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ORGANICISMO, DSM E CONTEMPORANEIDADE: CONTINUIDADES E NOVIDADES
CAPÍTULO 2
ORGANICISMO, DSM E CONTEMPORANEIDADE CONTINUIDADES E NOVIDADES
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Alexandre Simões
O ORGANICISMO E O OLHAR
Há um Organicismo presente e vigente no campo psíquico em nossa atualidade, que tende a se imiscuir na prática e junto ao entendimento de diversos profissionais que aí se encontram, quanto mais ele se propõe como uma genuína eminência parda: sempre por ali, sub-repticiamente, nas sombras das coxias dos cenários epistemológicos. Discreto em suas manifestações, todavia, hegemônico em suas incidências. Neste contexto, por Organicismo devemos considerar a tendência a se localizar (ou, sobretudo, subtender) um substrato material discernível, coincidente com uma localização anatômica (em última instância, cerebral) ou com um percurso sináptico (cuidadosamente, uma rede sináptica), substrato este que daria razão e consistência ao pathos: aquilo que patologiza, aquilo que, sendo marcado pelo excesso, se configura e se expressa como mal-estar.
Um Organicismo, pois, que preencheria, sem deixar frestas, o lugar de inexorável causa, acompanhada de estatísticas, dados epidemiológicos, índices de prevalência, em suma, evidências (científicas). Sinteticamente, o ponto nevrálgico da argumentação organicista e a ressonância de seus ditos é a expectativa quanto a um corpo elucidado, sem zonas de penumbra, sem dimensões opacas,
por fim, sem silhuetas barrocas. Este corpo elucidado, por sua vez, daria aval às mais diversas práticas declaradamente instrumentais que têm em comum um mesmo e só ideal: modular o comportamento pela dissipação do sintoma.
Todavia, este parti pris não é algo inteiramente novo no campo da subjetividade. Nota-se que ele vem funcionando, sem maiores subterfúgios, como uma marca discursiva e operativa de diversos saberes (Psiquiatria, Neuropsicologia, Neurociências, Adjacências Comportamentais, etc.) que aspiram a um certo protagonismo instrumental na cena contemporânea. Há aqui um detalhe que está longe de ser acessório, pois é a turbina constante da lógica organicista: tal qual um par-perfeito, ela haveria de ser chancelada pela Ciência. Mais precisamente: ela haveria de ser chancelada por uma operação que é fundante da Ciência, como ainda sublinharemos. Por conseguinte, o Organicismo tende a se mostrar como a imposição de uma evidência (que se pretende científica) e a evidência de uma imposição: não a do saber, mas a da verdade. E esta verdade faz laço com o mercado, na medida em que ela freneticamente produz circuitos de demandas: demanda de saber, demanda de intervir (e dominar), demanda de consumir, demanda de aquiescer, demanda de extinguir. Dos neurônios ao mindfulness: eis aqui o novo abracadabra estrategicamente disposto nas prateleiras e sob os holofotes editoriais à espera do sujeito suturado. Circuitos de demandas: especialmente aquelas onipresentes em dois acontecimentos contemporâneos que mutuamente se nutrem em seu mutualismo constante: de um lado, a psicopatologização da subjetividade (não deixando nem mesmo fora de seu radar a dimensão da falta e da perda, materializada no luto e em seus congêneres) e, na outra ponta do círculo que se fecha, a medicalização do mal-estar (a começar pela infância, turbinando a sutil fidelização dos pacientes ad infinitum).
Sendo assim, para a devida localização dos multifacetados vínculos que se instalam entre o organismo, o corpo e a subjetividade, partamos de algumas balizas históricas reveladoras de uma estrutura que retorna em nosso laço social. É notório como que a tendência à categorização de quadros clínicos, a subsequente demarcação de diagnósticos em nichos específicos e a delimitação de entidades mórbidas em estruturas segmentadas são empenhos que explicitam o modus operandi do Saber Psiquiátrico e a instrumentalização atual do mesmo no meio social, ou seja, a Psicopatologia Contemporânea.
