQLGDGHV PDLV GLVWDQWHV TXH SRU IDOWD GH VDFHUGRWHV ÂłWrP GLÂżFXOGDGH GH celebrar com frequĂŞncia a Eucaristiaâ€?, ĂŠ defendido que “em vez de deixar as comunidades sem a Eucaristia, se alterem os critĂŠrios para selecionar e preparar

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os ministros autorizados para celebrĂĄ-laâ€?, o que representa uma mudança de perspectiva, que leva a estudar “a possibilidade da ordenação sacerdotal de pessoas idosas, de preferĂŞncia indĂ­genas, respeitadas e reconhecidas por sua comunidade, mesmo que jĂĄ tenham uma famĂ­lia constituĂ­da e estĂĄvel, com a ÂżQDOLGDGH GH DVVHJXUDU RV 6DFUDPHQWRV TXH DFRPSDQKHP H VXVWHQWHP D YLGD cristĂŁâ€?. A comunidade e suas necessidades se colocam como centro.

A conversĂŁo ecolĂłgica (Laudato Si') O grande inimigo da ecologia sĂŁo os “interesses econĂ´micos e polĂ­ticos dos setores dominantes da sociedade atualâ€?, o que na AmazĂ´nia se concretiza nas “empresas extrativistas, muitas vezes em conivĂŞncia, ou com a permissividade dos governos locais, nacionais e das autoridades tradicionais (dos prĂłprios indĂ­genas)â€?, deixando de lado “os clamores dos pobres e da terraâ€?. Essa visĂŁo da AmazĂ´nia como despensa de recursos coloca em risco o futuro do Planeta e dos povos, que cada vez mais se sentem mais ameaçados. O processo de escuta sinodal tem mostrado o sentimento dos povos da AmazĂ´nia, que clamam dizendo: “EstĂŁo privando-nos de nossa terra, para onde iremos?â€?. Muitos veem os povos originĂĄrios como um empecilho para o GHVHQYROYLPHQWR LJQRUDQGR D VDEHGRULD TXH HOHV HQFHUUDP H VXD LPSRUWkQFLD no cuidado da Casa Comum, tornando-se uma grave ameaça Ă sua subsistĂŞncia. O aumento do desmatamento nos Ăşltimos tempos se torna uma grande preocupação, ainda mais quando atrĂĄs dessa problemĂĄtica encontra-se uma legislação amparada por governos que sĂł promovem a devastação, favorecendo interesses de grupos econĂ´micos e polĂ­ticos. Podemos lembrar as palavras de AndrĂŠ Villas-BĂ´as, secretĂĄrio-executivo do Instituto Socioambiental (ISA) Âł6H D Ă€RUHVWD RX D QDWXUH]D GH PDQHLUD geral, ĂŠ nosso passaporte enquanto paĂ­s para algum futuro, os povos que vivem QHOD VmR VHXV YHUGDGHLURV JXDUGL}HV´ XPD DÂżUPDomR TXH YDL DOpP H TXH DWLQJH o planeta todo. É por isso que “temos que valorizar a enorme contribuição dessas comunidades para o equilĂ­brio ecolĂłgico do planetaâ€?, insiste secretĂĄrio-executivo do ISA.

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A conversĂŁo Ă sinodalidade (Episcopalis Communio) $ VLQRGDOLGDGH p XP GRV SRQWRV FKDYH QR SRQWLÂżFDGR GH )UDQFLVFR R chamado a caminhar juntos se situa como prioridade, nem sĂł nas suas palavras como em suas atitudes. Mesmo diante dos ataques que nascem dentro da Igreja, ele faz um esforço em acolher e, a partir da escuta e o diĂĄlogo, ir construindo um caminho em comum. A Episcopalis Communio mostra como deveria ser essa caminhada, sempre a partir do Povo de Deus, uma categoria que foi introduzida no ConcĂ­OLR 9DWLFDQR ,, H TXH GXUDQWH YiULDV GpFDGDV ÂżFRX HP VHJXQGR SODQR HP SURO de uma Igreja hierĂĄrquica que acentuava o clericalismo. É por isso que o Papa Francisco insiste aos bispos em escutar, como atitude fundamental para fazer realidade “uma Igreja irmĂŁ e discĂ­pulaâ€? que nos diz o Instrumento de trabalho. Nessa sinodalidade tem como destaque a mulher. O Instrumentum laboris reconhece que “a presença feminina no seio das comunidades nem sempre ĂŠ valorizadaâ€?. Diante dessa realidade ĂŠ cobrado que a liderança das mulheres seja garantida e que sua voz seja ouvida, “que elas sejam consultadas e participem nas tomadas de decisĂľes e, deste modo, possam contribuir com sua sensibilidade para a sinodalidade eclesialâ€?. Por Ăşltimo, pede-se “que a Igreja acolha cada vez mais o estilo feminino de atuar e de compreender os acontecimentosâ€?.

Conclusão Seria muito ousado querer mudar a história milenar da Igreja em um momento concreto, ainda mais em um Sínodo que tem como ponto de partida a realidade de uma região, mesmo que seja um Sínodo da Igreja universal. As mudanças históricas, inclusive dentro da Igreja, são fruto de processos. Poderíamos dizer que o Sínodo para a Amazônia estå dentro um processo que foi começado hå mais de cinquenta anos no Concílio Vaticano II, e que pode ajudar a avançar na aplicação pråtica das conclusþes que lå foram recolhidas.

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A chegada do papa Francisco em 2013 foi vista por muita gente como um sopro de esperança. Até agora, ele tem contribuído com um novo jeito da Igreja se posicionar no mundo, não como aquela que ordena e sim como aquela que escuta, que se torna mediadora, que se coloca a serviço dos descartáveis. O Sínodo pode ser um kairós que ajude a avançar nessa direção, essa é a esperança dos povos da Amazônia, do Povo de Deus.

Obra: Amazônia por elas. Autor: Jonavegante (jonavegante33@gmail.com).

