Crônicas do Cotidiano na Visão de um Psiquiatra

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CRÔNICAS DO COTIDIANO NA VISÃO DE UM PSIQUIATRA



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CRÔNICAS DO COTIDIANO NA VISÃO DE UM PSIQUIATRA

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©Ruy Palhano, 2019

Projeto Gráfico José Serra Revisão Prof. Ramiro Azevedo Revisão Editorial Vera Giusti

Av. Colares Moreira, nº 3, Qd. 32, Lote 3-A, Jd. Renascença, Sala 1206, Ed. Business Center Renascença, CEP: 65075-441, São Luís-MA. (98) 3303-4188 ou 3235-0291 - ruy.palhano@terra.com.br Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) P161c

Palhano, Ruy.

Crônicas do cotidiano na visão de um psiquiatra / Ruy Palhano. _São Luís, 2019.

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Crônicas sobre diferentes temas, publicadas nos jornais: O Imparcial e Jornal Pequeno.

ISBN 978-85-920281-4-5 1. Crônicas - Coletânia. I. Título. CDD B869.8 CDU 82-94


Apresentação Caros amigos e amigas é uma grande honra apresentar-lhes minha nova publicação. Trata-se de uma coletânea de crônicas elaboradas ao longo dos últimos anos sobre diferentes temas, as que foram publicadas em dois dos mais importantes jornais do Estado: O Imparcial e o Jornal Pequeno. Neste trabalho, afasto-me, de certa forma, das minhas atividades profissionais e mergulho de cabeça na arte de escrever, tratando sobre temas do meu cotidiano. Este é o segundo volume de uma série que publicarei nos anos que se seguem. Já foram publicados mais de 300 artigos os quais irão compor essa série de escritos denominados de Crônicas do Cotidiano na Visão de um Psiquiatra. À proporção que fui ensejando o gosto pela arte de escrever, e vendo quão é importante deixar minhas 5


Apresentação

experiências escritas, fui percebendo que nós, em geral, escrevemos pouco sobre o muito que nos ocorre. Em qualquer momento, a vida é um amontoado de acontecimentos que se sucedem, uns aos outros, a cada instante; portanto, temos muito o que contar, mesmo assim, escrevemos pouco. E esses acontecimentos se perdem no tempo de cada um. Gasta-se, às vezes, tanto tempo com trivialidades e nem sobre elas escrevemos. Entristece-me ver figuras notáveis, da nossa época e de nossa história, que exerceram ou exercem papéis relevantes na vida social, pessoal e profissional, morrerem e não deixarem nada escrito, algo que falasse sobre si ou sobre o que fizeram, e quando queremos saber mais sobre a vida dessa pessoa, só nos deparamos com lembranças e nada mais. Rompo o silêncio e me lanço de corpo e alma à arte de escrever, onde digo o que penso e sinto, de forma despretensiosa. Ao fazê-lo sou cauteloso, para

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não ferir o respeito que tenho pelo outro. Procuro, em

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cada um desses escritos, aproximar-me ao máximo da realidade dos fatos que me inspiram, e sobre eles penso, repenso, escrevo, reescrevo, até que, finalmente, acho que estão suficientemente prontos para publicá-los. Neles, procuro não construir qualquer juízo de valor para que o leitor possa, a partir de sua enunciação,


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perceber apenas o que digo. Sou fiel aos meus princípios e só escrevo aquilo que se encontra em plena consonância com minha consciência, e quando tenho plena convicção de que não enveredei para o trivial nem para o comum. Pesquiso e vou atrás do sentido de cada crônica. Contextualizo-as ao discorrer sobre os fatos, dou-lhes um título, e as público. Nessa perspectiva, escrevê-las me faz refletir sobre mim, minha época, meu tempo e sobre o contemporâneo, e construir/desconstruir os flagrantes do cotidiano agradável tem sido prazeroso. Lamento que só depois dos cinquenta é que minha verve de escritor desabrochou, muito embora mais maduro e com os pés no chão e com mais responsabilidade. Parece que as crônicas têm um sabor especial. Hoje, escrevê-las faz parte de minha rotina e estão inseridas no meu cotidiano, dando-me gás e prazer.

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Dedicatórias À minha mulher Rita, com muito amor, carinho e admiração; Aos meus filhos, Pilar, Bruno e Ludmila, admiração eterna por serem as maiores razões de minha vida; Ao meu irmão Raimundo Palhano, a quem amo, admiro, e me inspira; Aos meus queridos netinhos, Leonardo, Lara, Davi e Jamily, por me renovarem e me ajudarem a ver a vida com mais sentido; Aos queridos genros, Diogo Guagliardo Neves, Ricardo Portela de Araújo Júnior e à minha nora, Jamênia M. Reis Mendes Palhano, com admiração e carinho; Aos caríssimos leitores, pelo carinho e comentários sobre meus textos.

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Agradecimentos especiais. Ao meu fraterno amigo e conterrâneo Raimundo Nonato Borges, Diretor de Redação do Jornal O Imparcial e um dos mais importantes caxienses de seu tempo. Confrade da Academia Caxiense de Letras ACL, e um dos mais competentes articulistas na área política deste Estado. Ao meu amigo empresário, Ribamar Bogéa, que me concede a honra de escrever semanalmente, às segundas-feiras, e aos domingos, uma coluna em seu tradicional e histórico Jornal Pequeno, o que o faço com muita honra. Aos queridos amigos editores dos jornais: O Imparcial e Jornal Pequeno, minha gratidão. Ao Prof. Ramiro Azevedo, por sua cuidadosa e competente revisão gramatical, bem como as críticas e sugestões verificadas em seu trabalho. 11


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Prefácio Ruy: cronista da existência transcendente A emoção em prefaciar uma das festejadas obras de um irmão famoso não é para qualquer um. Sobretudo em se tratando de um personagem reconhecido como autor marcante, como Ruy Palhano Silva, de quem sou, entre outras coisas, um admirador perdidamente apaixonado. Estas circunstâncias deixaram-me paralisado diante de tamanho desafio! O estado de indecisão certamente se deveu aos efeitos de uma incontrolável paralisia emocional, motivada pela responsabilidade de elaborar o elogio a uma criatura singularíssima, muito difícil de ser encontrada no mundo de hoje e de sempre, em geral vazios de afetos e de generosidades. A outra razão associava-se à capacidade de bem apresentar o seu mais recente trabalho literário, no caso o volume 2 da sua oportuna série denominada 13


Prefácio - Ruy: cronista da existência transcendente.

Crônicas do Cotidiano na Visão de um Psiquiatra, iniciada em 2015, o que não poderia ser feito sem um olhar mais amplo sobre os seus feitos no mundo da produção intelectual. Confesso a todos os leitores deste prelúdio que o motivo que me fez sair da inércia foi a certeza de que jamais daria conta de tamanha responsabilidade. Impossível traduzir um ser humano amorável como Ruy. Sempre alguma coisa poderia sair imprecisa ou incompleta, aí o temor. Depois, trata-se de alguém que consegue a proeza de ser celestial vivenciando esta terra nossa de cada dia; além de detentor de uma genialidade expressiva, de onde brota a sensibilidade que marca a estética de sua existência. Ousarei delinear os traços instituidores do ser humano peculiar, que se inspirou na mãe para se esmerar na arte de tecer a vida e decifrar os seus mistérios; para depois me debruçar sobre a riqueza da obra que cons-

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truiu em favor da humanidade, presentes em seus lega-

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dos profissional, intelectual e artístico. Nascemos em Caxias, eu primeiro do que ele. O caminho para São Luís foi o passo seguinte, aqui ancorando nossos pequeninos e frágeis navios. O mais certo seria termos nascido gêmeos univitelinos. Ficaria mais fácil responder às incontáveis pessoas, de todas as


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idades, gêneros e raça, que me perguntam se sou o Ruy. Sempre disse que sim, para depois explicar como eram mesmo as coisas. Como em geral não acreditavam no que dizia, em alguns casos tive até que confirmar receitas médicas, passadas por ele. Só pedia que jamais deixassem de seguir rigorosamente o que estava prescrito. Para todos, hoje em dia, o nome Ruy não é mais um nome próprio; é um substantivo comum, uma entidade além da pele e do osso. Somos filhos de Aracy e Pedro, que deram origem ao milagre de nos tornar seres completamente distintos e, ao mesmo tempo, plenamente imbricados, siameses, reproduzindo a fusão perfeita que foi Nair e Aracy/Aracy e Nair, esta última a irmã provedora maior do nosso mini núcleo familiar. Pelo lado materno descendemos de um tronco dos Palhano, que desembarcaram no Maranhão no século XIX, já vindos de outras plagas brasileiras tempos atrás, cujos ancestrais, de há muito, migraram da Itália para Portugal e depois para o Brasil. Pelo lado paterno somos membros da ilustre família Silva, que se multiplica pelo país afora. Dessa árvore frondosa brotaram padres, médicos, engenheiros, estes últimos com atuação no Estado do Maranhão e outras regiões do país, até sobretudo os 15


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anos 1930 do século passado, atuando principalmente na área das obras públicas, engenharia civil e transporte ferroviário. Ruy Palhano Silva e eu viemos para o mundo com essa genética remota, marcada por caldeamentos étnicos e culturais. Ruy transformou-se em médico psiquiatra renomado, não só por sua reconhecida competência profissional, mas também pelo fato de possuir um carisma especial, que o torna, de imediato, querido e apreciado por todos com quem convive. Ao lado disso, ambos tomamos o destino da Universidade Federal do Maranhão, construindo um magistério ao qual devemos muito e no qual contribuímos para a formação de várias gerações que ingressaram na educação superior. Tornou-se um profissional reconhecido e respeitado na comunidade, região e país por sua atuação, estudos e pesquisas sobre saúde mental, drogas e dependência química, além de integrante, fundador e dirigente

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de importantes instituições de reconhecimento públi-

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co, como o Conselho Regional de Medicina, o Conselho Nacional Antidrogas e o Conselho Estadual, a Academia Caxiense de Letras e a Academia Maranhense de Medicina, tendo sido, desta última, um dos seus presidentes. Em 1954 a nossa mini família transfere-se para São Luís, pensando em oferecer melhor educação para