Verificamos aqui o âmago da lógica de uma insistente Razão Taxonômica que funciona quanto mais ela delimita, sem querer deixar nada de fora, o seu objeto por meio de segmentações sucessivas, almejando uma espécie de unidade em meio à proliferação de um encadeamento de divisões contínuas e cada vez
mais detalhadas: os códigos diagnósticos. Esta presumida unidade encontra-se, entre nós, veiculada pela onipresença do “transtorno” (disorder) que, bem sabemos, é a palavra de ordem da Psicopatologia Contemporânea, orquestrada pela linhagem do DSM: Manual diagnóstico e estatístico de transtornos mentais.
Esta referida tendência de uma Psicopatologia na atualidade, caso possamos ampliar o alcance histórico de nossa reflexão, nos conduzirá, no mínimo, à verve inicial de Linnaeus (1707-1778) e a seu expansível método de divisão e denominação. Esta forma de operar sobre o vivente (e mais do que isto: sobre o real) foi sendo cada vez mais anabolizada por saberes já vigentes na Botânica, na Química e na Zoologia na primeira metade do século XVIII, até ser irreversivelmente explicitada por Philippe Pinel (1745-1826), poucas décadas após, no âmbito da Psiquiatria. Pinel foi o importador destas segmentações exponenciais para um campo que nos é próximo, levando adiante os efeitos da Ciência sobre a loucura. O alienista, aplicador metódico deste viés taxonômico, intentou não só organizar, mas, sobretudo, transmitir o desvelamento de algo até então oculto: o deslocamento da loucura em doença mental.
Esta transmutação axial funcionou como a pedra filosofal da Psiquiatria de outrora e dos tempos atuais. Sabemos que esta específica transmutação da loucura à condição de doença mental foi (e ainda é) de longo alcance. Ela gerou efeitos não somente epistemológicos e morais, como são usualmente ressaltados, mas comportou um fino efeito sobre algo mais sutil e de longa envergadura que, ao não ser devidamente salientada, deixa desapercebido o essencial: o efeito sobre o campo escópico.
A transmutação há pouco apontada gerou uma crucial reconfiguração sobre o olhar. Mas, notemos que esta transmutação é difícil de ser enxergada pois ela é reguladora do próprio campo escópico. Ao invés de se dar a ver como um objeto comum, ela instaura o possível e o desejável de se ver, oferecendo, portanto, visibilidade e invisibilidade a uma série de fenômenos. Em outras palavras, a transmutação da loucura em doença mental não deixará de acarretar consequências sobre aquilo que se supõe ser visto, ser procurado (que o inglês looking for tão bem expõe) no próprio sintoma. Podemos, inclusive, afirmar que o primeiro sinal deste rearranjo do olhar se concretizou em uma demanda de olhar, com toda a precisa ambiguidade que esta expressão acarreta: demanda de ver algo e demanda de que algo veja.
Testemunha desta demanda de olhar que recai sobre a junção da loucura com a doença e, por extensão, com o corpo é o recente trabalho de Gorges Didi-Huberman, Invenção da histeria: Charcot e a iconografia fotográfica da
Salpêtrière, que se concentra sobre um pathos muito específico que vem a ser a histeria, mas que é emblemático quanto ao liame entre o óptico e o sofrimento:
Uma relação de desejo, olhares e saberes. (...) Está tudo ali: poses, crises, gritos, ‘atitudes passionais’, o ‘crucificações’, ‘êxtases’, todas as posturas do delírio. Tudo parece estar presente, pois a situação fotográfica cristalizava idealmente a ligação entre a fantasia histérica e uma fantasia do saber(DIDI-HUBERMAN, 2015, p. 15).
Por fim: “Caso e quadro culminam na observação, no ato de vigilância - o grande gênero psiquiátrico” (DIDI-HUBERMAN, 2015, p. 48).
