Livro "Vidas diferentes, casas iguais"

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VIDAS DIFERENTES, CASAS IGUAIS



Giana Andonini Tatiana Ikeda Vanessa Hirata

VIDAS DIFERENTES, CASAS IGUAIS


Capa e diagramação: Rodrigo Romani Revisão: Giana Andonini, Tatiana Ikeda e Vanessa Hirata

ANDONINI, Giana; HIRATA, Vanessa; IKEDA, Tatiana. 2010 Vidas diferentes, casas iguais – 1ª ed./ Giana Andonini, Tatiana Ikeda e Vanessa Hirata. – Curitiba, PR: 2010.


“Livros não mudam o mundo, quem muda o mundo são as pessoas. Os livros só mudam as pessoas” Mário Quintana



SUMÁRIO Prefácio

A vila que ninguém vê - José Carlos Fernandes

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Introdução

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Vila Nossa Senhora da Luz

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A baianinha da vila

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Os tesouros de Seu Ney

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O baixinho da farmácia

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O amor é lindo

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Senhoras e senhores, a Vossa Majestade

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Adalgiza, sinônimo de luta

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Entregador de sonhos

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O guardião do paraíso na terra

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Prefácio

A vila que ninguém vê

M

inha relação com a Vila Nossa Senhora da Luz sempre foi ambí-

gua. Em criança, sabia ser o bairro onde vivia a família de uma tia muito querida. Também era o local em que funcionava a paróquia do frei Miguel Botacin. Seria natural que alguém me levasse até lá, o que nunca aconteceu. Na adolescência, novamente comecei a ouvir falar da vila, mas dessa vez pelo filtro das notícias de jornal. A vila, claro, deixou de ser aquele lugar de nome sagrado – aonde eu só não tinha ido passear por puro acaso – para se tornar um endereço proibitivo, o qual deveria evitar. Foi o que bastou para que se tornasse uma fonte de curiosidade sem fim. Mesmo sem conhecer o bairro, contava a todo mundo que a belíssima atriz Isadora Ribeiro viveu lá. E que as casas tinham um sótão de madeira, numa alusão à arquitetura da imigração. Em nenhuma outra cidade brasileira havia algo igual. De fato. Já adulto, e trabalhando na Gazeta do Povo, pisei na vila pela primeira vez, confirmando se tratar da soma de todas as impressões acumuladas ao longo da vida. A Nossa Senhora da Luz era a divisa imaginária de onde vinha minha tia Alzira; o território místico do frei Miguel; o cenário em que Isadora circulou anônima; o esconderijo de Evinha, a do noticiário.

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Prefácio

Não havia, de fato, nada igual. Com o tempo, outras imagens foram se somando a essas. Conheci o Grupão – a escola municipal cuja planta veio da África. O líder João Marreiro. O Almir da farmácia. E eu mesmo, sem mais nem por quê, fiz a minha pequena história com esse local. Anos atrás, depois de uma reportagem de jornal sobre os 40 anos da vila, uma colega de trabalho, minha conhecida de uma década, levantou-se quando me viu chegar. Disse que queria falar e declarou o que jamais tinha contado a ninguém no serviço: “Eu sou da Vila Nossa Senhora da Luz”. Emocionada, contou que pela primeira vez vira seu bairro ser retratado na imprensa pelo que é, e não pela violência. Por isso, decidira romper o silêncio a que muitos da Luz ainda estão condenados. Sem querer, minha vileira secreta me forçou a um compromisso: Não achar que os lugares, as pessoas e as coisas têm uma única face. Daí meu prazer em ler o livro e o projeto das jornalistas Vanessa Hirata, Tatiana Ikeda e Giana Andonini. Elas viram a vila – a tal da vila diferente das casas iguais. Vão fazer muita gente se levantar e agradecer. José Carlos Fernandes

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Introdução

B

rincando de engenheiro. Se fosse para descrever a Vila Nossa

Senhora da Luz eu ia fazer assim. Quem sabe do que estou falando provavelmente acabou de ter uma sessão nostalgia. Lembrou dos tempos da infância, daqueles bloquinhos de madeira pintados artesanalmente com tijolinhos à vista, em verde, azul e vermelho. Bloquinhos esses que acrescidos de um triângulo vermelho viravam casinhas orgulhosamente construídas por engenheiros mirins. Se você, caro leitor, não conseguiu lembrar desse brinquedo é bem provável que seja por uma questão cronológica. Ou ainda é jovem e não chegou a brincar com isso ou é mais experiente e também estava acostumado com outras brincadeiras. Em consideração a esses leitores, farei outra analogia. Lembra dos tempos da pré-escola, quando a professora pedia para desenhar a casa onde morava? E que, independente de ser de dois ou três andares, com telhado em formato quadrangular, todo mundo desenhava a casa com um quadrado em baixo e um triâgulo em cima? Lembrou? Sim, é aquela casa do imaginário, aquela que não tem erro. Essa mesma, simples e eficiente. É dessa casinha que estou falando. Agora, coloque um monte delas, mais precisamente umas 2.150, lado a lado, e terá quase uma maquete de como era o conjunto habitacional Vila Nossa Senhora da Luz, há 44 anos. São milhares de casas iguais, que guardam em si vidas completamente diferentes. Vidas sempre vividas na vila, vidas parcialmente vividas na vila, vidas tiradas na vila, vidas mal vividas, vidas bem vividas, vidas não nascidas, vidas construídas na vila...

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Introdução

Toda vez que batíamos as palmas na frente dessas casas semi-idênticas fomos surpreendidas por personagens anônimos, a maioria sem ensino superior, que a cada entrevista davam aulas sobre a vila e sobre a vida. Afinal, quem são essas pessoas que moram na Vila Nossa Senhora da Luz? Foi tentando encontrar essa resposta que escrevemos “Vidas diferentes, casas iguais”. Uma antologia de nove textos. O primeiro sobre o conjunto habitacional em si e os demais sobre histórias de vidas de moradores experientes, que moram na vila desde seu comecinho. São oito perfis de vilanos peculiares, ilustrados por oito olhares fotográficos, cada qual em um capítulo próprio. As páginas que seguem te convidam a conhecer um pouco mais sobre a vilana que não perdeu o sotaque arrastado da Bahia, sobre o atleticano fanático que já foi o mais jovem comerciante do local, sobre o farmacêutico mais antigo da vila que ainda está na ativa, sobre o alto astral infinito de uma sofredora, sobre a rainha da vila que nunca perde a majestade, sobre a franzina moradora que se transformava para proteger as árvores da vila, sobre o morador que por um simples gesto fez dos outros também moradores da vila e ainda sobre a história do segurança de Castelo Branco, que fez a guarda do presidente na inauguração da vila e por lá acabou ficando. Foi assim, brincando de engenheiro e de observadoras que voltamos a ser crianças outra vez e viramos jornalistas de verdade. Curiosas em conhecer todo aquele mundo despidas do preconceito bobo de gente grande. E atentas em fazer com que a base do projeto fosse sempre sólida a fim de que as casinhas não desmoronassem chão a baixo. Vanessa Hirata

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Vila Nossa Senhora Por

da

Luz

Vanessa Hirata


Vila Nossa Senhora da Luz

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5°30’19”S 49°19’24”W. 15 km de distância. Foram essas as coor-

denadas que apontaram meu GPS à procura dessa longínqua Vila Nossa Senhora da Luz. Conhecíamos muito pouco do lugar. Quase nada, para sermos sinceras. O tema foi sugerido em uma dessas conversas que os alunos ficam rodeando o professor no fim da aula. Ainda sem um objeto de estudo definido para as monografias, a sugestão não era de todo mal. Nosso tempo era mais que escasso. Vila Nossa Senhora da Luz, professor? Zeca explicou. Convenceu. E das salas de aula fomos parar na vila. Não sem antes, é claro, de dar uma checada no famigerado Google. Na busca on-line, encontrei de tudo um pouco. Boatos de que seria o primeiro conjunto habitacional do Brasil, histórias sobre frei Miguel, notícias envolvendo Evinha do Pó, assassinatos recentes por causa do tráfico... Até a atriz global Isadora Ribeiro veio de lá. Nos zum, zum, zuns ouve-se dizer que o escritor Paulo Leminski e o cantor Amado Batista também já passaram por esses cantos. Histórias, com certeza, não iriam faltar. O próprio conjunto habitacional em si já é um marco da história da habitação, seja a nível federal, estadual e municipal. Em Curitiba, marcou a criação da Cohab na capital, em 1965. A vila mesmo foi inaugurada em novembro do ano seguinte. A data continua sendo uma incógnita. Não se sabe direito se foi no dia 11 ou no