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nós, a Ruy e a mim, e em busca de uma cidade mais ampla para viverem, estimulados por Ezinair Barros de Souza, filha de Nair, casada com o arquiteto Romeu Rosendo de Souza; e, mais tarde, Maria Lúcia Barros Ramos, esposa de Carlos Alberto Duarte Ramos, outra filha de nossa tia Nair. Foi, sobretudo, da conjugação dessas circunstâncias familiares que obtivemos a materialidade e a inspiração humana para traçar o início de nossas trajetórias pessoais, profissionais e sociais. Um mini núcleo que se inicia sob a proteção de Nair/Aracy (mãe), ainda em Caxias, o qual se desdobra em quatro novos eixos, já em São Luís: Ezinair/Romeu; Lucinha/Carlos Alberto; Raimundo/Aracy (esposa); Ruy/ Rita. Universos estelares que reuniram mundos fantásticos e inesquecíveis em permanente ebulição. A primeira fase da infância passamos em Caxias, nosso torrão natal, até os sete anos de idade para mim e quase quatro para Ruy, quando nos mudamos para São Luís, por decisão dos familiares. Não hesito em considerá-la uma das mais saborosas páginas de nossas existências, pois, até hoje, guardo lembranças imperecíveis, que me acompanharão para sempre. Enche-me de emoção relembrar a magia que era o Largo de São Benedito, defronte de nossa casa, 17


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palco de brincadeiras e fantasias, e da incomparável festa em homenagem àquele santo, que atraía para o lugar toda a população caxiense no mês de agosto e, principalmente, pelas canoinhas, carrosséis e trens fantasmas dos parques de diversão que eram instalados no período dos festejos. Ruy, muito mais do que eu, logo se tornava íntimo dos folguedos, partindo sempre para desafiar os mais temidos brinquedos, mesmo que significassem um galo a mais na cabeça ou um ferimento não cicatrizado no corpo. Foi a etapa de nossas vidas em que mantivemos os primeiros contatos com o mundo circundante, com a escola, suas professoras e colegas de turma; com as festas natalinas e os brinquedos que recebíamos de presente e que eram aguardados ansiosamente. Foi quando realizamos os primeiros convívios com outros meninos e meninas; com o despertar para o que se passava fora de

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casa e acontecia na rua.

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Já não cabe aqui o mundo mágico vivido em Iacina, nosso velho Brejo, onde passamos muitas férias juntos e com os amigos de lá, recebidos com carinho pelo bonachão Elmar Machado Torres, esposo de Maria das Graças, a Maninha, outra filha de Nair, proprietários de quase todas as terras do povoado.


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Novamente ali Ruy deixava sua marca, agora de craque do futebol de bola de pano ou da bola de látex, levando para casa cortes no supercílio, sarados com chumaços de algodão e pontos precisos de enfermeiros improvisados. Em fins de 1966 pego o meu navio pequenino e parto para o Rio de Janeiro para uma aventura gloriosa, apartando-me de Ruy pela primeira vez, deixando um pedaço do meu coração com ele, no início dos meus 19 anos e ele ainda nos anos finais da adolescência. Juntos novamente em 1968, estávamos preparados para colocar nossas embarcações nas rotas de longo curso. Foi o que aconteceu. A nova vida de Ruy se inaugura com a psiquiatria, em seu curso de medicina, iniciado na Universidade Federal do Maranhão e concluído no Instituto de Psiquiatria da Universidade Federal do Rio de Janeiro, em 1977, onde também realizou a residência médica, de 1979 a 1981, exigida pela profissão que abraçara, realizando também, no ano final, estágio na tradicional Universidad Complutense de Madrid. Fiel à sua natureza inquieta, o caminhante guiará seus pés, dali até os dias de hoje, sempre se instituindo e desconstruindo em favor de um ser humano mutante, que começa como médico e prossegue como professor, 19


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empreendedor, estudante de filosofia, literato, escritor e agora, mais uma vez, ansioso para atravessar os novos riachos, ou oceanos, que aparecem em sua vida. Trata-se de um exímio surpreendedor. Essas transmutações todas que vão acontecer em sua trajetória multifacetada partiram sempre de decisões pessoais dele. A maior de todas para mim, a que mais me maravilhou, foi ter acompanhado a sua transformação em um escritor fértil, criativo e, mais importante, lido. Sempre presente em tantas mídias, de repente surpreendo-me ao me deparar com Ruy escrevendo em colunas de jornais próprias, produzindo artigos e crônicas e se transformando em escritor reconhecido pelos leitores, que cada vez mais se ampliam. É com este olhar aberto que me reservo à ousadia, e ao mesmo tempo ao enorme prazer, de fazer o elogio de sua produção intelectual e artística, mesmo plenamente consciente do seu limitado alcance interpretati-

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vo, compensado apenas pela certeza de que Ruy os aco-

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lherá sobretudo como um verso de amor incondicional. Em uma relação normal de causalidade, não existe obra sem autor e vice-versa. Ninguém sabe ao certo qual dos dois vem primeiro. O correto é que, cada um, visto em separado, contém elementos do outro. O ethos de Ruy é determinado pela inquietação dos inconformados,


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que percorre o sistema nervoso de sua alma, da sua obra e de sua produção intelectual. Com isso quero dizer que o que faz de Ruy Palhano Silva um ser triunfante e admirado, tanto na dimensão humana, profissional, intelectual e artística, não decorre apenas de sua inteligência luminosa, ou de sua criatividade reconhecida ou ainda dos seus dotes literários aplaudidos. Não são devidos apenas a tais predicados. Ruy é um virtuoso sobretudo porque ousou ser, sempre, e em tudo, não se conformando, tanto com as coisas estabelecidas em seu mundo interior, nem tampouco com os padrões vigentes na sociedade inclusiva. Vistos pelas perspectivas filosófica, antropológica e poética, em sentido amplo, os feitos vitoriosos de Ruy se devem ao fato de ele ter sido um transgressor, uma alma que se empenhou para romper padrões culturais e morais do mundo em que atua, sobretudo aqueles eivados de hipocrisia, sempre buscando um universo e uma sociedade melhores. Só transcende quem se insurge, quem transgride o estabelecido paralítico. O Instituto Ruy Palhano, antes de existir, era um terreno despido em um lugar ermo e esquecido no município de Raposa. Os cavalos que ele teve que domar, também ali, para passear com a prole recém-nascida, 21


Prefácio - Ruy: cronista da existência transcendente.

fizeram dali um lugar de referência no tratamento da doença mental no Maranhão e no Norte e Nordeste. A alma de Ruy, portanto, sempre foi inconformada e transgressora, sem nunca ter deixado de ser completamente doce. Jamais precisou colocar entre os dentes um punhal afiado. No lugar da força e da intolerância preferiu abrir sorrisos e abraços. Este livro contempla 40 novas crônicas, sendo que algumas delas poderiam ser classificadas como artigos científicos disfarçados ou pequenos ensaios livres, focados nos cotidianos e avessos da vida humana contextualizada. Quase todas as havia lido antes, em suas duas colunas de jornais. Precisei fazer, todavia uma releitura, a partir da boneca do livro, que agora é o volume 2 da série Crônicas do Cotidiano. Obviamente não para comentá-las de per si, mas para entrar no espírito da obra literária que iria a lume com minhas apreciações.

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Textos publicados em livro sempre estimulam

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a visão e abrem mais a possibilidade do deguste. Provavelmente algumas das crônicas publicadas tenham passado pelo crivo compartilhado que fazemos sobre nossos trabalhos intelectuais, interpelando as realidades e os sonhos, movidos sempre pelas nossas memórias afetivas ancestrais.


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Costumo curtir os livros de papel em que, de algum modo, vai gravada a minha arte. Releio sempre e muito o que escrevi. É uma idiossincrasia. Imaginei este novo livro já impresso e repeti o mesmo ritual. O projeto gráfico de José Serra está muito bom e criativo e a revisão do Prof. Ramiro Azevedo dispensa comentários. O Maranhão tem bons cronistas. Já os teve em maior número e qualidade. Dentre os das gerações mais recentes Ruy Palhano é a nova surpresa revelada e, provavelmente, um dos mais talentosos e competentes, por que muito lido, confirmando o poder dos seus dotes literários e profissionais. As novas crônicas do escritor e psiquiatra Ruy aliam capacidade literária e conhecimento científico, combinando plasticidade e estética de modo consistente. Por mais leve que seja o tema, trata o conteúdo com todo o respeito e cuidado. Com isso deixa de ser vulgar e enfadonho. Popularizou a OMS como ninguém. Questões médicas e psiquiátricas que atingem as pessoas e seus leitores, normalmente abordadas por colegas seus com “letras de médico”, intraduzíveis para quase todos, em suas crônicas se transformam em consultórios sentimentais, combinando magistralmente afetos e discernimentos clínicos. 23


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Ruy sempre fez bem tudo que faz. O mesmo ocorre em sua produção intelectual e literária, como neste volume 2 das Crônicas. Isto por que a sua mais nova paixão é escrever. Chega a ser um vício. Já tem concluídos mais 4 volumes desta série, projetada para 10 volumes, prontos para irem a prelo. Na sua inspirada Apresentação deste volume assim se define como produtor intelectual: ...“meu contentamento não é só escrever por escrever é poder ver que, o que escrevo, pode ir até ao outro, participar de alguma forma do seu cotidiano, das suas expectativas, das suas ideias ou mesmo do seu imaginário. ” Em um tempo em que as redes sociais da internet não estimulam a proliferação de leitores de crônicas, ensaios e poesia, um escritor precisa ser muito bom para atrair leitores para suas obras impressas em papel. Este fato, associado a um contexto como o nosso, em que as exclusões educacionais e culturais são flagrantes, torna a situação ainda mais complexa. Por que Ruy consegue se sair bem, mesmo com essa ameaça pairando sobre as

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cabeças dos renitentes? Creio que tem muito a ver com

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o fato de o escritor não ter construído a sua obra e sua arte por mero diletantismo intelectual. Este volume e o primeiro, bem como toda a obra reunida, composta de 7 livros publicados e com edições esgotadas, comprovam o que disse. A matéria-prima


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destas duas obras e das demais, no pensamento ruyniano, deriva do seu trabalho terapêutico, de suas práticas profissionais de longo prazo, cortados transversalmente pelos dilemas existenciais do ser humano em seus contextos. A produção intelectual de Ruy está imbricada com as revelações das angústias e dilemas humanos presentes no meio em que atua. Na mencionada Apresentação deste livro, o seu autor é enfático ...“ao mesmo tempo em que procuro sempre ser fiel aos meus princípios, só escrevendo aquilo que se encontra em plena consonância com minha consciência e quando tenho plena convicção de que, o que escrevo, não faz parte nem do trivial nem do senso comum”. As 40 novas crônicas deste segundo volume, por seu turno, deixam perceptíveis duas estratégias de troca comunicativa do autor com seus leitores. A primeira, em pleno processo de evolução, refere-se ao tratamento do conteúdo das crônicas de modo compreensível pelo comum das pessoas, envolvendo temas médicos da psiquiatria; e, em fase embrionária, o diálogo com questões tidas como imperativos categóricos da condição humana; a segunda é posicionar-se, de maneira cristalinamente pessoal, sobre as mazelas sociais e políticas que afloram na sociedade inclusiva, buscando explicações a partir de princípios e valores esquecidos 25