Passagem da loucura à doença mental: síncrona a um modo outro de ver e de expor a dimensão do sofrimento. Essa passagem não deixaria também de repercutir sobre o Imaginário doravante associado à experiência da loucura. Por meio desse gesto alquímico, Pinel deixou sua marca sobre todos nós, uma vez que seu ato gerou energia para a movimentação das engrenagens da Medicina Mental e, assim, selou a configuração da loucura (em suas mais distintas manifestações) como doença mental (FACCHINETTI, 2008). Esta modalidade de razão, como bem se nota, não foi sem consequências para o laço-social:
A loucura torna-se verdade médica. Cria-se uma clínica das enfermidades mentais e uma concepção de terapêutica: o louco, como qualquer doente, necessita de cuidados, de apoio e de remédios. Cria-se um corpo de conceitos, a teoria psiquiátrica, que instrumentalizariam esta prática clínica. O asilo é criado, aparecendo como figura histórica, tornando-se o lugar adequado para a realização desta cura (BIRMAN,1978, p. 2).
Tal tendência, sob os auspícios da atmosfera Iluminista, foi rapidamente elevada à categoria de uma Revolução Metodológica (este acoplamento entre saber e técnica), materializada na obra desbravadora do alienista francês: Tratado médico-filosófico sobre a alienação mental ou a mania. Por este viés, o que daria sustentação ao saber psicopatológico, dali em diante, haveria de ser um fino conjunto de descrições precisas das mais diferentes formas clínicas que se manifestavam no campo da experiência ótica e cotidiana da saúde mental: seus traços, os agrupamentos destes, suas fronteiras e exclusões recíprocas, etc. Esta genuína cartografia do excesso ia se impondo ao olhar atento e rigoroso do alienista, sempre acompanhada por um criterioso e robusto esforço de delimitação das espécies semiológicas típicas e, por fim, a sua classificação (PINEL, 2007):
Uma ética do ver. Isto é chamado, inicialmente, de olhadela, relance de olhos, e também é da alçada da ‘bela sensibilidade’ com que se identifica o olhar clínico; é um ‘exercício dos sentidos’ - um exercício, uma passagem, ao ato
do ver: olhadela, diagnóstico, tratamento, prognóstico. A olhadela clínica, portanto, já é um contato, ao mesmo tempo ideal e percuciente; é uma flechada que vai direto ao corpo do doente, quase o apalpa. (DIDI-HUBERMAN, 2015, p. 50)
Como sublinhamos, trata-se aqui, por intermédio desta revolucionária psicopatologia, de um campo escópico em que tudo, no real, é posto às claras, é dado a ver. Não há como não perceber, neste fiat lux, a operação que Jacques Lacan intitula como “os efeitos da ciência no universo contemporâneo” (1998, 808). Eis, portanto, o sintoma apreendido naquilo que nele é essencialmente da ordem de uma superfície: sim, na classificação catalográfica, estamos imersos na superfície do sintoma. Em suma, estamos aqui confrontados a esta dimensão rasteira do sintoma que vai se oferecer ao olhar e, logo, à descrição de seus traços em minúcias (dando a entender, muito apressada e ingenuamente, que, pelo fato de se pôr a ver em um catálogo, em um quadro, tudo nele é transparente, tudo nele é visto): etiqueta do olhar.
