Jurandir f costa a inocência e o vício

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mais de um século, a e da "heterossexualidatle "como expressc>es homossexualidade tem fascinCldo e naturais ou essenciais da experiência sexual aterrorizado a imaginação ocidental. Em humana. Ao chamar atençc1o para a hocampos tdo diversos como a literatura, o cinema, a psíqufatria, a psicanálise, a mossexualidade não como uma con1·truçylo medicirutsocial e asociobiologia, o ocideme médico/ciemífica , mas para o que ele tem tentado desvendar as raízes do desejo descrevecomohomoerOiismo,Jurwulir/lhre homossexual e classificar o homossexual. cclminho, em A Inocência~ o Vfcio. para Ao mesmo tempo, afigura do hqmossexual uma nova noção de derejo sexual e de tornou-se o vilão preferido do elaborado experiência erótica. Assim , ajuda-no.v a teatro da moralidade burguesa - a ex- emenderasfonnas pelas quais o prc~conceito pressão mais clara do desvio e do perigo e a discriminação sexual têm condicionado sexual num mundo que insiste em dividir a a resposta social à AIDS 11t1o sú c•lllre realidade vivenciada da experiência sexual homens que rransam com homens, mas em em· normal e patológico. Isso nwJCCl e'iteve rodos os .setores dasocit!dade. Ao dc•swndar tão evide111e como mt décacút passadCl, e desconslruir os emrelaçados proce.~.ws quando o erpectrodaAIDS e sua associação sociais, culturais epsicológicos da opres.w1o aparente com a homossexualidade sexuCll, ele constrói a base de uma nova masculina reproduziram, de forma posiçtlo moral e ética - uma posiçclo especialmente grotesca, as imagens mais baseada, acima de tudo, tw noçclo de terríveis de perigo, contágio e doença, diversidade sexual e llO re.çpeito tls usandoe.'lsa.'l representações paraj ustificar diferença.r sexuais. Por último, ée.ua busca atos discriminatórios, cruéis e desumanos de compreensâo e respeiro dianu· da comra as pessoa-r afetadas pela epidemia. opressão e da discrimillação que tws oferece Com a clareza e a imeligêncía que nossa única esperança - mio apc~mt~ de~ caracterizam todasULI obra, Jurandir Freire responder às ameaças da AIDS, mas de Costa desvenda, em A Inocência I! o Vício construir uma sociedcule maisjusw. -Estudos sobre o homo~roti smo , a consRichard Parker trução histórica da Hhomossexualidatle H. Ao desconsrruir as diversas práticas Jurandir Freire Costa é psicanalista dis cursivas que têm constiwído a homossexualidade IW imaginário social do e professor Livre Docente do lnsWuto de mundo ocidemal contemporâneo desde Medicina Social da Universidatledo Estado meados do século XIX, e ao colllrastar do Rio de Janeiro. Publicou História da essas fonnaçõer com a organizaçâo social psiquiatria no Brasil, Ordem médica e norma familiar, Yiol~nci a é psicanális~ e e cul1ural das relações com o mesmo sexo Psicanálise e contexto cultural. Em /989 em outros cenários -como o Gréda e a recebeu o prêmio Homem de Idéias, do Roma antigas- , ele questiona a própria Jornal do Brmil, pelo seu artigo Narnoção de um mundo divid ido em cisismo em Tempos Sombrios, publicado Whomossexuais e "heterossexuais e a própria realidade da "homossexualidade" no livro Percursos na história da psican41iH.,. N

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Jurandir Freire Costa

A Inocência e o Vício ESTUDOS SOBRE O HOMOEROTI SMO

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© l~cp:, right 1992, Jurandir Freire Costa cec. jS para esta edição à 0UMARÁ DISTRIBUIDORA DE PuBLICAÇÕES LTDA.

Rua Barata Ribeiro, 17 -sala 202 cep 22011-000 - Rio de Janeiro, RJ te!: (021) 542-0248 fax : (021) 275-0294

Coordenação edilorial Alberto Schprejer Copidesque André Telles EdiiOração · Carlos Alberto Herszterg Capa Victor Burton Tlustração da capa Auto-retrato de Aubrey Beardsley

CIP-Brasil. Catalogação-na-fonte Sindicato Nacional dos F.ditores de Livros

C873i

Costa, Jurandir Freire, 1944A inocência e o vício: estudos sobre o homoerotismo I Jurandír Freire Costa. - Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1992. Bibliognfia. ISBN 85-85427-17-5

I . Homossex ualismo na literatura. 2. Homosexualísmo masculino.

1. Título 92-0694

CDD-306.76 CDU - 3-055.3

Todos os direitos reservados. A reprodução não autoriz.ada desta publicação, por qualquer meio, seja ela total ou parcial. constiwi violação da lei 5.988.


Para Célia, Ciça e Guga, o melhor de minha vida. Para minha mãe e meus irmãos, Janda, Li\a e Cere. Para Teresa, amiga do dia a día. que sempre sabe rir ctímplice e carinhosamente dos sonhos com o Brasil de meus sonhos, das bobas emoções rubro-negras e de minha paixão gauche pela psicanálise. Para aqueles meus clientes que em um outro momento foram impedidos de amar em paz, pela violência da intolerância.



Estes estudos fazem parte de uma pesquisa sobre o impacto da AIDS no imaginário social. A pesquisa foi finan ciada pela Fundação Ford e realizada no Instituto de Medicina Social de Saúde Coletiva da UERJ, de onde sou professor. Gostaria de agradecer a colaboração que me foi dada pelos colegas do Departamento de Políticas e Instituições de Saúde, em especial a Richard Parker. Sem a ajuda pronta e generosa de Richard, dificilmente teria podido levar este trabalho a tenno. Gostaria de agradecer igualmente a competência, o carinho e a paciência com que Regina Marchese ajudoume na preparação dos originais.



Sumário

Prefácio

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Introdução

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CAPÍTULO I

Os amores que não se deixam dizer

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CAPÍTUL02

Impasses da ética naturalista: Gide e o homoerotismo

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CAPÍTUL03

Conjugalidade, ética sexual e parceria homoerótica

77

CAPÍTUL04

A inocência e o vício: du côté de chez Proust

105

CAPÍTULOS

O homoerotismo diante da AIDS

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Prefácio

Este trabalho trata da questão do homoerotismo masculino. A palavra homoerotismo é empregada para aludir ao que chamamos de "homossexualismo" na língua corrente. As razões da preferência pelo termo são explicitadas, ao longo dos textos que formam este Jivro, de diversas maneiras. Na Introdução detenho-me sobretudo nas razões ético-teóricas. Teoricamente, como procuro mostrar, homoerotismo é preferível a "homossexualidade" ou "homossexualismo" porque tais palavras remetem quem as emprega ao vocabulário do século XIX, que deu origem à idéia do "homossexual". Isto significa, em breves palavras, que toda vez que as empregamos, continuamos pensando, falando e agindo emocionalmente inspirados na crença de que existem uma sexualidade e um tipo humanos "homossexuais", independentes do hábito lingüístico que os criou. Eticamente, sugiro que persistir utilizando tais noções significa manter costumes morais prisioneiros do sistema de nominação preconceituoso que qualifica certos sujeitos como moralmente inferiores pelo fato de apresentarem inclinações eróticas por outros do mesmo sexo biológico. Ora, com base em outras convicções, sustento que não temos nem motivos éticos nem teórico-científicos consistentes para defender a legitimidade dessas opiniões. Nesse tópico, advirto, além do mais, que a carga de preconceito contida no uso de palavras como "homossexualismo" ou "homossexual" é autônoma em relação à intenção moral de quem as emprega. A questão, portanto, não é a de saber qual a crença moral que cada usuário destas noções possui, mas a de mostrar que conseqüências éticas elas acarretam ou que limites são impostos ao que podemos saber sobre o problema, quando nos limitamos a entendê-lo do modo convencional.


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A inocência e o vício

Nos capítulos I, 2 e 4 trato da construção histórica da figura imagi.nária do "homossexual'! a partir de fontes literárias do século XIX e das primeiras décadas do século XX. Sugiro que antes desse período não se tinha nem se podia ter a noção de que existe uma "personalidade" ou um "perfil psicológico" comum a "todos os homossexuais", como acreditamos hoje em dia. Espero ter conseguido sustentar plausivelmente que nossas idéias aparentemente espontâneas e intuitivas sobre o que "é um homossexual" nada mais são do que decantações imaginárias de um estereótipo humano, inventado para fun cionar como antinorma do ideal de conduta sexual masculina adequado à formação da família burguesa. Através da comparação com outras formas de organização sócio-cultural, sobretudo aquelas da Antigüidade greco-romana, tento fazer ver que a idéia de uma "homossexualidade" transhistórica e "natural" não é defensável , salvo quando falamos do interior da crença que a toma razoável. Essa crença no entanto é uma crença culturalmente arbitrária, opcional, e não "científica" ou "racional", como a maioria de nós é levada a acreditar. No capítulo 3 abordo de maneira incipiente as relações da teoria psicanalítica com a questão do homoerotismo masculino. Este ponto será desenvolvido posteriormente, em um estudo exclusivamente dedicado ao tema. Finalmente, o último capítulo trata da vinculação, no imaginário social e individual, da AIDS com o homoerotismo. Na verdade, toda a seqüência destes estudos tinha por principal objetivo a análise do problema. Nesse capítulo proponho a tese de que a crença na existência de uma "sexualidade homossexual" é em parte responsável pelo tipo de resposta que os sujeitos homoeroticamente inclinados dão ao risco de infecção pelo vírus conhecido como HIV. Concluo por fim que o modo como os sujeitos lidam com o preconceito sexual contra suas sexualidades homoeróticas é decisivo para o destino das políticas culturais de combate à epidemia da AIDS.


Introdução

No conto Teddy,• J.D. Salinger narra como o garoto Teddy, voltando da Europa, tem o seguinte diálogo com Nicholson, um outro passageiro do navio em que viajava: "(Tcddy) - Eu gostaria de saber porque as pessoas pensam que é tão importante ser emocional. Minha mãe e meu pai acham que uma pessoa só é humana se pensa que uma porção de coisas são muito tristes, ou muito aborrecidas ou muito... injustas, sei lá. Meu pai se emociona até quando lê jornal. Ele acha que sou desumano. - Quer dizer que você não tem emoções? Teddy pensou antes de responder: - Se eu tenho, não me lembro de tê-las usado em momento nenhum. Não vejo qual a utilidade delas. -Você ama a Deus, não ama? -Sim, claro. Eu amo a Deus. Mas não o amo sentimentalmente. Ele nunca disse que alguém tinha que amá-lo sentimentalmente. Se eu fosse Deus não ia querer que as pessoas me amassem sentimentalmente. É incerto demais. - Você ama seus pais, não ama? - Amo sim. Mas você quer que eu use essa palavra com o sentido que você quer que ela Lenha, eu sei disso . -Está bem. Em que sentido você quer usá-la? Teddy pensou um pouco e perguntou, virando o rosto para Nicholson: - Você sabe o que significa a palavra "afinidade"? - Tenho uma ligeira idéia -- respondeu Nicholson secamente. - Eu tenho uma afinidade muito forte por eles. São meus pais, e todos nós fazemos parte da harmonia uns dos outros, e porque eles gostam de ser felizes ... •

Devo a Álvaro a indicação da leitura do conto de Salinger.


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A inocência e o vício

Mas não é as~;m que eles amam a mim e a Booper, minha irmã. Acho que eles não são capazes de nos amar como nós somos. Parecem incapa1.e.~ de nos amar a menos que consigam ficar mudando a gente um pouquinho. Eles amam os motivos que têm para nos amar tanto quanto amam a nós, c quase sempre mais. Assim não é tão bom." (Salinger, 1969, p. 172.)

Teddy mostra que existem várias maneiras de se experimentar e descrever emoções, sentimentos ou amor. No vocabulário de seus pais amar "é amar sentimentalmente a Deus" e "amar nos filhos os motivos que têm para amá~los". Em seu vocabulário a gramática afetiva dos pais é dispensável, tanto para amac a Deus quanto para amar ao próximo ou mesmo para "sentir emoção". Teddy diz nunca ter usado a palavra emoção e, embora esteja habilitado a conhecer o que Nicholson quer dizer cotn ela, não sabe o que é "emocionar~se". Assim como alguém que sabe o que é "uma dor de dentes" sem necessariamente tê-la sentido, Nicholson por seu turno não sabia o que era não sentir emoção c mostra toda a estranheza de quem está sendo introduzido a um novo vocabulário. Vocabulários diversos criam ou reproduzem subjetividades diversas. E, conforme a descrição de nossas subjetividades, interpretamos a subjetividade do outro como id6ntica, familiar ou como estranha, exótica e até mesmo desumana, como diziam os pais de Teddy a seu respeito. Assim o termo vocabulário, tal como o emprego, não tem o sentido de simples glossário. Uso a palavra vocabulário como sinônimo de prática lingüística, a exemplo de Rorty (1 982, 1986a, 1986b, 1986c, 1989), ou de jogo de linguagem ou forma de vida, segundo Wittgenstein. Nesta acepção vocabulário tem o mesmo significado de linguagem. No entanto a palavra linguagem, em seu uso psicanalftico tradicional, está fortemente associada à idéia de linguagem como instrumento de representação, e a associação dificulta o entendimento de certas questões, como a da formação da subjetividade, por exemplo. A partir de Freud, mas especialmente depois de Lacan, a linguagem não é um "ser simbólico", um tertium quid, c'u:jo substrato material, gráfico ou sonoro, tem por função "representar", para a Razão, a Mente, o Sujeito, a Consciência, o Espúito etc., aquilo que lhe é exterior ou extrínseco. Essa suposta função universal da linguagem, que coincidiria com "sua natureza", é, diz Wittgenstein, só um jogo de linguagem ou mais um jogo de linguagem. O jogo em que a linguagem tem a tarefa de "representac" falsa ou verdadeiramente o sujeito e o objeto empíricos; o físico e o mental; a fantas ia e a realidade; a imaginação e a percepção; idéias e sensações simples ou juízos lógicos complexos; "o mundo tal qual é" ou "o mundo lingüisticamente representado" etc. Mas,


lnlrodução

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disse Rorty apoiado em Davidson, a linguagem não tem tarefa fixa a desempenhar. Seu trabalho nem sempre é o mesmo. Em todo caso, quando trabalha, o trabalho não pode ser o de "representar" algo que lhe preexiste c cuja essência será tanto mais verdadeiramente revelada quanto mais verdadeiramente for lingüisticamente representada, ou seja, quanto mais o "vocabulário" usado corresponder ou adequar-se à"verdadeira natureza" do "algo" ou da "coisa" . A tarefa mais interessante da linguagem, para C!ises autores, não é a de "representar" mas a de criar laços discursivos entre os sujeitos e/ou entre eles e as coisas e estados de coisas ao redor, de modo a estruturar um universo de sentido minimamente compatível com a sobrevida dos humanos. É essa a tarefa erótica da linguagem; é esse o sentido freudiàno de "ligação" significativa da pulsão sexual ou meramente pulsão de vida. Outra ressonância indesejável do termo linguagem vem do contexto cssencialista e idealista em que se costuma defini-lo. Entendo, como sugerem Rorty e Davidson, que não existe tal coisa como "a Linguagem", proposição defendida por Lacan em certas passagens de sua obra (Lacan, 1976). A linguagem, de acordo com os dois primeiros autores, não possui uma única natureza. Não é uma entidade em meio a outras entidades, com regras fixas e estáveis de estruturação que determinam, em abstrato e sem ajuda de exemplos, os critérios de sua aplicação correta de termos gerais ou particulares, cada vez que falamos. Seguindo essa filiação , penso que uma questão do tipo "qual a verdadeira natureza da linguagem?" é uma questão desinteressante pois para respondê-la teríamos que analisar a hnguagem "fora dela", o que é inconcebível. Até segunda ordem acho que questões assim devem ser substituídas por outras como: "que posso fazer com a linguagem que utilizo para resolver tais ou quais problemas de meu tempo?", "que alternativas lingüísticas posso inventar para tornar minha vida e a dos outros melhor ou mais satisfatória?", enfim, "que contexto orienta o uso que faço de tais ou quais expressões para significar de tal ou qual maneira meus desejos e ações?" etc. Em síntese, o termo vocabulário tem a vantagem de evitar os equívocos de que padece o sentido tradicional do termo linguagem, mantendo toda a idéia de força performativa que a linguagem tem na construção das subjetividades. É desse prisma que descrevo o que chamamos de subjetividade. A' . subjetividade é um efeito dac; linguagens, das práticas lingüísticas que \ determinam suas regras de formação e reconhecimento privado e público. O sujeito, no sentido de experiência subjetiva, nada mais é, na expressão


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davidsoniana, do que "uma rede de crenças e desejos". Seria a versão mais próxima do que em psicanálise postulamos como a correlação necessária entre sujeito e linguagem. As subjetividades então são uma decorrência do uso de nossos vocabulários ou da maneira como ensinamos e aprendemos a ser sujeitos. Voltemos agora aos casos exemplares. Suponhamos que Teddy, em vez do garoto inteligente e excepcional por seus dotes premonitórios, como no conto, fosse um homem adulto chamado Michii pertencente à tribo dos Akaramas. Michii, para a maioria de nós seria alguém que fazia indistintamente amor com homens e mulheres de sua tribo, e periodicamente, após masturbar-se em rituais coletivos, atacava povos vizinhos matando outros sujeitos e comendo-lhes o coração. O terror de um indivíduo ocidental diante de tal cena seria quase indescritível. Tobias Schneebaum, um novaiorquino que viveu entre os Akaramas experimentou-o quando foi levado a participar de um desses rituais (Schneebaum, 1971). Nosso espanto contudo revela o retorno do recalcado. O que emerge em situações semelhantes é algo ao mesmo tempo sabido e esquecido: Michii e Teddy "são um de nós". São sujeitos como nós e o que os distingue da média de todos nós é a modalidade pela qual introjetaram a linguagem e aprenderam a sentir e a dizer "o que é dor, prazer, satisfação ou reconhecimento do valor de suas vidas e da vida dos outros". Ou seja, dito de o utra forma e acentuando outro aspecto, o que distingue Michii de Teddy e o que os distingue de nós é a maneira como Útilizam a linguagem para lidar com as solicitações da morte e da destruição, sempre presentes em nossa vida psíquica. Teddy é filho de uma cultura que o ensinou a respeitar a vida, a liberdade e a busca da felicidade como a melhor maneira de alcançar a perfeição ética. Ele é um ocidental como a maioria de nós se julga. Por isso ao discordar de Nicholson não o ofende, de imediato, física e moralmente - sentindo ou não vontade de fazê-lo - , não o mata e,'Se excepcionalmente chegasse a este extremo, dificilmente conseguiria gozar devorando as vísceras de seu rival. Teddy exprime-se num vocabulário em que esse tipo de conflito, o conflito de opiniões ou preferências que concemem à moral privada, é conciliável com o respeito pela integridade físico-moral do adversário . Salinger o apresenta como uma espécie de exemplar bem sucedido do que seria o homem ocidental, radicalmente convertido ao exercício da livre recriação das linguagens formadoras das convicções éticas pessoais, sem relevância para a esfera pública. No vocabulário de Rorty ele seria um "ironista"; um praticante da expe-


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rimentação ou da reinvenção de estilos de existência individuais melhores ou mais belos. Nicholson portanto é quem aparece como um conservador, um homem incapaz de relativizar o vocabulário final que emprega para descrever e valorar suas crenças sobre emoções ou sentimentos íntimos. É verdade, se a disputa ocorresse em torno do objeto do desejo sexual, da posse de bens materiais ou pela supremacia de valores ideológicos etc., a deferência pela vida e pela liberdade do outro talvez não fosse observada da mesma maneira. Teddy e Nicholson poderiam vir a agredir ou a matar um ao outro. Nem tal eventualidade, porém, desfaria o laço social ou discursivo que os une a uma mesma comunidade de tradição. Nenhum dos dois poderia "esquecer" que estava "matando um humano". A prática lingüística fundadora de suas subjetividades teria imposto a ambos a necessidade de reconhecer no outro, mesmo sendo um inimigo, um igual em humanidade, ou seja, alguém para quem a vida é a última coisa da qual se pode ser privado. Michií ao contrário não teve como aprender a ver nos outros que não os de sua tribo a "humanidade" que vemos. Na construção de sua subjetividade, por exemplo, sexualidade não é equivalente à privacidade ou intimidade, e o gozo com a morte e a devoração dos que não são como ele é um hábito tão admissível e desejável quanto qualquer outro que lhe ensinaram a exercitar. Aos nossos olhos Michii tende a ser visto como "um monstro"; como um "homem quase aquém da fronteira da humanidade". No entanto quando Schneebaum foi admitido entre os,,Akaramas, passou a receber deles uma cortesia, um carinho, uma atenção e uma amizade que nunca havia recebido em seu mundo de origem. Ao tornar-se um deles ou alguém como eles teve direito ao benefício da vida e da consideração, direito implacavelmente negado aos outros. Em geral nossas condutas morais obedecem a esse tipo de ordenação. Aqueles que se assemelham a nós, ou que se aproximam dos ideais morais aos quais aspiramos, merecem nosso respeito e têm suas condutas aprovadas, ou seja, apresentadas como modelos a serem seguidos. Em contrapartida os que se afastam dos modelos são reprovados e apontados como transgressores, anormais ou criminosos, conforme a infração cometida. Na cultura de Teddy e Nicholson o modelo ideal do ser humano impede a "humanidade" de Michii de vir à luz, sob pena de ser punida com a prisão, com tratamentos médicos ou simplesmente com a morte. Na cultura de Michii, Tcddy e Nicholson, caso pertencessem à tribo vizinha dos Akaramas possivelmente seriam assassinados, já que não faziam parte da humanidade da qual ele era membro . Por não falarem sua língua e portanto


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não sentirem o que ele sentia. não fazerem amor como ele fazia, 11ão partilharem suas crenças sobre a origem do mundo c dos homens etc., Michii os teria abatido e comido como fazemos com os animais que nos fornecem alimento. Nenhum instinto de sobrevivência da espécie, como pensa o senso comum, viria em seu auxílio para fazê-lo reconhecer a identidade humana de seus inimigos. Nós corno ele somos aquilo que a linguagem nos permite ser; acreditamos naquilo que ela nos permite acreditar c só ela pode fazer-nos aceitar algo do outro como familiar, natural, ou pelo contrário, repudiá-lo como estranho, antinatural e ameaçador. Em suma, porque somos produtos da contingência da linguagem e do desejo nossas morais são igualmente contingentes. Evito equívocos, toda. via. Afirmar que as morais são contingentes não é o mesmo que dizer que todas as morais se equivalem; que tudo é relativo ou que qualquer conduta é eticamente indiferente, posto que nenhum preceito absoluto pode garantir a posse do verdadeiro bem por quem quer que seja. A tal afirmação caberia o ônus de mostrar onde fica esse ponto de Arquimcdcs, do qual se vê a relatividade de todas as morais sem ser ele próprio relativo. Ora, em psicanálise podemos dizer somente que, ao enunciarmos uma regra moral, falamos do interior de uma prática lingüística que sempre exprime preferências por certas condutas. Não podemos fugir desses limites exceto se optarmos pela morte. Resta-nos então admitir a particularidade da condição humana, dela extraindo as conseqüências que nosso horizonte histórico permite extrair. Uma delas foi a que Freud fez derivar da psicanálise. Criando o mito do parricídio primordial Freud afirmou que ou aceitamos regras indicativas do que é permitido, proibido ou prescrito, em matéria de relações entre humanos, ou poderemos vir a exterminar-nos. Não porque o homem é o lobo do homem- lobos não se exterminam enquanto espécie- mas porque podemos gozar com a mone. E as formas de gozo com a destruição do outro são virtualmente ilimitadas pois dependem apenas de nosso imaginário individual e coletivo. Estes são a meu ver o paradoxo e a responsabilidade culturais da psicanálise. Embora sabendo que as morais são arbitrárias e que podemos aprender a respeitar a vida do outro ou a gozar com sua morte, a psicanálise não pode escapar das sombras da história. Ela é herdeira de uma cultura na qual o desejo de gozo com a destruição humana é sinônimo de horror, donde o imperativo: "Não matarás". Nessa cultura a morte só se justifica quando se trata de manter vivo o princípio moral. O ideal ético da


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psicanálise, por conseguinte, é o de pontuar a existência e a exigência de uma "moral mínima" em que a morte c seus derivados, "a dor física e a humilhação ou dor morat••, sejam vistos e sentidos como "a pior coisa que se pode fazer ao semelhante", como afirma Rorty (1988). No entanto, prosseguiu Freud, instituir regras culturais não é o ponto final na luta de Eros contra Tanatos. Com a cultura impedimos a morte de instalar-se em sua plenitude ou em seu nada, mas a tendência para gozar com a destruição insiste e uma das maneiras de insistir tem por suporte o próprio equipamento cultural criado para limitar suas manifestações. Explico melhor. Não conhecemos culturas capazes de integrar simulti~ neamente todas as formações imaginárias por meio das quais os sujeito~ desejam e se relacionam. Cultura significa inclusão e exclusão de certas possibilidades expressivas do sujeito e seu desejo. Uma cultura que tudo permitisse seria uma "cultura impossível", como a chamou Rieff. Em' outros termos, é o que depois de Lacan denominamos castração pela linguagem. Essa castração pode receber várias traduções imaginárias, ou sej a, várias formas de ensinar aos sujeitos como seguir regras morais. Seguindo essas regra<) estruturamos nossas subjetividades de acordo com os ideais de eu ou subjetividades modelares pressupostas nas descrições do que "deve ser o sujeito" e que fazem parte de toda recomendação ética. Acontece que a estabilidade da cultura, sem a qual não existiriam recorrência de regras e tampouco subjetividades que se reconhecessem como subjetividades, dá-se às custas de diferenças e oposições ao que não é idêntico. Uma cultura só reconhece sua identidade distinguindo-se de outras. Muratis mutandis, o mesmo ocorre com a identidade do sujeito e, finalmente, com os ideais de eu. Para que um ideal de eu mantenha-se operante é preciso que existam casos ou ocorrências subjetivas que contrariem ou não cumpram os requisitos exigidos para a realização do ideal . Assim a construção de subjetividades ideais implica, ipso facto, ~ fi gura da antinorma ou do desvio do ideal, representada pelos que nãd, podem, não sabem ou não querem seguir as injunções ideais. A esses, diz'• Freud, é reservada a posição de objeto do dcsejQ .d~ destruição da maioria ' que em nome da norma ideal outorga-se o poder de atacar ou destruir física . ou moralmente os que dela divergem ou simplesmente se diferenciam. É o mecanismo da rivalidade em torno do "narcisismo das pequenas diferenças" , uma das molas de sua interpretação do fato cultural. Nossa tradição habilitou-nos a lidar com o problema, primeiro, reconhecendo sua existência; não negando que o desejo de matar existe! Segundo, modulando as instituições culturais de modo a responderem aos


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apelos de gow com a morte, discriminada e seletivamente. Dizemos por exemplo que é proibido matar. Mas preferencialmente não matamos quem mata porque sabemos que matando criminosos podemos legalizar a possibilidade de gozo imaginário com a morte por parte dos "não-assassinos". Ao conlrário, privando o homicida do poder de matar protegemos as possíveis vítimas desse seu desejo afirmando ao mesmo tempo que até uma vida pequena e mesquinha como essa, que se arroga o poder de retirar a vida de outrem, até ela merece ser respeitada no direito de viver. De maneira similar condenamos quem faz sofrer moralmente seu próximo, confrontando o prepotente com a infração ao ideal moral e mostrando-lhe que ser moralmente rebaixado é uma das piores experiências a que podemos ser submetidos. Nos dois casos busca-se desincentivar · a estabilização de formas imaginárias de gozar com a destruição, transmitindo aos sujeitos a capacidade de identificação com o sofrimento do outro, princípio regulador de nosso convívio. Só pela aquisição dessa capacidade podemos experimentar velhas e novas alternativas de busca de felicidade individual, sem atentar contra a liberdade de experimentação de nossos iguais. Tendo em vista esse ethos ideal pretendo analisar nesta coletânea de estudos a questão do homoerorismo masculino por diversos ângulos.* A escolha contudo não foi aleatória nem motivada exclusivamente por preocupações acadêmicas. Ela deveu-se à importância ganha pelo tema diante do surgimento público da AIDS . De início o homoerotismo foi associado com a AIDS à maneira hoje obsoleta de antecâmara da morte. Esse primeiro período passou. Já não mais se ouve dizer que a AIDS é "uni câncer gay". No entanto o preconceito sexual permanece. Continuase a descrever as possibilidades de realização afetivo-sexual homoeróticas como doença, anomalia. neurose, perversão, indecência etc. Com isso, querendo ou não criam-se problemas morais graves para muitos indivíduos com esse tipo de inclinação sexual, que vão refletir-se na forma como reagem diante do risco de infecção pelo HIV. Como procurei mostrar nos trabalhos que se seguem, principalmente no estudo sobre "o homoerotismo diante da AIDS", viver sen.do consi- -·-· ·-- -- -..-

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A questão do homoerotismo feminino não será analisada no trabalho, dados sua menor relevância para o problema da AIDS e os limites próprios a esta investigação. De qualquer forma, a história do homoerolismo J~minino é bastante diversa da de seu homólogo masculino. Espero que, brevemente, os estudos de Daniela Ropa venham trazer maiores esclarecimentos à questão.


Introdução 21

derado no dia a dia como "homossexual" é um fardo moral e psíquico extremamente custoso para muitos homens. Uma vez etiquetados assim são constantemente identificados por suas preferências sexuais, as quais por seu turno são moralmente desaprovadas, seja pelo ridículo seja pela classificação no rol das patologias médico-psiquiátricas ou mesmo psicanalíticas. Evidentemente alguns conseguem superar a barreira do preconceito, criticando-o e propondo novos modos de julgamento moral do homoerotismo. Grande parte entretanto não encontra respostas satisfatórias para suas aspirações eróticas nos modelos de identidade sócio-sexuais disponíveis, isto é, nos modelos "heterossexuais", "homossexuais" ou "bissexuais". Desenvolvem então formas de reação emocional ao preconceito que incluem muitas vezes a opção pelo risco de contágio, se isso vier ajudá-los a exorcizar o fantasma de uma vida pessoal esvaziada de afeto e satisfação erótica. A premissa destes ensaios portanto é a de que a discriminação é um tipo de crença que deve ser repudiado por este e outros efeitos do gênero. Apresentando certas práticas sexuais como anormais, doentes, antinaturais ou moralmente incorretas a linguagem da discriminação estigmatiza numerosos sujeitos que se afastam dos ideais sexuais da maioria. Criticar a crença di se ri minatória significa desse modo criticar também o vocabulário que permite sua enunciação e que a torna razoável aos olhos dos crentes. No caso a crítica visa o emprego dos termos "homossexual" e "homossexualismo". Em minha opinião essa terminologia determina a priori as perguntas que fazemos e as respostas que podemos encontrar quando analisamos as práticas homoeróticas. Portanto espero poder justificar a escolha que fiz da noção de homoerotismo, mostrando sua importância para a discussão do preconceito. Prefiro a noção de homoerotismo à de "homossexualismo" por três principais razões. A primeira é de ordem teórica Diz respeito à maior clareza que proporciona o uso do primeiro termo e não dos termos convencionai9 de "homossexualismo" e "homossexualidade". Homoerotismo é uma noção mais flexível e que descreve melhor a pluralidade das práticas ou desejos dos homens same-sex oriented. Como ressaltam Lewes (1989) e Stoller (1979, 1987, 1989), interpretar a idéia de "homossexualidade" como uma essência, uma estrutura ou denominador sexual comum a todos os homens com tendências homoeróticas é incorrer num grande erro ctnocêntrico. Penso que a noção de homocrotismo tem a vantagem de tentar afastar-se tanto quaii'topossível desse engano. Primeiro, porque exclui toda e qualquer alusão a doença, desvio, anormalidade,


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perversão etc., que acabaram por fazer parte do sentido da palavra "homossexual". Segundo, porque nega a idéia de que existe algo como "uma substância homossexual" orgânica ou psfquicacomum a todos os homens com tendências homoeróticas. Terceiro, enfim, porque o termo não possui a forma substantiva que indica identidade, como no caso do "homosscx.ualismo" de onde derivou o substantivo " homossexual". O último aspecto é importante por seus efeitos imaginários. Porque usamos na linguagem ordinária o substantivo "homossexual" terminamos reféns de nossos hábitos . O emprego freqüente do termo leva-nos a crer que realmente existe um tipo humano específico designado por esse substantivo comum. Vamos além, acreditamos que a peculiaridade apresentada por esse tipo é uma propriedade permanente da natureza de certos homens, que independe das descrições que a tomam visível c plausível aos nossos hábitos lingüísticos. Ou seja, é uma qualidade de certos humanos que antecede os vocabulários responsáveis pela invenção do termo "homossexual'' c do suposto tipo de homem que lhe corrcsponde. Em vista disso não há porque substituir o termo "homossexual" por um substantivo homólogo derivado de homocrotismo. Tal démarche caucionaria a crença de que existe "algo comum a todos os homossexuais" fora daquilo que nossa prática lingüística habituou-nos a ver e a interpretar "como o que existe em comum" entre todos os sujeitos homoeroticamente inclinados. Assim sendo, quando emprego a palavra horrwerotismo refirome meramente à possibilidade que.têm certos sujeitos de sentir diversos tipos de atração erótica ou de se relacionar fisicamente de diversas maneiras com outros do mesmo sexo biológico. Em outras palavras, o homem homoeroticamente inclinado não é, como facilmente acreditamos, alguém que possui um traço ou conjunto de traços psíquicos que determinariam a inevitável e necessária expressão da sexualidade homoerótica em quem quer que os possuísse. A particularidade do homoerotismo em nossa 'cultura não se deve à pretensa uniformidade psíquica da estrutura do desejo comum a todos os homossexuais; deve-se, sugiro, ao fato de ser uma experiência subjetiva moralmente desaprovada pelo ideal sexual da maioria. Dizer isto é dizer que numa cultura como a nossa, voltada para a idéia de realização afetiva e sexual, privar certos sujeitos dessa realização é extremamente problemático. Tanto mais quanto os mesmos sujeitos foram ensinados a desejar esse tipo de satisfação. Conviver com essa espécie de paradoxo emocional exige uma montagem imaginária em que certas defesas psíquicas são recorrentes porquanto mostraram-se eficientes na proteção contra o preconceito. Isso é o que podemos encontrar "em


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comum" quando analisam os homens com inclinações bomoeróticas em nossa sociedade. Ir além é trafegar no terreno pantanoso de um vocabulário criado para fazer-nos ver homogeneidades onde, com uma pequena volta do parafuso, podemos ver multiplicidades e heterogeneídades. Mesmo o uso da palavra hornoerotismo, escolhida por sua maior isenção em relação à conotação moral imputada à palavra "homossexualismo", porém, deve ser visto como tática argumentativa e não como proposição conceitual com pretensões à validade universal. Como procuro mostrar adiante, homoerotismo guarda do costume lingüístico admitido a idéia de " atração pelo mesmo sexo", idéia que deve ser aceita com reservas, dada sua ambigüidade semântica. Melhor seria dizer, então, que o emprego do termo visa sobretudo distanciar o interlocutor de sua familiaridade com a noção de "homossexualidade". Tal familiaridade pode fazê-lo traduzir o que pretendo dizer como uma nova reavaliação moral do "homossexualismo". Não é esse meu intento. Tenho a intenção de mostrar que o "homem homossexual" nada mais é que uma realidade lingüística, e não uma realidade natural. É uma forma de subjetividade que como qualquer subjetivid ade pode ser historicamente circunscrita em seu modo de expressão e reconhecimento. E, assim como em épocas precedentes outras crenças lingüísticas conferiram foros de realidade natural ou universal a certas formas de subjetivação, em nossa época fizemos da "homossexualidade" uma "realidade psíquica e sexual" que nos aparece como um modo de ser do sujeito, natural e universalmente necessário, e não culturalmente arbitrário. Durante muito tempo por exemplo acreditouse que certos homens eram "por natureza escravos", outros, "por destino espiritual, hereges", e certas mulheres primeiro por serem mulheres e depois por apresentarem condutas que as afastavam da média, feiticeiras. No entanto como sou obrigado a referir-me a essa subjetividade, reconhecida pelo imaginário social como a "subjetividade homossexual", devo designá-la de alguma maneira para fazer-me entender sobre o que quero falar. Por isso emprego a noção de homoerotismo. Volto entretanto a insistir que o termo não é um novo nome de batismo para uma mesma e velha real idade existencial, a "realidade homossexual". Tampouco pretendo dizer que homoerotismo é um conceito que em sua transparência racional exibe a verdadeira realidade psíquica e moral do homossex ua-

lismo, coisa em que não acredito. A segunda razão por que prefiro homoerotismo a "homossexualismo" é de ordem histórica. Concerne à construção social do preconceito contra o homoerotismo. A palavra "homossexual" está excessivamente compro-


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metida com o contexto médico-legal, psiquiátrico, sexológico e higienista de onde surgiu. O "homossexual", como tento mostrar, foi uma personagem imaginária com a função de ser a anti norma do ideal de masculinidade requerido pela família burguesa oitocentista. Sempre que a palavra é usada evoca-se, querendo ou não, o contexto da crença preconceituosa que até hoje faz parecer natural dividir os homens em "homossexuais" e "heterossexuais". Explicito todavia que uso a palavra preconceito em seu sentido ordinário, como uma crença moralmente indesejável posto que fundada na intolerância. Não pretendo cóm isso afirmar que existem "crenças mais próximas da R azão" e portanto "menos preconceituosas", e "crenças mais distantes da Razão" e portanto "mais irracionais", "mais emocionais", "mais subjetivas", enfim, "mais preconceituosas". De acordo com Rorty não creio que exista maior ou menor coeficiente de "Razão" ou, inversamente, de " irracionalidade" entre os que condenam moralmente o homoerotismo do que entre os que não vêem nenhum motivo humanamente âtil para manter essa condenação, como é o meu caso (Rorty, 1990). Acredito, isto sim, que recusar a algumas pessoas a possibilidade de se realizar afetivo- sexualmente só porque não têm a mesma preferência sexual da maioria significa ferir um dos esteios de nosso credo moral. Mas isto não é uma inferência racional feita a partir de dados objetivos e do alto de uma linguagem de observação neutra. É a manifestaç.ã o de uma preferência ética, isto é, optar por dizer como Rorty s ugere, algo mais ou menos assim: "se eu fosse posto num lugar desses certamente sofreria muito e assim como eu sofreria, o outro também deve sofrer sem que exista nenhum motivo plausível que justifique a necessidade ou inevitabilidad9' desse sofrimento". Em outros termos, preferindo estender tanto quanto possível a referência do pronome "nós" ou reconhecer um número cada vez maior de pessoas como " um de nós", poderemos tentar evitar o crescimento da indiferença, com certeza o mais desumanizante de todos os sentimentos que podemos experimentar em relação ao outro. Não nos enganemos com a aparente simplicidade da recomendação moral que Rorty enuncia, a partir de Sellars. Para um psicanalista, além do quilate filosófico desse pensador, a recomendação traz também o aviso de que é na manutenção dos pequenos poderes que cotidianamente exercitamos a capacidade de gozar imaginariamente com o sofrimento alheio. Por esta razão utilizei a palavra preconceito quando decidi prescindir do termo "homossexualismo" para referir-me ao homocrotismo masculino. Naturalmente pode-se objetar que nem todas as pessoas que se servem da


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palavra "homossexual" são preconceituosas, ?. •meçar pelo~ próprios sujeitos homoeroticamente inclinados, que nã~ dispõem na língua corrente de outro termo para falar da identidade sócio-sexnal que assumiram. É verdade. Porém quando alego que a palavra "homossexualismo" ou "homossexual" tem seu sentido subordinado ao contexto discriminatório em que apareceu, isso independe da intenção dos falantes. Seria estúpido, injusto e violento dizer que todas as pessoas que se referem a "homossexualismo" são preconceituosas, como seria tolo e despropositado querer de agora em diante policiar o uso de termos como "homossexualidade" ou "homossexualismo". Linguagem não é, compulsoriamente, acerto de contas ou convenção parlamentar. É, repito, uma forma de vida, uma aparelhagem simbólica complexa por meio da qual lidamos com nossas circunstâncias ambientais. Com a introdução do termo homoerotismo, tomado de Ferenczi e que teve o assentimento de F'reud, tive o intuito de apontar para aspectos do problema que permanecem ocultos enquanto persistirmos usando as noções de "homossexualismo", "homossexual" ou "homossexualidade". Acredito aliás que o preconceito mantém-se em parte graças a essa ocultação, o que não significa, reinsisto, que empregar a palavra "homossexual" é o mesmo que ser intolerante em relação ao homoerotismo. Na verdade quando admitimos a dicotomia entre o "homossexual" e o "heterossexual", que nos parece absolutamente intuitiva e evidente por si mesma, ela já é um e lemento da crença que põe em relevo e sublinha as características sexuais dos sujeitos. Tal oposição nada tem de perceptualmente espontânea. Nenhuma divisão das pessoas em classes lógicas, famílias naturais ou conjuntos gestálticos é natural. Todos esses arranjos exigem uma seleção de predicados relevantes para certos interesses, que são tão anti naturais quanto qualquer construto teórico que venhamos a imaginar. Nunca perguntamos - até porque é assim que formamos crenças- o que nos levou a crer que existe "algo de muito importante", "de muito fundamental" para nossa vida moral no fato de aprendermos a dividir os humanos em "homossexuais" e "heterossexuais". Mas se a pergunta for formulada a partir de eventos que contrariem a pretensa universalidade de classificação, então já dispomos de estratégias discursivas. prontas a imunizar nosso pensamento contra a crítica, como disse Popper. Quando por exemplo constatamos que em certas sociedades históricas ou etnológicas seria totalmente impensável distribuir os sujeitos em conjuntos descritivo-valorativos de "homossexuais" e "heterossexuais", rea-


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gimos afirmando que se trata de uma "exceção". A regra, pensamos, é perceber a divisão como natural; a exceção é não notá-la ou não valorizá-la como o fazemos. Mas a exceção só é "excepcional" vista do ângulo de quem está fora dela. Em sociedades onde o homoerotismo era tão ou mais difundido quanto o heteroerotismo, excepcional era não adotar tais valores. É difícil imaginar um ateniense culto ou um guerreiro espartano da Antigüidade achando-se uma "exceção'' à regra da sexualidade humana, quando sabemos que se consideravam os representantes do que a "humanidade" tinha de mais nobre e elevado. Nesse caso, replica-se, a exceção de que se fala não diz respeito a uma cultura em particular e sim à espécie humana em sua totalidade. O contra-argumento é simultaneamente simples e simplista. Em resumo diz o seguinte: se todos os homens perdessem o interesse erótico por mulheres e passassem a se interessar exclusivamente por homens a humanidade perderia a aptidão para reproduzir-se. Não é preciso muito esforço para notar a fragilidade do raciocínio: ele parte de dois pressupostos falsos. Primeiro, o de que a prática do homoerotismo é incompatível com as relações heteroeróticas. Ou seja, faz-se coincidir todas as possibilidades de expressão homoerótica com uma de suas figuras, qual seja, a do homem cuja atração por outro homem exclui a capacidade de manter relações sexuais com mulheres. Isso entretanto é uma caricatura. Não é verdade que todos os homens com aptidão para se relacionar homoeroticamentc sejam incapazes de se relacionar sexualmente com mulheres. Manejando essa imagem do apocalipse o argumento conservador simplesmente introduz, sem anunciar, um segundo pressuposto igualmente desmentido pelos fatos histórico-etnológicos: o de que uma cultura com um padrão de conduta majorit8.riamente homoerótico tornar-se-ia inviável do ponto de vista de sua reprodução biológica. Não há melhor prova em contrário do que o exemplo greco-romano da Antigüidade. Porém se tais exemplos não nos vêm mais facilmente à cabeça quando pensamos em homoerotismo, é porque além do silêncio do preconceito . não conseguimos vincular a idéia do "homossexual" ou do " twmossexualismo" aos hábitos eróticos de tais culturas. No que temos razão em parte, embora informados pelo preconceito, o que é aparentemente paradoxal. De fato, como procuro defender em um dos trabalhos, os gregos eram "pederastas" e não "homossexuais". A pederastia como o "homossexualismo" são duao; formas de cristalização do imaginário cultural sobre a potencialidade homoerótica, e não dois nomes para um mesmo referente. Como quer que sej a, sempre que pensamos em relações eróticas entre


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homens, raramente pensamos em Sócrates, Júlio César, Adriano, Ricardo Coração de Leão, nos heróis das epopéias gregas como Aquiles e Pátrocles, ou no fato de que, dos quinze primeiros imperadores romanos Cláudio foi o único exclusivamente "heterossexual" (Boswell, 1980, p. 61). Essa-; imagens de homoerotismo contradizem nossos esquemas cognitivos ou, psicanaliticamente falando, nossas imagens narcísicas projetadas em nossos ideais morais. Homoerotismo para a maioria de nós é sinônimo de pulsilanimidade, efeminamento e não da virilidade ou masculinidade dac; lendárias personagens que estão nas origens míticas da civilização ocidental a que pertencemos ou queremos pertencer. Aqueles homens todos tinham esposas, filhos, praticavam as artes da guerra, a filosofia, a matemática, a astronomia e alguns inclusive ensinaram-nos que a democracia é a melhor forma de governo. Portanto é quase impossível para nossos hábitos lingüístico s associá-los à prática do homoerotismo. Não obstante a resistência afetiva e intelectual, o fato é que eles culti vavam "os amores masculinos", segundo a expressão de Peter Gay, como cultivamos o "amor heterossexual romântico", ou seja, como o modelo de felicidade afetivosexual ao qual devemos aspirar . Onde, pergunto, o risco da "humanidade" extinguir-se por falta de reprodutores? Trata-se de exceção, de anomalia da natureza ou de manifestação da pluralidade possível da sexualidade humana? Entretanto se a solução teórica da exceção mostra-se insustentável, entra em cena o "argumento da ignorância", um outro mecanismo homeostático do dispositivo de crença. Os antigos "civilizados", diz-se, assim como os "povos primitivos", eram "homossexuais" que ignoravam sua "homossexual idade" ! Pelo fato de não disporem do vocabulário científico de que dispomos eram incapazes de descrever corretamente a verdadeira natureza de suas inclinações sexuais. Acontece que aceitar essa hipótese implica em aceitar suas decorrências. Se de fato todos aqueles homens eram "homossexuais" sem saber, o que teriam de tão particular a ponto de admitir, incentivar, louvar e gozar com práticas sexuais que hoje são veementemente reprovadas pela maioria heteroerótica? Seriam eles especialmente propensos ao ''vício" e à " imoralidade"? Suponhamos que assim fosse. Suponhamos que a severa pedagogia grega e sua rfgido ética pederástica, como mostram Boswell ( 1980) e Dover ( 197 8), tivessem feito proliferar a indecência e a perversão! Ainda assim, o que naqueles cida· dãos virtuosos e democratas teria respondido tão facilmente ao apelo da pederastia? T inham eles um patrimônio genético diverso do nosso, como sonham alguns partidários da teoria dos genes específicos da " ho-


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mossexualidade"? Se tinham, como explicar a miraculosa mutação que ao cabo de algumas dezenas ou no máximo centenas de anos dizimou a "espécie pederástica" sem deixar rastros? Essa crença obviamente não teria sustentáculo científico algum. Sua inconsistência reafirma o que nossos costumes culturais têm dificuldade em admitir: o homoerotismo é uma questão de prática lingüística. Não existe objeto sexual "instintivamente adequado ao desejo" ou vice-versa, como reitera a psicanálise. Todo objeto de desejo é produto da linguagem que aponta para o que "é digno de ser desejado" e para o que "deve ser desprezado" ou tido como indiferente; como incapaz de despertar excitação erótica. A essa altura pode-se retrucar que a aprovação cultural do homoerotismo não demonstra que todos os sujeitos podem ser "homossexuais" ou "heterossexuais"; demonstra apenas que a maioria de nós pode "comportar-se homossexualmente ou hcterossexualmente". Porém isso não significa que não possamos distinguir entre os "verdadeiros homossexuais" e os "homossexuais de ocasião". Assim como na cultura "heterossexual" dominante muitos "homossexuais" comportam-se como "heterossexuais" sem sê-lo, assim também em culturas majoritariamente homoeróticas muitos "heterossexuais" podiam comportar-se "homossexualmente" sendo "heterossexuais". Além disso os "verdadeiros homossexuais" seriam aqueles que, com ou sem estímulo moral da cultura, sentir-se-iam de qualquer modo mais atraídos por homens que por mulheres. Mas esse mito "adâmico" da "homossexualidade natural", prévio a qualquer intervenção cultural, é um mito retrospectivo. Um mito criado para fornecer um aparente fundamento objetivo a crenças que, com ou sem ele, manter-se-iam de pé. O sentimento de racionalidade ou plausibilidadc que ele inspira, para falar como William James, não vem de sua objetividade fatual ou teórica; vem da verossimilítude que lhe é dada pelo corpo de crenças que o sustenta e que ele é solicitado a reforçar. O mito é pouco aceitável por vários motivos. Em primeiro lugar, não conhecemos até agora nenhum critério público neutro ou objetivo para dizer se alguém é ou não "um verdadeiro homossexual". Não existe essa pretensa posição epistemicamente privilegiada de onde possamos apontar para o que é "o verdadeiro homossexual" sem recorrer a petições de princípio ou circularidades de raciocínios cuidadosamente escondida<>. Perguntemos logo de início, o que se entende por "um verdadeiro homossexual". Um verdadeiro homossexual é aquele que só se sente atraído e só se relaciona sexualmente com homens? É isso? Se for, então perguntemos:


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c aqueles que se sentem atraídos por homens mas por uma outra razão nunca mantiveram contatos físicos dessa natureza'? São falsos ou verdadeiros homossexuais? E os que se sentem sensualmente atraídos por homens mas só têm relações físicas com mulheres? E os que só sabem ou só podem sentir-se atraídos ternamente por homens mas não têm nenhuma atração física particular por eles? E os que se sentem atraídos por homens só na fantasia mas preferem claramente, de todos os pontos de vista, relações afetivo-sexuais com mulheres? E, finalmente, os que se sentem atraídos apenas por partes do corpo masculino mas que não querem, não gostam e não pretendem relacionar-se com homens porque têm muito mais prazer ou só têm prazer no contato amoroso-sexual com mulheres? O que são? Casos assim não são hipóteses teóricas. São exemplos de tipos de desejos e comportamentos homoeróticos que tive ocasião de discutir no artigo já citado sobre '~0 homoerotismo diante da AIDS". Tais sujeitos na maioria acreditavam que eram em maior ou menor grau "homossexuais". Por que fazem parte de nossa cultura não possuíam outra maneira de demarcar e denominar o que sentiam, a não ser apelando para o vocabulário da "homossexualidade & heterossexualidade". M as, pergunto, se esses sujeitos são todos "homossexuais", o que têm em comum para se acharem membros de um mesmo conjunto de individualidades? À primeira vista a resposta é simples: a atração pelo mesmo sexo! Porém várias questões se escondem debaixo da resposta inocente. Primeiro, por que imaginamos que exista uma atração única, uniforme e suficiente para definir a identidade sexual. social e moral de uma pessoa por trás de todos esses desejos e condutas díspares? Por acaso tal atração é feita de uma "mesma substância", reconhecível em suas propriedades estáveis e capaz de reproduzir-se e repetir-se emocionalmente em pessoas tão diversas quanto aquelas que acabamos de descrever? O q ue nessa atração, por exemplo, nos permite saber que "sentir-se atraído e manter relações físicas homoeróticas" e "sentir-se atraído mas não ter proximidade física ou emocional com outro homem" sejam ocorrências da "mesma atração erótica" que torna dois sujeitos "verdadeiramente homossexuais"? Quando se trata de linguagem de sensações e sentimentos sexuais existe algo que preexista à própria identificação e ao reconhecimento lingüísticos? É possível imaginar uma "sensação" ou uma "atração homossexuais" cruas, que se impusessem de imediato à consciência do sujeito sem a mediação da linguagem? Freud, Lacan e Wittgenstein dariam um rotundo não à pergunta. Só podemos saber que "tal atração é homossexual" por que


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dispomos com antecedência do conceito de "homossexual". Do contrário jamais poderíamos saber se o que sentimos é ou não "homossexual". A questão volta assim ao ponto de partida. Nada esclarecemos afirmando que a atração é "homossexua]" porque. sabendo o que é " homossexualidade", toda vez que a atração surgir saberemos reconhecê- la. O "homossexualismo.. que deveria ser explicado pela atração é que passa a explicá-la. Pode-se argumentar, no entanto, ainda instruído pelo senso comum lingüístico, que a atração é um nome dado à pulsão sexual ligada a um objeto. Ora, a pulsão é indiferenciada; o que a distingue fe nomenologicamcnte é sua característica objetai. Então o problema foi mal colocado. O que interessa não é a essência da atração e sim o objeto que define sua . qualidade. Quando se diz que uma "atração é homossexual" quer-se dizer que estamos diante de uma "atração por uma pessoa do mesmo sexo". Aqui de novo a aparente simplicidade da resposta esbarra em sérias questões de linguagem. Acho que neste como em outros casos estamos diante de um problema análogo ao problema do "coelho de Quine" ou da possibilidade da "tradução radical.. (Ver Murphy, 1990). O que é o mesmo sexo? O mesmo sexo é a identidade de gênero como a entendemos em psicanálise? São as características sócio-sexuais do que chamamos masculino e feminino? Mas, se do pm~to de vista dos papéis sociais essas identidades sexuais são razoavelmente percebidas de maneira uniforme, para fins práticos de orientação cultural. do ponto de vista da atração erótica que é o que nos interessa, a regra que estabelece o reconhecimento do que é "o mesmo sexo" em absoluto é seguida da mesma maneira. O "mesmo sexo" para um sujeito que só se sente atraído pelos genitais ou outras partes físicas do parceiro não é o "mesmo sexo" para um outro. para quem o parceiro é predominantemente visto como objeto de amor. Da mesma forma o "mesmo sexo" para um prostituto que só mantém relações sexuais por dinheiro e que tem nojo ou despreza seus clientes, ou ainda para os que não se consideram "homossexuais" porque sempre são ativos na parceria, pois bem, o ..mesmo sexo.. nesses casos é o "mesmo sexo" descrito no caso da parceria que busca a felicidade do amor romântico? Vê-se assim que o " mesmo sexo''. entendido como mesma. realidade anatômica, não garante por si só a identidade da atração presumidamente comum a todos "os verdadeiros homossexuais". Um mesmo sexo anatômico pode ser suporte de diversos investimentos eróticos, fato sobejamente repetido pela psicanálise. Da mesma forma diferentes realidades anatômicas podem ter um mesmo investimento erótico, como no caso de