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neste mundo cada vez mais confuso. Sobre temas psiquiátricos e psicológicos pautados diariamente, o leitor poderá se atualizar em crônicas saborosas como A Bengala, o Idoso e a Placa de Sinalização; As Diferentes Formas de Fobias; A Maconha e o Cérebro; As Mulheres e o Consumo de Bebidas Alcoólicas; Bebês Embriagados, e tantos outras que ajudam os leitores a compreender o sentido de tais enfermidades e como lidar com todas elas. A iluminação que teve em trazer para o cotidiano os imperativos categóricos da condição humana, que informam os valores pessoais e sociais, hoje em crise aguda, são embrionários neste volume 2, estando em pleno desenvolvimento em suas colunas semanais no Imparcial e Jornal Pequeno. Destaco nesta direção as crônicas A Crise na Vida, na Política e Dentro de Nós; A Mentira como Sintoma da Doença Mental; Abaixo os Preconceitos Contra as Doenças Mentais; A Violência como Marca

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Assustadora da Sociedade, Ansiedade Nossa do Dia a Dia;

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As Drogas da Alma, por exemplo. A segunda linha temática do volume 2 cinge-se às questões sociais e políticas, merecendo destaque crônicas como A Insegurança Pública Permanece; A Vigésima Copa do Mundo; Ano Novo, Vida Nova; Carnaval; Doenças Mentais e as Redes Sociais; Limpeza Ética,


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Justiça e Cidadania; O Brasil, os Brasileiros e a Corrupção; e O Voto e o Processo Eleitoral. Em todos os textos sobre os problemas sociais e políticos que nos afligem está presente um apelo recorrente: que a ética se difunda sobre a Terra. A série toda, que não demore a ser publicada. Este volume 2 confirma a fecundidade e o caráter educativo da obra de Ruy Palhano, que buscou na capacidade de escrever com arte, expandir a sua paixão e compaixão pelos seres humanos, pelos outros. É o autor que afirma na Apresentação já referida: ...“a arte de escrever... é uma das poucas atitudes humanas genuinamente solidária e altruísta, e que transcende os umbrais da solidão e do egoísmo e vai fundo ao encontro do outro. As letras, as palavras, as frases e finalmente os textos iluminam a razão e dão sentido ao que você vê, sente e produz, sempre no encontro do outro”. A criança que sempre quis ir além do arco-íris, que desafiou o tempo para se preparar para a vida e que, muitas vezes, teve que enfrentar seus medos e angústias sozinho, venceu as pedras do caminho porque nunca desistiu de ter sonhos e de amar a vida. Foi longe e vai muito mais ainda, mas não seguiu sozinho, Ruy sempre vai com os outros.

Raimundo Palhano

Membro da ACL e do IHGM 27


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Sumário 1. A bengala, o idoso e a placa de sinalização.

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2. A clínica e o tratamento da depressão em idosos.

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3. A crise na vida, na política e dentro de nós.

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4. As diferentes formas de fobia.

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5. A Importância da prevenção de recaídas no tratamento das doenças mentais. 55 6. A insegurança pública permanece.

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7. A Medicina pede apoio aos parlamentares maranhenses.

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8. A mentira como sintoma de doença mental.

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9. A maconha e o cérebro III.

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10. A maconha e o cérebro.

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11. Abaixo os preconceitos contra os doentes mentais.

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12. A propaganda de bebida alcoólica, as tragédias e a reação social.

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13. A Vigésima Copa do Mundo.

101

14. A violência como marca assustadora da sociedade.

107

15. Abaixo a propaganda de bebida alcoólica.

111

16. Alcoolismo: doença que começa com o prazer e termina com dor.

117

17. Ano novo, vida nova.

123

18. Ansiedade nossa do dia a dia.

129

19. As bases biológicas da dependência química.

135

20. As compulsões do nosso dia a dia.

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21. As Drogas da Alma.

145

22. As esperanças no final do ano*. 149 23. As mulheres e o consumo de bebidas alcoólicas.

155

24. Atenção quanto ao uso de tranquilizantes.

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25. Atividade Física, saúde mental e bem-estar social.

167

26. Bebês embriagados.

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27. Carnaval.

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28. Dependência química, novas perspectivas.

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29. Depressão, a morte em vida.

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30. Doenças mentais e as redes sociais.

189

31. Doenças reais, adquiridas nas práticas virtuais.

195

32. Envelhecimento e depressão.

201

33. Insônia nem sempre é doença mas, sim, sintoma.

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34. Internar ou não internar dependentes químicos? Eis a questão.

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35. Limpeza ética, justiça e cidadania.

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36. Menoridade penal,estamos preparados?

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37. Motorista, que dirigir embriagado, que se cuide.

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38. Não temos problemas com drogas, mas, sim, com o uso.

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39. Novas armas no tratamento das doenças mentais.

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40. O Brasil, os brasileiros e a corrupção.

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1 A bengala, o idoso e a placa de sinalização Publicado no Jornal Pequeno 07 12 2015.

Sempre me incomodou o símbolo em placas com uma pessoa encurvada e puxando uma bengala, tentando delimitar uma prerrogativa de pessoas idosas em ter acesso preferencial em ruas, estacionamentos ou mesmo em outros logradouros públicos de nossas cidades. Não sei quando, nem as razões que levaram alguém a associar essa prerrogativa dos idosos com a imagem que se vê nessas placas ou sinais. Parece-me que seja algo de uma época carregada de preconceitos, discriminação ou mesmo de um momento cultural em que havia uma visão distorcida sobre a pessoa de idade, a ponto de caracterizá-la com tamanho mau gosto. Pois veja que a figura das placas ou outros sinais de trânsito nesse contexto é o de uma figura decrépita, enferma e fragilizada carregando uma bengala. Quando eu atingi meus sessenta anos, por um 31


A bengala, o idoso e a placa de sinalização.

lado me tornei mais atento aos fatos e circunstâncias que estão relacionados a essa idade, no que diz respeito às minhas novas expectativas, planos, modo de vida, anseios e, sobretudo, à presença de uma sensação gostosa e inexplicável de ter chegado a uma idade em que deveria contar mais histórias do que construí-las. Por outro lado, passei a verificar que existem algumas prerrogativas de direito para pessoas com essa idade, e deveria ir atrás para desfrutá-las. Passei, então, a ficar mais atento ao que me aguardava com a nova idade. Nesse aspecto, ir para uma fila de idosos, estacionar em determinados locais, ter algumas prioridades em certa circunstância, etc. Contudo, sempre me incomodou o tal símbolo utilizado para retratar os direitos (reserva de vagas em estacionamento, assento especial, por exemplo) com a figura de alguém de bengala, encurvado, com aspecto doente. Tentando compreender melhor esse fato, pude

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verificar que esse incômodo não era só meu, pois há

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muita gente tentando mudar esse signo. Verifiquei que um publicitário de nome Max Petrucci, com a ajuda de cem mil internautas encontrados nas redes sociais, criou uma nova simbologia que traduzisse melhor esse direito da pessoa idosa em sinais de trânsito e nos estacionamentos.


Crônicas do Cotidiano na Visão de um Psiquiatra _VOL 2

O símbolo por ele criado é menos discriminatório e mais adequado à situação. Soube também que ele vai sugerir aos governos e empresários que o novo símbolo substitua o atual, presente em locais privados e nas ruas. O atual símbolo é, indiscutivelmente, segregador, preconceituoso e dá ênfase a uma imagem constrangedora, pejorativa, sinalizando para decrepitude, fragilidade ou enfermidade de pessoas nessa idade, o que não traduz a verdade sobre o idoso. Diz o publicitário e criador da nova proposta: “evidentemente que a terceira idade tem suas fragilidades, mas não precisa ressaltar tão negativamente até porque não é esse o retrato da terceira idade no Brasil”. Diz, ainda, que “essa proposta que elaborei, é ao meu ver, bem mais representativa e simbolicamente mais adequada, quando se compara com essa que está aí”. Com esse trabalho, o publicitário deve traduzir o idoso de hoje, que vive uma condição de vida saudável, é participativo, vive bem melhor e completamente diferente da vida que levava há alguns anos. Um sujeito com bengala e encurvado não demonstra alguém que esteja vivendo a plenitude da terceira idade propriamente dita. 33


A bengala, o idoso e a placa de sinalização.

Só para os senhores terem uma ideia, temos atualmente em nosso país 25 milhões de pessoas com mais de 60 anos, o que corresponde a quase 12,5% da população brasileira. Essa parcela da população vive uma vida que não tem nada a ver com a representação contida na placa de trânsito. Os idosos, na atualidade, vivem mais, querem participar e ter uma vida social ativa. Praticam esportes, frequentam academias; se cuidam e promovem sua saúde, produzindo e colaborando da melhor forma possível com a vida e com o mundo. E não fazem mais porque temos uma política pública segregacionista, desvalorizante, discriminadora e violenta contra os idosos. Não fora isso, os idosos estariam bem mais inseridos na história pessoal, social e psicológica de seu tempo, de sua cidade e de seu país. Há dois anos tramita na Câmara o Projeto de Lei 6.191/13, do ex-deputado Celso Jacob, que proíbe a divulgação de imagem de idoso com bengala para iden-

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tificar atendimento prioritário a idosos. A proposta

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inclui a regra no Estatuto do Idoso (Lei 10.741/03). De acordo com o ex-parlamentar proponente desse projeto de lei, a expectativa de vida dos brasileiros aumentou muito desde a instituição do Estatuto do Idoso, com o crescimento da população idosa com


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mais saúde e no mercado de trabalho. “Não se pode conceber a ideia de que o idoso é apenas um ser frágil, sem expressão, estigmatizado pela sociedade como sem valor”, afirmou. Particularmente quanto à bengala (que, hoje, tem simbolizado negativamente a condição do idoso), em conversa com meu genro, Diogo Guagliardo Neves, grande advogado e historiador, ele me explicava um contexto diferente sobre o uso de bengala

que

por volta do século 19, era tida como um artigo de elegância e de status social masculino, inclusive. Homens jovens desfilavam em diferentes ambientes para demonstrar beleza, elegância e posição social em cenários da época, simbolizando que isso fazia parte da cultura e da tradição da moda inglesa. Cartola, colete e bengala faziam parte dessa indumentária. Considerando os argumentos expostos, gostaria de manifestar meu protesto, veemente, contra esse símbolo de trânsito, arcaico, pejorativo e segregatório, que só reforça a discriminação que há em nossa sociedade e em nossa cultura contra as pessoas idosas. Ao mesmo tempo solicito às autoridades, que fazem cumprir tais regulamentos, que se esforcem no sentido de retirar das nossas ruas ou estacionamentos públicos e particulares essa placa ridícula. 35


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2 A clínica e o tratamento da depressão em idosos Publicado no Jornal Pequeno 15 11 2015.