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Vila Nossa Senhora da Luz

dia 13. Independente do dia certo, os moradores sempre fazem a festa pensando na sorte que o suposto dia do azar lhes proporcionou. Já as fontes oficias relembram a cerimônia no dia 11, data em que o presidente da época, Humberto de Alencar Castelo Branco, desembarcou, às 9h40, no Aeroporto Afonso Pena e seguiu direto para a Vila Nossa Senhora da Luz, onde presidiu a solenidade de inauguração do local. Durante a meia hora em que esteve na vila, o presidente descerrou a placa de bronze, discursou ao lado do povo recém-chegado, passeou e ainda visitou uma das casas da vila. A residência escolhida foi a da rua Santo Ulrico, 36. Lar de dona Pasqualina Paula de Lima, hoje já falecida. A casa continua lá, agora sob os cuidados da neta. A confusão da data comemorativa tem explicação. Quando a vila foi inaugurada, já tinha gente morando nela. E muita gente, diga-se de passagem. A família de Pasqualina era apenas uma das mais de 1.500 que foram transportadas de 22 favelas direto para a nova habitação. Vieram de mala e cuia, em 1º de outubro de 1966. A mudança foi rápida, rapidíssima. Por causa disso, a operação de desfavelamento de Curitiba foi denominada de operação mudança. Ivo Arzua, o então prefeito da época, gostava de chamar todo esse processo de “investimento em dignidade”. Considerada uma revolução em urbanismo para o período, a criação da vila marcou o mandato de Arzua. Com uma área inicial de aproximadamente 700 mil metros quadrados de pasto cercado de bosques, o projeto edificaria, em menos de um ano,

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Vila Nossa Senhora da Luz

cerca de 2.150 moradias. Casas simples, pequenas, quase iguais. Uma arquitetura popular, com tijolos à vista e telhados triangulares. Se fosse mais pontudo, era porque tinha sótão, então era do modelo casa grande. Com a parte de baixo feita de alvenaria e a de cima de madeira, o projeto piloto tinha a vantagem de vir com uma planta base expansível, que permitia ao morador mexer na casa ao longo dos anos. Foi o que aconteceu. As famílias cresceram. Vieram as reformas. Surgiram os puxadinhos. E assim quitaram-se as casas, mas o financiamento ainda levaria mais de duas décadas para acabar. É que as prestações não deveriam ultrapassar 20% do orçamento familiar. Afinal, todos os moradores tinham algo em comum: Eram pessoas de baixa renda, umas com muito pouco, outras com um pouquinho mais, algumas com nada... Apesar dos longos e árduos anos pagando os carnezinhos da Cohab, quase ninguém se lembra mais do preço das prestações mensais. Na época era outro dinheiro, outras situações... Um fala em parcelas de 12 cruzados, outra em mil réis. Era baratinho, mas pesava no orçamento. Por falar em dinheiro, a vila foi construída com investimentos vindos de todo canto, da prefeitura, do Banco Nacional de Habitação... Teve até contribuição dos gringos por meio da United States Agency for International Development, a Usaid-Brasil, uma assistência internacional de longo prazo para países em desenvolvimento. Outra semelhança entre esses vizinhos de vila era que a grande maioria deles veio do norte do Estado. Eram migrantes substituídos pela meca-

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Vila Nossa Senhora da Luz

nização das lavouras e motivados pelo sonho de uma vida melhor. Acostumados com os hábitos da roça, demoraram a se adequar à vida urbana. Na vila desde 1968, o próprio frei Miguel Botacin viu, com os olhos que Deus lhe deu, flor plantada em vaso sanitário, porta queimada para servir de lenha, ladrilhos e azulejos arrancados, pois os novos ocupantes estavam acostumados com chão batido. Morreu em 1997, sem ver todas as peripécias desse povo. Deixou saudades, muitas saudades. Mas ainda vive na memória dos moradores, independende de crença ou religião. Hoje, seu nome é visto por todos aqueles que frequentam o Farol do Saber e a creche Frei Miguel, na Vila Nossa Senhora da Luz. Com nome evidentemente católico, a vila (dos esquecidos Pinhais) foi assim denominada em homenagem à padroeira da capital paranaense. Hoje é um dos mais de 80 bairros que formam a Cidade Industrial de Curitiba, a CIC. É quase um bairro independente, com 12 pracinhas e mais uma praça central. Imaginada nos pontos cardeais básicos, norte, sul, leste e oeste, a divisão da vila, era como um mapa mental para a maioria de seus moradores. Com as ruas numéricas ficava mais fácil de se achar em meio aquelas ruelas estreitas e casas igualmente construídas. Os números viraram nomes, para infelicidade dos moradores mais antigos. Acostumados com o velho esquema de praças e travessas, já nem se incomodam em querer decorar esses nomes de ruas complicados.

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Vila Nossa Senhora da Luz

Vilanos com orgulho, dispensam apresentação. Sabem de toda essa história do lugar onde vivem. Conhecem muito bem o lugar onde vivem. É na Vila Nossa Senhora da Luz. Não precisam de nenhuma tecnologia de localização geográfica. Sentem na veia os efeitos dos remédios de Seu Almir da farmácia. Ouvem de longe as risadas de Dona Cida. Veem todos os dias o sorriso peculiar de Seu Israel. Cheiram aliviados o ar puro das árvores protegidas de Adalgiza. Degustam sempre que podem as deliciosas empadas da lanchonete de Dona Elícia. Lá dentro, se identificam, se autoconhecem. Fora da vila, se perdem. Em todos os sentidos.

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vila e seus personagens

Israel Seu Ney Almir

Cida

Leonir

Adalgiza

JoĂŁo

ElĂ­cia

A

Planta geral da vila, acervo IPPUC 21


Foto: ElĂ­cia 22

da

Costa Pereira


A

baianinha da vila Por

Tatiana Ikeda

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A baianinha da vila

P

osso dizer que fiquei encantada ao assistir o depoimento dessa

simpática senhora sobre sua vida dentro e fora da Vila Nossa Senhora da Luz. Diante da câmera ela tinha um jeito tímido, mas de repente, como se esquecesse da presença do cinegrafista, ela se soltava, dava uma risada gostosa e revelava, aos poucos, a verdadeira Dona Elícia. Elícia da Costa Pereira nasceu no dia 22 de agosto de 1933, na Bahia. Foi lá que ela conheceu Antônio, com quem se casou, na igreja, como ela faz questão de frisar, já que em sua vida a religião é fator de extrema importância. “Sou muito religiosa. Vou na missa todo domingo, sou religiosa mesmo”. Depois de um ano de casada, Dona Elícia deixou o calor da Bahia e veio para o Paraná. Trouxe junto toda a família, inclusive seu primeiro filho, que na época tinha apenas seis meses de vida. Sua primeira parada foi no norte do Estado. Só depois veio para Curitiba, onde mora até hoje. Foi apenas aqui que Dona Elícia, já casada no religioso, casou também no civil. “Meu marido ia trabalhar e precisava da certidão de casamento, daí a gente casou ali no Cajuru. Mas, quando eu vim da Bahia, já vim casada”. Ao chegar em Curitiba, Dona Elícia morou em uma pensão, que ficava na rua Comendador Araújo, onde, segundo ela, viviam várias famílias pobres e a vida não era nada fácil, principalmente para uma mãe com três filhos pequenos. “Lá era uma vida dura, o dono da pensão não gostava de criança, brigava muito, ali era um sufoco”, recorda.