A este olhar vigilante, não escapa a tentativa de também se discernir, em meio à classificação do pathos, os sinais precursores dos quadros clínicos, a própria eclosão, evolução e o possível desfecho das crises. Este agrupamento clínico, sempre vinculado ao manejo da experiência, funcionou (e ainda funciona, nos dias atuais) como uma matriz que foi desdobrada, sob ritmos distintos, nas mais diversas Escolas Psiquiátricas (Alemã, Inglesa, Suíça, Italiana, Norte-americana, etc.), ainda que viesse a passar por transformações e adaptações nestas outras instâncias. O cuidadoso trabalho de ZILBOORG e HENRY (1963) pode nos dar uma amostra, em escalas distintas, destes desdobramentos. Deixemos que o leitor, de maior fôlego, faça por si mesmo essa trilha. As palavras de ordem desse momento prototípico eram categorização, sistematização e terapeutização, com fins a regular a intervenção sobre os pacientes, mais precisamente, sobre aquilo que, neles, se impunha na condição de sintoma:
Entretanto, se este conhecimento antecipatório era colocado como fundamental, era necessário também que não fosse muito geral, mas que se tornasse preciso (...). Conhecimento empírico, não especulativo, sendo necessário que contenha em si a possibilidade de delimitar a história e o tratamento da doença mental. (...) Seria preciso a constituição de um saber sobre a cura, que a definisse pela designação de suas formas e de suas significações, sendo nesta perspectiva que este conhecimento prévio se pretendia antecipatório. (BIRMAN,1978, p. 43)
Vale notar, contudo, que o que ganhou ares de revolução metodológica, trazia consigo elementos de um tempo pretérito, pois desde os primeiros rudimentos
do pathos entre nós, no esplendor da Civilização Ocidental, nos deparamos com cartografias do sofrimento que já se coadunavam com uma expectativa nomotética, tão evidente na Psicopatologia Contemporânea. Por exemplo, as menções iniciais à melancolia e à paranoia, desde os gregos clássicos, já dão mostras deste empenho de delimitação e caracterização do quadro clínico como entidade mórbida, em constante flerte com a perspectiva ortodoxa de Paracelso, que considerava a entidade como a causa ou a coisa que tinha o poder de dirigir, causalmente, o corpo. Tradicionalmente, a expressão do sintoma sempre comporta um querer-tudo-elucidar quanto ao corpo.
Todavia, por mais que sempre as discussões relacionadas ao sofrimento humano fossem perpassadas por elucubrações sobre o corpo e, por conseguinte, seu vínculo com o organismo (esta dimensão visceral, carnal que o corpo envelopa e oculta de modo erógeno), não podemos deixar de apontar que um momento muito expressivo de selagem destes elementos se deu em uma via pós-pineliana com Wilhelm Griesinger (1817-1869), este personagem central na Psiquiatria Alemã (e em boa parte das outras tendências e Escolas presentes no campo da Psicopatologia). Ao ver de Bercherie, “(...) podemos considerar a psiquiatria alemã anterior a Griesinger como pré-pineliana: caberia a ele introduzir na Alemanha a tradição clínica propriamente dita, mas não sem tomar muitas coisas de empréstimo aos somatistas.” (BERCHERIE, 1995, p. 70)
Caso busquemos cotejar a trilha de Griesinger com a rota de Pinel e, por extensão, com a de Esquirol, é notável como o texto de Pinel, a despeito de seu empenho como observador meticuloso do campo clínico, ainda se restringia a uma estilística em boa parte mais afeita às searas literária e filosófica. Já a letra de Esquirol, eminente discípulo de Pinel, não lograva ultrapassar um compósito de artigos diversos (Bercherie, 1995). Diferentemente destes precursores, Griesinger introduziu o status sistematizador e taxonômico no campo da loucura, por meio de seu Tratado sobre patologia e terapêutica das doenças mentais (publicado em 1845 e tendo uma segunda edição, revisada, em 1861). A partir deste ponto (e pensemos, especialmente, nas repercussões que estes empreendimentos nos causam, ainda hoje), um roteiro se imporá para todas as posteriores obras e discussões relacionadas ao campo da Saúde Mental:
De fato, Griesinger apresentou-nos uma nosologia erigida sobre a ideia de evolução das formas clínicas (...) apresentou-nos um sistema completo, na linha dos debates de escola do começo do século na Alemanha, e bastante distanciado, em contrapartida, da prudência de Pinel e de Esquirol. Por outro lado, sua conceituação foi muito mais elaborada e penetrante. Essas características marcariam a psiquiatria alemã até nossos dias... (BERCHERIE, 1995, p.78)
O ponto axial do tratado de Griesinger encontra-se no parti pris que afirma - a título de verdade - que as doenças mentais são, em última instância, doenças cerebrais. Diferentemente dos alienistas anteriores que findavam por supor este aspecto, meio nebuloso ou tateante, sem excluir outras possibilidades, Griesinger assume o argumento sem tergiversar: o sujeito é o cérebro. Indo a Lacan, mais uma vez, obtemos uma síntese nevrálgica deste intento fundamentador: temos aqui um “psíquico que duplica o organismo” (LACAN,1998, p. 809).