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Mulheres tecendo a vida na AmazĂ´nia Margarida Chaves dos Santos15 Maria de Jesus Ramos Pereira16

2 ROKDU KLVWyULFR D SDUWLU GH XP SRQWR H[LJH GLYHUVDV UHĂ€H[}HV TXH se observam, considerando a diversidade por menor que seja o espaço. No contexto amazĂ´nico, o horizonte se pluraliza em um leque multicor, formado SHOD EHOH]D GR ELQ{PLR HWQLDV H PHLR DPELHQWH TXH LQWHUDJHP QD Ă€XrQFLD GDV culturas. Viver em corpo de mulher ĂŠ tambĂŠm um jeito prĂłprio de se inscrever em uma espĂŠcie de ciranda que nos leva a experienciar diferentes toques que se dĂĄ e se recebe. Nos quarenta anos nos caminhos da AmazĂ´nia com o CEBI, construĂ­mos outras trilhas, abrimos novas janelas, e os horizontes se alargaram para ver melhor e mais longe. Assim, o SĂ­nodo, para a AmazĂ´nia, ĂŠ uma janela que nos leva a ver, escutar, sentir, descobrir as possibilidades de renovar as alianças que promovem o cuidado com a sustentabilidade das vidas no planeta. A grande contribuição GR 6tQRGR DWp DTXL p R FXLGDGR UHVVLJQLÂżFDGR com rosto amazĂ´nico, manifestando a ternura de Deus. Ouvem-se muito nos encontros: “antes do CEBI eu nĂŁo via, nĂŁo entendia, nĂŁo tinha coragem, nĂŁo fazia, nĂŁo sabia, nĂŁo falava, nĂŁo sentiaâ€?, 15 CEBI Imperatriz MaranhĂŁo. 16 CEBI Imperatriz MaranhĂŁo.

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demonstrando o leque de contribuiçþes que a Leitura Popular da BĂ­blia traz quando hĂĄ, de fato, o encontro dos nossos corpos com a palavra de Deus que se integra Ă vida de modo que se torna carne e nos move no jeito de fazer, ser e estar no mundo. Dessa forma, o nosso pertencimento Ă AmazĂ´nia consiste em uma simbiose entre nĂłs e a terra com tudo que nela existe, permeada de saberes que sĂŁo costurados com o cuidado materno, um jeito prĂłprio e carinhoso de produzir e reproduzir a vida, amazonicamente, nas lutas pelos direitos Ă terra e aos seus recursos, dĂĄdivas de Deus. A relação das mulheres com o CEBI tem o sentido do encontro com Deus na comunidade com a descoberta de poder ser, fazer, dizer, ir e vir. É um desabrochar que promove novas atitudes que brotam dos sonhos. A relação com a palavra libertadora provoca o encontro, consigo mesmas, e com outras/ outros uma conquista pessoal e comunitĂĄria mediada pelo conhecimento do projeto de Deus. Notamos que o vĂ­nculo das mulheres desse territĂłrio, com a palavra, ecoa nos corpos das mulheres, produtoras de vida de dignidade, de beleza, de encontro, de mistĂŠrio e do ar, da Ruah Divina, que desde a AmazĂ´nia sopra vida para todo o planeta para todas as vidas. 0XOKHU $PD]{QLD UHSUHVHQWD SHUVRQLÂżFD D 5XDK 'LYLQD TXH LQVLVWH H persiste em parir, sustentar e proteger a vida diante do depredador CapitaOLVPR TXH LQVLVWH H SHUVLVWH HP FRLVLÂżFDU H FRPHUFLDOL]DU RV FRUSRV VROLGiULRV GRV SRYRV GDV FLGDGHV H GDV Ă€RUHVWDV TXHUHQGR GHVPDQFKDU D JUDWXLGDGH GD vida sustentada, preservada e alicerçada na experiĂŞncia comunitĂĄria. Mulher-AmazĂ´nia, “vidas interligadas como se fossem umaâ€? unidas pelo amor que faz oposição ao deus capital, que mata e extermina o germe da vida. Vida conectada e interligada na fonte da Palavra, que gera consumo responsĂĄvel, Ă­cone econĂ´mico ambiental e social, de sustentabilidade. Mulher! AmazĂ´nia! Seres que recriam desde suas entranhas a vida, no ventre dos encontros, do convĂ­vio com amigas/amigos e a Palavra, encontro que gera vida, novas transformaçþes, permitindo muitas vezes recordar o

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DQWHV EHP FRPR WXGR DTXLOR TXH PXGRX TXH ÂżFRX PHOKRU TXH GHX DVDV SDUD voar, em bando, deixando sinais, caminhos renovĂĄveis. Mulher-AmazĂ´nia que possui sua marca, sua identidade no prĂłprio jeito de ser juntas e de juntar. Logo, em se tratando dos assuntos relacionados Ă vida e Ă s diferentes situaçþes enfrentadas pelas mulheres, alargando os espaços de participação efetiva nos conselhos municipais paritĂĄrios: da mulher, da pessoa idosa, da educação, do meio ambiente e outros, trazendo novas perspectivas legais para que a dignidade e a justiça se inscrevam nas vidas e nos corpos, especialmente no das mulheres, nessa dimensĂŁo do territĂłrio. Sobre as conquistas acima podemos destacar a Lei do Babaçu Livre, cujo primeiro municĂ­pio que editou foi Lago do Junco, no MaranhĂŁo, em 1997. AtravĂŠs da referida lei, as mulheres pleitearam e garantiram o direito ao livre acesso Ă s palmeiras e tambĂŠm aos demais recursos: vegetação, ĂĄguas e ao meio ambiente como um todo, para garantir e manter as atividades extrativistas sem agredir o ambiente natural. Outra conquista efetivada pelas mulheres ĂŠ a economia solidĂĄria, no intuito de produzir e vender diretamente ao consumo sem barreiras intermediĂĄrias, fazendo seus produtos chegaram por um preço justo a quem os consome. A economia solidĂĄria ĂŠ uma organização de produtoras e produtores informais que criam redes de produção, distribuição e consumo sob a ĂŠgide da autogestĂŁo, baseada na cooperação, na solidariedade e na democracia, sem lugar para competição. $V PXOKHUHV GDV Ă€RUHVWDV H GDV iUHDV XUEDQDV LQYHQWDP H UHLQYHQWDP D YLGD SURGX]LQGR D SDUWLU GR TXH H[LVWH QDV Ă€RUHVWDV H WDPEpP DSURYHLWDQGR resĂ­duos e descartĂĄveis fortalecendo o cuidado com a Casa Comum, como ĂŠ o caso das associaçþes de catadoras e catadores de materiais reciclĂĄveis que existem em alguns municĂ­pios. AmazĂ´nia, “companheira, amiga mĂŁeâ€?, sua existĂŞncia ĂŠ de vital imporWkQFLD SDUD R 3ODQHWD 7HUUD SDUD DV YLGDV SUHVHQWHV QHVWH SODQHWD WX pV XP espelho da humanidade. Bacia AmazĂ´nica, tu representas para nosso planeta uma das maiores reservas da biodiversidade. Abrigas, no teu ventre, ĂĄguas,