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A baianinha da vila

Para conseguir uma casa na Vila Nossa Senhora da Luz, Dona Elícia fez sua inscrição na Cohab, em 1964. “As irmãs da igreja falaram da vila, que ia ter uma vila, que era para a gente fazer inscrição para vir para cá, que era mais para os pobres. A gente foi e fez a inscrição e Deus ajudou, porque deu tudo certo”. Mais uma vez, Deus esteve presente na vida dessa católica devota. Já a chegada na vila, não foi um acontecimento tão feliz, como ela esperava que fosse. “Nossa, foi uma tristeza, né. Chegar numa vila que não tinha água, não tinha luz, não tinha morador nenhum, só a gente, naquele mato, na escuridão. A gente sentiu que estava perdido”, relembra dos dias de dificuldade, que não foram poucos. “Tinha medo, muito medo. Meu marido ia trabalhar, levantava às quatro horas pra ir trabalhar, e eu ficava dentro de casa só com um lampiãozinho aceso. Dava graças a Deus quando o dia amanhecia e o sol saía pra gente ver a luz o dia. É ruim ficar sem luz”. Como se não bastasse, outras adversidades foram sendo descobertas, aos poucos, na vila. “Tinha cobra, eles falavam que tinha cobra, eu morria de medo, né. Ficava em cima da cama com medo de pisar no chão, com medo de vir um escorpião e morder”. Mas, nada disso abalou a fé dessa baiana guerreira, nem mesmo quando correu o risco de ser despejada, junto com sua família, por causa de algumas prestações atrasadas. “Meu marido tinha um patrão muito bom, que emprestou o dinheiro para ele. Ele foi na Cohab, daí pagou aquelas prestação atrasada”. Dona Elícia lembra que foi nessa época que o valor das

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A baianinha da vila

prestações baixou e o prazo para pagar foi prolongado, segundo ela “foi o que aconteceu e deu certo”. - E quando vocês quitaram a casa, Dona Elícia? - Nossa, nós sentimos assim que nós tava no céu, que recebemos uma benção muito grande. Porque eu gosto muito da vila, o único lugar que eu consegui ter a nossa casa mesmo foi aqui na vila, né. Quando ela diz que gosta muito da vila, não há do que duvidar. Afinal, foi ali que ela conheceu pessoas que marcaram muito sua vida, como é o caso do frei Miguel. “Ele batizou todos os meus filhos, vinha na minha casa, benzer minha casa e me deu muito conselho. Eu aprendi muito com o frei Miguel, que era um padre muito bom, muito mesmo. Senti muita falta dele quando ele foi embora, mas a imagem dele está no meu coração”, recorda com saudades. A vila também foi palco de muitos acontecimentos importantes na vida de Dona Elícia. Lá, ela teve cinco filhos, sendo que um deles nasceu em casa mesmo, porque não deu tempo da ambulância chegar. Ela conta que até a parteira chegou tarde, “na hora que eu me senti mal mesmo, que eu vi que não dava tempo de chegar a ambulância, daí chamei a parteira, quando ela chegou o nenê já tava nascendo”. Só depois chegou o médico. “O médico entrou e viu que tava tudo bem. Eu tava bem tranquila lá na minha cama, com meu filho do lado”. Enquanto ela narrava suas histórias, era perceptível o brilho de realização que essa senhora, aparentemente frágil, trazia nos olhos ao relembrar de

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A baianinha da vila

fatos tão marcantes em sua vida. Dona Elícia nunca teve medo de encarar as dificuldades, foi com essa coragem que ela passou por momentos que deixariam qualquer outra mulher com medo. Descobri isso quando ela contou que não avisava seu marido que estava sentindo as contrações do parto. - Mas, você não falou para seu marido? - Não, não falei. Eu era assim. Eu pensava assim, quem vai ganhar o nenê é eu, se eu falar que eu tô com contração para ganhar nenê, meu marido já não vai trabalhar, daí já fica nervoso, não sabe o que fazer. Eu tinha o telefone do médico, qualquer coisa era só ligar. Dona Elícia teve no total 10 filhos, dois deles faleceram antes de sua chegada na vila. Netos? Tem 18, e um “bisnetinho, coisinha mais linda”, conta orgulhosa. A família grande é muito unida, de todos os filhos apenas dois não moram mais na Vila Nossa Senhora da Luz. E o casamento continua firme até hoje. “Vivo muito bem com meu marido, graças a Deus tamo velhinho, mas tamo junto, né. Tenho 51 anos de casada, vai fazer 52 agora no dia 25 de janeiro. Muito tempo, né”. Até hoje, na vila onde mora, Dona Elícia é conhecida como a baiana. Se quiser achar a casa dela é só perguntar onde moram os baianos. “Todo mundo me conhece como baiana. Cadê a baianinha, cadê a baiana? E, continuo sendo a baiana”. Dona Elícia: Mãe, devota, guerreira e baiana. Uma mulher e tanto, que mora logo ali, na Vila Nossa Senhora da Luz.

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A baianinha da vila

ue em q , ano

1965 , em io n ô t e An vila u na Elícia hego c l a s o ca

Elícia com o marido Antônio, na primeira comunhão do filho Marco Antônio Pereira, em 1977

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A baianinha da vila

a riléia d ira, Ma e v li o r O t a qu line eita: A Jesus, a a dir ria de r a a M p a ia ecíl uerd cia e C Da esq ia ira, Elí e r a famíl e d P lheres Costa u m e es d geraçõ

Família de El ícia reunida em aniversá atrás a port rio em 1988 a original da , casa

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Foto: Ney Ganem 30


Os tesouros de Seu Ney Por

Giana Andonini

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Os tesouros de Seu Ney

N

o cofre antigo e pesado de Seu Ney ficam seus tesouros. Entre

muitos papéis antigos, moram lá a coleção de bandeiras do Atlético Paraná Clube, todas dos anos que o time foi campeão. Somente uma ficou fora, para ser pendurada na janela de casa. As mais especiais vão para o cofre a sete chaves, que de tão pesado e seguro acabou ficando na parte de baixo da casa que hoje é alugada. O cofre virou mesinha para a inquilina. Junto com as bandeiras do timão estão as escriturinhas de suas propriedades na Vila Nossa Senhora da Luz. Além da sua casa, que é majestosa para os padrões da vila, ele investiu em mais dois imóveis para trazer tranquilidade. Tranquilidade que hoje Seu Ney traduz em uma soneca religiosa todos os dias após o almoço. E que merecidas sonecas após tantos anos de trabalho. Na vila há mais de 42 anos, Seu Ney foi um de seus principais comerciantes. Veio de uma família de comerciantes, com pai comerciante e irmãos comerciantes. Com uma descendência libanesa correndo nas veias, Seu Ney é um característico Ghanem. Os Ghanem foram os primeiros comerciantes da Vila Nossa Senhora da Luz e os primeiros a salvarem os almoços de domingo com visita inesperada dos moradores da vila. Se era preciso fiado, fazia-se fiado. Se era preciso fazer olhos rasos para os pequenos furtos de iogurte e bananas que as crianças famintas da vila faziam, faziam-se olhos rasos. Eram os cinco ou 10% de prejuízo que Seu Ney já previa na sua contabilidade, todos os meses.