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homens cuja atração pela penetração anal faz da polaridade "atividade & passividade" o critério de valoração de suas identidades ou atitudes sexuais. E se considerarmos o exemplo da cultura grega o contraste com nossa moral sexual é ainda mais patente. Para um cidadão grego mulheres, crianças, escravos e estrangeiros eram todos passíveis de ser legitimamente investidos sexualmente, sem consideração pela djferença sexual entre masculino e feminino tal como a percebemos. Conclusão: a saída teórica da "atração homossexual", definida como "atração pelo mesmo sexo", não r~solve a questão. O mesmo sexo, anatomicamente descrito, nem sempre é o "mesmo" eroticamente investido. No que concerne à finalidade do desejo a realidade anatômica é fragmentada na pluralidade dos objetos parciais, como dizemos em psicanálise, e são esses objetos que determinam, aí sim, as característica<; da estrutura psíquica. Tomar o mesmo sexo anatômico como critério para deduzir a irredutibilidade da "atração" que definiria o "verdadeiro homossexual" ou o "verdadeiro desejo homossexual" é contrabandear a divisão sócio-cultural da "homossexualidade & hcterossexualidade" pondo-a como premissa sem revelá-la conceitualmente. Mas antes de prosseguir no jogo de linguagem da atração, perguntemos: por que o critério escolhido para ser o divisor de águas entre a falsa e a verdadeira homossexualidade é o critério da "atração"? Por que não, por exemplo, o do comportamento, da prática física dos contatos homoeróticos? Deixo a interrogação aqui para retomá-la adiante em função do aporte de novos elementos teóricos. Continuemos a investigação por outra v ta. Se na Grécia os "verdadeiros homossexuais" eram os que se sentiam "verdadeiramente atraídos por seus parceiros homens", corno saber disso sem perguntar a wn grego se sua atração era ou não verdadeira? Se pudesse contudo responder à pergunta, só saberia o que é a genuína "atração" utilizando os critérios de "autenticidade" ou "veridicidade" de seu tempo. Ora, esses critérios nada teriam a ver com os nossos. A começar, corno nota Foucault (1984, 1985), pela ênfase dada às condutas e não ao desejo, na ética sexual antiga. Isto quer dizer que "a verdadeira atração''. corno a concebemos, é mais verdadeira que a "verdadeira atração grega"? Na verdade não eJtiste "atração verdadeira" sub specie aeternitatis. Toda atração verdadeira é aquela que aprendemos a reco!}h,ecer· como a "verdadeira atração" segundo a descrição de uma.época. Neste ponto tenho boas razões para acreditar que o mito " adâmico" da "homossexualidade natural" nada mais é que um subcapítulo do código erótico oitocentista,


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patrono da idéia de "homossexualidade". Suspeito de que quando se fala de "verdadeira homossexualidade" ou "verdadeira atração homossexual" a imagem evocada é a do amor romântico ou do apaixonamento heterossexual. Donde a tônica posta nó "desejo", na "atração" e não no "comportamento". Faz parte do imaginário sexual-amoroso da burguesia do século XIX entender que a verdade de um sentimento·éstá em sua "profundidade e intimidade psicológica". O verdadeiro "homossexual" seria aquele que encarnaria o ideal do erotismo rorn~n~c_(), ,só que dirigido a pessoas do mesmo sexo. No entanto se essa figura imaginária pode de fato servir de norma para que aprendamos a seguir a regra de como reconhecer que alguém é verdadeiramente homossexual, não vejo em que c por que o "verdadeiro . homossexual" possa ser dado como exemplo de um tipo humano que existiria transhistoricamente portando consigo um desejo igualmente trans-histórico, o ''verdadeiro desejo homossexual". Do meu ponto de vista o "adão homossexual" do mito da "homossexualidade natural" é um "adão romântico" que aprendeu que há regras de intensidade, qualidade, exclusividade etc., em certas experiências "homossexuais", que as tornam mais verdadeiras ou mais fidedignas quando comparadas a outras. Porém o implícito está justamente aí. A medida de comparação para avaliar o "teor de homossexualidade" de tal ou qual experiência homoerótica introduz, ela própria, o interesse por uma especificação que não teria sentido algum numa cultura que não tivesse previamente distribuído os sujeitos em grupos de "homossexuais" e "heterossexuais". Saber o que é um "verdadeiro homossexual" seria uma questão que um grego jamais colocaria, o que mostra que a distinção não tinha pertinência alguma para a moral antiga. No século XIX, entretanto, ela começou a surgir a fim de que os médicos, sexólogos, psiquiatras,juristas etc., pudessem entender-se sobre quem dentre os "homossexuais" era um "verdadeiro degenerado", um "verdadeiro pervertido", um "invertido simples sem outros sinais de degenaração" ou, por fim , um "vicioso", um "obsceno" que mesmo não sendo "verdadeiramente homossexual" praticava o "homossexualismo" pelo gosto da depravação. Essas questões nada tinham de teóricas. Eram questões jurídico~legais e tratavam dos limites histórico-sociais do ideário burguês, então triunfante e em pleno apogeu. Tratavam de "até onde a idéia de igualdade, liberdade e direito à privacidade podia ser respeitada" sem que o modo de vida burguês fosse contestado ou posto em xeque. Por conseguinte a preocupação com a "verdadeira homossexualidade", na versão "adâmica" do "homossexualismo natural", reflete a obsessão criada


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pelas ideologias instintiv istas, evolucionistas e racistas do século XIX para justificar o modelo da sexualidade familiar, conjugal e heterossexual enquanto fortaleza da moral privada e signo da superioridade da cultura burguesa frente as outras classes sociais e aos povos colonizados. Entretanto basta alterarmos um pouco a perspectiva do problema para que a crença na universalidade e generalidade dessa classificação sexual dos humanos perca seu interesse. No ensaio intitulado "Os amores que não se deixam dizer" busco mostrar como o homoerotismo masculino pôde ser pensado e avaliado de maneira bastante diferente da nossa em pleno século XIX. Em segundo lugar, o mito da "homossexualidade natural", além de procurar sustentar-se na idéia indefensável de que podemos saber o que seria a suposta "verdadeira homossexualidade" do "homossexual", procura legitimar sua racionalidade a partir dos testemunhos da primeira infância, oferecidos por certos sujeitos. Ou seja, considerando que alguns homens homoeroticamente inclinados afirmam ter sentido atração pelo mesmo sexo desde a primeira infância, infere-se que existe "uma homossex ualidade natural" que dispensa o concurso de qualquer interveniência lingüística para tornar-se uma experiência subjetiva. Mas se a primeira parte da assertiva é verdadeira, a segunda parte, a inferência feita a partir dela, é fal sa. Antes de mais nada lembrar e saber que lembra é uma prática lingüística como qualquer outra. Depois, selecionar a "sensação homossexual" para ser "lembrada" exige que se tenha bem claro o "sentimento" de diferença, que pode ter sido vivido de maneira mais ou menos intensa mas que, de qualquer forma, só pôde ter sido vivido e lembrado porque já não era mais "natural" e sim um fenômeno codificado pela linguagem. Finalmente, os adultos que recordam ter sentido precocemente atração pelo mesmo sexo não são necessariamente aqueles com inclinação homoerótica mais forte . Existem sujeitos cujas inclinações homoeróticas apareceram mais tarde e que são quase exclusivamente atraídos por homens. Novamente surge a pergunta: dispomos de critérios seguros para afirmar que motivos ou particularidades tomam alguém "mais verdadei ramente homossexual" que outros? Concedamos porém, em favor do esclarecimento da discussão, que a "homossexualidade" seja um fenômeno comportamental geneticamente determinado. A questão no caso seria: por que tamanho interesse nisso? Por que seria indispensável encontrar genes responsáveis pelo fato de homens se sentirem eroticamente atraídos por outros homens? Por que não nos interessamos em pesquisar que genes são responsáveis pela "verdadeira musicalidade dos verdadeiros músicos", a fim de distinguí-\os dos


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"músicos de ocasião" ou dos "músicos que aceitam fazer música e que se comportam como músicos, mas que não são verdadeiros músicos porque lhes faltam a verdadeira sensibilidade musical e os genes da musicalidade"? Por que não temos interesse em fazer o mesmo com a " futebolisticidade" dos "verdadeiros jogadores de fu tebol", a fim de distinguí-los dos ·~ogadores de ocasião" ou dos "pernas de pau" da várzea do lado? Ora. porque não interessa à nossa cultura, como não interessa va à cuItura grega, "saber quem verdadeiramente sentia-se atraído pelos adolescentes" para distingui-los dos que "simplesmente se acomodavam à injunção cultural que incentivava a pederastia" . A atração que em nossa sociedade sentimos pela diferenciação entre "homossexuais" e "heterossexuais", a ponto de imaginar que não podemos viver sem ela, é tão "naturalmente" determi. nada quanto a divisão entre gentios e cristãos, católicos e protestantes, castos e libertinos, metropolitanos e colonizados, ocidentais e orientais, civilizados e primitivos, etc. Todas essas distinções foram ou são, em certas circunstâncias, tão ou mais importantes quanto a divisão dos homens em "homossexuais" e heterossexuais". A diferença é que, como na divisão entre brancos e negros ou entre indivíduos de outras origens raciais, no caso da sexualidade acreditamos que deve existir um suporte físico para a diferença comportamental, já que o sexo é um fenômeno biológico. A dimensão biológica do sexo entretanto é a que menos importa à moral. Como costumavam dizer os psiquiatras positivistas do século XIX, vistos no quadrante da biologia, sexo é só "volúpia" e portanto não há porque hierarquizar moralmente as formas de gozar. A busca de uma constituição genética particular aos sujeitos com inclinações homoeróticas . só pode ter, então, um objetivo moralmente normativo. Mas por que essa necessidade de uma ética sexual naturalista fundada na biologia? Por que procurar legitimar uma determinada moral sexual recorrendo à bênção da natureza? A essa altura pode-se dizer que por meio deste procedimento busca-se combater o preconceito. No momento em que todos entenderem que o "homossexualismo" não é uma doença, uma perversão ou uma imoralidade, mas um fenômeno tão natural quanto qualquer outro fenômeno sexual, apenas com a peculiaridade de dirigir-se a pessoas do mesmo sexo, pois bem, nesse momento é possível que uma grande batalha contra a intolerância tenha sido ganha. Não nego a legitimidade desse propósito que, diga-se de passagem, partilho. Entretanto não tenho nenhum bom motivo para acreditar que o suposto aval da natureza sej a razão suficiente para dissuadir quem quer


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que seja de suas crenças preconceituosas. No século XIX como no início do século XX os esforços de literatos, moralistas, filósofos, médicos, juristas, sexólogos, políticos etc., para convencer o Ocidente Europeu de que a "homossexualidade" era uma pura e simples variação do instinto sex ual, foram em vão. Daqueles debates restaram sobras, algumas das quais apresento nos textos sobre Gide e Proust. A grande ilusão hoje como ontem é a de acreditar na força persuasiva de argumentos científicos ou cientificamente fundados. Ninguém abandona suas crenças preconceituosas porque um outro pode "provar-lhe" que aquilo que pensa sobre tal ou qual coisa é cientificamente errado. Ainda menos alegando que "é errado pensar assim porque contradiz a concepção científica da natureza". Se o argumento fosse eficiente não haveria racismo no mundo. Cada sistema de crenças tem sua nature7.a de algibeira disposta a justificar a imagem opcional de homem ou de mundo que se tem. Portanto não crdo que a tática político-moral, que insiste em converter a palavra "homossexual" num vocábulo sem resíduo de preconceito, possa dar certo simplesmente porque afirma a pretensa naturalidade das tendências homoeróticas. Creio até o momento que continuar empregando o termo " homossexual" como sinônimo de denominador sexual comum a todas as possibilidades de atração homoerótica é um equívoco. Como também julgo equivocado afirmar a existência de uma tendência natural de uma minoria de homens a ser, sempre e em qualquer circunstância, exemplar de uma "mesma variação natural de homossexualismo". Em meu entender continuar perpetuando ta1 crença significa manter o sistema denominação criado para fazer do homoerotismo a contrapartida rebaixada e degradada da sexualidade heteroerótica. Esta é a terceira e última razão pela qual prefiro utilizar homoerotismo a "homossexualismo". Penso, e aqui devo muitos dos argumentos a f Contardo Calligaris, que ~m todo laço social marcado pelo preconceito não há como escapar da montagem imaginária da discriminação, guaC::· dando o sistema de nominação responsável pela identificação e fixação dos sujeitos nos lugares prescritos pela montagem. A maneira que temos de sair da engrenagem é desfazê-la, e não reformá-la preservando os termos de sua definição e deixando-a intocada na base. A partir disso penso

que a tentativa de combater o preconceito, mantendo íntegra a crença de que os sujeitos humanos são "naturalmente divididos em homossexuais c heterossexuais", se não for impossível , será no mínimo extraordinariamente difícil. Tenho sérias dúvidas quanto ao sucesso desse tipo de


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empreitada, e o caso do racismo antinegro nos Estados Unidos vem ao encontro do que penso. Os negros norte-americanos, sem dúvida alguma o exemplo mais eloqüente de luta pelos direitos civis de minorias, parecem ter desistido de se chamar blacks, optando pela expressão african-americans para se designarem. Recentemente, quando uma revista norte-americana publicava em sua capa uma matéria intitulada Beyond Black & White, fazia coro àquilo que a prática política ensinara. O vocabulário do "negro & branco" revelou-se completamente ineficiente na luta contra o racismo. Do ponto de vista da atenuação do preconceito pouco adiantaram as lutas em torno de palavras de ordem como "negro é bonito", "é orgulhoso" ou afirmações de que "o negro é uma mera variação natural do gênero humano". A crença . da sociedade racista branca de que existem no mundo dois grupos raciais, o dos "brancos" e o dos "negros", ensinou a todos os norte-americanos que ser capaz de reconhecer corretamente quem "era realmente branco" e "quem era realmente negro" era uma questão moral fundamental à sobrevida sócio-cultural dos Estados Unidos. Como resultado, brancos e negros jamais puderam trocar de olhar e posição nessa montagem cruel e violenta. As lutas pelos direitos civis expandiram a faixa de benefícios materiais ou legais de que usufruíam os negros mas não lhes devolveram a consideração moral esperada. O pólo da "culpabilidade & perseguição" continuou a reger as relações entre negros e brancos, que passaram a odiar-se agora em condições de " igualdade j urídica" e reciprocidade de desprer.o e rancor. Os negros norte-americanos gostariam de ter tido direito à mesma consideração social e moral de que gozavam os brancos. No entanto aquele tipo de consideração, a "consideração racial", só é disputado porque existe o racismo. Se não existisse um sistema moral afirmando que certas pessoas são superiores a outra<; por causa de sua cor de pele ou de certos traços físicos, a hierarquia de prestígio ou poder em função do pertencimento racial perderia o sentido. Lutando pela mesma consideração racial do branco os negros tornaram-se cúmplices de um sistema de crenças onde definitivamente não há espaço para dois primeiros lugares. Enquanto persistir a valorização dos traços físicos ou o tom de pele para distinguir grupos que competem pela consideração racial, o resultado é a eternização da alternativa persecutória do tipo "quem não está comigo está contra mim" ou da alternativa culpabilizante ou culpabilizada do tipo "quem começou a oprimir quem e de quem é a vez de oprimir". Esses impasses são insolúveis. Os interessados em sua resolução sem se darem conta retomam sempre a discussão do ponto zero quanto atualizam ritualmente


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o vocabulário que define automaticamente os "superiores" e os "inferiores". Autodcfinindo-se como african-americans, os negros impõem uma outra apresentação de suas identidades sócio-morais, onde a cor da pele deixa de ofuscar os hábitos lingüísticos como no caso do termo "negro". Assim, creio, aumentam as chances de romperem com uma montagem em que se mantêm dependentes da nominação do outro preconceituoso para terem acesso à própria identidade. A preservação do vocabulário "homossexualidade & heterossexualidade" corre risco semelhante ao da preservação do vocabulário do " branco & negro". Não vejo como alterar os fundamentos perceptivos, descritivos e valorativos desse modo de classificar homens e mulheres mantendo inalterado o sistema de nominação. Além da óbvia conotação pejorativa que o termo "homossexualismo" possui, dada sua origem médico-psiquiátrica, seu uso estabelece um desequilíbrio no tratamento moral dos "homossexuais", em tudo contrário aos ideais éticos de nossa cultura. Uma vez identificado como "homossex:ual" o sujeito dificilmente consegue proteger sua privacidade sexual do espaço do público, pelo simples fato de ser sistematicamente interpelado em nome de sua preferência erótica. A exemplo do "negro" na sociedade racista, que tem, de modo geral, todas as facetas de sua identidade subestimadas em favor da particularidade de seu tom de pele ou traços físicos, o "homossexual" no mais das vezes também passa a responder socialmente como se toda sua pessoa se resumisse à singularidade de sua inclinação erótica. Só excepcionalmente alguns conseguem impor outros traços de sua subjetividade à consideração pública. Para muitos isso é uma violência insuportável. Em alguns depoimentos que analiso o mal-estar é evidente. Poucas vezes a maioria heteroerótica é capaz de identificar-se com essa posição e pensar em- suas conseqüências moralmente constrangedoras. Jamais fazemos o exercício imaginativo de supor como seria a vida de alguém que, malgrado sua vontade, fosse permanentemente obrigado a ser reconhecido por sua preferência erótica e não por outras qualidades pessoais que quisesse ver apreciadas e respeitadas pelos outros. No entanto seria interessante imaginar como reagiriam certos homens heteroeroticamente orientados, caso tivessem que conviver com a exposição pública de algumas de suas tendências sexuais, costumeiramente resguardadas do olhar público por nossos hábitos culturais. Não custa nada perguntar como esses homens reagiriam se tivessem que responder socialmente, não enquanto maridos, pais, profissionais, artistas, trabalhadores, cidadãos honestos, indivíduos moralmente íntegros etc., e sim enquanto "praticantes do coito anal",


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"adeptos do sexo oral", "masturbadores contumazes" ou mesmo "usuários freqüentes de filmes e revistas pomógráficas". O cx.emplo nada tem de caricato. Ele é apena<; ilustrativo do respeito que dedicamos à privacidade da maioria heteroerótica e do desrespeito com que tratamos a preferência sexual das minorias. A preservação do vocabulário da "homossexualidade & heterossexualidade". entre outros efeitos humanamente nocivos, priva os indivíduos com tendências homoeróticas de um privilégio que por direito e por exigências éticas também é seu. A essa altura pode-se retrucar que para numerosos homens homoeroticamentc inclinados a apresentação pública de suas preferências sexuais em absoluto é fonte de incômodo particular. Concordo e concedo que seja verdade. Mas é uma prerrogativa que deve ser objeto de deliberação pessoal. No momento em que aquilo que deve ser decidido por cada um torna-se compulsório para todos, estamos no terreno da violência segundo nossos valores. Estamos atentando contra a liberdade que todos devem ter de optar pela melhor forma de se apresentarem ao olhar do outro publicamente e pela melhor forma de procurarem ser felizes em suas vidas privadas. Por essas razões creio que a tentativa de lutar contra o preconceito invocando a condição natural da "homossexualidade" encontra seu principal obstáculo na linguagem escolhida como instrumento de luta. Essa linguagem é um jogo de cartas marcadas, o nde o discriminado é forçado a recorrer ao vocabulário do discriminador para identificar-se como sujeito e para reivindicar a consideração moral à qual aspira. Por outro lado não basta, a meu ver, tomar a natureza como aval dessa causa. A natureza, conforme o preconceito, também tem seus "aleijões, anormalidades e desvios"! De resto foi por este viés que as teorias positivistas, instíntivistas e evolucionistas do século XIX começaram a descrever e a explicar a "patologia" da "perversão homossexual" ou da "inversão genital", ou seja, como desvio do instinto de seu rumo "natural" e "normal" em direção à reprodução da espécie. Por último, não se trata de imaginar, como pensava ingenuamente Oscar Wilde, que recusando falar a linguagem do amor burguês venhamos a transformar a realidade das práticas sexuais e de seus respectivos determinantes lingüísticos. Não podemos mudar nossos padrões sexuais por decisão de um ou de muitos, assim como não podemos "desaprender" a língua em que aprendemos a falar. Mas se não podemos "desaprender" nossas linguagens e sexualidades maternas e paternas, podemos aprender outras línguas. Enquanto sujeitos da linguagem e da sexualidade não


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podemos querer deixar de falar e desejar, mas enquanto sujeitos da vontade podemos redescrever moralmente as conseqüências daquilo que não pudemos escolher. Portanto, com a remontagem de nosso vocabulário descritivo e valorativo do homoerotismo, não tenho a vã e tola pretensão de querer construir, in vitro, novas forma<; imaginárias de gozar com nossas scltualidades e subjetividades. Ninguém transforma seKualidades em laboratório de idéias. Tampouco trata-se de querer, e isto é da maior importância, fazer da defesa da livre expressão social do homoerotismo uma cruzada contra os costumes heteroeróticos majoritários. A grande questão não é inverter a mão da cultura, até porque a maioria de todos nós, idealização romântica à parte, está razoavelmente satisfeita com as possibilidades de realização individual pelo exercício da sexualidade heterocroticamente dirigida. Retomar a discussão na vertente da "perseguição & culpabilização" significa manter-se fiel à engrenagem perversa da discriminação. Alterando o verbete de nosso vocabulário dedicado ao homocrotismo, penso tão somente revolver velhas crenças e com isso, quem sabe, solucionar os problemas que podemos resolver e abandonar muitos outros, como falsos problemas ou problemas sem sentido. Vejo sentido por exemplo em reafirmar o direito que têm os sujeitos homoeroticamente inclinados de ver seus modos de amar e fazer amor respeitados, ao mesmo título que aqueles heteroeroticamente orientados. Esse direito, acredito, deve ser assegurado a todos que consintam em obedecer às exigências de nossa "mínima moral". Em contrapartida não vejo sentido em procurar justificar esse direito por meio da indulgência concedida aos fatos naturais que só aceitamos porque são inexoráveis. Exigir a consideração moral devida ao homoerotismo sob o peso desse argumento é retirá-lo do "poço do vício" para devolvê-lo à "irresponsabil idade da inocência". Essa foi a tentativa de Gide e Proust, tentativa bem-sucedida na arte e frustrada na vida. O álibi da inocência, entre outros inconvenientes, apresenta um especialmente gravei isenta nossa sociedade de seu compromisso com a tolerância e o respeito à diferença, razão de ser do ideal ético que está em sua fundação. Nada na condição humana, diz Hannah Arendt, é mais frágil e "mais humano" que aquilo sustentado pela prática do discurso. A responsabilidade para com aquilo que dizemos e ensinamos às novas gerações a dizer é um desses tesouros cuja única garantia é a caução da confiança depositada na palavra do outro. Não podemos assim, transmitir a sujeitos como nós que a busca da felicidade é um direito que lhes cabe, negando em seguida essa crença a go1pes de violência contra suas pessoas morais.


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I Uma cultura que faz de seus pactos "trapos de palavras" destrói insi dio\ samente seu mais precioso bem, a capacidade de prometer e cumprir :· promessas. Isso tem um preço. A AIDS, como outras misérias, mostrou que ele pode ser caro. Excessivamente caro. BmLIOGRAFIA BOSWELL, John, Christia nity, social tolerance and homosexuality. T he University of Chicago Press, 1980. DO VER, K.J., Greek homosexuality. Cambridge, Harvard University Press, 2" ed, 1989. FOUCAULT, Michel, - História da sexualidade /1 - o uso dos prazeres. Rio, Graal, 1984. - História da sexualidade lll - o cuidado de si. Rio de Janeiro, Graal, 1985. LACAN, Jacques, Conférences et enrretiens dans des WJiversités nord-américaines. Scílicet, Paris, Seuil, (6/7):6-63, 1976. LEWES, Kenneth, 1'he psychoanalyric theory of male homosexunlity. Ontário, New American Library, 1989. MURPHY, John P., Pragmatism - from Peirce to Davidson. Boulder, Sa.n FranciscoOxford, Wcstvicw Prcss, I 990. RORTY, Richard,

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Os amores que não se deixam dizer

Em 1837, na Nova Inglaterra, um jovem de 19 anos escrevia em seu diário longas e ardentes cartas de amor para suas amadas Julia e Elizabeth e seus amados Anthony Halsey e John Heath. Albert Dodd não parecia constrangido, culpado ou envergonhado por apaixonar-se por homens e mulheres. Dirigia-se à Júlia no mesmo tom em que dizia: "John, q)lerido John, eu o amo, realmente o amo. O que sinto por você é uma amizade de um tipo mais forte, um amor sincero, viril, puro, profundo c fervoroso ... eu sou capaz de amar. Deus sabe que eu sou capaz de amar". 1 O exemplo é de Peter Gay, e quando comparamos a desenvoltura com que Dodd alude a seus amores masculinos com os conflitos dos atormentados heróis de Gide, Forster ou Julien Green, a diferença é gritante. O século XIX teria sido, então, menos vitoriano do que fez crer? De certa maneira, essa é a tese de Gay. No entanto, é preciso não confundir o sentido da aparente ousadia sexual de Dodd. O universo vitoriano nada tinha de liberal ou libertino. O puritanismo anglo-saxão não hesitava em punir com violência toda manifestação pública de atos considerados imorais. Não foi, portanto, a tolerância de costumes que estimulou Dodd a confessar, sem maiores escrúpulos, sua atração sexual por Anthony ou John. Foi a impossibilidade de perceber ou interpretar o que vivia como sendo "homossexualismo". Na época, partindo do que sentia, ele poderia considerarse entregue ao vício ou ao pecado nefando da sodomia; ou poderia achar-se um "monomaníaco", caso tivesse tido acesso à literatura médicopsiquiátrica disponível. Porém, uma vez descartadas essas hipóteses, como parecem indicar os registros autobiográficos, restava-lhe falar da ternura e da atração sexual que sentia por seus amigos, no vocabulário do amor .

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romântico. E, o que é m ais intrigante para nossa sensibilidade atual, não se via, por isso, despojado de sua identidade masculina. Essa história de vida é, assim, paradigmática da forma como podemos reconhecer e denominar sentimentos ou emoções que formam a percepção ou a experiência que temos de nossa subjetividade ou identidade. Porque nasceu antes da invenção histórica do "homossexual", Dodd podia referir-se a seus amores masculinos na linguagem do romantismo, mantendo, ao mesmo tempo, a imagem de virilidade que tinha de si mesmo. Livre, como pode-se supor, da consciência do pecado e da execração pública, tomava Deus como testemunha de seu amor e, reafirmando constantemente sua masculinidade, afastava qualquer possibilidade de descrever-se como um anormal, um doente, um antinatural, um perverso ou qualquer . outro termo criado para adjetivar as posteriores acepções da palavra homossexual. Aos seus ollios, o fato de amar homens não o fazia representante de uma outra espécie de homem. Ele era apenas um homem capaz de sentir-se atraído por pessoas do mesmo sexo. A biografia de Dodd, como algumas outras reveladas por Peter Gay, desmente, deste modo. a crença de que existe uma homossexualidade idêntica a si mesma, em qualquer tempo e espaço. Fazendo coro ao que afirmaram, entre outros, Boswell (198 1)2 e Foucault ( J 976; 1984; 1985),3 para citar os mais inovadores estudos sobre o tema, Gay demonstra que Dodd não era um "homossexual" que desconhecia sua condição porque a ciência ainda não tivera tempo de descobrir e ensinar-llie qual a verdadeira essência de suas tendências eróticas. Era um homem com inclinações homoeróticas, e que só dispunha do vocabulário sentimental do romantismo para perceber, sentir e descrever os aspectos positivos de suas relações amorosas. Por essa razão, e não por ignorância científica, não conseguia ver em seu amor pelos amigos uma forma abastardada ou corrompida de amar. Ou sua atração por homens era uma maneira pecaminosa de viver a sexualidade, ou era um modo tão aceitável e idealizado de amar quanto aquele que o ligava às mulheres. O código da intimidade e afetividade nascentes só deixava a Dodd a escolha entre o inferno religioso do pecado ou o paraíso açucarado do sentimentalismo burguês. Ora, essa regulação grosseira da vida erótica, pouco a pouco, mostro use incompatível com os novos tempos. Nada mais anacrônico diante da burguesia triunfante que esta sexualidade cheirando a Ancien Régime. O novo cidadão não podia exibir o "padrão Dodd" de conduta sexual. Não podia admitir o erotismo fluido, ambíguo e "inocente" do jovem de Connecticut A sexualidade burguesa, em sua plenitude oitocentista. tinha


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responsabilidades outras. além do gozo dos indivíduos. Estava comprometida com a questão do indivíduo x família, da população x Estado, do civilizado colonizador x primitivo colonizado etc. Era preciso, então, mostrar que os limites do gozo estavam seguramente inscritos na ordem do parentesco c na fronteira da morte, mas também nos interesses da raça, das classes, das nações, dos estados, das metrópoles e impérios, em suma, nos interesses da cultura e civilização burguesas. Portanto, era igualmente necessário controlar e redirecionar esse tipo de erotismo rebelde e indiferenciado, convertendo-o no que veio efetivamente a tornar-se: homossexualismo. Nos fins do século XIX a empresa chegava a seu tem1o. O antigo "vício que não tinha nome" transformara-se no "amor que não ousa dizer seu nome". O homoerotismo vivia sua era científica de culpa. vergonha e maldição. Antes, pecado contra a alma, era, agora, aberração moral, psíquica c cívica. Assim, quando Maurice, herói do romance de mesmo nome de E.M. Forster, ouve a declaração de amor que lhe faz seu colega de escola, Durham, responde: "Oh, podridão! Durham, você é um cidadão inglês. Eu também sou um cidadão inglês. Não diga tolices. Não estou ofendido, porque sei que não foi essa a sua intenção, mas este é o único assunto absolutamente inadmissível, você sabe. É o pior crime que se pode cometer e você nunca mais deve falar sobre isto, Durham, uma idéia realmente podre".4 É sobre essa metamorfos~ do homoerotismo em homossexuaHsmo que penso refletir, a partir da elaboração do tema na literatura do final do século XIX e primeiras décadas do século XX. Não sem antes esclarecer o que entendo por homoerotismo. Homoerotismo é um termo usado por Sandor Ferenczi,5 psicanalista húngaro, contemporâneo de Freud, para discutir o tema da homossexualidade. Corrente no século XIX, este termo parece-me preferível a homossexualismo por várias razões. Em primeiro lugar, o fato de Fcrenczi ser húngaro ressalta o fato de ter sido justamente um outro médico húngaro, Benkert. quem inventou, em 1869, o termo homossex.ual. Benkert, em seu tempo, tentava combater a legislação alemã contra o homossexualismo, e Ferenczi, de modo análogo, mostrou pela primeira vez, na literatura psicanalítica, que o rótulo de homossexualidade era largamente insuficiente para descrever a diversidade das experiências

psíquicas dos sujeitos hornoeroticamente inclinados. Em segundo lugar, o emprego de homoerotismo em vez de homossexualismo tem a vantagem de evocar a oposição similar, proposta por Parker, entre erotismo c sexualidade. Parker, 6 em seu estudo sobre a homossexualidade no Brasil,


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diz que erotismo é a experiência da atração sexual e a descrição dos atos e afetos engajados nessas práticas, conforme a percepção e a linguagem do senso comum. Sexualidade, em contrapartida, é um construto teórico, nascido da racionalidade científica ou com pretensões à cientificidade. O erotismo é uma experiência orientada por fmalidades ético-estéticas que visam constituir domínios eróticos onde os prazeres proibidos ou permitidos não obedecem à codificação moral criada pela ciência. De modo semelhante, diria, o homoerotismo oitocentista foi o terreno prévio formado pela prática amorosa entre pessoas do mesmo sexo biológico, · terreno onde se deu a intervenção dos agentes de produção do homossexualismo. O que não quer dizer que, antes dessa intervenção, o ho'·moerotismo exprimisse a verdadeira natureza dos amores masculinos. Nunca houve algo assim como um homoerotismo puro, livre de coerções ideológicas e representante da autêntica essência do sexual. Isto significa simplesmente que a atual divisão dos homens em homossexuais c heterossexuais é tão arbitrária e datada quanto qualquer outra. E, assim como heterossexualidade é uma rubrica que serve para designar fatos tão disparatados quanto as orgias filosófico-sexuais de Sade e as tímidas trocas de cartas entre Elizabeth Barren e Robert Browning, como observou Stoller (1985),7 assim também homossexualidade designa experiências onde sequer a atração pelo mesmo sexo é suficiente, enquanto predicado definitório comum a todas elas. A diversidade de atos, sentimentos e auto-definições incluídos nessa etiqueta, quando examinada de perto, mostra que a suposta homogeneidade teorizada nada tem a ver com heterogeneidade vivida. Aliás, o caráter histórico-estratégico dessa definição salta aos olhos, quando pensamos que seu interesse ou relevância deixariam de existir num mundo em que o sexo não tivesse sido entronizado como "sexo-rei", para usar a expressão de Foucault. Na Antigüidade greco-romana ou na ficção futurística do "TIIX-11 38", dividir os homens em homossexuais e heterossexuais poderia parecer tão estapafúrdio quanto tentar, em nossos dias, dividi-los em castos e devasJ·os, f érteis e inférteís ou fiéis e infiéis, maritalmente falando. Isso posto, vejamos como a literatura do período analisado, intcragindo com outros saberes, ajudou a definir o perfil ou a "essência" do homossexualismo masculino. A primeira vertente de idéias, perceptível na literatura do século XIX, procura fazer do "homossexual" um instrumento de denúncia social. O preconceito contra o homoerotismo seria mais um sinal da hipocrisia dos costumes. O "homossexual", diz-se, é um outsider cuja preferência amo-


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rosa desfaz o silêncio tecido pela sociedade em torno de sua origem e funcionamento escusos. Em Balzac. a defesa do "homossexual" como um marginal ou como um rebelde romântico é explícita e levada ao extremo. Vautrin, anti-herói da Comédia Humana, odeia as máscaras das convenções sociais. É o protótipo do contestador que se apropria do jogo da escroqueria para desmontar a corrupção bem pensante. Em O pai Goriot, diz que um homem, após ..examinar as coisas daqui de baixo", só tem "dois partidos a tomar: ou uma obediência estúpida ou a revolta. Eu não obedeço a nada".8 Continuando, em outra passagem, afirma: "É preciso comer uns aos outros, como aranhas num pote, já que não existem cinqüenta mil postos. Você sabe como se abre caminho aqui? Pelo brilho do gênio ou pela habilidade da com1pção... A honestidade não serve para nada".9 Por fim, como fecho de suas lições de moral a Rastignac, conclui: "Se ainda tiver um conselho a dar-lhe, meu anjo, é o de não se manter fiel nem às :;uas opiniões nem às suas palavras. Se lhe pedirem ambas, venda-as ... Não existem princípios, só acontecimentos; não existem leis, só circunstâncias; o homem superior desposa os acontecimentos e as circunstâncias para conduzi-los. Se houvesse princípios e leis fixas as pessoas não os trocariam como trocamos de camisa... Por que dois meses de prisão para o dândi que, em uma noite, furta de uma criança metade de sua fortuna, e por que o xilindró para o pobre diabo que rouba uma nota de mil francos com circunstâncias atenuantes? Eis aí as vossas leis!" 10 Nas Ilusões perdidas, diz a Lucien de Rubempré: "Não veja nos homens, e principalmente nas mulheres, senão instrumentos; mas não deixe que eles o percebam. Adore como ao próprio Deus aquele que, colocado acima do senhor, lhe pode ser útil, e não o abandone até que ele lhe tenha pago bem caro a sua servidão... Hoje, entre vós, o sucesso é a razão suprema de todas as ações, quaisquer que sejam elas. O fato é pois mais nada por si mesmo, consiste inteiramente na idéia que os outros formam a seu respeito. Vem daí, jovem, o segundo preceito: Tenha um belo exterior! esconda o avesso de sua vida e apresente um direito muito brilhante. A discrição, essa divisa dos ambiciosos, é da nossa ordem; adote-a como sua. Os grandes cometem quase tantas covardias como os miseráveis; mas cometem-nas nas sombras e fazem ostentação das suas virtudes; permanecem grandes. Os pobres exercem suas virtudes na sombra e expõem suas misérias ao sol: são desprezados ... Não há mais leis, só há costumes, isto é, macaquices, sempre a forma" .11


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Finalmente, em certo trecho de Esplendores e misérias das cortesãs, afirma que a prostituição e o roubo são "dois protestos vivos, macho e fêmea, do estado natural contra o estado socia1". 12 Em sua depravação, Vautrin revelava a intensidade, a força e a autenticidade dos sentimentos vividos à margem dos pactos sociais aceitos. Era ladrão, gigolô, chantagista, impostor, delator e, como se não bastasse, passou, em certa parte do romance, de bandido a colaborador da polícia. Através de seus crimes, representava o lado inescrupuloso da sociedade burguesa, hipnotizada pelo poder do dinheiro. Por outro lado, na devoção terna e amorosa que tinha por Françhessini, Rastignac, Calvi e, sobretudo, em sua louca paixão por Lucien de Rubempré, Vautrin negava todo o modo de pensar dominante, mostrando que a mais alta abnegação brotava do que . era aviltado e desprezado pela sociedade. Pouco tempo após o suicídio de Lucien, Vautrin dizia: '' ... estão enterrando nesta hora a minha vida, a minha beleza, a minha virtude, a minha consciência, toda a minha força! Imagine um cão a quem um químico extraiu o sangue... assim sou eu." 13 E, quando decide entrar para a polícia em troca da salvação da vida de Calvi, que estava condenado à morte, afirma: "Lucien levou consigo a minha felicidade e a minha a1ma; vejo diante de mim trinta anos de vida aborrecida, e estou sem coração. Em vez de ser o mestre dos galés serei o Fígaro dajustiçae vingo o meu Lucien". 14 A tese romântica faz de Vautrin afirmação do "ser autêntico" contra à estreiteza do universo sócio-sentimental burguês. O homossexual balzaqueano é uma espécie de bom selvagem em meio à selva parisiense. Só que o elogio mostrou-se, com o tempo, índice de exclusão e estigma._ Vautrin não era um homem comum que, entre outras coisas, amava outros homens. Era um fora-da-lei, ou melhor, um fora-de-série. Um ser de exceção que, por ser excepcional, era "homossexual". Ou, leitura igualmente possível, foi por ser capaz de amar pessoas do mesmo sexo que Balzac o escolheu para desempenhar o papel de outro do conformismo burguês. Corno quer que seja, a associação imediata entre anticonvencionalismo sexual e rebeldia moral será respOnsável pela formação de um dos clichês constitutivos da pretensa "identidade homossexual". Nela inspirase o lugar comum que vê no "homossexual" um homem naturalmente apto a subverter moralmente a sociedade. Oscar Wilde disse certa vez: "O século XIX, como o conhecemos, é em grande parte uma invenção de Balzac". Faltou acrescentar: o "homossexual" oitocentista também. Não por acaso, o mesmo Wilde afirmou em outra ocasião, sem se dar conta, que "uma das maiores tragédias de minha


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vida é a morte de Lucien de Rubem pré. É uma mágoa da qual nunca pude me livrar completamente". Em outra<; palavras, Wilde fora levado a sentir o que Balzac fez com que Vautrin sentisse, quando Lucien suicidou-se. Essa conversão ao imaginário de Balzac não atingiu apenas Wilde. De uma ou de outra maneira, vemos o vocabulário balzaqueano repetido pelo senso comum de sua época ou de épocas posteriores. Na faceta positiva, ou de aprovação social, a fantasia do homossexual revolucionário e anticonformista contagiou inúmeros artistas e pensadores. Imerso nessa lenda, que ele próprio ajudou a difundir e solidificar, Wilde respondia ao juiz que acompanhou o processo de Alfred Douglas: ..o amor que não ousa dizer seu nome... é belo, extraordinário, e constitui a mais nobre forma de afeto... por ele é que me vejo agora sentado neste banco... o mundo furta-se a ele e não o entcnde". 15 No pólo oposto, mas sob o peso da mesma crença no caráter "extraordinário", ..excepcional" e "contestador" do homossexual, Máximo Gorki diria: "Nos países fascistas, a homossexualidade, açoite da juventude, t1orcsce sem o menor castigo; no país onde o proletariado alcançou o poder social, a homossexualidade foi declarada um delito social e severamente castigada". 16 Se m dúvida, o "homossexual" inventado por Bnlzac foi uma figura taticamente importante na Juta contra a discriminação dos sujeitos homoeroticamente inclinados. Os ecos de sua aura líbertária e ncontram-se em boa parte da literatura militante, dos movimentos gay. Porém, como mostrou MacRae,11 ~ma coisa é valorizar a identidade gay e reconhecer sua importância no combate ao preconceito; outra coisa é afirmá-la como a única identidade possível ou desejável para todos os sujeitos homoeroticamente inclinados. A iden.t idade gay é, sob muitos asp_e.~t~~ •..h~!:9$!ii:Ml~ idealização romântica do "homossexual. outsitl_e_r". Além disso, comq observou Foucault, 18 depende diretamente do modelo de organização po-' lítica fundada na consciência de interesses de classe, e está profundamente· enraizada na tradição norte-americana do associacionismo comunitário e da luta pelos direitos civis, de indivíduos ou minorias. Essa circunscrição histórico-social, obviamente, não tem o propósito de atingir a legitimidade dos movimentos gay, até porque cabe à comunidade interessada a primeira e última palavra sobre o assunto. Mostrar a relatividade e localização político-cultural da ''identidade gay" visa apenas defender a pluralidade de identidades possíveis de serem assumidas pelos indivíduos com inclinações homoeróticas. Além do que, exibe o poder imaginário das metáforas oitocentistas na criação da noção de "homossexualis mo" e do , "homossexual".


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Ainda na trilha das idéias que buscaram realçar o homocrotismo masculino como expressão da revolta contra o social, encontramos a versão naturalista da sexualidade. No Brasil, dos filhos de Zola, Adolfo Caminha é o que mais interessa. Em Caminha, 19 a ruptura com a ordem estabelecida não é propriedade de um sujeito moral que delibera e age contra as aparências, em favor da autenticidade. Bom-Crioulo, personagem central do romance homônimo, não é Vautrin. Naturalista, Caminha quer provar que o sujeito é social ou anti-social conforme ordena sua natureza animal. Se Bom-Crioulo, como aponta o apelido, é dócil, é apenas porque o animal dentro dele adormece. Não é porque julga ou deixa de julgar; é porque simplesmente submete-se aos apelos da carne. Quando obedece, não é por consentimento voluntário, em função da melhor escolha moral, e quando desafia as leis, não o faz porque as ache injustas ou mesquinhas. Sua transgressão é mera submissão aos mandamentos do instinto. No momento em que foi afastado involuntariamente de Aleixo, sonhava "em proceder conforme seu temperamento" c entregar-se ao "amor físico por uma criatura do mesmo sexo que o seu, extraordinariamente querida, como Aleixo''.2.0Nos estertores do ciúme, via o "grumete nos braços doutro homem" e pensava tê-lo de volta, "como dantes, para si unicamente",21 e dizia de si para si que "sentia-se forte ainda para grandes cometimentos, para maiores provas de virilidade, c nenhuma criatura humana, fosse a mais bela de todas as mulheres, alcançaria proporcionar~ lhe tanto gozo, tanta felicidade, num só momento, como Aleixo, o delicioso e incomparável grumete, que era, agora, o seu único desejo, a sua única ambição no mundo. Havia de o possuir, havia de o gozar, como dantes, por que não". 22 O desejo voraz e tempestuoso de possuir Aleixo, tornava Bom-Crioulo um obcecado; um joguete da besta no coração do homem. No naturalismo, a relação entre criminalidade e homoerotismo, visível em Balzac por outros motivos, expande-se e reforça a imagem do "homossexualismo'' como desejo ou comportamento anti-social. O aspecto critico da contestação balzaqueana perde-se, deixando em primeiro plano a superfície das condutas desabridas. A aparente descrição ou constatação naturalista no fundo nada mais faz do que insinuar que homossexualismo é isso; é sexo animal, sem freios, vergonha ou moral. Em Proust, ao contrário, a exceção homocrótica abandona as hipóteses naturalistas e da crítica social para mergulhar em especulações sobre Q acaso e a necessidade dos sentimentos e condutas humanas. Na versão proustiana, o homoerotismo é entendido como um caso das leis da evolu-


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ção de Darwin, ilustrado pelas teorias sexológicas dos autores alemães, e por suas próprias teorias míticas sobre as origens dos seres homoer6ticos. 23 O "homossexual", segundo Proust, é um exemplar da natureza. Neste sentido, o artista deve observá-lo e descrevê-lo como o naturalista analisa plantas ou insetos, em sua infinita diversidade de formas, funções e modos de vida. Mas tal natureza é uma natureza especial. É a natureza depois da queda; depois de banida do Éden ou da cidade, pelo castigo dos deuses. O homossexual, diz Proust, é um descendente da raça de SO<loma; dos que escaparam à ira de Deus. Sua linhagem é a mesma dos seres platônicos imaginados por Aristófanes, em seu discurso no Banquete. O sorriso lúbrico de Charlus e a resposta automática de Jupien não são sintomas de degradação moral ou perversão de hábitos. São signos de reconhecimento irrefletidos, atávicos, de seres fadados a se atraírem mutuamente. Com eles ocorre o mesmo que ocorre com a abelha polinizando a flor. O homoerotismo proustiano é, assim, uma transfiguração do infame. Da baixeza Proust extrai o sublime, a fusão físico-espiritual de almas e corpos desde sempre gêmeos. Os sodomitas encontram-se c atraem-se como o zangão e a orquídea. Porém, o encontro inevitável não visa a reprodução biológica. O produto desse acasalamento é a fecundidade espiritual . Uma fertilidade superior, que gera o belo, o artístico, o amor pelo elevado. Proust, com sua naturezahelenicamente idealizada, inaugura um dos mais tenazes mitos sobre a natureza do "homossexual",_qual seja o de sua refinada sensibilidade. À imagem do homossexual depravad~, perverso e corruptor de menores, ele opunha o retrato do sodomita aureolado de flores, pólens, insetos e delicados aromas. Sua interpretação do homoerotismo mostra como o mito da..c; origens pode ser manipulado e dirigido para fins ético-políticos. O sodomita enquanto ser natural era um desviante, mas enquanto descendente de Sodoma era um anjo decaído, vítima da prepotência dos deuses. Era um híbrido, não por ter "uma alma feminina num corpo masculino", como queria Ulrichs, mas pela alma celestial enxertada no humano. No desvio estava a virtude. Mais que isso, estava a majestade de um destino, reservado aos happy few. Deste modo, reduzindo o "homossexual" ora a um vicioso, ora a um inocente, Proust mostrava e negava, ao mesmo tempo, o vínculo de sua versão do homoerotismo com a belle époque em que viveu. E, pela maestria de seu gênio, acabou universalizando a idéia de "uma identidade homossexual", aquém e além do "espírito de Gucrmantes" e do "espírito de Combray", de fato, suas verdadeiras parteiras.


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Esse modelo interpretativo, com variações, terá um futuro pl'Omissor. Nos anos 60-70, será incorporado peJa literatura gay, em busca de sua história perdida. Os militantes e estudiosos, na tentativa de retomar a trajetória dos movimentos de liberação homossexual, encontraram, no passado, a grandeza e a nobreza que necessitavam e esperavam encontrar. A galeria de heróis, mártires, inimigos, pais fundadores e mesmo santuários, como Áquila, cidade onde Ulrichs viveu seus últimos dias, em exílio auto-imposto, virá enobrecer e justificar a causa dos movimentos gay .24 No entanto, o preço da estratégia de glorificação do passado será o reforço da idéia de que o "homossexual" representa uma espécie de povo, etnia, agrupamento político ou seita religiosa, com seus momentos de apogeu, declínio, opressão e liberação. Como conseqüência, pede-se, · implicitamente, a todos os indivíduos com inclinações homoeróticas que aceitem pertencer a essa comunidade de tradição, aceitando um só passado, uma só herança cultural e, por fim, uma só identidade de desejos e aspirações. Finalmente, ainda na órbita dos que defendiam o direito à livre expressão social do homoerotismo, a partir do argumento da excepcionalidade, encontramos a obra de Gide. Para Gide, o homossexual é um ser de conflito. Diferente de Dodd, Vautrin, Bom-Crioulo ou Charlus, o herói gideano reflete e transpõe para o homoerotismo os dilemas do exame de consciência, característicos do protestantismo do autor. Aqui, nada de abandonar-se ao destino grego, às demandas do instinto ou ao impulso de revolta social. A personagem gideana, por excelência, é o homem indeciso diante de opções morais conflitantes. Gide faz de seus escritos um tribunal onde o livre arbítrio é a grande questão. As crises de consciência, o sofrimento, o tema da responsabilidade individual face a Deus, são a matéria de sua liLeratura, no que toca ao sexo. O homoerotismo é um caso particular da luta entre o bem e o mal, o. pecado e a virtude, a falta e a reparação, a carne e o espírito, a razão e a emoção, o hedonismo e o ascetismo, etc. Mesmo quando recorre a justificativas médico-científicas para legitimar suas tendências homoeróticas, Gide as descreve como uma fatalidade. O homossexual que ele cria é um ser dilacerado, um exemplo da consciência infeliz e da divisão ontológica do sujeito. Em função disso, a única saída para a oposição irreconciliável entre inclinação erótica e ideais morais é o esquecimento c a resignação. Em toda sua vida e obra, como disse Baldwin,2 s Gide permaneceu atado a suas origens protestantes e à "prisão do macho". 26 Foi responsável por algumas das mais belas c notáveis intuições sobre a contingência do desejo


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c do sujeito, mas, ainda assim, sucumbiu aos preconceitos de seu tempo. Certa vez, afirmou: "je ne suis jamais; je deviens. Je deviens celui que je crois (ou que vous croyez) queje suis".v Apesar di sso, não cessou de pedir a Deus e à natureza que desculpassem ou aprovassem seu amor por outros homens. O homoerotismo, em sua literatura, não se tornou um estilo de cxistencia, que caberia aperfeiçoar com vistas a uma vida melhor e mais bela. Embora tudo em seu pensamento fizesse supor o contrário, não aplicou à vida o que tão bem soube aplicar à arte. Ninguém na obra de Gide "torna-se" homossexual; nasce, vive e morre "sendo" homossexual. Paralelamente a esse modo de conceber o homoerotismo, que deliberadamente buscava redimi-lo do opróbrio social, outras correntes de pensamento contribuíram decisivamente para a moderna percepção que temos do fenômeno. No caso, não se trata de absolver a exceção, mostrando a rigidez e a obtusidade da regra. O homoerotismo, em tais versões, não é uma variação da conduta sexual humana que cumpre respeitar ou tolerar. É um potencial comum a todos os homens. Melhor dito, faz parte do repertório possível do comportamento do sujeito, mas a título de estágio, em sua evolução psíquica ou moral. Na vida adulta, o homocrotismo é uma excrescência. Um resíduo da experiência sexual infantil que, sem controle ou domesticação, virá perturbar o bom funcionamento do adulto e da sociedade. Espelho ou simulacro das ideologias evolucionistas, abundantemente encontradas no século XIX, o homoerotismo aparece, nessas criações, como sinal do arcaico, do primitivo, do disfuncional, quando não do monstruoso, que vêm parasitar a harmonia da evolução desejável. As relações homoeróticas são apresentadas como exemplo de latência perversa que todos possuímos e que, na infância, manifesta-se à luz do dia. É o caso de romances que procuram mostrar a existência da perversão, no convívio indisciplinado de crianças, adolescentes ou adultos jovens. Em O Ateneu, de Raul Pompéia,28 em O aluno Torless, deMusil,29 em Maurice, de E.M. Forster,:IO em O templo, de Stephen Spender,31 em Os falsos moedeiros, de Gide,32 em As amizades particulares, de Roger Peyrefitte,33 c mesmo em A cidade e o pilar, escrito por Gore Vidal 34 bem depois, os contatos homoeróticos na infância, puberdade e juventude são vinculados a cenários de violência, sadomasoquismo, delações, ciúmes mórbidos e abuso dos mais fracos pelos mais fortes, em tudo feitos para provocar repulsa e reprovação. O homoerotismo, dá-se a entender, é a inocente face do terror. É uma etapa de vida que deve ser meticulosamente vigiada e


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punida para, enfim, poder ser controlada e esquecida. Prova que, quando persiste, degenera em atrocidades inconcebíveis. A seqüência imaginária do homossexualismo de escola é o homossexualismo de quartel. Sem freios, a perversão infantil passa facilmente à vida adulta. Resultado: o transviado da inrancia será o assac;sino c o torturador da maturidade. Em novelas e romances como Bom-Crioulo, de Caroinha,35 O oficial prussiano, de Lawrence36 ou Golpe de misericórdia de Yourcenar,37 o sono da repressão produz monstros. Nos ambientes inflexíveis, rígidos e impiedosos das casernas, militares homoeroticamentc inclinados entregam-se a verdadeiras orgias de brutalidade contra as "vítimas" de suas aspirações sexuais. O desejo amoroso torna-se uma descida aos infernos. As personagens vivem uma atmosfera de aflição e desespero que só o assassinato e o suicídio vêm remediar. Sem muito esforço, vemos hoje, no homossexualismo do tipo escolaquartel, um retrato dos combates ideológicos do século XIX. Por um lado, como mostraram Aries e Green, 38 na condenação dessas sociedades exclusivas de homens decretava-se paulatinamente a morte do ethos da amizade, que regulava os bandos de camaradagem. Coerente com a renovação médico-pedagógíca da família e de outros locais de produção do cidadão burguês, procurava-se, com essas táticas, rebater a sexualidade masculina para o interior da família e da casa. Acentuar os perigos da perversão homossexual em escolas e cac;emas fazia parte do mesmo movimento que atacava igualmente as figuras sociais do celibatário, do libertino, do sifilítico etc.39 O objetivo era fazer do homem o homem-pai, ç.idadão ocupado exclusivamente em trabalhar, cuidar dos filhos e fiscalizar a moral sexual das esposas. Nada disso era compatível com a irresponsabilidade homoerótica que perpassava as redes de camaradagem, exclusivas de sociedades masculinas. Por outro lado, na importância dada ao homossexualismo de caserna, estava a questão dos escândalos sexuais do exército alemão. Surgido no bojo das disputas pelo poderio militar, entre as nações imperialistas da Europa, o mito do militar homossexual serviu durante muito tempo de pretexto à desmoralização dos exércitos adversários.40 Na Alemanha, em particular, o problema ganhou proporções nacionais e misturou-se indissociavelmente às lutas pelos direitos civis dos homossexuais. Até a solução final nazista, o homossexualismo de caserna foi simultânea ou sucessivamente usado como arma ideológica na luta pela supremacia política, de nazistas, stalinistas, nacionalistas e liberais europeus. O homoerotismo masculino, uma vez mais, foi utilizado


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como peça no xadrez do poder, com enormes custos sociais e emocionais para os indivíduos nele implicados. Enfim, o terceiro elemento na fabricação imaginária do homossexual moderno teve sua matriz no exotismo. A marca do exótico e do excêntrico foi colada à personagem homossexual, por razões similares àquelas antes descritas. Pazer do homossexual um exótico cumpria três importantes tarefas ideológicas. Em primeiro lugar, tarefa mais grosseira, afirmava a superioridade do burguês branco, civilizado, metropolitano e colonizador, face ao primitivo colonizado ou aos representantes de classes que, no sei9 da metrópole, não dispunham de poder social. Como exemplo das relações com o colonizado, temos Gide. Quando em seu Journal,41 em Se o grão não mo rre 42 ou no lmoralista,43 Gide situa suas relações homoeróticas em Susaou Biskhra, realizao que criticava em Proust. Em um certo momento, Gide dissera que os romances de Proust eram "cheios de duquesas" e que não eram ''para nós", ou seja, o francês republicano ou petit-bourgeois. como se prefira. Mas deslocando o homoerotismo para a África do Norte, excedeu em muito o expediente proustiano. Em meio a dunas, areias escaldantes, absinto, danças de ventre e peles escuras, qualquer desvario sexual justificava-se. Todo "imoraJismo" torna-se parte da aventura colonizadora, como vieram demonstrar o coronel Kurtz e Lawrence da Arábia. Pecado e falta fazem sentido em terras cristãs e civilizadas. Junto aos fracos e infiéis, tudo é p ermitido ao forte. Os ''Moktir", os "Ali" e os "Maomé" não eram de chez nous. No calor rescendtmdo a incenso, o civilizado burguês está autorizado a despir-se de casacos, chapéus, bengalas, bons modos e restrições morais. Ali, no deserto de Deus, o homoerotismo apaga-se dos dez mandamentos. Procedimento semelhante acontece com Proust. No tempo perdido, o homossexualismo é da aristocracia. Ou seja, de uma classe social decadente e fantasmática, com seus espectros de duques, condes e barões que, em vias de extinção, exibem condutas e desej os do passado. O homossexual proustiano é a contraface da saudável sociedade burguesa. Existe como antinorma, como um fóssil social, exemplar de um mundo que se foi. O burguês, diante dele, sente-se tranqüilo e reassegurado de seu bom caminho e de sua boa vida. Em Gide, o exótico era o submisso e o atrasado~ em Proust era o arcaico. o pano de fundo pálido, onde desfilavam a vitalidade, o progresso e o expansionismo do imperiaJismo burguês. Por último, a estratégia do exotismo encena a sujeição dos despossuídos, dentro da própria cidade. As relações homocróticas de Mauricc com seu guarda-caças Alex Scudder, em Forster, ou de Michel, com os empregados de sua


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fazenda, em O imoralista, de Gide, mostram que o homossexual é um trânsfuga de classe. Não podendo exercitar sua perversão entre pares, recorre à dissimetria social e faz-se aceitar por aqueles que não possuem a moral do verdadeiro cidadão. Numa espécie de simulacro da ética antiga, permite-se ao senhor toda liberdade diante do escravo, liberdade esta impensável entre iguais. Em segundo lugar, o homoerotismo exótico dava mostras .do liberalismo que a sociedade burguesa, no auge de seu poder, permitia-se ostentar. Desde que confinado, o homossexual podia manifestar-se sem riscos. Nas escolas e quartéis, onde a fibra nacional e de classe estava sendo temperada, ele devia ser perseguido e expulso; mas nos salões mundanos, em meio a quadros, concertos e saraus literários, ele podia · circular, para entretenimento das horas de lazer. Em Proust e Gide, esta imagem do homossexual mundano, transitando entre periódicos literários, cafés, balneários, hotéis, cidades turísticas e estações de veraneio de luxo, mostrou como a ideologia do exotismo impregnava a consciência que esses autores tinham do problema. Porém, foi sobretudo com Oscar Wilde que a figura do dandismo homossexual alcançou seu zênite. Wílde cultivava a excentricidade, o histrionismo e a exibição pública de seus dotes mundanos e, conscientemente, procurava associar esse estilo de vida à realização homoerótica. Quando na prisão deu-se conta da falácia do liberalismo vitoriano, era tarde demais. Na Balada da prisão de Reading 44 e em De profundis 45 ele percebeu a farsa da liberdade que usufruíra. Fora apenas um instrumento de diversão do que Hannah Arendt tão bem chamou de "filisteísmo cultivado" burguês. Em terceiro lugar, o exotismo do homossexual preenchia, finalmente, uma função mais importante. Representando o homoerotismo como um caso-limite da vida social e individual "normal", deixando-o exprimir-se apenas nos confins ou nas franjas de seu núcleo produtivo, a sociedade burguesa fez do homossexual um parasita. Uma espécie de ser ocioso, dispensável, que, dependendo da necessidade, podia ser apresentado ora como um homem descartável, ora com um vampiro que sugava as forças, a saúde, a moralidade e o ímpeto para crescer, progredir e produzir, que eram a alma social da burguesia. Esse lugar fantasmagórico de outro do homem normal, disciplinado, produtivo, obediente e partidário da ordem apontava para o homoerotismo como o reinado do excesso, da desordem, do êxtase ou da dissipação. Assim, acredito, forjaram-se, em grande parte, os atributos da "identidade homossexual" que conhecemos. Depois disso, será preciso esperar a


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geração que, nos anos 50, 60 e 70, sobretudo a partir dos Estados Unidos livre do ma.cartismo, lentamente virá propor e inventar um novo lugar social para o homoerotismo masculino. Retecendo novas crenças e criando novas linguagens de desejos e sentimentos privados, essa massa de discursos e práticas permite-nos, hoje em dia, olhar para trás e dar razão ao personagem de Genet: "Somos todos vítimas de posters". Se os amores não dizem seus nomes, não é só por falta de ousadia, mas porque, no fundo, nunca se deixam totalmente dizer. BffiLIOGRAFIA

I. GA Y, Peter, A paixão terna. São Paulo, Companhia das Letras, 1990; pp. 182- 183. 2. BOSWELL, John, Christianity, social tolerance, and homosexuality. Chicago e Londres, The University of Chicago Press, 1980. 3. Ver: - FOUCAULT, Michel, História da sexualidade l -A vontade de saber. Rio, Graal, 1983. - FOUCAULT, Michel, História da sexualidade 11- O uso dos prazeres. Rio, Graal, 1984. - FOUCAULT, Michel, História da sexua.lidade li - O cuidado de si. Rio, Graal, 1985. 4. FORSTER, E.M., Maurice. Rio, Rocco, 1990; p. 56. 5. FERENCZT, Sandor, "L'homoérotisme: nosologie de \'homosex.ualité masculine", in: Oeuvres completes, tomoU : 1913-1919. Payot, 1970; pp. 117 -130. 6. PARKER, Richard, "Bodies and pleasures: on the construction of erotic meanings in contemporary Brazil" , in: Amhropology and Humanism Quartely; 14(2), 1989, pp. 58-64. 7. STOLLER, Robert, "Observing the Erotic Imagination". New Havcn e Londres, Yale UniversityPress, 1985. 8. BALZAC, Honoré de, Le pére Gariot. Paris, Bordas, 1949; p. 81 . Ver ainda a propósito de BALZAC e o homoerotismo: - STORZER, Gerald H., "The homosexual paradigm inBal:t.ac. Gide and Genet, ín Homosexualities and french literature, org. George Stambolian e Elaine Marks. lthaca and London, Cornell University Press, 1979; pp. 186-209. 9. lbid., p. 83. I 0. lbid., p. 87. 11. BALZAC, Honoré de, Ilusões perdidas. São Paulo, Abril Culturdl, 1978; pp. 342-

344. 12. BALZAC, Honoré de, "Esplendores e misérias das cortesãs" in A Comédia Humana -IX. Rio - Porto Alegre - São Paulo, Editora Globo, 1952; p. 391. 13. / bid., p. 449.