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FDFKRHLUDV ULRV ODJRV ODJRDV H Ă€RUHVWDV EHP FRPR GHPDLV HOHPHQWRV QHFHVsĂĄrios Ă subsistĂŞncia de todos os tipos de vidas (SĂ­nodo para AmazĂ´nia, Documento PreparatĂłrio 2018, n. 5, 8, 9). Mulheres, guardiĂŁs, promotoras, guardadoras das memĂłrias ancestrais da vida dos povos tradicionais: indĂ­genas, quilombolas, ribeirinhos, e muitos outros nas suas diversidades de atividades no exercĂ­cio do cuidado com a Casa Comum. Mulher-AmazĂ´nia! Como e com Maria Madalena (Jo, 20, 1-18), sinal do ressuscitado, mediadora de ressurreição, narradora experiente dos encontros dos cĂ­rculos. Mulheres, com o ressuscitado, convidadas a nĂŁo reter nem individualizar para si a experiĂŞncia da ressurreição, mas convocadas enviadas a anunciar, testemunhar a todas/todos as experiĂŞncias mais belas que todo o ser pode saborear e, por isso, testemunhar: “Eu Vi o Senhorâ€?. A Vida venceu a Morte. Jesus estĂĄ vivo e caminha conosco na AmazĂ´nia por meio da Palavra, da natureza, dos encontros e dos encantos, tantos, promovidos pelo CEBI ao longo desses anos. 9LYHU p FRQMXJDU FDULQKR IRUoD HVSLULWXDOLGDGH H FRQÂżDQoD FRQIRUPH explicita Ivone Gebara: Viver ĂŠ nutrir-se, ĂŠ proteger-se para manter a tĂŞnue chama da vida. Viver ĂŠ senWLU VH GH PXLWDV PDQHLUDV QD YLGD VHP SUpYLD GHÂżQLomR 'HVVD IRUPD D SULPHLUD explicação dos seres humanos, ĂŠ que somos viventes e viventes da terra. Essa ĂŠ a primeira realidade fundante da nossa existĂŞncia e aquela que nos introduz na imagem, na semelhança e na dessemelhança de todos os seres viventes. (GEBARA, 2017, p. 22).

Viver Ê descobrir-se Ê um constante encontro e reencontro, uma sintonia na dança da vida, recriando reinventando, tecendo relaçþes e fortalecendo RV ODoRV IHUPHQWDGRV SHOD PtVWLFD TXH EURWD QD EXVFD GH VLJQL¿FDGRV SDUD DV relaçþes cotidianas alicerçadas no espírito do Deus de Jesus. Mulher, Amazônia e CEBI são tudo isso: viver em sintonia, formando uma vitória-rÊgia, em torno da fÊ da Palavra e das vivências costuradas em redes que nos alumiam em um constante guarnecer.

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Referências BÍBLIA NOVA PASTORAL. São Paulo: Paulus, 2014. DEMITRUK, Juliana Erika; ARAÚJO JUNIOR, Miguel Etinger de; MOURA, João Carlos da Cunha. A lei do babaçu livre: uma estratégia para a regulamentação e a proteção da atividade das quebradeiras de coco no Estado do Maranhão. Disponível em: www.scielo. br. Acesso em: 8 jul. 2019. GEBARA, Ivone. )LORVR¿D IHPLQLVWD uma breve introdução. São Paulo: Terceira Via, 2017.

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O olhar de uma mulher: primeira bispa da Igreja Anglicana e na Amazônia +Marinez Bassotto17

Iniciarei este artigo informando que estou concluindo o texto na Festa de Santa Maria Madalena, APÓSTOLA (22 de julho) – assim está no Santoral Anglicano. Irei agora situar o meu lugar de fala porque creio que somos fruto de nossas vivências. Meu nome é Marinez Rosa dos Santos Bassotto, eu sou bispa da Igreja Episcopal Anglicana do Brasil (IEAB) na Diocese Anglicana da Amazônia, tenho 48 anos de vida e 24 anos de ordenação. Falo, portanto, como uma mulher anglicana ordenada. (X VHUYLD j ,JUHMD QD 'LRFHVH 0HULGLRQDO TXH ¿FD QR H[WUHPR VXO GR Brasil), residia na cidade de Porto Alegre no Estado do Rio Grande do Sul, mas desde meados do mês de março de 2018 estou residindo em Belém, porque fui eleita em 20 de janeiro de 2018 como bispa da Diocese Anglicana da Amazônia, que tem sua sede em Belém do Pará. Fui sagrada bispa em 21 de abril de 2018 e instalada como bispa diocesana no dia 22 de abril de 2018, tornando-me a primeira mulher a exercer esse ministério na Igreja Anglicana na América do Sul. Eu sou fruto do trabalho missionário da IEAB. Nasci em uma família anglicana. Cresci e fui me sentindo, desde muito cedo, vocacionada ao 17 Bispa da Diocese Anglicana da Amazônia – IEAB.