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Os tesouros de Seu Ney

Os números sempre fizeram parte da vida de Seu Ney. Contabilidade é a sua especialidade. Havia se formado contador em São Mateus, cidade em que nasceu e cresceu. Depois, já jovem, cansou da vida da cidade pequena e resolveu se mudar para a capital, perto da família. Longe, como ele mesmo diz, papai e mamãe faziam falta. Veio para Curitiba, cheio de expectativas. Ir à praia todos os finais de semana, pois era pertinho, bem pertinho. Foi morar na vila junto com a família e abriu a sua panificadora, que depois virou mercearia. Com 21 anos, era o mais jovem de todos os comerciantes do local. Em pouco tempo, a vida dura do comércio aumentou a distância entre a capital e o litoral. E lá se foi o sonho de Seu Ney de ir caminhar na praia nos finais de semana. Na mercearia, exercitava a antiga profissão de contador todos os dias. Hoje, em qualquer lugar que vai, ele garante que faz as contas mais rápido que o caixa, sempre. Culpa das calculadoras de hoje em dia e do legado do seu pai, que mesmo tendo só o primário, sabia fazer contas melhor que qualquer formado. Durante mais de 30 anos, a mercearia foi bem, e o esforço de Seu Ney de acordar todos os dias às 4h30 ia se traduzindo em saldos positivos. Formava-se fila no armazém todos os dias, perto das seis da tarde, que era quando o trem chegava trazendo as pessoas do centro após o dia de trabalho. Se às vezes as coisas apertavam e algo ameaçava as vendas, Seu Ney dava um jeito. Fazia o cliente comprar o café junto com o açúcar, mesmo que não fosse o café do gosto da patroa. “Ah, mas eu comprei casado, então

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Os tesouros de Seu Ney

o senhor também vai ter que levar casado. É dois quilos de açúcar com meio quilo de café, ou não é”. Era o jeito. Mas as vendas em geral iam bem. Tão bem, mas tão bem que um dia ele teve uma grande idéia. A mulher perguntou o porquê e ele, mesmo sendo alguém de raciocínio lógico e matemático, não soube responder. Porque sim, ué. Foi lá e fez. Era Natal, e Seu Ney estava feliz. Um ano bom e de vendas boas havia se passado. Uma simples caixa de fósforos custava 100 cruzeiros. E então, Seu Ney foi lá e fez um leque de dinheiro. O leque era grande, cheio de notas novinhas e bonitas, que ele resolveu registrar numa foto que guarda até hoje. Cruzeiro novinho assim que pega e está estalando. - Mas pra quê homem? - Porque deu vontade, ué. Durante muitos anos o armazém deu lucro e Seu Ney, que gosta de números, complementava um pouco mais o trabalho fazendo o imposto de renda para os vizinhos e cobrando baratinho. Levava a antiga máquina de escrever para o armazém e aproveitava quando o movimento tava fraco para exercer a profissão de contador. Foi com o tempo ficando conhecido entre os vizinhos e logo, entre a vila toda. Essa popularidade deixa a mulher brava de vez em quando. Se é para buscar um pão para o café, ele volta para a janta. Demora o dobro de tempo. E não é porque vai devagarzinho, porque ele garante que, tempos

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Os tesouros de Seu Ney

atrás, dava a volta na vila toda em trinta minutos. É porque tem que ir parando para conversar. Ossos do ofício e da sua personalidade. Era comum ele estar em casa e ouvir da janela: “Ô Seu Ney, me vê um mapa? Ô Seu Ney, cadê as balas?”. A fama do mapa vinha porque ele tirava cópias do mapa da vila para dar aos seus fornecedores. E logo ficou famoso, passando a entregar os mapinhas para quem precisasse também. De ruas estreitinhas, com casas parecidas ou semi-iguais, as travessas da Vila Nossa Senhora da Luz enganavam até os entregadores mais experientes. E as balas, o que eram Seu Ney? Perguntei tentando descobrir se o gesto altruísta era mais uma das vontades sem explicação daquele simpático senhor. - As balas a gente jogava pela janela. Todo final de ano, Seu Ney e a família se reuniam na janela do sobrado e faziam voar balinhas sortidas para os moradores da vila. Ele e a mulher na janela da sala e os dois filhos e a filha nas janelas dos quartos. Eram mais de 20 quilos de bala, às vezes até 30, que ele comprava a preço de custo e jogava assim, sem explicação, fazendo a felicidade da criançada que passava pela rua. A fama de Seu Ney fez ele se sentir cada vez mais parte da vila, não se imaginando hoje em nenhum outro lugar que não fosse ali. Parafraseando o falecido político Aníbal Cury, ele revelou o que talvez seja o seu maior tesouro, mais dos que as faixas do time campeão, mais do que as escrituras

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Os tesouros de Seu Ney

de todas as suas propriedades, mais do que as lembranças de um balcão que lhe trouxe alegria e sustento. “Perguntaram para ele uma vez porque é que ele não se candidatava a deputado federal. Sabe o que ele disse? Porque lá ninguém me conhece, lá eu sou mais um. E é por isso. Por isso que eu não saio daqui. Porque aqui eu seu quem eu sou”.

1975 osa, em R ia r a eM de Ney samento

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Os tesouros de Seu Ney

Lequ e do C de dinhe ruze iro f eito iro

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1970 m, em

ĂŠ u armaz o em se d n a lh a ab

Ney tr

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Foto: Almir Souza Fonseca 38


O baixinho da farmรกcia Por

Giana Andonini

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O baixinho da farmácia

U

m baixinho falador. Como gostava de falar em público, Seu Al-

mir sempre deu um jeito de, em seus trabalhos, desenvolver sua habilidade de orador. Quando trabalhou nas lojas Pernambucanas, era o dono do microfone responsável por divulgar as ofertas pelas calçadas no centro de Curitiba. Anos mais tarde, subia nos palanques para defender sua candidatura como vereador. Com 67 anos, Almir Souza Fonseca sempre foi comerciante. Acha que o dom para o comércio veio da descendência turca que não tem, mas que os amigos, e ele próprio, acham que deveria ter. Vindo de Bom Sucesso, Seu Almir chegou em Curitiba com a família para morar na Vila Nossa Senhora da Luz em 1969. O primeiro emprego na capital foi nas Casas Pernambucanas. Depois virou empreendedor e abriu o seu próprio negócio: Uma farmácia. A farmácia de Seu Almir fica na antiga rua do comércio norte. É a drogaria mais antiga da vila, e por isso, cheia de memórias. O que mais se vendia era remédio para piolho, diarreia e penicilina. “Penicilina curava tudo, né”, comenta Seu Almir, que além de dono da farmácia, se tornava meio médico dos moradores da vila. A sua curiosidade e dom para a conversa tinham possibilitado a ele aprender um pouco da medicina, quando trabalhara na farmácia Nossa Senhora de Aparecida, em Bom Sucesso, interior do Paraná. A farmácia era próxima a um hospital e ele ficava rodeando os médicos para ir aprendendo aos pouquinhos.

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O baixinho da farmácia

Mas o medo de errar na dose o acompanhava mesmo assim. Às vezes alguns pacientes-clientes da farmácia desmaiavam com as injeções. Seu Almir abaixava a cabeça do cliente e ele melhorava. “Graças a Deus”, diz ele com um sorriso aliviado, anos depois. O medo vinha mais de um aperto que havia passado uma vez com uma de suas parentes. Ela estava com uma infecção na garganta. A receita? Uma aplicação de Cataflan no músculo, que, por descuido, acabou indo para a veia. Quando tirou a agulha e percebeu o engano, Seu Almir se desesperou. Correu para o hospital. No fim, tudo acabou em dois dias de coceira apenas. Mas uma freguesa a menos. As memórias da farmácia de Seu Almir também estão registradas em um álbum. Um álbum de memórias pitoresco como ele mesmo diz. No lugar de fotografias, Seu Almir guardou as receitas que chegavam até ele no balcão. Nomes de remédios errados, pedidos de fiado por escrito e bilhetes, muitos bilhetes, contando o acontecido da doença e pedindo por socorro. Um pedido de esparadrapo está escrito a carvão em um pedaço de papel de pão. Nos bilhetes, além da descrição da doença, está a aclamação por ajuda. Memórias que ele exibe com orgulho e com risadas. Para conquistar os clientes, Seu Almir correspondia aos bilhetes, fazia fiado, e brincava com o bom humor. Certa vez, para evitar que mais atrasos no pagamento do caderninho de fiado ocorresse, ele mandou fazer bloquinhos de papel com uma mensagem: “Dor de barriga não dá uma vez só”. Com tom de exclamação, era o jeito que Seu Almir havia achado para dizer para a turma: Pague seu fiado! E sem jeito de não pagar, a turma ria, e a estratégia de marketing do simpático baixinho funcionava.