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14. lbid., pp. 460-461. 15. Citado por RÓNAI, Paulo, in BALZAC, Honoré de, op. cit., 1949; p. 10. 16. /bíd. 17. MacRAE, Edward, A construção da igualdade. Campinas, Editora da Unicamp, 1990. 18. FOUCAULT, Michel, ..Sexual choice, sexual act: An interview with Michel Foucault", in Salmagundi; n° 58-59, outono 1982, invemo 1983, pp. 15-16. 19. CAMINHA, Adolfo, Bom-Crioulo. São Paulo, Atica. 1983. 20. lbid. 21. lbid. 22. lbid., p. 64 23. Ver: PROUST, Mareei, A la recherche du temps perdu, tomo dois. Paris, Gallimard, 1947. Em especial, Sodome et Gomorre. Também sobre PROUST: RIVERS, l.E., "The myth and science ofhomosexuality", in A la recherche du temps perdu, in Homosexualities and fren ch literature. Op. cit. , pp. 262-278. - ALTER, Robert, "Proust and the ideological reader", in Salmagundi. Op. cit., pp. 347-357. 24. LAURITSEN, John e THORSTAD, David, Los primeros movimientos enfavor de los derechos homosexuale:. - 1864-1935. Barcelona, Tuspuets Editor, 1974; pp. 138-139 25. BALDWIN, Jarnes, Nobody bwws my name. Nova York, The Dial Press, 1961 ; pp. 155-162. 26. Ver sobre estes aspectc>s da obra de Gide: STORZER, Gerald H., "The homosexual parddigm in Bal7.ac, Oi de and Oenet". Op. cit. FOWLIE, Wallace, "Sexuality in Gide's self-portrait", in Homosexualilies and french literature. Op. cit., pp. 243:261. 27. GIDE, André. Journal - 1890-1939. Paris, Oallimard, 1948; pp. 852. 28. POMPÉIA, Raul, O Ateneu. Lisboa, Edição Livros do Brasil, s/d. 29. MUSIL, Robert, O jovem Torless. Rio, Nova Fronteira, 1978. 30. FORSTER, E.M. Op. cit. 31. SPENDER, Stephen, O templo. Rio, Rocco, 1989. 32. OIDE, André, Lesfaux-mon1Ulyeurs. Paris, Oallimard, 1986. 33. PEYREFITTE, Roger, Les amitiés particuliéres. Paris, Editions J'ai lu. I 945. 34. VIDAL, Gore, A cidade e o pilar. Rio, Rocco, 1989. 35. CAMINHA, Adolfo. Op. cit. 36. LA WRENCE, D.H., "The Prussian Officer", in The ponable D.H. Lawrence. Nova York, The Viking Press, 1954. 37. YOURCENAR, Marguerite, Le coup de grltce. Paris, Gallimard, 1989. 38. ARIEs, Phiüppe. "Reflexões sobre a história da homossexualidade", in Sexualidades ocidentais, org. Philippe Ari~s e André Bejin. São Pauto, Brasiliense, 1985. -


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Impasses da ética naturalista: Gide e o homoerotismo

Começo por uma definição suficiente para meus propósitos. Por ética naturalista entendo toda ética que busca na natureza os fundamentos da vida moral. O naturalismo é uma variante do fundacionalismo ético, ou seja, do pensamento segundo o qual nossas convicções morais, para serem verdadeiras, devem partir de "proposições básicas, epistemicamente pri vilegiadas, que conferem justificação a todas proposições empíricas, aceitas pelo sujeito moral" (Triplett, 1987, p. ll5). Mais simplesmente, para o fundacionalismo, as decisões éticas podem ser fundadas ou demonstradas com base em argumentos racionais, independentes de crenças particulares e contingentes. No naturalismo, tais fundamentos encontram-se nos imperativos da vida biológica ou, de modo mais geral, na natureza. A boa vida, nessa concepção, é a resultante da adequação das regras éticas às leis naturais. O imoral ou amoral é o antinatural. Ética, portanto, sem desperdício ou possibilidade de equívoco. A esse ponto de vista opõe-se um outro que Larmore resume como se segue: "jamais somos desprovidos de crenças. E nossas crenças não têm nenhuma necessidade de justificação. A questão da justificação só se apresenta quando temos uma razão positiva para acreditar que algumas delas são falsas. Mas, mesmo quando reexaminamos essas crenças, nossa avaliação crítica perfila-se sobre o fundo de outras crenças" (Larmore, 1988, p. 209). Dito de outro modo, a justificação de nossas crenças não é uma questão de adequação à natureza das coisas; aos dados elementares do espírito ou da sensação; às regras lógicas da razão ou às exigências internas da estrutura da linguagem; é uma questão de prática social ou contexto conversacional (Triplett, ibid., p. 115). A essa ética, podemos chamar de historidsta. A ética naturalista, então, visa descobrir o fun -


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damento trans-histórico e universal capaz de justificar a necessidade das mesmas obrigações morais para todos os indivíduos. O desejo que a anima, para retomar a dicotomia proposta por Rorty (Rorty, 1983), é o desejo de objetividade. O historicismo ético, ao contrário, é animado pelo desejo de solidariedade. Abrindo mão da intenção fundacionalista, o histori cismo entende que qualquer exame crítico de um corpo de crenças pressupõe a validade de outra'i crenças que fornecem o padrão de avaliação das idéias criticadas. Em vez de recorrer ao que transcende incondicionalmente a reflexão moral, reconhece seu pertencimento e sua solidariedade a uma dada comunidade e a uma dada tradição. Não pretendo "descobrir" o "naturalmente dado" que deve obrigar todos indivíduos a aceitarem uma mesma moral, mas perceber o que os distingue uns dos outros e o que se . pode fazer para ajudá-los a melhor conviver com a pluralidade da condição humana. f\o objetivismo naturalist a importa a fundação de si; ao historicisrno, os ·diversos modos de afirmação de si. É contra esse pano de fundo que penso contrastar o esforço intelectual de Gide na defesa da "condição homossexual". Esclareço, entretanto, que só usarei o termo "homossexual" citando o pensamento de Gide ou de autores que, como ele, acreditam na isenção valorativa e descritiva da palavra, o que não é meu caso. Acho que a palavra homossexual está inevitavelmente comprometida com a ideologia médica que lhe deu origem e, por conseguinte, saturada de preconceitos. A meu ver, o chamado homossexualismo ou a homossexualidade é apena'> um episódio na hi stóri~ das práticas homoeróticas, muito mais amplas, diversificadas e culturalmente avaliadas do que o termo oitocentista dá a entender. Por acreditar nisso, prefiro falar deliberadamente de homoerotismo, embora sem a pretensão de canonizar o tem10, que pode ser trocado por qualquer outro, contanto que, na troca, não se venha a perder o sentido. Essa ressalva introduz a matéria de estudo. Ao contrário de um Freud, que, não obstante o uso de noções datadas, viu na multiplicidade das morais sexuais uma expressão da contingência do desejo ou de sua contrapartida egóica, o narcisismo das pequenas diferenças; à diferença, ainda, de um Foucault, que fragmentou o campo do sex.o, mostrando a ilusão de sua pretensa homogeneidade, Gide quis fazer do homoerotismo uma obrigação natural. Mais que isso, reduziu a multiplicidade homoerótica ao homossexualismo, dando-lhe uma essência nominal e uma realidade objetiva, inexistentes antes da medicalização e da moralização burguesa do sexo, nos finais do século XIX e começos do século XX. Tomando como um dado esses construtos culturais, elaborou uma teoria


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que acreditava livre de preconceitos, porquanto ancorada na moral natural. Enganou-se, e seu engano, creio, mostra pelo menos duas coisas. Mostra, em primeiro lugar, o que de longa data é afrrmado pela psicanálise: não existe outro objeto do desejo a não ser as metáforas do objeto desde sempre e para sempre perdido. Isto é, a coisa nada mais é que sua falta. Mostra, em segundo lugar, que no fundamento do ideal de tolerância, ou, o que dá no mesmo, do direito à diferença, nada pode ser achado, além do desejo narcísico de reafirmação de uma tradição de ideais que se quer manter. Gide, contudo, não pensava assim. Era um intelectual honesto, um artista virtuoso e, num certo sentido, radical. Por isso, sonhou em alcançar o umbigo do limbo e de lá trazer o código Urda verdadeira moralidade sexual. Não conseguiu. No entanto, deixou-nos como recompensa um belo retrato moral e intelectual de sua época, o que, por si, merece respeito e admiração.

Um homem de seu tempo André Gide nasceu na França em 1869. Data ou lugar, aqui, não são indiferentes ao percurso do pensador. Nascer na França em 1869 significava nascer no ano em que Karoly Benkert, médico húngaro, inventou a palavra homossexual. Esse neologismo macarrônico, como assinalou Boswell, veio posteriormente a condensar todo o imaginário ocidental e oitocentista tecido em torno do homoerotismo. Gide não escapou de sua teia como, aliás, a maioria de todos nós. Nascer na França, por outro lado, significava nascer sob a proteção do código napoleônico. Isso quer dizer não estar sujeito a punições pelo crime de homossexualismo, como os ingleses sob a Emenda Labouchere ou os alemães sob o parágrafo 175 do código penal alemão. Por essa razão, Gide pôde escrever e publicar livremente o que pensava sobre o homoerotismo, sem arriscar-se à cadeia ou a perseguições jurídico-policiais. Mas, por isso mesmo, deixou-se, talvez, envolver com mais facilidade na trama do mito da homossexua·:::--> lidade e de sua origem natural. Na França, depois da Revolução, a liberdade sexual deixou de ser vista como um problema de Estado. O código napoleônico ratificou a idéia de que o poder público nada tinha a ver com a vida privada do cidadão. No entanto, como seria de esperar, ser livre jurídico-politicamente não podia significar ir de encontro à ordem social burguesa. A retórica dos direitos individuais tinha limites. Uma coisa era a Revolução, com suas palavras de ordem política e suas fantasias intelectuais; outra coisa era a burguesia,


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com seus intereSses de raça, classe e suas aspirações imperialistas e nacionais. A liberdade política tinha de encontrar um freio, sob pena de minar a rede de poderes que mantinham de pé o edifício burguês. Descobriu-se, então, que a liberdade só era realmente livre quando obedecia à liberdade moral, cujo solo era a necessidade natural. Donde o relevo dado ao instinto e à evolução. As noções de instinto e evolução sexuais foram para as liberdades morais o que o progressismo e o transformismo foram para as liberdades sociais. Forneceram as justificativas para o controle dos sexos e corpos sem aparentemente ferir as leis das virtudes cívicas. Com o instinto e a evolução, passou-se a saber cientificamente o que devia ser a normalidade moral, fronteira natural da liberdade política. A natureza não errava; simplesmente seguia sua tendência para a evolução. Portanto, . o que fugisse a essa tendência era desvio, arcaísmo ou regressão. Daí para as teorias da degenerescência ou das anomalias instintivas o passo foi tranqüilo. O imoral era o anormal, e o anormal era um degenerado ou um anômalo. Anômalo que, logo em seguida. tornou-se o perverso, termo que, assim criado, veio adjetivar ou substantivar todo sujeito com incli nações homoeróticas. O que outrora era crime, agora era um misto de vício e doença; doença dos espíritos viciosos ou espírito vicioso de doentes mentais degenerados ou portadores de observações instintivas. Gide herdou esse legado, que procurou reverter em favor de suas inclinações sexuais. Em 1911, começou a escrever Corydon, pequeno romance de tese, onde pretendia criticar cientificamente os preconceitos contra o homoerotismo, provando que a pederastia era a forma mais adequada da moral sexual inscrever-se na natureza (Gide, 1987). Por escrúpulo e receio de reprovação social o livro só foi publicamente editado em 1920. Nesse meio tempo, Gide amadureceu seus argumentos que, diga-se de passagem, continuaram os mesmos após a publicação do trabalho. Corydon, ao ]ado do Journal, é o único texto em que o homoerotismo é explicitamente defendido, com base em doutrinas científicas. Do ponto de vista da forma, OTganiza-se como um diálogo em que o médico Corydon procura persuadir o adversário que sua opinião é científica enquanto a dele, adversário, nasce do senso comum. No final, compete ao leitor decidir a quem cabe a vitória argumentativa. De início, Gide leva seu interlocutor imaginário a desconfiar da naturalidade de seu modo usual de pensar. O artifício usado é o argumento de autoridade. Por intermédio de Pascal, Montaigne e La Rochefoucauld, diz que tudo o que sabemos sobre o instinto sexual ou sobre a natureza do amor c do sexo é produto de nossos hábitos e costumes. Em fu nção desses


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hábitos, aprendemos, no presente histórico, a desejar a heterossexualidade e a repudiar a homossexualidade: "Pense que, em nossa sociedade, em nossos costumes, tudo predestina um sexo ao outro; tudo ensina a hetcrossexualidade, tudo convida a ela, tudo a provoca: teatro, livro, jornais, exemplo dos mais velhos, jogos de salão, de rua. Se com tudo isto, não nos tornamos amoureux, é que fomos mal educados, grita-se" (lbid. p. 41 ). Ora, o hábito heterossexual, afirma Corydon, era uma contrafação do verdadeiro rumo da natureza. Contrafação que, entretanto, era facilmente desmontável quando se analisava a fragilidade das idéias que a sustentavam. Por exemplo, a idéia de "instinto de reprodução". Gide diz que a noção de instinto sexual como sinônimo de instinto de reprodução é uma falsa idéia. Não existe na natureza algo que "precipita irresistivelmente um sexo para o outro", ou que age como uma "força imperativa categórica", à semelhança de um "mecanismo infalível" (lbid., pp. 40-45). Todas essas noções são "ídolos" que os antiteístas puseram no lugar de Deus. O homem , quanto mais se eleva na escala animal, mais se afasta do determinismo instintivo. O que o orienta, em matéria de sexo, não é o instinto de reprodução, é a volúpia. "Não é a fecundação que o animal busca, é simplesmente a volúpia. Ele busca a volúpia e encontra, por acaso, a fecundação" (lbid., p. 48). À primeira vista, a afirmação parece ter uma certa sonoridade psicanalítica. O princípio da volúpia poderia evocar o princípio do prazer, noção criada por Freud para emancipar o sexual da coerção instintiva. Mas o parentesco é superficial. A volúpia, como usa Gide, estava mais próxima da volúpia positivista, termo empregado pela medicina psiquiátrica para explicar a fisiologia do amor. Enquanto para Freud o princípio do prazer era urna mera figuração da contingência e da indeterminação instintiva do desejo sexual, para Gide a volúpia era o que fazia do homoerotismo uma nota previsível da natureza. Dito de outra forma, era a condição sine qua non do homoerotismo natural. A tese era a seguinte: Corydon, recorrendo a Lester Ward, "economista-biólogo" americano c criador da "teoria ginecocêntrica", dizia que "nas ordens inferiores, o excesso de machos em relação às fêmeas era um fato natural" (/bid., p. 53). O macho era um luxo biológico. Poucos machos bastavam para o trabalho da reprodução. Esta mesma opinião era defendida por Perrier, um discípulo de Bergson, para quem o "sexo feminino era o sexo da previdência fisiológica", enquanto o masculino era o do "dispêndio luxuoso mas improdutivo" (lbid., pp. 5859). Além do mais, a prodigalidade do macho manifestava-se não só no número, mas também na disponibilidade para a volúpia. Conclusão, o


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grande problema da natureza não era o que fazer para manter-se ou perpetuar-se - problema da reprodução- mas como lidar com o excesso de machos e de sua disposição para o coito - - problema da volúpia. Tendo em conta os postulados evolucionistas, constantemente afirm ados no estudo, a saída plausível seria o controle discriminado da população dos machos. Mas isso não resolvia o dilema moral de Gide. A boa solução seria aquela que impusesse, logicamente, a necessidade das práticas homoeróticas. Sendo assim, não houve outra saída. O corolário da " teoria ginecocêntrica" era o de que, na maioria das espécies, inclusive na espécie humana, os machos eram mais bonitos e, portanto, sentiam-se mais atraídos uns pelos outros do que pelas fêmeas. Assim, as fêmeas, vendo-se livres da volúpia, podiam dedicar-se com tranqüilidade à criação <los filhotes. Precavido, Corydon adverte o interlocutor de que ele se engana vendo aí a defesa do uranismo por um uranista. A supremacia da beleza masculina havia sido constatada por cientistas e pensadores que, em absoluto, eram homossexuais. Goethe, por exemplo, dizia que a existencia da "aberração" homoerótica devia-se ao fato de que do "ponto de vis\a da regra puramente estética, o corpo do homem era muito mais bonito, muito mais perfeito c muito mais bem acabado que o corpo da mulher" (lbid., p. 104). Stevenson, um naturalista, notara que, entre os polinésios, "a beleza dos jovens ultrapassa de muito à das mulheres" (Ibid., p. 97). Por último, Darwin, quando, no Taiti, escreveu : "Confesso que as mulheres me decepcionaram um pouco. Elas estão longe de serem tão belas quanto os homens" (lbid., p. 97) Assentada a base natural, o raciocínio invertia-se. Agora era a cultura, . no que tinha de melhor, que vinha demonstrar a cientificidade da especulação naturalista A Grécia, mostrava Gide, realizara plenamente a intenção da natureza. Plutarco, por exemplo, séculos antes dele, já tinha observado que as mulheres, para se fazer atraentes, precisavam de ungüentos, pinturas, filtros e enfeites, enquanto os homens eram naturalmente belos. De outro ângulo, era visível que a grandeza da mulher na tragédia e nà epopéia só existiu graças à pederastia. Sem a pederastia, a mulher teria sido exposta ao adultério, ou chamada à prostituição, pela volúpia do macho. A pederastia preservou o status de mãe-esposa da muJhet grega, fazendo com que o excesso da volúpia masculina fosse dispendido entre eles, diretamente, pelas relações se.xuais, ou indiretamente, pelos jogos, competições, guerras e demais atividades exclusivas de sociedade de homens. Desprezando todo o contexto da erótica grega, em especial a questão dos amores masculinos, Gide lutava para enobrecer o homo-


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erotismo, impondo a volúpia à reprodução enquanto princípio básico da evolução natural e social. Não percebeu que, virando pelo avesso o naturalismo, continuava preso às noções preconceituosas de norma e desvio naturais. Insistindo em buscar fora da história a caução moral para suas preferências sexuais, concedeu ao inimigo o que pensou subtrair-lhe. O direito à escolha do estilo erótico de vida, no sistema de Gide, continuou sendo custodiado por fatores externos à liberdade política. A tolerância não era reclamada em nome dos direitos individuais, era uma concessão benfazeja das leis naturais. Sem suspeitar, o artista punha sua arte contra a vida, atrelando a ética ao tacão da necessidade.

A ética gideana: entre o ser e o tornar-se Para nossa sensibilidade atual, Corydon envelheceu. Mas se os argumentos de Gide, hoje, parecem-nos desusados, cômicos ou pueris, na época estavam amparados por um formidável dispositivo intelectual. A Gide não faltaram nem conhecimento, nem erudição, nem capacidade para refletir sobre os próprios limites da razão científica. Em certas páginas, Corydon parece fazer eco às modernas idéiac; de Kuhn sobre a presença de paradigmas na orientação da produção científica. Assim, vemos Gide negar a unidade metodológica da ciência ou descrever a prática cotidiana do cientista como se segue: "O grande homem de ciência é tão raro quanto qualquer outro homem de gênio. Os meio-sábios são numerosos o bastante para aceitar uma teoria de tradição, que os guia ou desencaminha, e para tudo 'observar' segundo ela. Tudo, durante muito tempo, confirma o horror que a Natureza tinha do vazio; sim, todas as observações. Tudo, durante muito tempo, confirmou a existência de duas eletricidades diferentes e que eram atraídas por uma espécie de instinto quase sexual. Tudo, no presente, confirma ainda esta teoria do instinto sexual..." (lbid., p. 71 ). Outras passagens curiosamente se aproximam das atuais posições neopragmáticas no que diz respeito ao valor e à função dac; teorias científicas. Corydon diz: "É preciso reconhecer, de início, que é muito difícil supor que uma observação possa ser efeito do acaso, e que caia num cérebro como uma resposta fortuita a uma questão que o cérebro não teria formulado( ... ) As respostas que a Natureza gritou ou murmurou-me, peço que se as verifique. Só quero reler uma coisa: tendo interrogado a natureza com uma preocupação diferente, ela respondeu-me de maneira diferente'' (lbid., p. 73).


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. Ou ainda: "Quero dizer que a importância de um novo sistema proposto, de uma nova explicação de certos fenômenos, não se mede de modo algum unicamente por sua exatidão, mas também e sobretudo pelo élan que ela fornece ao espírito por novas descobertas, novas constatações (mesmo que estas neguem a dita teoria), negue rotas que ela abre, pelos impedimentos que ela levanta, as armas que ela fornece" (Ibid., p. 87). Como, diante disso, compreender a ingenuidade do cientificismo de Gide? Penso que três ordens de motivos int1uenciaram sua pretensão em derivar normas morais de leis naturais. A primeira, mais evidente, radica no dima cultural da época. Gide viveu num tempo mergulhado na esperança positivista em uma humanidade livre por obra da ciência. Nesse sentido, era um espírito crédulo. Ainda em 1930, lendo Moby Dick, -comentava: "Melville fala das cachalotes fêmeas presididas por um único macho turbulento e jovem; e quanto aos machos excluídos, e que não terão acesso ao gineceu, que farão eles? O que se tornarão? Esta questão, tão simples, é possível que eu seja o primeiro a colocá-la? É possível que eu seja o único? É possível que só se responda a ela por meio de risos, ou não se responda absolutamente'!" (Gide, 1948, p. 997). Sua confiança na natureza ou numa explicação natural ao direito social ao homoerotismo jamais arrefeceu. Embora sabendo que a natureza dá respostas diversas a questões diversas, continuava desejando tê-la como aliada na luta contra o preconceito. No fundo, respeitava o que a maioria pensava. Basta, para tanto, comparar Corydon com a rebeldia de Vautrin, anti-herói de Balzac. Livre da hegemonia ideológica do instintivismo e do evolucionismo, Balzac, algumas décadas antes, fizera de Vautrin o protótipo do rebelde romântico. Em sua paixão por Rastignac Calvi e sobretudo por Lucien de Rubempré, Vautrin ridicularizava a comédia burguesa, sem prestar contas a nenhum de seus tótens. Queria o máximo de liberdade c autenticidade, e para isso dispensava o auxílio de qualquer força natural ou convenção social. Gide, não. Desejava a todo custo ingressar na sociedade dos outros, dos que supunha conformes à lei. E, não podendo, quis transformar essa sociedade fazendo sua revolução naturalista-antropológica. Assim, Corydon diz: "o outlove que sou pode aceitar ser posto no índex, abominado pelas leis humanas, pelos costumes de seu tempo e de seu país; mas nunca viver à margem da natureza" (lbid., p. 49). Bem dito, mas meia verdade. Pois a única natureza que lhe interessava era a natureza que lhe permitisse ser uccito, e não abominado pelas leis humanas. Natureza que, aliás, forneceu o jargão legitimador da prática social excludente, que o vitimava e infelici-


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tava. Persistindo em cultuá-la e em fazê-la responsável pela superioridade cultural da vida homoerótica, <;Jidt<.. ~ .tev!!lia de suas int.ençõcs, ajudou .a consolidar o mito de que o "homossexual" é um tipo natural e, como tal, possui um "perfil psicológico", singular e intransferível. A segunda ordem, creio eu, vem de seu ideal estético. Gide propôs-se, enquanto escritor, a seguir a regra da máxima objetividade e precisão. Detestava o desmedido e o preciosismo, fosse de sentimentos ou palavras. Certa vez indignou-se quando um crítico disse que seus escritos eram pleins de larmes et clair de !unes. Em outra ocasião, respondeu à acusação de "coqueteria no arranjo das frases", dizendo: "nada é mais falso. Eu só amo o estrito e o nu. Quando comecei a escrever Nourritures, compreendi que o propósito mesmo de meu livro era banir dele toda metáfora. Não existe um único movimento de minha frase que não responda a uma necessidade de meu espírito; o mais freqüentemente é apenas uma necessidade de ordem" (Gide, 1948, pp. 716-717). Quando dialogava consigo, podia admitir que "o determinismo, ao qual nosso espírito e nosso corpo parecem não poder escapar, responde a causas tão diversas, tão múltiplas e tão tênues que parece infantil procurar desmembrá-las e, mais ainda, reduzi-las" (lbid., p. 813). No entanto, quando escrevia, negava-se a aceitar o caos, a improbabilidade e a imprecisão. Dizia que "não existe pior inimigo do pensamento que o demônio da analogia"; ou, então, perguntava: "o que pode existir de mais cansativo que a mania de certos literatos, que não podem ver um objeto sem pensar, logo em seguida, em um outroT' (lbid., p. 822). Seu ideal pode ser resumido na seguinte frase: "Todos nossos escritores de hoje, falo dos melhores, são preciosos. Espero adquirir cada vez mais pobreza. No desnudamento, a salvação" (lbid., p. 823). Essa estética do despojamento sintonizava-se seguramente com o espírito do burguês protestante. Como quer que seja, parece ter invadido sua ética sexual, tornando-se parâmetro para justificação de seus desejos homoeróticos. Nada mais objetivo e nu que uma ética sexual natural. Nela, nada de metáfora ou indecisões, ambivalências ou deslizamentos. Dela deveriam desaparecer toda a volubilidade dos desejos humanos e toda a arbitrariedade das práticas sócio-culturais. Na natureza, o que não pode ser, não é; o que deve ser, é. Um homoerotismo natural seria aquele onde o sentimento e a descrição do sentimento, o desejo e sua expressão, coincidiriam com a essência da coisa, sem restos ou ambigüidade. Talvez, por isso, Freud o incomodasse tanto e fosse por ele chamado de "imbecil de gênio" (Tbid., p. 785). Dian~_da ética-estética do nu, o mundo alucinado


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dos fantasmas, dos desejos ou das imagens plurais do sujeito parecia a Gide desordenado, supérfluo e precioso. Seu propósito era ultrapassar a metáfora e alcançar o sexual, antes da linguagem inventá-lo. Freud, em oposição, só entendia o sexo mediado por metáforas. Enfim, a terceira ordem de motivos deve-se, a nosso ver, à tradição religiosa de Gide. A consciência cristã protestante e o forte apego à moralidade materna de sua infância nunca deixaram-no verdadeiramente em paz com suas inclinações homoeróticas. Em 1911, em seu Journal, dizia temer que alguns vissem em Corydon apenas a marca de uma obsessão doentia, ou de uma impossibilidade de afastar o espírito de um assunto perturbador (Gide, 1948, p. 340). Pelo contrário, afirm ava ele, "a dificuldade vem precisamente de que devo · reatualizar artificialmente um problema ao qual, de minha parte, dei uma solução prática. De modo que, para dizer a verdade, ele não me atormenta mais" (lbid.). A verdade, no entanto, é que, ainda em 191 6, Gide debatia-se com o problema que acreditava, em 1911 , ter solucionado praticamente. Naquele momento, escrevia: "Senhor, Vós o sabeis, eu renuncio a ter razão contra quem quer que seja. Ah! Senhor, desatai os elos q ue me retêm. Libertai-me do peso apavorante deste corpo. Ah! que eu viva um pouco; que eu respire! Arrancai-me do mal. Não me deixeis sufocar" (lbid., p. 573). Perseguido pela consciência do mal e do pecado, jamais pôde suportar a imagem de transgressão, associada ao homoerotismo. Não por acaso, suas primeiras cxperiêndas homoeróticas só vieram a ocorrer na África do Norte, como sabemos por meio de Se o grão não morre e de O imoralista (Gide, 1983 ~ s/d). Entre as dunas e oásis da Tunísia, ele parece ter conseguido fugir da atmosfera caseira de sua França religiosa. Em meio ao deserto, longe do protestantismo vetusto dos Gide, pôde entregar-se à paixão homoerótica sem recear o dedo de Deus que all parecia repousar de sua eterna vigilância. Mas, de volta à Europa, novamente as dúvidas, o remorso e a autopunição. A descoberta da natureza foi uma solução de compro~i.~so,.uma.trég!!a no conflito. Se o homoerotismo era um fato natural,--o respcjJo . à.le~de Deus estava garantido, já que, para Gide, a nature:t.a nunca foi de fato dessacralizada. Ela era apenas uma manifestação da grandeza de·óeus. Em 1921 , falando a propósito da evolução, dizia: "Compreendo que Deus é o ponto culminante e não o ponto de partida de qualquer criação. O que em nada impediria, aliás, a criação inteira de ser sua obra. Mas ele só se realiza depois de nós. Toda evolução deve culminar em Deus" (lbid, p. 725). E porque a natureza deveria cumprir os desígnios divinos, Gide tinha que


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localizar-se nela de modo a não contrariar suas sagradas finalidades. Mesmo sendo responsável peJa presença do homoerotismo entre os homens, a natureza, refletindo a sabedoria de Deus, sabia separar o joio do trigo. Buscando aplacar a consciência da infração, Gide quis ver a marca do perdão mesmo quando entregue à volúpia. Os homossexuais, segundo ele, não eram todos iguais. Existiam aqueles conforme à natureza e aqueles contra a natureza. Entre I 918-1919: !~hamo pederasta aquele que, como a palavra indica, sente-se atraído por jovens. Chamo sodomita ( ...) aquele cujo desejo dirige-se a homens feitos. Chamo invertido aquele que, na comédia do amor, assume o papel de mulher e deseja ser possuído. Estas três espécies de homossexuais não são de forma alguma claramente diferenciadas; existem deslizamentos possíveis de uma a oulra; mas, com freqüência, a diferença entre eles é tal que experimentam, uns pelos outros, uma profunda repulsa, repulsa acompanhada por uma reprovação que em nada fica a dever àquela que os heterossexuais sentem pelos três. Os pederastas, entre os quais me incluo (por que não posso dizer isto simplesmente, sem que logo vocês pretendam ver, em núnha confissão, fanfarronada), são muito mais raros e os sodomitas muito mais numerosos do que de início pude crer.(... ) Quanto aos invertidos, que freqUentei muito pouco, sempre me pareceu que eles unicamente mereciam a reprovação de deformação moral e intelectual e cair sob os ataques ( ...)comumente dirigidos a todos os homossexuais" (Gide, 1948, p. 671-672).

Essa opinião havia sido, com nuances, emitida por Corydon: "a homessexualidade, assim como a heterossexualidade. têm seus degenerados, seus viciosos e seus doentes; como médico pude isolar. junto com outros confrades. muitos casos tristes, desoladores e duvidosos; pouparei, deles, meus leitores: uma vez mais, meu livro tratará do uranismo bien portant, ou como você dizia há pouco; da pederastia normal". (Gide, 1987, p. 32) A pederastia normal, ou seja, a preferência homoerótica de Gide, era responsável pela cultura da gloriosa Grécia, ou pelo apogeu da beleza ma<;culina na escultura renascentista. Já os outros, os "invertidos", eram degenerados, maníacos, ou doentes (lbid., p. 132). Pouco importa que Gide temperasse a acusação feita a eles, afirmando que eram um fruto da oposição entre costumes sociais e apetites naturais. O importante é que sua "pederastia normal" brotava da natureza como a água da fonte, enquanto o homoerotismo alheio era uma aberração natural e sociaL É verdade; entre os médicos, psiquiatras e sexologistas do século XIX, essa mesma hierarquia do estigma, no domínio das práticas homoeróticac;, foi moeda corrente. Mas em Gide era signo de sua vontade de transfigurar o mal e o vício, mesmo às custas da fabricação de uma outra categoria de


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malditos. A benevolência divina tinha um preço, a danação do diferente. A natureza por ele inventada previa o lugar da pena e do pecador. Em outros termos, de um lado falava a língua da economia, da biologia, da história e da antropologia; de outro, em contraponto, repetia o decálogo e os sete pecados capitais. O burguês cultivado, liberal e vítima do preconceito defendia o princípio da volúpia; a criança protestante, frágil e amedrontada buscava um remédio leigo para a alma atormentada. Qual dos dois era o verdadeiro Gide? Deixamos de lado o jargão da autenticidade. Depois de Freud, sabemos que somos apenas um feix e de crenças e desejos. E, para evitar a acusação de advogar em causa própria, ou em defesa da corporação de praticantes da disciplina que exerço, repito com Genet: "Somos todos vítimas de posters". O Gide conformista, delegado das ideologi a<~ do século XIX, pretendia objetivar a natureza do erotismo humano recoJTendo à posse, auto-atribuída, do conhecimento das leis da natureza. Como mui tos espíritos atuais, temia aceitar a mortalidade dos vocabulários que, em cada época, apresentam-se como o fim das interrogações, e da conversão da humanidade. Este Gide, como tantos outros, antes e agora, queria exorcizar o fantasma da futilidade dac; instituições humanas. Queria encontrar um critério a-histórico que, revelado à razão pela intuição, permitisse aos homens afirmar in petto o que Rorty denunciou em alto e bom som: mesmo qu~os persas tivessem exterminado os gregos, mesmo que os romanos tivessem eliminando o cristianismo, mesmo que a restauração tivesse apagado os traços da revolução, mesmo que a Inglaterra tivesse esmagado a revolução norteamericana, mesmo que Freud tivesse morrido em lugar de Fleischel, mesmo que GaliJeu tivesse sido queimado pela Inquisição, mesmo que Newton e Marx tivessem morrido prematuramente, ainda assim, um dia, os homens futuros descobririam os valores e crenças da cultura ocidental, e construiriam um mundo à nossa imagem e semelhança. (Rorty, op. cit., p. 937) Esse medo narcísico de que nossa comunidade não tenha, a exemplo dos crentes, o direito à ressurreição, fez-nos temer a morte e acreditar que tudo aquilo que respeitamos e queremos conservar só é respeitável e desejável porque assim está escrito nas estrelas ou no coração de cada um. Esse medo, que Freud tão bem diagnosticou em "O futuro de uma ilusão", "O mal-estar da cultura", ..Moisés e a religião monoteísta" etc., di.z -nos que Deus ou a natureza falham mas não tardam; portanto, se no princípio não era a "reprodução", então era a volúpia; e se não for a volúpia, então serão os códigos genéticos, as leis da economia, os invariantes psíquicos, us estruturas de parentesco e da linguagem, as permutações simbólicas, a


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afirmação da vida ou os padrões funcionai s e disfuncionais de comportamentos adquiridos. A verdade fala por si c, querendo ou não, os homens sempre encontram seus verdadeiros intérpretes, apesar da estupidez dos que tentam emudecê-la. O outro Gide, pelo contrário, falava do oratório que existe ao lado de todo laboratório, como jocosamente rimou Lcnoble. Sem aceitar que pudesse ser pecado o que sentia, resolveu o impasse pelo caminho mais curto. Recriou uma filiação onde o que era pecado tornou -se graça. Assim como Proust criou o mito da raça de Sodoma, plena em sua origem, e, agora, voltada à produção do belo e sublime, no caminho de volta à perfeição perdida, Gide também criou sua Idade de Ouro. No começo era a Grécia. Ali, os machos amavam uns aos outros, o casamento era santificado, a esposa-mãe idealizada e, a infância, protegida. Os homens, todos viris, cultivavam o gosto pela cidadania, pela honra, pela bravura, pela coragem, pelo companheirismo e pela abnegação ascética. Desejo de Deus, ordem natural e mandamentos éticos eram indistintos. Depois veio a queda, o império do mal e, com eles, a primazia do heterossexual. Contrariando a harmonia das coisas, inventou-se o "instinto de reprodução", bisonho álibi da decadência moraL Mesmo assim, algo do Eden resistiu à desgraça. Por exemplo, dizia Gide, o código napoleônico e os costumes sexuais dos militares alemães. Segundo Corydon, se o código napoleônico evitava punir a pederastia era porque Napoleão, sabiamente, quis proteger seus generais da infâmia e seus exércitos da derrota. E feliz era o país que, como a Alemanha, cultivava a pederastia em suas fileiras armadas. Um exército de amantes é imbatível. A sabedoria clássica intuíra isso, ou melhor, descobrira isso. Se assim não fosse, como explicar o sucesso de Esparta? E o que fazer dos exemplos de Agesilau, Epaminondas e, por fim, do exemplo mais que exemplo de Aquiles e Pátrocles'? O paraíso era homoerótico; quem duvidasse, que olhasse o exemplo dos homens de Atenas, da vida animal ou dos militares franceses e alemães. Essa imagem da decadência dos tempos modernos foi a mesma usada por Morei, psiquiatra francês, criador da teoria da degenerescência. Para explicar a degeneração sexual, Morei, com seu catolicismo conservador, também servi u-se da idéia de um paraíso perdido, cuj as sobras eram as aberrações mentais e sexuais que o século XIX presenciava. Gide, é claro, não reproduzia as teses de Morei, que não conhecia, ao que tudo indica. Reproduzia, isto sim, a ideologia que o manteve atado ao que Baldwin chamou "a prisão do macho" . À semelhança de Ulrichs, criador da imagem do uranísta como "uma alma de mulher num corpo de homem", Gidc


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procurava convencer-se e convencer os outros de que a verdadeira alma masculina era a alma do pederasta. Não pôde dar-se conta do contrasenso ideológico implícito nessa idéia. O código moral que o discriminava definia a subjetividade masculina burguesa, entre outras coisas, como aquela que se opunha à forma abortada de masculinidade que era o homossexual. Querendo salvar a masculinidade da pederastia, não só remava contra a maré, como engrossava a rasteira propaganda nacionalista c chauvinista que, na Europa, em especial na França, buscava desmoralizar o agressivo e belicoso exército prussiano, pintando-o como covil de homossexuais. Pior que isso, comprando essa grosseira idéia feita, desconhecia que a suposta difus ão do homoerotismo no exército era um clichê ~anipulado pelo conservadorismo alemão, com vistas à defesa das instituições germânicas contra a praga homossexual que infestava a sociedade. Inadvertidamente, por submissão à ideologia da masculinidade, alinhavase ao que de pior havia em matéria de repressão aos direitos individuais, e que redundou tempos depois, na presença dos triângulos rosas nos campos de concentração . ~orém , ao lado do Gide cientificista e do Gide protestante, havia o Gide artista. Este sim, podemos dizer, sabia sem saber ou sabia e não acreditou saber. Quando na maturidade, aos 58 anos, escreveu "Je ne suisjamais,je deviens. Je deviens celui queje crois ou que vous croyez que je suis", Gide superou seu tempo. Não nascemos e morremos sendo; todos, no curso da vida, nos tornamos. Tomamo-nos aquilo que as circunstâncias nos permitem ou aquilo que inventamos para modificar as circunstâncias. Porém, tanto as circunstâncias quanto o que as altera não são leis ou descobertas · de leis que decretam o que a natureza humana verdadeiramente é sub specie aeternitatis. São coisas ou estado de coisas; eventos ou interpretações de eventos criados pelos homens, na interação com o mundo. Tudo isso, concordo, num certo sentido é trivial. Mas sempre que esquecemos essa banalidade, passamos a querer que nossas convicções, ou as crenças que aprovamos, tomem-se uma obrigação de todos, inclusive daqueles que não pensam, não sentem e não vivem como nós. Com este último Gide, e não obstante ele próprio, entendo que não existe tal coisa como uma "identidade homossexual", uma "essência nulUral do homossexualismo" ou uma "estrutura da homossexualidade", se com estas expressões pensamos designar uma realidade objetiva, que prcexista às descrições e crenças contingentes que temos do assunto. Não penso, porém, substituir tais concepções por uma outra que diga qual a


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única ética sexual a ela adequada, porque dela decorrente: este foi o equfvoco de Gide. Penso apenas em propor que: se descrevermos o homoerotismo como uma possibilidade a mais que têm os indivíduos de se realizar afetiva c sexualmente; se descrevermos as j:>rãtiC.is ·homoeróticas como um campo polimorfo e múltiplo, cujo enquadre Óu~á ciãsse ou família natural deve-se apenas ao modo ~orno cat:ãl'~samÕ.~ ~ valorizamos as condutas sexuais entre nós; se, enfim, desistirmos de ver o "homossexual" como uma realidade natural ou psíquica que antecede as form as de vida e os jogos de linguagens que o prod.u7:íê~;pois -~~~_sé procedermos assim, poderemos mais facilmente .continuar. r.espeitandQ e cultivando outras crenças igualmente importantes Pl!!~,nos.~as vidas. Continuaremos cultivando, por exemplo, a crença dê que o direito à vida, à liberdade e à busca da felicidade são direitos inalienáveis de todos os indivíduos; continuaremos cultivando a crença de que se a vida e a liberdade são problemas de todos e que por todos devem ser discutidos e resolvidos, a busca da felicidade é problema de cada um; finalmente, continuaremos cultivando a crença de que a busca da felicidade não precisa justificar-se, exceto quando esbarra na dor e na humilhação do outro. Uma vez mais, entretanto, proponho que acreditar nisso tudo não é o mesmo que afirmar que todos os sujeitos, em todos os mundos logicamente possíveis, levarão a sério tais idéias éticas. Mais importante que tentar saber se os andróides da galáxia XPTO serão obrigados por uma necessi~ dade lógica ou estrutural a descobrir a verdade daquilo em que acreditamos, mais importante, penso, é estarmos dispostos a discutir suas idéias e, eventualmente, a aceitá-las, se parecerem melhores que as nossas. Por enquanto, se mantemos nossas crenças e ideais, não é por achá-los funda~ dos em princípios da razão cogcnte, mas porque, até o momento, nenhum outro candidato ou competidor apresentou credenciais suficientes para ocupar seu posto. Por tentar inventar uma verdade moral que fosse algo mais que as crenças que nos são úteis e que não exigem, no atual estado de conversação, razões suplementares para serem admitidas, Gide tropeçou na própria pretensão. Quanto mais tentava naturalizar o "homossexualismo", mais reforçava o preconceito que define os indivíduos homoeroticamente inclinados como uma espécie à parte de homens ou subhomens. Seu exemplo, apesar de restrito ao sexual, pode ilustrar a tendência que temos a fa7.er dos nossos valores e ideais, em qualquer esfera da prática social, norma natural para a condenação do diferente.


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Enfim, para concluir, não pretendo justificar o que penso postulando a idéia de uma cultura sem interditos, cuja regra fosse tudo permitir. Tal ficção não é só inconcebível; é falaci osa. Falaciosa porque formulada justamente para exigir critérios a-históricos que definam o bem e o mal. A hipótese de uma cultura permissiva, tal como podemos imaginá-Ia atualmente, carrega consigo a ameaça do horror. Ora, uma cultura tolerante não é aquela que tudo permite. Esta seria, no melhor dos casos, uma cultura impossível, como disse Philips Rieff (Rieff, 1982); no pior dos casos, uma cultura do cinismo e da indiferença, sala de entrada da monsttuosidade. Tolerante é a cultura que não aceita viver seus ideais; mas aceita de bom grado rediscuti-los, em função de ganhos e vantagens _práticas. Ganhos e vantagens que só fazem sentido quando apreciados do prisma do vocabulário que criou a própria idéia de tolerância. ou seja, do vocabulário da ttadição democrática. Só com base nesse vocabulário é possível falar-se de uma ética da tolerância e, portanto, a circularidade da justificação não é aqui ocultada, é exposta e assumida. Ser tolerante, a meu ver, não é agir, pensar e falar conforme ordena a essência da tolerância, ou a "essência" da idéia de tolerância ou do conceito de tolerância. É agir, pensar e falar de modo a evitar os exemplos de intolerância que conhecemos: intolerância racial, sexual, étnica, estética, religiosa, política, social etc. Assim, creio eu, aprendemos a reconhecer o que é tolerância e intolerância, e não lançando mão de critérios ou regras de correspondência que permitam, em qualquer tempo e lugar, aplicar corretamente tais conceitos, independentemente do uso que se faz deles. Ser tolerante com respeito ao homoerotismo, como de resto com· qualquer uma das chamadas minorias, não significa afirmar que toda conduta humana é tolerável e pode aspirar ao direito de cidade. Esse raciocínio é típico do terrorismo-conservador, que, explícita ou sibilinamcnte, deixa entender que se dizemos sim às práticas homoeróticas, por que dizer não, por exemplo, à violência sexual contra os majs fracos? Isso é falso porque parte da premissa de que não temos ideais. A prática homoerótica entre iguais que consentem em participar da expcriencia não é lesiva a nenhum de nossos credos e ideais; o abuso de força, ao contrário, anula automaticamente ou o direito à vida, ou à liberdade, ou à busca da felicidade de quem a ele é submetido. Não é bastante? Pois bem, aceito discutir algo melhor. Até lá, repito com Freud: a quem renunciou encontrar o ponto onde as trevas se separam da luz, resta apenas tentar aclarar as pequenas e vizinhas obscuridades.


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BIBLIOGRAFIA GIDE, André , - Journal (1899-1939). Paris, Gallimard, 1948. - O i moralista. São Paulo, Cfrculo do Livro, s/d. - Se o grão não morre. Rio, Nova Fronteira, 1983. - Corydon. Paris, Gallimard, 1987. FOUCAULT, Michel, História dtl sexualidade li - O uso dos prazeres. Rio, Graal, 1984. LARMORE, Charles, "Les limites de la réflcx.ion en éthique", in Lectures philosopMques - Éthique et philosophie polilique, direção de François Recanati, vários autores. Paris. Édition Odile Jacob, 1988. · RIEFF, Philip, "The impossible culture: Wilde as a modem prophet", in Salma8 undi; 0° 58-59, outono 1982-invemo 1983; pp. 407-426. RORTY, Richard. "Solidarité ou objectivité", in Critique; dezembro de 1983, n° 439, pp. 923-940. TRJPLETI, T., "Rorty's critique offoundationalisme", in Philosophical Studies ; n° 52 (1987). pp. 11 5-129.