Ao lado deste viés, Griesinger ainda sentencia que a Psiquiatria deveria necessariamente se distanciar (inclusive, se libertar) tanto das noções quantos dos modelos e ideais muito afeitos às ideias poéticas, filosóficas e morais, para, por meio desse alheamento, se impor como uma disciplina médica autônoma. Voltemos ao nosso discreto fio-condutor: o olhar e sua ética. Esta autonomia, frisemos, estaria autorizada pela noção de que o sintoma, o mal-estar que habita um paciente não seria opaco ou resistente a tudo mostrar, pois teria no organismo a sua relampejante clareza. Compreendemos que esta clareza (mesmo quando atrelada à expectativa de evolução contínua da Ciência, uma vez que se hoje ela não mostra tudo, um dia tudo elucidará) é convergente com a ilusão de “um sujeito consumado em sua identidade consigo mesmo” (LACAN, 1998, p. 812).
Em suma, há de se estabelecer aqui uma forma de redução, no sentido preciso que Lacan lhe dá, ao falar de uma típica operação em curso na Ciência: “É preciso uma certa redução, às vezes demorada para se efetuar, mas sempre decisiva no nascimento de uma ciência; redução que constitui propriamente seu objeto.” (LACAN, 1998, p. 869). Tal redução, classicamente, “negligencia o sujeito” (LACAN, idem, p. 885), dando-nos condição de sustentar a tese de um “sujeito abolido da ciência” (LACAN, idem, p. 813).
Portanto, temos aqui o órgão, o organismo funcionando como o alicerce (e a verdade) do sintomático que se apresenta na dimensão subjetiva. Estritamente, Griesinger foi o autor que sistematizou o ponto de partida daquilo que veio a ser reconhecido como a base primeira da Psiquiatria Biológica (SHORTER, 1997), ultrapassando e mudando qualitativamente todas as discussões anteriores, sejam estas amparadas nos estados dos humores, nas veredas da moral ou nos escalonamentos da disciplina e em todos os seus desvios.
A argumentação e os empenhos de Griesinger demarcam, no campo psicopatológico, um substrato mórbido fundamental que, em última instância, finda por autorizar uma espécie de reificação no campo psíquico. Mais do que isso, conduz a um funcionamento discursivo (se compreendermos por discurso não só um conjunto de enunciados e alocuções mas, sobretudo, os efeitos gerados
por eles, ou seja, aquilo que é posto em funcionamento), que coloca o corpo em uma ordem inteiramente apreensível e maquinal, não abrindo espaço para algo que lhe fosse insondável, opaco e heterogêneo ou que, do mesmo, escapasse. Em paralelo a Griesinger, não podemos deixar de mencionar a tendência que se deu na Psiquiatria Francesa, na mesma época, quanto a se considerar (em divergência com os passos inaugurais de Pinel e Esquirol) o acontecimento psíquico patológico como um efeito de lesões anatômicas ou biológicas de cunho cerebral. Lembremo-nos dos emblemáticos: em 1845, Morreau de Tours (1804-1884) vai afirmar que as diversas formas de loucura têm um substrato orgânico, ecoando o trabalho bem anterior, sustentado por Bayle, em 1822, acerca da Paralisia Geral Progressiva. Especialmente com Bayle o que foi mostrado à visão foi a inflamação crônica das meninges cerebrais (aracnoidite crônica). Logo, ofereceu-se um triunfo ao olhar, por meio da demarcação, da deterioração do tecido corpóreo, do objeto, da Coisa (PEREIRA, 2009).