A depressão é uma condição frequente e poderá ocorrer em diferentes etapas da vida, na infância, na adolescência, entre adultos e idosos, e em cada uma dessas etapas teremos particularidades clínicas e incidências distintas. É na terceira idade em que o índice de ocorrência de depressão é maior, mas apesar de tudo, a abordagem em diferentes aspectos, ainda é muito negligenciada nessa etapa da vida. É comum, recorrente, subdiagnosticada e subtratada, principalmente em nível dos cuidados primários de saúde. Em razão disso, prevê-se que as consequências de depressão em saúde pública irão aumentar cada vez mais em razão do aumento do envelhecimento da população. O envelhecimento da população é hoje um fenômeno transnacional, tanto nos países desenvolvidos 37


A clínica e o tratamento da depressão em idosos.

como nos países em desenvolvimento. Os esforços se ampliam entre os governantes para construir uma política de saúde do idoso que garanta melhor qualidade de vida. No Brasil, impressiona a rapidez com que ocorre o envelhecimento da população, pois, segundo a Organização Mundial de Saúde (OMS), até o ano de 2025, a população idosa brasileira crescerá 16 vezes, contra cinco vezes o da população total. Isso classifica o nosso país como sendo o sexto do mundo no ranking da população de idosos, correspondendo a mais de 32 milhões de pessoas com 60 anos ou mais (OMS, 2006). Com esse aumento, eleva-se a prevalência de doenças crônico-degenerativas, dentre elas aquelas que comprometem o funcionamento do sistema nervoso central, como as enfermidades neuropsiquiátricas, as degenerativas e, particularmente, a depressão. Os tipos mais frequentes de depressão entre ido-

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sos são depressão bipolar, depressão unipolar, distimia,

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as síndromes cerebrais orgânicas, próprias da idade além de outros transtornos depressivos relacionados a outras doenças orgânicas. Além disso, citamos os quadros reativos de depressão relacionados ao modo e à qualidade de vida dessa população. Grande parte dos seres humanos, dependendo


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de certos fatores, em qualquer fase da vida poderá experimentar episódio depressivo e a qualidade de vida dessas pessoas poderá ser muito alterada. Isso explica, em parte a alta incidência de suicídio que ocorre entre idosos, muito embora, nos últimos anos, essa taxa venha aumentando entre jovens. Estudo realizado pela OMS em 13 países europeus expressa que a taxa média de suicídio entre pessoas com mais de 65 anos chega a 29,3 por 100.000 habitantes, e as de tentativas de suicídio, 61,4 por 100.000. Os sintomas proeminentes da depressão no idoso são isolamento social, desesperança, sentimentos de culpa e remorso e anedonia (falta de prazer). Há muitas queixas de alterações do sono, do apetite, do interesse sexual, dificuldades do pragmatismo e de tomar decisões ou iniciativas, tristeza acentuada, além de inquietação ou inibição geral. Autoestima rebaixada, e descuido no trato corporal são dois outros sintomas muito frequentes. Nessas condições é comum os idosos não se cuidarem e darem muito pouco valor para a vida, achando que já estão no fim e não faz mais sentido viver Outro fato importante é que, entre os idosos, há uma tendência a desenvolverem outros problemas de saúde, vulnerabilizando-os para depressão; por isso, 39


A clínica e o tratamento da depressão em idosos.

é sempre aconselhável que, ao apresentarem um dos sintomas depressivo, se verifique se não há outros problemas de saúde associados á depressão. Em todas essas condições recomenda-se que o tratamento se inicie o mais cedo possível, sendo necessário, para tanto, um bom diagnóstico médico e psicossocial. A escolha do medicamento dependerá da avaliação médica, do tempo de exposição à doença, das condições gerais de saúde desse idoso e da resposta clínica ao medicamento. A Psicoterapia é muito importante que faça parte das recomendações. Do ponto de vista da prevenção, uma boa recomendação para se evitar depressão em qualquer fase da vida e, particularmente entre idosos, é a prática de exercícios físicos regulares e bem orientados. Além do mais, que também estejam engajados em atividades ocupacionais e sociais, pois essas são condições que melhoram de forma surpreendente o funcionamento

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psicossocial, elevam a autoestima e melhoram as fun-

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ções cognitivas desses enfermos. Em casos mais severos de depressão, onde os enfermos apresentam, entre outras coisas, altos riscos de suicídio e/ou refratariedade aos tratamentos convencionais, isto é, não respondem aos medicamentos, recomenda-se Estimulação Magnética Transcraniana


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– EMT e/ou Eletroconvulsoterapia – ECT, tratamentos físicos, altamente seguros e absolutamente eficazes, para reverter o processo depressivo. O uso regular de medicamentos que previnam a recorrência de depressão, designados de estabilizadores do humor, permanece também como sendo uma das mais importantes estratégias farmacológicas e uma das mais recomendadas para prevenir-se recidivas de depressões. O apoio familiar é igualmente imprescindível no cuidado desses enfermos, de tal forma que, quando não se contar com esse recurso, a recuperação dos mesmos é bem mais difícil. Assim como a Psicoterapia, preferentemente, Terapia Cognitivo-Comportamental – TCC que auxilia muito no enfrentamento desses momentos difíceis, impostos pela depressão.

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3 A crise na vida, na política e dentro de nós Publicado no Jornal Pequeno 23 11 2015.

Atualmente o que mais se ouve falar é de crise. Crise de todos os tipos e de diferentes gravidades. Como um evento humano, é através dela que se promovem as mudanças fundamentais nos processos vitais. As crises, independentemente de sua natureza, têm de ser identificadas, enfrentadas e modificadas. Esses são os três grandes desafios sobre os quais as crises se sustentam. São etapas necessárias à sua expressão e ao seu manejo. Crise é um momento transitório de desequilíbrio ou de instabilidade, em que se evidencia e se sinaliza a necessidade de mudança, mais ou menos radical, em um dado processo ou momento. As crises se instalam em condições inevitáveis, pois são um fenômeno natural presente em épocas e fases onde ocorrem todos os processos humanos, pois estes são vivos e em 43


A crise na vida, na política e dentro de nós.

movimento, entram em desequilíbrio e reequilíbrio constantemente. A crise, seja qual for, nunca se define por si ou se encerra em si mesma. Sempre se contextualiza em sua expressão e em sua magnitude. Sucede-se, interrompe-se, e sucede-se. Eis a crise. Um constante interceder e intercalar de eventos, todos em direção às mudanças e à evolução. Em condição natural, as crises sempre evoluem e nunca involuem. Todas passam para virem outras. É utópico imaginarmos um mundo sem crises, em qualquer etapa ou momento da vida onde ela ocorra. Sendo assim, as crises são eventos indispensáveis e sem as quais a própria vida perderia o sentido e se desnaturalizaria. Os eventos ocorrem, as crises se apresentam, mas, em cada uma delas nós prosseguimos. No imaginário social, cultural e psicológico, sempre se associam as crises a algo ruim, fatal, e inexoravelmente trágico. Nessa expectativa, passa a ser

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uma condição que nos inspira medo, insegurança

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e perplexidade. A rigor nos conduz à expectativa, contemplação e imobilismo, sobrevindo interrogações: e agora, para onde vamos? O que vai acontecer? O que podemos fazer? Nossa geração vem enfrentando crises sucessivas predominantemente políticas, econômicas, éticas e todas graves e desfavoráveis. Em todas nos


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sentimos frágeis. Nossa história é repleta disso. Na história do homem, o que não faltam são momentos ou estados de crise que ocorrem desde os primórdios da Humanidade. E, se voltarmos a visão para nós mesmos, veremos que tais fenômenos, na dimensão ontológica, fazem-nos perceber que nossa vida é uma sucessão infinita de crises, sem as quais não avançaríamos. Mas, se é assim, por que tanta reclamação? Tanto descontentamento? Tanta frustração, tanto medo e tanta expectativa negativa pairando na cabeça das pessoas? Guardadas as devidas proporções, cada um de nós vive esse momento, de forma muito particular, assim como particulares são as respostas que cada um atribuirá a seu momento, seu tempo e à sua história. Abstraindo-nos um pouco da visão filosófica e antropológico-existencial que dei ao conceito de crise no primeiro momento deste artigo, essas que vivemos atualmente, com fortes bases éticas, são impostas. Não são naturais, foram condições que se nos impuseram irresponsavelmente e de forma impiedosa. São situações impostas, de forma artificial e incongruente, portanto, evitáveis. Gera ameaças sociais, psicológicas e culturais, manipuladas. Essas crises que se nos impuseram não estão a favor da vida, da 45


A crise na vida, na política e dentro de nós.

mudança ou a serviço da plenitude dos seres humanos. Estão a serviço da arrogância, do despudor e da violência do grupo político que cuida de nosso país. São condições determinadas, por pessoas indiferentes, insensíveis e vaidosas, que fazem parte de quadrilhas poderosíssimas e que defendem grandes interesses econômicos, financeiros e de mercado. São crises impostas por ditadores, sabidos, larápios, criminosos e aproveitadores da boa-fé de todos e preferentemente dos mais humildes. Crises fabricadas por grupos políticos indiferentes ao sofrimento e ao bem-estar social. Dessa forma, o que está em jogo não é uma crise em seu sentido antropológico e filosófico, como procurei demonstrar anteriormente. O que está em jogo é o sentimento de mal-estar geral e de indignação profunda, que a cada dia nos abate ao percebermos que os fatos se agravam*. O que está em jogo é o sentimento de frustração e decepção oriunda da inépcia de gestores públicos,

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no trato da coisa pública. O que está em jogo é a revolta

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de assistirmos impávidos às negociatas, às impunidades, às injustiças, aos crimes, à violência, à improbidade, etc. O que está em jogo é a frustração de termos sido enganados em nossa credulidade e inocência ao se constatar a decadência moral revelada pela face triste * Com profundas e deletérias repercussões na base da pirâmide social


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de uma criancinha, com fome que não tem onde morar. Ou de uma mãe ou um pai desempregado que não sabe o que fazer. Ou ainda, o desespero da professorinha, que já não sabe se ensina ou se educa, ou qual é mesmo seu papel pelas incongruências, uma vez que família, escola, sociedade e o Estado, não se entendem. Eis a crise insana, imposta por políticos desumanos, que nos impõem uma ordem social, desumana e deletéria, gerando perversidades e injustiças. Políticos inescrupulosos que ocupam cargos importantes na vida pública para se locupletarem negligenciando suas obrigações e deveres. Devemos agora, já que a cada dia são reveladas as ambiguidades pessoais e os esquemas criminosos envolvidos nessa corrupção desvairada, lutar, ir às ruas, denunciar, fortalecendo um amplo movimento nacional de indignação e a favor da Justiça e da Paz entre as pessoas sérias do nosso país. A luta não é simples nem fácil, mas não devemos nos abater nem nos conformar ou ficar só reclamando de crise. Os responsáveis por todas essas situações que nos impuseram, pagarão caro, como já estão pagando. Portanto, não podemos perder as esperanças de fazer com que esses arrogantes, petulantes, cínicos e falastrões, expiem por seus crimes. 47


A crise na vida, na política e dentro de nós.