Conjugalidade, ética sexual e parceria homoerótica

Neste trabalho pretendo analisar o papel da ética sexual conjugal no destino da parceria homoerótica masculina. Antes, porém, uma precisão. Prefiro o termo homoerotismo a homossexualismo porque este último, além da conotação preconceituosa do senso comum, está excessivamente comprometido com a ideologia psiquiátrica que lhe deu origem. Fora isso, homossexualismo tem a desvantagem de ser uma noção teoricamente frouxa e clinicamente pobre. Sem meias palavras, é uma noção que, quando não atrapalha, também não ajuda. Homoerotismo, ao contrário, obriga-nos a rever o modo como pensamos no fenômeno da atração pelo mesmo sexo. Historicamente, a palavra foi empregada com sentido próprio, distinto de homossexualidade, por Ferenczi, em um dos melhores estudos sobre o tema produzidos pela literatura psicanalítica (Ferenczi, 1970). Nesse estudo, Ferenczi mostrou que o grupo das práticas homoeróticas ultrapassa a extensão e a significação habituais do conceito de homossexualidade. Na tradição desse pensamento, proponho que assimilar homoerotismo a homossexualismo significa amarrar teorias, analistas e analisandos à teia imaginária responsável pelo nascimento histórico do "homossexual". Por esse motivo, cada vez que utilizar os termos homossexualismo, homossexualidade ou homossexual, estarei citando o pensamento ou falando do ponto de vista de quem identifica algum outro ou a si como homossexual. De minha parte, acho que homossexualismo é uma configuração histórica particular das práticas homoeróticas, donde a preferência pelo termo homoerotismo, descritiva e clinicamente mais rico. Isso dito, passemos ao tema central do trabalho. A relação entre conjugalidade e ética sexual pode ser analisada de vários ângulos. Deixo de lado, por razões de método, o aspecto jurídico-político do problema,


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assim como a dimensão estrutural que subordina o laço conjugal à ética sexual da ordem do parentesco. Embora saiba o quanto essa dimensão é enfatizada pela psicanálise, meu intuito é explorar a ética sexual conjugal enquanto ideal moral social. Começo, então, por uma afirmação mais ou menos consensual entre os historiadores das mentalidades ou das vidas privadas. Nem sempre o ideal moral das condutas sexuais esteve associado à conjugalidade. Na Grécia clássica, por exemplo, as éticas sexuais eram sobretudo referidas aos chamados amores masculinos e tinham como modelo não a conjugalidade mas as relações pederásticas. Com pequenas variantes, como afirma Veync, o mesmo poderia ser dito dos costumes romanos, peJo menos aqueles vigentes no apogeu da República e do Império (Veyne, 1987). Com suas numerosas prescrições e interdições, as relações pederásticas monopolizavam o imaginário social antigo, deixando pouco espaço para a tematização do vínculo conjugal. O casamento não existia entre homens, pelo menos na Grécia. Em Roma, os poucos casos referidos por Doswell não chegam a demonstrar a relevância das uniões conjugais masculinas. (BoswelJ, 1980). O laço conjugal era, portanto, um contrato entre homens e mulheres, informalmente regido pelas obrigações religiosas e pelas necessidades próprias à reprodução da família e ao bom governo da casa. Isto é, tratava-se de um fato da vida idiossincrática do sujeito, da esfera do privado, e não da vida pública, do bios politikos que, para os gregos, era a verdadeira esfera da liberdade. Portanto, à justiça da pólis importava pouco a questão daconjugalidade, exceto no tocante à transmissão de bens. Mulheres, escravos e crianças, os habitantes da casa, não participavam da . vida em comum ou da esfera do público. Estavam presos ao reino da necessidade, e a ética grega era primordialmente uma ética dirigida ao homem livre. Em contrapartida, a relação entre homens e adolescentes livres era objeto de um verdadeiro bombardeio de discursos éticos. Estes eram cidadãos ou futuros cidadãos e, por isso, suas relações deveriam tender, tanto quanto possível, para a harmonia, para a boa medida. Ou seja. deviam ser purificadas de todo excesso ou iniqüidade. Assim, a ética sexual grega era uma ética masculina, que discriminava mulheres, crianças, escravos e estrangeiros, voltando-se exclusivamente para os cidadãos livres e iguais diante da cidade. A conjugalidade só entrava em cena para ilustrar o direito do senhor sobre os sujeitos privados de cidadania. O casal sexual, por excelência, era formado pelo erastes e pelo erômenos, e não pelo homem e pela mulher, na relação de casamento. Além disso, não se tratava, como


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modernamcntc, de discutir a mutualidade ou equivalência de direitos entre adultos dos dois sexos, mas que tipo de reciprocidade deveria haver entre desiguais na ordem das gerações e iguais na ordem política. Assim , as recomendações éticas preocupavam-se sobretudo em louvar a beleza dos adolescentes homens~ em protegê-los dos abusos sexuais dos adultos; em condenar a compra de favores sexuais, contrafação da pederastia; em repudiar e proibir a prática da penetração anal, aviltante para o erômenos; em determinar até que ponto se devia ser passivo sem rebaixar sua condição de cidadão; em elogiar a renúncia ou contenção do prazer; em incentivar a abnegação e a fidelidade ao amado etc. . Durante séculos, filósofos, literatos, poetas e moralistas levaram esses ideais a sério~ durante séculos, o ideal da ética sexual nada teve a ver com / a conjugal idade ou com a parceria homem-mulher, e nem por isso deixou : de ser considerado suporte da boa vida política e da boa vida moral. O que · atualmente parece estranho, ridículo, segregador ou constrangedor para alguns, um dia foi privilégio dos espíritos elevados e de civilizações que acreditavam representar, no que pensavam , a última e verdadeira palavra da Razão humana. Esse ideal, no ocaso do Império Romano, como mostram, entre outros, Dover (1989), Boswell ( 1980), Brown (1990a), Vcyne (1987; 1990) c Foucault (1985; 1989), caiu em desuso. As crenças que o sustentavam foram desinvestidas política, filosófica e moralmente. Com a hegemonia do ascetismo pagão e cristão, o imaginário cultural deixou-se empolgar por outras convicções e prioridades. Após o advento da temática da carne e. do sexo, os sujeitos passaram a ser concebidos como iguais diante do pecado, da tentação, da graça ou da salvação, dependendo da maneira como se entregavam ou refreavam a volúpia e a concupiscência (Brown, 1990a; 1990b; Foucault, 1987). _A ética sexual masculina do uso dos prazeres e do cuidado de si deu lugar à ética di.vrrgindadee da·castidade, da proteção à família, às esposas, às viúvas e às cria~ças (Boswell, 1980; Foucault, 1984; t 985; 1989). Expurgadas dos conteúdos pederásticos, as regras da erótica masculina foram reelaboradas e enxertadas na conjugalidade heteroerótica. Desde então, temas como a fidelidade e o adultério, que nunca intervieram na relação dos senhores com suas esposas, hetairas e favoritos, começaram pouco a pouco a definir o novo padrão da moralidade sexual e conjugal. Inicialmente, tal mudança ocorreu em sintonia com a ruralização da vida feudal e o centralismo político e doutrinário da Igreja Católica (Boswell, 1980), e depois com o lento aburguesamento do núcleo familiar europeu (Costa, 1979; Donzelot, 1977~ Foucault, 1976; Lasch,


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1979a; 1979b; 1979c; 1979). Finalmente, ao término do século XVIII e começo do século XIX. a ética sexual chegava à completa simbiose imaginária com a conjugalidade. Esta, penso eu, é uma das mais plausíveis interpretações da gênese de nossa moral sexual civilizada, onde o laço conjugal ocupa a função de modelo e norma frente às demais práticas sexuais. Acontece que esse ideal moral, não obstante atender razoavelmente bem à maioria de todos nós, deixa órfãos de aprovação muitos outros pleitos eróticos. Entre eles, todos os catalogados por Kraft-Ebing, na sua Psychopathia sexiUllis. Kraft-Ebing, se não foi o pai fundador, foi seguramente o sumo sacerdote do decálogo sexual moderno. Sua influência e seu prestígio sequer foram abalados por Kinscy e por toda a força da ·mídia norte-americana. No entanto, quando analisamos seu trabalho em retrospectiva, vemos que apesar de volumoso ele é espantosamente simples. Kraft-Ebing herdou de seus contemporâneos as noções de norma e desvio naturais, originadas do instintivismo, do evolucionismo, do psicofisicalismo e das demais correntes do positivismo naturalista do século XIX. Em seguida, classificou e arquivou todas as aberrações, degenerações, anormalidades e anomalias sexuais que pululavam anarquica,mente naquelas teorias, em tomo de um duplo eixo semântico, a linha do prazer e a linha da reprodução. Como resultado, organizou de um lado a fileira dos bien portants, dos normais, que se excitavam com pessoas do sexo oposto e punham a excitação a serviço da reprodução; de outro, os perversos, que só se excitavam com partes dos corpos das pessoas e que não tinham compromissos com a reprodução; e, por fim, entre os dois, no no man 's land sexual, acomodou os invertidos que, apesar de se excitarem com pessoas, só sentiam atração pelo mesmo sexo e, portanto, também traíam a finalidade reprodutiva da natureza e do instinto de conservação da espécie. O homossexual, o invertido, ocupou assim todas as posições border-line do sistema. Quando não pecava por excesso ou distorção do prazer, pecava por crime de lesa-natureza ou lesa-humanidade (KraftEbing, 1969). Com esse esquema simples, Kraft-Ebing traduziu tudo o <tue a mentalidade ocidental, leiga ou científica, quis saber sobre o sexo. Com essa simples invenção, convenceu a maioria de todos nós de que o homossexualismo existe, e que sua teoria era um espelho da realidade ou uma descoberta intuitiva e objetiva da verdadeira natureza da sexualidade. A partir de Kraft-Ebing, a nova cidade sexual estava pronta, com seus cidadãos de primeira classe, os cônjuges, e com seus párias, os deficientes


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conjugais. E, daí por diante, a ética sexual conjugal pesa sobre a moral de seus trânsfugas, como os mandamentos sobre a alma dos crentes, em especial dos pecadores. Aqui começa propriamente o assunto de que vou ocupar-me e que, sem esta introdução, perderia grande parte de seu sentido. Tendo assistido dezessete homens adultos que procuraram análise queixando-se de "homossexualismo", " medo de homossexualismo" ou ..suspeita de homossexualismo"; tendo assistido, além do mais, outros que, sem esta queixa explícita, revelaram no curso da análise terem tido experiências homoeróticas ou algum tipo de atração homoeróti ca relevante; tendo enfim consultado 25 entrevistas feitas com homossexua.is, de um total de 100 até agora realizadas por colegas antropólogos, atualmente ocupados com a questão do jmpacto psicossocial da AIDS, pois bem, a partir dessas fontes, pude notar uma curiosa convergência no que concerne à importância do ideal sexual conjugal na trama sintomática apresentada por tais sujeitos. Estas observações, é óbvio, são passíveis de reinterpretação, bem como as conclusões parciais a que cheguei até o momento. Mesmo assim, acredito que podem ajudar-nos a entender alguma coisa a mais sobre a chamada homossexualidade. Em primeiro lugar, pude notar o que de certa forma já antedpei. Em todos os casos de auto-rotulação de "homossexualidade'', dois fatores promoviam a inclusão dos sujeitos na família natural ou classe lógica dos homossexuais, segundo a definição da família e classe dada por Thomas Kuhn ( 1989). Primeiro, a presença do sintoma da ·atração homoerótica ou da dúvida quanto ao homoerotismo da atração sentida; segundo, a conversão automática e imediata dessa atração, em crença na identidade, estrutura ou essência homossexual da própria sexualidade. Nos dois casos, o parâmetro para o julgamento emitido era a noção de desvio da forma "natural" da sexualidade. que era o heterossexualismo. A ética sexual conjugal, aqui, funcionava como norma implícita para a avaliação do desvio. Embora sem estar manifestamente tematizada, como nos dois próximos itens, era responsável pela divisão dos homens em homossexuais e heterossexuais, mito que ganhou foros de realidade psíquica para os sujeitos. Contudo, a aparente redundância ou identificação imaginária da atração homoerótica com a homossexualidade é aquilo mesmo que precisa ser analisado, e não tomado como um dado. A suposta identidade nem é um fenôme no natural, nem uma realidade objetiva, independente dos jogos de linguagem~ das formas de vida em que é pensada. Pelo que pude inter-


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pretar, o sintoma da atração homoerótica ocupava funções totalmente di versas na economia psíquica dos sujeitos. A crença em que toda tendência same-sex oriented é atributo de uma mesma identidade homossexual era apenas o recurso de que eles dispunham para assegurar narcisicamente a posse de uma identidade social, no universo da heterossexualidade conjugaL Se observarmos com cuidado, veremos que o sujeito com inclinações homoeróticas não dispõe de modelos identificatórios que possam compatibilizar essas inclinações com o ideal da ética sexual conjugal. A presença do desejo pelo mesmo sexo retira-lhe a possibilidade de identificar-se como um homem, e só esse homem, diante dos ideais, atende às exigências prévias da sexualidade conjugal. Resta-lhe, então, identificarse como o que sobra. E o que sobra é a figura do homem manqué, do 'homossexual, com um "a-menos" da virilidade fática imposta pelo ideal moral, com o qual, de resto, a maioria dos homens assim rotulados sonha e aspira. Mas a identificação sócio-sexual é produto do imaginário histórico. Nem a fenomenologia da atração homocrótica, nem a singularidade dos complexos fantasmáticos levaram-me a acreditar na existência de uma estrutura psíquica comum a todos esses sujeitos, fato j á notado por Stoller, em seus trabalhos psicanalíticos sobre o assunto (Stoller, 1979; 1987). Do ponto de vista da intensidade da atração, o homoerotismo variava desde um forte apelo por rel ações físicas até um mitigado desejo de companheirismo erotizado, batizado de amizade. Entre os dois pólos, as fronteiras contraíam-se c dilatavam-se, em função das mais diversas posições subjetivas. Frustrações ou gratificações amorosas, fracassos ou sucessos profissionais, períodos de maior ou menor depressão etc., tudo fazia pender a balança do desejo homoerótico para um ou outro lado. Do mesmo modo, o fantasma ou fantasmas que davam acesso ao objeto e ao gozo imaginário também eram extremamente diversificados. Alguns contentavam-se em alimentar a dúvida sobre sua homossexualidade, fantasiando encontros românticos com amigos ou relações esporádicas com parceiros anônimos, mas sem jamais passarem ao ato. Muitos sequer concebiam a idéia de uma relação sexual com um indivíduo que "de fato fosse homossexual". Isto é, só se imaginavam tendo relações sexuais impossíveis, dado que o parceiro fantasiado, por ser heterossexual, estava automaticamente posto fora da hipotética parceria. No que tange à atração por mulheres, a variação era igualmente enorme. Uns tinham histórias de apaixonamento e satisfação sexual plena nesse tipo de relação; outros eram casados, com filhos, sem nunca terem sentido


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carinho ou ternura pelas esposas, mas apenas atração física. Outros, ainda, envolviam-se afetivo-sexualmente com mulheres, mas, mesmo durante o envolvimento, continuavam sentindo-se atraídos por partes do corpo masculino. Finalmente, no que diz respeito à inibição sexual, traduzida por impotência ou ejaculação precoce no coito heterossexual, a variação não era menor. Quase todos tinham dúvidas quanto à capacidade de manter relações heteroeróticas, mas quase todos conseguiam concretizá-las; alguns, sem nenhuma dificuldade. Naturalmente, pode-se dizer que a amostra de que me sirvo não é exaustiva nem representativa de todo "homossexualismo". Por exemplo, daqueles homossexuais exclusivos que nunca procuram nem jamais procurarão análise, posto que se sentem muito bem adaptados à própria homossexualidade. Relembraria, em primeiro lugar, que não estou me referindo apenas às pessoas que me consultaram, pedindo análise. Todas as entrevislas antropológicas que usei como fonte foram feitas com indivíduos que nunca pensaram em analisar-se e que são, segundo a visão corrente, homossexuais exclusivos. Em segundo lugar, acho que tal crítica é informada pela crença que pretendo combater, qual seja, a de que existe um "homossexual típico". Mas pergunto: o que entendemos por homossexual típico? "Homossexual típico" , para falar livremente do que pode ser falado, é o homossexual personificado nos romances de Genet ou nas biografias de Pasolini e Fassbinder? Ou os "homossexuais típicos" são os atormentados personagens de Gidc, Christopher Isherwood, Forster, Julien Green, Gore Vida}, Dominique Fernandez ou David Lcavitt? Ou, ainda, os "homossexuais t(picos" são os desinibidos heróis de alguns livros de Peyrefitte e James Baldwin, ou de Stephen Spender, Marcos Rádice, Alex.ander Ziegler etc., sem contar com toda a literatura sobre o tema, surgida depois da AIDS? Ou, por último, o "homossexual típico" é o homem portador de trejeitos e maneiras efeminadas? Se é um desses, os outros, o que são? Se são todos esses, o que têm em comum para serem catalogados numa mesma rubrica? 1 _,!1 ml(.l! ..Y.e.r._q_~:ho!llossexual típico", como toda figura de exclusão, é um Pll!O estereótipo dÓ. preconceito/ O "homossexual típico" é uma realidade tão palpável quanto o português da anedota, o "judeu típico", o " negro típico" ou, de maneira mais inocente, o "paulista típico", para o carioca, e o "carioca típico", para o paulista. O que cxist~ d~ _ típico no homossexual é a _çrenç~ d e que todo sintoma ou signQ do desejo homocrótico é si nal de ~~homossexu3J.isrrio": Mas é precisamente a mecânica dessa tradução automática de homoerotismo em homossexualismo que


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está sendo posta em questão! Em minha opinião, todos esses sujeitos são levados a identificar-se como homossexuais da mesma maneira que a monja, a braços com a tentação carnal, tornava-se possuída, e a megera linguaruda, rabujenta e abusada do vilarejo medieval tomava-se feiticeira. Antes da invenção do homossexual, Vautrin, na Comédia Humana de Balzac, nunca fez de seus desejos homocróticos prova da deficiência de sua masculinidade ou incompetência conjugal. Pelo contrário, usava o homoerotismo, na boa tradição do romantismo rebelde, como forma de desmascarar a hipocrisia burguesa, inclusive a hipocrisia conjugal. Tomava seu modo de amar como mais verdadeiro e mais autêntico que as relações de i~teresse, comandadas pelo dinheiro e vontade de ascensão social, regra corrente na burguesiaearistocraciaparisienses (Balzac, 1949; ·1952; 1978). De modo similar, Bom-Crioulo, personagem de Adolfo Caminha, nunca entendeu sua paixão sensual e tresloucada pelo grumete como índice negativo de sua virilidade. Cedia a seu desejo como cedia à fome, sem fazer de sua preferência sexual algo contra sua identidade masculina (Caminha, 1983). É verdade, pode-se retrucar que esse dédalo imaginário nada acrescenta à psicanálise. Superestimar sintomas é apenas levar Freud de volta à taxonomia psicológica e culturalista, com que ele rompeu. O importante, dir-se-á, é a estrutura ou a economia psíquica comum a todos os homossexuais. Porém, até prova suficiente em contrário, sugiro que não existe tal coisa como o homossexual e, conseqüentemente, buscar a ordem do desejo comum a todas as instâncias teóricas ou empíricas desse conceito é uma falácia. Do mesmo modo, sustento que, mesmo a versão mitigada da afirmação, qual seja, a de que homossexualismo é sempre expressão de alguma neurose - no sentido da clínica psiquiátrica - ou de alguma perversão - no sentido da clínica psicanalítica - , e não traço de uma estrutura particular, mesmo esta versão parece-me inaceitável. Do meu ponto de vista, o que há de comum no funcionamento psíquico dos homossexuais não é alguma coisa correlata a uma mesma economia do desejo ou a uma mesma posição subjetiva diante de um mesmo fantasma ou cenário fantasmático. O que une os "homossexuais" num mesmo conjunto perceptivo-interpretativo ou numa mesma família natural, na acepção de Kuhn, são as regras de identificação sexual geradas pelo imaginário social da exclusão. Assim, aquilo que é chamado por alguns autores de traços de personalidade ou de estrutura psíquica da homossexualidade, chamo de resposta psíquica ou estratégia defensiva posta em


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marcha pelos sujeitos diante das injunções morais dcsqualificantes produzidas pelo preconceito. Considerando, entretanto, os limites deste trabalho, vou deter-me na acepção psicanalítica da homossexualidade como perversão, pois considero que esta é a visão predominante na produção intelectual sobre o assunto, não obstante a opinião contrária de uns poucos autores, inclusive do mais importante deles, Jacques Lacan. Essa concepção, acredito, é produto de uma dupla crença, sujeita a discussão. Em primeiro lugar, reinsisto, é produto da crença na realidade objetiva de "um homossexualismo", propriedade comum de todos os "homossexuais"; em segundo lugar, da crença em que o traço comum a toda "estrutura homossexual" é o traço da perversão. Ora, ao que entendo, a idéia da estrutura homossexual como uma modalidade da estrutura perversa é uma idéia filha de Kraft-Ebing e de alguns momentos infelizes de Freud que, em certos estudos, deixou-se contagiar pelo vírus do preconceito psiquiátrico do século XIX. Digo bem, do século XIX, porque tal afirmação sequer seria justa se considerássemos as classificações psiquiátricas recentes. Diante destas, a perversão homossexual da psicanálise faz a triste e pífia figura de guardiã da belle époque. A noção de homossexualidade como perversão parece-me indefcnsável pelo simples fato de não dispormos ainda, em psicanálise, de uma teoria sobre o fenômeno perverso que seja ao mesmo tempo coerente nos próprios termos, e razoavelmente aplicável aos casos diagnosticados como casos de homossexualismo. Dado que este não é o meu principal problema, vou apenas aludir rapidamente a esse ponto. Em minha opinião, todos os elementos aos quais habitualmente recorremos para descrever o que é uma perversão ou são teoricamente inconsistentes ou não são exclusivos dessa estrutura, se é que ela existe. Em psicanálise, a perversão foi sucessiva ou simultaneamente definida como o efeito da autonomia das pulsões parciais frente ao primado genital, seja por regressão, seja por fixação; ou como falha identificatória na travessia do Édipo onde, no caso homossexual, havia identificação com a mulher, de diversas formas; ou como manifestação da posição subjetiva de desafio e transgressão à lei da castração; ou como um correlato da di visão do ego ou do sujeito, face à recusa dessa castração; ou como recusa da diferença dos sexos também subproduto do mesmo fenômeno; ou, finalmente, como recusa em aceitar a diferença dos sexos, como causa do desejo. Convenhamos, a esmagadora maioria dos escritos psicanalíticos gira em torno de tais noções quando abordam a questão da perversão tout


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court ou a questão da perversão homossexual. Ocorre que nenhum desses elementos é específico das perversões que conhecemos. Podemos encontrá-los em outras estruturas clínicas, como neuroses obsessivas, neuroses histéricas, psicoses etc. Só recentemente, trabalhos como os de Barande (1972), Stoller (1979;1987), alguns textos de Perrier (I 967) e a seqüência de estudos de Calli garis ( 1986; 1988; 1991) vêm conseguindo, ao que conheço, propor uma teoria das perversões em que a estrutura descrita é irredutível a outras estruturas, c a própria teoria, irredutível ao moralismo estigmatizante das teorias anteriores. Assim sendo, pergunto, onde encontrar a pretensa unidade e homogeneidade da "estrutura homossexual"? Barande, por exemplo, nega inclusive a idéia de que exista uma estrutura perversa, definindo perversão ·como aquilo que foge à e strutura (Barande, 1972). No caso de Calligaris, a noção de estrutura realça sobretudo a idéia da perversão no laço social, na montagem imaginária que liga dois ou mais sujeitos, e não na estrutura dos sujeitos presos à montagem, como se costuma, às vezes, conceber "o perverso", de forma inclusive pré-freudiana e, mais ainda, pré-lacaniana. Quanto a Perrier e Stoller, não só criticam as teorias correntes sobre perversão como, pelos critérios de seus pontos de vista, excluem, do mesmo modo que Calligaris, a possibilidade de se associar indiscriminadamente homossexualismo à perversão. Onde, então, repito a pergunta, alicerçar a idéia da estrutura perversa homossexual? Minha impressão é a de que a "estrutura homossexual" não se funda em nenhuma hipótese psicanalítica consistente. Inspira-se, isto sim, na percepção social ordinária de que os homens são natural e estruturalmente repartidos em. homossexuais e heterossexuai s. Para ilustrar o que penso, vou usar o artifício do contra-exemplo. Por que, pergunto, não perdemos tempo e fosfato tentando isolar e caracterizar a estrutura heterossexual'! Perguntar o que é uma mulher, qual o sentido feminino, ou o que é o masculino, não é a mesma coisa. Tais questões podem ser feitas igualmente aos sujeitos homossexuais. Pergunto outra coisa; pergunto por que não nos inquietamos com a presença da heterossexualidade entre os homens e mulheres. Não respondam, por favor, que isso é óbvio, intuitivo e. em conseqüência, dispensa explicações; Número um, nada para a psicanálise é óbvio; número dois, a teoria de Freud alcançou o sucesso que tem justamente por ter deposto a rainha intuição de seu papel de motor da assimilação do psíquico ao consciente; número três, diante do desejo e do sujeito, heterossex:ualidade é tão sintomático quanto homossexualidade.


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Minha hipótese para o fato é a seguinte: se não nos preocupamos em teorizar a estrutura clínica da heterossexual idade é porque, de um lado, ao contrário de Freud, (por exemplo, em "O ego e o id", ou na "Psicologia das massas e análise do cu"), tomamos como natural e normal que a maioria dos sujeitos seja heterossexual; de outro lado porque, comocientemente ou não, sabemos que essa noção é imprestável do ponto de vista clínico. Imprestável, antes de mais nada, porque a heterossexualidade é egossintônica, com respeito ao imaginário. Ou seja, ninguém procura análise queixando-se de "heterossexualismo". Conseqüentemente, porque não nos perguntamos como alguém é ou toma-se heterossexual, encerramos o assunto e damos a questão por resolvida. Imprestável depoi~. e isto é o mais importante, porque sabemos que existem tantas maneiras de ser-se heterossexual quantas permite a fantasia de cada um. Não pensamos em reduzir a heterossexualidade a uma única estrutura, porque vemos que o possível traço comum entre a paixão de Tereza D' Ávila por Deus, as orgias de Sade e o amor de Tristão por !solda não tem nenhuma pertinência clínica. Não há como negar, quando se trata de heterossexualismo; passamos de imediato a falar de fobia, obsessão, histeria, perversão, psicose etc. Por que, então, diante do homossexualismo, voltamos com toda carga à classificação médico-sexológica do século XIX? A resposta pronta, no caso, é que o heterossexual reconhece a diferença de sexos como causa de desejo · e o homossexual não. É um rebelde empedernido diante da lei castração, logo tem que ter uma estrutura psíquica à parte. Creio, no entanto, qlle esse passe-partout conceitual, por mais cômodo que seja, abre menos portas do que se imagina. Passo à segunda observação, onde posso demorar-me mais neste problema. A segunda observação sobre a influência da ética sexual conjugal na parceria homoerótica diz respeito à idealização da mulher. Com a hegemonia da conjugalidade, a mulher no Ocidente veio a ocupar o lugar do adolescente na cultura pedcrástica. E ao brilho erótico da mulher jovem veio somar-se a aura da mulher mãe e esposa. Tal combinação, aliada a numerosas outras variáveis, redundou no enorme valor da mulhe r como objeto de desejo no imaginário instituído, c repercute de maneira intensa na vida afetiva dos sujeitos às voltas com a atração homoerótica. Com uma só exceção, todos os indivíduos analisados e a imensa maioria dos entrevistados lamentavam não sentir exclusivamente atração por mulheres. Os motivos alegados incluíam, evidentemente, o peso do preconceito, o que, por si, já é indicalivo da introjeção dos padrões de preferência sexual da


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maioria. Além disso, um outro fator pesava na escolha homoerótica. As mulheres eram vistas como um grupo uniforme de parceiras possíveis, enquanto os homens eram vistos, basicamente, como divididos em dois grupos, o dos efeminados e o dos homens másculos. Essa divisão restringia as opções da maioria dos indivfduos, que não suportavam a idéia de se relacio nar com homens e feminados, levando-os, de modo mais ou menos inconsciente, a proceder a uma espécie de rebaixamento libidinal, no sentido freudiano, de inúmeros parceiros virtuais. Nesse caso, novamente, independentemente do preconceito social contra o homoerotismo em si, as mulheres eram percebidas como não oferecendo esse tipo de obstáculo à realização amorosa. O segundo fator dizia respeito ao investimento em homens heteroticamente ori entados. Aqui, a idealização se dava no nível ·do desejo feminino pelo homem. Não queremos dizer com isso que os homens que desejavam outros homens "heterossexuais" tivessem como suporte de desejo fantasias de passividade, como em geral se supõe. Pelo contrário, a maioria dos que preferiam parceiros viris e heterocroticamente inclinados era desprovida de tais fantasias. A idealização a que me refiro é a do objeto sexual que, por princípio, corresponde ao desejo da mulher. Ou seja, ao contrário da cultura grega, por exemplo, onde o adolescente homem, desejado pelos adultos homens, fornecia o padrão de beleza e de atração erótica, entre nós, o objeto do desejo dos sujeitos com tendências homoeróticas é aquele que a mulher deseja. Por fim, o rebaixamento do parceiro devia-se ao fato de que, com homens, muitos indivíduos sabiam que estariam provavelmente privados da possibilidade de serem pais. O desejo de ter filhos e a constatação de que não só a impossibilidade. biológica como a impossibilidade social da ação derivavam da parceria · masculina faziam do parceiro fonte de frustração, muitas vezes incompatível com a perspectiva de uma vida amorosa satisfatória. A interpretação standard seguramente veria nessa idealização da mulher e na fantasia do parceiro homoerótico impossível o selo do desafio à lei e a recusa da castração, características da estrutura perversa. Na idealização, diz-se, estaria a mãe fálica que, desde o Leonardo freudiano, sabemos estar no coração da recusa da diferença dos sexos como causa do desejo. Para preservar a mãe da falta, coloca-se a mulher no pedestal e vai-se em busca de outros homens, duplos narcísicos ou representantes do pai que falhou na imposição da lei à mãe. Não nego que este seja o ponto de alguns casos; duvido que seja o ponto de todos os casos. É possível que, em certos sujeitos, o sintoma da atração homoerótica responda ao comando da estruturação do desejo. No entanto,


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antes de discutir essa questão genérica, que afirma a validade de uma premissa que acho discutível, a da estrutura perversa da homossexualidade, proponho um percurso mais simples na abordagem do tema. Pergunto: o que se entende por reconhecimento da diferença sexual como causa do desejo? Tomo esse enunciado porque nele, de hábito, estancam as interrogações dos analistas quando pensam no homoerotismo. Indago então: recusar a diferença de sexos significa desconhecer a diferença entre homem e mulher? É claro que não. Afirmá-lo seria dar marcha à ré na psicanálise, até a psiquiatria pré-freudiana Só os positivistas psicofisicalistas do século XIX acreditavam que os homossexuais sofriam de uma espécie de agnosia ou daltonismo sexual, trocando neurofisiologicamente as respostas corretas por respostas erradas aos estímulos. Isto é, o homossexual excitava-se "erradamente": percebia homens e mulheres corretamente, mas atraía-se por quem não devia, dado o descontrole das funções corticais anteriores ou posteriores. Para a psicanálise, a diferença sexual concerne à dialética fálica, e não à identificação de gênero , .que a criança já é capaz de operar mesmo antes do Édipo. Então, abreviando a significação desta proposição, diria que recusar a diferença de sexos é desconhecer que todos são <.:a~;trados, exceto o pai primordial. Em conseqüência, aceitar a castração é aceitar que, no sujeito como no Outro ou nos outros, o desejo é a marca da falta e, como Lacan habituou-nos a pensar, aceitar que desejar é desejar o desejo do Outro. Então, pergunto, o que nos permite dizer que todos os sujeitos homoeroticamente inclinados são incapazes de reconhecer o desejo do Outro como falta e, por extensão, incapazes de admitir a própria castração e a do parceiro? Por que se sentem atraídos por uma pessoa do mesmo sexo biológico ou com uma mesma identidade sócio-sexual? Ou por que ser levado a esse tipo de escolha erótica significa escolher conforme o fantasma da mãe fálica, traduzido na idealização da mulher? Se é assim, se nos contentarmos com esta explicação, então teremos que resolver, de um lado, o truísmo lógico que ela comporta c, de outro, questões substantivas deixadas em aberto e que invalidam a generalidade da afirmação. No caso do truísmo lógico, dá-se como fundamento da explicação o que deveria ser explicado, e faz-se da circularidade explicativa prova do que se pretendia demonstrar. Explico melhor. Sabe-se que o fantasma da mãe fálica existe, pela análise de homossexuais ; e sabe-se que a estrutura da homossexualidade existe, pelo fantasma da mãe fálica Ora, o raciocínio é recorrente. Num dado momento, a mãe fálica é sintoma da "homos-


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sexualidade", em outro é o fu lcro estrutural do sintoma "homossexualismo". Para que a mãe fálica possa ser aceita como elemento central da estrutura homossexual é preciso que se possa mostrar a independência da estrutura face ao sintoma ou da causa face ao efeito. Sem querer forçar analogias, quando se diz que a força gravitacional é o que explica a existência da queda livre dos corpos, é porque essa força pode ser testada, independentemente deste fenôm eno, em outros casos, como no movimento pendular: Do contrário, caímos na situação do médico de Moliere que explicava que o ópio fazia dormir em virtude de sua " propriedade dormitiva". Portanto, ou a mãe-fática é a "virtude homossexualista" do 'homossexualismo ou aparece em outros casos que não o homossexualismo. E se aparece em outros que não o homossexualismo, e se esses casos ·não são casos de perversão, onde então a justificativa para a "perversão estrutural" do homossexualismo? Passemos às questões substantivas, e a resposta fica mais fácil. O fantasma da mãe fálica, cujo corolário é a idealização da mulher, não é privilégio nem da perversão, nem tampouco dos homossexuais. Essa fantasia repete-se em numerosas outras estruturas clínicas, que nada têm a ver com a recusa da castração. A começar pelo próprio Leonardo da Vinci que, segundo Freud, era um obsessivo. Além do que, como entender, a partir dessa idéia estereotipada, o desejo de paternidade e o empenho dos ''homossexuais" aos quais me referi em entrar na legalidade imaginária do social pela via do desejo do desejo do Outro? Ou como explicar o caso dos sujeitos que. apesar das tendências homoeróticas, também sentem atração por mulheres e são capazes de, com elas, manter relações estáveis e. satisfatórias? Todos estes seriam "heterossexuais latentes", "falsos homossexuais" ou "homossexuais latentes", absurdo teórico tão bem denunr ciado por Otto Rank, já em 1923? (Rank, 1923.) Vamos adiante; e se não se trata de nenhum destes casos, então a "estrutura homossexual" é uma metaestrutura que subsume uma "estrutura x", onde a mãe fáti ca não impede o desejo de paternidade nem a atração por mulheres, e uma "estrutura y", onde os mesmos desejos são inibidos? Con venhamos, semelhante procedimento teria mais a ver com a psiquiatria das espécies do que com a psicanálise. Não sei bem o que ganhamos com tal preciosismo classificatório, a não ser reafirmar nossa lealdade a Kraft-Ebing e às ideologias sexuais do século XIX. Vou além: mesmo aceitando a eficácia imaginária da divisão dos homens entre homossexuais e heterossexuais, por que essa polaridade social estaria mais próxima da verdade do inconsciente que qualquer


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outra? Por que, nesse caso, faríamos o que de hábito recusamos fazer em psicanálise, ou seja, tomar categorias de divisão social como descritivas de estruturas clínicas? Ao que me conste, o analista, cada vez que se defronta com tipos ou papéis sociais, costuma reduzi-los à terminologia própria à psicanálise justamente por considerar que tais tipos ou papéis informam pouco, à teoria, sobre o que quer que tenha interesse clínico. No caso da homossexualidade, curiosamente, não! Nenhuma distância entre a estrutura inconsciente e o preconceito histórico-sexual corrente. Por que, volto à pergunta, dividir os homens segundo a atração pelo sexo biológico diz mais sobre a estrutura do desejo do que dividi-los socialmente de qualquer outra maneira? É porque esta d ivisão, mais que outras, revela a dinâmica da castração e da rivalidade fálica? Porém, inúmeras outras dicotomias i maginárias foram e são capazes de engajar os sujeitos na rivalidade pelo falo . Durante muitíssimo tempo, foi mais importante separar os sujeitos entre cristãos e hereges, bárbaros e civilizados, castos e devassos, católicos ou reformados do que entre homossexuais e heterossexuais. Por isso, muitos mataram e morreram, foram felizes ou infelizes, cruéis ou piedosos etc. Por que apenas o século XIX, com a moralização burguesa dos costumes e a redução conservadora das liberdades individuais a assunto de boudoir teria acertado na mosca psicanalítica? Hoje em dia, para a maioria dos sujeitos, ser ou não ser homossexual é uma questão mais aflitiva ou mais vital do que a de ser ou não ser herege, ser ou não ser religioso. ser ou não ser revolucionário, ser ou não ser corrupto, ser ou não ser oportunista e mesquinho, ser ou não ser generoso e tolerante para com o outro etc. Porém, isso significa que a preocupação com o homossexualismo é menos recalcada e mais próxima da sexualidade ou do inconsciente freudianos? Ou será que, enquanto analistas, temos um discurso externo, para o grand monde intelectual, onde bochechamos contingência do desejo, falta no sujeito e no Outro, lógica e estrutura da linguagem, e outro discurs<;> secreto, pronunciado em voz baixa, onde despedimos o blá-blá-blá e confessamos que o que importa mesmo é como os umbigos se encontram e o que está abaixo deles? Evito mal-entendidos. Não pretendo desvincular a sexualidade nem do corpo - o que seria absurdo - , nem do desejo inconsciente, nem das conseqüências psíquicas das diferenças anatômicas entre os sexos. Psicanálise ocupa-se com o sexo dos homens c não com o sexo dos anjos. Mas, precisamente porque vejo assim, gostaria de recordar o que Frcud revelou e o que a Liga de Decência norte-americana impediu que o público ouvisse,


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quando censurou o diálogo de Spartacus, filme de Kubrik, em que Lau- . rence Olivier dizia a Tony Curtis: "Uns gostam de ostras; outros de escargot. Eu gosto dos dois". Gostar dos dois, ou só de escargot, pode parecer mau-gosto, para quem gosta de ostra. Mas seria o bastante para falar de perversão do apetite? Retomo a via de interrogações sobre nosso narcisismo etnocêntrico. Se o homoerotismo é uma perversão, se em qualquer prática homoerótica esconde-se a estrutura perversa da homossexualidade, eram os gregos perversos ou pederastas? Pensemos bem, seria cômico ou irônico, depois de torcer e retorcer a mãe fálica e o desafio e transgressão à lei da ca<>tração, concluir pela existência da "perversão grega" ! No entanto, conforme a _teoria da estrutura homossexual, a cultura que cria Édipo, Laio, Jocasta e o discurso de Diotima só poderia ser perversa. Na verdade, o que ocorre é outra coisa. O homoerotismo das relações pederásticas, malgrado contrariar nossos hábitos mentais, era severamente submetido à lei da castração, como aliás inúmeros casos de homocrotismo ritual em sociedades etnográficas, o que não é o caso do grego. Nem por incentivar, cultivar e idealizar a relação sexual entre homens, a cultura pederástica era uma cultura de especularidade narcísica e da fixação na mãe fálica. Na Grécia, os discursos sobre a sedução fá1ica, o desejo do Outro, a lei, o Outro e o objeto perdido do desejo eram tão presentes e tão obsessivamente discutidos quanto em nossa cultura da ética sexual conj ugal. O erômenos só é "falo da mãe" e o erastes só é "mãe fálica" para quem vê a Antigüidade imerso no imaginário da sexualidade conjugal moderna. A relação pederástica de maneira alguma possuía as c~racte~ rísticas de um laço perverso. Pelo menos se aceitamos, como é o meu caso, a noção de perversão enquanto montagem ou estrutura, proposta por Contardo Calligaris, ou mesmo a idéia menos feliz, mas não menos importante de Stoller, da perversão como desejo de fazer mal ao objeto sexual. Uma coisa é dizer, conforme esses dois autores, que a relação pederástica, como qualquer outro laço social instituído, traz em si a possibilidade da perversão; outra coisa é dizer que, porque eram homoeróticas as relações pederásticas eram ipso facto perversas. Aliás, todas as contas feitas , se perversão existisse na cultura grega, ela seria mais facilmente encontrável na relação conjugal ou na relação do senhor com os demais habitantes da casa. Mulheres e escravos, por força da discriminação sofrida eram, para o cidadão adulto c livre, objeto de gozo sem nenhuma outra interdição, a não ser o próprio arbítrio do senhor.


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Inferência similar pode ser feita a partir dos casos individuais de homocrotismo entre nós. Deste aspecto ouso mesmo avançar uma hipótese, ainda em germe, mac; que suponho frutífera: há provavelmente mais risco de perversão na montagem social que opõe heterossexuais a homossexuais do que nas chamadac; relações homossexuais. Sobretudo naquelas formas extremas de preconceito, onde o heterossexual posiciona-se como sabendo qual a legalidade da natureza e fazendo do homossexual instrumento de seu suposto acesso ao saber paterno. Nessa posição subjetiva, a obediência à lei da cultura ou à lei natural não é equivalente à obediência à lei da castração; é equivalente ao gozo imaginário de quem se acha possuidor da verdadeira lei do desejo, e que não hesita, se julgar necessário, em destruir fisicamente todo aquele que ousa desafiar o bem fundado desse saber. Foi assim com o homossexualismo sob o nazismo e o stalinismo; foi assim com os grupos de extermínio que, no Rio de Janeiro, metralharam, degolaram e incendiaram travestis com gasolina, para depois jogar os corpos em montes de lixo. E, se na aparência o estilo de vida de certos homossexuais ou grupos de homossexuais mostra-se extravagante aos nossos olhos, isso não se deve a nenhuma perversão intrínseca à estrutura homossexual, mas ao modo de vida de minorias sexualmente discriminadas. Este é o assunto de minha terceira observação. Um dos fatos que mais me chamaram atenção na parceria homoerótica foi a ausência de um vocabulário que permitisse a expressão de sentimentos positivos entre os parceiros. Em nossa cultura, toda linguagem amorosa, que é essencialmente a linguagem do amor romântico, foi imaginariamente rebatida sobre o casal hcteroerótíco. Da primeira "paquera" até o altar e depois ao berçário, tudo que podemos dizer sobre o amor está imediatamente associado às imagens do homem e da mulher. Estamos longe do século XII, onde monges, bispos: fidalgos letrados e trovadores usavam indistintamente a mesma gramática para cantar o amor a Deus, o amor entre homens e o amor pela Dama (Boswell, 1980). Hoje, quando um homossexual sente amor por outro homem, torna-se, querendo ou não, um intruso, como o personagem do romance homônimo de Faulkner. Assim como o negro de Faulkner, para ingressar no convívio dos senhores, tinha que imitar as maneiras de mesa e de salão da burguesia branca, aristocratiforme e racista do sul dos Estados Unidos, assim também o homossexual é visto como um impostor ou um usurpador quando se apropria de um vocabulário que não é o seu para exprimir-se amorosamente. Tudo que parec,e sublime ou edíficante na boca de um homem ou de uma mulher, ao se dirigirem um ao outro na situação amorosa, soa


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grotesco, ridículo e "aviadado" na boca de um homossexual. Na tradição do preconceito, homossexualismo é perversão, e perversão é parente próximo da anJmalidade. Para que, então, preocupar-se com essa privação, se o que existe é suficiente para que os perversos falem do que fazem e do que sentem? O vocabulário do homoerotismo já foi codificado pçr médicos, religiosos, psicanalistas e pela vox populi. Nos costumes leigos, cíentíficos ou literários, homossexual e relação homossexual pertencem à gramática da devassidão, obscenidade, pecado, hermafroditismo, promiscuidade, bestialidade, inversão, doença, perversão, falta de vergonha, sadismo, masoquismo, passividade etc. No Brasil, nada ilustra tão bem o estatuto de meio-homem, meio-besta do homossexual quanto a palavra "bicha". Bicha, segundo Parker, é um tipo de verme c, ao mesmo tempo, ·um animal, um bicho, neologisticamente feminilizado (Parkcr, 1990). Mas, mesmo na linguagem culta da literatura de primeiro escalão, sobretudo a européia, do final do século XIX e começo do século XX, é notável ver corno o homossexual foi associado a cenários sociais c emocionais onde o estupro, o assassinato e o sadismo dos mais fortes contra os mais fracos eram a conseqüência necessária do "homossexualismo" das personagens, como abordei no primeiro capítulo. Não é de estranhar que, numa cultura onde tudo conspira nessa direção, o ideal da felicidade conjugal apareça com um brilho fálico inusitado. E é essa realidade que força a parceria erótica dos homossexuais a assumir os traços que são retraduzidos pela cultura heterossexual dominante como prova da perversão. Diante da opressão do ideal sexual conjugal e da privação de um vocabulário social aprovado para a expressão dos sen-. tirnentos homoeróticos, surgiram pelo menos três pautas de condutas possíveis corno modelo de reação do homossexual à cultura da privação. Deixo de lado, no momento, a resposta da "militância gay" ou a resposta de certos setores da elite cultural e social por não considerá-las reações passivas e inconscientes ao preconceito, e sim respostas críticas e afirmativas, quaisquer que sejam, aliás, o alcance, eficácia ou limite de cada uma delas. A primeira das respostas é a criação da subcultura camp. Camp, como mostra Susan Sontag, é a palavra da gíria americana para designar o comportamento exagerado, escandaloso, propositalmente efeminado de certos homossexuais ou de certos círculos homossexuais. (MacRae, 19~9). No Brasil, segundo MacRae, o equivalente do camp é a chamada "fechação". Diz-se que alguém tem um comportamento "fechativo" quando procura romper as regras do bom-tom ou escandalizar o preconceito,


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acentuando maneiras mal vistas ou discriminadas. No entendimento de Sontag, o camp é uma reação ao domfnio opressivo da "heterossexualidade" pela exacerbação dos estereótipos. Algo assim como o teatro de Brecht, onde o excesso denuncia a ilusão. Na cultura camp, os homens são ridicularizados enquanto "machões" e as mulheres na figura de "boneca" ou da "bicha louca". Às vezes, porém, o humor que perpassa as brincadeiras é ácido e extremamente agressivo. Os sujeitos tratam uns aos outros por nomes femininos, em geral diminutivos, e reagem a qualquer manifestação de pudor ou desaprovação de alguns, com grande violência, tachando-os de "enrustidos" ou moralistas. No jogo de linguagem camp, portanto, existe um código de comunicação que, como todo código, é semanticamente ambíguo. Num certo contexto, o excesso e a zombaria exprimem a condenação do preconceito. As maneiras de agir e falar, entre os parceiros do código, não significam desprezo ou desquaJificação moral dos termos usados, c sim retomada lúdica e sarcástica do que o preconceito leva a sério. Num segundo contexto, o do disscnso ou rivalidade, a utilização da linguagem camp revela a intenção de atacar moralmente o opositor. Portanto, nessa cultura, tanto do ângulo da rivalidade quanto do ângulo da ridicularização do pre<:onceito, emerge o laço imaginário que mantém atados os sujeitos homoeroticamente inclinados às figuras idealizadas das identidades sócio-sexuais do homem e da mulher. Plagiando constantemente essas figuras, mesmo sob o modo da farsa, os sujeitos mostram o desejo inconsciente de ocupar e anular os lugares definidos pela polarização sexual, que lhes reserva a posição de puro desvio do padrão "normal" de conduta erótica Apresentando o feminino e o masculino como mascaradas, ressarcem-se imaginariamente da discriminação sofrida, que, no entanto, acaba por surgir onde parecia enterrada. Parece-me plausível supor que todos esses homens continuam presos ao ideal da conjugalidadc que os marginaliza. Gostariam de tornar a parceria homoerótica um Ersatz do vínculo heterossexual, mas, não podendo, contentamse com o simulacro. Na paródia, em geral, falta o contrapeso positivo da afirmação de valores próprios. Os atores não se esforçam em criar um vocábulo novo, adaptado a suas aspirações afetivo-sexuais; repetem o que j á existe, em falsete. Assim, tendem a reforçar cada vez mais o que o preconceito quer ver: o "homossexual" é um bufão da natureza; um bobo da corte, ém meio à "nobreza heterossexual". Ao contrário de certos setores da subcultura gay, onde o código camp é um item de menor importância. ou da cultura das minorias étnicas ou raciais, a cultura camp,


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como hábito irrefletido, parece enredada e submissa aos ideais morais que fazem do homoerotismo uma "aberração". A outra resposta do homoerotismo ao social é a criação da cultura clandestina do gueto. O gueto é formado por um circuito de locais de encontro exclusivos de homossexuais, que vão de praias a pontos de prostituição masculina. N esses locais, alguns extremamente sórdidos, os indivíduos gozam da "liberdade" que a discriminação permite. Mas, justamente por tratar-se de uma liberdade vigiada e concedida, carrega todas as seqüelas do preconceito. Os sujeitos sabem, mesmo quando não explicitam, que a liberdade vivida no gueto é precária e, num certo sentido, artificial. Quase todos acham esses lugares desagradáveis e queixam-se, freqüentemente, da sensação de vazio e insatisfação que acompanha tais ·incursões clandestinas. No entanto, não podem deixar de freqüentá-los compulsivamente, pois não vislumbram outra alternativa para suas vidas sexuais. No gueto, é voz unânime, vai~se em busca de uma "transa". No mais das vezes, as características pessoais do parceiro pouco importam. Da mesma maneira, não adianta criar expectativas de que, nessas ocasiões, possa surgir alguma relação amorosa mais estável e menos imediata. Quem acreditou nisso, decepcionou-se. Por fim , participando da cultura do gueto, sobretudo nas idas a saunas, boates e locais de prostituição, todos se sentem promíscuos e convivendo com a promiscuidade, realizando, assim, a imagem do " homossexual" criada pelo estereótipo do preconceito. Pollak sugeriu que a subcultura do gueto é formadl! J~Qt ~m a série de estratégias que visam a otimização e a··maximização do prazer:·iio curto espaço e no pouco tempo que a vida clandestina permite (Pollak, 1987). E, junto com Aries, ressaltou o aspecto racionalizado dos contatos sexuais que ali se dão como fazendo parte do "mercado do orgasmo", expressão de Aries (Aries, 1987). Essas opiniões me parecem oportunas. No entanto, não penso, como Aries, que a linguagem do gueto represente apenas a "recusa ilusória da paixão do coração ou da ilusão do amor romântico", ou a "sacralização do orgasmo", consoante a moral sexual atual (Aries, ibid.). Penso que essa "linguagem" procura contornar a privação do vocabulário do amor romântico imposta aos amores masculinos, criando um estilo de comunicação que o torna dispensável. No gueto d9_!!_lina..o ideal da " mínima fala" e da inflação de gestos, sinais e atost-~.~ _!Jl~O a indicar com a máxima precisão onde está o desejo ..Tudo se organiza para que o encontro sexual não passe pela palavra, posto que toda palavra sobre o "homossexualismo" aponta para a dominação. Assiste-se, assim, a uma tentativa de relação sexual sem metáforas, sem um discurso que a sublinhe


Conjugal idade, ética sexual e parceria homoerótica 97 s~ja positivamente, seja negativamente, donde o sentimento de frustração afetiva dos parceiros. O que chamamos de afeto ou sentimento é aquilo que, na relação sexual, só pode ser dito e não mostrado. É aquilo que excede o contato físico e que só a palavra pode trazer à luz. Não é difícil prever que, nessas circunstâncias, o ideal da conjugalidade heterossexual reforce sua aura normativa. Enquanto o gueto mostra as relações amorosas do prisma do anonimaLO, da parcialização do contato, da burocratização do orgasmo ou da exclusiva dimensão da sensualidade, o amor romântico heterossexual é mostrado a céu aberto, respirando ari fresco e vendendo eloqüência, sob refletores coloridos e m.usicado ent dolby stereo. Não há o que discutir: entre a sujeira, a tristeza, a escuridão e a ilicitude de um e a alegria luminosa e loquaz de outro, a opção está fei ta. Pouco importa que, finda a sessão de cinema, desligado o televisor ou fechada a última página do romance, comece a guerra conjugal. O importante é que o homossexual sabe que não pode ser candidato àquela felicidade, enquanto o heterossexual, mesmo que não seja eleito, pode postular sua candidatura. Na distância intransponível entre o ideal sexual da maioria e a efetiva condição homossexual da minoria instalam-se a aflição, a ansiedade, o ressentimento e o sentimento de vida abortada, o que leva os sujeitos às mais extravagantes posições subj etivas na vida amorosa. O estilo de vida da ansiedade, da depressão crônica e dos acting-out sexuais é a terceira resposta do homoerotismo à hegemonia opressiva da hcterossex ualídade conjugal. Sob o peso do ideal imaginário, muitos sujeitos naufragam na amargura c na mais soturna desesperança. Para esses, a mulher e a relação conjugal não são objeto de zombaria ou humor, como na "cultura camp"; são objeto de um temor e de uma reverência qua-;e totêmicos. Em geral, são sujeitos que repelem a "cultura camp" e a "cultura do gueto" e que, salvo no que conccrne à aspiração homoerótica, sentem-se perfeitamente à vontade no papel de homem, ditado pelo m~­ delo ideal da masculinidade sócio-sexual. Um de meus clientes tentava "esquecer" seu homossexualismo entregando-se a um verdadeiro ritual de expiação, por meio de exercícios físicos exaustivos e do excesso de dedicação ao trabalho. Não suportava a idéia de sentir atração física por homens, ele que em tudo o mais achava-se perfeitamente masculino. Todo esse esforço, no entanto, esfarelava-se nos finais de semana, com incursões sonambúlicas ao gueto, de onde saía cada vez mais deprimido, ansioso e culpado. Um outro, casado, pessoa extremamente inteligente e íntegra, c que jamais teve contatos homoeróticos, criou uma espécie de defesa


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masoquista extremamente forte diante da mulher e da relação conjugal. Porque sentia-se atraído por partes do corpo masculino negava a "autenticidade" de q~Jalquer apaixonamento ou satisfação s~ual e amorosa experimentada com as inúmeras parceiras que teve. Aceitava qualquer proposta de relação heterossexual como um favor que as mulheres lhe faziam e que, portanto, ele não tinha o direito de recusar. Não se outorgava o direito de escolher a mulher com quem queria relacionar-se, pois isso significava mentir, ocultar sua "natureza homossexual" justamente da pessoa de quem gostava. Em nome da verdade e da honestidade, numerosas vezes amedrontou mulheres que dele se aproximavam, confessando de forma abrupta e sem mais nem quê o seu "homossexualismo". Quando casado ou vivendo numa relação estável, costumava culpar-se por tudo ·que não dava certo na vida conjugal, qualquer que fosse, aliás, a participação da mulher no conflito do casal. Outras vezes, para compensar a "deficiência" de sua masculinidade, lançava-se num verdadeiro frenesi de atividades heterossexuais, geralmente mecânicas e sem nenhuma satisfação afetiva Parte dessa defesa masoquista só veio a ser parcialmente abalada quando, já em análise, foi obrigado a defender os filhos do despotismo fálico de uma das mulheres com quem foi casado. Por fim, um outro, jovem de 23 anos, usava a mulher como um objeto contraf6bico. Procurava ter o máximo de relações sexuais com ela para diminuir os rompantes do desejo homossexual. Evitava também qualquer ocasião de estar sozinho nas ruas, com medo de ser "tentado homossexualmente", e acabou por colar-se de tal modo à parceira que transformou a vida do casal num inferno de ciúmes e brigas. Tudo concluiu-se por um acting-out típico da formação reativa contra a ansiedade: teve relações sexuais com o marido da cunhada no banheiro de sua própria casa. E é igualmente compreensível que tenha descrito essa relação sem o sentimento de culpa e opressão que, de hábito, acompanhava suas fantasias homoeróticas. Em todos esses casos, dependendo do olhar, é possível ver a "marca da perversão". Já se disse, por exemplo, que no gueto tudo é permitido e, nesse clima de permissí vidade, a única lei é a do desejo e da transgressão. No gueto, argumenta-se, o corpo do outro é o lugar do gozo, sem limites ou interdição. Uma vez m ais, é provável que isso, de fato, ocorra em alguns casos. É provável que a idealização da mulher, na cultura heterossexual, tenha sua contrapartida na degradação do objeto homocrótico, e que este venha a ser desig nado como instrumento ou objeto de gozo, ao mesmo título do "objeto exótico", confonne mostrou Octávio Souza em seu estudo sobre o "exotismo". No entanto, mesmo admitindo tal hipótese, creio que


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a perversão é mais um traço do laço social entre "heterossexualidade e homossexualidade" do que uma característica inerente às relações homoeróticas. Não é no homoerotismo, por si, que reside a transgressão ou a recusa da castração, exceto, evidentemente, no caso de sujeitos presos a montagens perversas. É na relação entre parceiros, comandada por um ideal sexual incompatível com a posição subjetiva homoerótica, que a perversão pode vir a instalar-se. Perversão existe quando e se um dado "homossexual", identificando-se com o ideal "heterossexual" , passa imaginariamente a achar-se possuidor do saber atribuído ao pai, fazendo de si ou do objeto instrumento para o gozo do Outro. Em resumo, na montagem que opõe homosseJ~.uai s e heterossexuais, podem entrar tanto parceiros homoeróticos quanto parceiros ou situações sociais do tipo "comando de caça a homossexuais" ou versões mitigadas do gênero. Ainda assim , acrescento que mesmo no caso da vida de gueto, a compulsão, a ansiedade, a insatisfação, a culpa c o sofrimento que perseguem os sujeitos nada têm a ver com a fenomenologia ou a estrutura das perversões. Nesses casos, que são inúmeros, talvez mesmo a maiori a, os sujeitos engajados na prática homoerótica estão longe de exibir a "modalidade tranqüila do gozo'' que, como analisou Calligaris, caracteriza o laço social do burocrata com a burocracia, ou do cidadão acima de qualquer suspeita com a sociedade dos bem-pensantes. Tais sujeitos, a meu ver, em nada se distinguem de qualquer um de nós, exceto pelo fato de apresentarem um sintoma ou uma história do desejo vistos em nossa cultura como signo de infâmia e maldição. Condenados da conjugalidade, os homossexuais são, hoje em dia, o que as histéricas foram nos tempos de Charcot ou os histéricos foram nos tempos da criação dos cheminots, ou seja, o preço que pagamos em mal-estar, quando decidimos que só um certo estilo de vida sexual é de j ure, universal, natural e obrigatório para todos os homens e mulheres. Para finalizar, uma ponderação dirigida ao argumento conservador. Pode-se perguntar se toda esta arenga em torno da homossexualidade não visa converter o pensamento freudiano num subcapítulo da fábula marcuseana do Eros livre de conflito ou do naturalismo de certas correntes de pensamento, que termina por propor uma sorte de "indiferença ética ou moral", onde tudo é "telativo", e tudo pode ser feito, contanto que traga prazer. Quem garante que essa defesa da livre expressão cultural do homoerotismo não seja um sintoma da cultura atual do narcisismo, ou, pior, uma pregação do "vale tudo" sexual , contrapartida privada do nosso "vale tudo" social? Quem garante que negar a "perversão" da homossexualidade não seja indício da entrada da psicanálise na "cultura da


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perversão"? Além do mais, pode-se ainda dizer, toda essa querela em torno da homossexualidade não é feita em nome de um fetiche nominalista com pés de barro? Se aceitamos que o homossexualismo é a camisa-de-força das práticas homoeróticas, por que não fazer o mesmo com as outras "perversões"? Por que não defender a tese de que a necrofilia é o "aburguesamento e a medicalização das práticas cadavéricas"; a pedofilia, das "práticas infantófilas"; o bcstialismo, das " práticas zoofílicas"; o sadismo e o masoquismo, das "práticas chicotescas" etc.? Onde começa a psicanálise do imaginário, e onde terminam a complacência e a cumplicidade com a perversão, a monstruosidade e o horror? A resposta a essa objeção é: urna cultura que tudo permitisse seria uma cultura impossível, como disse Rieff. A cultura da tolerância não é a da . pcrmissividade. Nesta, o que existe não é respeito pela diferença; é indiferença, cinismo e violência. Mas, se com as objeções levantadas pretende-se insinuar que podemos decretar, desde sempre e para sempre, o que é permitido ou proibido, diria que não acredito nessa possibilidade. O escândalo de Freud foi justamente o de dizer que tudo é imaginável e tudo pode ser desejável. É possível imaginar, sim, uma cultura onde a necrofilia, por exemplo, fosse aprovada, assim como em algumas outras aprovou-se o canibalismo ritual, o sacrifício de crianças, o incesto entre irmãos, a morte obrigatória de anciãos, o coito com animais etc. O fato de não conhecermos culturas necrofílicas não as toma logicamente impossíveis, como também não nos obriga - longe disso! - a considerá-las menos odiosas e menos repulsivas do que as consideramos. Volto, portanto, a insistir no que já pude dizer outras vezes. Se todo o rol das práticas sexuais mencionadas nos espanta e causa horror, não é por ser incompatível com o desejo e com a lei da castração; é porque é absolutamente contrastante com nossos ideais morais vigentes, tão imaginários e contingentes quanto quaisquer outros. O desejo, em si, é "amoral", "imoral" ou indiferente às moralidades sociais. Dele não há como deduzir ou inferir uma ética compatível, a priori, com as exigências morais de nossa cultura ou de outras culturas que a ela se assemelhem. No limite, é possível mesmo conceber uma modalidade de estruturação do desejo que leve à destruição de nossas instituições e de todas as regras e leis que constituem nosso patrimônio cultural. Portanto, a idéia da permanência de nossa cultura, a idéia de que nela e por ela venhamos a imortalizar a memória de nossos feitos, discursos e instituições é, segundo Freud, um ideal tão imaginário quanto qualquer outro, e não a expressão da única e verdadeira aceitação da lei da castração ou da falta no desejo do Outro.