Neste ponto, estamos imersos nos ideais essenciais do cientificismo de outrora, bem como de nossa atualidade. Certamente, é a uma operação desta ordem (e aos efeitos daí decorrentes) que podemos localizar com precisão a escuta lacaniana do marco fundante da Ciência, quando, em A ciência e a verdade (LACAN, 1998), ela nos leva a verificar a forclusão do sujeito pela Ciência (p. 889).
Para não cairmos em contraposições simplificadoras ou autoexcludentes, vale, neste ponto de nossa argumentação, retomar a trilha que Lacan nos indica quanto à relação entre sujeito e Ciência: a Ciência Moderna e o sujeito surgem de modo síncrono, de tal maneira que o passo inaugural da primeira configura a inscrição do segundo. Um não vai sem o outro, ad initio. Por intermédio do cogito cartesiano, Ciência e sujeito irão se articular, tal qual as abas de uma dobradiça. Esta coexistência, porém, comporta internamente uma oposição recíproca: ali onde vigora o discurso da ciência (organicismo, substrato material do pathos, psicopatologia contemporânea), o sujeito encontra-se enclausurado do lado de fora (RABINOVITCH, 2001).
Todavia, o sujeito se faz presente nas lacunas e interstícios desse discurso. Mais do que se fazer presente, o sujeito é, precisamente, o outro da “sutura” (LACAN, 1998, p. 891): ele é a divisão, a descontinuidade, o furo, o corte, a fenda que se manifestam no discurso da ciência. Assim, o sintagma “sujeito da ciência” (LACAN, 1998, p. 808) subtende que não há sujeito antes do advento da Ciência, não há sujeito fora de seus escopos e, por fim, não há um sujeito natural. Desta feita, toda ingênua oposição à Ciência findaria por cerrar o galho em que diversos saberes, inclusive a Psicanálise, estão apoiados. Não detendo o raciocínio neste ponto, é imprescindível também considerar que não há sujeito na
ciência. Em síntese: há o sujeito da ciência, mas não há sujeito na ciência. Esta é uma aporia inescapável que, tal qual um espectro, assombra toda tentativa cabal de cientifização do pathos.
É neste ponto que podemos localizar, com mais precisão, o correlato antinômico entre a Ciência (e aquilo que aqui vem fazendo série: Organismo, Psicopatologia Contemporânea) e a Psicanálise: o sujeito desta não poderia ser outro que não o da primeira, porém aquilo que nesta é patente (e subvertido), naquela é forcluído, “abolido” (LACAN, 1998, p. 813). Este correlato, vale destacar, não se deu instantaneamente: a partir da emergência do sujeito da ciência, em seu momento inaugural (localizado por Lacan no cogito cartesiano), este sujeito fica à espera, em suma, en suffrance: ele haverá de aguardar Sigmund Freud para ser resgatado, ou seja, trazido de volta à sua morada (o ethos do Inconsciente). Nesta trilha, se a abolição do sujeito nos leva a uma colagem entre saber e verdade, devemos considerar que a partir de Freud somos confrontados com uma verdade que, sendo díspar quanto ao saber, retorna sob a forma daquilo que não é de todo dado-a-ver no sintoma. Frisemos que esta é a grande contribuição prática da Psicanálise para o espaço, ainda possível, de uma Clínica na contemporaneidade e não somente de uma terapêutica devota de um checklist semiológico.