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ministĂŠrio. Em 1991, fui a Porto Alegre para estudar Teologia (no entĂŁo SeminĂĄrio Nacional da IEAB). Fui ordenada como diĂĄcona em 14 de maio de 1995 e como presbĂ­tera em 17 de março de 1996, ambas as ordenaçþes aconteceram na Catedral Nacional da SantĂ­ssima Trindade, em Porto Alegre, a qual, em 1999, assumi como deĂŁ, com quatro anos de ministĂŠrio e 28 anos de vida, tornando-me a primeira mulher a assumir a Catedral da Diocese Meridional e a segunda mulher a assumir uma Catedral na IEAB. Eu, sendo uma mulher que nasceu e cresceu no sul do Brasil, fui chamada por Deus e pela Igreja para servir no outro extremo do paĂ­s – e mesmo antes de aqui chegar jĂĄ havia me encantado pelo povo amazĂ´nida, um povo hospitaleiro e acolhedor; na AmazĂ´nia temos uma regiĂŁo culturalmente riquĂ­ssima onde hĂĄ muitas cores, cheiros e gostos. Uma regiĂŁo que possui belezas naturais inigualĂĄveis, mas onde hĂĄ muitas desigualdades sociais, muitas injustiças, muita exploração e extrativismo. Os gananciosos do mundo querem sugar a AmazĂ´nia e tirar daqui nĂŁo sĂł as riquezas naturais, devastar nĂŁo apeQDV DV Ă€RUHVWDV PDV WDPEpP RV SRYRV TXH DTXL YLYHP DWUDYpV GR WUiÂżFR GH pessoas, das mortes violentas de lĂ­deres das lutas populares e agrĂĄrias. SĂŁo LQ~PHURV RV GHVDÂżRV SDUD D SURFODPDomR H YLYrQFLD GR HYDQJHOKR QD 5HJLmR GD $PD]{QLD H SDUD VHU ,JUHMD GH &ULVWR QR PHLR GR SRYR GD Ă€RUHVWD H GDV ĂĄguas, respeitando sua cultura e suas crenças. Foi para este lugar que Deus me chamou, e ĂŠ aqui que tenho buscado, sobretudo, aprender uma nova forma de ser Igreja e de caminhar em conjunto com o povo. Sobre o processo de eleição ao episcopado na Diocese Anglicana da $PD]{QLD DR SDUWLFLSDU GR SURFHVVR R Âż] FRP SOHQD FRQVFLrQFLD GH TXH GLVponibilizava meu nome tambĂŠm em favor da ordenação feminina, pois em maio de 2019 completamos 35 anos de ordenação feminina no Brasil. A Igreja Anglicana no Brasil foi ousada e inovadora ao possibilitar Ă s mulheres, desde a aprovação da ordenação, que aconteceu em 1984, o acesso Ă s trĂŞs ordens sagradas. Mesmo assim, durante quase 34 anos, nĂŁo teve a coragem profĂŠtica de eleger nenhuma mulher ao episcopado, hoje somos duas no Brasil e com a possibilidade de que uma terceira seja eleita ainda este ano.

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Durante o processo de minha eleição ao episcopado uma pessoa amiga me enviou um vĂ­deo que falava a respeito do Uirapuru, que ĂŠ um pequeno SiVVDUR GD $PD]{QLD H GL]HP DV OHQGDV TXH TXDQGR HOH FDQWD D Ă€RUHVWD LQWHLUD HQFDQWDGD SHOD VXD PHORGLD ÂżFD HP VLOrQFLR SDUD HVFXWi OR (X FUHLR TXH FRP as eleiçþes de mulheres ao episcopado que aconteceram na IEAB a Ruah Divina, ventania amorosa e transformadora, assim como o Uirapuru, se fez ouvir e um silĂŞncio de 34 anos foi rompido! Era jĂĄ chegada a hora de romper essa barreira – com essas eleiçþes um novo tempo com maior equidade de gĂŞnero foi inaugurado na vida da Igreja! Creio tambĂŠm que estas eleiçþes trazem novos ares, ĂŠ como uma brisa perfumada que sopra por sobre e atravĂŠs da Igreja, ĂŠ a proclamação da superação das dĂşvidas e temores diante da novidade de um episcopado feminino. Penso que com esse passo a IEAB aproximou grandemente sua prĂĄtica de seu discurso. 9LYHPRV HP XPD VRFLHGDGH TXH GLVFULPLQD DV PXOKHUHV REMHWLÂżFD H violenta seus corpos, desrespeita seus direitos e criminaliza suas lutas. Simone GH %HDXYRLU DÂżUPRX Âł%DVWD XPD FULVH SROtWLFD HFRQ{PLFD RX UHOLJLRVD SDUD que os direitos das mulheres sejam questionadosâ€?, e isso ĂŠ verdade. Diante GHVWH IDWR SRVVR DÂżUPDU TXH p XP JUDQGH GHVDÂżR VHU PXOKHU H OtGHU UHOLJLRVD HP QRVVD VRFLHGDGH PDV DR PHVPR WHPSR HP TXH RV GHVDÂżRV VmR LPHQVRV tambĂŠm imensas sĂŁo as oportunidades. Vejo o ministĂŠrio das mulheres nas mais variadas tradiçþes religiosas como testemunho da possibilidade de um PXQGR PHOKRU PDLV HTXkQLPH H FRP PDLV MXVWLoD DPRU H SD] $V PXOKHUHV testemunham com seus ministĂŠrios os sinais da misericĂłrdia de Deus e da possibilidade do respeito Ă s diferenças e aos diferentes. E em suas palavras e açþes revelam a compaixĂŁo de Deus. E por isso mesmo vejo como uma ação potente de Deus a escolha (feita de forma democrĂĄtica atravĂŠs de eleição) e a consagração de duas bispas para a Igreja de Cristo justamente quando vivemos R DFLUUDPHQWR GRV SUHFRQFHLWRV GDV YLROrQFLDV H GDV LQWROHUkQFLDV TXH HVWmR tomando enormes proporçþes. O atual momento polĂ­tico mundial traz consigo mudanças assustadoras e imprevisĂ­veis. O avanço das forças polĂ­ticas neoconservadoras na Europa, a eleição de Donald Trump nos Estados Unidos, o golpe