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Esse ideal é histórico e n ão a forma transcendental de todos os ideais. Ele nasceu na Grécia, passou por Roma e, no percurso até hoje, foi enxertado por outros ideais como: "ama teu próximo como a ti mesmo", "a vida é um bem em si", "todos são iguais perante à lei" etc. É da perspectiva ideal de apreço pelo futuro, de cuidado para com as novas gerações ou de respeito pelos ideais de justiça e igualdade que falamos, quando aprovamos certos traços cult urais e desaprovamos outros. Nossos ideais morais, entretanto, não estão inscritos nas coisas, no coração dos homens, na forma da razão ou da lógica e estrutura da linguagem ou do inconsciente. Do ponto de vista do desejo inconsciente, tanto faz viver com ou sem esses ideais; tanto faz ter escravos e arrogar-se o direito de matá-los, como deixar crianças faminta<; e abandonadas morrerem de inanição, em favor da superconcentração de riquezas ou do pagamento da dívida externa a banqueiros cristãos e civilizados. Nenhuma lei do desejo, nenhuma castração do Outro, nenhuma ética do i nconscicnte deixam de existir estruturalmente porque tudo isso acontece. Porém, diante dos ideais morais imaginários que são os nossos, muda muito viver numa sociedade justa ou injusta. Do mesmo modo, quando afirmo minha convicção de que o homoerotismo deveria usufruir do direito à livre expressão social, c quando afirmo que a maior parte da teoria psicanalítica sobre o " homossexualismo" está fundada no preconceito contra o homoerotismo, isso não é o mesmo que aceitar e aprovar toda e qualquer inclinação erótica. Posso teoricamente admitir a eventualidade de que existam estruturas psíquicas diversas subsumidas na etiqueta " fetichismo", por exemplo, sem que isso me comprometa com o ideal de uma "cultura fetichista". A primeira hipótese em nada me escandaliza, já que faz parte de minha tradição ou dos ideais intelectuais de minha cultura rever criticamente teori as adquiridas. Mas ser-me-ia inaceitável viver numa cultura que dissesse: "ensina a teus filhos gozar sexualmente com objetos inanimados", ou "mata teu próximo", ou "profana cadáveres", ou "violenta sexualmente crianças" etc. E o escândalo, como o vejo, não viria apenas do fato de encontrar-me, nesse caso, vivendo sob o "império da perversão". Este seria o menor e o mais inocente motivo. Eu, assim como muitos de meus pares, de cidadania ou profissão, vivemos numa sociedade onde a perversão viaja muitas vezes de ponte aérea, ocupa chefias de governos ou instituições psicanalítica-;, sem que isso nos impeça de dormir, exceto em algumas noites. O escândalo está em outro lugar. O escândalo está em que, ao contrário das perversões com as quais convivemos, a prática do abuso sexual de crianças, a necrofilia ou a monstruo-


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sidadc, por exemplo, aproximam-nos perigosamente de uma modalidade de gozo com a morte e a destruição do outro, incompatíveis com nossa tradição democrática e humanitária. Como mostrei na introdução a esses trabalhos, nossa concepção do que é "o humano" e "a humanidade" repudia toda violência contra a integridade física e moral de nosso semelhante. Violar corpos inermes, abusar de crianças, assassinar pessoas como nós só porque divergem politicamente de nossa opinião ou porque possuem traços étnicos e raciais distintos da maioria ideologicamente dominante, isto sim é permissividade e indulgência para com o horror. Falar de tolerância e respeito ao modo de vida homoerótico não é, portanto, argumentar em favor da pulsão de morte e de seus derivados, o sadismo e o masoquismo, erógeno ou moral. Falar de tolerância é procurar apontar para as brechas culturais por onde a pulsão de morte se insinua, como por exemplo, através do "narcisismo das pequenas diferenças". E é em nome desse ideal de tolerância, em tudo e por tudo oposto ao ideal da perversão, que perguntamos: em quê e por que o homoerotismo entre adultos que consentem mutuamente na relação sexual pode atentar contra a vida, a liberdade ou o direito à busca da felicidade de cada um de nós? Até segunda ordem, sem hesitar, responderia: em nada! Nada nesse estilo de existência inviabi1iza ou contradiz os ideais que fundam nossa cultura, e, isso, a meu ver, basta para assegurar seu livre direito à expressão social, sem constrangimentos morais ou coerções físicas. BffiLIOGRAFIA ARIES, Philippe, "Reflexões sobre a história da homossexualidade", in Sexualidades ocidentais. São Paulo, Brasiliense, 1987; 3" ed., pp. 777-93. BALZAC, Honoré de, Le pere Goriot. Paris, Bordes, 1949. BALZAC, Honoré de, Esplendores e misérias das cortesãs, in A Comédia Humana, IX. Río, Porto Alegre, São Paulo, Globo, 1952. BAI..ZAC, Honoré de, As ilusões perdidas. São Paulo, Abril Cultural, 1978. BARANDE, R., "Pourrions-nous ne pas être pervers?", in La sexualité perverse, vários autores. Payot, Paris, 1972. BOSWELI,, John, Chri.stianity, social tolerance and homosexuality. Chicago e Londres, The University of Chicago Press, 1980. BROWN, Petcr, Corpo e sociedade- O homem, a mulher e a renúncia sexual no início do cristianismo. Rio, Jorge Zahar Editor, 1990a. BROWN, Peter, "Antigüidade tardia", in História da vida privada. Do Império ao ano mil, org. Paul Veyne, coleção dirigida por Philippe Arics c George Duby. São Paulo, Companhia das Letras, l990b; pp. 225-301.


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A inocência e o vício: du côté de chez Proust

Em 1909, Proust acrescenta a Contre Sainte-Beuve um tema estranho à crítica literária, objeto daquele trabalho. O Narrador, encontrando o Sr. de Gucrcy numa recepção dos Guermantes, é "surpreendido pela revelação de que o infeliz aristocrata não só parece uma mulher mas é uma mulher, visto que pertence à raça dos homens que amam outros homens".' Em seguida, diz seu biógrafo, Painter, ele escreveria a mais longa frase de sua vida: "como se não ousasse parar, pois se parasse seria para sempre. No que a frase continha de angustiada crueldade, magoada piedade e trágica beleza se encontravam, respectivamente, a acusação de Proust, sua defesa e sua confissão de homossexualismo'? A frase fazia parte de um ensaio sobre o ''homossexualismo", que deveria ter sido publicado no ano anterior. Motivado pelo escândalo do processo penal de Phillip von Eulenburg, nobre diplomata e amigo do Kaiser Guilherme Il, da Alemanha, Proust decidira escrever algo sobre o assunto. Entretanto, dissuadido pelo amigo Rob"ert Dreyfus, adiou o projeto, retomando-o, com alterações, no ensaio Contra Sainte-Beuve, sob o título "A raça maldita". Em 192 I, voltou a abordar a questão do modo como apareceu na redação final de Sodoma e Gomorra I. Proust estava temeroso por ocasião da edição desse livro. Acreditava que a longa dissertação sobre a inclinação sexual do barão de Charlus, personagem que viera a substituir o Sr. de Guercy, provocasse celeuma. O teor das críticas, no entanto, dissipou tal apreensão. Jacques Riviere, da Gallimard, editora de Proust, disse; "Eu saboreio, entre outras coisas (é ruim de dizer, você não o repetirá), uma espécie de vingança ao ler as páginas terríveis (e tornadas ainda mais terríveis por sua eqüidade mesma), em que você descreveu a raça dos


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Sodomitas. Eu necessitava da espécie de descongestão que me dão essas páginas. Sem me abalar, escutei muito freqüentemente ao meu redor falsearem a noção de amor, e por isso experimento um alívio delicioso escutando alguém, tão sadio e tão felizmente equilibrado como você, tratando do assunto". 3 Roger Allard, da mesma Gallímard, afirmou: "Essas páginas de ardente eloqüência, essa poesia áspera e nobre, quebram o feitiço estético da inversão sexual, que há muito tempo vem escravizando as artes e a literatura" .4 Finalmente, Gide, relatando um encontro com Proust, anotava em seu diário de 15 de maio de 1921 : "Ainda esta noite, só falamos de uranismo; ele diz reprovar-se pela indecisão que o levou, para nutrir a parte heterossexual de seu livro, a transpor para l'ombre de jeunes fille.s tudo o que suas lembranças homossexuais tinham de gracioso, terno e charmant, de modo que só lhe restou para Sodoma o grotesco e o abjeto". 5 Em 2 de dezembro do mesmo ano, Gidc voltava ao tema: "Li as últimas páginas de Proust ( ... ), de infcio, com um sobressalto de indignação. Conhecendo o que ele pensa, o que ele é, é difícil para mim ver aí algo além de um fingimento; de um desejo de se proteger, de uma camuflagem, que não podia ser mais hábil, pois ninguém pode tirar vantagem em denunciá-la. Mais do que isso; essa ofensa à verdade corre o risco de agradar a todos: aos heterossexuais, cujas prevenções ela justifica e cujas repugnâncias lisonjeia; aos outros, que tirarão proveito do álibi e da pouca semelhança com aqueles que ele retrata. Em suma, a covardia geral ajudando, eu não conheço nenhum escrito que, mais que Sodoma de Proust, seja capaz de enterrar a opinião pública no erro". 6 Gide, com certeza, tinha em mente a conversa tida meses antes com Proust. Sobre ela, escrevera em 14 de maio de 1921: "Eu lhe dou Corydon, do qual ele me promete não falar com ninguém; e como lhe digo algumas coisas de minhas Memórias: 'Você pode contar tudo'. gritou ele mas com a condição de jamais dizer je. O que não é meu gênero" .7 Proust e Gide, com a força e densidade de seus textos, indubitavelmente ajudaram a conferir substância imaginária à crença de que os homens dividem-se intuitiva e naturalmente em "homossexuais" e "heterossexuais". Sem eles, a idéia hoje quase indiscutível para a maioria de todos nós de que existe um tipo humano homossexual com características próprias e irredutíveis a outros homens provavelmente perderia grande parte de seu poder persuasivo. A genialidade do primeiro e a equivocada e comovente honestidade intelectual do segundo deram verossimilhança humana à descarnada ficção médica, sexológica e jurídica do sodomita, uranista, saturniano, pederasta, invertido, perverso e, por fim, "homossexual". Tematizando


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obsessivamente a sexualidade homoerótica oitocentista, problema cultural c pessoal comum a ambos, inventaram o vocabulário com que nos habituamos a reconhecer, designar ou descrever a "pretensa realidade psicológica" de todos os sujeitos inclinados aos "amores masculinos", conforme a expressão de Peter Gay. 8 Gide, no entanto, pensava alcançar a verdade quando confessava, a despeito do pudor, suas tendências e experiências homoeróticas. Proust, não. Dissimulava deliberada ou inconscientemente o que o outro se atrevia a exibir. Porém, a dissimulação não se devia apenas ao medo da reprovação do Faubourg. Se, de fato, ele temia a opinião do grand monde de SaintGcrmain, simultaneamente odiado e idolatrado, através do receio dizia coisas que Gide não soube ouvir. Quando disse que se podia contar tudo mas nunca dizer je, era porta-voz dac; "intermitências do coração", peçachave de sua redescoberta do tempo perdido. Recusando-se a falar do sexo em primeira pessoa, exprimia sua ambigüidade ética, mas também a convicção tardiamente conquistada de que um nome próprio é a morada de vários "eus". Como apontou magistralmente Deleuz.e, o homoerotismo em Proust foi sempre, ao mesmo tempo, "plaidoyer pela inocência do sexo" e "pedido de perdão pelo vício". Cada um desses desejos é suporte de um je. Ao apresentar-se como mestre da verdade sobre o amor, ele oculta necessariamente. ao olhar do outro, desejos e "eus" indizíveis ou não ditos. Para Gide, nunca dizer je era mentir; para Proust, era mentir e afirmar, em cada mentira, que para cada eu que fal a há pelo menos um outro cu que é obrigado a calar.

As intermitências do coração O trecho de Sodoma e Gomorra em que o Narrador descobre o homoerotismo do barão de Charlus é uma obra-prima de ambigüidade e clar]vidência inconscientes. Nele, Proust resume o ethos de uma época e as indecisões de uma alma à procura de si mesma. Proust era um homem entre dois mundos. De um lado, estavam as ilusões da infância e j uventude, ou seja, o encantamento por Combray e pelo Faubourg Saint-Germain; de outro, a maturidade artística e a decepção com as convenções burguesas e aristocráticas. A busca do tempo perdido é o sintoma desse conflito insolúvc1. O tempo social de Proust era um tempo em transformação. A aristocracia representava o passado, o apego à tradição, ao no me e aos rituais de convivência exclusiva dos que se achavam os "melhores"; a burguesia, em oposição, representava o anseio pela competição, mobi-


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lidade e individualidade, e pelo culto à intimidade da vida privada c aos valores da pequena famílianuclear. 9 A exemplo de tantos outros burgueses de então, Proust vivia a tensão espiritual dos que já não sabiam o que devia mudar e o que devia continuar. Walter Bagehot, um grande burguês e pequeno intelectual britânico, escreveu: "O homem moderno precisa que lhe digam o que pensar - em poucas palavras, sem dúvida - , mas precisa que lhe digam". 10 Proust, entretanto, ao desencantar-se com o mundo dos Guermantes, depois do caso Dreyfus, percebeu que ninguém nem nada poderia dar-lhe a última palavra sobre 'o mundo c os homens. "O caso Dreyfus", diz Painter, "quebrara o encantamento do caminho de Guermantes. Proust via seus amigos despojados da aura de poesia com que ele próprio os revestira: uma duquesa não passava de uma mulher usando tiara; um duque era apenas um burguês com um grau exagerado de altivez ou afabilidade. Proust compreendeu que ao entrar no mundo cruel e vazio dos Guermantes, e ao buscar nele algo superior a si mesmo, cometera um pecado e um ato absurdo". 11 Isto é, percebeu que podia criar uma visão do mundo e dos homens, cuja medida era sua fantasia. A partir de então, entendeu que o fundamento de nossas crenças não tem outra garantia a não ser as infidelidades do desejo ou as "intermitências do coração". Viu que o je, como observou Rortyl 2 a seu respeito, é apenas um tecido de contingências, e que a vida do Faubourg, para ele idêntica ao mundo ideal, era só mais um caricato baile de máscaras, como notou Arendt. 13 Foi a "dor da idéia nova", como dizia Bagehot, que o surpreendeu na busca do tempo perdido. Era inútil procurar nos caminhos do eu ou nos caminhos do mundo o recanto tranqüilo onde um verdadeiro sujeito reconhecesse e tomasse posse do verdadeiro amor e do verdadeiro bem. O chez soi, como o chez Swann, não era um sólido edifício de estórias e memórias perenes do que verdadeiramente é ou tinha sido; era um teatro de espectros e som bras, um novo salão, que, em sua própria imagem, vi via povoado de "romances inconscientes". 14 Tendo uma aguda consciência disso, afirmou certa vez: "A qualquer momento que a considerarmos, nossa alma total tem somente um valor quase fictício, malgrado o numeroso balanço de suas riquezas, pois ora umas ora outras são indisponíveis, quer se trate, aliás, de riquezas afetivas ou daquelas da imaginação, e, para mim, por exemplo, tanto quanto o nome de Guermantes, quanto aquelas mais graves, da lembrança verdadeira de minha avó. Pois, aos distúrbios da memória estão Hgadas as intermitências do coração. É sem dúvida a existência de nosso corpo, para nós semelhante a um vaso em que nossa


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espiritualidade estaria encerrada, que nos induz a supor que todos nossos bens interiores, nossas alegrias passadas, todas nossas dores estão perpetuamente em nossa posse. Talvez também seja inexato acreditar que elas se evadem ou retornam. De qualquer modo, se elas permanecem em nós, estão, na maioria do tempo, em um domínio desconhecido onde não têm serventia alguma e onde mesmo as mais usuais estão recalcadas por lembranças de ordem diferente e que excluem toda simultaniedade com elas na consciência. Mas, se o quadro de sensações com que estão conservadas é reapreendido (resaisi), elas têm, por sua vez, o mesmo poder de expulsar o que lhes é incompatível, de, sozinhas instalar em nós o ego que as viveu. ( ...) O ego que cu era então, e que havia por tanto tempo desaparecido, estava novamente tão perto de mim que me parecia ainda escutar as palavras 4ue tinham imediatamente precedido e que no entanto não eram mais que um sonho, como um homem mal acordado acredita perceber bem próximo dele os ruídos do sonho que se evadc". 15 Revisitando o passado para dar sentido ao presente, compreendeu que não existe nenhum apoio extramundano e extra-humano para a verdade de nossas crenças no sexo c no amor. Não existem memórias de um s ujeito; existem sujeitos de memórias, que são independentes de quem se julga seus autores. Não existe um mundo mental sempre lá, contínuo, igual a si mesmo e juiz de nossos erros e acertos sobre o que enunciamos sobre ele; existem imagens e narrativas deste mundo, que espelham nossas aspirações ao prazer ou à dor. Enfim, não existe outra verdade da lembrança, exceto aquelas das "intermitências do coração". Quando disse a Gide "jamais diga eu", dizia que a mentira era a contrafacc da verdade, dependendo do "coração" que mente e do coração a quem ela é dita. Gide, sabemos, afirmou num dado momento: "Je ne suis jamais, je deviens; je deviens celui que je crois que je suis". Porém, assim falando, inspirava-se na verdade de sua consciência burguesa e protestante. Ora, para essa consciência havia um ponto em que o devenir do je deveria estancar, pondo um fim à dúvida sobre si. Esse ponto era a autenticidade. Era o ponto onde o je abandonava a dissimulação e, através da revelação do verdadeiro desejo, expunha-se ao outro, na sua suposta capacidade de entender, amar e perdoar. Nessa crença, Gide testemunhava sua confiança na onisciência e bondade divinas. Ela foi a marca indelével da retidão calvinista de seu caráter e sensibilizou a todos quantos o conheceram ou ti veram contato com sua obra. Não é à toa que um espírito descrente, cínico c histriônico, como Oscar Wilde, desconfiava dela e sentia-se instigado a destruí-la. Quando Wilde encontrou Gide em Paris e procurou seduzi-lo


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intelectualmente com suas frases de efeito, disse depois a l)ouglas, seu amante, que ele era um "protestante francês, a pior espécie, salvo, é claro, o protestante irlandês'', aludindo, assim, às suas origens religiosas. 16 "Queixou-se, ainda, de que os lábios de Gide eram dema-;iado retilíneos, lábios de alguém que jamais mentiu". 17 E, por último, concluiu: "Preciso ensiná-lo a mentir, para que seus lábios sejam belos e curvos como os de uma máscara antiga" . 1s O destino de Proust foi outro. O acaso nunca deixou que encontrasse face a face esse Deus magnânimo e compassivo, não obstante a severidade. Seus deuses ou outros eram o mundo dos Guermantes e o amor materno, com sua estrita moralidade burguesa. Ambos pareciam ignorar o perdão e só reconhecer um je e um desejo de Mareei Proust, o de pertencer-lhes de corpo e alma e o de duvidar eternamente da veracidade do amor recebido·, Com a morte da mãe e a queda do Faubourg, Proust liberou-se da coerção real, mas não da dívida ética que contraíra imaginariamente com os dois. A encarnação do Bem, fundida na aristocracia e na figura materna, não mais existia, mas deixou como herança o fantasma da culpa e da necessidade de punição. Desse fantasma, Proust extraiu a matéria de sua ficção do Narrador e da prodigiosa invenção da inocência e do v(cio da " inversão", uma e outro feitos de medo e dissimulação. Recriando as metáforas da inocência e do vício homocróticos, livremente disponfveis no imaginário social de seu tempo, legou-nos a fantasiosa idéia da "natureza do invertido", cuja extraordinária sedução estética sobrevive até hoje.

A linguagem da inocência Proust vivia um tempo sem compaixão. A moralidade do século XIX, pano de fundo de sua ética erótica, não perdoava os indecisos. Exigia, sobretudo das elites, que tomassem partido no conflito ideológico que opunha as duas classes dominantes, a aristocracia e a burguesia. A aristocracia francesa fin-de-siecle havia perdido todo poder político, econômico e social. Economicamente, limitava-se à especulação e ao arrendamento de terras; politicamente, a ocupar postos na hierarquia militar; socialmente, a encenar uma supremacia inexistente, simulando gosto, sensibilidade e liberalidade diante do novo e do exótico, desde que, evidentemente, não dissesse respeito às questões políticas. A alta burguesia, por sua vez, dispunha de poder político-econômico mas carecia de distinção social. Os salões mundanos traduziam essa rivalidade nas aliança-; e lutas estratégicas entre o dinheiro de uns e os brasões de outros. Ninguém podia permanecer neutro


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no combate de valores. O que estava em jogo era o controle dos corpos, sexos e mentalidades da massa de súditos ou subordinados, apelidados de indivíduos ou citoyens. Para exorcizar o fantasma da queda de prestígio, ou o supremo inimigo da época, a democratização dos direitos políticos e dos costumes sociais, todas as armas eram válidas. Os bemnascidos queriam continuar monopolizando os sinais de superioridade de casta; os filhos da Revolução queriam transformar a casta em "raça" e, todos juntos, aliavam-se para excluir da sociedade dos "homens bons" os condenados da terra e os explorados das cidades. Em 1890, na revista La Fin de Siêcle, o editor escrevia: "Nada de classes, títulos ou raças. Tudo é misturado, confundido, indistinto e reembaralhado, numa visão caleidoscópica". 19 Em Fin-de-siecle, ecoava o visconde d ' A venci, discutindo sobre os transportes públicos, "duquesas e milionários se acotovelam com cozinheiras e funcionários" .10 Essa retórica grandiloqüente e sensacionalista, bem ao gosto de uma imprensa embriagada com o aumento de seu poder social , soava às elites como um alarme. No Faubourg ela evocava a Comuna, as cabeças cortada') e o ostracismo insuportável vivido sob a República. Nobres e burgueses, circulando em salões ociosos, exauriam-se assim em disputas intermináveis para restabelecer a ordem e a hierarquia, ameaçadas pelo caos da proletarização e do aburguesamento generalizado. Quando Proust, comentando o prosaico ar burguês do duque de Bouillon, afirmou que "um grand seigneur do tempo de Luís Felipe é menos diferente de um burguês do tempo de Luís Felipe que de um grand seigneur do tempo de Lufs XV", observou, de modo ameno, o que para os freqüentadores dos salões era uma questão incendiária. 21 A guerra da distinção era torpe: violência odiosa dos mais fortes, servilismo obsceno dos mais fracos. Mme. de Guermantes diz, respondendo a certa solicitação do marido: "Ah, não, isto não! Penso que você está me gozando. Eu nem sei porque cargas d' água conheço o nome dessa anta. Isto é a borra da sociedade! É como se você me pedisse para que eu lhe apresentasse a minha costureira. E, olhe lá, não é verdade, pois minha costureira é charmante". 22 O episódio em que o barão de Charlus humilha cruelmente Mme. Saint-Euvertc é em tudo semelhante ao anterior. Proust, no entanto, constatando que a ofendida aceita passivamente a humilhação e reage como quem se "ajoelha diante de seu senhor" , comenta: "Infelizmente, no mundo, como no mundo político, as vítimas são tão covardes que não se pode ficar muito tempo zangado com os carrascos". 23 O mesmo barão de Charlus, em outra passagem, ilustra a prepotência dos que se achavam acima dos demais mortais. Dizia, a


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propósito das famílias nobres que, na França, elas eram quando muito onze, e acrescentava: ..Quanto a todos esses petits messieurs que se chamam marquês de Cambremerde [aludindo aos Cambremerl ou Fatcfairefiche [corruptela homofônica da expressão grosseira 'va te faire fiche', equivalente mais pesado da expressão 'vai te catar' ou 'vai te danar'], não existe nenhuma diferença entre eles e o último dos franguinhos (piou piou) de seu regimento. Que você vá fazer xixi na casa da condessa Cocô, ou cocô na casa da baronesa Xixi, é a mesma coisa, você comprometeu sua reputação e usou um pano de chão cagado (breneux) como papel higiênico. O que é sujo"Y O Faubourg era o retrato dos grupos sociais sem função ou sentido históricos. 25 Nele, o estilo de vida era marcado pela monotonia das pequenas intrigas ridículas e previsíveis. Para vencer o tédio c mostrar aos burgueses a excelência do viver aristocrático, as maftresses dos salões disputavam ferozmente a presença de celebridades da cultura e das artes, ou de obscuros exemplares de vidas exóticas. Essa elite fazia dd. cinismo e da manipulação da vaidade tola dos parvenus remédio para seJcansaço mundano e sua inutilidade social. Incapaz de produzir valores minimamente acei&áveis para sua época, comprazia-se em afetar uma largueza de mentalidade que nada mais era do que um sintoma do culto ao "tres puissant Dieu Je-Men-Fou", como dizia Brichot, fazendo Mme. Verdurin morrer de rir.26 Por indiferença e falta de escrúpulo, e não por tolerância, o Faubourg admitiu judeus e "homossexuais" em seu meioY Mas o interesse pelos novos eleitos só se conservava enquanto o mistério de seus exotismos persistia; enquanto o segredo de suas "raças" ou de suas "psicologias" mantivesse acesa a conversação e a curiosidade dos rotos espíritos de seus habitués. 28 Proust era perfeitamente ciente do papel ocupado pelo vicioso e pelo exótico na vida do Faubourg. Referindo-se à vã tentativa de Charlus em ocultar de seus hóspedes suas reais tendências sexuais, diz: "E, aliás, de qualquer maneira ele estaria errado, buscando calá-la (a inclinação sexual], pois não existe nenhum vício que não encontre no grand monde apoios complacentes ..." 29 Em outro trecho, referindo-se ao mesmo Charlus, escreveu: "Nesse primeiro período, tinha-se, então, terminado por achar M . de Charlus inteligente, não obstante seu vício (ou o que se chama geralmente assim). Agora, sem que se dessem conta, era por causa desse vício que achavam-no mais inteligente que os orttros. As máximas mais simples que, devidamente provocado por um universitário ou um escultor, M. de Charlus enunciava sobre o amor, o ciúme, a beleza, por causa da expe-


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riência singular, secreta, refinada e monstruosa da qual ele as havia e,;traído, ganhavam, para os fiéis, o charme de estranhamento de que se reveste uma psicologia ( ...)em uma peça russa ou japonesa, desempenhada por artistas daqueles lugares".30 O Faubourg havia transformado o crime em vício para seu deleite. Porém os casos de Wilde e Eulenburg mostraram que o vício sem charme era implacavelmente massacrado. Sendo francês, meio judeu, burguês e acreditando-se "homossexual". ele agia como se tivesse ouvido o que Metternich dissera sobre a França: "A fraternidade como é praticada na França me levou a concluir que, se tivesse um irmão, deveria chamá-lo de primo".3 1 A dissimulação, na busca do tempo perdido, tornou-se, assim, o primeiro mandamento da arte de falar de si. Dizendo o que achava que era, sem se nomear, Proust tentava sobreviver no único universo que conhecia. Construiu uma imagem do homoerotismo que obedeceu aos cânones da vida em salão. Ou seja, apresentava o ''invertido" mascarado de aristocrata torpe ou de burguês arrivista, para desmoralizar o Faubourg, e aceitava s imultaneamente as premissas morais que repudiava, associando a "inversão" ao mundo dos homens ocos. Suas personagens eram vítimas ou algozes. conforme o ângulo visto, mac; de qualquer perspectiva continuavam sitiadas por ódio, ressentimento e humilhação. Quando Proust buscava absolver-se da culpa por seus desejos homoeróticos, inocentando a inversão (preferia este termo ao termo homossexual, que julgava "trop germanique et pédanf'),32 repetia os jargões naturalistas da época, os únicos capazes de ser aceitos sem levantar s uspeitas. A inversão, dizia ele, era uma tara, uma doença, a qualidade de uma raça, um dado da hereditariedade ou o produto de um acaso infeliz na evolução natural. 33 O substrato do homoerotismo que descreve está próximo das generalidades médico-legais, psiquiátricas, sexológicas ou jurídicas, correntes no século XIX. Todas elas, de uma ou outra maneira, eram ramos das ideologias evolucionistas, em especial dac; teorias da degenerescência, verdadeiro espantalho cultural da burguesia oitocentista.34 Na ciência, pensava Prous t, estava o aval da inocência. Estava a verdade que permitia redimir o homocrotismo, sem devolver sua sexualidade à sarjeta ou ao crime. As freqüentes alusões a Oscar Wilde <.:omprovam esta preocupação. Comentando a tagarelice e o histrionismo de Wilde, que fizeram-no acreditar na possibilidade teatral de transformar ''sua vida em obra de arte", subestimando a truculência da hipócrita hurguesia inglesa, disse: "Wilde que, depois de afirmar que a maior dor que experimentara fora a morte de Lucien de Rubempré (herói de Bal1.ac


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e objeto da paixão homoerótica de Vautrin], não tardou a aprender, durante seu processo, que existem dores ainda mais verdadciras".3l Assim, a exemplo de Gide, fez do vício um fato natural e do sujeito homoeroticamente inclinado um exemplar de uma raça, com qualidades especiais. Só que, ao contrário de Gide, recuou diante do álibi do instinto. Gide divinizou a natureza e converteu sua idealizada "pesférastia" numa bênção natural, pervertida pela "decadente maioria heterossexual".36 Proust, inversamente, alinhou o homoerotismo na fileira dos "erros da natureza'', dos "desequilíbrios nervosos", das "taras doentias" etc. Como assinalaram Rivers 37 e Alter, 38 a inversão proustiana deixou de ser vício ou crime para ser desvio ou anomalia. Ou seja, o Narrador desapontava o voyeurismo do Faubourg, quebrando a magia de seus fetiches; em troca, entregava o homoerotismo à tecnocracia médico-científica que a burguesia ascendente pusera a seu serviço. Temos boas razões para supor que Proust acreditava menos na "naturalidade da inversão" do que deixou transparecer em seus livros. Em 1897, ao ler a Psychopathia sexualisde Kraft-Ebing, pai espiritual das ideologias sexológicas dos séculos XIX e XX, comentou com seu amigo Paul Morand: "Parece que agora até o vício se tornou uma ciência cxata".39 Portanto, em Sodoma e Gomorra, como nos escritos anteriores, quando fez sua a linguagem que antes criticara, revelava duas coisas: primeiro, que não tinha coragem de mostrar a inocência como virtude, verdadeiro antônimo ético do vício, por receio de tornar-se um pária, ou um criminoso; segundo, que não dispunha de outra linguagem capaz de inocentar sua sexualidade, a não ser o vocabulário médico-científico de sua época. Usou, assim, as armas da ciência burguesa contra a aristocracia, salvando a respeitabilidade e sacrificando a ética. Proust não percebera, sufocado pelo Faubourg e por seu quarto de asmático, que nem todos os burgueses eram salonnards. Havia muitos- e estes foram os vencedores históricos para quem pouco importavam os costumes aristocráticos, que, de resto, eram vistos como idênticos à indecência, ao pecado ou a causas de taras sociais.40 Havia um mundo ao lado do grand monde que acabara de nascer e criara um novo tipo de "crime", o crime contra a natureza. Descrevendo o invertido como um "anormal", um praticante do "amor antifísico" e "anti-social", Proust subscrevia na íntegra o essencial dos preconceitos burgueses. Ia além, dava crédito e ajudava a fortalecer a idéia de que havia uma espécie humana, com variedades e subvariedades, que surgia de um movimento no qual a natureza, conforme sua própria metáfora, parecia ter-se "momentaneamente industrializado" .41


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É verdade: mesmo aí, sua intenção de inocentar o homoerotismo assumia, por vezes, um tom positivo e redentor. Ao comparar a atração mútua d.os invertidos à beleza de certos fenômenos da vida vegetal e animal buscava mostrar o lado ensolarado da "inversão" e não seus desvãos escuros. Porém, a inocência, no caso, era inconsciência e irresponsabilidade. O belo e o monstruoso eram produzidos pelas mesmas leis e mecanismos que secretavam poléns de orquídeas ou danças de abelhas . A inocência natural em Proust ou é auto-indulgente ou inconseqüente; jamais responsável. É marcada por uma culpa ou uma vergonha que retiram dos amores masculinos qualquer dimensão propriamente ética. Diferentemente do criminoso Vautrin, de Balzac, que Proust pretendia ter como modelo, Charlus e Jupien, instrumentos da natureza, levitam acima ou abaixo do Faubourg. Não dizem, como a personagem de Balzac, que numa sociedade viciosa o vício dos marginais pode ter a virtude da denúncia. Ao contrário, calam-se diante da opressão. Vivem seus amores como jogos proibidos, praticados às ocultas e só descobertos pelo voyeurismo do Narrador. As intermitências do coração, reduzidas a tropismos, aproximam a inocência sexual c a cumplicidade do vício social. Em Proust, a ética dos amores é posta de lado, em favor das coerções dos instintos. Convertido ao reino da necessidade, o homoerotismo mascul.ino surge puro em algumao; imagens, corrompido em outras, mas de qualquer modo sempre eticamente indiferente. Melhor dito, na indiferença fingida, o Narrador, como Mme. Saint-Euverte, ajoelhava-se diante do Faubourg, negociando a honra em troca da aceitação. Sublimando o desejo num dado natural, Proust fabricou um Éden sem crime e cac;tigo, mas onde o prazer c a felicidade eram indizíveis, pois desconheciam-se enquanto tais. No vício, entretanto, retoma o recalcado da inocência. Com mais culpa, mais força c mais dor, pois nele Proust se debate não apenas contra o espírito dos Guennantes, mas também contra o "espírito de Combray". Na recordação da infância passada, Combray trouxe de volta o discurso matemo, assombrando-lhe a alma e liberando, de vez, sua imaginação. E é na reflexão sobre o vício que o artista excede seu tempo, criando uma "psicologia" do invertido, formada às custas de fantasmas, tanto mais verossímeis quanto feitos dos retalhos de sua vida. Esse universo de criaturas fantasmáticas veio a ser, para as futuras gera~,:õcs, a expressão da verdade sobre o homoerotismo. Proust impunha ao mundo o que o mundo lhe obrigara a criar. Individualizou cada dor, remorso, vergonha ou ressentimento nascidos de sua experiência homoerótica, dando-lhes o rosto de uma personagem ou os "traços consti-


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tutivos" do pecado original da "raça das bichas". O vício, finalmente, era exposto e punido em público, como pediam o Faubourg e Combray. A mãe estava morta e os Guermantes eram uma reminiscência. Mareei Proust, contudo, continuava a temê-los c reverenciá-los. Deu ao público de Sodoma o vício, escondendo a virtude dos seus amores "à l 'ombre de jeunes filies enfleur", como notara Gide. Nesse aspecto, Gidc tinha razão. Proust ofendera a verdade. Mas não porque se recusara a crer no mito da autenticidade. A verdade foi ofendida quando o Narrador preferiu mostrar os amores masculinos como um fruto das paixões tristes. Dignificando artisticamente a linguagem do vício, Proust purificou-se do " pecado" e do "absurdo" de suas idolatrias mundanas e de suas tendências sexuais, mas negou aos outros, que não seus Outros, a visão dos amores que pôde viver em paz.

A linguagem do vício Em 1907, um certo Henri van Blarenberghe matara a mãe e, em seguida, se suicidara. Proust, que havia conhecido rapidamente o jovem, foi solicitado a escrever um artigo sobre o crime. Uma testemunha havia escutado a Sra. Blarenberghe dizer antes de morrer: "Henri, que foi que você fez? Por que me fez isto, Henri ?""2 Proust escreveu o artigo que foi publicado com cortes em Le Figaro. Num dado trecho era dito: "O que foi que você me fez? Se nos permitimos pensar nisso, perceberemos que talvez não haja mãe alguma, que ame verdadeiramente seu filho , que no último dia de sua vida, e provavelmente muito tempo antes, não lhe dirija essa censura. A verdade é que envelhecemos e matamos o coração que nos ama por causa das angústias que lhe causamos, da ternura inquieta que nele inspiramos e do estado de alarme constante que provocamos. Se pudéssemos ver, em um corpo amado, o lento processo de destruição levado a efeito por esse afeto angustiado, os olhos cansados, o cabelo que antes era indomavelmente negro e agora é derrotado como o resto e se torna branco (...)o espírito que sabe que nada resta a não ser o desespero, embora antes se alentasse incansavelmente com esperanças imbatíveis, a inata imortal alegria morta para sempre..." Terminava dizendo que, "se num momento de lucidez e equilíbrio mental como o de Van Blarenberghe ao ver a mãe sangrando até morrer, pudéssemos sentir todas essas coisas, também nos mataríamos com um tiro, como ele". 43 Já um ano antes, depois da morte da mãe, escrevia à Sra. Strauss a propósito da reabilitação de Dreyfus: "Nestes últimos dez anos, todos nós


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sofremos muitos desgostos, decepções c tormentos. E para nenhum de nós soará o momento em que nossos desgostos se converterão em alegrias, nossas decepções em realizações inesperadas, nossos tormentos em deliciosos triunfos. A cada dia eu estarei mais doente, cada vez sentirei mais falta dos seres queridos que perdi, e verei tudo aquilo que almejei na vida ficar cada vez mais inacessível. Porém, para Dreyfus e Picquart a vida tem sido providencial como um conto de fadas. A raziio disso é que nossas

desgraças se baseiam em verdades, sejam psicológicas, humanas ou emocionais, mas as desventuras deles foram causadas por simples erro. Benditas sejam as vítimas de erros, judiciais ou outros! Somente elas poderão obter uma espécie de ressarcimento e reparação".~4 Pouco tempo depois, Proust redigia "A raça das bichas" (La race des tantes), que serviu de molde à versão definitiva da inversão em Sodoma e Gomorra. Esse texto, retomado várias vezes nos Cahiers, é um dos mais sombrios e caudalosos já escritos sobre o homoerotismo. Como notamos no início do trabalho, Proust escreve cerca de mil c quinhentas palavras numa única frase, onde a mais soberba imaginação mostra o esgarçamento de uma consciência presa ao desmentido inútil do próprio desejo. A citação integral é impossível. M as é igualmente impossível deixar de assinalar pa<;Sagens expressivas, sem o que a linguagem do "vício da inversão", em Proust, seria ininteligível em sua complexidade e genialidade. Proust diz: "Raça maldita, já que o que para ela é o ideal de beleza e alimento do desejo é também o objeto da vergonha e o medo da punição, e que ela é obrigada a viver até nos bancos dos tribunais onde vem como acusada e diante do Cristo, na mentira e no perjúrio, pois seu desejo seria de certa maneira insaciável pois só amando o homem que nada tem de mulher, o homem que não é ' homossexual ', é apenas nele que ela pode saciar um desejo que ela não deveria por ele experimentar, se a necessidade de amor não fosse uma grande enganadora e não fizesse da mais infame 'bicha' uma aparência de homem ( ...), pois como os grandes criminosos ele é obrigado a esconder seu segredo daqueles que ele mais ama, temendo a dor de sua família, o desprezo de seus amigos, o castigo de seus pais; raça maldita, perseguida como Israel e como ele acabando no opróbrio comum de uma abjeção não merecida, por assumir caracteres comuns, o ar de uma raça ( ...) os traços físicos que no mais das vezes provocam repugnância, que algumas vezes são belos, corações de mulher, amantes e delicados, mas também uma natureza de mulher, desconfiada e perversa( ...); excluídos da família, com quem não podem partilhar a inteira confiança, da pátria, aos olhos da qual são criminosos não descobertos, de seus próprios


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semelhantes, a quem inspiram a repulsa de reencontrar neles mesmos a advertência de que aquilo que eles acreditam ser um amor natural é uma loucura doentia( ...) e, no entanto, corações amantes, excluídos da amizade porque os amigos poderiam suspeitar de outra coisa que não a amizade, quando experimentam por eles pura amizade, (...) objeto ora de um desconhecimento cego que só os ama desconhecendo o que são, ora de uma repulsa que os incrimina no que têm de mais puro, ora de uma curiosidade que busca explicá-los e os compreende de maneira totalmente errada, elaborando a seu respeito uma psicologia de fantasia, que mesmo acreditando-se imparcial ainda é tendenciosa c admite a priori, como estes j uízes para quem um judeu era naturalmente um traidor, que um homossexual é facilmente um assassino; como Israel ainda buscando o que não é ele, o que não seria dele, mas experimentando, no entanto, uns pelos outros, sob a aparência das maledicências, das rivalidades, do desprezo do menos homossexual pelo mais homossexual(...) raça que põe seu orgulho em não ser uma raça, em não diferir do resto da humanidade, para que seu desejo não lhe apareça como uma doença, sua realização mesma como uma impossibilidade, seus prazeres como uma ilusão, suas características como uma tara(...) pois no fundo de todo homossexual há um anti-homossexual a quem não se pode fazer maior insulto que o de reconhecer-lhe os talentos, as virtudes, a inteligência, o coração, e, em suma, como a toda criatura humana, o direito ao amor sob a forma em que a natureza nos permitiu concebê-lo, se, entretanto, para permanecer na verdade, somos obrigados a confessar que esta forma é estranha, que estes homens não são semelhantes aos outros e repetindo sem cessar com uma satisfação irritante que Platão era homossexual, como os j udeus que Jesus Cristo era judeu, sem compreender que não havia homossexuais na época em que o uso e o bom-tom eram viver com um rapaz, como hoje, manter uma dançarina, em que Sócrates, o homem mais moral que jamais existiu, fazia brincadeiras sobre dois jovens sentados um perto do outro, tão naturais quanto as que fazemos sobre um primo com uma prima que parecem enamorados e que são mais reveladores de um estado social que teorias que apenas lhes fossem pessoais, assim como não havia judeus antes da crucificação de Jesus Cristo ( ...); parte reprovada da humanidade e no entanto membro essencial dela (... ) etc". 45 No Cahier 7, novos acréscimos foram feitos a essa descri~ão: "Alguns solitários (... ), outros gritando sua fé, ou, pelo menos, só encontrando prazer com seus correligionários, falando na língua, dizendo de bom grado palavras consagradas, fazendo gestos rituais, outros corretos, barbudos,


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burocratas empedernidos de seu vício, mantendo-se vis-à-vis dos jovens com uma reserva de moça de província que acreditasse ser uma impudicícia dizer bom-dia. alguns maravilhosamente belos, espirituais, nobres. requisitados no mundo onde transitam com uma tristeza de anjos decaídos, olhando, sem poder saciá-las, mulheres se matarem por eles(...) etc". 46 O fluxo é vertiginoso. Proust, de um só fôlego , confessou tudo o que ousara fantasiar sobre o sexo e que o je mundano poderia dizer. O vocabulário que empregou para descrever o homoerotismo era uma imensa colagem do movimento de seus desejos, sob o olhar implacável do Faubourg e de Combray. Ou, dito de outra forma, era, de um lado, o homoerotismo de Proust, nome colado ao Faubourg Saint-Germain e à glória das letras francesas; de outro, o homoerotis mo do pequeno Marcel , a quem a mãe, na hora da morte, prometera jamais abandonar. A história. comumente, habituou-se a falar de um e de outro. Porém recalcou, corno sempre, o que era incômodo relembrar: entre o pequeno Marcel e Proust, significante do tempo perdido, houve um outro je, o je Mareei Proust. Este, seguramente, interessa pouco à "arte" ou ao preconceito, mas interessa muito a todos que se recusam a fazer da vida uma existência sem arte. Recuperando o tempo perdido e desperdiçado, Proust montou o processo íntimo de seu homocrotismo. Não tendo sobre a cabeça a Emenda Laboucbere inglesa. como Wilde, ou o parágrafo I 75 do Código Penal alemão, como Eulenburg, criou seu próprio tribunal e peças de acusação. Por que, pode-se perguntar como Gidc, Proust escolheu o lado soturno e melancólico do homoerotismo para ilustrar seus exemplos de "inversão"? Por receio da infâmia? Certamente. Isso não é só óbvio; é compreensível e justi ficável. Proust conheda bem a virulência do meio intelectual e mundano em que vivia. Quando publicou Les plaisirs et les jours, foi objeto de um ataque violento de Jean Lorrain (um dos modelos do barão de Charlus), que insinuou claramente o tipo de relação que existia entre ele e Lucicn Daudet.47 Da mesma forma, estava a par do episódio em que Henri de Régnier dissera, em público, que o conde Robert de Montesquiou (outro dos modelos de Charlus) "ficaria ainda melhor com um leque", 4R ou da forma como a Sra. Holland tratava Leon Delafosse, protegido de Montesquiou e modelo de Morei, ou seja, chamando-o "Senhorita Delafosse".49 Fraco e apavorado, ele pressentia sua i ncapacidade de reagir a esse tipo de agressão. Porém, na época da edição de Sodoma e Gomorra, o Faubourg era mais uma lembrança que uma realidade. Os farrapos aris tocráticos de Saint-Germain tinham sido definitivamente jogados no lixo, depois da


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Primeira Guerra. Além do mais, Proust vivia enclausurado em seu quarto, mal saindo para encontrar-se com amigos e relações mais próximas, que preferia receber em casa . Fora isso, pode-se igualmente perguntar, o que lhe impediria de apresentar outras facetas do homoerotismo servindo-se de personagens fictícias? A dissimulação, nesse caso, estaria preservada e continuaria a oferecer-lhe imunidade contra os eventuais detratores. Tudo era possíveL Nada disso, entretanto, aconteceu porque, podemos supor, em Proust, a linguagem do vício é, ao mesmo tempo, desejo de profan(JfãO. Todos os invertidos de Sodoma e Gomorra são tipos desprezíveis. Vaugoubert é um covarde, emasculado pela mulher e pela preocupação com sua imagem de diplomata; Morei é um velhaco oportunista e obtuso, · que vive como gigolô, às custas de Charlus; Jupien é um desfibrado, um subserviente, entremetteur de Charlus, seu antigo amante; e, fi nalmente, Charlus, figura central do romance, um aristocrata arrogante, fútil, obeso, decaído, rancoroso, capaz da.~ piores vinganças contra os que rejeitam seus avanços e dos piores ataques de pieguice histérica, quando vítima dos sofrimentos do amor. Proust vai adiante. Não se contenta em mergulhar seus anti-heróis no "poço de Sodoma", feito de traições, canalhices e mágoas. Generaliza esses de.;tinos pessoais, tornando-os tipos psíquicos representantes do que é a essência da inversão. Pensando agir como um "herborista humano" ou um "botanista moral", ataca sem piedade o "vício" dentro de si e dos outros. Charlus é de uma sensibilidade paranóica, sempre prestes a "ver por toda parte, homens semelhantes a ele". so Também exibia a "dureza e o desprezo que os invertidos sentem por aqueles que os desejam, sem serem desejados". 51 Quando diante de um outro invertido, sofria, não só por ver " uma imagem indesejável de si próprio", mas porque seu "instinto de conservação" o fazia ver num igual um possível concorrente. 52 Nesse caso, continuava, a raiva do invertido é ainda mais lancinante que a dos outros homens.-~3 Finalmente, aliada a todas essas características, estava a prática sadomasoquista que arrematava o perfil exemplar do invertido barão de Charlus. Poucos são os momentos em que Proust usa expressões como "corajosos exilados de Sodoma", "o vício, assim chamado por como-didade de linguagem", "um gosto chamado vício", etc., ou refere-se aos invertidos como possuindo um especial "dom espiritual" para coisas sublimes e elevadas.54 Mesmo assim, quando a virtude impunha-se à abominação, era para ser trazida de volta à inocência. Procurando dar conta do que havia de bom no homoerotismo, ou retirá-lo do terreno da maldição para colocá-


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lo na esfera do desejo, do gosto ou da preferência, Proust criou o mito da raça de Sodoma, no qual, novamente, a responsabilidade humana estava ausente. Nesse mito, calcado no discurso de Aristófanes, em O banquete, de Platão, e na mitologia cristã das cidades da planície, o belo e o apreciável nos amores homoeróticos eram simplesmente a manifestação atávica de uma raça de seres que ansiavam inconscientemente por suas metades perdidas, das quais tinham sido privadas pela ira invejosa dos deuses. A virtude era de ninguém, porquanto de todos. Virtude burocrática e repetitiva, que obedecia sem desejar ou desejava apenas a obediência. O mito da raça de Sodoma, como aquele da inocência natural dos hommesfemmes, ou homens-flores, punha o desejo humano no céu das idéias, deixa ndo impunes as cidades dos Gucrmantes e Combray. Todavia, Mareei Proust, como dissemos, foi mais do que Proust e do que o pequeno Mareei. Em sua história de vida, nem a sexualidade foi sinônimo de homoerotismo, nem homocrotismo sinônimo do vício de Charlus. Na infância, adolescência, juventude e idade adulta, Proust apaixonou-se das mais diversas maneira-; por homens e mulheres. O discutível fato de nunca ter tido relações hetcroeróticas é aqui de somenos importância. Julicttc d' Artois, Marie de Benardaky, Jeanne Pouquet, Marie Finaly, Mme. Straus, Louiza de Momand foram alguns de seus amores heteroeróticos.ss No que concerne ao homoerotismo, a discrepância entre o dito e o vivido é ainda maior, considerando-se que era a inclinação sexual predominante de Proust Na juventude, ligara-se amorosamente a inúmer<ls amigos, embora sem relações sexuais físicas. De Edgar Aubert, dizia: "Enfim, encontrei o terno amigo de meus sonhos, que me escreve cartas".56 De Robert de Flers, disse: "Alguém que é para mim tudo o que teria sido para X, se não fosse tão insensível. Refiro-me ao jovem, encantador, inteligente, amável e afetuoso Robert de Flers"Y Pouco depois, encontra o jovem inglês Willie Heath, com quem diz fazer planos para "viver cada vez mais juntos, num grupo seleto de homens e mulheres magnânimos, bem longe da estupidez, do vício e da malícia, para ficar ao abrigo de seus dardos vulgares". ss Sem dúvida, a "inversão" de Mareei Proust tivera seus momentos de subida aos céus, em nada parecidos com o inferno de Sodoma. O teor de sua correspondência íntima e amorosa revela seu acesso à felicidade concebível no código do amor romântico. Como qualquer apaixonado, homo ou heteroerótico, ele sentia e falava das delícias do amor, com as cores do romantismo da época: tom confessional da emoção, exaltação do sentimentalismo, intimismo açucarado, idealização da parceria amorosa,


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sensíblerie, diatribes contra a insensatez do mundo, etc. Essa linguagem, cheia dos jargões mais triviais, era a linguagem reconhecida e aprovada como sendo a do amor virtuoso. Proust, portanto, sentira o gosto da virtude. No entanto, como qualquer outro indivíduo ocidental, de ontem ou de hoje, não podia aplicá-la publicamente ao homoerotismo, sob pena de incorrer em erro de uso. A virtude do amor só é moralmente correta e tolerada quando referida ao heteroerotismo. Ou seja, ele interiorizara o preconceito e, seguindo a regra, pronunciava vício onde experimentara virtude. Ao apaixonar-se, mais tarde, pelo músico R~ynaldo Hahn, com quem viveu uma terna e prolongada relação amorosa, afirmou certa vez: "quero que você esteja sempre presente em meu romance, como um deus disfarçado que mortal nenhum pode reconhecer". 59 Hahn tornou-se, no romance, o heterossex.ual Henri de Réveillon. Decência oblige. As paixões por Lucien Daudet e, depois, pelo nobre Antoine Bibesco não fogem à regra. Ora, desses amores nenhum traço permaneceu na pintura homoerótica de Proust em seus romances. Entretanto, todos aqueles jovens, com exceção de Daudet, longe de serem cópias de Charlus, eram viris, corteses, despretensiosos, c Reynaldo Hahn, até os últimos dias de Proust, dedicou-lhe uma amizade desinteressada e generosa, absolutamente oposta à sórdida mesquinhez do barão. Da mesma forma, as relações posteriores de Proust com subalternos, como com seu secretário particular Ulrich ou com seu chofer Agostinelli, mostram uma imagem do homoerotismo em nada assimilável ao perfil da "raça dos bichas" ou da "raça maldita" dos "hommes-femmes". Ulrieh, que mantinha relações com Proust, e a quem era muito devotado, não negava o prazer que tinha em manter relações sexuais com mulheres, o que incomodava pouco o patrão.60 Agostinelli, por quem Proust foi extremamente apaixonado, também mantinha regularmente relações heteroeróticas e era casado com Anna, de quem Proust sentia muitos ciúmes.61 · O homoerotismo de Mareei Proust foi, assim, uma multiplicidade de relações afetivas e sexuais po1imorfas, que o Narrador congelou e dissecou a partir de um só ângulo e com um só bisturi. O ângulo feliz e pacificado de sua sexualidade foi expurgado do tempo recuperado, dando vez ao v(cio e à profanação. Escolhendo o barão de Charlus como o éxcmplo de invertido, Proust quis fazer ver aos outros que grand monde e bas-fond não se distinguem quando o assunto é amor. Chez les Guermantes, como dizia Brichot, "as pessoas passam o tempo a considerar seus umbigos como se fossem o centro do mundo" .62 Ali, a grande "virtude" era a reputação; portanto, mesmo o mal era bem-vindo, desde que rendesse


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dividendos. Por outro lado, " as pessoas de Combray podiam achar que tinham bom coração, sensibilidade, e adquirir as mais belas teorias sobre a igualdade humana; minha mãe, quando um valet de chambre se emancipava, ( ...) manifestava a respeito dessas usurpações o mesmo descontentamento que explode nas Memórias de Saint-Simon, toda vez que um seigneur, sem direito, arranja um pretexto para assumir a qualidade de Alteza em um ato autêntico, ou de não conferir aos duques o que lhes é devido e do que, pouco a pouco, se isenta. Havia um espírito de Combray tão refratário, que seriam necessários séculos de bondade (aquela de minha mãe era infinita), de teorias igualitárias, para conseguir dissolvê-lo".63 Isto é, também, a moralidade burguesa e materna era insensível às "intermitências do coração". Depois da morte da mãe, a docilidade virou rebelião. Combray e o Faubourg associaram~se num só grande outro opressor, bem distante do severo, mas protetor, Deus de Gide. Proust disse, certa ve7., falando de Charlus: "O mais perigoso de todos os segredos é aquele da falta, ela mesma, no espírito do culpado".64 Esse era o segredo a que se referia quando escrevia à Sra. Straus sobre as "verdades psicológicas, humanas ou emocionais" de suas desgraças. Esse sentimento de falta diante do mundo e da mãe era de uma enormidade proporcional à impiedade que Proust, em seu infantilismo afetivo e em sua sagacidade intelectual, via na moralidade aristocrático-burguesa que o asfixiava. O "vício" do seu homoerotismo era do tamanho de ogro do Faubourg e de Combray. Preso a dois mundos sem misericórdia, transfigurou a fraqueza em ódio e a idolatria em profanação. Proust profanou o mundo dos Guermantes com o vício de Charlus, assim como profanou o mundo familiar e burguês com o vício de Gomorra; de novo, dissimuladamente, acertava contas, em meio a culpas e tormentos com seus amados perseguidores. Em 1917, começa a relacionar-se com Albert Le Cuziat, conhecido prostituto do grand monde parisiense, a quem ajuda a montar um bordel masculino, com dinheiro, "cadeiras, sofás e tapetes" que pertenciam aos falecidos pais.65 Quando no romance o "Narrador presenteia a dona do hordel de Bloch com as cadeiras e o sofá da tia Leonie, é assaltado pelo remorso" e diz que é como se "tivesse contribuído para a violação do corpo de uma mulher morta(... ), porque os móveis pareciam estar vivos e me fa zer súplicas, como os objetos aparentemente inanimados das Mil e uma 11oites, onde almas humanas estão aprisionadas, sofrendo martírios e im plorando a libertação".66 Em Montjouvai!' 1 ~ NauaàQr, através da ja;-


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nela. vê a Srta. Vinteuil incitar sua parceira a cuspir no retrato do pai e a chamá-lo de "velho macaco", para excitar-se sexualmente. 67 Ritual de expiação e profanação, o vício do homoerotismo é o vício de um je que do outro fez o senhor c de si mesmo o escravo. Essa servidão, nutrida por amor e ódio, era simultaneamente dom e recusa. Proust deu ao Faubourg e à Combray a parte maldita de sua sexualidade, guardando para si a beleza das lembranças eróticas, preservadas do desgaste pela dissimulação. Seus amores felizes vestiram a máscara heteroerótica para se liberarem eternamente d a conspurcação. Ao vencedor, as batatas; aos vencidos, a recordação intocável dos prazeres e os dias. Proust, como artista, de sua arte fez simulacro de uma vie donnée; de uma daquelas vidas "que não guardam nada para si, nem um só minuto, nem um só prazer" já que "tudo, inteiramente tudo, é um sacrifício pelos outros".68 Como homem, fez de sua vida uma paródia do que a tolice mundana recomendava encenar. Ganhou a consagração da arte e qualquer coisa da vida, mas não logrou fazer de sua vida uma obra de arte. Talvez, porque este seja o sonho impossível do desejo humano. Proust, em todo caso, conhecia na carne o desencontro entre vida e amor. As coisas que esperamos nunca chegam a tempo. Ou, o que dá no mesmo, quando chegam, o tempo passou. Perto da morte, dizia à tiel Celeste Albaret, sobre o médico chamado para atendê-lo: "Como tudo o mais, chegará muito tarde". BffiLIOGRAFIA I. PAINTER, George D., Marcel Proust. Rio, Guanabara, 1990; p. 484. 2. Jbid. 3. Cit. por COMPAGNON, Antoine, in PROUST, M ., Sodome et Gomorrhe. Paris, Gallimard, 1989; p . XXX I. 4./bid. S. G IDE, A., Joumal, 1889-1939. Paris, Gallimard, 1948; p. 694. 6. lbid., p.705. 7. lbid., p. 692. 8. GA Y, P., A paixão tema. A experiência burguesa da rainha Vitória a Freud. São Paulo, Companhia das Letras, 1990. 9. WEBER, E., França.fin·de·siccle. São Paulo, Companhja das Letras, 1988; PERROT, M ., "Funções da famnia", in História da vida privada. Op. cit.; pp. 105 -121, 1991; MARTIN-FUGIER, A., "Os ritos da vida privada burguesa", in História da vida privada. Op. cit.; pp. 193-203, 1991; GAY, P., A paixão terna. Op. cit. 10. OAY, P. Op. cit.; p. 47.