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O baixinho da farmácia

Os anos de farmácia renderam muitas histórias engraçadas para a sua coleção de memórias. Certo dia chegou na farmácia um marido aflito, em busca de uma remédio para ajudar a sua mulher. - Ela está com uma dor formidável, Seu Almir, preciso de ajuda. - Uma dor formidável? Então deixa ela pô, deve estar gostando. Era assim, agitada, que a farmácia se tornava um ótimo ambiente para o acontecimento de fatos pitorescos, como o próprio Seu Almir define. Mesmo patrão, o baixinho está sempre na frente do balcão. Ele tem gosto pelo social e ficava pensando sempre em formas de reunir todos. Há 30 anos, organizou um time da farmácia para jogar nos campeonatos de futebol da vila. Fez do nome do time um jogral do seu nome, Miral. Em meio aos outros times da vila, Ouro Negro, Grêmio Central Leste e Primeiro de Maio, os meninos do Miral treinavam na praça oito da vila, com uniforme e esperança de ganhar o campeonato um dia. Depois do Miral, um dos sonhos de Seu Almir era fazer uma copa da vila. Ia se chamar Copa Miral e teria o patrocínio da farmácia. Era um de seus projetos como político do lugar. O projeto não deu certo. Assim como as candidaturas. Havia tentado por duas vezes se eleger como vereador, mas nem a simpatia nem o dom para a oratória dariam ao Seu Almir a alegria de ser político. Nessa época, de organização de seus próprios comícios, ele fazia favores, e tentava, incessantemente, ter seu espaço na política. Hoje, 35 anos mais tarde, o simpático baixinho carrega uma memória alegre do que não

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O baixinho da farmácia

aconteceu e de como teria sido sua vida se tivesse acontecido. Continua ajudando a diminuir a dor do povo da vila. E segue, no dia a dia de sua farmácia, o antigo slogan de sua campanha para vereador: “Juntos venceremos!”.

Álbum de receitas farmacêuticas engraçadas, colecionadas por Almir desde 1970

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O baixinho da farmรกcia

os da

tig ais an es m t e h il os b Um d Almir รฃo de รง cole

Almir e time de futebol Miral, em 1974

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O baixinho da farmรกcia

Saul R aiz, Alm ir e Ne em 19 y Brag 76 a,

em ca mpa

nha pa ra ver ead

or,

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Foto: Maria Aparecida 46

dos

Santos Carneiro


O amor ĂŠ lindo Por

Giana Andonini

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O amor é lindo

“O

amor é lindo, né”, disse Dona Cida, hoje já viúva e com sau-

dades do seu grande amor. Dona Cida teve várias demonstrações em sua vida de como o amor ao próximo não era tão lindo assim. Quando pequena, pulou de casa em casa, pois não pôde ser criada pela mãe. Não guarda mágoas, ela diz, “ela só não pôde”. Viveu em condições de escrava numa das casas. Na outra, teve que bater em uma das patroas que não soube respeitar as simples diferenças da sua cor. Não passou fome porque aprendeu a pedir na rua. - Não ia passar fome, né. Depois da vida mais engrenada, perdeu três dos seus quatro filhos. Um bebê com 11 meses, outro que nem esperou conhecer o mundo e uma menininha também bebê, que havia nascido sem cérebro. Mesmo com as dificuldades, Dona Cida sorri. Sorria e ia ao bailes se divertir. Na época de solteira, chegou a ter um dos maiores dilemas da vida. Eram 200 reais. O preço exato e economizado para pagar a sua fantasia para o desfile no carnaval de Florianópolis também era o preço da primeira parcela de um financiamento de 25 anos para comprar uma casa da Cohab na Vila Nossa Senhora da Luz, que fica na CIC, em Curitiba. A sua escola tiraria o primeiro lugar. Ela era solteira mesmo, morava em qualquer lugar. Mas a patroa não deixou. - Cida, um dia os carnavais acabam. E emprestou dinheiro a ela, deixando Cida ir para Florianópolis e fi-

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O amor é lindo

cando com a casa garantida. Dona Cida não lembra se a sua escola tirou o primeiro lugar, mas sabe que a casa foi o seu melhor bem adquirido. Pouco tempo depois, a casa ia lhe garantir um marido. Ela era um bom partido. Tinha casa, emprego no serviço público e carro. Era independente, trabalhadora e bonita. Com um sorriso largo que até hoje garante um sorriso recíproco de qualquer pessoa que a conhece, ela tinha todo o potencial para arranjar noivo em toda esquina, né. E assim foi. Casou cedo e, por anos, o marido foi companheiro. Dela e de outras mulheres. “Mas Deus nunca manda mais do que você aguenta, minha filha”. Passaram-se 12 anos até que um dia, Dona Cida, com olhar de quem entende as coisas da vida, sentou para conversar com ele, com calma e dor no coração. - E se a gente se separasse, você conhecesse alguém assim e fosse morar com ela? Aí eu seria feliz. Seria mesmo. Gosta de dizer que tem um espírito evoluído e que não há motivo no mundo para guardar mágoas de alguém. Dois anos depois ela iria finalmente descobrir como o amor é lindo. Encontrou ele num baile, em Guarapuava, e pensou na hora: “Ah se ele parasse de beber, eu casava com esse homem”. Dito e feito. Ele parou, se mudou para Curitiba, e o casamento aconteceu. Foram felizes juntos e Dona Cida começou a viver novamente. Ela tinha agora um companheiro não só para os bailes, mas para a reforma da casa e para a criação do filho. Aos domingos, chegava em casa

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O amor é lindo

da missa e encontrava o almoço pronto com uma rosa e um bilhetinho na mesa: “Eu te amo”. Para ela, a vida tinha começado com ele. O companheiro se foi 17 anos depois. Com saudade, Dona Cida, que é católica e gosta de ir aos centros espíritas de vez quando, afirma: - Se fosse para ele voltar no mundo de novo, eu casava novamente. É, o amor é mesmo lindo, Dona Cida.

Casamento de Cida e Joel de Melo, em 1965

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O amor ĂŠ lindo

Casam

ento d e Cida e Paulo Carne ir

o, em 1986

em 1974 tal de casa, ilino no quin qu in de ho Cida e fil

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Foto: Leonir Lucinda 52

dos

Santos


Senhoras e senhores, a Vossa Majestade Por

Vanessa Hirata

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Senhoras e senhores, a Vossa Majestade

O

primeiro reinado começou no ano de 1983, quando Leonir Lu-

cinda dos Santos foi escolhida para ser a rainha da Vila Nossa Senhora da Luz, na Cidade Industrial de Curitiba (CIC). O segundo reinado foi em 1992, quando Leonir foi eleita novamente rainha, dessa vez pela regional do Pinheirinho. O terceiro viria sete anos depois, em 1999, quando foi coroada pela escola de samba Rancho das Flores. Isso sem contar as vezes em que a Vossa Majestade foi reeleita. Hoje, com 75 primaveras, Leonir é rainha de três reinados e matriarca de uma vasta família. A alteza possui quatro gerações de herdeiros. São quatro filhos, três de nomes compostos por escolha de Leonir – Manuel Henrique, Maria Tereza e Isabel Cristina – e a caçula Noemi, a única cujo nome foi escolhido pelo marido. A árvore genealógica tem continuidade com os 12 netos, os 13 bisnetos e os quatro tataranetos, sendo o filho mais velho e uma das netas já falecidos. Como não poderia ser diferente, Leonir foi a primogênita de nove filhos de Theodorico Júlio Lucinda, funcionário do engenho de erva-mate Xavier de Miranda e Guilhermina Franco, do lar. Concebida aos 19 dias de junho de 1934, em Curitiba, na rua Brigadeiro Franco, entre a Comendador Araújo e a Vicente Machado, a tri-rainha carrega em seu R.G. a desorganização dos cartórios da época. Tempos depois de seu nascimento, o pai, que, provavelmente, tinha tomado umas e outras, registrou a filha e outros dois filhos em datas erradas. O aniversário passou a ser dia 10 de junho. Quando casou, aos 17 anos, teve