CAPILARIDADE DO ORGANICISMO
Passados pouco mais de 150 anos desde o Tratado de Griesinger, presenciamos a instalação de um cenário que nitidamente repercute sobre as relações do laço social com o sofrimento mental, de modo tal que não é desmedido reconhecer que
assistimos ao ressurgimento, a partir dos anos 70/80 do século passado, de trabalhos científicos calcados num forte determinismo biológico, implicando a interpretação biologizante de uma vasta gama de comportamentos e fenômenos, tais como a diferença de gênero, a homossexualidade, as diferenças de performance escolar, diferenças raciais, além, evidentemente, das chamadas “doenças mentais”, cujo fundamento psicológico é descartado em favor de prováveis disfunções do sistema nervoso. (RUSSO, PONCIANO, 2002, p. 346)
Um dos índices atuais dos efeitos desta perspectiva é precisamente, como já apontamos, um fenômeno cotidiano de dupla face: a medicalização do sofrimento psíquico e a psicopatologização (psiquiatrização) da vida:
Essa medicalização/psiquiatrização, como se sabe, implica não apenas intervenções diretas do poder público, mas uma penetração mais sutil e capilarizada no interior
das famílias e na regulação das relações entre seus membros (RUSSO, PONCIANO, 2002, p. 349).
Neste contexto, devemos considerar que o cenário da Psicopatologia Contemporânea é notoriamente orquestrado por uma ferramenta pragmática, que comporta uma intensa expectativa de localizar o paciente em uma classificação: o quick DSM-5. Sob este espírito de coleção (elemento x, correspondente ao nicho y) a tarefa terapêutica pode se tomar desde um ponto de ação mais ágil (uma olhadela a jato), favorecendo a eleição do tratamento correspondente ao pathos, tanto do ponto de vista farmacológico como psicoterapêutico.
A atual tendência da Psicopatologia, isto é, a materialização de sua visada por meio do DSM-5, comporta uma curiosa hibridez: por um lado, há um organicismo sempre suposto a todos os quadros e processos (no caso do marcador biológico não ser claramente discernido no presente, ele não deixa de ser uma promessa de verdade a ser concretizada no futuro), uma vez que a alquimia psicofarmacológica mostra-se como uma intervenção terapêutica com ares de hegemonia. Trata-se, portanto, de um viés que se desdobra na esteira do percurso iniciado por Griesinger. Por outro lado, completando a hibridez, não há como não se reconhecer que à medida em que uma boa parte do substrato orgânico finda por ser algo da ordem da expectativa - mais precisamente, tal qual uma “bolha especulativa”, no sentido que lhe é dado por GONON (2011) - ou de uma empiria jamais cabalmente definida recebemos os temperos da trilha Kraepeliana.
Em outros termos, Emil Kraepelin (1856-1926), o nome que faz a passagem de toda uma Psiquiatria do século XIX para os novos tempos do XX, propõe que a nosografia cabível para a Psiquiatria dependeria, certamente, da anatomia-patológica que trouxesse à luz as lesões cerebrais sustentadoras da loucura. Contudo, Kraepelin argumenta, no mesmo passo, que elas são conjecturais. Daí, Kraepelin ser o ponto de ancoragem para uma decisão pragmática que virá a inaugurar um programa: se pouca valia têm as explicações subjetivistas, pouca importância também há em se apontar causas e lesões hipotéticas quanto aos quadros clínicos.
Para Kraepelin, os dados da experiência que compõem o campo clínico são os sintomas e a evolução clínica do quadro (seu início, seu transcorrer e seu desfecho). É apenas a evolução do quadro sintomático que pode e deve fundamentar o diagnóstico e a terapêutica. É neste sentido que, para Kraepelin, a anamnese objetiva menos explorar conteúdos subjetivos da doença ou uma história pregressa de impactos emocionais, e muito mais identificar os sintomas originários, iniciais e a eventual incidência do processo mórbido.
Certamente, o silenciamento do sujeito e sua sutura são as pré-condições para o bom funcionamento desta via.