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11. PAINTER, G. D . Op. cit.; p. 254. 12. RORTY, R., Contingen cy, irony, and solidarity. Cambridge, Cambridge University Press, 1989. 13. ARENDT, H., As origens do totalitarismo - AMi-semitismo, instrwneruo de poder. Rio, Editora Documentário, 1979. 14. PROUST, M. Op. cit.; p. 53 1. 15. PROUST, M. Op. cít.; pp. 153-154. 16. ELMAM. R .. Oscar Wilde. São Paulo, Companhia das Letras, 1989; p. 3 13. 17. Jbid. 18. lbid. 19. WEBRR, E. Op. cit.; p. 20. 20. lbid., p. 97. 21. PROUST, M. Op. cit.; p. 81. 22. Jbid., p. 122. 23. PROUST, M. Op. cit.; p. 100. 24. Jbid., p. 476. 25. ARENDT. H., As origens de totalitarisnw - Anti-semitismo, instrumento de poder. Op. cit. 26. PROUST, M. Op. cit.; p. 345. 27. ARENDT. H. Op. cit. 28. lbid. 29. PROUST, M . Op. cit.; p. 114. 30. lbid., p . 429. 31. WEBER, E. Op. cit.; p. 172. 32. VerCOMPAGNON, in PROUST. Op. ciJ.; p. XV. 33. lbid., pp. 29,63-64,91, 94, 95, 192,300,343,344,356, 450,454 etc. 34. WEBER, E. Op.cit. PERROT, M.; Op.cit.; 1991. 35. PAINTER, G.D. Op. cit.; p. 144. 36. COSTA, J .F ., "Impasses da ética naturalista: Gide e o homocrotismo". Conferência feita em São Paulo e Curitiba, no Seminário sobre Ética, organizado pelo Departamento Cultural da Prefeitura de São Paulo, 1991 , inédito. 37. RIVERS, J. E., "The myth and science of homosexuality in A la recherche du temps perdu", in Honwsexualities and French literature; Ed. George Stambolian e Elaine Marks. lthaca and London, Cometi University Press, 1979; pp. 262-278. 38. ALTER, R., "Proust and the idcological reader", in Salmagundí; no 58-59, outono · de 1982, inverno de 1983, pp. 347-358. 39. PAINTER, G . D. Op. eis.; p. 614 . 40. HUNT, L., "Revolução Francesa e vida privada", in História da vida privada. Op. cit.; pp. 21-23, 1991 ; HALL, C., "Sweet Home", in História da vida privada. Da revolução francesa à Primeira Guerra, tomo 4, coleção dirigida por Philippe Aries e Georgcs Duby. São Paulo, Companhia das Letras, 1991; pp. 53 -93. 41. PROUST, M. Op. cit.; p . 248.


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42. PAINTER, G.D. Op. cit.; p. 405. 43. lbid., p. 407. 44. PAINTER, G. D. Op. cir.; p. 390. 45. PROUST, M . Op. cit.; p. 520-522. 46. Jbid. 47. PAINTER, G. D. Op. cit.; p. 217. 48. Jbid., p. 219. 49. lbid., p. 220. 50. PROUST, M. Op. cit. ; p. 311. 5 1. lbid. 52. Jbid., pp. 311 -312. 53. Ibid. 54. lbid., pp. 15, 246,343,437. 55. PAINTER, G. D. Op. cit.; pp. 49, 63, 93, 126, 352. 56. lbid., p. 137. 57. lbid. 58. Jbid., p. 132. 59. PROUST, M. Op. cit.; p. 214. 60. PAil\1'fER, G.D. Op. cit.; p. 416. 61. lbid., p. 551. 62. PROUST, M. Op. cit.; p. 346. 63. PROUST, M. Op. cit.; p. 415. 64. lbid., p. 113. 65. PAINTER, G.D. Op. cit.; p. 607-608. 66. PAINTER, G. D. Op. cit.; p. 671. 67. lbid., pp. 49 e 329. 68. lbid., p. 242.


O homoerotismo diante da AIDS

No início dos anos 80, a AIDS veio a público como "doença de homossexuais". Hoje essa crença caiu em desuso. O avanço do conhecimento científico e a alteração do perfil epidemiológico da sfndromc, se não romperam, pelo menos afrouxaram os laços ideológicos com o chamado "homossexualismo". Entretanto, essa remodelagem do imaginário social sobre a AIDS trouxe um outro problema. Como observou, entre outros, Richard Parker, a AIDS não é uma "doença de homossexuais", como quis o preconceito, mas continua sendo uma questão importante para os homens same-sex oriented. Portanto, neste trabalho, voltamos a discutir o tema. Pensamos que, entendendo melhor as dificuldades emocionais dos sujeitos envolvidos em tais situações de vida, podemos rever preconceitos quanto ao homoerotismo masculino e, por essa via, lutar de maneira mais eficiente contra a transmissão do vírus da AIDS. Em nossa opinião, o risco de infecção entre indivíduos homocroticamente inclinados está diretamente relacionado à maneira como lidam com o preconceito dirigido contra suas preferências sexuais. É o ponto de vista que procuraremos sustentar ao longo deste estudo. Como ponto de partida, tomamos a hipótese de que a crença na existência de uma sexualidade homossexual naturalmente dada, fosse ela instintiva ou psicológica, era indissociável da crença trans-histórica ou c11lturalmente universal que, por sua vez, estava vinculada à maneira preconceituosa como as práticas homoeróticas eram pensadas, vividas e "agida~j" pelos sujeitos nelas implicados. Supúnhamos, além do mais, a partir de certas observações preliminares, que a posição de constrangimento psíquico e social dos indivíduos rotulados de "homossexuais" intcrvinha no modo como reagiam ao risco de infecção pelo HIV. No curso


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do trabalho, essa hipótese revelou-se mais complexa e matizada do que imagináramos. Contudo, suas linhas de força mantiveram-se de pé, confirmando a visão geral que tínhamos do problema.

Descrição do universo investigado c breves considerações metodológicas Tomamos como material de nossa investigação dois universos representativos do problema. O primeiro foi constituído por indivíduos atendidos em consultório de psicanálise. Tratava-se de dezessete homens, com idade variável entre 18 e 43 anos c que procuraram atendimento psicanalítico após o período de difusão pública do aparecimento da AIDS , ou seja, a partir de 1981, com a queixa de conflitos em relação à "homossexualidade". O segundo universo era composto por 25 entrevistas feitas com homens que mantinham regularmente práticas homoeróticas c que, na maioria, classificavam-se como "homossexuais". Essas entrevistas foram feitas pelo antropólogo Richard Parker, com o objetivo principal de mapear o tipo de informação sobre o HIV e de identificar as atitudes adotadas diante da percepção social da doença e do risco de contaminação. A idade dos entrevistados variava de 17 a 30 anos, em média, e apenas um tinha 67 anos. No que dizia respeito à diversidade profissional, os grupos assemelhavam-se internamente. Em ambos havia grande diversidade de ocupações laborativas. No entanto, os entrevistados da mostra antropológica afirmaram ocupar, no mais das vezes, posições subalternas no setor de serviços onde todos trabalhavam, enquanto os clientes de consultório eram profissionais liberais, estudantes de cursos superiores, ou ocupavam, também na maioria, cargos de chefia nas respectivas empresas. Do ponto de vista teórico-metodológico, a uniformização dos dois universos é problemática. Pode-se objetar que as diferenças entre os grupos inviabilizam qualquer conclusão válida para ambos. Os grupos, de fato, apresentavam as seguintes diferenças nas características sócioculturais de seus membros: • O grupo de clientes de psicanálise era fom1ado, na maioria, por pessoas oriundas da'l classes médias urbanas, com níveis de instrução superior, com tradição de educação familiar agnóstica e liberal, com vínculos familiares atuais razoavelmente fortes ; possufam um vocabulário descritivo dos sentimentos privados rico e marcado pela cultura individualista da inlimidade, no sentido dado a esta noção por vários autores (Berger, 1978; Costa, 1979, 1984; Figueira, 1981;


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Habcrmas, 1981; Lascb. l979a. 1979b, 1986; Luhmann, 1990; Sennett, 1978; Sennett e Foucault, 1981). • Ao contrário, o grupo de entrevistados era composto por pessoas sobretudo pertencentes à baixa classe média; alguns eram desempregados ou prostituíam-se profissionalmente, possuíam nlvel de instrução elementar ou secundária, quase sempre eram oriundos do meio rural ou de pequenas cidades do interior, tinham tido uma educação familiar religiosa e voltada para valores tradicionais, tinham poucos vínculos familiares fort.cs na atualidade e apresentavam pobreza vocabular no que concerne à linguagem do intimismo sentimental.

A segunda característica da diversidade concernia à percepção da inclinação homoerótica. Os clientes, na maioria, percebiam o desejo homoerótico como fonte de conflitos e exprimiam claramente esse incômodo. Os entrevistados, em contrapartida. apresentavam o problema de maneira ambfgua: por um lado. afirmavam não ter problemas com o "homossexualismo"; por outro, em vários trechos das entrevistas. falavam do "homossexualismo" como um problema. Ou seja, diferiam quanto à maneira de aceitar a idéia do conflito embora admitissem sua e xistência. Diante dessa diversidade, pode-se levantar objeções quanto à validade de um trabalho que considere em bloco os dois grupos, pura efeito de análise das relações entre consciência da identidade homossexual c atitudes diante da ATOS. Vamos limitar-nos a levar em conta aque las mais relevantes para a pesquisa.

Primeira objeção Pode-se argumentar que a multiplicidade dos universos discursivos impõe obstáculos intransponíveis à redução analítica de seus temas. Os dois tipos de discurso não seriam comparáveis por diversos motivos. Em primeiro lugar, as diferenças sócio-culturais não permitiriam a homogeneização de códigos interpretativos sobre a questão do homoerotismo e das idéias de prevenção. Em segundo lugar, a questão da identidade homossexual, mesmo supondo-se que os dois grupos possuíssem uma mesma forma de representação do fenômeno, poderia não ser igualmente problemática ou relevante para ambos. D ependendo da rede sócio-cultural onde estivessem inseridos os indivíduos, e do próprio momento histórico ou pessoal que estivessem vivendo, a importância dada à questão do homoerotismo poderia variar. Assim, por exemplo, como notou Weeks (1991, p. 79), muitos homossexuais negros norte-americanos preferem identificar-se primariamente como blacks e não como gays, e alinham-se preferencialmente


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como blacks quando se trata de assumjr posições políticas. O mesmo, mutatis muntandis, poderia ocorrer com o grupo dos entrevistados, em relação ao dos clientes. Em terceiro lugar, nos depoimentos colhidos junto aos entrevistados, a questão do homoerotismo estava subordinada à questão central da prevenção. As respostas, portanto, tenderiam a problematizar a questão homoerótica nessa perspectiva, o que não aconteceria com o grupo de clientes, prioritariamente ocupados com o problema da inclinação homoerótica em si.

Segundll objeção Neste ponto, pode-se argumentar que a posição dos interlocutores no .diálogo sobre o homoerotismo também não é uniformízável. Os entrevistados lidavam com entrevistadores que se colocavam em posição simétrica diante do problema e, além disso, procuravam informá-los e ajudá-los, seja com o objetivo de combater o preconceito em relação ao "homossexualismo", seja em relação à prevenção da AIDS. No caso dos clientes, a posição do psicanalista é completamente diversa, o que, com toda probabilidade, tenderia a induzir uma outra modalidade de discurso por parte do cliente. Ao lado disso, pode-se também argumentar razoavelmente que o cliente de psicanálise é alguém que, pela história social ou psíquica, apresenta conflitos muito maiores em relação ao homoerotismo e já vai procurar atendimento buscando ajuda para um problema que não consegue resolver. Ora, esse lugar é completamente diferente daquele ocupado por quem está sendo solicitado a falar da identidade homossexual, não por sua própria iniciativa ou por considerá-la um problema, mas por solicitação do interlocutor. No setting analítico, a demanda é do cliente; na entrevista antropológica, é do entrevistador.

Terceira objeção Finalmente, a terceira objeção poderia ser levantada contra o uso mesmo da teoria psicanalítica na abordagem dos dois universos. Pode-se perguntar como a teoria psicanalítica pode ser de utilidade na abordagem de entrevistas antropológicas, onde está ausente o famoso tripé que justifica teórico-clinicamente a leitura psicanalítica do fato homoerótico, isto é, a livre associação, a transferência e a interpretação. Sem isso, o que poderia fazer a psicanálise com entrevistas antropológicas?


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Justiflcação metodológica Neste tópico, não discutiremos exaustivamente questões de método. Resumiremos tais questões ao mínimo necessário à fundamentação e à plausibilidade de nossas opiniões. A bibliografia citada permitirá ao leitor universitário aprofundar os temas, caso seja seu interesse. Passemos, então, ao essencial. Se d efinirmos método como conjunto de procedimentos ordenados, repetíveis e corrigíveis, ou seja, como conj unto de descrições coerentes e consistentes de fatos ou eventos, coisas ou estados de coisa que se pretende conhecer de maneira sólida, podemos justificar nosso estudo a partir de várias perspectivas.

Resposta à primeira objeção No que diz respeito à primeira objeção, podemos dizer que, não obstante a diversidade de origem ou pertencimento sócio-cultural, todos os indivíduos analisados apresentavam: • a mesma crença na.existência de uma identidade homossexual única e a mesma capacidade de reconhecer essa identidade como sendo socialmente desapmvatkl e marcada pela exclusão; • a mesma capacidade de perceber essa identidade como sendo ou tendo sido um problema para o equilíbrio psicossocial de suas personalidades.

Ou seja, ao contrário do que sugere Plummer (1981), por exemplo, a percepção diferencial do fenômeno homoerótico, imposta aos indivíduos pela diversidade sócio-cultural, não se traduz na prática nem pelo desconhecimento da noção de "homossexualidade", nem pelo desconhecimento ou negação de que a "homossexualidade" é um problema. A variação perceptual existe, mas dentro de limites estreitos. Nenhum dos sujeitos escutados desconhecia o preconceito contra o homoerotismo. Todos sabiam, além disso, o que era ser "um homossexual", e como o fato de "ser homossexual" os obrigava a enfrentar situações sociais e psicológicas c.:onflitivas. Mesmo quando a linguagem descritiva de comportamentos e sentimentos homoerótico s dispensava o uso de termos como homossexualismo, homossexualidade e homossexual, conforme mostra Parker ( 1989a, l989b, 1990), ainda assim os sujeitos eram perfeitamente capazes de empregar corretamente tais termos c de qualificar o "homossexualismo" como uma faceta problemática de suas identidades, desde • que, evidentemente, reconhecessem a coincidência entre suas práticas


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sexuais e os atributos contidos na extensão e significação da palavra "homossexualismo". Obviamente, a utilização da noção de problema pode parecer trivial e aplicável a inúmeros outros predicados da personalidade. Mas, no contexto em que a usamos, problema tem o sentido de aspecto da identidade socialmente desaprovado ou de traço da personalidade que, uma vez manifesto em desejos ou atos, não tem como ser acolhido satisfatoriamente pelos hábitos culturais dominantes. O "homossexualismo" é problemático na medida em que, para ser aprovado ou tolerado, precisa promover uma alteração nos códigos morais existentes ou na hierarquia de valores que o condenam a uma "posição inferior''. . Portanto, em nosso entender, a convicção imediata e partilhada sobre a natureza problemática da "homossexualidade" , por parte dos dois grupos, requer um acordo tácito e geral sobre a valoração moral do homoerotismo. A crença básica de que todos os seres humanos dividem-se em "homossexuais" e "heterossexuais" é um pressuposto descritivo-valorativo de onde partem os sujeitos, para, em seguida, reavaliarem ou não o teor do preconceito. Tal crença não é al~crada "espontaneamente" pela diversidade sócio-cultural. Ela só passa a ser tematizada em seus princípios quando o indivíduo, na idade adulta, tem a possibilidade de expor-se ao pensamento crítico sobre a questão. Em poucas palavras, o que existe de comum na apreensão perceptivo-interpretativa do homocrotismo é moral e psiquicamente mais relevante, mais pregnante e mais decisivo para a vida afetivo-sexual dos sujeitos do que aquilo que existe de diferente. Acreditamos que as observações de Weeks, sobre os limites da abordagem interacionista em sociologia, ilustram os equívocos da posição de princípio que afirma uma possibilidade plausível - a da "pluralização da identidade" (Plummer, op. cit., pp. 57-60) - mas falha quando se trata de explicar a hegemonia de certos modelos de construção identitária. "Mas o interacionísmo não tem sido capa7. de teorizar as variações sexuais que pode tão habilmente d escrever, nem de conceituar as relações entre possíveis padrões sex.uaise outras variáveis sociais. Embora reconheça a~ disparidades de poder entre os vários grupos e a importância do poder em estigmatizar, freqUentemente tem dificuldades em teorizar questões estruturais de poder e autoridade. Do mesmo modo, o interacionismo não se preocupou em investigar a questão da determinaçào, no campo da sexualidade. Ele é incapaz de teorizar porque, não obstante as infinitas possibilidades de sexualização sugeridas, os genitais continuam a ser o foco da imaginação sexual, e porque existem, nas várias épocas, mudanças na localização dos tabus sexuais. E existe também uma conseqüência


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política desta teoria. Se os significados são inteiramente desenvolvidos na interação social, um ato de vontade coletiva pode transformá-los. Isto conduz, como sugeriu Mary Macintosh, à política do "voluntarismo coletivo". Na teoria como na prática, o interacionismo ignorou a localização histórica de certos tabus. Ele pára precisamente no ponto onde a teorização parece e~sencial; no ponto da determinação histórica e da estruturação ideológica, na criação da subjetividade." (Weeks, op. cit., p. 28.)

As observações de Weeks são fundamentais. De fato, a possibilidade teórica da pluralização de identidades não pode fazer esquecer nem as "questões de poder e autoridade estruturais", nem por que "os genitais continuam a ser o foco da imaginação sexual", nem a localização histórica dos tabus sexuais, nem, por último, a determinação histórica e a estruturação ideológica que estão na base da criação da subjetividade. Por isso, a nosso ver, a própria idéia de "opção" ou "escolha", no que diz respeito à questão da "identidade homossexual", deveria ser substituída pelo termo mais genérico de inclinação. Opção e escolha remetem inevitavelmente a "livre deliberação" ou "voluntarismo", termos que falseiam a realidade das preferências ou inclinações sexuais. Mesmo no caso da escolha da "identidade gay", predominantemente marcada pelo caráter optativo c consciente da identidade, sobretudo nos círculos militantes, é difícil imaginar um movimento autônomo de deliberação no fundamento da escolha, desconsiderando todo o jogo de forças e toda a dinâmica de resistência, Iuta e remodelação das categoria<> de preconceito envolvidos na construção daquela identidade. O próprio Weeks, apesar de usar o termo "escolha", mostra que a palavra, aqui, não é empregada no sentido de opção livre de coerções, mas apenas no sentido de apropriação de modelos de identidade disponíveis, que são culturalmente arbitrários e não biologicamente necessários. "Essas identidades não são expressão de essências secretas. São autocriações, mas criações sobre fundamentos; não livremente escolhidas, mas arranjadas pela história. Desse modo, identidades homossexuais ilustram o jogo de crenças e oportunidade, necessidade c liberdade, poder e prazer." (Week.s, ibid., p. 83.)

Uma coisa, portanto, é dizer que a preferência homoerótica não é uma

essência, uma condição, um destino psicológico e biológico, e sim uma possibilidade psíquica e cultural de expressão do erotismo; outra coisa é afirmar que o homoerotismo é uma "escolha'' ou uma "opção", no estágio atual de nossas teorizações ou leituras do assunto. Como quer que seja, o


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fundamental , no texto de Weeks, são as questões que ele próprio levanta, e tenta resolver, no conjunto de seu trabalho. Inspirado em Foucault, Wccks (1977, 1985, 1986, 1991) tem chamado atenção para a heterogeneidade de fatores histórico-culturais, responsáveis pela invenção do homossexual no século XIX. Partindo do método histórico-genealógico e de informações sócio-antropológicas, esse autor vem discutindo todo o complexo prático-discursivo que, pondo a família conjugal e a sexualidade reprodutiva como centro da identidade do indivíduo burguês, realçou o valor da sexualidade na definição dessa identidade, criando, ao mesmo tempo, o código da norma e do desvio sexual. Ou, como sintetiza Plummer: "A família enquanto instituição social não condena, ela própria, a homos- · sexualidade, mas, por meio de sua mera existência, implicitamente fornece um modelo que torna a experiência homossexual inválida." (Piummer, cil. por Weeks, ibid., p. 38.)

Com base em Weeks, além dos trabalhos de Boswcll (1980), Foucault (1983, 1984, 1985, 1989), Grecnberg (1988), Halperin (1990) c outros, sugiro que a admissão da existência de modelos hegemônicos, imperativos c relativamente uniformizantes de aquisição de identidades sexuais contraria a previsão teórica de uma pluralização de identidades abertas a opções individuais. Tais opções são·restritas, e a criação de novos modelos identificatórios depende menos de situações sócio-culturais localizadas do que de mudanças mais gerais nos ethos históricos e culturais. Embora admitamos a virtual infinidade expressiva do potencial erótico dos sujeitos, todos os estudos comparativos de que dispomos mostram que as diferentes épocas foram dominadas por ideais normativos de realizaÇão ou perfeição sexuais que se impuseram aos indivíduos, malgrado a diversidade de suas posições sócio-culturais. Por meio da noção de imaginário social e individual, discutida em alguns de nossos estudos (Costa, 1988, 1989a, 1989b, 1991 a), pensamos que é perfeitamente aceitável criticar a idéia essencialista e univcrsalista de uma "identidade homossexual", sem tomar o esquematismo teórico da "pluralização" e seu correlato da "opção" ou "escolha" uma construção imaginária obrigatória na realização da identidade sexual dos sujeitos. No que tange ao homoerotismo, seguindo pis~as de Weeks (1991, pp. 38-39), pudemos assinalar, por exemplo, que o imaginário social tecido sobre as supostas características do "homossexual" foi construído em boa medida a partir da literatura ficcional dos finais do século XIX e início do


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século XX. Essa literatura, por sua vez, sobretudo a de Gide e Proust, utilizou abundantemente o material médico e antropológico do século XIX na definição do perfil moral e das tendências sexuais dos "homossexuais" ou "invertidos". Só recentemente a imagem social do "homossexual oitocentista" passou a ser contestada por novos modelos de interpretação do homoerotismo. Assim, acreditamos que não se sustenta a objeção levantada contra a pretensão de analisar conjuntamente os universos sociais distintos sob alegação da incomparabilidade de seus códigos descritivos e interpretativos do fato homoerótico. Essa alegação é apriorística, ou, no melhor d~s casos, não se aplica ao contingente de indivíduos analisados na realidade urbana brasileira atual.

Resposta à segunda objeção Essa possível objeção também parte de um pressuposto discutível. Independentemente do objetivo que orienta a fala sobre a "homossexualidade", de quem tomou a iniciativa ou colocou-se na posição de pedir ou exigir uma fala desse tipo, independentemente, enfim, da simeuia ou dissimetria dos interlocutores no diálogo, o que pudemos notar foi a recorrência de um certo número de características descritivas, concernentes à gênese e função da homossexualidade na economia psíquica e social dos sujeitos. Além de constatarmos, como já afirmamos, a participação comum na crença de que existe uma "identidade homossexual", e na avaliação das inclinações homoeróticas como um "problema", os indivíduos dos dois universos tinham concepções bastante semelhantes sobre a origem de suas "homosse.xualidades" e da natureza conflitiva dessas inclinações, em relação aos ideais heterossexuais. Todos sem exceção atribuíam duas origens ao ''homossexualismo", ou seja, uma origem "natural", fosse ela de natureza "instintiva" ou orgânica, e uma origem psicológica, fosse ela concebida sob o modo do trauma sofrido por uma sedução precoce ou sob o modo do defeito de educação familiar: família desestruturada, pai ou mãe hipercontroladores, ou omissos, ou repressivos, ou muito liberais, ou muito moralistas etc. A ênfase em um dos dois modelos variava conforme o nível de instrução ou conversão à linguagem do intimismo. Os mais instruídos e treinados na linguagem da intimidade inclinavam-se para a "teoria do trauma" ou da influência da personalidade dos pais em suas próprias


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educações. Os argumentos empregados para descrever a gênese da "homossexualidade" eram, no mais das vezes, tomados de empréstimo ao vocabulário psicanalítico, divulgado pelos meios de comunicação de massa. Os menos instruídos, que constituíam a massa dos entrevistados, invocavam quase exclusivamente a causalidade "instintiva" (sob a modalidade de tendência natural ou "tesão" espontâneo por homens desde cedo) ou o hábito derivado de seduções precoces, por adultos ou crianças mais velhas. Rarissimamente vinha à tona a idéia de que a personalidade dos pais era um fator "causal" na gênese da "homossexualidade". Quando referiam-se aos pais, era apenas para citar como eles reagiam à manifestação da "homossexualidade" no sujeito. Isto é, criticavam ou não os pais por serem liberais ou repressivos diante do " homossexuali smo" consu. mado, e não porque, dados os traços de suas respectivas personalidades, teriam consciente ou inconscientemente "provocado" o "homossexualismo" dos filhos. Essa constatação elucida grande parte da motivação para a busca de atendimento psicanalítico, característica do primeiro grupo. Ao contrário do que defendem um certo senso comum sociológico-psicanalítico, ou mesmo alguns militantesgays, os indivíduos que procuram psicanálise não o fazem porque apresentam maiores conflitos com suas tendências homoeróticas. Nem sempre o nível de conflito mostrado por esses sujeitos é maior que o conflito vivido por aqueles que nunca buscaram ou buscarão atendimento psicanalítico. Acontece que o recurso à psicanálise articulase no mesmo universo de sentido que formula a "gênese psicodinâmica do homossexualismo". Isto é, porque atribuem as próprias inclinações homoeróticas a fatores como a dinâmica sexual inconsciente ou consciente dos pais, os sujeitos vêem na prática psicanalítica uma possibilidade de entender ou viver melhor com o que sentem. O conflito, por conseguinte, não é maior ou menor: é diferente! Enquanto os sujeitos menos treinados no código do intimismo sexual e amoroso têm tendência a imaginar a "homossexualidade" como um " destino instintivo" ou como um "hábito" que pode ser corrigido pela força de vontade ou pela criação de novos hábitos, os sujeitos convertidos à linguagem da intcriorização imaginam que só pelo acesso às motivações inconscientes poderão lidar melhor com o que os aflige. Essa constatação é importante, pois suas co nseqüências estendem-se além da. mera ordenação taxonômica dos "homossexuais". Sem levá-la em conta, podem-se adotar posturas preconceituosas, passando-se a estigmatizar esses indivíduos como incapazes de "assumir verdadeiramente" suas identidades homossexuais. Além do que, dcscon-


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siderando essa realidade torna-se difícil entender o modo de suas reações frente às práticas selluais de risco. No que tange ao conflito com os ideais heterossexuais, todos, sem exceção, afirmaram tê-lo vivido em uma outra época da vida. O que não significa que esse conflito sempre revertesse em culpa, vergonha ou medo, forma majoritária de sua expressão. Às vezes, ele assumia apenas a forma vaga de sentimento ou percepção do "desvio", de uma diferença contrária à norma, e que singularizava a preferência sexual do sujeito como algo não aprovado ou reprovado, na acepção dada ao termo por Boswell. N~o pretendemos mostrar com isso que o universo de experiências ou fantasias sexuais dos indivíduos fosse o mesmo. Pelo contrário, o que chamou-nos a atenção foi j ustamente o contraste entre a riqueza de

experiências e fantasias e a drástica redução dessa diversidade, primeiro, a apenas duas ordens de motivos ou "causas" e; segundo, a idênticos conflitos em relação ao ideal heterossexual. Dito de outro modo, qualquer que fosse o teor da experiência ou fantasia, as "causas" eram sempre as mesmas e os conflitos psíquicos sempre decorriam, em maior ou menor intensidade, da comparação com o ideal de realização heterossexual. Naturalmente, isso não quer dizer que todos os sujeitos, do grupo de clientes como do grupo dos entrevistados, apresentassem, na atualidade, conflitos similares com suas ''homossexualidades" ou tivessem aspirações à realização heterossexual. Alguns deles acreditavam ter superado esse tipo de dilema e desejavam apenas viver uma vida afetiva e sexual satisfatória com o parceiro do mesmo sexo. O que quero dizer é que, mesmo nesses casos, em algum momento houve conflito entre a inclinação homoerótica e o ideal de conduta heterossexual, ainda quando tal conflito tenha-se dado no passado infantil ou adolescente, sem se prolongar na idade adulta. Estes dados fazem-nos admitir que a hipotética diferença de discursos dos dois grupos, devida à diferença dos locais de sua produção, pode ser válida para outros problemas. No que diz respeito à fala sobre o "homossexualismo" , o que notamos foi uma surpreendente homogeneidade de crenças quanto à existência de uma "identidade homossexual", à gênese dessa identidáde e ao potencial conflitivo que ela carrega, no confronto com os ideais de conduta heterossexual. Também aqui, dizer que o contexto do diálogo pode infletir quadros de percepção básicos, dccodificadores do "fenômeno homossexual", é apenas apontar para uma possibilidade teoricamente plausível e não necessariamente atualizável em nossa cultura.


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Resposta à terceira objeção A terceira objeção parte igualmente de princípios que"Stivnáveis. Ela se apóia numa leitura da psicanálise fundada em dois argumentos. O primeiro, mais pontual, diz respeito à natureza da interpretação psicanalítica. Poderíamos sintetizá-lo da seguinte maneira: dado que a interpretação para ser válida necessita do assentimento do indivíduo analisado, como validála fora do diálogo que lhe é peculiar? Se, para que se possa considerar uma interpretação como correta é preciso: o u que o cliente concorde explicitamente com ela; ou que o analista constate a alteração do quadro sintomático; ou que note um remanej amento da posição subjetiva do sujeito no complexo fantasmático; ou que observe uma abertura para novas associa. ções, indfcio da circulação da cadeia inconsciente e da mobilidade do equilíbrio narc.ísico; pois bem, se essas são precondições para a validação de uma interpretação, co mo legitimar o bem-fundado de um i ntervenção psicanalítica fora do setting? Essa versão da psicanálise não é totalmente desprovida de sentido. A bem da verdade, ela é aceita por boa parte dos psicanalistas- inclusive j ustificada a partir de inúmeros escritos de Freud - e por numeroso s pensadores não psicanalistas. É, no entanto, uma versão opcional e não compulsória. Seu pressuposto básico é o de que a psicanálise é uma forma de hermenêutica, como n ota Pontalis (1968), ou uma forma de auto-reflexão, como quer Habennas (1981), ou um a modalidade de introspecção, como sugere Priest (1 991 ), ou, por fi m, uma modalidade combinada de todos esses elementos, que simplesmente atualiza a maneira como funcionam os mitos, sem desfazer os equívocos mentalistas das teorias das ling uagens privadas, como bem criticou Wittgenstein (Bouveresse, 1991 ). E ntendida nesse sentido, de fato, a psicanálise não teria só dificuldade em justificar sua pretensão de analisar discursos proferidos fora do setting; teria dificuldade igualmente em justificar sua pretensão dentro do próprio setting! Ocorre que essa concepção da psicanálise funda-se na idéia de um inconsci ente pensado sob o modo mentalista de uma "psicologia profunda", cujo substrato são redes de representações e regimes de funcionamento que são o "negativo" das representações conscientes que temos da nossa personalidade e de nossos conflitos psíquicos. Essa idéia vem sendo criticada na psicanálise, mormente depois da obra de Jacques Lacan. Com Lacan e sua teoria do imaginário e do inconsciente estruturado como uma linguagem, a psicanálise deixou de ser vista como uma p ura arte da interpretação de "conteúdos profundos" para sê-lo como análise dos


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discursos aparentes que exibem certas formas de expressão do desejo. É claro, tal teoria também está sujeita a críticas. Mas, adotando-a e justificando-a estamos livres dos compromissos teóricos imputáveis à visão tradicional da psicanálise. Nossa visão da psicanálise, por conseguinte, baseia-se no pressuposto de que, pela análise das falas ou discursos manifestos, podemos dar conta da maneira pela qual o sujeito estrutura a imagem do eu ou sua autoimagem, da maneira como sentimentos, pensamentos, emoções, aspirações etc. entram em conflito ou conciliam-se com essa imagem, da maneira como essa imagem relaciona-se com as outras imagens do sujeito, que ocupam no psiquismo o lugar e a função dos ideais e, por fim , da maneira como a teoria pode ser operacionalizada, sem apelar para esquemas metaffsicos sobre a "essência ou verdadeira natureza do desejo sexual". Este último aspecto é importante. Ele responde em parte à restrição feita por Weeks à teoria psicanalítica da sexualidade, em especial à interpretação do "homossexualismo", com base em categorias universais como o complexo de Édipo, ou em idéias datadas, como a de que a "homossexualidade" reprimida pode transformar-se em paranóia, etc. (Wccks, 1991, pp . 29-32). Weeks dá a entender, com razão, que tais concepções, além de admitirem a existência de uma "homossexualidade" ou de "um desejo homossexual" único em extensão e significação, propõem uma teoria genética do fenômeno que introduz, explícita ou subrepticiamente, uma causalidade também única e universalizável. Ora, partindo do princípio da estruturação lingüística do inconsciente, acreditamos poder contornar esse obstáculo. Desde que não confiramos à noção de linguagem o caráter fonnal de um quadro transcendente prévio às práticas lingüísticas empíricas, como no estruturalismo, e contentemo-nos em descrevê-la como o CO{\junto dos jogos da linguagem ordinária. Apoiados na crítica ao estruturalismo lingüístico feita por autores como Steuerman (1985), Habermas (1987), Frank ( 1984) etc., e retomada por n6s no campo da psicanálise (Costa, 1989c), admitimos que a linguagem do inconsciente nada mais pode ser que o conjunto de desejos expressos nos enunciados cotidianos sobre o sujeito e sobre os objetos aos quais está sexualmente ligado. Tais enunciados dizem respeito às descrições, crenças ou razões que o sujeito sustenta com relação às sensações, emoções, sentimentos, atos e condutas definidos como sexuais. Em pouca~ palavras, postular a idéia do inconsciente como um fato lingüístico é procurar descrever as diversas modalidades de enunciação dos desejos sexuais, considerando que tais enunciações só podem ser feitas a partir das cons-


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truções lingüísticas preexistentes ou de inovações lingüísticas que representem novas formas de articulação do desejo no sujeito, ou seja, nos seus laços cliscursivos com outros sujei tos. De posse desta idéia, estamos livres de qualquer filiação a teses cssencialistas, naturalistas ou transcendentalistas sobre a natureza do desejo sexual e da linguagem. Como diz Rorty, citando Davidson, a propósito da Razão, somos apenas uma "rede de crenças e desejos" (Rorty, 1988, p. 83). Partindo de tal convicção, limitamo-nos a descrever e articular o deslizamento dessas redes, ou seja, a apontar para as expressões visíveis da contingência do sujeito, do desejo e da linguagem. Na prática isso implica em explicitar quais os códigos ou regras de construção de enunciados sobre o desejo sexual e qual a dinâmica dos conflitos psíquicos ·que se refletem na economia ego-narcísica do sujeito. O que é feito não somente a partir de Freud e Lacan, como também da literatura sobre a natureza da linguagem privada, derivada de Wittgenstein (Bouveresse, 1971, 1973, 1987a, 1987b, 1991; Wittgcnstcin, 1982; Baker e Hacker, 1983, 1984; Hacker, 1986; Malcolm, 1986; McGinn, 1984; Budd, 1991) e de um de nossos trabalhos sobre a questão do imaginário (Costa, 1989). O segundo argumento da terceira objeção é mais geral e concerne ao pressuposto da especificidade do conhecimento das diferentes disciplinas. Grosso modo, o argumento poderia ser resumido como se segue: se as disciplinas do conhecimento cienúfico ou com pretensão a argumentações racionais se estabelecem através da correlação entre método e objeto do conhecimento, como a psicanálise poderia alcançar objetos fora de seu campo de artefatos metodológicos sem perder substância explicativa ou elucidativa dos fenômenos estudados? Ou, apresentando o argumento de outra maneira, psicanalisar entrevistas feitas por antropólogos não significa diluir o específico psicanalítico e reduzir indevidamente objetos e métodos da antropologia ao campo da psicanáJise? Essa questão foi, de certo modo, respondida quando discutimos . o . argumento anterior. Estudar, do ângulo da psicanálise, materiais antropológicos, não quer dizer buscar os mesmos efeitos de uma análise pessoal; quer dizer tomar os discursos dos sujeitos sobre suas sexualidades e mostrar como eles podem ser vistos pela teoria psicanalítica. Na medida em que admitimos a presença do inconsciente na fala sexual do sujeito, nada impede que se proponha uma leitura psicanalítica desses discursos. Mas a resposta apenas tangencia a questão central da objeção. Em última instância, essa objeção exprime a crença de que existem matérias


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que pertencem a certas disciplinas e outras, não. Quanto a isso, Popper dizia, já em 1952: "Na verdade não é possível distinguir disciplinas em função da matéria de que tratam; elas se distinguem umas das outras em parte por razões históricas e de conveniência administrativa (como a organização do ensino e do corpo docente), em parte porque as teorias que formulamos para solucionar nossos proble mas tl~m a tendência de se desenvolver sob a forma de sistemas unificados. Mas essa classificação e essas distinções são superficiais e têm relativamente pouca importância. Estudamos problemas, não matérias: problemas que podem ultrapassar as fronteiras de qualquer matéria ou disciplina. Estou pronto a admitir que muitos problemas 'pe.rtencem' de alguma fom1a a uma das disciplinas tradicionais, embora sua solução envolva as disciplinas mais diversas ... Mas isso não afeta meu argumento no sentido de que a classificação da<~ disciplina~ tem pouca importância; que estudamos problemas, não disciplinas." (Popper, 1972, pp. 95-96.)

Popper, é sabido, discutia problemas da área das chamadas ciências exatas ou físico-químicas. Sua observação, no entanto, parece-nos ainda mais pertinente, quando tratamos das disciplinas das ciências sociais ou humanas, como se preferir. Ne.-~se terreno, não precisamos de muito esforço para demonstrar a pouca consistência de reticências metodológicas do gênero. Sem discutirmos amplamente o problema, o que fugiria ao nosso objetivo, restringiríamos nossas observações sobre o assunto aos pontos fun damentais da argumentação de Richard Rorty (Rorty, em numerosos trabalhos, encarregou-se de criticar as ilusões do conhecimento objetivo: Rorty, 1970, 1980, 1982, 1983, 1984, 1988a, 1988b, 1989a, 1990). Com base na tradição pragmática norte-americana, esse autor criticou longamente a idéia que o conhecimento é um processo de representação . mental ou lingüística da "verdadeira" realidade objetiva Em sua tese radicalmente anti-representacionalista, ele não só põe em xeque a idéia de que podemos conhecer as coisas tais quais são, fora dos vocabulários que as definem, circunscrevem e lhes dão sentido, como vai mais adiante c, com Dewey, diz que crenças não representam realidades, mas são apenas "instrumentos para lidar com a realidade" (Rorty, 1990, p. 2). E, lidar com a realidade, quando falamos de teorias sobre o sujeito ou seu mundo, é simplesmente descrever, de um lado, como as crenças sobre os problemas

humanos surgem, firmam-se e

articulam~se

com outras crenças, c optar,

de outro lado, por um sistema de justificação de crenças baseado não no "desejo de objetividade" mas no "desejo de solidariedade" (Rorty, 1983). O "desejo de objetividade" visa conhecer a realidade humana tal qual ela


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é, independentemente do contexto histórico em que é apreendido; o "desejo de solidariedade", ao contrário, é o que aceita a contingência de sua emergência histórica c busca tão somente o maior acordo intersubjetivo possível sobre a natureza ética de certas crenças sobre os homens. Ou, corno Rorty costuma exemplificar, é o desejo \llOVido pela preocupação em identificar-se com a dor e a humilhação do outro, poupando-lhe sofrimento e estendendo tanto quanto possível "a referência do pronome nós" (Rorty, ibid. , p. 926). Em suas próprias palavras: "O modo metafísico [de alcançar a solidariedade humana] é procurar algo profundo em nosso seio que nos liga uns aos outros, mas que não nos liga meramente aos anim.Us. Algo especificamente humano, o ter sido feito à imagem de Deus, o ser racional ou algo deste gênero. O outro modo de alcançar a solidariedade humana é tomar-se consciente de que pessoas muito diferentes de nós próprios, que usam vocabulários bastante diferentes dos nossos, podem sofrer o mesmo tipo de dor que nós sofremos. Bom, tentemos desenvolver um pouco mais a diferença. A dor é algo que partilhamos com os animais. Não há nada de muito misterioso nesse fato. Não precisamos de nenhuma sofisticação intelectual ou aculturação para o perceber. Mas uma das características da sociedade é que ela nos toma cegos à dor dos que não fazem parte dela. dos que não são um de nós. Segundo a teoria que estou a apresentar - a propósito, aqui devo muito à teoria moral de Wilfred Sellars - o progresso moral, no sentido da progressiva realização da esperança liberal, consiste em al.a rgar o sentido da palavra 'nós'. de modo que 'nós' significa originalmente algo como 'nós' aqui na caverna, depois significa todas as pessoas na caverna à nossa volta, depois significa 'nós' em contraposição às pessoas do outro lado do rio, depois significa algo como ' nós' gregos em contrdposição aos bárbaros, depois algo como 'nós' europeus em contraposição a esses Untennenschen do resto do mundo. Depois significa algo como 'nós' ricos em contraposição aos pobres, às mulheres e aos negros. Neste sentido, o progresso moral é uma questão de incorporar cada vez mais tipos de pessoas num sentido de 'nós'; ' um de nós'. Assim, se pensarmos em algo como o Movimento para a Libertação da Mulher, o Movimento para os Direit:os do Homossexual, o Movimento dos Direitos Civis dos Estados Unidos, eu os interpreto como sendo instâncias de progresso moral c instâncias de um crescente sentido de sol.idariedade humana, não porque tenhamos descoberto algo profundo, como a racionalidade dos negros ou dos homossexuais ou... os seus direitos humanos, e sim, simplesmente, a sua suscetibilidade à dor. É uma questão de identificação imaginativa com sua posição, isto é, corno é ser um bárbaro, uma mulher, um escravo, um homossexual, um negro etc., ser capaz de di7.er algo como: 'Sim, poderia ter acontecido realmente·, ou 'Estou a ver qual é a sensação' , ou algo desse gênero. Esse tipo de solidariedade humana, de aumentar a gama de identificação emocional possível, parece-me ser totalmente compatível com o que designo por ironismo." (Rorty, ibid., pp. 105-106.)


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O projeto moral dessa espécie de "epistemologia da solidariedade" proposta por Rorty culmina na redcfiiüção do trabalho intelectual como exercício do ironismo. Ironismo é o esforço imaginativo que busca distanciar-se dos vocabulários finais em que tecemos nossas crenças sobre a realidade. Ou, posto de outra maneira, é a recusa em considerar nossas convicções presentes como a última e a verdadeira palavra sobre o que quer que estejamos tratando (Rorty, 1990). Porém, o que mais nos interessa ressaltar na "antimetodologia" de Rorty é seu empenho em reafirmar que não existe conhecimento sem interesse e que o interesse essencial na abordagem do fato humano é fazer progredir moralmente os homens, no sentido da tolerância e aceitação das diferenças. Situando esse objetivo como ideal, Rorty, curiosamente, retoma as categorias centrais do pensamento de Freud sobre os fundamentos da cultura c do desejo de saber. Assim como Freud via, nos ideais culturais formas derivadas de laços narcísicos historicamente contingentes, Rorty também sugere que nossas avaliações sobre as teorias que aceitamos como válida.<> ou "verdadeiras" assentam-se em critérios derivados de padrões éticos, estéticos ou lógicos, historicamente arbitrários e tornados "necessários" pela sedimentação de hábitos culturais. Essa constatação, a nosso ver, não só legitima a utilização da psicanálise na abordagem de temas como o que estudamos agora, como a torna um instrumento válido para a análise do preconceito, da discriminação e das resistências opostas à vigência de um ethos cultural mais tolerante. Sendo assim, consideramos que querelac; de métodos ou disputas por prioridades disciplinares sobre certos assuntos são questões secundárias. Na análise que propomos, impo1ta-nos sobretudo ver como a psicanálise pode ajudar a compreender em que medida a discriminação contra as . práticas homoeróticas interfere ou não na atitude dos sujeitos ditos "homossexuais" diante da AIDS ou do risco de infecção pelo vírus HIV .

Aprendendo a tornar-se ''homossexual" O primeiro aspecto a ser desenvolvido neste tópico é o da definição do sujeito "homossexual" . Interessa-nos sobretudo saber como os próprios indivíduos se rotulam e não como o observador, partindo de qualquer ponto de vista prévio, o define. Dentre as sugestões de Weeks, pensamos que existem dois enfoques interessantes do problema. O primeiro é o enfoque genético. Nele trata-se de entender como, ao longo do desenvolvimento sexual, o sujeito apropria-se da " identidade 'homossexual"' que


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lhe é oferecida pela cultura. Segundo Weeks, Plummer distingue quatro estágios no processo de aquisição desta identidade: "o da sensibilização", que equivale ao sentir-se diferente; o da "significação", quando ele ou ela atribui um sentido crescente a tais diferenças; o da "subculturalização", que é o estágio do reconhecimento de si próprio através do envolvimento com outros; o de "estabilização", que é o estágio da plena aceitação dos próprios sentimentos e modos de vida (Weeks, 1991 , pp. 79-80). Esse percurso, na verdade, é esquemático, c nem todos os sujeitos obrigatoriamente precisam chegar ao estágio da "estabilização" para adquirirem consciência da "identidade homossexual". O mais importante, entretanto, é que as etapas da sensibilização e da significação não são cronologicamente diversas, como se pode pensar. Os indivíduos, ao or. ganizarcm a percepção da diferença de gêneros, isto é, da diferença sócio-sexual entre masculino e fem inino ou entre meninos e meninas, organizam de imediato a percepção da hierarquia de valores que leva à interpretação do contato homoerótico como algo "diferente", algo da ordem da exceção. De infcio, a relação homoerótica parece apontar simplesmente para a descoberta da excitação sexual. Nessa etapa, o sentimento de que fazem algo proibido é igualmente válido para jogos sexuais com meninas. Porém, enquanto as relações heteroeróticas re<:ebem um veto parcial dos adultos, ou seja, são proibidas só nessa fase da vida, as relações homoeróticas recebem um veto total e absoluto. Logo que são descobertas pelos adultos (pais, responsáveis ou outras crianças mais velhas) são descritas como indesejáveis e desqualificantes do ponto de vista moral. Excitar-se sexualmente com uma pessoa do mesmo sexo é reprovável não só na infância, como também na idade adulta. Assim, a "sensibilização" e a "significação" das relações homoeróticas vão praticamente juntas, pois ocorrem no mesmo período da descoberta consciente da sexualidade. Elas se constroem ao mesmo tempo e são dependentes dos mesmos jogos de linguagem. Em outras palavras, aprender o que é sexo é aprender ao mesmo tempo o que é proibido e permitido em matéria de sexo. Pode-se argumentar que tal afirmação nada mais faz do que repetir a conhecida gênese da sexualidade humana proposta pela psicanálise. Não temos objeções contra esse argumento. E, se não o sublinhamos suficientemente, foi por considerá-lo irrelevante para o presente estudo. De qualquer modo, para evitar qualquer simplificação teórica, resumiremos brevemente o que entendemos como o núcleo do tema. Para a psicanálise, pelo menos em sua vertente freudo-lacaniana, o fundamento da sexualjdade encontra-se na disposição do sujeito para


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gozar eroticamente sem limites. Dito de outra forma, Freud construiu a teoria segundo a qual o desejo erótico, para existir, depende da eleição de uma parte do corpo de quem se deseja (o objeto parcial) e da pulsão parcial a ele ligada, que, na busca de gozo, pode ir da posse à destruição do objeto. Com a teoria do acesso ao desejo pelo objeto parcial e da possibilidade sadomasoquista de gozar eroticamente, ele chegou à pulsão de morte. A pulsão de morte jaz no subsolo das práticas sociais e das montagens culturais que visam estancar o fluxo do desejo em direção ao gozo absoluto, cujo término é a destruição do sujeito. Assim, as práticas lingüísticas, os hábitos culturais, os sistemas de regulação de trocas eróticas, em suma, todo o domínio do simbólico, como o denominou Lacan, seriam barreiras erguidas por Eros contra Tanatos. Sentimentos como amor, carinho, ternura, preocupação com o parceiro, em resumo, toda a economia psíquica e cultural da idealização amorosa do objeto faria parte da estratégia inconsciente contra a pulsão de morte. Do mesmo modo, toda condenação moral aos atos e desejos de fazer o outro sofrer dores físicas e morais (humilhações) seriam construções de linguagem opostas a essa mesma pulsão. Tais construções, modelando nossas subjetividades, ensinam-nos a como obter prazer sexual, sem atentar contra a integridade física e moral do objeto de nosso desejo. A essa~ diversas fonnas de interdição, permissão e prescrição de condutas e desejos, chamamos ética. São as éticas, portanto, que regem as práticas sexuais e os desejos nelas implicados. As sexualidades são, assim, a expressão de arranjos lingüísticos, de formas de vida e de luta contra Tanatos. E, por essas mesmas razões, são tantas quantas são as possibilidades lingüísticas que temos de formulá-las. Não existe, na perspectiva psicanalítica, nenhuma sexualidade humana estável, dada, natural ou . adequada a todos os sujeitos. As sexualidades são respostas da linguagem ou da cultura ao desejo de gozar sem interdições. Todas as sexualidades instituídas, com seus valores e hierarquizações, são, para Freud, igualmente ''sintomáticas", na acepção psicanalítica do termo. Isto é, são defesas organizadas contra a violência sadomasoquista e contra o gozo absoluto do objeto parcial. As éticas sexuais representam os limites que nos são oferecidos para que possamos ter prazer sexual, sem comprometer a vida do próximo e sem impedi-lo de, por seu turno, poder continuar sendo sujeito do próprio desejo, e não mero instrumento ou objeto do desejo do outro. Entretanto, não se deve entender o que foi dito como mais uma versão do naturalismo positivista que afirmava que o "homem é uma besta" ou


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um "animal essencialmente destrutivo". A psicanálise diz que a própria idéia de "homem" já é um primeiro obstáculo que a prática lingüística opõe à pulsão de morte. Quando se admite que um sujeito é um "homem", tal sujeito, por definição, já foi retirado da imediatez biológica e inscrito numa cultura que, para existir, tem que proteger-se da destruição. O importante para a psicanálise não é dizer que o homem é "por natureza" bom ou mau. O homem, disse Hannah Arendt, só existe no plural. Não existe uma " natureza humana"; existem condições humanas. No vocabulário psicanalítico, o que é central é a constatação da presença, em todas as culturas conhecidas, da possibilidade constante que tem o sujeito de gozar com o sofrimento ou a destruição, e da presença concomitante de regras culturais que protegem um ou mais sujeitos da crueldade e . do desejo de morte de outros. Assim sendo, por reconhecer a arbitrariedade dos valores morais atribuídos às práticas sexuais, a psicanálise, partilhando a tradição dos ideais morais da cultura que lhe deu origem, afirma que moralmente inaceitável é tudo aquilo que torne o sujeito objeto ou instrumento do desejo de morte do outro. Todavia, diante de nosso objetivo, interessa retomar a teoria psicanalítica da sexualidade, não em seus enunciados genéricos, mas na diversidade imaginária, tal como se apresenta, por exemplo, no caso do preconceito contra o homoerotismo masculino, que analisamos. Nesse aspecto, as sugestões de Marilena Corrêa, em seu estudo de 1991 sobre medicalização e individualização, são, a nosso ver, fundamentais. A autora, por meio da análise das falas de homens e mulheres sobre as primeiras excitações sexuais, mostra um aspecto relativamente pouco estudado da construção da linguagem do erotismo. Embora não sendo seu principal intuito, torna-se visível que o sistema de regras que orientam o critério público do reconhecimento do "que é a sexualidade" possui particularidades distintivas de outros sistemas de construção de linguagens de sensações e sentimentos privados. A "sexualidade", mostra ela, são aquelas que, dentre as excitações corpóreas da infância e puberdade ou não são denominadas pelos adultos, ou são denominadas, mas sem o acréscimo de sua carga afetiva ou de prazer (como no caso das descrições médico-fisiológicas da sexualidade ou das analogias feitas entre os atos reprodutivos de plantas e animais com o coito humano), ou, por fim, não são descritas como possuindo nenhuma atribuição específica, exceto a de serem "atos proibidos••. A esta característica, juntam-se duas outras que consideramos ainda mais relevantes. Em primeiro lugar, a construção da linguagem do erotismo torna-se, por essa peculiaridade, um dos poucos


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jogos de linguagem que dizem respeito à interiorização dos critérios de reconhecimento da "sensação de prazer", que, na infância, não passam pela aprovação dos adultos. O vocabulário sexual, conforme mostram os depoimentos dos entrevistados pela autora, é estabilizado em suas regras de uso pela caução de outras criança'>. Essa característica é do maior interesse, se levarmos em conta o peso afetivo que a criança investe na palavra do adulto, sobretudo na dos pais. Em segundo lugar, os termos da linguagem do erotismo, ao contrário dos demais termos do vocabulário das "sensações privadas", não são, pelos motivos alegados, semanticamente fixados por meio de exemplos de condutas públicas repetíveis e reconhecíveis em s ua identidade de significado. Os adultos, em nossa cultura, por força do sistema de interdições que lhe é própria, não mostram jamais atos como a masturbação, o coito ou quaisquer outras práticas sexuais, como exemplos do uso correto das expressões "sensação sexual", "prazer sexual", "orgasmo sexual", "afeto sexual" etc. Todos esses atos ou comportamentos, que mostrariam "o que é a sensação sexual", além de suas descrições conceituais, estão ausentes de nosso vocabulário da sexualidade. Por isso, e não necessariamente porque a criança "é incapaz de dar sentido à sexualidade do adulto", as emoções ligadas ao sexo permanecem vagas e indeterminadas, até que, na puberdade e na idade adulta, novas regras de uso, agora apoiadas em exemplos de conduta, venham esclarecer sua significação. A criança, por exemplo, não necessita ter sofrido "dor de dentes" ou ter sentido "a felicidade de um encontro romântico" para aprender, antes mesmo da experiência, "o que é uma dor de dentes", ou "o que é a felicidade romântica". Porque foram capazes de interiorizar corretamente o uso dessas expressões, com o auxílio de exemplos públicos ilustrativos de seus respectivos sentidos, ao se exporem à experiência, sabem dizer exatamente o que sentem ou sofrem . A idéia de que a "experiência sexual" é, pela própria natureza, imprecisa e indizível, já faz parte da definição que damos, em nossos hábitos lingüísticos, do que são os sentimentos e sensações sexuais. Sempre que falamos em sexo, falamo s do interior dessa prática cultural. E, nela, admite-se previamente, como disse Mead, que "uma das características do comportamento sexual humano é a insistência na privacidade" (Ver Herdt e Stoller, 1990). Porém, como mostraram Herdt e Stoller, entre os Sambia, aquilo que identificaríamos como "sexualidade" é aprendido e transmitido culturalmente, sem as mesmas exigências de "privacidade", "intimidade" ou "imprecisão" típicas de nossos costumes. Do mesmo modo, quando pensamos no exemplo dos Akaramas, descrito por Tobias Schneebaum, é difícil imaginar que


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as manifestações públicas de masturbação dos adultos homens, bem como as de relações bom o e heteroeróticas, coletivamente partilhadas, pudessem transmitir às crianças a idéia de que a sensação erótica é "algo, por natureza, íntimo, indizível e intransmissível em sua intensidade e qualidade" (Schncebaum, 1971). Vista desse ângulo, a linguagem da sexualidade não é nem mais nem menos precisa ou capaz de ser aprendida do que qualquer outra linguagem que nos ensine a reconhecer quando e como sentimos esta ou aquela "sensação privada". Retomando Wittgenstein, diríamos que vago é todo uso da linguagem, coisa com a qual a maioria dos psicanalistas concordaria, mormente após a revolução da teoria freu diana, feita por Lacan. No entanto, dizer que a linguagem é vaga não é o mesmo que dizer que ela é "indeterminada". A ''indeterminação" de um Jermo só é percebida como " indeterminação", no momento em que ele passa a ser utilizado em outro jogo de linguagem que não o de origem, onde tinha seu sentido perfeitamente determinado, pelos critérios públicos de reconhecimento de seu uso correto. Ora, ao lado das características apontadas, a linguagem do erotismo, em nossa sociedade, possui uma outra tipicidade, em parte responsável pela valoração moral dada ao homoerotismo. Entre nós, as regras de construção da sexualidade coincidem em grande medida com as regras de construção do "núcleo imaginário da identidade do sujeito" . A divisão do espaço social entre o público e o privado, promovida pela revolução burguesa, leva-nos a identificar a vida afetivo-sexual como sinônimo da "verdadeira essência do indivíduo". Essa crença tornou-se "intuitiva" e, por conseguinte, quase inamovível em sua verossimilitude, pois oferece o suporte narcísico indispensável ao nosso reconhecimento pelos outros como seres humanos integrais. A intuição aprendida de que a realização de nosso potencial sexual genital corresponde ao desenvolvimento do que o humano tem de mais humano converteu-se em algo que consideramos um "dado imediato da consciência". A idéia de que sem plena satisfação da sexualidade genital estamos privados da mola mestra da "realização" individual integra nosso credo moral básico, a título de premissa fora de discussão. Hoje somos '"constrangidos" a ser "sexualmente felizes" como em outras épocas muitos foram a coagidos a renunciar e a negar-o prazer que a sexualidade pode dar. No entanto, o culto moderno à sexualidade genital como fonte de " realização da felicidade pessoal" também nasceu inter urinas et faeces, como costumava dizer Freud. Em suas " baixas origens" ele esteve ligado ao enorme esforço ideológico operado no século XIX para desqualificar


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as sexualidades marginais, em prol da sexualidade reprodutiva. O atual monopólio imaginário da genitalidade na produção e normatização de "sexualidades c felicidades" é um filho emancipado do feti che teórico da "lei instintiva e natural da reprodução", criado pela burguesia oitocentista da Europa. Desse berço na<;ceu o "sexo rei", para tomar a expressão de Foucault, que, desde então, vem se tornando cada vez mais "absoluto" em seu reinado. Por essa razão, o controle e a regulação da sexualidade genital pa<;saram a ter a enorme importância que têm na vida de cada um de nós. A sexualidade genital tornou-se sinônimo de nossa autêntica e profunda identidade ou do núcleo de nosso eu. As preferências, permissões ou proibições que gravitam em torno dela transformaram-se em indicadores das diversas maneiras que têm os indivíduos de reconhecer o "quê" e "quem são eles". Os que cumprem suas normas ideais realizam a "essência humana"; os que se desviam do bom caminho traem, por incompetência, invalidez ou perversidade, as ..leis" da natureza, da cultura, da linguagem, do parentesco, da decência, da moralidade ou qualquer outra "lei", inventada conforme a ideologia do momento. Em síntese, as regras identificatórias para a construção das sexualidades humanas confundem-se, em nosso hábito cultural, com as regras de construção da "identidade humana". Por isso, resumindo de forma brusca mas não falsa, ao aprendermos a usar apropriadamente a palavra "homem" ou "humano", quando se trata de moral sexual, aprendemos a distinguir entre os que são moralmente diferentes mas iguais- os homens e as mulheres - e os que são moralmente diferentes e desiguais: os "heterossexuais" são superiores c os "homossexuais", inferiores. Assim, as regras identificatórias das distinções sócio-sexuais reproduzem permanentemente as diferenças e a hierarquia dominantes e são transmitidas de modo a parecerem estáveis, naturais c universalmente válidas para todos os sujeitos. Essa crença descarta qualquer outra alternativa de descrição da sexualidade humana como "contra-intuitiva", e só pode ser criticada em sua norma moral ao preço de um grande esforço intelectual e psicossocial dos sujeitos. Para que o indivíduo homoeroticamentc inclinado possa, em nossa cultura, ressignificar o valor de ·sua preferência sexual será preciso, como veremos, todo o aparato de uma subcultura organizada para tais fins. Alguns exemplos corroboram o que acabamos de afirmar, a propósito da construção da linguagem sexual homoerótica.