Dizer que estamos em crise não adianta nada, o que devemos fazer, agora, é banir esse grupo de impostores de seus postos, para deixar nosso país livre

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para crescermos com ele.

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As diferentes formas de fobia Publicado no Jornal O IMPARCIAL 31 01 2016.

Nos três últimos artigos que escrevi para este jornal tratei da ansiedade em suas diferentes facetas. No primeiro, considerei a ansiedade como dos mais importantes e indispensáveis fenômenos neurofuncionais para nossa existência, e demonstrei que sem o qual a vida não evoluiria em sua rota natural. No segundo, abordei a ansiedade patológica ou disfuncional, suas diferentes formas clínicas. No terceiro artigo tratei de uma das formas clínicas da ansiedade patológica que é o transtorno de ansiedade generalizada, verificando que se trata de uma condição que impõe muito sofrimento aos portadores. E observei a necessidade de tratar o mais cedo esse problema para serem evitados maiores consequências à saúde mental. Hoje falo da fobia, que compõe um grupo de transtornos onde há presença de ansiedade intensa, 49


As diferentes formas de fobias.

sendo esta desencadeada por determinadas condições em que não representam nenhum perigo real ao sujeito. Por esse motivo, essas situações denominadas de fóbicas, são evitadas ou suportadas com muito temor ou angústia. As preocupações da pessoa podem manifestar-se através dos seguintes sintomas: palpitações, falta de ar, tremores, extremidades frias, etc., ou uma impressão de desmaio. Frequentemente este tipo de ansiedade se associa com medo de morrer, de vir a passar mal, de perder o autocontrole ou de ficar louco. Geralmente a simples lembrança ou evocação da situação fóbica já é suficiente para desencadear uma ansiedade antecipatória, denominada de ansiedade fóbica frequentemente associada a uma depressão. Embora não tenha havido o fato da fobia, a pessoa reexperimenta as mesmas sensações desagradáveis verificados na experiência real

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A fobia deve, em princípio, ser diferenciada do

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medo, pois há no senso comum uma confusão muito grande entre estes dois fenômenos mentais. O medo é uma reação humana natural e normal sem o qual não viveríamos. Sem o medo o homem não chegaria à atual fase de seu desenvolvimento antropológico e social, bem como não garantiríamos a manutenção e prorrogação


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de vida pessoal e da nossa espécie, isto é, não conseguiríamos evoluir para a condição de seres civilizados. O medo é que garante todas estas prerrogativas. Já a fobia constitui-se como a perversão ou disfunção do medo, isto é, a sua alteração patológica. Enquanto o primeiro garante a vida, a fobia mata e dilacera o seu portador. Há três tipos de fobia: agorafobia, fobia social e fobia específica. A agorafobia (ágora provém da língua grega, praça pública). Ela sempre surge quando a pessoa se encontra em locais ou situações onde escapar ou sair de determinado ambiente poderia ser difícil ou embaraçoso ou, na maioria das vezes, em situações nas quais um auxílio imediato pode ser difícil, caso a pessoa venha a passar mal. Há muita gente que tem fobia de multidões, aglomerações populares ou de ambientes fechados, a ponto de não frequentar esses ambientes por qualquer custo, e se o fizer, será à mercê de muito sacrifício. A fobia social, como o próprio nome diz, a mais prevalentes das fobias atinge em torno de 13,3% da população adulta e está centrada a um medo de expor-se a outras pessoas e, como consequência, a pessoa se afasta e evita contactos sociais. Esse tipo de fobia pode referir-se a situações específicas, como comer ou falar em 51


As diferentes formas de fobias.

público, ou pode ser mais difusa, envolvendo quase todas as circunstâncias sociais fora do ambiente familiar. Entre as situações fóbicas sociais, destaca-se o medo de humilhação e embaraço diante de outras pessoas, o medo de comer em público, falar em público, urinar em banheiro público e, muito frequentemente, de assinar cheques à vista de pessoas estranhas. A fobia específica é a mais conhecida entre as fobias usualmente restritas a poucas situações sociais. Normalmente os objetos de fobia, na Fobia Específica são animais, não necessariamente peçonhentos e as situações são aquelas que dizem respeito ao escuro, altura, ao abafamento de ambientes fechados, à água dos rios e mares. A prevalência de todos esses casos de fobias é alta na população em geral e muitas doenças mentais evoluem cronicamente a exemplo de transtorno obsessivo compulsivo, depressão, dependência química

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e muitos outros estão direta ou indiretamente rela-

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cionados às fobias daí por que seu tratamento deverá ser eficaz e feito de forma precoce, para se evitarem graves problemas futuros. O tratamento em geral comporta medidas farmacológicas através da utilização de medicamentos que intercedem na estrutura fóbica (fármacos anatifóbicos)


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e medidas psicoterápicas que são procedimentos que auxiliam muito os portadores destes problemas a enfrentarem seu dia a dia. A abordagem que mais se recomenda nos dias atuais é a Psicoterapia cognitivo-comportamental.

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5 A Importância da prevenção de recaídas no tratamento das doenças mentais Publicado no Jornal Pequeno 17 11 2014.

Define-se prevenção de recaída a estratégia de natureza médica e psicossocial aplicada por diferentes técnicas e métodos com o intuito de evitar o reaparecimento de diferentes doenças, posteriormente a um tratamento. Recair é retomar, retornar, vir a acontecer, reaparecer etc. Em Medicina, muitas doenças são insinuantes e sempre tendem a reaparecer de tempo em tempo independente do tratamento que recebem. Em artigo anterior publicado nesse Jornal citei a depressão como exemplo de uma das doenças mentais que mais tendem a recair, apesar de todos os tratamentos a que esses enfermos se submetem. Daí por que nos tratamentos das depressões exige-se que o médico estabeleça, desde cedo, orientações para prevenir outras crises que poderão surgir.

So-

bre os tratamentos das depressões propriamente ditas, 55


A Importância da prevenção de recaídas no tratamento das doenças mentais.

devemos alegrar-nos pelos avanços, especialmente farmacológicos. Com o surgimento de modernos fármacos, a prevenção de recaídas confere mais segurança ao médico. Desde Areteu da Capadócia, séc. I a.C., o tratamento da depressão sempre fora um tremendo desafio, entre outras coisas, por suas frequentes recaídas, mas, hoje, já se sabe que poderemos evitar-lhe o reaparecimento. Graças a esses conhecimentos neurocientíficos atuais e baseados em evidências médicas, não se pode pensar em tratar somente as crises agudas depressivas desses enfermos. Deve-se desde o início do tratamento pensar também em prevenir que ela retorne. Em primeiras crises, o paciente terá 30% de chance de ter a segunda. Se for a segunda, terá 50 a 60% de ter a terceira e, se tiver mais de três crises, ele terá mais de 75% de chance de vir a apresentar a quarta e assim por diante. Chega-se ao ponto de essa pessoa ter 100% de chance de vir a ter muitas outras crises ao longo da vida. Só isso já seria o suficiente para se reforçar

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e recomendar estratégias de prevenção de recaídas.

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Observe-se que nos guide lines (orientações para se realizar os tratamentos), todos recomendam a adoção de prevenção de recaídas, independente do tratamento que seja oferecido a esses enfermos. A prevenção de recaída está sendo utilizada em muitas outras especialidades médicas


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e não é somente para depressão ou doenças mentais. Para todas as doenças humanas, que evoluem cronicamente, independentemente de sua natureza, atualmente se recomenda essa estratégia a fim de a pessoa não voltar a reapresentar a doença: doenças metabólicas, hipertensão arterial, diabetes e muitas outras. No caso particular das doenças mentais isso não foge à regra. Todas as grandes doenças psiquiátricas, se não as prevenirmos, suceder-se-ão muitas vezes. Estando aí os diferentes tipos de transtornos de ansiedade, as esquizofrenias, os distúrbios do humor, da personalidade e assim por diante. De tal forma que é cada vez mais imperioso prevenir para evitar que essas doenças reapareçam. Só à guisa de informação, a Organização Mundial de Saúde – OMS, em seu relatório anual sobre doenças mentais/2014, informou que 45% dos doentes depressivos recaem por desuso ou uso incorreto de seus medicamentos (interrupção do tratamento, utilização de subdotes, reduzido tempo de tratamento, doses irregulares, etc.). Ocorre que, se esses pacientes não tiverem chance de recair, mesmo não tomando seus medicamentos, não recairiam; portanto, se recaíram foi porque a recidiva está prevista no curso natural dessas doenças. 57


A Importância da prevenção de recaídas no tratamento das doenças mentais.

Os custos do tratamento são outro aspecto relevante. As famílias sabem que pesa no bolso custear o tratamento dessas doenças mentais. Pois, entre outras coisas, o tempo previsto de tratamento sempre é muito longo e caro. Se impedirmos, com prevenção de recaída, que a doença reapareça, será bem melhor para todos. A resposta aos medicamentos é muito influenciada pela condição evolutiva dessas doenças. Quanto menor número de crises melhor será a evolução, melhor será sua recuperação e melhor sua qualidade de vida. Como são enfermidades que evoluem cronicamente, entre outras coisas devido às recaídas sucessivas, esses medicamentos passarão a funcionar menos, tendo inclusive de aumentar-se a dose, o tempo de uso dos remédios e, às vezes, ter que usar outros fármacos para auxiliar o tratamento. Por vezes, devido ao número de recaídas ser enorme, os remédios não farão mais efeitos e, nesses casos, teremos de associar

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outros medicamentos aos primeiros, onerando mais

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ainda os gastos com o tratamento. De tal forma que só há vantagens em prevenirmos a cronificação desses doentes. Quanto mais crises, mais difícil de tratar, maior tempo de uso dos medicamentos e resposta insatisfatória ao tratamento, e a recíproca


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é verdadeira. Devemos desde cedo, portanto, recomendar prevenção de recaídas aos nossos pacientes sempre como um dos mais importantes recursos médicos e psicossociais para enfrentarmos tais problemas.