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de Estado no Brasil impetrado pelo Congresso Nacional, com o STF como espectador indiferente e uma razoĂĄvel parcela da população brasileira, incitada pela grande mĂ­dia, como massa de manobra, que resultou no impeachment GD 3UHVLGHQWD 'LOPD 5RXVVHŕľľ FXOPLQDQGR FRP D HOHLomR SUHVLGHQFLDO GH XP candidato de extrema direita e com um discurso abertamente fascista. A ascensĂŁo dos movimentos fundamentalistas no Brasil, a aliança de partidos de direita e a “bancada BBBâ€?: “Balaâ€? (deputados ligados Ă PolĂ­cia Militar, aos esquadrĂľes da morte e Ă s milĂ­cias privadas), “Boiâ€? (grandes proprietĂĄrios de terra, criadores de gado) e “BĂ­bliaâ€? (neopentecostais integristas, KRPRIyELFRV H PLVyJLQRV GHL[D FODUR TXH D HOLWH FDSLWDOLVWD ÂżQDQFHLUD LQGXVtrial e agrĂ­cola nĂŁo se contenta mais apenas com algumas concessĂľes, ela quer o poder todo. NĂŁo quer mais negociar, mas sim governar diretamente e anular as poucas conquistas sociais dos Ăşltimos anos. Esse panorama vigente no paĂ­s desde 2016, acirrado com as eleiçþes presidenciais de 2018, tem desencadeado uma catarse da elite escravocrata brasileira cansada da emancipação humana, da igualdade e da distribuição de renda. Sendo uma espĂŠcie de grito de liberdade do conservadorismo, do Ăłdio, GD LQWROHUkQFLD H GD YLROrQFLD ( Mi WUD] FRQVLJR R DFKDWDPHQWR GR YDORU UHDO do salĂĄrio-mĂ­nimo, o crescimento da concentração de renda, a retomada da polĂ­tica de privatizaçþes, a perda de direitos das chamadas “minorias sociaisâ€?, R FUHVFLPHQWR GDV LQWROHUkQFLDV UHOLJLRVDV D H[SORVmR GD YLROrQFLD FRQWUD DV populaçþes indĂ­genas, quilombolas e LGBTs, a invasĂŁo de terras demarcadas para populaçþes originĂĄrias, o aumento do desmatamento na AmazĂ´nia e o crescimento da fome e da população em situação de extrema pobreza, acentuando, assim, a jĂĄ enorme desigualdade social que caracteriza o nosso Brasil. HĂĄ uma demanda represada de fĂşria, Ăłdio e rupturas sem precedentes no nosso paĂ­s. Fatos sĂŁo interpretados de modos diametralmente opostos criando polarizaçþes e jogando umas pessoas contra as outras nas relaçþes interpessoais e atĂŠ mesmo no prĂłprio ambiente familiar. Diferentemente das ditaduras jĂĄ ocorridas no Brasil, fundadas predominantemente na ação das forças armadas, o atual momento apresenta maior

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capilaridade, induzindo a população atravÊs de correntes de fake news, e da artimanha dos meios de comunicação e redes sociais manipuladas. As consequências da luta político-social no atual cenårio histórico brasileiro não estão GH¿QLGDV D OXWD GH FODVVHV KRMH QR SDtV SROLWLFDPHQWH WUDGX]LGD HQWUH XPD frågil democracia contra um fascismo em formação, são fortes indicadores que dão sustentação à percepção de que os tempos são difíceis. Então, o que fazer? Parece que hå apenas um consenso: RESISTIR! Mas como? 1R FDVR HVSHFt¿FR GDV LJUHMDV FULVWmV SHQVR TXH GHYHPRV IRUWDOHFHU R jå tem sido feito atÊ aqui, que Ê criar espaço de discussão, formação e capacitação de pessoas dentro de nossas Igrejas e nos movimentos ecumênicos, e criar novos espaços de formação de lideranças que busquem viver o compromisso com a Cultura da Vida no resgate da dignidade, da justiça, da paz e da preservação socioambiental de solidariedade, de promoção de direitos, como sinais e frutos da vivência do amor segundo o mandamento de Cristo. Apoiar e incentivar os movimentos sociais de resistência e luta por direitos, dentre eles aqueles movimentos que buscam resguardar os direitos das mulheres, das comunidades originårias e ribeirinhas e que fazem enfrentamento e prevenção a todas as formas de violência. Tornar nossas Igrejas espaços seguros (Santuårios) de acolhimento para todas as pessoas, especialmente para aquelas que são excluídas, marginalizaGDV H DWDFDGDV SHOR VLVWHPD YLJHQWH -HVXV GH¿QLD D VL PHVPR FRPR DTXHOH TXH veio para trazer vida e vida abundante. Sua missão era o serviço abnegado a todas as pessoas. Por isso, as pessoas que são suas seguidoras devem assumir a identidade do serviço e da promoção da vida. Cristo restaurou a saúde das pessoas enfermas, trouxe dignidade às pessoas humilhadas, acolheu as pequeninas e entregou sua própria vida para restaurar as nossas. As igrejas cristãs, portanto, não importa a denominação, têm por obrigação serem santuårios de proteção da vida em suas mais variadas formas. Criar estratÊgias para fortalecer a ação diaconal da igreja na sociedade civil por meio dos movimentos ecumênicos e sociais, para atuarem como