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• F., 1B anos, narra suas primeiras experiências homoeróticas aos 7 anos: "A primeira vezforam dois garotos bem mais velhos (9 e 10 anos). Eles me comeram". O entrevistador então pergunta qual foi sua reação. Resposta: " Uma certa estranheza por ser o primeiro contato e também um certo cuidado para niio se tornar conhecido, um certo receio". O contato sexual logo foi descoberto pelo pai e o entrevistado diz que o que mais lhe impressionou foram as palavras dele: "Você quer ser ml4lher de fulano, quer ser mulherzinha de fulano ?" E, sobre o sentimento por ele experimentado, diante da reação do pai: "Vergonha, basicamente, vergonha".

• T., 30 anos, primeira relação aos 7 anos com outro garoto da mesma idade. Neste caso, a experiência de estranheza não teve o sentido de "ocultação". T. contou à mãe o que havia feito; seu pai era morto. A mãe quando soube, ''ficou · assustada e tentou então tirar essa idéia da minha cabeça". •

R., 22 anos. Primeira experiência aos 11 anos, que é narrada assim: R: Homens. Eles me levuram para o mau caminho. E: O que você chama de mau caminho? R: Mau caminho assim, que chegou perto ck mim e mandava fazer umas coisas que eu não queria fazer. 'five medo, sim, eu tinha medo porque pensei que o cara ia me agarrar àforfu, nre enfiar com todafon;:a. E: Enfiar. Você teve penetração? Ele te enfiou? R: Só que ele não conseguiu. Ente11de? Machucou e não conseguiu.

Entre os 12 e 15 anos voltou a ter várias relações homoeróticas com colegas de surfe, e as descreve da seguinte forma: R: A h! eu, a rapa<.iada começou a me levar para um bom caminhe e o utro para o mau caminho. Porque tinha amigo meu que go.vtava de transar com homem, entendeu, e tinha uns que gostavam de mulher, a( eu fiquei dividido entre os dois... Na hora que a gente transava era uma de/leia, era uma boa, depois quando acabava, aí eu me sentia mal, me arrependia de ter feito isso.

• G ., 19 anos. Entre 7 e 12 anos teve relações homoeróticas às escondidas, com m eninos da mesma faixa etária. Quando os pais descobriram, mostraram-se liberais. G: Porque segundo meu pai aconteceu com ele também, entendeu. Eu nunca sofri, dentro de casa, ~epressão por causa de nenhuma prática sexual. ·

A mãe reagiu da seguinte maneira a seu pedido de explicações sobre a sexualidade e o gozo:

C: Olha, uma frase exatamente eu não lembro. Foi mais ou me11os aquela história assim, "o homem é diferente da mulher porque o homem tem peru e a


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mulhertem UI1Ul perereca, então o homem se sente atraído pela mulher, amulMr se sente atraída pew homem. Então o peru do homem fica duro e cre.~ce e eles fazem amor. Quando eles fazem amor o homem pega e enfia o peru na perereca da mulher, e eles ficam, e ele vai gozar, e af... " E eu pensei: "Bom, isso tudo que minha mãe lá falando, tá acontecendo comigo de uma forma tliferente. Isso fez com que eu ficasse pensando mil e uma coisas ... Os problemas começaram a surgir mais tarde quando comecei a ter uma noção distorcido, né, o que que é ser bicha, o que é o vü:ldo ".

• H., 31 anos. Primeiras experiências entre 6 e 7 anos, com garotos da mesma idade: "Criança, fazia escondido porque o pai e a mãe não podiam ver ". Depois, diz: "Quando eu passei para o ginásio meu paifez uma reunião comigo e meu irmão e falou e contou uma porção de coisas... A preocupação dele era quem é homem é homem, quem é mulher é mulher, pra homem não virar viado essas coisas... a preocupação básica era essa... " • R., 21 anos. Primeiras experiências entre 7 c 8 anos. Deram-se com um garoto mais velho de 12 anos e com o porteiro de seu edifício: escondido na escola. com o garoto, e na garagem do prédio com o porteiro. O porteiro obrigou-o a chupá-lo. Teve sensação de nojo, e ânsia de vômito. Foi exposto a penetração-superficial, mas a "dor era horrível" e não suportou. Ia sempre aoencontrodoporteiroquandoesteochamava, mas nãosoubedizersesentia ou não prd.Zer. Sobre o sentimento e a avaliação das relações diz: "D esde pequeno a gente começa a descobrir que o certo é homem e mulher, né, o certo entre aspas". • J., 25 anos. Primeiras experiêndas homoerótícas entre 8 e 9 anos. Dizia que nessa época tinha consciência da interdição dos atos sexuais: "aquelas coisas de criança né, mas ali a gente tava vendo uma coisa que os pais diziam 'ah isso aínão pode ser mostrado, tá errado'". Aos 15 anos teve uma relação completa com um rapaz de 17 anos de quem gostou.

J: ... eu gostei muito cksse cara,

e ele não ... hoje em dia eu nem sei, mas eu gostei muito dele e na minha cabeça entrou uma paranóia, entendeu, será que tava acontecendo uma coi.sa que tava certa, ou será que tava sendo errado, acho que a critica das pessoas, o que as pessoas irÚJm pensar, ou eu ac/ulva que era diferente dos outros!

E: Você nessa época... foi ativo ou passivo?

J: ... fui passivo. E: ... E será que foi isso que gerou mais confusão dentro de você, por ter sido passivo, ter sido denominado como mulher?

J: Pode ter sido, mas foi mais por ele ter sido um homem, que eu lenha transado com um homem.


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• M., 67 anos. Primeiras experiências aos 12 anos; quando foi beijado por um rapaz de 17 anos, pensou: "Será que ele tá me fazendo de viado?" • L., 32 anos. Primeiras experiências na escola e com primos. Tinha consciência de que fazia algo errado. Sempre "fazia escondido". Na adolescência sempre teve paixões por amigos, mas nunca teve contatos físicos, e sempre com o sentimento agudo de vergonha por se saber diferente ou desviante. A partir desses casos, é possível extrair algumas conseqüências do enfoque genético da "homossexualldade". Em primeiro lugar, notamos que, independente de terem tido uma educação mais ou menos liberal ou mais ou menos conservadora, os sujeitos são sempre confrontados com a desapro. vação do homoerotismo. No caso da educação liberal, como no exemplo de G., a reprovação da conduta indesejada é feita em nome da "ordem natural" da sexualidade biológica. Deriva-se da diferença biológica dos .sexos a naturalidade ou a obrigatoriedade da "atração erótica pelo sexo oposto. Não é necessário, neste exemplo, que a desaprovação se faça sob ameaças físicas ou morais; basta recorrer à "natureza" para inculcar na criança a idéia do desvio que o homoerotismo representa. No caso da educação conservadora, o "argLtmento natural" não é explicitamente evocado e, se existe, aparece de pronto sob a forma da desqualificação moral do homoerotismo como algo vergonhoso ou infamante. Em segundo lugar, notamos que o menino, ao manter relações homoeróticas é identificado ou à "mulherzinha" ou ao ''viado''. Não existe a alternativa de permanecer "homem atraído por homens". Essa regra identificatória parece mesmo sobrepor-se à própria distinção entre passivo c ativo, como ficou c1aro no exemplo de J. O que aparece sobremaneira estranho ao sujeito não é a posição assumida na parceria, nem a satisfação obtida com tal ou qual tipo de prática sexual, mas o fato da relação ocorrer entre homens. Esse dado é significativo pois, embora aparentemente banal, traz à tona todo o processo de fundo, responsável pelo surgimento histórico da "homossexualidade". Embora não explicitado, pensamos que a interdição do parceiro do mesmo sexo está diretamente relacionada com a definição do ideal sexual conjugal como o único adaptado à finalidade sócio-cultural da "reprodução biológica" e da estabilização da famí1ia nuclear. O parceiro homem, por princípio, é incapaz de reproduzir e, como conseqüência, está inapto para constituir o casal conjugal, requerido pela famíl ia nuclear. Diante


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desse ideal nonnativo, obviamente qualquer tipo de relação homoerótica está automaticamente desvalorizado. O segundo enfoque concerne à distinção dos atributos necessários e/ou suficientes para a aquisição e manutenção dessa identidade. Ainda conforme Weeks, depois de Kinsey ficou razoavelmente demonstrado que não existe vínculo necessário entre comportamento sexual e identidade sexual. De acordo com a~ estatísticas de Kinsey, "37% dos homens entrevistados tinham tido experiências homossexuais, mas menos de 4% eram exclusivamente homossexuais e mesmo estes não exprimiam necessariamente uma identidade 'homossexual"' (Weeks, op. cit., p. 79). Na descrição do modo de aquisição da identidade "homossexual", o mais importante é notar que, se a categorização proposta por Plummer pareceu-nos bastante adequada ao modo como os sujeitos descreviam a aquisição progressiva de suas identidades "homossexuais", o mesmo não ocorre com a questão dos atributos. A simples distinção entre comportamento e identidade, embora interessante, opõe termos que pertencem a classes lógicas diversas. O comportamento pode fazer parte da identidade, rnas a identidade não pode ser contida no comportamento. Identidade é um lenno genérico que designa tudo aquilo que o sujeito experimenta e descreve como sendo ou fazendo parte do eu. Portanto, o comportamento é parte do eu mas o eu é mais que o comportamento. No caso da identidade "homossexual", além do comportamento, entendido ou não como conduta intencional voltada para objetivos, existe um outro elemento, o desejo ou atração homoeróticos. Assim, apoiados nas histórias de vida dos sujeitos estudados, propomos definir o sistema identitário da "homossexualidade" como constituído pela série de imagens e descrições que o sujeito tem dos atributos do comportamento e dos atributos do desejo ou atração erâtica. Os atributos comportamentais mais freqüentemente associados ao "homossexualismo" foram: • • • • •

continuidade e constância de relações homoeróticas; passividade no coito; passividade de atitudes e ausência de agressividade; efcminamento de maneiras e modos de falar; gosto por atividades lúdicas c profissionais tidas como femininas.

Os atributos da atração ou desejo eróticos foram: • maior atração física ou sensual por homens do que por muU1eres; • maior attação tema por homens do que por mulheres;


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• maior atração estética por homens do que por mulheres; • maior excitação sexual com fantasias homoeróticas do que com fantasias hetero eróticas; • igual atração erótica por homens e por mulheres; • mesmo grau de excitação com fantasias homoeróticas e heteroeróticas.

Esses predicados eram combinados das maneiras as mais diversas, e conforme o sistema de justificativas de cada um, a ênfase era posta em um outro elemento. Em geral, os atributos que mais pesavam na auto-rotulação eram os da ordem do desejo e não do comportamento. Muitos sujeitos que não apresentavam quaisquer sinais dos atributos comportarnentais referidos ao "homossexualismo" diziam-se "homossexuais" por sentirem uma atração erótica por homens maior ou igual à que sentiam por · mulheres. Quanto às relações homoeróticas propriamente ditas, isto é, os contatos físicos, só eram valorizados como sinais de "homossexualidade" quando se tornavam exclusivos, predominantes, ou se faziam acompanhar por qualquer um dos tipos de atração erótica: sensual, estética ou terna, em especial os dois últimos. Em alguns casos, como o da prostituição masculina. por exemplo, a posição ativa no coito, a existência de atração por mulheres, a ausência de atração terna ou estética pelos parceiros e a justificativa do profissionalismo da atividade faziam com que o prostituto não se identificasse como "homossexual", mesmo quando confessava sentir-se sensualmente atraído pelos homens com quem mantinha relações. No pólo oposto, homens casados, que só haviam mantido relações sexuais com mulheres e não apresentavam nenhuma das características comportarncntais atribuídas aos "homossexuais", ainda assim definiam-se como "homossexuais", pelo fato de sentirem atração terna, sensual ou estética por homens. Quanto aos homens, constantemente referidos pelos sujeitos como parceiros esporádicos de "relações homossexuais" (policiais, guardas de segurança, vigias, porteiros, pintores de parede etc... ), não faz.iam parte de nenhum dos grupos c, conseqüentemente, não puderam ser analisados quanto às interpretações que davam de suas próprias sexualidades. Finalmente, no que diz respeito aos chamados bi.~·sexuais, a caracterização é ainda mais imprecisa e oscilante. No grupo das entrevistas antropológicas, essa classificação foi muito mais usada do que no grupo de clientes de psicanálise. Percebemos, no entanto, que ela era freqüentemente empregada após ter sido sugerida pelo entrevistador e quase nunca por iniciativa dos próprios entrevistados, o que não ocorria com o termo "homossexual". Evidentemente, isso pode significar que ela foi induzida,


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mas também pode significar uma maior disposição psíquica e cultural dos indivíduos para assumirem essa identidade, quando lhes foi proposta. No grupo de clientes, quando a prática das relações homoeróticas e a presença do desejo homoerótico não eram exclusivas, as categorias mais empregadas para descrever fatos semelhantes eram "meu problema homossexual", "meu lado homossexual" ou "minha homossexualidade" etc ... revelando a idéia de um pretenso "núcleo homossexual" presente na heterossexualidade idealmente desejada ou realmente exercida. Essas observações preliminares permitem-nos postular as seguintes generalizações: • A diversidade das práticas, condutas e desejos homoeróticos é enorme e extremamente difícil de ser tipificada, seja pelo observador, seja pelo sujeito. • O elemento central na definição da identidade "homossexual" é a presença do desejo homoerótico. Mesmo assim, a simples admissão da atração sensual por homens, que é uma modalidade do desejo homoerótico, não é suficiente para caracterizar a "homossexualidade" daqueles que a experimentam. Mais decisiva é a presença da atração terna, ou seja, do apaixonamento, que significa algo além do puro "tesão". Do mesmo modo, a atração estética só define a presença da "homossexualidade" se vier associada a um dos dois itens anteriores. • A "identidade homossexual" é predominantemente estabelecida a partir do sentimento vago e difuso de desvio ou diferença em relação ao que se julga ser a "identidade heterossexual", identidade esta igualmente difícil de ser descrita positivamente em seus atributos. • A "identidade homossexual" é, de modo geral, sentida como um problema e percebida pela maior parte dos sujeitos como uma qualidade da personalidade bierarquicamente'inferior, no quadro das distinções sociais. • Finalmente, a "identidade homossexual" depende, para sua estabilização, de fatores quase impossíveis de serem generalizados. De um lado, a estabilização depende da históriapsicossocial de cada um; de outro, do sistema de justificativas que tornam a prática homoerótica mais ou menos aceitável ou mais ou menos reprovável. Assim, vemos sujeitos com histórias de vida diferentes elegerem diferentes atributos do comportamento ou do desejo como os principais indícios de suas "homossexualidades". Da mesma maneira, dependendo do sistema de justificativas, vemos que práticas semelhantes são avaliadas de formas diversas. Há indivíduos que, convertidos ao


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vocabulário da emancipação sexual e da liberalização de costumes, insistem em recusar a etiqueta de "homosscx.ual", alegando que não lhes interessa catalogar o que sentem, e o que importa é a satisfação sexual e afetiva obtida na relação com o parceiro. Outros insistem em dizer que, desde que haja atração erótica por homens, existe "homossexualismo", e os que negam esta "evidência" o fazem com receio de assumir a própria "homossexualidade". Outros, enfim, como o caso dos prostitutos, mesmo mantendo relações homoeróticas freqüentes, e admitindo sentirem atração sensual pelos parceiros, não se identificam como "homossexuais", a pretexto de exercerem a profissão por dinheiro, de serem ativos no coito, de preferirem relações com mulheres etc ... , como já pudemos notar. Diante dessas observações, discutir quais as reações dos "homossexuais" frente à AIDS é uma questão parcialmente despida de sentido. Se é verdade que certos grupos de sujeitos que se identificam como "homossexuais" apresentam respostas mais ou menos padronizadas diante da ameaça da AIDS, essas respostas, em absoluto, são comuns à maioria dos sujeitos homoeroticamente inclinados. Acontece que "os homossexuais" não são um grupo homogêneo com as mesmas características psíquicas, sexuais ou sociais. A homogeneidade supostamente atribuída ao "homossexualismo" só existe quando lidamos com afigura ima~:inária da identidade ~' homossexual", tal como existe na abstração criada pelo preconceito. No entanto, entre a abstração e as experiências homoeróticas singulares existe um fosso afetivo e cognitivo que pode ser irrelevante para a hierarquia sexual dominante, mas que é extremamente importante para os indivíduos em particular. Explicando melhor, tanto os homossexuais quan~ to os heterossexuais sabem usar corretamente expressões como "ser homossexual", "tornar-se homossexual", "sentir-se homossexual" etc. Faz parte da aquisição da identidade sexual, em nossa cultura, "intuir ", por meio de relações de semelhança aprendidas, que os homens dividemse sexualmente desta maneira. Porém esse aprendizado organiza-se com base em categorias perceptuais inventadas e estabelecidas no século XIX. Tais categorias, como viemos insistindo, foram criadas sobretudo com o objetivo de descrever, por contraste, o que devia ser um homem heter.ossexual. Ou, dito de outra maneira, como ele não deveria nem poderia ser. O "homossexual", por conseguinte, era o homem que não podia ser pai; não podia ser marido; não podia ser o bom cidadão e não poderia representar adequadamente a norma moral de conduta do burguês civili1.ado, metropolitano, e racialmente superior aos povos inferiores ou às classes subal-


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ternas. O "homossexual" era apenas uma figura de exclusão. Era aquele que não tinha; não podia; não queria; não sabia etc. Em suma, era tudo aquilo que "um homem" não era. Naturalmente, conforme o vocabulário de Wittgenstein, a vaguidade do termo "homossexual", nesse contexto, era indeterminada quando se tratava de caracterizar psicologicamente cada indivfduo e precisa, quando se tratava de estigmatizar condutas e desejos que se afastavam do código moral dominante. Como resultado, tanto os "homossexuais" quanto os "heterossexuais" tornaram -se capazes de seguir regras para empregar corretamente palavras como "homossexualismo", "homossexualidade" ou "homossexual", mas não podem fazer a rotulação coincidir ponto por ponto com a diversidade das realidades afetivas e sexuais de cada um. Donde o aparente paradoxo: embora habilitados para acreditar que existe uma "identidade homossexual" e para se auto-etiquetar de "homossexuais", os indivíduos, quando solicitados a reagir diante de estímulos dirigidos às suas "homossexualidades", mostram toda a polimorfia de condutas e desejos, incluída na generalidade da rubrica. Só aqueles aptos a desenvolver a consciência de pertencer a um grupo humano com características psicossociais estáveis podem dar respostas mais ou menos padronizadas a estímulos idênticos, como os riscos da AIDS. Estes últimos mostram tal competência justamente porque foram convertidos à crença comum de que as experiências homoeróticas têm um conteúdo positivo próprio e não são apenas a fronteira psicológica da "normalidade" sexual. Essas novas regras descritivas e prescritivas da "identidade homossexual" promovem uma inclusão dos sujeitos em novos conjuntos discretos e segundo novas categorias perceptuais. Os novos "homossexuais", isto é, aqueles habilitados para se rotularem de forma positiva, deixaram de ser apenas a face negativa da hetcrossexualidade. Quando analisarmos a figura sócio-sexual da ..identidade gay" veremos que, nela, o homoerotismo será portador de predicados que o distinguem tanto da figura do heterossexual quanto da figura do antigo "homossexual". No momento, contudo, o que importa observar é que essa progressiva redefinição do homoerotismo, produzida pela mudança na moderna mentalidade sexual, foi acelerada pelos movimentos da contracultura americana dos anos 60-70 e sofreu um enorme impulso pelo impacto da AIDS. A AIDS realçou definitivamente o arcaísmo cultural da noção de "homossexualidade". Na cultura atual, a sexualidade em geral é vista como mais um item na pauta de compromissos do indivíduo consigo próprio e com seu prazer. Em lugar do dever para com a família e a procriação, a moral sexual moderna é rebatida sobre a auto-satisfação. Conseqüen-


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temente, o vocabulário oitocenústa da distinção entre "homossexuais" e "heterossexuais" tornou-se uma camisa-de-força e um fator de desorientação sócio-sexual. O relevo dado ao desejo erótico em vez de ao comportamento erótico mostra a individualização e interiorização das regras de construção da identidade sexual. Enquanto os comportamentos apontam para a vertente pública e visível da orientação social da sexualidade, o desejo volta-se para a privatização da realização ou frustração sexuais. O "homossexual moderno" converteu-se, assim, em um indivíduo preso a um duplo sistema de referências, para a elaboração de sua subjetividade. De um lado, acha-se às voltas com as regras da satisfação do desejo que o orientam no sentido de buscar formas singularizadas de realização sexual; de outro, encontra-se atrelado ao velho sistema de crenças que estigmatiza o homoerotismo como uma preferência sexual doente, imoral, deficiente ou desviante em relação à verdadeira finalidade do "instinto". Essa duplicidade de injunções é responsável pela desorientação sexual de muitos indivíduos, e traduz-se nas contradições lingüísticas com que descrevem e avaliam suas experiências sexuais. Não por acaso, as únicas identidades homoeróticas que tentaram afirmar-se contra o preconceito como, por exemplo, a identidade gay ou outras que dela se apro.ximam, obtiveram tal afirmação por meio de regras de conduta públicas ou, no mínimo, partilháveis, que liberam os sujeitos da tarefa de decidir se são ou não "homossexuais", exclusivamente a partir do esquadrinhamento do próprio desejo. Portanto, a possibilidade de estipular tipos ideais de respostas dos "homossexuais" diante da AIDS ou do risco de infecção é mínima. E, como seria previsível, as chances de encontrar séries de respostas recorrentes aumentam na proporção em que os indivíduos se identificam com modelos claros de construção de identidade. Partindo dessa asserção, proporemos uma classificação das reações dos sujeitos same-sex oriented face ao risco da AIDS, que não pretende ser exaustiva, pois baseia-se apenas na amostra pesquisada. Com toda certeza, existem outras formas de estabilização da identidade homoerótica que ultrapassam os limites do universo que pesquisamos. Pensamos, especialmente, no caso de .indivíduos pertencentes às elites sócio-intelectuais urbanas que, ao mesmo tempo em que são capazes de distanciar-se criticamente do preconceito, não adotam o estilo de vida gay, e buscam outras regras de afirmação da identidade sexual onde a sexualidade não emerja como a matriz de interpretações e enunciados sobre a autorealização individual e a posição do sujeito face ao mundo. É bastante provável que esses indivíduos, mesmo sem constituírem um conjunto


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sócio-sexual com características comuns, pela própria postura crítica e criativa assumida, consigam responder ao desafio da AIDS com a mesma eficiência mostrada por grupos com identidades homoeróticas fundadas em regras públicas e coletivas de orientação de condutas e sentimentos. E, assim como eles, podemos supor que outros modos de estruturação da identidade homoerótica existam, sem que tivéssemos tomado consciência de suas existências. Portanto, insistimos na repetição, a classificação sugerida só é representativa do universo estudado. Não duvidamos de que outros estilos de vida homoerótica possam existir, nem que as respectivas identidades deles derivadas produzam respostas à AIDS, desconhecidas por nós. Feita a ressalva, passemos ao fundamental.

A proteção pelo preconceito Este era o caso dos indivíduos majoritariamente identificados com as regras da moral sexual oitocentista. No quadro da pesquisa, pertenciam todos ao grupo de clientes e formavam uma minada, nesse mesmo grupo. A maior parte deles mantinha relações heterocróticas regulares; era ou fora casada; nunca havia mantido relações homoeróticas ou, quando mantivera, vivera a experiência de "transgressão", mais com culpa do que com prazer. Utilizavam indiscriminadamente critérios da ordem do comportamento e da atração homoerótica para identificar a existência do "homossexualismo". Nonnalmente, aplicavam aos outros critérios combinados de conduta e atração para identificar a "homossexualidade" e, a si mesmos, costumavam aplicar preferencialmente os critérios da atração erótica, fosse ela terna, sensual ou estética. Esses sujeitos procuraram psicanálise na expectativa de se "verem livres" do desejo homoerótico ou do "problema homossexual". Independente da diferença de histórias pessoais, apresentavam um certo número de traços comuns, na avaliação das práticas sexuais, que praticamente os imunizava contra os riscos de contágio. Esses traços eram os seguintes: • autodefiniam-se como "homossexuais" ou tendo um "problema homossexual", e não como bissexuais; • mostravam um conflito intenso com o desejo homoerótico; • apresentavam uma identjficação absoluta com o padrão de condutas hete-

rossexuais e com os ideais da ética familiar e conjugal; • manifestavam repulsa pelos comportamentos tidos como "homossexuais", com exceção de contatos físicos com parceiros viris, e, de preferência, autodefinidos como heterossexuais;


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Para esses indivíduos o risco de contração da AIDS representava a "revelação de uma identidade homossexual" que durante toda vida tentaram ocultar dos outros. Muitos afirmavam que prefeririam suicidar-se caso tivessem que enfrentar a vergonha de terem contraído o vírus do HIV por meio de relações homoeróticas. Não suportavam imaginar que os filhos, amigos, parentes ou esposas pudessem vir a sofrer as conseqüências da desaprovação social de seus atos ou desejos "homossexuais". Por isso, . desde o surgimento público da AIDS, ou cessaram completamente as atividades homossexuais ou, no caso dos que nunca tiveram esse tipo de relação, deixaram de lado qualquer veleidade de satisfação sexual daquela espécie. Todos tinham uma vida homoerótica restrita a fantasias hemoeróticas que se resolviam por meio da masturbação solitária ou pela pura e simples tentativa de supressão do desejo, através de atividades derivativas: trabalho, lazer, esporte etc. O homoerotismo, nesses sujeitos, era articulado numa economia psíquica, por assim dizer, other-directed. Havia neles uma identificação maciça com os ideais dominantes. O próprio fato de não se etiquetarem de "bissexuais", o que poderia representar uma atenuação do preconceito com que se julgavam, mostra o quanto aderiam ao ideal sexualmente majoritário. A introjeção do preconceito, além disso, levava-os por vezes, em certos períodos da vida, a uma verdadeira formação reativa contra o desejo homoerótíco, que terminava por estender-se a toda sexualidade, fazendoos parecer pessoas sexualmente frias ou extremamente inibida<;. Num certo sentido, esses indivíduos comportavam-se de acordo com um ideal sexual, onde os valores de contenção, constância e equilíbrio do prazer predominavam, à semelhança do tipo ideal puritano, conforme a interpretação de Leites (1987). Os modernos ideais de liberação sexual, baseados na aquiescência aos desejos individuais, não eram capazes de fornecer-lhes modelos satisfatórios de realização sexual. Em suma, eram sujeitos que, no vocabulário do preconceito, identificavam-se no pólo da culpabilidade. Sentiam-se culpados por experimentarem desejos "homossexuais", e o tempo inteiro, eram consumidos psiquicamente por esse problema. Portanto, mostravam-se competentes para adquirir uma "identidade estável", responsável por condutas mais ou menos idênticas diante do risco da


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AIDS. Mesmo sem poderem dar conteúdo positivo ao homoerotismo, pois dependiam da linguagem sexual o itocentista para se descrever, podiam reagir em uníssono ao estímulo do risco da infecção, PQrque se avaliavam com o olhar do "outro heterossexual". Valendo-se desse recurso, dispensavam a custosa operação psíquica exigida dos indivíduos modernos, que é a de reinventar permanentemente modos singularizados de satisfação sexual, exclusivamente baseados nos desejos pessoais, como notou Sennett (I 981). Essa faceta conflitiva de suas vidas não quer dizer, entretanto, que eles não tivessem a habilidade de manter uma vida heteroerótica satisfatória. Não se tratava de homens que usassem meramente as parceiras como defesa contra os desejos "homossexuais''. O que os caracterizava era, sobretudo, a verdadeira fobia que tinham aos indícios do desejo homocrótico, quando este surgia. O que eles não podiam suportar é que, sendo homens, pudessem sentir atração sexual pelo mesmo sexo, pois o modelo de subjetividade que lhes foi possível assumir excluía moralmente a possibil idade de expressão do erotismo. Mostravam uma economia do desejo que, por sua singularidade, não encontra habitualmente tradução nas ideologias correntes sobre "o que deve ser um heterossex ual" e "o que deve ser um homossexual". Como a maioria dos homens heteroeroticamente orientados. não desejavam, por exemplo, ser socialmente reconhecidos e marcados por suas tendências homoeróticas que, diga-se de passagem, eram pouco intensas e bastante circunscritas quando comparadas a outras similares. Dadas suas histórias pessoais, não lhes interessava, em absoluto , ver a apresentação pública de suas pessoas exclusivamente rebatida sobre suas tendências sexuais. Para eles, era bem mais importante serem respeitados e reconhecidos po r outras qualidades pessoais, do que passar a fazer parte do grupo de homens cuja marca social, por força do preconceito, é reduzida à sua particular inclinação erótica. Enfim, não sabemos se tais homens são maioria ou minoria na população homoeroticamente inclinada em geral. De qualquer modo, eles dificilmente poderiam aderir ao modo de realização sexual proposto pela "identidade gay", pois o equilíbrio psíquico de que usufruem apóia-se na fantasia da sintonia com a tradição ou da aceitação plena do outro social. Por essa razão, é igualmente fácil entender que as informações sobre as práticas sexuais de risco são apenas um elemento aduzido à disposição psíquica dos sujeitos para evitar os contatos homoeróticos. O conteúdo informativo do conhecimento, isto é, os dados sobre as formas de transmissão do vírus e a letalidade da síndrome, é eficiente porque apresenta


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uma certa afinidade eletiva com o sistema de defesas psíquicas montado pelos sujeitos contra a tendência homoerótica. O receio de morrer é duplicado pelo receio de expor compulsoriamente o desejo "homossexual" ao outro sociaL A morte ou a sintomatologia da AIDS significam a quebra nessa barreira erguida entre o homoerotismo e o olhar preconceituoso. Sem ela, a lesão narcísica seria fatal. Para esses indivíduos, como para muitos outros, independente da orientação sexual, perder a respeitabilidade de seus iguais é tão ou mais importante quanto morrer biologicamente. Paradoxalmente, nesses casos, o preconceito é o maior aliado do s ujeito, quando se trata de enfrentar a coerção sofrida pela vida sexual diante da ameaça da AIDS. Por ser capaz de identificar~se, quase que . integralmente, com a moral dominante, ele pode minimizar o desgaste psíquico provocado pela repressão de suas inclinações homoeróticas. Obviamente, a identificação com essa moral pressupõe uma organização psíquica específica, onde o fantasma que dá acesso à satisfação homoerótica permite igualmente ao sujeito dispensar a montagem da "identidade homossexual" manifesta como meio de alcançar o equilíbrio sexual. Este ponto, entretanto, é irrelevante para nosso estudo, embora seja fundamental para a teoria da clínica psicanalítica No nosso caso, importa sobretudo assinalar que só podemos constatar a existência desse tipo de realização erótica da "identidade homossexual" porque dispomos do modelo do "homossexual oitocentista" inventado pelo im aginário social. É porque esse modelo ainda é presente e atuante no ethos cultural moderno que alguns indivíduos podem apoiar-se nele para reforçar ou desenvolver · o gênero de equilíbrio s exual que mencionamos. Esse modo particular de realização erótica é, na maior parte do tempo, subestimado pelos estudiosos da AIDS. Por certo, é difícil admitir que o sujeito com inclinações homoeróticas possa estabelecer um laço social com o outro, onde o bem-estar psíquico seja obtido às custas da sistemática supressão ou atenuação da dimensão homoerótica do desejo. Mas a eventual estranheza é, ela própria, derivada do preconceito. Só quando imagi namos que o "homossexualismo" é uma essência comum a todos os homens homoeroticamente inclinados podemos esperar que exista um único tipo de resolução satisfatória das demandas pulsionais. No mais das vezes, jamais pensamos que, também na esfera do heteroerotismo, existam várias modalidades de se lidar com as reivindicações da sexualidade, inclusive algumas que passam pela total privação do gozo genital, como no caso do celibato religioso. No entanto, quando abandonamos a crença


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na idéia de uma "homossexualidade única" ou de um "único suJeito homossexual", é mais fácil entender como a introjeção de ideais sexuais oitocentistas pode criar condições de equilíbrio narcísico e realização erótica, para certos sujeitos.

A proteção contra o preconceito Neste grupo, incluem-se os indivíduos que se aproximam do modelo gay de identidade homoerótica. Ele é composto por todos aqueles que, militantes ou não, têm como características: • a aceitação plena da "identidade homossexual"; • a revalorização dessa identidade contra o preconceito e o estigma desvalorizante que a envolve.

A aceitação plena da "identidade homossexual" Por esta expressão entendemos a maneira pela qual os indivíduos lidam com o desejo ou o comportamento homoeróticos, sem aparentes conflitos conscientes. Sem dúvida, o nível da aceitação é variável, conforme o padrão de "estabilização" da identidade na classificação de Plummer, já citada. Quanto mais os indivíduos se aproximam do modelo do militante gay menos tendem a ter conflitos c mais tendem a assumir publicamente a "identidade homossexual". A consciência de pertencer a uma minoria discriminada e o conhecimento das razões históricas, filosóficas, políticas ou psicológicas da discriminação fazem com que eles estreitem as relações com outros "homossexuais" e venham a dispor de um constante suporte sócio-emocional. Essa afirmação, como seria de esperar, produz efeitos sociais problemáticos. Como mostrou Weeks ( 1991 ), reforçar a percepção da diferença nesses termos significa, por um lado, alinhar-se à idéia tradicional de que realmente existe uma identidade "homossexual" à parte e, por outro, reafirma a idéia também oitocentista de que o mais importante predicado da "e.fsência humana" pertence à ordem da sexualidade genital, ou melhor, à divisão dos indivíduos, conforme suas preferêncws homo ou heteroeróticas. No entanto, como assinala o mesmo Weeks, seguindo Foucault, a tônica posta na identidade "homossexual" teve a função de reverter a direção do preconceito, criando uma contradição no esquema cognitivo do senso comum. Debatendo publicamente temas como os


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"direitos dos homossexuais", a ideologia gay acentuou positivamente o que o estigma havia desvalorizado. O modelo de identidade gay é, assim, o modelo de identidade estratégica de resistência, como o define MacRae ( 1990), que parece ter sido o único historicamente possível e viável na cultura pluralista e individualista das sociedades ocidentais. Entretanto, dadas as raízes históricas e a feição social que assumiu, a identidade gay é uma identidade homoerótica que também aparecia como minoritária no universo pesquisado. Apenas dois sujeitos diziam aceitar, sem restrições, seus códigos e regras de estabilização da identidade "homossexual". Os outros, embora sem tematizar explicitamente a questão, mostraram-se distantes e pouco familiarizados com o vocabulário da subcultura gay, ou, então, repudiavam nitidamente os valores e recomen. dações morais por ela produzidos. Acreditamos que uma das razões da resistência ao modelo gay de identidade "homossexual" nasce de sua novidade ideológica. Dando um enorme peso à sexualidade na definição da identidade do sujeito, e pretendendo renovar radicalmente o vocabulário do erotismo, a subculturagay não atende, como seria previsível, a pluralidade de aspirações dos sujeitos homoeroticamentc inclinados.

Revalorização da identidade "homossexual" contra o preconceito Revalorizar a identidade "homossexual" significa basicamente criar um estilo de vida o'nde os pretensos predicados da identidade sejam cultivados e ap.-ovados. No estilo de vida gay, a identidade "homossexual" constróise e mantém-se através de vários procedimentos. No primeiro, o indivíduo busca deliberadamente o convívio com pessoas que participam das mesmas convicções. Isto significa aceitar a freqüentação de locais exclusivos de encontros com outros indivíduos "gays "; informar-se constantemente das manifestações sociais, políticas ou intelectuais que interessem ao grupo; ter uma atividade social onde a afirmação da própria identidade contra o preconceito esteja presente etc. Resumindo, participar do estilo de vida gay, do ponto de vista do primeiro procedimento, é maximizar os sinais visíveis ou critérios públicos de reconhecimento da "identidade homossexual". No segundo, trata-se, a nosso ver, sobretudo de reconstruir ou remodelar o uso da linguagem de sentimentos ou sensações que dizem respeito aos desejos ou comportamentos homoeróticos. Esse aspecto é, talvez, o


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mais revolucionário dessa subcultura. Por meio dele, os indivíduos tentam difundir e solidificar uma linguagem capaz de singularizar suas experiê ncias, diante da experiência hcteroerótica majoritária. Por linguagem, entenda-se aqui não apenas o uso de palavras típico do universo gay ou da cultura da "clandestinidade homossexual". Esse sentido estrito de linguagem, sinônimo de código cifrado dos grupos discriminados, é apenas um item em meio às práticas lingüísticas mais vastas, características daquela subcultura. Linguagem, na acepção que damos ao termo, equivale ao conjunto de comportamentos lingüísticos que articulam a totalidade das práticas sexuais num universo significativo que rompe com as atuais convenções, e que fornece aos sujeitos os elementos básicos para perceber e interpretar o que sentem, pensam, desejam, aspiram etc. em matéria de homo e heteroerotismo de modo original. O jogo de linguagem "gay", correlato do estilo de vida do mesmo nome, é formado por três grandes estratégias lingüísticas de apresentação pública da "identidade homossexual". Na primeira delas, trata-se de retomar criticamente a linguagem da "cultura camp" (ver MacRae, 1990), dando um caráter lúdico ao que é percebido como constrangedor ou grotesco. Na "cultura camp", termo criado por Susan Sontag, os elementos da cultura heterossexual são parodiados em tom de caricatura. As figuras do masculino e do feminino são exageradas, bem como a figura do casal conjugal. Mas, como já pudemos observar (Costa, ibid.), essa estratégia do ridículo é ambígua e portadora do selo da defesa inconsciente contra o preconceito. Levada a sério, ou seja, assumida "espontaneamente" e sem crítica, ela torna-se um sinal do ressentimento produzido pela exclusão. Identificar-se em maneiras e modos de falar com a caricatura do homem e da mulher é também indício do desejo inconsciente de apropriar-se de identidades sexuais socialmente respeitadas e aprovadas. Na subcultura gay o uso proposital da terminologia camp visa recuperar esse elemento da cultura de exclusão no que ele pode ter de cômico, engraçado, sarcástico e anticonvencional, dando-lhe o caráter propositalmente escandaloso, vis-à-vis com os "bons costumes". O uso desinibido c consciente da "linguagem camp", na s ubcultura gay, tem, no entanto, uma característica diversa de seu emprego "espontâneo". Palavras como, por exemplo, "bicha" ou "viado", neste contexto, são empregadas sem objetivos discriminadores. Ora, esse não é o caso do uso acrítico destes termos que, para muitos "homossexuais", são carregados de estigma e indicativos do mal-estar ou do conflito que os sujeitos vivem,


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com respeito às suas inclinações homocróticas.* Em análises subseqüentes, poderemos mostrar como os sujeitos referem-se a outros "homosse~uais" de maneira preconceituosa, usando palavras que, em certas situações, podem vir a ter a conotação de resgate cultural do que foi historicamente menosprezado. A segunda estratégia lingüística consiste em redefinir a linguagem da sensualidade, de modo a opô-la ao modelo convencional hegemônico da satisfação sexual conjugal. Assim, tenta-se fazer ver que tudo aquilo que era apresentado como sujo, promíscuo ou "animal", nada mais é que um modo alternativo de busca de realização erótica. Essa estratégia, como veremos em seguida, é a que encontra maior resistência por parte dos "homossexuais", fora da "comunidade gay". Admitir como satisfatórias ·relações sistematicamente esporádicas com parceiros anônimos, ou relações com mais de um parceiro, ainda é visto pela maioria dos indivíduos como algo indesejável; como algo que acontece porque não se pode obter satisfação com parceiros regulares numa situação afetiva estável.*"' A terceira estratégia, enfim, consiste em apropriar-se do vocabulário do amor romântico que foi culturalmente definido no século XIX como corolário "natural" das relações hetcroeróticas (Ver Luhmann, 1990). Passar a usar, publicamente, a linguagem da ternura, do carinho, da preocupação sentimental com o outro em relações homoeróticas significa confrontar o preconceito com um fato paradoxal e desafiar a interdição que visava desqualificar o homoerotismo considerando-o algo "animalesco" ou "pouco humano". Em conjunto, essas estratégiac:; lingüísticas formulam uma "noção positiva" do homoerotismo, cuja principal conseqüência, a nosso ver, é a

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Este tópico foi aprofundado no artigo acima mencionado. Arenovaçãodalinguagemdoerotismonaideologiagay,quepassapelarevalori2açãodocódigo sexual do gueto ou da "homossexualidade" clandestina, é uma tentativa de ressignificaro que, na origem, de rato, é um sintoma da exclusão da "homossexualidade". Assim, a linguagem sexual dl) gueto. para muitos sujeitos, é sinônimo de impossibilidade de viver à luz do dia os amores homoer6ticos. Desse ângulo, os indivíduos têm seguramente razão em considerá-la o substituto pobre e estereotipado de um erotismo que não pode apresentar-se publicamente, e portallto, têm bons motivos para rejeitá-la e considerá-la insatisfatória. O jogo hoJ:Oocrótico da "clandestinidade homossexual" é uma conseqüência da pri vaçAo cultural imposta aos ''homossexuais", em especial, da privação da linguagem do amor romântico . O surgimento da AIDS e a ideologia gay, apesar de terem redimcnsionado lodo o sentido das práticas homossexuais de gueto, não devem fazer esquecer o carã~er defensivo dessas práticas e o quanto elas são inaceitáveis para inúmeros indivíduos que não aceitam a precariedade, a futilidade e o anonimato desse tipo de contato sexual. A esse propósito, consultar o artigo "Conjugalidade, ética sexual e parceria homoerótica", neste volume.


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de pleitear o direito de cidade ou um lugar à parte para aquilo que na Antigüidade greco-romana era chamado de "amores masculinos". Recusando as definições prévias do "homossexualismo", o movimento gay procurou criar uma alternativa identificatória aos modelos ainda hoje ofereddos aos sujeitos homoeroticamente inclinados, qual seja, os modelos da " mulherzinha" e do "viado". Na ideologia gay, advoga-se a idéia de que homens que se sentem atraídos por homens nem por isso perdem suas características masculinas , pois tais características não têm que obrigatoriamente coincidir com a figura do "heterossexual oitocentista". É possível, a partir desta ideologia, imaginar modelos de "identidade masculina" onde o atributo da atração pelo mesmo sexo não exija, como conseqüência, a renúncia a esta mesma identidade.* Por conseguinte, a aceitação e a revalorização da "identidade homossexual" na subcultura gay representam uma novidade cultural que o surgjmento da AIDS veio ajudar a consolidar. Depois da AIDS, tudo o que se desenhava em círculos minoritários do campo cultural ganhou uma publicidade inusitada. Através de depoimentos pessoais, livros e filmes, sujeitos portadores do vírus ou de sintomas da doença passaram a falar livremente de suas experiências sexuais e amorosas para o público "heterossexual", sem constrangimento ou censura. Mais do que isso, a urgência em se comentar publicamente práticas sexuais não reprodutivas pôs definitivamente em questão o modelo da vida sexual conjugal e heteroerótica, desvinculando prazer de procriação. O que já era voz e prática corrente no terreno do heteroerotismo estendeu-se ao homoerotismo. Uma guinada foi, então, dada na discussão pública dos hábitos homoeróticos. De um lado, a distinção feita pelo preconceito entre "homossexuais promíscuos" e "não-promíscuos" passou a ser redescrita de outra maneira. Ou seja, os "não-promíscuos" passaram a ser melhor aceitos, quando não bem-vindos ou aplaudidos, o que significa maior tolerância e mesmo, às vezes. aprovação das parcerias homoeróticas que se enquadram no tipo ideal do amor romântico e da sexualidade conjugal. De outro lado, a "promiscuidade", que antes era apenas condenada, agora passou a ser vista como algo que deve ser regulado, já que não se pode abolir. Porém, higienizar a "promiscuidade" quer dizer, num certo nível, tolerá-la, desde que não seja portadora de riscos sanitários.

*

Novamente aqui, é necessário matizar a afiC11lação. A "ideologia gay" não é uma ideologia monolítica. Quando empregamos esta expressão, estamos nos referindo à corrente majoritária dessa ideologia no Bra~il, ou seja, a corrente intelectual ou política mais influente na difusão e na construção da "identidade gay".


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É esse movimento de aculturação ou convencionalização das formas modernas do homoerotismo que despertavam o repúdio de espíritos anárquicos, como o da personagem de Pasolini, no romance biográfico de Fernandez (1985). Pasol ini, herdeiro inconsciente do romantismo rebelde de Vautrin, personagem de Balzac, via na socialização do "homossexualismo" uma vitória do amor burguês (Costa, 1990). Da perspectiva da prevenção da AIDS, entretanto, este mesmo movimento é o que torna eficaz a posse de informações a respeito da infecção pelo HIV. Vista do ângulo dos sujeitos identificados com o estilo de vida gay, a luta contra a AIDS e a luta pelo direito à livre expressão social do homoerotismo são uma só e mesma coisa. A exemplo do que acontecia com o primeiro grupo estudado, neste outro a informação sobre a prevenção funciona porque . apóia-se em interesses p recognitivos mais fortes do que o puro medo de morrer. Combatendo a AIDS, combate-se o preconceito contra o hemoerotismo; luta-se contra a morte biológica e, por fim , contra o banimento ou hibernação sociais. Partindo daí, é possível compreender um pouco mais por que, nesse grupo, condutas altamente racionalizadas, como o uso de camisinhas, podem ser introduzidas no jogo afetivo-sexual sem abolir definitivamente o prazer. O uso de camisinhas, além de exigir a disponibilidade material para comprá-las, exige uma disciplina e um esforço contínuos para inventar novas modalidades de satisfação erótica. Esse esforço é possível somente para aqueles engajados num projeto de auto-realização sexual em que a conduta racionalizada do uso de preservativos seja eroticamente redimensionada. Para os sujeitos afastados do projeto de realização do eu ideal, e que continuam atrelados aos modos convencionais de satisfação sexual, o preservativo é um estorvo. Conseqüentemente, seu uso torna-se aleatório c dependente de critérios idiossincráticos de decisão. No grupo comprometido com a ideologia gay, ao contrário, a prevenção 6, pelo menos idealmente, uma conduta conscientemente voltada para fin s que transcendem a mera sobrevivência física do eu. Daí a possibilidade de transformar o uso de preservativos em um item sintônico com a realização erótica. Não é à toa que, nesse grupo, a discussão sobre AIDS mescla-se inevitavelmente à terminologia da "luta pela solidariedade", "pelos direitos do cidadão", "contra a irresponsabilidade dos poderes públicos" etc. Sobreviver à AIDS, aqui, significa um ponto ganho na luta contra a intolerância e a discriminação. Significa ter a pretensão de alterar os ideais sexuais dominantes, mostrando a falha no outro social. Ao invés de se


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deixarem discriminar pelo status quo, esses sujeitos tomam a dianteira e mostram-se como seus grandes críticos. Invertem a mão do discurso hegemônico, pontuando sua incapacidade para atender a diversidade das moções eróticas que emergem da contingência do desejo e do sujeito. Assim, penso, conseguem restaurar o equilíbrio narcísico necessário para enfrentar as restrições impostas à sexualidade pelo risco de infecção pelo vírus HIV. Essa pauta de condutas, na medida em que se orienta por ideais morais comuns, consegue ser relativamente uniforme, salvo, obviamente, em momentos particulares. Ao se identificarem com um ideal de eu, conforme o projeto de uma cultura mais tolerante, mais plural e mais aberta a recriações constantes da auto-realização erótica, os indivíduos estabelecem normas de comportamento frente à ameaça da AIDS passíveis de serem compartilhadas por outros, com as mesmas aspirações psíquicas e sociais. É fundamental, todavia, observar que esse modelo de "identidade homossexual" não pode aspirar à hegemonia cultural, sob pena de converter-se em mais uma forma de intolerância Os indivíduos que com ele se identificam possuem características psíquicas que os tornam sensíveis a idéias de intervenção e transformação dos hábitos culturais, características estas impossíveis de ser generalizadas a todos os sujeitos com tendências homoeróticas. Para que se possa pôr em dúvida a demanda de amor do outro social, convertendo-a em desejo de opressão, é preciso encontrar um outro ideal amoroso que venha opor-se ao imaginário social dominante, protegendo o sujeito de fantasias persecutórias e culpabilizantes extremamente custosas para a economia psíquica. É tipico das vanguardas políticas, intelectuais e morais, serem capazes de suportar a tensão da ruptura com as convenções, sem desenvolver sistemas de defesa persecutórios e culpabilizantes. Nos sujeitos que compõem tais vanguardac;, a capacidade de suspeitar da "inocência da demanda do outro", como diz Aulagnier ( 1980), é uma aquisição inconsciente e intransferível para sujeitos com outras histórias psíquicas. Nem todos estão psiquicamente habilitados para se redefinir moralmente como opositores da norma e, mesmo assim, continuar usufruindo da auto-estima necessária ao equilíbrio psíquico. · Portanto, a questão do modelo gay de identidade sexual é um modelo

baseado em fundamentos ainda sujeitos a discussão. Em primeiro lugar, como vimos no exemplo da "identidade homossexual oitoccntista", ele está longe de atender a.<> peculiaridades psíquicas e sociais de todos os homens com inclinações homoeróticas. Em segundo lugar, ele parte do


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pressuposto de que aceitar a linguagem da discriminação, revalorizando-a positivamente, é a única maneira de se lutar eficazmente contra o preconceito. Ora, como pude notar na introdução deste trabalho, essa alternativa de combate à intolerância sexual tem problemas práticos e teóricos a enfrentar que estão longe de estarem resolvidos. Assim, vincular os valores da ideologia gay à luta contra a AIDS é interessante porque oferece, a numerosos sujeitos aptos a se identificar àquele modo de vida, uma saída cultural de que não dispunham. Porém, essa abertura de novos horizontes para o homoerotismo só alcançará os objetivos de ampliação do espaço de tolerância se deixar de lado a pretensão de tornar-se historicamente hegernônica. Talvez a fórmul a mais feliz para definir a meta da ideologia gay fosse a de propor "exemplos" e . não "modelos". Propondo exemplos é possível que se possa abrir caminhos para a criação de um ethos moral, onde o credo central seja o do respeito ao pluralismo e à diversidade. Nessa eventualidade, é provável que se venha a imaginar um universo de regras morais, ao mesmo tempo tolerante para com as diversas formas de subjetivação do desejo hornocrótico e submetido aos critérios públicos de aprovação, já que poderia ser livremente discutido c partilhado por mais de um indivíduo ou por mais de um grupo. A proposição, que pode parecer à primeira vista ingênua e ideal, perde esse caráter quando observamos que, no terreno do heteroerotismo, ela já vem, em certa medida, se concretizando. Na cultura atual, vemos que a multiplicação de modos de realização heteroerótica vem ocorrendo pari passu com a discussão pública e a busca de acordos intersubjetivos os mais vastos possíveis sobre as regras morais por ela inauguradas. No campo do homoerotismo, no entanto, as invenções quanto às formas de autorealização ainda são restritas, e parecem aspirar ao velho modelo da hegemonia nascido no século XIX. Por isso, talvez, a norma de resolução idíossincrática da "questão homossexual" tenha surgido, em nosso estudo, como a forma preponderante de aquisição e estabilização da "identidade homossexual". E como tentaremos mostrar a seguir, essa forma está intirnamenle relacionada à ocorrência maior do risco de infecção. Não tendo como apoiar-se em ideais comuns de realização sexual, os "homossexuais" que foram levados a privatizar suas tendências e confli tos homoeróticos mostraram-se muito mais vulneráveis ao risco de contágio que os "homossexuais" dos dois grupos anteriores. Dada a escassez cultural de modelos públicos, múltiplos e partilháveis de estabilização de suas identidades sexuais, esses sujeitos são compelidos a descrever e


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interpretar suas características sexuais de um modo que se reflete diretamente na conduta que assumem diante da prevenção contra a AIDS.