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6 A insegurança pública permanece Publicado no Jornal O Imparcial em 27 12 2015 e no Jornal Pequeno em 21 12 2015.

Em sua mensagem de Natal, o Papa Francisco reafirmou, ontem, sua preocupação com a violência no mundo. Aproveitou para conclamar os chefes de Estado a adotarem, de forma unânime, medidas mais arrojadas e estruturantes contra a violência, sobretudo na Síria, Ucrânia, Líbia e África. Além do mais apontou para as consequências nefastas da violência em todo nosso planeta. Entre nós, guardando as devidas proporções das palavras do Pontífice, deveríamos ouvir com muita atenção sua mensagem e, quiçá, fazer o mesmo, conclamar a todos, governantes e sociedades, para que se estabeleçam pactos consistentes contra esse crime terrível que é a violência em suas diferentes formas de expressão, pois essa permanece entre nós. Raros são os momentos onde em que a gente se sente seguro e 61


A insegurança pública permanece.

em paz. Passou o Natal, e se verificará que em ocasiões como essa, aumentará a onda de crimes, pois essa é a lógica da criminalidade. O indulto, um direito que a Justiça e o Estado concedem aos apenados, quando cumprem suas penas adequadamente, infelizmente, mais da metade dos que são agraciados não retornará ao cumprimento de suas penas. Permanecerão livres, delinquindo, como antes. De quem é a responsabilidade sobre todos esses crimes, essa violência social e urbana desvairada e descontrolada, que paira sobre nós? Volta-se a se discutir nos meios sociais; usar ou não armas, nesse tempo de medo e crime? Reagir ou não reagir? É melhor morrer de pé ou humilhantemente indefeso, pelos bandidos que nos ameaçam? Por que é tão difícil combater esses crimes? Estamos tolerantes com o crime ou submissos a ele? Há tempos, eu e muita gente vimos fazendo tais perguntas.

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Não se tem respostas para todas elas.

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Esses questionamentos estão em todo lugar, aonde se vai. Se fôssemos debatê-las de forma acadêmica e sem sofismas, daria elementos para grandes congressos. O fenômeno crime estabelece interfaces com inúmeras áreas do conhecimento, como o Direito, a Sociologia, a Antropologia, a Psiquiatria, a Educação,


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a Saúde e com muitas outras áreas. Certamente, em cada uma dessas, há formas de considerar tais problemas e diferentes recomendações para o enfrentamento dos mesmos. Contudo, o que se sabe por evidências é que os problemas da criminalidade estão aí desafiando gestores, autoridades públicas, cientistas, políticos sérios, e a todos que buscam saídas honrosas para essas situações. Afirmo isso, porque há um profundo caos na gestão pública, com problemas tão graves como estes, que é muito difícil se saber quem é, ou quem são os responsáveis por toda essa situação que se vive! Não se aguenta mais tanto crime, tanto banditismo, tanta violência, tanta corrupção, tantos assassinatos e roubos que ocorrem a toda hora e em todo lugar. A insegurança tomou conta de todos e nos destrói aos poucos, e não é só pelas mãos dos bandidos, mas também pela inépcia na gestão pública, imoralidade generalizada, falta de respeito e zelo pelos valores éticos que aprendemos a cultivar. Pensando bem, essa cidade, esse Estado e esse país em muito pouco tempo foi invadido por uma onda de desvanecimento geral e gigantesco e por uma criminalidade desvairada sem precedentes na história antiga e recente desse país. 63


A insegurança pública permanece.

Dilapidaram tudo que funcionava como referência. Transformaram nossas cidades em Vietnãs. Nunca se praticou tanto assassinato e outros crimes, quanto se pratica hoje. Nunca se matou tanta gente, com absoluta banalidade, como se mata hoje. Tem-se a sensação de que estamos involuindo em nossa história, dirigindo-nos à barbárie de séculos atrás. Nunca se desrespeitou tanto as leis, as regras sociais e morais, quanto se faz hoje. Nunca se cometeu tanto crime de “colarinho brando”, de corrupção, de lavagem de dinheiro e propinagem dentro de um só governo, quanto ocorre hoje. A situação atual traduz um caos profundo no Estado, nas relações sociais, humanas e institucionais. É uma situação que nos faz sentir constrangidos, com dificuldades de se antever saídas. Qualquer governo, por mais legítimo que seja, por mais justo que pareça, por mais equilibrado e correto em suas ações, por mais forte que seja economicamente ou por mais comprometido que esteja com

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a questões da Justiça social, nas atuais condições de

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vida que se leva, ele deveria dar prioridade às questões da segurança e da ética na gestão pública. Deveria considerar o enfrentamento da criminalidade, da corrupção, da moralização da gestão pública como “medidas de honra” pois, sem isso, não há povo ou país que


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cresça, se desenvolva ou viva plenamente. Em nosso país o significado de honradez, de segurança dos indivíduos, de dignidade humana, de Ética e o bem-estar social, estão literalmente ameaçados. O sagrado direito de ir e vir, compartilhar, trabalhar, estudar, ter lazer, ter segurança social e ter saúde para se viver decentemente, está visivelmente ameaçado. Direitos e deveres de todos, que são os alicerces mínimos que garantem as relações sociais e humanas, são compromissos indeléveis, mas estão protraídos, ameaçados, a ponto de ninguém saber mais quem é quem. Em pleno século XXI*, atingimos cifras assustadoras de tanta maldade, crueldade, brutalidade, e tantos outros crimes, cometidos a um só tempo, contra tudo e todos. Estamos vivendo situações constrangedoras na cidade e no campo, em consequência de tudo isso. Essa situação nos conduz a uma condição enigmática: por um lado, um estado forte, mas visivelmente fraco, ao enfrentar essas questões. Esforçam-se contra essas distorções, mas não conseguem sucesso. Por outro lado, facções criminosas fortes e organizadas, ostentando força e poder, mantêm as cidades sob seu controle. É uma condição humilhante e revoltante, * Atente-se, por exemplo, à rapidez da informação, principalmente via eletrônica. É a aldeia global.

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A insegurança pública permanece.

para não dizer, inaceitável e lamentável. Contudo, é essa a situação que estamos atravessando nos últimos anos e todos perdem com isso. Apesar de tudo, deveremos permanecer lutando, para fazer ressurgir dentro de nós a esperança de se ver uma sociedade segura, bem organizada e saudável. Deveremos permanecer lutando pelo respeito à Justiça e pela defesa da Ética. Lutar contra a dominação de gestores corruptos, indiferentes e insensatos. Lutar contra a corrupção, o desmando e a incompetência na gestão pública. Lutar pela moralidade na política. Pugnar pela dignidade humana. Lutas fundamentais, e delas não deveríamos afastar-nos, pois quanto mais nos distanciamos, mais estas proliferarão entre nós. Um mundo confuso e caótico e um Estado abominável, fraco, frouxo e sem referência.

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É isso que estamos assistindo, lamentavelmente.

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7 A Medicina pede apoio aos parlamentares maranhenses Publicado no Jornal Pequeno 18 08 2013.

Com todo respeito aos caros leitores deste importante Jornal Pequeno, dirijo-me especialmente aos parlamentares maranhenses, Deputados Federais e Senadores, pois na terça-feira dia 20 votarão dois temas polêmicos neste país: os vetos que a Presidente Dilma Rousseff concedeu à lei denominada Lei do Ato Médico e a MP 621 que trata do Programa Mais Médico. Ambas as matérias são muito importantes para a saúde pública brasileira. Uma, a meu ver, técnica e ética, pois trata da vinda de médicos estrangeiros para trabalharem em nosso país sem o exame tradicional de reavaliação do diploma desses profissionais da saúde (REVALIDA), fato que poderá causar problemas à população por não se saber sobre a competência, a experiência e as habilidades técnicas desses profissionais. A outra situação, que será votada diz respeito 67


A Medicina pede apoio aos parlamentares maranhenses.

aos 10 vetos, realizados pela Presidente Dilma Rousseff, sobre a lei que institui o Ato Médico que nada mais é que um conjunto de normais e regras que estabelecem e definem a função do médico brasileiro. Esta lei já tinha sido aprovada no Congresso Nacional na íntegra e, de forma desrespeitosa e antiética, rasgam-na, desconsiderando todo o esforço que os Senhores parlamentares desprenderam, juntamente com o órgão que representam a nossa classe médica, bem como outros órgãos representativos de outras profissões ao longo destes 12 últimos anos. Todos os vetos foram muito bem examinados tecnicamente e se constatou que eles carecem de sentido técnico e ético para garantir sua aplicabilidade. Entre todos os vetos o mais acintoso é o que concerne ao artigo 4º desta Lei que tira, literalmente, do profissional médico, a prerrogativa do diagnóstico e respectivamente do tratamento das enfermidades

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humana. Esse veto simplesmente mutilou nossa pro-

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fissão, pois foi um ato inconsequente e impensado do ponto de vista técnico, histórico e político que, entre outras coisas, rasga a tradição da Medicina, uma das mais antigas profissões do mundo. Só à guisa de esclarecimento: diagnóstico é um termo proveniente do grego que significa conhecer


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(dia= através de; e gnose = conhecimento). É uma das mais importantes etapas da prática médica, pois é através dele que se garante a efetivação de um tratamento. Não se faz tratamento sem diagnóstico. Sem diagnóstico estamos cegos e não sabemos o que fazer a nenhum enfermo que nos procura. Quando alguém busca o médico, entre outras coisas, ele espera que este médico lhe diga o que ele tem, o que pode acontecer com ele e como será realizado seu tratamento. Quando a Presidente da República retira do médico esta prerrogativa, ela mata a lei e o médico, inclusive o que diagnosticou seu Linfoma de Hodgkin, salvando sua vida. Todo seu argumento alega que o Art. 4º desta lei provocaria problemas na execução de alguns programas do SUS tais como o de prevenção e controle à malária, da tuberculose, da hanseníase e das doenças sexualmente transmissíveis. Alega ainda que a sanção do texto original poderia comprometer as Políticas Públicas da área de Saúde, além de introduzir elevado risco de judicialização da matéria. Assim sendo, os órgãos que representam a classe médica argumentam que os diagnósticos realizados por outros profissionais da área da saúde estão garantidos pelo § 2º do Art. 4º e pelo § 7º do Art. 4º. É uma interpretação errônea dizer que a prerrogativa 69