Contudo, seja neste braço que tem como precursor-maior Griesinger ou o que se ampara na perspicácia do olhar kraepeliano, estamos em meio a um processo inexorável:
A Medicina mental através de sua trama conceitual, procurará encontrar a alienação mental em todos os lugares, gestos, palavras e ações. Há uma evidente ofensiva da Psiquiatria no sentido de fundamentar um conjunto de práticas sociais e morais, de invadir regiões estabelecidas pela Cultura e pela tradição histórica. O objeto da Psiquiatria será hipostasiado, expandindo-se para todos os setores da Sociedade. Movimento de patologização do espaço social, que é apenas um aspecto de um movimento mais amplo que então se passava, de medicalização da Sociedade. (BIRMAN,1978, p. 8)
POR UM SINTOMA DESFOCADO, POR UM OLHAR OBLÍQUO
Em uma exposição realizada em 1966, intitulada O lugar da Psicanálise na medicina, Jacques Lacan propõe uma formulação norteadora que funciona tal como um axioma em toda essa discussão que envolve o sofrimento, o sintoma, o organismo e o sujeito: “a estrutura da falha que existe entre a demanda e o desejo” (LACAN, 2001, p. 10):
A partir do momento em que se faz esta observação, parece que não é necessário ser psicanalista, nem mesmo médico, para saber que, no momento em que qualquer um, seja macho ou fêmea, pede-nos, demanda alguma coisa, isto não é absolutamente idêntico e mesmo por vezes é diametralmente oposto àquilo que ele deseja (LACAN, 2001, p. 10).
Enfim, estamos às voltas, novamente, com dois grandes campos epistêmicos, Medicina e Psicanálise e, por extensão, seus corolários: a dimensão do DSM-5 e a espacialidade do ato analítico. Por fim, estamos no liame que articula e, igualmente, distingue estes campos, a saber, o correlato antinômico: sujeito forcluído (na colagem da demanda ao desejo), sujeito subvertido (sob a condição de mantermos o desejo como outra coisa que não a demanda).
E é precisamente sob este prisma que podemos compreender que essa correlação antinômica não se esgota em uma discussão epistemológica ou em uma formulação de princípios díspares e preciosos a cada um daqueles campos. A questão que aí se impõe é, crucialmente, clínica. Impactante, portanto, na maneira de se escutar, de intervir, de manejar. Impactante, portanto quanto aos efeitos finais e às consequências das práticas aí presentes.
Trata-se, por conseguinte, de se verificar que a irredutibilidade do desejo à demanda comporta, passo a passo, a manutenção de uma dimensão opaca no sintoma, ao invés de sua excessiva clareza (cartografável, em suma, pelas planilhas de um catálogo). Tal qual o sol, vale olhar para o sintoma sempre meio obliquamente, meio de soslaio, para não sermos capturados por sua aparente e reducionista elucidação. Manter, pois, o desfoque, para termos não exatamente uma clínica do sintoma, mas uma clínica a partir do sintoma.
A manutenção de um sintoma desfocado - portanto, um sintoma no qual nem tudo se explica, nem tudo se apreende, nem tudo se sana - é um norteador prático e ético imprescindível para a preservação desta antinomia correlacional entre a Psicanálise e as consequências do Organicismo. Em suma, temos ao nosso alcance, ainda, um demarcador para as coordenadas que podem balizar a Psicanálise na cena contemporânea do tudo-dado-a-ver, tudo-à-espera-de-se-ver.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Associação Americana Psiquiátrica (APA). Trad. Maria Inês Corrêa Nascimento. Manual diagnóstico e estatístico de transtornos mentais (DSM-5). Porto Alegre: Artmed, 2014.
BERCHERIE, P. Os fundamentos da clínica: história e estrutura do saber psiquiátrico. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1985.
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Alexandre Simões: Psicanalista. Graduado em Psicologia pela UFMG, com Mestrado e Doutorado por esta mesma Universidade, na linha de pesquisa Filosofia e Teoria Psicanalítica. Professor universitário. Fundador do Canal Alexandre Simões Psicanalista: https://www.youtube.com/c/AlexandreSimoesPsicanalista