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instrumentos de apoio no enfrentamento Ă s desigualdades. O ministĂŠrio diaconal da igreja consiste em fazer a conexĂŁo entre a igreja e o mundo. A igreja nĂŁo pode estar distante da sociedade, por isso, o seu serviço tem que estar voltado Ă realidade das comunidades na promoção e reconstrução da dignidade. É na sociedade que a igreja realiza o serviço ao prĂłximo. Viver plenamente o ecumenismo! A igreja em sua essĂŞncia ĂŠ ecumĂŞnica, uma vez que estĂĄ ligada ao serviço e comparada Ă ação do prĂłprio Cristo, H QmR SRGHPRV HQFODXVXUDU D DomR LJUHMD D XPD FRQÂżVVmR GHQRPLQDFLRQDO 2 serviço da igreja deve ser em favor do mundo para que possamos dar testemunho do amor e da graça de Deus, quanto mais ecumĂŞnica a igreja for tanto mais parecida com Cristo ela serĂĄ. Quero concluir este pequeno texto resgatando algo que para nĂłs, anglicanas e anglicanos, se tornou elemento fundamental na vivĂŞncia da fĂŠ, tanto mais no atual momento. SĂŁo as Marcas da MissĂŁo: 1) Proclamar, por palavra e exemplo, as boas-novas do Reino de Deus, que reconciliam, salvam e libertam; (QVLQDU EDWL]DU H QXWULU DV SHVVRDV ÂżpLV SDUD DVVLP FRQVWUXLU FRPXQLdades de fĂŠ, que acolhem, celebram e transformam; 3) Responder Ă s necessidades humanas com amor, servindo a Cristo em cada pessoa e vivendo a solidariedade com as pessoas pobres e necessitadas; 7UDQVIRUPDU DV HVWUXWXUDV LQMXVWDV GD VRFLHGDGH GHVDÂżDQGR WRGD sorte de violĂŞncia, respeitando a dignidade de toda pessoa humana e buscando a paz e a reconciliação; 5) Lutar para salvaguardar a integridade da criação, preservar e renovar a vida em nosso planeta. A comunhĂŁo anglicana entende que ĂŠ dever de todas as pessoas cristĂŁs SURFODPDU H VHUYLU H HVVDV PDUFDV VmR RV SDUkPHWURV TXH GHYHP JXLDU DV açþes cristĂŁs no mundo. Se queremos anunciar as boas-novas, o Evangelho, atravĂŠs do serviço, precisaremos agir como profetas, pois o anĂşncio das boas-novas requer a denĂşncia de todas as formas de opressĂŁo, discriminação e violĂŞncias.

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A vivĂŞncia da fĂŠ cristĂŁ nos coloca em confronto com as pessoas que oprimem e exploram. É nosso dever proclamar a liberdade. O ecumenismo pode ser considerado o caminho pelo qual essa proclamação torna-se possĂ­vel. Graças a Deus, a vivĂŞncia do ecumenismo ao longo do tempo possibilitou que muitas barreiras fossem transpostas na vivĂŞncia de uma fĂŠ transformadora, o CEBI ĂŠ um lindo exemplo disso. Mas outras tantas barreiras ainda precisam ser transpostas nesta sociedade que diariamente cultua a morte, valoriza as açþes violentas e segrega as pessoas por seu gĂŞnero, classe social, orientação sexual, etnia ou regiĂŁo onde vivem. Que neste tempo de sombras e angĂşstias, Deus fortaleça nossas açþes ecumĂŞnicas e “que Deus te abençoe com o inconformismo diante de respostas fĂĄceis, PHLDV YHUGDGHV H UHODo}HV VXSHUÂżFLDLV SDUD TXH WX SRVVDV WHVWHPXQKDU D Ip GH teu coração. Que Deus te abençoe com a indignação diante da injustiça, da opressĂŁo e da violĂŞncia, para que tu possas trabalhar a favor da justiça, da igualdade e da paz. Que Deus te abençoe com lĂĄgrimas pelas pessoas que sofrem vĂ­timas da dor, rejeição, fome e guerra, para que tu possas estender tua mĂŁo para consolar e transformar a sua dor em alegria. E que Deus te abençoe com a insensatez de pensar que podes fazer alguma diferença neste mundo, para que faças algo que outras pessoas julgam nĂŁo ser possĂ­vel. AmĂŠm.â€?18

18 Texto de uma antiga bênção celta.

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E assim a leitura popular chegou a Roraima, no chĂŁo amazĂ´nico Ivone Salucci19 Nilva BaraĂşna20 Rui BaraĂşna21

(P ÂżQDO GRV DQRV PDLV SUHFLVDPHQWH QR DQR GH R CEBIRegiĂŁo Norte (ParĂĄ) chega ao Estado Roraima, atravĂŠs da Ir. Tea Frigerio, para ministrar um curso de Leitura Popular da BĂ­blia, a convite do Pe. Nilvo e Pe. VitĂŠlio, tendo como pĂşblico-alvo os agricultores dos municĂ­pios de SĂŁo JoĂŁo da Baliza e SĂŁo Luiz do AnauĂĄ. Com repercussĂŁo positiva da LPB, motivou, a entĂŁo coordenadora diocesana de pastoral, Ir. Maria Costa, no ano de 1989, a articular em nĂ­vel diocesano a vinda da assessora do ParĂĄ, Ir. Tea, com o objetivo de capacitar na Leitura Popular da BĂ­blia assessores e assessoras locais, as lideranças de pastorais para que levassem Ă frente a ação de transformar a realidade local com essa nova metodologia. E foi assim que animados e animadas pela fĂŠ, que esse novo jeito de ler H UHĂ€HWLU %tEOLD YHLR UHYHODU H FODUHDU R TXH HVWi SRU WUiV GD 3DODYUD UHXQLQGR um grupo perseverante de pessoas que manteve e mantĂŠm viva a fĂŠ, a coragem