A Medicina pede apoio aos parlamentares maranhenses.

do diagnóstico médico e o respectivo tratamento (Inciso I) impediria a continuidade de programas do SUS. Quanto aos programas de prevenção e controle citados são eles conduzidos por equipes multiprofissionais que contam com a presença do médico. No ingresso de um paciente em um programa de saúde pública, quem faz o diagnóstico, por exemplo, de tuberculose, é o médico e a equipe conduz o programa terapêutico que foi elaborado por toda a equipe, com a participação do médico. Lembramos ainda que o § 7º do Art. 4º resguarda as competências próprias das outras profissões. Como exemplo de competência de outras profissões nos programas de Saúde pública, citamos a Lei 7498/1986 que regulamenta o exercício da enfermagem. Estas competências do Enfermeiro e dos outros profissionais estão resguardadas pelo §7º do Art. 4º desta Lei. Assim, fica bastante claro que esta Lei do Ato Médico não compromete as Políticas Públicas da

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área de Saúde nem oferece risco de judicialização des-

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ta do nosso país. Trabalhar em equipe não significa que diversos profissionais possam realizar os atos uns dos outros. Mas, sim, que cada membro da equipe realiza os atos próprios de sua profissão de maneira harmônica com os demais. Não existem rotinas e protocolos consagrados


Crônicas do Cotidiano na Visão de um Psiquiatra _VOL 2

nos estabelecimentos privados de saúde nos quais profissionais que não são médicos realizem diagnóstico das doenças. Portanto,

caros

parlamentares

maranhenses,

o que nós queremos não é impedir que outros profissionais sejam lesados em suas prerrogativas profissionais no exercício da saúde brasileira mas, sim, que nós, médicos, semelhantemente aos outros profissionais que trabalham na Saúde pública e particular deste país, tenhamos nossa identidade profissional estabelecida e com isto desenvolver com dignidade suas ações. Aos Srs. Parlamentares, que terão esta histórica responsabilidade nas mãos no dia 20, pedimos-lhes que votem com razão e de forma suprapartidária, garantindo com seus votos a forma original da Lei do Ato Médico, derrubando os vetos que só trazem problemas para a saúde pública do nosso Brasil.

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8 A mentira como sintoma de doença mental Publicado no Jornal Pequeno 02 06 2013.

Os humanos contemporâneos em seu tempo e sua história atual, e já se acostumando com o culto à mediocridade, com a insensatez, com a falta de caráter, com o descuido à Ética e à moralidade, com descompromisso com o coletivo e a exortação do egoísmo além da negligência pelas coisas dignas, desenvolvem, a olhos vistos, um dos seus mais antigos hábitos, que é o de mentir. A mentira, como nós a entendemos, universalizou-se, banalizou-se e está incorporada à cultura atual, a ponto de muitos a praticarem, em distintas proporções e situações com absoluta naturalidade. Do ponto de vista fenomenológico, mentir é uma atitude que nos acompanha ao longo de nossa história. Muitos, como produto dessa cultura, mentem tanto que chegam a acreditar nas mesmas, desfazendo qualquer 73


A mentira como sintoma de doença mental.

dúvida de outrem, quanto à fidelidade das mesmas. Ocorre que de uns anos para cá, através de muitos estudos, a Neurociência e a Psiquiatria moderna têm procurado desvendar as bases fisiopatológicas e genéticas da mentira, procurando entender realmente o que se passa no cérebro do mentiroso. Uma das constatações destes estudos é que a mentira é uma atitude relacionada a um transtorno da Personalidade, que alguns autores chamam de “pseudologia fantástica”, condição caracterizada por uma compulsão a fantasiar uma vida fictícia para causar grande mobilização e perplexidade em outras pessoas (Catalán, 2006). Outros autores a denominam de Síndrome de Münchhausen. Nessa síndrome, a pessoa não suporta a ideia de ela ser comum, normal, igual aos outros. Tem que ser diferente e especial, excêntrica, e para tanto tem que ter peculiaridades excepcionais e fantásticas. Por sua

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vez, essa inclinação impulsiva para mentir reflete uma

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ânsia incontrolável de ser admirado, de ser digno de amor e consideração pelos demais; de ser aceito e considerado nos aspectos que refletem uma grande insatisfação com a sua real e medíocre condição existencial. Essas pessoas produzem e apresentam, intencionalmente, sintomas físicos para receber tratamento


Crônicas do Cotidiano na Visão de um Psiquiatra _VOL 2

médico e hospitalar frequente. Um dos achados mais comuns para conseguirem seus intentos é através da simulação e da mentira patológica. Outra condição médica associada à mentira patológica depressão grave, pois nesta situação a pessoa se coloca em um verdadeiro emaranhado de histórias, desculpas e relatos que vão cada vez mais complicando a sustentação da mentira. A mentira, nesta condição, tem normalmente o propósito de ocultar algum acontecimento que deixaria outra pessoa triste, aborrecida, decepcionada. Nesse caso, o protagonista mente para poupar maiores sofrimentos do outro, mas o resultado é sempre desastroso. Na depressão, as mentiras, ao contrário da sociopatia, são acompanhadas de importante sentimento de culpa e arrependimento. Outra condição psicopatológica comum às mentiras são encontradas nos distúrbios do Controle dos Impulsos. Por exemplo: Jogo Patológico, Cleptomania, Bulimia, Dependência Química e em outros transtornos do controle dos impulsos onde existem muitas mentiras, cujo objetivo principal é ocultar um comportamento social sabidamente reprovado. Outra condição, esta certamente a mais frequente e desafiadora é a mentira entre os portadores de psicopatias. 75


A mentira como sintoma de doença mental.

Para os psicopatas, mentir não é algo banal e corriqueiro, isto ser um fenômeno importante, indispensável; é um instrumento vital utilizado frequentemente de forma intencional, como se fora uma espécie de ferramenta de trabalho. Mentem olhando nos olhos e com atitude completamente neutra e relaxada. O psicopata diz o que convém e o que se espera para aquela circunstância. Em geral, não existe sentimento de culpa, remorso ou arrependimento, mesmo quando tais mentiras prejudicam frontalmente os outros. São

personalidades

narcísicas

e

querem

ser admiradas. Querem ser também os mais ricos e poderosos, mais bonitos, mais bem vestidos, etc. Desta forma, tais individuos tentam adaptar a realidade à sua imaginação, a seu personagem do momento, de acordo com a circunstância e com sua personalidade. Esse indivíduo pode converter-se no personagem que sua imaginação cria como

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adequada para atuar no meio com sucesso, propondo

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a todos a sensação de que estão, de fato, em frente a um personagem verdadeiro. Esses aspectos psicopatológicos dos mentirosos são mais difíceis de serem identificados em razão de vivermos em uma cultura e em uma sociedade em


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que mentir faz parte do dia a dia de muitas pessoas, uma cultura mitômana, mesquinha, que o incentiva a tirar vantagens em tudo. Uma cultura que promove deste cedo as atitudes de nos afastarmos uns dos outros e por isto mesmo passamos a nos vermos como nossos reais inimigos. Por fim, se somos cristãos, concedamos que o 9º mandamento bíblico é imperativo em nosso viver (Deut. 5:20)

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A maconha e o cérebro III Publicado no Jornal Pequeno 12 01 2015.

A utilização da maconha como medicamento é um assunto histórico e controverso. É certamente um dos mais atuais e, quiçá, mais polêmicos recolocado atualmente para o debate. Embora esta discussão não seja nova, ela ganhou ênfase e notoriedade em diversos setores da sociedade organizada, e no âmbito de diversas áreas: médica, jurídica, institucional, política, antropológica e ético-sócio-cultural. É um tema tão importante que vem ganhando cobertura da imprensa internacional! Pela complexidade e abrangência do assunto há poucos pontos consensuais neste debate. Sobre isso, o assunto está dividido. Há os que defendem ardorosamente e incentivam-lhe a liberação para ser usada como medicamento; e outros, absolutamente contrários a qualquer forma de liberação desta 79


A maconha e o cérebro III.

substância, inclusive para fins terapêuticos. As doenças apontadas que podem ser tratadas pela maconha são glaucoma, anorexia, vômitos induzidos por quimioterapia, caquexia, asma brônquica, aids, epilepsia, dor, náusea; espasticidade muscular, depressão, câncer e esclerose múltipla. Todas essas enfermidades, e entre as quais alguns sintomas, são todos conhecidos pela Medicina e seus tratamentos bem estabelecidos no arsenal terapêutico, com tratamentos farmacológicos bem conhecidos e muitos eficazes. Junto a esse tema, retoma-se outro debate histórico que é sua liberação para uso lícito. E, semelhante ao primeiro, tem havido debates acirrados em diferentes áreas na busca de posições consistentes e responsáveis a serem tomadas. Neste caso, a população também está dividida, isto é, uns favoráveis e outros contrários à legalização da maconha.

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Abaixo relacionamos os pontos favoráveis e os

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não-favoráveis à liberação da maconha: Argumentos favoráveis: Argumentam que há um fracasso da adoção de Políticas Públicas no controle do consumo e do tráfico da maconha, fato que ocasiona inúmeros problemas sociais.


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A pessoa poderia escolher sobre o uso ou não da droga e os usuários não teriam que transgredir as leis para usarem a droga. Isto é, o assunto sairia do âmbito do Direito Criminal e passaria para o Direito privado. Haveria um entendimento diferente sobre as propriedades farmacológicas das diversas drogas. Atualmente todas as drogas ilegais são colocadas em um mesmo “saco”, isto é, são consideradas substâncias que provocam os mesmos danos entre os usuários, embora se saiba que todas as substâncias de abuso são diferentes umas das outras com propriedades farmacológicas próprias. Com proibição do uso, quem mais ganha são os traficantes e o crime organizado, pois a criminalidade ligada ao tráfico de drogas é maior que o próprio uso. Com a legalização, o Estado teria o controle efetivo da produção e comercialização do produto, aumentaria arrecadação financeira através dos impostos, e retiraríamos do comando do crime organizado os lucros fabulosos provenientes da atividade ilícita. Há, também, o fato de bebidas alcoólicas e cigarros serem legais, muito embora seus consumos provoquem graves problemas de saúde públicos em nosso país. O que se gasta no controle do tráfico ilícito poderia 81


A maconha e o cérebro III.

ser redirecionado para programas de prevenção e de assistência aos usuários dependentes e às suas famílias, o que atualmente é feito de forma muito precária. Evitar-se-ia o plantio da maconha, por populações de baixa renda (pequenos lavradores) para aumentarem a renda familiar, considerando-se o valor de mercado das drogas ilícitas. Seria evitado o desenvolvimento do mercado negro, clandestino e poderoso sob o comando de traficantes que incentivam o crime e a corrupção de autoridades que controlam e proíbem o uso desta droga. Devido à abrangência do tema, no meu próximo artigo neste jornal, no dia 20 de junho, tratarei dos argumentos desfavoráveis sobre a legalização do uso

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e da sua utilização terapêutica.