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Senhoras e senhores, a Vossa Majestade

sua data de nascimento novamente trocada. Dessa vez para 10 de julho, que acabou ficando. A confusão não parou por aí. A Vossa Majestade também teve o nome mudado. Era pra ser Leonilda, como está na certidão de batismo, mas registraram Leonir mesmo. Alguns a chamam de Leona, outros fazem reverência e ela atende por “rainha da vila”. A vó, de certa forma, brinca, a chamava pelo nome correto: “Vem cá, Nirda”. Vai ver foi dela que a rainha herdou o “r” mais puxado. Ao contrário do que aprendemos em livros de história, essa alteza não nasceu em berço de ouro. A infância “foi sofrida e legal ao mesmo tempo”. Gostava é de ficar pendurada na beira do bonde. E “muito cabrita”, quando enjoava do passeio, puxava a cordinha pra parar o bonde e saía correndo. Estudou pouco. Até os 10 anos de idade, frequentou o Colégio Dezenove de Dezembro e de lá foi pro Colégio Sagrada Família, onde finalizou o primeiro grau. Apesar da baixa escolaridade, a rainha exibe um vasto currículo. Aos 14 anos, começou a trabalhar com o pai na moagem e preparação de erva para chimarrão. Mais tarde, trabalhou boa parte do tempo como enfermeira particular, mas já fez bicos como diarista. Hoje é pensionista e do lar e coleciona títulos de primeira princesa, segunda princesa, princesa mais bela idosa, miss simpatia, cidadã samba de Curitiba, baiana da escola de samba Embaixadores da Alegria, mais charmosa da regional CIC e por aí vai. Guarda todas as faixas com o maior carinho, não para exibí-las, mas para contemplá-las quando bate a saudade.

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Senhoras e senhores, a Vossa Majestade

Na vila, é a líder da terceira idade e membro do conselho de saúde. Católica praticante, a participação da rainha é ainda maior na igreja. Na paróquia da região, faz parte da ordem franciscana menor e do coral. É integrante da pastoral da AIDS da Arquidiocese de Curitiba e ainda, duas vezes por semana, cruza a cidade para participar do coral da igreja de Santo Antônio, no Boa Vista. Sem contar o tempo que destina aos bordados, crochês e demais passatempos da costura. Uma agenda de dar inveja a qualquer governante do alto clero. Do pai herdou o gosto pelo chimarrão. Foi também por causa dessa erva que a rainha passou a dividir seu trono com o falecido marido Manuel Afonso dos Santos, mais conhecido como Maneco. Como a maioria dos antigos casamentos da alta corte, o namoro de Leonir foi pura conveniência, uma armação do pai. Apesar da história estar longe dos contos de fadas, daria, sem dúvida, um roteiro de novela, daquelas bem mexicanas. A história foi a seguinte. Uma confusão só. A irmã de Manuel era casada com o tio de Leonir. Eles moravam no Alto da XV e Leonir, ainda menina, sempre ia lá “brincar de cambota no barranco”. Foi assim que a rainha, na época princesa, conheceu Maneco, seu futuro marido, 11 anos mais velho. - Na verdade quem queria casar comigo era o irmão dele, mas eu também não queria nada muito com ele. Maneco era insistente. Vivia indo tomar chimarrão com o pai de Leonir, o qual tomou gosto pelo rapaz. Armou pra cima deles e estabeleceu o namoro:

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Senhoras e senhores, a Vossa Majestade

- Maneco, já que você vive vindo aqui só pra ver a Leonir por que vocês já não namoram logo? Na época ela namorava outro, mas o pai não gostava dele. O Maneco era melhor. E foi assim que em um ano, Leonir namorou, noivou e casou, em 14 de junho de 1951. Não é que bem no dia do casamento o outro que ela namorava antes resolveu aparecer? Ele foi lá pra pedir que a rainha fugisse com ele. Meio incerta da resposta, Leonir disse que não poderia fazer uma desfeita dessas para o pai. E assim pôs o pé no altar e de lá saiu casada. “Não era bem isso que eu queria, né, mas...”, explica a rainha que tem o costume de falar frases que nunca terminam. Foram 48 anos de casada. Apesar de Maneco não ter sido o príncipe encantado dos sonhos de Leonir, também não foi sapo, foi “graças a Deus, um bom marido”. Um homem trabalhador, de bom coração, que ajudou a criar todos os filhos. Morreu há 11 anos, de câncer de intestino. Levou com ele o clichê do “viveram felizes para sempre”. Além da morte do marido, Leonir sofreu ainda com mais perdas na família. Há dois anos, o filho mais velho, Manuel Henrique, foi vítima de pneumonia. No mesmo ano, uma neta tirou a própria vida. Isso sem contar a mágoa que ainda guarda de um dos genros que estuprou outra neta dos nove aos onze anos. Só vieram a descobrir quando a menina engravidou. Dele. Tristezas à parte, a tri-rainha Leonir também traz recordações felizes. A maior das felicidades foi no dia em que completou 70 anos. A festa foi surpresa, na Associação Itamaraty da Vila Nossa Senhora da Luz. Chegan-

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Senhoras e senhores, a Vossa Majestade

do lá foi uma emoção só. Tava todo mundo esperando com a festa pronta. Foi na vila, local de reinado absoluto, que a maioria das tristezas e felicidades de Leonir foram sofridas e sentidas. Já viveu de tudo nessa vida. “Se eu morrer hoje ou amanhã já é lucro”, completa. Precavida, deixa os documentos mais importantes, da casa, do cemitério, tudo meio na mão, numa pasta só. O registro de sua casa na vila “é pra filharada brigar pela propriedade”, brinca. É a maior herança material que vai deixar no seu legado, pois da coroa, essa Leonir não abre mão. - Como rainha não perde a majestade, continuo sendo rainha!

Leonir no con cu miss s impatia rso de , em 1 997

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da ida na frente Família reun ir, em 1973 casa de Leon


Senhoras e senhores, a Vossa Majestade

Documento de 1965, compra de casa pela Cohab

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Foto: Adalgiza Mรกximo Gomes 60


Adalgiza, sin么nimo de luta Por

Tatiana Ikeda

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Adalgiza, sinônimo de luta

Q

uem vê a Adalgiza que está diante das câmeras precisa conhecer

a Adalgiza que está por trás delas. Um pouco tímida ao gravar seus depoimentos, quando está longe dessa confusão toda de câmera, luz, cinegrafista e tudo mais, ela mostra que de tímida mesmo, não tem nada. Gosta de uma boa conversa, é bastante comunicativa, simpática e nesse tom de informalidade é que ela conta suas histórias, experiências e mostra um pedacinho da sua vida. Foi em Ibitinga, cidadezinha com título de estância turística, lá do interior de São Paulo, que a filha de Antônio e Beijonilha Máximo nasceu. Adalgiza Máximo Gomes, que na época era só Adalgiza Máximo, abriu os olhos pela primeira vez no dia 25 de setembro de 1943. Desde então, essa libriana mostra que não veio ao mundo a passeio, sempre batalhou muito e até hoje, essa senhora de 66 anos, que, aliás, parece ser pelo menos uns 10 anos mais jovem, continua levando sua vida a todo vapor. Quando tinha apenas nove anos, Adalgiza deu adeus a sua cidade natal e veio para o interior do Paraná. Morou em uma fazenda, no município de Mandaguaçu, próximo a Maringá. Foi lá que anos mais tarde ela casou com Manoel Gomes da Silva e teve seu primeiro filho. Um ano depois do casamento, em janeiro de 1963, Adalgiza fez novamente as malas e partiu, com a família, para uma nova cidade. Dessa vez ela veio parar aqui, em Curitiba, em busca de melhores condições de vida. Na nova cidade, ela passou por tempos difíceis. Morou em uma casinha bastante humilde na Vila São Jorge e assim que soube das inscrições