19 CEBI Boa Vista/RR. 20 CEBI Boa Vista/RR. 21 CEBI Boa Vista/RR.

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e a esperança de transformar a sociedade, a partir da Palavra de Deus a partir do chĂŁo que pisa. Fazendo memĂłria da Leitura Popular da BĂ­blia em Roraima, destacamos grandes avanços realizados por leigas/os e congregaçþes religiosas que tinham vontade de dar novo rosto a Diocese de Roraima: • A primeira Escola BĂ­blica que funcionou na Casa JoĂŁo XXIII, capacitando vĂĄrias lideranças e setores da Diocese na Leitura Popular da BĂ­blia, para atuarem nas comunidades; • (QFRQWURV HP IDPtOLD OHYDQGR D UHĂ€H[mR FRQWH[WXDOL]DGD VREUH RV direitos humanos Ă luz da Palavra de Deus, sob a responsabilidade do Centro de Defesa dos Direitos Humanos – CDDH; • A inserção de lideranças cebianas nos vĂĄrios conselhos de polĂ­ticas pĂşblicas, tais como: Conselho Municipal e Estadual dos Direitos da Criança e Adolescente, do FĂłrum Estadual das Crianças e Adolescentes. Essa participação se tornou importante nos Conselhos PariWiULRV WHQGR HP YLVWD D GHIHVD GH YDORUHV FULVWmRV D ÂżP GH ID]HU R enfrentamento ante os problemas relacionados aos direitos humanos e prioritariamente da criança e do adolescente, nas denĂşncias de abuso e maus-tratos. • Participação de assessores e assessoras do CEBI na elaboração do conjunto de lei que criaram e normatizaram o Estado de Roraima. Com a chegada dos franciscanos em 1992, o grupo do CEBI ÂżFRX PDLV fortalecido, com a experiĂŞncia que estes traziam na Leitura Popular da BĂ­blia. Em 1994, jĂĄ fazia sete anos que Ir. Tea vinha ao Estado de Roraima para assessorar cursos de Leitura Popular da BĂ­blia, quando propĂ´s ao grupo que este se estruturasse como NĂşcleo do CEBI para multiplicar essa metodologia Palavra na Vida, pois nĂŁo fazia mais sentido um pequeno grupo receber formação bĂ­blica e guardar para si e nĂŁo compartilhar seu saber com as comunidades. A partir GHVVH GHVDÂżR VXUJH HP D SULPHLUD (VFROD GH )p H 3ROtWLFD GD 'LRFHVH GH

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Roraima. Depois de algum tempo a escola localizada no centro da cidade se expandiu para os bairros, bem como para outros municĂ­pios do Estado. 2XWUR GHVDÂżR IRL D FULDomR GR Âł9LUD 9ROWD´ XP MRUQDO DOWHUQDWLYR Ă mĂ­dia local. Esse jornal circulou por mais de dez anos com matĂŠrias de LQWHUHVVHV H UHOHYkQFLD VRFLDO PXLWDV GHODV HVFULWDV SRU DVVHVVRUHV H DVVHVsoras do CEBI, fazendo frente Ă s matĂŠrias sensacionalistas, devido Ă opção preferencial da Igreja de Roraima pelos mais pobres, em especial os povos originĂĄrios. A Escola de FĂŠ e PolĂ­tica foi um perĂ­odo excepcional, porque provocou um despertar da leitura bĂ­blica contextualizada, e com isso uma grande demanda por assessorias da Leitura Popular da BĂ­blia na capital e no interior. A partir de entĂŁo, houve a necessidade de dividir o grupo de dois em dois (Lc 10,1), para atender as solicitaçþes que vinham de Norte a Sul do Estado: Pacaraima, AmajarĂ­, Alto Alegre, MucajaĂ­, CaracaraĂ­, SĂŁo JoĂŁo da Baliza, SĂŁo /XL] GR $QDXi 5RUDLPD &DQWi %RQÂżP 9LOD ,UDFHPD (P %RD 9LVWD PDLV GH 80% das comunidades tiveram acesso Ă Leitura Popular da BĂ­blia. Vale ressaltar que nesse perĂ­odo fazia parte do CEBI local a Igreja Luterana no Brasil, que de seus atravĂŠs de seus pastores, levaram contribuiçþes VLJQLÂżFDWLYDV QD HYDQJHOL]DomR H QD &RPLVVmR 3DVWRUDO GD 7HUUD (CPT). O CEBI Roraima teve e tem uma relevante participação na formação bĂ­blica nas comunidades indĂ­genas de: Wapoon, Jacamin, Mutamba, Aakan, Darora, Vista Alegre, Campo Alegre, Truaru, SĂŁo Francisco, no que se refere Ă valorização da terra, da cultura, da religiĂŁo, e de sua autonomia. Durante esses trinta e um anos, o CEBI-Roraima vem sendo parceiro nas assessorias das Campanhas da Fraternidade, nos Gritos dos ExcluĂ­dos e na Escola de Teologia da Diocese de Roraima, contribuindo para o avanço QD PDQHLUD GH HQWHQGHU D YLGD QRV VHXV GLYHUVRV DVSHFWRV D SDUWLU GD UHĂ€H[mR FĂŠ e Vida, o que desperta nas pessoas interesse na participação em setores da sociedade que sĂŁo importantes, construindo novos paradigmas, com valores que proporcionem justiça social Ă luz do Evangelho.