A privatização moral na avaliação do risco da infecção A esse grupo, como dissemos, pertencia a maioria dos sujeitos estudados. Quer se aproximassem do modelo gay de identidade "homossexual", quer se aparentassem ao modelo oitocentista, todos os indivíduos tinham em comum a mesma impossibilidade de dispor de modelos de identidade sexual publicamente discutíveis ou partilháveis por outros. Por esse motivo, eram os mais expostos aos riscos de infecção. Neles, as condutas preventivas eram sempre tomadas ad hoc e, como nos casos anteriores, sempre assumidas em função de deliberações que pouco tinham a ver com a qualidade ou a quantidade de informações que tinham sobre a AIDS. Nesses casos, pareceu-nos impossível tipificar ou generali1.ar minimamente os padrões de respostas aos riscos de infecção. Pudemos apenas notar que, em todos eles, quaisquer que fossem a origem ou pertencimento sócio-culturais, havia a mesma disposição para resolver "individualmente" a questão da prevenção. Por "resolução individual", entendemos a privatização moral das regras que determinam o comportamento, diante de conflitos ou decisões abertas a escolhas. Chamados a agir diante de um problema que põe em jogo a relação do homoerotismo com o risco de morl'e, os suj eitos recorrem à experiência individual, sem compromisso com condutas coletivas. Como seria desnecessário reproduzir todos os casos em que tal padrão de respostas ocorreu, vamos limitar-nos a citar alguns casos exemplares. Caso l - A, 31 anos. Teve várias relações com mulheres, mas prefere relações com homens. Hesita em dizer se é "homossexual". Nunca foi penetrado em relações sexuais. Referindo-se às relações com mulheres, diz que jamais ejacula na boca delas ou teve relações anais. O entrevistador pergunta por que e ele responde: "... Eu acho que de vido à pessoa, ter certo carinho pela pessoa, você tem que ter mais consideração com essa pessoa". Em seguida, interrogado a respeito de relações anais com mulheres, responde: " O cu não fa z parte, porque o cu não f oi feito, a única coisa que foi feita para recebe r a porra foi a vagina". Em outra parte da entrevista. quando lhe foi perguntado sobre a prática de relações ocasionais com parceiros anônimos, disse: "Eu assim, pra


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mim, eu acho errado, na minha opinião, porque aí já é mais assim tipo animal, usou, acabou, sumiu". Depois, falando sobre a relação homoerótica que mais o satisfaz, diz: "Porque ele me tocou com palavras, então ele escrevia para mim, certo, e as palavras que ele escrevia acho que não seria assim, de homem para homem, eu acho que seria mais de um homem para mulher... Ele era um homem, sem vestígio nenhum de "homossexual", sem nada, um homem... masct4lino, mesmo". Finalmente, no que concemia à prevenção da infecção, respondeu, que controlava o risco, "controlando pela minha timidez". O entrevistador, então, perguntou: "Você acha que conhecendo a pessoa você está fora de risco?" A resposta foi: "Acho. Quando você conhece profundamente eu . acho que sim!" E, quando não conhece bem, usa camisinha. Caso 2 - B, 23 anos. Casado. Não sabe dizer espontaneamente se é homo ou bisscxual. Refere-se às relações homoeróticas como "brincadeiras". Diz que gosta de brincar, mas não está disposto a revelar seu "homossexualismo" porque "tem medo", porque acha que "sua fama" não vai ficar boa. Seus parceiros são sempre escolhidos entre homens que "não tem pinta". O entrevistador pergunta como ele fez para lidar com sua inclinação homoerótica. B, então responde: " ... eu te falo realmente que eu vou sair dessa, entendeu? Só que eu não estou conseguindo porque tenho, assim, uma atração muito forte por homens." Entrevistador: O que você fez para evitar sentir atração por homens? B: Eu vou evitar olhar pa ra a pessoa ... E1' casei com minha mulher porq!le eu gosto dela, entendeu? Mas eu também casei mais para sair dessa vida... Eu queria que ela colasse em mim. Aí eu estaria junto com ela e não teria outros pensamentos. Só ficava com ela. Foi muito bom cara, eu estar casado... Eu estou jQZJ!ndo assim, saindo mais com minluJ esposa, entendeu? Transando muito com ela, e antes de sair de casa eu dou uma transa para não sentir muito tesão na rua!

Finalmente, no que diz respeito à prevenção do contágio, respondendo à pergunta do entrevistador sobre felação, B diz: "Isso aí é dependendo da pessoa, cara, entendeu? Às vezes uma pessoa conforme ele é, se ele tem muita saúde, uma pessoa ... " O entrevistador pediu que B esclarecesse o que era "ter muita saúde", e ele disse: "Tem que saber o jeito da pessoa... Se o cara for assim, sabe, cheguei!, aquele cara todo agitadão... se o cara for todo agitadão, todo descaradão eu não gosto!". O entrevistador insiste, mostrando o risco de orientar-se por tais critérios. B, então,


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respondeu: "Não sei. Pode ver que agora eu estou parando com isso e se eu transar com uma pessoa só com camisinha. .. Eu vou diminuir, se Deus quiser". Na continuidade da conversa, entretanto, diz, logo depois: "O mundo está p erdido sem brincadeira [termo usado para aludir às relações homoeróticas]. Um amigo que trabalha [diz então o lugar, que é um bar] ...ele gosta de mim, entendeu? Ele sabe que eu. não tenho nada, ele tratzsa comigo e aí tudo bem." No caso, as relações eram sem preservativos e nenhum dos dois havia feito o teste de ATOS. Caso 3 - C, 21 an.o s. Solteiro. Micbê. Sente-se fortemente atraído por homens, já teve relações passivas e ativas. Disse que transava com um homem que o chamava de "C ... bicha" [termo formado peJa primeira sílaba de seu nome mais a palavra "bicha"] . Relata uma discussão que teve com essa pessoa: " ... se você me chamar de michê, então eu vou te chamar de viado, de bichona, maricona ". Ainda sobre os clientes, diz que eles se classificavam como "maricona, mariquinha e maricota". Sobre o ideal de relacionamento homoerótico, C diz: "Eu mesmo digo, eu preciso me apaixonar desesperadamente por alguém. Eu preciso arrumar uma pessoa que goste de mim; q ue goste mesmo, sem sexo só. As pessoas estão muito interesseiras( ... ) eu estou precisando de me apaixonar, de gostar". Em seguida, fala de suas precauções em relação a doenças venéreas: " ... eu acho que até por medo meu mesmo de transar por causa de doenças, essa coisa toda, eu transo correndo, apavorado, 'tira, não bota, goza fora', aquela coisa sabe, aquela neurose". Diz que fez o teste anti-AIDS, e que não é portador. Depois disso, há mais ou menos 1 ano, continuou tendo relações sem preservativos: "Continuei transando como transo até hoje; tirando o pau, põe devagar, aquela coisa, nesse tipo". Refere-se ainda, à prática de felação: " Chupei, mas fiz assim, correndo, botava a boca, fazia, 1, 2, 3 e cuspia ... É como eu disse, um mês e meio, dois meses sem transar, aí o corpo não agüentava mais, eu ia transar de novo". O entrevistador, então, pergunta: " Como é a sua prática atual?" C d i1.: "É como eu te disse, 'põe devagar, não põe, tira, não goza dentro'. 'Ah, deixa eu meter', 'não, só encosta', 'eu s6 vou botar a t•abecinha '. Pau não tem ombro, depois que a cabecinha entrar o resto vai também, né". Nem sempre usa camisinha. Finalmente, aderiu a uma religião, com o que pensa abandonar a vida sexual que levava: "Foi como eu te disse, achei uma religião graças a Deus e consegui abandonar tudo isso, assim. Mas eu não deixei de ser bissexual ou homossexual, não sei". Diz que o dinheiro que ganhava na profissão era maldito.


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C: É um dinheiro maldito, por isso que não só pelo din~iro ser maldito eu me culpo, eu me culpo porque é uma coisa você vender o seu corpo ainda mais agora que eu consegui me situar numa religião. A religião conseguiu me tirar de tudo isso que eu achava que hoje em dia ... não é que eu acho sf4o... eu não gosto de discriminaçãc porque ninguém sabe, cada um tem um motivo... eu passei por isso ... eu sei que cada wn tem um motivo muito forte para se enfiar nisso, sem culpar pai e mãe, mas que pai e mãe têm culpa, têm, e muita. Entrevistador: E a sociedade? C: Não só a sociedade, não! A sociedade, pai, mãe, que tem mãe que não dá apoio nenhum ao filho, quer dar apoio mas não sabe como dar, isso acaba cotifundindo a tua cabeça; você acaba achando que tua mãe ao invés de te ajudar está querendo te socorrer...

Caso 4 - D, 30 anos. Diz-se "homossexual". Teve relaçõe:s sexuais com uma namorada, a quem vê como sua "tábua de salvação". Sente uma forte atração homoerótica e só consegue excitar-se sendo penetrado. Profundamente identificado com os valores do univcr:so heterossexual, não suporta o convívio com pessoas efeminadas e freqüentadoras do circuito do gueto "homossexual". Sonha em encontrar um parceiro viril, com quem possa manter relações amorosas sem levantar suspeitas. Para esquecer o "homossexualismo", el{aure-se em exercícios ffsicos e dedicação ao trabalho. Tudo isso é compensado por idas compulsivas a boates gay, nos fins de semana, de onde sai cada vez mais deprimido. Não consegue conviver com a inclinação homoerótica e, no ara de encontrar o parceiro ideal, diz-se disposto a sacrificar as medidas de precaução contr a a AIDS. Interrogado sobre o que representa para ele o risco de morte, diz que pior que morrer é viver deprimido, angustiado e insatisfeito como vive. Só vê uma alternati va para sua vida: ou trocar de profissão e passar a conviver num meio mais liberal. ou reforçar os laços afelivo-sexuais com a namorada c vir a esquecer o ..homossexualismo". Nunca fez teste anti-AIDS, por ter receio de saber-se contaminado, e por acreditar que sabe como evitar relações promíscuas . CasoS- E, 28 anos. Possui nível superior de instrução e pertence à alta classe média. Sente indistintamente atração por homens e mulheres, embora a atração física por homens seja maior. Considera-se "homossexual" embora todas as relações estáveis que teve c onde veio a apaixonar-se tenham ocorrido com mulheres e não com homens. Lida razoavelmente bem com suas inclinações homocróticas, e diz que não está disposto a renunciar totalmente a esse modo de satisfação sexual. Por sua profissão,


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é obrigado a viajar freqüentemente para o exterior, onde então costuma ter contatos homocróticos. Nessas ocasiões, usa ou não preservativos, dependendo da avaliação que faz do parceiro. Já fez o teste anti-AIDS três vezes, apavorado com o risco de infecção. Pelo fato de ser casado, ter filhos, gozar de grande prestígio profissional e só conviver em ambientes heterossexuais, tem um enorme medo de vir a contrair o vírus da AIDS. Depois de um certo tempo, tem conseguido evitar não só contatos homoeróticos regulares, como relações sexuais de risco. Acredita que tomou realmente consciência do perigo que a AIDS representa para sua vida e a de sua mulher ou a de outros eventuais parceiros sexuais.

Caso 6 - F, 32 anos. Diz assumir abertamente a preferência "homossexual". Só tem relações com homens. Na entrevista fala de uma história sentimental tumultuada, com episódios de apaixonamento, ciúmes, brigas e a existência de "muitos casos". Fala dos desafetos em tom pejorativo, e dos concorrentes, em certas disputas amorosas, como "bichinhas". Sonha com o amor romântico, e diz não se incomodar em absoluto com as manifestações agressivas do ambiente em relação a seus trejeitos. A respeito da prevenção, dá o seguinte testemunho: Entrevistador: Você já fez o teste contra a AIDS?

F: Teste de AIDS? Fiz! E: Fe7. quando? F: Em 87, um só. E: Depois disso você já teve algum relacionamento de risco ou não teve? F: Não, quer dizer, vou ser sincero com voe~, tive um relacionamento com M. E: E nesse período, foi um sexo sem camisinha? F: Foi. E: E depois disso, você fez outro teste? F: Não. E: Porquê? F: Só durou dois meses.

F critica a futilidade dos contatos hornocróticos no "circuito gay" e procura, tanto quanto possível; usar preservativos em relações com quem não conhece bem. Caso 7- G, 25 anos. Diz que é "homossexual assumido". Desconhecia o risco existente na emissão de líquido seminal na fase de pré-ejaculação, embora praticasse freqüentemente a felação. Quanto às camisinhas, utiliza-as mas é descrente, pois ocorreu-lhe de usar numa só noite cinco camisinhas, porque três estouraram. Acha que ainda sente culpa por ser


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"homossexual" e pensa que é devido à "repressão de casa". Quanto à prevenção, diz: E: Fez teste anti-AIDS? G:Fiz. E: Qual foi o resul.tado? G: Negativo. E: O que você sentiu, qual foi a experiência disso? G:Alívio. E: Depois desse teste você continuou fazendo sexo de risco ou... G: Não. Tra11qr.rei completamente sexo de risco. E o que é que eu fiz? Comecei a apresentar carleirinha de saúde, tipo caneirinha de imunidade ... E: De que eu não sou portador do HIV... G: De que eu não sou portador do vírus, quer dizer, mas isso não adiantava nada, prá ninguém. Eu não sou ponador se eu não consigo usar sexo também. E: Claro. Você também não sabe se a pessoa é portadora ou não, mesmo ela dizendo que não seja, né! Tem esse, essa ... G: Não adianta e r' querer ca.sar o meu relacionamento sexual com o relacionamento sexual de outra pessoa apresentando carteirinha, isso é ilusório. não acomece.

Caso 8 -

H, 17 anos. Acha-se "homossexual'' e não se interessa por relações sexuais com mulheres. Diz que viveu as primeiras manifestações da atração homoerótica com muitos conflitos: " Então, eu f icava pensando, será que eu vou ser isso ['homossexual')... pô, eu não quero ser isso ". Tem uma relação amorosa extremamente romântica com o atual parceiro, é fiel, e acha toda prática sexual, fora do padrão romântico da sexualidade a dois, "nojenta" e que lhe causa "vergonha". Sobre a prevenção, diz: E: Uma coisa. Como é sua prática atual? Você transa sem camisinha, como você disse, né? H: É. E: Você não tem medo de transar sem camisinha? Você também nunca transou, né, não sabe né? H: É. Nunca transei. E: Você saberia usar uma camisinha? H: Não. E: Não sabe ? Nunca te e nsinaram? li: Não. Jt:: Nem o seu namorado, também não sabe usar camisinha? H: Não sei. Acho que não. Ele também nunca usou. E: E vocês... sempre tiveram contato com o esperma sem a camisinha, e isso não te assusta nem um pouco?


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H: Não. Não porque eu .rei que ele tem muito medo. Ele con versa muito comigo sobre essa doença e ele fala para mim niül sair com qualquer um. E: Certo. Ele te alerta. H : Ele me alerta. Quando eu comecei a trabalhar, ele pensou muito ames de eu começar a trabalhar, porque eu ia trabalhar na rua e era muito perigoso, né! As pes.wus têm facilidade ... .1<:: De pegar. H: É. Aí me avisoubastame. E: Como? Você pode me descrever? H : Posso. Ele falava assim: "H, toma muito cuidado na rua com as pessoas... " E: Ele é um pouco pai para você? H: É. E: Por isso você gosta dele? li: É. E: Ele tem 22 anos. H: Tem. Ele é moreno, não muito mai.r alto que eu. Vai entrar para a academia de novo. E: E você, por que não faz exercícios? H: Porque não gosto! E: Você não gosta? Mas gosta que ele faça? H: É. Gosto de lwmensfortes, musculosos.

Caso 9- J, 27 anos. Diz-se "homossexual", sem problemas. Trabalha no setor de serviços em um dos pontos turísticos do Rio. F.: Você prefere relação com parceiros regulares ou casual?

J: Eu prefiro regulares. E: Regulares? J: Eu sinto mais segurança, porque esses ca.mais, a gente não sabe, né! E: Não sabe. E você já teve outros parceiros casuais na rua?

J: NiüJ, não! E: De pegação, banheiros, cinemas? J: De jeito nenhum. E: Não? J: Eu sou muito medroso em relação a isso. Eu sempre tive medo. Medo mesmo. Sei úL. de me roubarem, de me matar, sei lá! E: Você freqüenta esses lugares, como cinema... J: De jeito nenhum. E: Porquê?

J; Porque eu acho que não vale a pena, entendeu? Sempre fui a.rsim.

Tenho amigos que sempre se m~tem nisso a~ mas não curto, cara! Eu não abomino, mas não gosto mui10 de lugar, de ambiente que tem muito "homossexual ", eu não curto muito não!


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A inocência e o vício E: Por quê? O que é que é isso! De repente é tua cabeça! J: Eu acho que tanto faz, eu. .. um lttgarcareta com "homossexual" se tiver que pintar, pinta, tá entendendo? E às vezes num lugar que não é careta pode pintar uma coisa muito mais séria do que num lugar de boate. Boate é o que ... você pega uma figura rw boate e todo mur!do sai rolando, caçando. Eu não curto, eu não curto esse tipo de coisa não. Eu posso até ir, mas não curto.

Diz que fez o teste anti-AIDS e que deu negativo. Mas, depois, diz que teve uma relação sem preservativos. J:

A última foi ... não gosto nem tk lembrar que eu fico meio paranóico ... foi um

cara... que eu trabalho no Y [cita o local turístico do Rio] ... eu deveria nunca ter feito, mas eu acho que tipo assim... a gente não pode se privar tanto de sexo, a gente vai morrer neurótico, eu acho que você tem que se prevenir... E: Claro! J: Ai eu conheci um cara de X [cita o nome de uma cidade da Europa, o pan:eiro era um europeu, turista]... aí esse cara me ligava, não-sei-o-quê... eu peguei e saí com ele. Eu acho que ele não tinha AIDS... não é possível, que é muito azar mesmo, mas pode acontecer. E: Pode. O azarão, chamado o azarão, né? J: É, justamente. Eu sei que isso acontece. Mas ele aparentemente era uma pessoa sã, e Deu.ç me livre que tenha alguma coisa ... Aí, eu fui e transei com ele. Mas o cara, aí. inclusive, ele me convidou, está afim de me comer... Eu sabia o que era, e a(, tudo bem. Mas esse cam foi urna das melhores coisas que eu já tive na minha vida. Carafudido, ótimo!(... ) Foi l1om, mas depois eu fiquei numa paranóia.

O entrevistador volta, então, à questão da prevenção: E: Como é sua prática atual? Como você pratica sexo atualmente?

J: Atualmente de camisinha, pode ser quem for. E: Você usa camisinha? J: Uso. E: Quando? J: Sempre quando tenho ato sexual. E: Sempre que você vai ser ativo ou passivo? J: Sempre, sempre. E: A camisinha te incomoda'! J: A mim não. Eu sinceramente eu acho até bom, pode acreditar, eu acho até melhor. Porque ela é, vamos dizer, ela lubrifica mais e ... E: Quando foi que você começou a usar camisinha? J: Olha, uns 4 anos pra cá! E: E em todas as suas relações você usa camisinha? J: Olha, nem todas. Não vou mentir. f;: Claro... Qual o número de relações que você teve sem camisinha?


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J: Tive algumas que eu niio transei com camisinha... Mas sempre que posso eu tram·o com camisinha.

E: Me fala uma coisa, com quantos outros parceiros você teve relações de risco? Alguma vez você levou porra no cu nesse período que você não estava usando camisinha?

J: Olha, eu creio que sim. E: Quantas vezes mais ou menos?

J: Só uma. E: Você pode me descrever?

J: Foi assim, eu tava naquele orgasmo e af aconteceu, plJ, eu fiquei logo com tiOjo e me lavei bastante.

E: Foi com e~se rapaz de X [a cidade da Europa]?

J: Foi. E: Então, foi depois do teste? J: Foi. E: E depois disso, você não fez outro teste7

J:

Não!

O entrevistador, então, informa J sobre os riscos das relações anais sem preservativos e também da felação. Em seguida. pergunta: E: Me fale de outra pessoa que tenha gozado na sua boca ou coisa assim.

J:

Foi um garoto, lá no meu trabalho ... Tinha um depósito, e ele trabalhava como vigia... Eu marquei com ele e ai eu fa lei " limpe o peru todo direitinho". Af, ele chegou, pronto, e a gente lava no maior tesão, não-sei-quê, a(, pô, desculpa, pô, eu não queria esporrar no seu cu. E: Esporrou na boca? J: É. Eunãofaleinada. Fiquei calado, né! At euftti logo lá em cima, lavei minha boca, não-sei-o-quê, mas eu não fiquei com medo, com essa paranóia não, porque eu sabia que ele tinha fe ito o teste.

Caso 10- L, 30 anos. Casado, diz-se "bissexual". Afirma que sempre teve conflitos com a inclinação homoerótica: "Mas só que eu tinha uma defesa muito grande, porque a minha formação era de que um homem, ele ja11Ulis ia trepar com outro homem". Diz que ama sua mulher, mas sente que suas necessidades sexuais são maiores do que a mulher pode suprir. Diz ainda que pelo seu jeito feminino sempre teve dificuldades de relacionar-se corn homens, pois todos pensam que ele gostaria de ser penetrado, quando isso não Lhe dá nenhum prazer. O entrevistador introduz a questão da prevenção: E: Quais são suas práticas atuais? As práticas esporádicas? Você só transa com sua mulher ou você ainda dá umas escapulidinhas por fora? L: Agora eu tô illllo a um. cinema.


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E: Quais os cinemas que você vai? L : Fica no centro d4 cidade. E: No centro? L : A f eu me sento lá... vêm as pessoas e me tocam, me pegam, me chupam, sabe...O que eu me interesso eu tamhémfaço. E: Você não tem medo de chupada~ Como um meio de contaminação? L : Niio, porque pelo que eu sei do vfrus, a não ser que a pessoa esteja completamente com um grau muito elevado, a{ vai estar estampado nos olfws. visualmente. E: Certo. L: O calor da boca, ele mala o vlrus, né, ele consome o vfrus. E: Sim, mas foi encontrado já vírus na saliva também, e se seu pau tiver alguma fissura ... L: Ah! sim. E: Então, é muito importante botar uma camisinha para ser chupado. L: Ah! nãn. Cwro que não.' E: Você não... L : Não, não faria. En tão eu prefiro me abster. Não preciso de práticas nenhuma ... porque ai tá o problema, se eu for emrar nesse contexto, eu não preciso, porque religiosameme, etnicamente. 1<: : Eticamente. L : "Não-sei-o-que ... mente ", eu nãb preciso disso, porque eu tenho minha mulher. E: Certo. L : Então, pra tá fazenda qualquer coisa... eu não preciso de uma transação extra.

Caso 11 - M, 22 anos. Diz-se "homossexual". Relata que sempre teve enormes confliLos com a inclinação homoerótica. A té os 14 anos, sempre "viveu à sombra do pecado". Aos 18 anos, os conflitos chegaram ao auge e tentou o suicídio. Dep<>is, veio para o Rio e passou a freqüentar o circuito gay. Hoj e, diz-se sem conflitos com a "homossexualidade". Seu ideal de parceria é o casal romântico. Não consegue excitar-se em lugares onde as pessoas vão apenas para ter relações sexuais. Mas também gostaria de ter uma experiência de suruba: "Então, eu gosta ria de fazer sexo grupal, eu gostaria assim de com er e ser comido ao mesmo tempo, que deve ser uma experiência fantástica, que eu ainda não tenho". Interrogado sobre as práticas preventivas, responde: E: Você usa camisinha, né? M:Uso. E: Usa? Todas as vezes que você penetra em alguém, ou já penetrou nesse período sem camisinha, em alguém?


O homoerotismo diante da AIDS

M: Já penetrei sem camisinha. Se eu dissesse que eu usei sempre camisinha estaria mentindo. Algumas vezes eu já comi sem camisinha. E: E você não ficou com medo'? M: Eu fico com medo, mas eu acho, do que eu tenlw lido, que o parceiro ativo é bem menos suscet(vel. E: Suscetível, mas também tem o seu campo ... M:Sim. E: Risco. Você não acha a camisinha erótica, não é? M:Não, nem um pingo. Eu acho a camisinha um anti-tesão... Muitas pessoas concordam comigo: "botar camisinha amolece o pau"; diminui a rigidezoo teu pênis.

Sobre a felação, diz: E: Você não tem medo de sexo oral? M:Tenho. E: Tem'? Por que você faz então? Você fez com freqüência? Como você fez? M: Eu faço com freqüência sexo oral. Todas as pessoas com quem eu transa eu faço sexo oral. Eu acho que hoje em dia eu coloco muito em cima do sexo oral devido à impossibilidade de se fazer sexo anal; que é uma coisa que eu curto muito. Tanto de dar como de comer... e devido a essa impossibilidade [refere-se à A IDS} eu curto o seXQ oral. Eu vejo menos perigo rw seXQ oral, quando você não tem contato com o espenna. E: Mas você não acredita... e a pré-ejaculação, aporrinha que sai. .. M: Nunca com as pessoas. Nunca com as pessoas que melam. Primeiro eu não gosto, me dá repel~ncia, pessoas que ficam melando. Eu acho anti-higiênico, já me dá uma sensação péssima se eu pegar no pau do cara e tiver melado, eu tenho nojo na hora. E: Então, antes de você chegar, você verifica. M: Claro!

Continuando, o entrevistador pergunta: E: Uma coisa puxa a outra. Você sabe se seus casos pulavam a cerca? M:Ah! niio! E: Essas coisas nós sempre devemos botar em voga, porque~ chamada classe de risco, aí realmente é que entra o risco. M: Mas eu concordo. Eu me vejo completamente dentro do grupo de risco. E: Você se vê? M: Agora, eu não faria um teste de AIDS. E: Você não se vê como uma pessoa de risco, não é, M? M: Nlio pela minha conduta sexual. E: Algum dia dentro dessas transações que você teve sexo anal, alguém já gozou dentro de você sem camisinha? M:Não.

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E: Não? Você sempre 11ansa com camisinha? M : Sempre que possível. E: Sempre que possível? Por quê? M: Quando não é poss(vel eu procuro não Jazer sexo com penetração. E: Alguém goza na sua boca ou já gozou na sua boca nesse período? M:Não.

Caso 12 - N, 22 anos. Trabalha no setor de serviços. À noite é travesti. Diz que sua prática preferida é a felação; gosta de chupar e ser chupado. Também teve várias relações com mulheres, inclusive a cunhada. Sobre a prática preventiva, diz: E: O que mudou, depois da AIDS?

N: É sobre a freqüência? E: Sobre tudo. Você continua fazendo o que fazia antes'! N: Eu diminuí, só isso. E: Não parou de fazer aJguma coisa? N: Mas... ollul. eu fumo ainda, não diminuí a maconha. Eu cheiro aindi:l, não diminui a cocafna... Mas o resto eu não mudei nadi:l. A minlul vida sexual continua a mesma. Continuo dormindo a mesma quantidade que dormia antes; comendo a mesma comida... de resto nada. E: Você já pensa em fazer um teste de AIDS? N: Não! Já!... mas tirei isso da cabeça. Não penso emjàzer teste nenhum! E: Você conhece alguém que esteja com AIDS? N: Não! Deixa eu ver... Conheci, mas já morreram. E : Como é que você vê essa coisa de sexo e AIDS? N: Eu vejo, como? E: O que é a AIDS para você? N: Uma coisa muito potmcial... capaz de destruir sua vidrL .. e que é transmitida facilmente ... Camisiflha é perigosa, pode arrebentar... O uso de drogas pode tirar sua energia... E: Ultimamente, onde você tem ido buscar seus parceiros sexuais? N: Em lugar nenhUm. E: E a história do Aterro? Você tem ido lá? [refere-se ao Aterro do Flamengo1 N: Esse tipo de parceiro eu tenho sempre que vou ao Aterro ... esse tipo de parceiro promíscuo. Eu sempre vou no Aterro goz;ar na boca deles, que eu não vou tirar... não vou gozar fora ... nél já que eles estão ali, correndo o risco, chupando um e outro ... Não há porque se preocupar de gozar ou não na boca dele. E: Você não vê risco ni sso, para você? N: Não, não vejo riscos. E: Vê riscos prá eles? N: Vejo.


O homocrotismo diante da AIDS

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E: E você fica com vontade de chupar alguém'! N: Fico! E: Mas não chupa? N: Não, no Aterro, não! E: E fora do Aterro? N : Não! E: Porquê? N: Porque nunca dá pra mim ... E: Porquê? N: Porque não tenho oportunidade! E: Qual foi a tíltima vez que você deu? N: Foi ... foi há tr2s anos. E: Quem foi , a última vez? N: A última vez foi um cara de Y [cita um e.~tado do sul]. E: Ele gozou dentro de você? N: Gozou dentro de mim e fUl minha boca, ele era muito viajado... já teve na Nova Zeldndill ...

Os exemplos poderiam multiplicar-se sem acrescentar grande coisa à compreensão desse gênero idiossincrático de respostas ao risco de infecção. Como é visível, os indivíduos decidem se devem ou não correr o risco de infectar-se em função das mais variadas razões. Algumas observações, no entanto, poderiam ser feitas sobre a relação entre os modelos de "identidade homossexual" assumidos pelos sujeitos e as práticas preventivas. Em primeiro lugar, todos os indivíduos desse grupo manifestavam, de uma ou de outra fonna, a força da interiorização do código sexual dominante, traduzida em fenômenos como: • vergonha e menosprezo pela expressão pública da "identidade homossexual" em si, como nos casos 2, 3, 4, 5; • vergonha ou menosprezo pelas práticas sexuais supostamente tfpicas do estilo de vida "homossexual", como relações anais (caso l); relações "promíscuas ou animais" com parceiros anônimos (casos 4, 8, 11, 12); • idealização da parceria conjugal heterossexual, baseada no amor romântico, como nos casos I, 2, 3, 4, 5, 6, 8, 9, lO, li; • uso preconceituoso do vocabulário chuto para designar "os homossexuais", em ocasiões de desentendimentos amorosos com parceiros ou adversário~ sentimentais, como nos casos 3, 6; • preferência por parceiros viris, másculos e não efeminados, como nos casos

1. 2,4, 8.

Em segundo lugar, a submissão à hierarquia moral dominada pela norma heterossexual é compensada por uma espécie de rebeldia anárquica contra


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o código ou, ao contrário, pela introjeção paroxística do modelo identificatório estereotipado, do que deve ser o. "casal "homossexual". São os aspectos que nos parecem , de longe, os mais interessantes no que diz respeito às atitudes face à prevenção. Expliquemos melhor, com a ajuda dos casos exemplares, o que foi dito. Ao contrário dos dois primeiros tipos de identidade homoerótica, a "identidade gay" e a "identidade oitoccntista", esse último tipo parece não dispor de modelos identitários coercitivos o bastante para integrá-lo numa ordem de condutas previsível, face ao risco da AIDS. Presos às injunções plurais da linguagem do erotismo moderno, oscilam entre a admissão do direito à expressão do homocrotismo e a condenação médica, psicológica, religiosa ou moral desse mesmo homoerotismo. A saída dá-se, então, por . formações de compromisso dependentes da história psíquica de cada um. No caso 1, o indivíduo aposta em sua timidez e no conhecimento do parceiro como critério para a boa atitude preventiva. Este parece-nos um caso típico em que o investimento imaginário em qualidades morais socialmente aprovadas fornece a medida da boa conduta sexual. A timidez ou o pudor são tidos por A como atributos que lhe permitem avaliar corretamente quem é o parceiro com o qual vai relacionar-se. Observe-se que, nesse caso, a linha de conduta deriva das regras do imaginário erótico construídas pelo amor romântico, onde as supostas características femininas da timidez e da reserva fariam com que a mulher acabasse acertando na escolha de seu parceiro homem. A timidez, para A, é uma espécie de faro espiritual que lhe permitiria descartar os "promíscuos" c dirigir-se para os parceiros sem riscos. Por outro lado, a mesma linguagem do amor romântico faz com que A assuma, previamente, a convicção de que seu tipo de escolha tenha a necessária contrapartida, na consideração do outro por ele. Ou seja, ele, A, que é tímido, vai ser respeitado em seus escrúpulos pelo parceiro, que julga conhecer exclusivamente pela confiança com a qual, gratuitamente, o investe. Obviamente, não pretendo dizer que não possa haver relação de mútuo respeito e confiança entre parceiros homoeróticos. Chamo a atenção para o fato de que A, em nenhum momento, disse ou soube dizer o que significava "conhecer profundamente" seu parceiro. Tudo o que.é possível extrair de seu discurso é que ele, provavelmente, confia no parceiro, quando acredita estar diante de um outro "tímido" como ele. Só que, no caso, o "tímido", por timidez, pode perfeitamente ocultar de A que manteve relações de risco, hipótese plausível e de acordo com achados da pesquisa.


O homoerotismo diante da AIDS

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No caso 2, B assume posições semelhantes. Ao lado da flagrante desinformação a respeito do que são sinais de saúde ou doença, em caso de AIDS, B também acha, de modo algo similar, que evitando o "descaradão", o tipo "cheguei", todo "agitadão", e apostando no fato de que o parceiro gosta dele e sabe que "ele não tem nada" lnão é portador do HJV, nem da síndrome da AIDS], está livre do risco de contágio. A e B, dessa forma, constroem uma "teoria" sobre a transmissão do HIV e dos riscos de infecção, exclusivamente baseada no ideal de realização amorosa, que conciliaria a satisfação homoerótica e o preconceito contra o homoerotismo. Ambos acreditam que basta gostar e confiar, no sentido do código do amor romântico e da parceria conjugal heterossexual, para que a prática sexual esteja isenta de riscos. O que ambos esquecem ou "desconhecem" é que essa imagem do amor romântico, matriz de suas crenças, é uma pura idealização das relações amorosas posta a serviço das ideologias famílialistas do século XIX. O que ambos parecem ignorar é q ue os casos-modelo de relação heterossexu al conjugal nunca foram uma realidade para a maioria dos homens e mulheres . Desde que foi culturalmente inventado, o casal heterossexual é fonnado por indivíduos que, humanamente, pelos mais diversos motivos. ocultam dos respectivos parceiros sentimentos. condutas e pensamentos que traem a imagem idealizada do que deveriam ser a franqueza e a confiança mútua, que pretensamente marcariam a ética conjugal. Aliás, tal afirmação é referendada peJa própria atitude de B que, sem se dar conta, nega que o simples gostar ou res peitar seja motivo suficiente para não "enganar" o parceiro, quando se trata de revelar a "verdade", em matéria de sexo. Escondendo da esposa, de quem diz gostar, as relações homoeróticas que mantém regularmente, B mostra toda a extensão do risco que corre atribuindo ao "gostar" de seu parceiro a função de poupá-lo do risco de infecção. No caso 8, pelo contrário, vemos como a mesma submissão ao código heterossexual hegemônico previne, com bastante probabilidade, o perigo do contágio. H vive com seu parceiro uma relação em tudo semelhante à relação de casal heterossexual, conforme o imaginário sexual conjugal. Identifica-se q uase ponto por ponto com a figura da mulher frágil , que é amada e protegida pelo homem mais forte. Curiosamente, como os modelos identificatórios são claros, embora inconscientes, o parceiro protetor parece, de fato, assumir a responsabilidade pela proteção de H. Esse caso ilustra uma das figuras típicas criadas pelo imaginário social para descrever o que seria a "personalidade do homossexual". H é uma caricatura do "feminino"; uma encarnação do que os sexologistas alemães chamaram


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no século XIX "sensibilidade sexual contrária" ou "alma de mulher, num corpo de homem". No entanto, como podemos notar pela análise dos casos, H representa apenas u ma possibilidade, entre outras, que têm certos homens homoeroticamcnte inclinados de estabilizar suas "identidades homossexuais". Sua trajetória sexual levou-o a identificar-se com a imagem egonarcísica, onde a satisfação erótica passa pela sujeição ao parceiro forte e protetor e pela aspiração à fidelidade na parceria. Por assumir esse modelo identitário, H está relativamente protegido do risco de contágio, pelo menos enquanto o modelo não for abalado em suas bases identificatórias. Mas essa eficácia é aleatória e instável. H não dispõe de critérios próprios para avaliar os riscos da AIDS . Ou melhor, seus critérios são os critérios do parceiro que, por seu turno, parece decidir o que é ou não . sexualmente arriscado em funções de regras privadas, sem aval ao reforço da discussão pública dessas regras. Para H , seu escudo é seu parceiro. Nele está depositado o saber sobre os riscos de infecção e o que fazer para evitá-la. Novamente, aqui, vemos o quanto é lábil a privatização moral das respostas dadas à AIDS. H não possui outro motivo para evitar o contágio, salvo os conselhos do parceiro, ou seja a idealização da palavra do outro. Sua "homossexualidade" ou sua "condição homossexual" imaginária, pelo fato de ser exclusivamente ditada pela norma heterossexual, retira-lhe qualquer possibilidade de pensar autonomamente sobre a questão do homoerotismo diante da AIDS . É uma "homossexualidade não problemática", liberada de conflitos conscientes mas, por isso mesmo, sujeita à ilusória proteção onipotente oferecida pelo parceiro. H vive uma "inocência homossexual" da qual pode ser vítima e que pode vitimar muitos outros. Seu caso é um caso extremo de "alienação do pensamento" em troca da idealização do outro ou, o que dá no mesmo, de anulação da individualidade pela formação de uma subjetividade dependente do preconceito. H só desej a aquilo que o preconceito prescreve, e não duvida de que seu padrão de experiência bomoerótica possa alterar-se e vir a obrigá! o a buscar outros modelos de "identidade homossexual", onde possa dispensar o concurso da palavra onipotente do outro. Ao lado desses tipos mais adaptados ou mais conformistas em relação à moral sexual dominante, temos os tipos que chamaríamos de mais rebeldes ou transgressores. Rebeldes e transgressores porque, ao mesmo tempo em que aceitam a norma sexual hegemônica., sentem-se compelidos a infringi-la, voltando contra ela uma outra injunção da ideologia sexual moderna, qual seja, a de que todos têm direito à auto-realização erótica.


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Nos casos 3, 4, 9 e 12, por motivos um pouco diversos, vemos esse tipo de conduta exprimir-se. No caso 3, C diz: "É como eu te disse, um mês e meio, dois meses sem transar, aí o corpo não agüenta va mais, eu ia transar de novo." No caso 4, D diz que está disposto a sacrificar as mcdidao; de prevenção, caso isso implique na possibilidade de encontrar um parceiro que satisfaça suas expectativas de relação amoros&, sexual e afetiva. D diz: "eu deveria nunca terfeito, mas eu acho que tipo assim... a gente não pode se privar tanto de sexo, a gente vai morrer neurótico... " No caso 12, N diz: "A minha vida sexual rdepois da AIDS] continua a mesma... Não penso em fazer teste nenhum. Esse tipo de parceiro ... eu tenho sempre que vou ao Aterro... esse tipo de parceiro promíscuo. Eu sempre vou ao Aterro gozar na boca deles, que eu não vou tirar... não vou gozar fora ... né! já que eles estão ali, correndo o risco, chupando um e outro ... Não há porque se preocupar de gozar ou não na boca dele!" Cada um dos sujeitos, a seu modo, justifica o risco corrido em função de diversos motivos. C eJ alegam ceder às demandas do corpo ou à tensão psíquica resultantes da privação sexual ; D afirma não poder suportar o estado de privação afetiva e o isolamento emocional decorrentes da vida clandestina que leva: N. finalmente, apóia sua atitude no mais explícito preconceito, considerando que os promíscuos não merecem ser poupados do risco de infecção. Naturalmente, pode-se dizer que todas essas condutas nada mais são que formas de passagem a ato, de irrupções da fantasia sexual de cada um, que. rompendo com o recalque, mostram a dinâmica da transgressão. A explicação, corrente em boa parte da literatura psicanalítica, pareceme insuficiente ou desinteressante, por duas principais razões. Em primeiro lugar, porque recorre à forma estereotipada e equivocada de pensar que todo "homossexualismo" é uma expressão particular da perversão. No trabalho sobre ética conjugal, neste volume, discutimos, com detalhes, a inconsistência do argumento. No momento, basta recordar que o ponto de partida dessa concepção é o de que existe ''uma homossexualidade' ', idéia que nos parece inaceitável pelas razões já dadas. Em segundo lugar, porque sugere que a força da moção pulsional ou da fantasia sexual inconsciente, por si só, justifica a passagem ao ato. Ora, a afirmação é plausível mas trivial. A "força da sexualidade" também está presente nos indivíduos que estabilizaram suas identidades homoeróticas segundo os modelos gay ou oitocentista sem que isso os conduzisse a passagens ao ato do mesmo gênero. Mais importante em nossa opinião é observar o que pode fazer com que impulsos sexuais semelhantes tenham destinos diversos. Pensa-


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mos que a diferença reside não apenas na história libidinal de cada indivíduo, o que é evidente, mas na presença ou ausência de modelos ideais de estruturação subjetiva que permitam ou não redimensionar a frustração imposta à sexualidade homoerótica pela ameaça da AIDS. O que se nota, nesses casos, é que os sujeitos foram incapazes de interiorizar ideais de eu comuns a outros sujeitos. Isso, à primeira vista, pode parecer banal, mas é decisivo quando se trata da prevenção. C e J, por exemplo, funcionam segundo uma economia de realização narcísica onde a suposta " necessidade do corpo" tem que ser atendida, sob pena de gerar grandes conflitos psíquicos. Mas a fantasia de que o corpo possui autonomia em suas demandas de satisfação sexual não é um dado natural que, compulsoriamente, obrigue o sujeito a ceder diante daquelas reivindicações. Fantasiar que o corpo tem "direitos" de exprimir suas "necessidades", à revelia das outras demandas emocionais, como a aprovação moral do social ou a injunção de que viver é melhor que morrer, aponta para um modo particular da dinâmica psíquica e não para uma condição genérica de todo ser humano, ainda menos de "todo homossexual". Nessa fantasia, o que emerge, por um lado, são as regras do imaginário sexual moderno e, por outro, uma forma particular de estabilização da "identidade homossexual". As regras da moderna sexualidade são aquelas que dizem que a auto-realização erótica é condição sine qua non da busca da felicidade individual, o que mostra o enorme peso dado à vida privada e à sexualidade na cultura do i otimismo ou do narcisismo, como propôs Lasch (1979). A forma de estabilização da "identidade homossexual", por sua vez, é aquela onde a faceta identitária do sujeito adscrita à esfera da sexualidade torna-se a principal moeda no comércio narcísico com os outros. Como vimos, no caso do "homossexual oitocentista", esses elementos, em absoluto, têm a mesma relevância. Aqueles sujeitos, não obstante a inclinação homoerótica, são perfeitamente aptos a conter as "demandas do corpo", sem criar conflitos graves para suas economias psíquicas. De forma idêntica, no modelo de identidade gay, vemos que a mesma adesão aos princípios de auto-realização sexual e valorização do ângulo homoerótico da identidade pessoal não conduz necessariamente os sujeitos a tomarem atitudes diante da AIDS que representem risco de infecção para eles e para os outros. A diferença está, repetimos, na posse ou não de ideais de eu coletivos, que dão suporte ao remanejamento das práticas sexuais e orientam os sujeitos no sentido de exercitarem outras formas de satisfação erótica, reunidas na rubrica do "sexo seguro" ou "sexo sem risco". Quando


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impossibilitados de construir tais ideais para si, eles permanecem entregues ou às injunções das ideologias sexuais modernas ou às aspirações sexuais próprias às suas histórias pessoais, que, no mais das vezes , são incapazes de fornecer-lhes ideais de conduta compatíveis com a prevenção eficiente da infecção. No caso 4, os móveis da imprevidência de D, são diferentes. D diz preferir correr o risco d e infectar-se a permanecer privado de relações afetivas estáveis e satisfatórias. Como a maioria de todos os indivíduos no Ocidente, ele está convertido à crença de que, fora da parceria romântica, não existe possibilidade de felicidade individual. Mais ainda. é incapaz de, face ao conflito com o homoerotismo, adotar o modelo gay de identidade ou o modelo oitocentísta. Sente-se um heterossexual em tudo, exceto na preferência amorosa e sexual por homens. Donde o dilema, cuja saída parece ser a de desafiar um dos pilares do credo moral de sua cultura, aquele que afirma ser a vida um bem em si. D reage inconscientemente à privação afetiva, recusando as bases da "moral sexual civilizada", como disse Freud. Já que o preconceito o impede de buscar a felicidade individual, condicionada, no seu caso, à realização homoerótica, ele também recusa obedecer ou propõe-se a desprezar a crença fundamental no direito à vida. O caso é exemplar, não somente porque ajuda a desfazer o clichê representado pela idéia de "perversão homossexual" como uma espécie de disposição perversa do suj eito e seu desejo para transgredir uma suposta norma universal da "verdadeira lei do desejo"; é um caso onde também fica evidente que o simples risco da morte não é motivo suficiente para induzir os indivíduos a se prevenirem contra o risco da AIDS. Ele mostra que o ideário moral, que fundamenta o vocabulário do erotismo moderno, pode entrar em colapso, quando um dos termos entra em contradição com algum outro. Afirmar que o direito à vida e à liberdade são valores significa atrelá-los ao direito à busca da felicidade individual. Portanto, no momento em que o último termo do credo passa a girar no vazio, os anteriores perdem o sentido. O que O pergunta, consciente e inconscientemente, se nos permitem o uso heterodoxo da expressão, é que sentido tem a vida ou a liberdade, se o corolário da felicidade sentimental do amor romântico lhe é vedado! De novo, advirto, todas essas afínnaçõcs podem ter uma sonoridade "acaciana". Mas, curiosamente, tal sonoridade parece ser esquecida, não só pelo preconceito, mas por seus eventuais analistas. O caso de N é mais um caso onde a regra parece funcionar. N é um travesti que aparentemente,


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a partir do que afirma sobre o homoerotismo, parece ter conseguido libertar-se do preconceito sexual de nossa cultura. Contudo, ao dizer que os sujeitos "promíscuos" que encontra no Aterro não merecem nenhum respeito por suas vidas. simplesmente repete, em outro tom, os mais virulentos ataques que o preconceito social já pôde dirigir contra o homoerotismo. N diz, para quem quiser ouvir, que a vida dos "promíscuos" é uma forma de vida que pode ser exterminada. Tal hostilidade só pode ser entendida quando supomos que ela é absolutamente inconsciente. É provável que, dado o estatuto reservado à figura do travesti em nossa cultura; dado ao fato de N saber e dizer que habitualmente é procurado por sujeitos que se acham "heterossexuais" e que raramente lhe dão chances de ser ativo na felação, já que insistem em chupá-lo, pois bem, é provável que, ·diante de todas essas imagens contraditórias com a "aparência lógica" do preconceito, N sinta-se psiquicamente desorientado e alimente um ressentimento e um ódio ao ideário moral de nossas leis ideais, traduzidos na agressão e desrespeito à vida dos mais frágeis. N, inconscientemente, estabelece uma hierarquia moral na qual se ressarce da possível humilhação sentida e onde elege como adversário o inferior "promíscuo", a quem pode atacar impunemente. Essa dinâmica psíquica, nascida das antinomias da linguagem do erotismo moderno, mostra como a "privatização moral" das condutas e valores homoeróticos contrapõe-se ao ideal da prevenção contra a AIDS, através da pura distribuição de informações intelectuais sobre a natureza da síndromc. Um outro exemplo avaliza, a nosso ver, essa opinião. Consideremos os casos de C, J, eM. Todos eles dizem que são incapazes de controlar os impulsos homoeróticos. Entretanto, como conhecem os riscos da prática sexual sem precaução, apóiam-se na capacidade imaginária de controlar racionalmente as etapas da excitação sexual c do orgasmo. Por um lado, confessam que são obrigados a ceder diante das pressões do corpo ; por outro, dão-se a ilusão de que são mestres dessas mesmas reivindicações da sexualidade. Narcisicarnente humilhados diante de um corpo, cuja satisfação sexual apresenta-se como precondição da felicidade individual, esses sujeitos imaginam que, no momento mesmo da satisfação, podem retomar a posse e o controle do funcionamento corpóreo e fazer da "prova de risco" um ritual permanente de reafirmação de autonomia de suas identidades egóicas. Como estes, outros casos poderiam ser descritos como exemplos da "privatização moral" das respostas à AIDS. Em todos eles o comum é a absoluta imprevisibilidade da avaliação feita sobre o que é mais ou menos


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arriscado no que concerne à exposição ao vírus. Dito de outra maneira mas com a mesma importância, a privatização moral das respostas à AIDS depende de como cada um julga o valor da vida, da morte e da felicidade individual, julgamento determinado pela posição fantasmática de cada um no código moral do preconceito.

Conclusão Diante do que foi exposto, concluímos: • A questão do "homossexualismo" diante do imaginário social construído em tomo da AIDS é uma questão equivocada, pela simples razão de que não existe tal coisa como um "homossexualismo" comum a todos os que se identificam ou se auto-rotulam de "homossexuais". • Dentre os chamados grupos dos "homossexuais", apenas dois tipos no universo pesquisado possuem regras de formação de "identidade homossexual" que, por suas características, ajudam os sujeitos a lutar eficazmente contra o risco da infecção. Esses tipos são ilustrados pelos modelos de "identidade gaj' e pelo modelo oitocentista, que assim denominamos por apresentarem atributos que consistem em valorizar os ideais de constância, equilíbrio e controle das moções sexuais, com vistas à identificação com os modelos de masculinidade socialmente aprovados. • Os dois grupos na amostra estudada eram minoritários. A maioria dos sujeitos pertencia ao tipo idiossincrático, cuja conduta diante da AIDS era movida pelo que chamamos "privatização moral" das respostas aos riscos da infecção. Esse grupo, dadas as características que lhe são peculiares, mostra-se particularmente vulnerável à infecção. • Em todos os grupos estudados percebemos que a eficácia da informação intelectual recebida sobre a natureza da AIDS e os riscos de contágio dependiam de fatores outros que não o teor cognitivo da informação. A motivação para prevenir-se contra a infecção, ou seja, o apreço pela vida, sua e dos outros, dependia, em grande medida, do valor que os sujeitos atribuíam aos ideais morais sociais, à imagem de si mesmo ou à imagem da felicidade individual que cada um tinha. • Finalmente, achamos que a questão das informações sobre a prevenção, dirigida ao grupo dos chamados homossexuais, não só deve continuar sendo feita e melhorada, como deve articular-se, na medida do possível, com o combate ao preconceito. Do nosso ponto de vista, quanto mais os indivíduos


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têm condições .de discutir publicamente o problema do homoerotismo, mais têm condições de optar por regras claras de definição da "identidade homoerótica" e mais encontram suportes, nessas regras, para aceitar as limitações da vida sexual impostas pela AIDS. Sem a posse dessas regras, as decisões diante do risco de infecção são orientadas por fatores que dependem exclusivamente de cada sujeito, c, por conseguinte, nem sempre correspondem às atitudes de precaução que beneficiam a coletividade. BmLIOGRAFIA AULAGNIER, Piera, "A ti liação persecutória", in Tempo Psicanalítico. Rio, I. M.P ., vol. III, n° 1, 1980; pp. 15-25.

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masculmo, emprega (/) lir ao 1480911 que clzamam~~de ' 't t ÚIIIU.J.lC, II.U.W .>IIlll IIU lfflgua corrente. A escolha é justificada tt.•rmcamt:nte porque, como entende o aurm; "homossexua!tdade" ou ''homossc:xualúmo" são palafiTas que remetem ao vocabuldrio do .rc.iulo XIX, e repeti-las hoje sigm/ú."ll tYmtiml(lr pensando, falando e agindo emocionalmmft' com a crença de que existem uma se~7ttt!itlrtdt· t' um tipo humanos "homossexuais'', tiulc1Jc'llllmtt!.f do hábito 1/ngüfstico que os núm. Para examinar a construção historim dt1 Ai:um do "homossexual", o autor percorre''·' o(m1.r de· Gtde, Proust, Baltac, Wrlde e OllfnJ.I c'll 't/tm~ ·J do século XIX, periodo em que se· jíimou no imaginário social a noção de· 1111ut "personalrdade" ou "perfil psico!dgtm "mmum t i "todos os homossexuais", tal como t~~iulu ,,. acredita hoje em dtit. Relacionando o seu estudo com t1 tfUI'''''" da AIDS, }urandir Freire Costa condm t/lfl' ,, 171'1/ftl na existência de uma ''se~ta!itladt · llflmo"I'Wtt!" condtdona negativamentc· t1 rt'l/lfllftltflfc' t J.r SUjeitOS lzomoerotfcamente indiÍirltflll t ftltl riO 11:\tYI de infecção pelo t'm'' ///1 ·

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