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Adalgiza, sinônimo de luta

para o conjunto habitacional da Vila Nossa Senhora da Luz não perdeu tempo e garantiu logo seu lugarzinho ali. Já faz 44 anos que ela se mudou para esse novo lar, com o marido e dois filhos, o mais velho, Nivaldo, e a menina, Rosangela. Na vila, alguns anos mais tarde, teve sua caçula, Marlei. Não pude deixar de notar que Adalgiza carrega em seu pescoço uma corrente que representa três grandes motivos de orgulho em sua vida. O pingente em forma de menino e os outros dois em forma de menina deixam claro todo o carinho e a satisfação dessa mãe, que não mediu esforços para conseguir proporcionar aos filhos as oportunidades que a vida não lhe dera. “O que eu não pude fazer pra mim eu tentei fazer para os meus filhos”. Na verdade, não só tentou como conseguiu, pois como ela mesma conta, o estudo sempre foi um fator presente na vida deles. Desde que chegou na vila, essa mulher corajosa se apaixonou pelo lugar. Nem os escorpiões, e eram muitos, que apareciam na época deixavam ela assustada, com a maior tranquilidade, conta como lidava com a situação. - Daí o que vocês faziam? - Matava. - Você mesma? - Aham. Sua casa fica em frente a uma praça, foi ela mesma quem escolheu o lugar e conta que, no começo, defendia com unhas e dentes as árvores que tinham sido plantadas ali, para que não fossem destruídas. “A gente chegou a derrubar até moleque de cima das árvores, eu fui uma delas”, relembra.

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Adalgiza, sinônimo de luta

Sempre reservada, Adalgiza diz que nunca participou dos desfiles e concursos que aconteciam na vila, porém, gostava muito de assistir. Mas, do que ela sente saudades mesmo é dos tempos dos jogos de futebol, dos quais o filho dela participava. “Era bem interessante, gostoso de a gente ver”, recorda. No entanto, são poucas as coisas que despertam nela essa nostalgia toda. Realizada, ela confessa que gosta muito mais das coisas do jeito que estão agora.

Adalgiza e filha Rosangela na frente da casa, em 1967

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Adalgiza, sin么nimo de luta

de cido marido Manuel, fale Sueli, a ad lh m a afi Adalgiza, co l, bo te fu ncha de onde 茅 a ca em 1972

Filho s cerc Nivaldo a da e Ro sa ca uma vizin sa de Ad ngela na ha, em 1 algiza, c om 967

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Foto: Israel AraĂşjo Muniz 66


Entregador de sonhos Por

Vanessa Hirata

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Entregador de sonhos

F

oi da união de Antônio Pereira Muniz Filho e Rosalina Araújo

Muniz, há quase seis décadas, que nasceu Israel Araújo Muniz. Dos 16 filhos de Dona Rosalina, Israel foi o terceiro a nascer, mas do quarteto que ainda vive, tornou-se o irmão mais velho. A vinda ao mundo se deu no dia 14 de maio de 1951, quando as constelações de Figueira, no norte do Paraná, apontavam para o quarto signo do zodíaco: Touro. Católico praticante, Israel é exemplo do ecumenismo. Seu nome foi sugerido aos pais por um compadre pastor. Eles gostaram e assim foi batizado: Israel, aquele que reina com Deus. O nome bíblico não fez sucesso com os avós. Não porque eles não eram católicos, mas porque tinham dificuldades em pronunciar o “Is”. Para facilitar, Israel virou Zizo. O apelido pegou. Tanto que certo dia, o correio entregou a correspondência na casa errada. Os vizinhos não conheciam nenhum Israel. - Ah, o Zizo? Mora aí na casa ao lado... E assim a carta, finalmente, chegou ao seu dono. Não foi culpa do carteiro, nem por falta de popularidade. “Só de afilhados já passa de meio cento”, exagera. É que se mudou tantas vezes que brinca que seu pai era cigano. Só em Figueira ele morou três vezes, em Curitiba foram duas, sem contar as passagens por Açaí, Barro Preto, Piraí do Sul... Com tanta mudança, Israel nunca chegou a completar uma série na escola, no tempo certo. Mesmo sem concluir o chamado primário, lembra

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Entregador de sonhos

da época que, sob a luz de velas e lampiões, ensinou trabalhadores da roça a ler e escrever. Conseguiu alfabetizar quase uma família inteira. Sexagenário, ainda sonha. Quer terminar o ensino médio e se formar em serviço social. Não sabe quando, “se com 80, 90 anos, mas se Deus quiser...”. Israel sempre gostou de ajudar os outros. Mesmo quando pobre, aprendeu a partilhar suas coisas. A lição foi dada pela família. A avó era uma grande benzedeira. A casa vivia cheia de pessoas que precisavam de ajuda. A solidariedade, afirma, veio do berço católico em que foi criado. Hoje, é vice-presidente do grupo Legião de Maria. Reza na paróquia todas as quintas-feiras e, também semanalmente, faz visitinhas aos enfermos e aos idosos. Ainda sonha em construir uma casa de repouso na Vila Nossa Senhora da Luz “para aquelas pessoas do norte que chegam e não têm onde ficar”. O pai Antônio fazia da necessidade a profissão. No começo, trabalhou de minerador e estivador. Ia pra onde a safra estivesse melhor. Era também um homem de negócios muito ativo, um mascate. “Apesar do pouco estudo, era dono de um diálogo muito bonito e foi assim que conseguiu vender as coisas mais difíceis, que ninguém queria comprar”, explica o filho orgulhoso. A mãe foi doméstica, do lar, camareira. Companheira até que a morte os separou, Rosalina fazia os docinhos e torrava o amendoim que o marido vendia nos circos itinerantes do Ginoca e do Chic, Chic. Israel seguiu os passos do pai nessa caminhada. Foi vendedor ambulante. Com carrinho na mão e apito na boca, já vendeu pipoquinha e sorvete.

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Entregador de sonhos

Só teve a chance de continuar os estudos do primário aos 17 anos, quando se mudou do barracão improvisado da favela do rio Belém para o conjunto habitacional da Vila Nossa Senhora da Luz, com os pais e os três irmãos. Lá decidiram ficar. Eram idos de 67. Estudou do primário à quarta série no colégio homônimo à vila, mais conhecido como Grupão, e da quinta à oitava num curso supletivo no centro de Curitiba. Estudou. Mas também jogou muita bola, bets, leu e trocou gibis do Fantasma e do Rin Tin Tin... Foi no final da adolescência que Israel conheceu Florinda Rocha Muniz. O encontro entre o presidente da Associação de Moradores da Vila Nossa Senhora da Luz e a primeira-dama aconteceu em meio a uma partida de futebol. A arma do cupido foi um serviço de alto-falante. A corneta disparou a música “Nossa canção”, de Roberto Carlos: “Olha aqui, preste atenção Essa é a nossa canção Vou cantá-la seja aonde for Para nunca esquecer o nosso amor” O golpe foi certeiro. Israel conquistou o coração da moça acanhada de Cornélio Procópio. A cada pipoquinha, o casal contracenava um beijinho no Cine Nossa Senhora da Luz. Nessa época, Israel usava blusa “cheguei” e calça boca de sino, modelito a la Jovem Guarda. Não vendia mais pipoca. Havia sido contratado pela extinta Companhia