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SĂ­nodo: QRYRV FDPLQKRV QRV GHVDÂżDQGR Alzira Fritzen22 Anne Bribosia22 Diego Aguiar22 Ieda Bezerra e Nilda Nair22

Ao longo de sua existĂŞncia, o Centro de Estudos BĂ­blicos (CEBI) tem feito seu itinerĂĄrio pautado na busca de novos caminhos... AtravĂŠs de jeitos novos de ler a Palavra, fazendo jus Ă realidade e Ă s necessidades do povo, com atenção especial aos mais pobres e marginalizados/as de nossa sociedade. Esses novos caminhos foram sendo tecidos no seio das comunidades que foram se encontrando para partilhar a vida, a Palavra, suas dores e angĂşstias, mas tambĂŠm seus sonhos e esperanças de uma sociedade justa e preocupada com a justiça social. A Leitura Popular da BĂ­blia foi pouco a pouco alcançando mais e mais comunidades, fazendo-se presente no chĂŁo amazĂ´nico. 3DOFR GH GLYHUVRV FRQĂ€LWRV H GH PXLWD UHVLVWrQFLD D $PD]{QLD WHP VLGR alvo de interesses diversos que tĂŞm explorado sua biodiversidade, povos e culturas. Este imenso territĂłrio, por meio das suas comunidades eclesiais, mulheres, juventudes, movimentos sociais, etc., que buscavam caminhos de

22 CEBI AM.

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força para suas lutas, foram acolhendo a novidade desse jeito novo de rezar a Palavra de Deus e confrontå-la com as suas realidades cotidianas, enxergando a gratuidade e a misericórdia que Deus derramou abundantemente nesta região cheia de vida. Foi assim que o CEBI Amazonas foi nascendo! As comunidades se organizando, os bons ventos do Concílio Vaticano II, bem como das Conferências Episcopais Latino-Americanas (com especial atenção a Medellín, Puebla e Aparecida), foram soprando novos ares de se compreender e ser Igreja, reforçando o compromisso com a espiritualidade, a vida e a evangelização. Principalmente preocupando-se com a inculturação e interculturalidade, enxergando a Criação como Casa Comum a ser cuidada e defendida. Enxergar nesta região as sementes do Verbo que jå se fazem presentes na vida dos povos indígenas, ribeirinhos/as, extrativistas, pescadores/ as, quilombolas, etc. 'HVGH R ¿QDO GD GpFDGD GH H IRUWDOHFHQGR VH QR LQtFLR GRV DQRV 1990), o CEBI Amazonas tem dinamizado suas atividades no sentido de cumprir sua missão: oferecer uma leitura bíblica menos fundamentalista e mais aberta à realidade e à vida das pessoas; avançar no trabalho ecumênico e em diålogo com as diversas populaçþes que compþem o chão amazônico; reconhecer o novo que advÊm da luta e do protagonismo das mulheres que gestam novas perspectivas na dimensão do nutrir e cuidar da vida (contribuição da leitura feminista de Bíblia); a formação de comunidades que vivenciam a Palavra e uma pastoral de conjunto e propiciar a todos e todas um novo jeito de ler a %tEOLD QD VXSHUDomR GDV LQWROHUkQFLDV H IXQGDPHQWDOLVPRV Nos dias atuais, a proposta do papa Francisco em convocar um Sínodo para a Amazônia nos interpela a reforçar o compromisso com a defesa da vida em busca de uma Ecologia Integral. Superar a dicotomia ambientalsocial e buscar novos caminhos que nos ajudem a reconhecer que tudo estå interligado. Neste sentido, surgem mais questþes que respostas. São novos camiQKRV TXH YmR VH DSUHVHQWDQGR QRV GHVD¿DQGR DQLPDQGR H IRUWDOHFHQGR 2

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que nos interpela o Sínodo para a Amazônia no sentido de dinamizar uma Leitura Bíblica pautada na Ecologia Integral? O Sínodo se apresenta como um kairós que resgata a necessidade de novas leituras da Palavra de Deus, na Criação, na Bíblia e na Vida!

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9LYHPRV XP NDLUyV 2 WHPSR FURQROyJLFR D GH RXWXEUR GH GDWD HP TXH VH UHDOL]D R 6tQRGR GD $PD]{QLD WRUQD VH XP WHPSR NDLUROyJLFR SHOD LUUXSomR QHOH GD $PD]{QLD FRPR QRYR VXMHLWR KLVWyULFR ³(VWH QRYR VXMHLWR TXH QmR IRL FRQVLGHUDGR VXILFLHQWHPHQWH QR FRQWH[WR QDFLRQDO RX PXQGLDO VHTXHU QD YLGD GD ,JUHMD DJRUD FRQVWLWXL XP LQWHUORFXWRU SULYLOHJLDGR ´ ,/ Q

$ $PD]{QLD &DVD &RPXP SRYRV RULJLQiULRV TXLORPERODV DPD]{QLGDV VmR RV 6XMHLWRV +LVWyULFRV GHVWH 319 (6&87$5 2 ',9,12 48( (0$1$ '$ $0$=Ð1,$ ³7LUD DV VDQGiOLDV GRV WHXV SpV SRUTXH R OXJDU RQGH WX HVWiV p VROR VDJUDGR´ ([ 1R PHLR GD VDUoD DUGHQGR HP FKDPDV 0RLVpV HVFXWRX D YR] 'LYLQD TXH OKH UHYHODYD SLVDU HP VROR VDJUDGR $ $PD]{QLD ID] RXYLU VXD YR] H QRV UHYHOD VHX VROR VDJUDGR (VFXWDU p R ILR FRORULGR TXH ERUGD WHFH H FRVWXUD DV UHIOH[}HV EtEOLFDV WHROyJLFDV VRFLDLV DSUHVHQWDomR GR 6tQRGR H[SHULrQFLDV H WHVWHPXQKRV GD SUHVHQoD GD 3DODYUD GR &(%, QD $PD]{QLD TXH FRPS}HP HVWD SURGXomR XP FRQYLWH j FRQYHUVmR $V DXWRUDV H RV DXWRUHV TXH HPSUHVWDUDP VXD YR] j $PD]{QLD QRV FRQYLGDP D WLUDU DV VDQGiOLDV DR SLVDU QHVWH VROR VDJUDGR DR HVFXWDU R 'LYLQR TXH HPDQD H WUDQVERUGD HP SOHQLWXGH GH 9,'$ (VFXWDU H SHUFRUUHU R FDPLQKR GD FRQYHUVmR HYDQJpOLFD GD FRQYHUVmR HFROyJLFD GD FRQYHUVmR VLQRGDO %RD HVFXWD

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