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Entregador de sonhos

de Licitação da Superintendência da Vila Nossa Senhora da Luz, a Suviluz, um escritório provisório para ajudar a Cohab a instalar seus moradores. Ficou encarregado de entregar as chaves e por vistoriar o lugar. Um ofício não muito complexo, mas, sem dúvida, recompensador. “O pessoal lembra de mim e fala que foi eu que entreguei a sorte deles, isso aqui é uma joia pra eles, um pedacinho de céu”. Depois que a Superintendência encerrou suas atividades, os funcionários foram transferidos para a prefeitura. E foi aí que Israel ficou até se aposentar em 1998. O namoro durou três anos. Virou casório, celebrado por frei Euclides e acompanhado pelo lendário frei Miguel, que na época nem tinha sido ordenado sacerdote. A igreja não existe mais, era um templo de madeira, pequeninho, aconchegante, que mudava de lugar: Foi parar lá no Guadalupe. Saudosista, faz questão de falar de frei Miguel, seu amigo e conselheiro espiritual. Quando casou, mudou-se da casa dos pais na praça cinco para a travessa 57. Bem pertinho, num dia tava morando com os pais e no outro já tinha se mudado com a mulher. Com resquícios do sangue cigano, mudouse novamente, nos idos de 85. Dessa vez, para a rua Orlando Luís Lamarca, 745. Por lá ficou: “Continuo lá, aparece por lá pra tomar um cafezinho, número sete, quatro, cinco”, convida os conhecidos na rua. O casamento também continua firme. Fruto desse amor que teve início nos alto-falantes, surgiram os filhos Rosane, de 38 anos, Ronaldo, de 35 e Tatiane, de 29. Com energia e curiosidade de menino, Israel é avô de dois

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Entregador de sonhos

netos, um de 16 e outra de três. Mostra as fotos antigas e brinca: “Eu já fui uma uva, hoje sou esse abacaxi”. Gargalha com gosto, ri alto. Risonho, deixa à mostra os dentes da frente, separados por uma janelinha. A idade transparece por causa dos cabelos cor de algodão. São muitos fios brancos, talvez todos. Quem sabe um ou outro escape às marcas da experiência... Com memória de historiador, esse homem dos diminutivos, só não brinca é com a saúde. Asmático por causa dos anos em que foi fumante, Israel faz parte da comissão do idoso da Secretaria Municipal da Saúde e do conselho local de saúde da vila. “É investir no meu futuro”, explica. Coincidência ou não, a própria Associação de Moradores é anexa a uma unidade de saúde, na antiga praça quatro. Israel fica lá duas vezes por semana – nas segundas e quintas-feiras – ou quando for necessário atender alguém da comunidade. Com modéstia humilde, diz acreditar inclusive que a função da Associação é muito mais relevante que a de um vereador, por ser mais presente: “Eu uso o postinho, o vereador não usa”. Há 15 anos na presidência, seu mandato vai até 2012. Sai de lá por força do voto, doença ou morte. Os olhos escuros e redondos feito jabuticaba são curiosos e reveladores. Eles brilham, involuntariamente, quando Israel fala de uma de suas paixões: A Vila Nossa Senhora da Luz. Deseja que o seu sucessor cuide dela com o mesmo carinho desse apaixonado. Enquanto 2012 não chega, Israel aproveita os dias fazendo o que mais gosta: Passear na vila e conversar com o povo. Ele não sabe os nomes certos

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Entregador de sonhos

das ruas nem dos moradores, mas domina os caminhos das antigas travessas alfanuméricas com a presteza e a segurança de um guia. E assim Israel segue a vida, exibindo seu sorriso peculiar, ingênuo, simpático. Provavelmente, o mesmo de quando vendia sorvete para as crianças ou de quando entregou as chaves das casas para os moradores da vila. Um sorriso de Israel, de alguém que reina com Deus nesse pedacinho de céu e que guarda no currículo o gratificante ofício de entregador de sonhos.

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Entregador de sonhos

de Israel e Casamento reja frente da ig Florinda, em 1972 itinerante, em

Israel e Florin da com anos d e casa dois dos

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Entregador de sonhos

s na amigo e l e a Isr 1970 l, em Migue

o frei casa d a d e t fren

Isra el segu na frent e de nda casa s , em ua 1974

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Foto: Jo達o Leandro Marreiro 76


O guardiĂŁo do paraĂ­so na terra Por

Tatiana Ikeda 77


O guardião do paraíso na terra

C

onhecer João Marreiro foi como um presente. Figura marcante

que fez história desde que chegou à Vila Nossa Senhora da Luz, lugar que para ele é o paraíso na terra. Cearense da cidade de Canindé, João Leandro Marreiro, nasceu no dia 17 de maio de 1937. Cansado de sofrer e passar fome, o filho de Manoel Leandro de Mendonça e Francisca Marreiro da Cruz, decidiu deixar sua cidade. Sobre esse dia, ele conta que escolheu sua melhor roupa e foi à missa, lá ele encontrou um “cara” que vendia galinhas em Fortaleza. Foi então que aproveitou a oportunidade e de carona deixou Canindé, rumo à capital cearense. Quando chegou em Fortaleza as coisas não foram bem como João imaginou, ele conta que ficou perdido “que nem um cachorro, quando o dono solta”. Dormia na rua e continuou passando fome, chegando muitas vezes a comer até cascas de banana. Depois de muito sofrer em Fortaleza, João enxergou mais uma vez uma oportunidade de mudar de vida. Entrou em um navio que estava trazendo os migrantes do nordeste para o sul. Para isso, ele conta que teve que embarcar com outra família, já que nessa época ele tinha apenas 13 anos. Ao entrar no navio ele se sentiu como um passageiro especial, de tão animado que estava. Mas, quando tudo parecia ter dado certo, a vida lhe passou mais uma rasteira. O nome de João não estava na relação de pas-

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O guardião do paraíso na terra

sageiros e ele foi tirado para fora do navio. “Isso foi o mais triste da minha viagem”, recorda. Desiludido, ele sentou ali perto com a maletinha velha que levava junto e esperou o navio partir, levando com ele seus sonhos. Foi então que o milagre aconteceu, um dos encarregados pelo navio colocou João Marreiro para dentro novamente. Dessa vez, ele entrou no navio muito mais feliz que da primeira, seu coração se abriu de alegria, como ele mesmo diz, sorrindo. Desembarcou sozinho em Paranaguá e veio para Curitiba. Chegou com muito frio e passou a noite em um albergue, para pessoas desabrigadas. Lá, as coisas não se tornaram mais fáceis. - Era um frio lascado e os caras faziam a gente tomar banho na água fria. João Leandro Marreiro é um lutador, não desistiu e conseguiu mudar de vida. Na época em que o conjunto habitacional da Vila Nossa Senhora da Luz foi construído, ele fazia parte da segurança dos engenheiros, foi assim que conseguiu fazer o negócio para comprar sua casa ali. Presenciou acontecimentos importantes da história, como a passagem do presidente da República da época, Castelo Branco, para fazer a inauguração da Vila Nossa Senhora da Luz. Desse tempo, ele relembra com muito orgulho, já que participou da segurança do presidente. Desde sempre, ele foi apaixonado pela vila, e fica muito triste quando ouve alguém falando mal do lugar onde mora. Jura que vai viver lá pelo res-

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O guardião do paraíso na terra

to de sua vida. “Daqui eu só saio de pés juntos”, diz ele em meio a risos. João Marreiro não só defendeu a vila, como também batalhou muito pelo progresso do lugar. Foi ele quem correu atrás da instalação das linhas telefônicas ali, cansado de ver a dificuldade dos moradores que não podiam nem fazer uma ligação. Criou a Associação Itamaraty e a Guarda Mirim. Organizou diversos desfiles, que aconteciam nos aniversários da vila, concursos para eleger a rainha da Vila Nossa Senhora da Luz e diversas festas dais quais admite sentir muitas saudades. - Os moradores continuam cobrando e pedindo para que eu organize mais eventos por aqui. E como ele não é de ficar parado, anunciou que em breve, nesse próximo novembro, será feita uma festa, para comemorar mais um aniversário da Vila Nossa Senhora da Luz. Já estamos todos convidados.

Casa d e João Marre praça iro, na 11 antiga

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O guardião do paraíso na terra

Estação de Trata mento de Água (ETA), o nde hoje é o páti o da As sociaçã Itamara o ty, em 1968

a ente d

resid para p o ã iç ele ano de iro em e r r a 96 M em 19 e João araty, Leonir m a t I ção Associa

81




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