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A maconha e o cérebro Publicado no Jornal Pequeno 01 12 2014.

Sobre o histórico da maconha. O termo maconha provém do Quimbundo ma’kanã, pl. de di’kanã, tabaco, erva santa. É a droga ilícita mais consumida no mundo, sendo utilizada por cerca de 146 milhões de pessoas ou 3,7% da população mundial acima de 15 anos (2004 UNDOC). Seu uso é conhecido há pelo menos 12.000 anos e sua utilização como droga de abuso existe por 4.000 anos. A primeira fonte que relata o uso desta droga é o Pen Ts’ao, uma típica produção chinesa sobre as plantas medicinais datada de 28 a.C. Trata-se de uma substância que sempre foi utilizada com várias finalidades: industriais, medicinais, recreativas, em diversas pesquisas e como droga de abuso. A cannabis, que significa cânhamo em latim, e sativa, semeada, plantada, foi intensamente utilizada 83


A maconha e o cérebro.

para vestuário e cordoaria, há pelo menos 12.000 anos. Postula-se que a maconha no Brasil tenha sido introduzida pelos escravos, os quais lhe fomentaram o cultivo. É uma mistura verde, marrom ou cinzenta de flores e folhas secas e pedaços do cânhamo. Sobre o seu consumo Relatório mundial sobre o consumo de drogas de 2007,realizado pela UNDOC das Nações Unidas, informa que o consumo de maconha e haxixe entre brasileiros com 15 a 64 anos de idade aumentou de 1% em 2001 para 2,6% em 2005. A produção mundial de maconha (erva) passou de 42 mil para 45 mil toneladas. Segundo a mesma agência, a cannabis está muito mais potente agora por interferência de melhoramentos genéticos, sendo um equívoco considerar maconha e haxixe como drogas brandas ou de uso inofensivo. As evidências científicas não param de crescer P a l h a n o

clínicos (respiratórios cardiovasculares, hematológi-

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demonstrando que seu uso causa graves problemas

tam a droga não conseguem interromper-lhe o uso,

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cos e principalmente doenças mentais graves, como alucinações, delírios, depressões e transtornos de ansiedade). Além disso, cerca de 9% dos que experimen-


Crônicas do Cotidiano na Visão de um Psiquiatra _VOL 2

tornando-se, portanto, dependentes da droga. Sobre seu mecanismo de ação O cigarro de maconha, denominado “baseado”, contém cerca de 600 substâncias quimicamente ativas, entre as quais 60 alcalóides que já foram identificados como os canabinóides, substâncias responsáveis pelos efeitos psíquicos, fisiológicos e comportamentais provocados pela maconha. O mais ativo deles é o Delta-9-Tetrahidrocanabinol (THC). Encontram-se ainda na composição da maconha: nicotina, alcatrão, benzopireno, acroleínas, tolueno, nitrosaminas, benzantracenos, substâncias altamente tóxicas para nosso organismo. O THC, semelhantemente às outras drogas de abuso, funciona no cérebro e age modificando a bioquímica e a neurofisiologia cerebral, provocando as diversas alterações emocionais, sociais e comportamentais que ocorrem entre os usuários. As áreas do cérebro mais afetadas são córtex cerebral, hipocampo, cerebelo e gânglios da base, regiões do cérebro ricas em receptores do THC e responsáveis pela coordenação motora, memória, pensamento, emoções e ânimo das pessoas. Os receptores do THC são as áreas do cérebro onde funcionam as moléculas da substância e, portanto, onde produzem seus efeitos. 85


A maconha e o cérebro.

O THC age no sistema de dopamina cerebral o que explicaria, entre outras coisas, o prazer e euforia que se sente ao usar a droga. Esse sistema interage com os outros sistemas de neurotransmissão cerebral como o da serotonina, colina, gaba e opioide. Outro ponto importante diz respeito às dúvidas que ainda pairam na sociedade sobre se a maconha causa ou não dependência. Quanto a isso, cumpre informar que todos os trabalhos científicos, manuais de Psiquiatria e de Farmacologia e inúmeras pesquisas mostram a capacidade de o THC gerar dependência nos usuários, pois seu uso ocasiona três sintomas importantes para caracterizar esse fenômeno: 1. abstinência (passar mal quando se para de fumar); 2. tolerância (aumento contínuo da dose de consumo); 3. fissura, isto é, um desejo descomunal e, às

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vezes, incontrolável de usá-la.

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Esses três sinais e sintomas, associados a outros, não menos importantes, caracterizam a dependência da maconha. Nos últimos 10 anos, houve uma mudança cultural quanto ao uso dessa substância. Atualmente,


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é difícil encontrar alguém consumindo-a isoladamente. Normalmente, seu uso está associado à pasta básica de cocaína (merla) ou a pedras de cocaína (crack), o que torna seus efeitos mais danosos e perigosos ao organismo. Outra questão, que em breve será tratada neste espaço, é o reaparecimento do antigo debate sobre o uso terapêutico da maconha, assunto que vem despertando interesse nos grandes debates internacionais, uma vez que envolve a descriminalização do uso versus os respectivos males físicos, mentais e sociais.

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11 Abaixo os preconceitos contra os doentes mentais Publicado no Jornal Pequeno 18 04 2016.

Cada vez mais a sociedade civil deste país se insurge contra as incongruências e a violência contida nos preconceitos e nos estigmas sociais. Preconceitos de todos os tipos: contra gays, negros, pobres, prostitutas, nacionalidades e, sobretudo, contra os doentes mentais. Nesse particular, estes são profundos e antigos, pois desde os primórdios da Psiquiatria que se sabe dos danos e prejuízos ocasionados por eles, considerandos-se os estigmas que há em torno desses doentes. Preconceitos e estigmas são na condições pejorativas desvalorativas dirigidas contra alguém ou contra algo, que ocorra na realidade. São conceitos antecipados, que antecedem ao que de fato ocorre, o que representam ou mesmo o que são na realidade. Os preconceitos estão quase sempre inseridos em um contexto social, psíquico ou cultural ou a condições 89


Abaixo os preconceitos contra os doentes mentais.

específicas que fazem parte dos indivíduos. Em geral ,os preconceitos são estigmatizantes e segregacionistas, visto que indivíduos e/ou condições psicossociais são desqualificados e postos à margem. São repletos de violências contra o que, e a quem se dirige. A Associação Brasileira de Psiquiatria – ABP, há quatro anos, desenvolveu a campanha “A Sociedade Contra o Preconceito”, lançada durante o XXIX CBP. Essa campanha ganhou notoriedade de tal forma e até culminou com o projeto “Psicofobia é um Crime” que, após várias audiências públicas, apresentou emenda ao projeto de reforma do Código Penal, para criminalizar a segregação de portadores de transtornos mentais. O programa “Psicofobia é um Crime” visa institucionalizar nossa luta no sentido de combater os preconceitos e os estigmas que ocorrem na Psiquiatria. Trata-se de um manifesto consciente, responsável, humanizador, que visa extirpar os preconceitos e/

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ou qualquer outra forma de descriminação que exista

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a respeito dos doentes mentais. É uma forma de demonstrar nossa indignação e disposição de lutar contra os preconceitos a esses doentes, os médicos psiquiatras e a psiquiatria como especialidade médica. Através deste Programa “Psicofobia é um Crime”, nós, psiquiatras, já avançamos muito. Artistas, poetas,


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políticos e escritores se apresentaram na abertura dos nossos Congressos de Psiquiatria tratando de tais preconceitos, relatando suas experiências como portadores de alguns transtornos psiquiátricos ou de alguns parentes seus. Além disso, redes de tv e grandes jornais nacionais atualmente se dirigem à ABP para ouvi-la quando o assunto é sobre doença mental, fato que nunca houve na história da psiquiatria desse país. Entre essas figuras de notoriedade pública destacamos o grande humorista Chico Anísio, o narrador e comentarista esportivo Luciano do Vale, o grande poeta maranhense Ferreira Gullar e tantas outras personalidades públicas, não menos importantes, já se pronunciaram contra os estigmas que os doentes mentais têm de carregar. É bom que se diga que as doenças mentais obedecem às mesmas regras, leis e princípios que regem as demais doenças humanas, só diferindo quanto à forma de se expressarem clinicamente, e nada mais. São doenças que, como muitas outras, se tiverem precocemente um bom diagnóstico e um tratamento adequado terão um prognóstico favorável e muitos desses enfermos se recuperam inteiramente ao ponto de levarem uma vida absolutamente normal, como qualquer um. 91


Abaixo os preconceitos contra os doentes mentais.

A evolução nos critérios de diagnósticos dessas enfermidades, os avanços farmacológicos e outras formas de tratamento, bem como os avanços nos recursos laboratoriais, hoje disponíveis, são considerados absolutamente importantes no controle clínico e epidemiológico. Fatos que vêm colaborando, sobremaneira, para a derrubada dos estigmas aqui encontrados. Essa imagem malévola, demoníaca, amedrontadora, segregacionista de que os doentes mentais são doentes violentos são um puro legado dos preconceitos e dos estigmas que existem contra esses pacientes, que, por extensão, resvala na Psiquiatria como especialidade médica, nos psiquiatras, nos hospitais psiquiátricos e, porque não dizer, nos tratamentos a eles oferecidos. A meu ver, o que deveria ser feito (e que infelizmente não o é) seria dispormos de uma Política pública que trate desse assunto de forma decente, ampla,

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humanizada, tecnicamente eficiente, para se oferecer

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aos doentes mentais e às suas famílias. Ocorre, todavia, que os governos de forma irresponsável e negligente não dão relevância para essa área da Saúde pública. Os pacientes são segregados, tratados de forma negligente e desumana, o que reforça muito mais os preconceitos e estigmas que há sobre eles.


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Acredita-se que, se houvesse de fato uma reforma da assistência psiquiátrica e em saúde mental, capaz de oferecer a esses enfermos o que eles necessitam e têm direito constitucional, estaríamos destruindo o pior inimigo: o preconceito, que há em seu entorno. Psiquiatria, especialidade de loucos Essa é uma crença popular que está arraigada na crendice de muita gente! A Psiquiatria, como especialidade médica, tem pouco mais de 200 anos, portanto, é uma das mais novas especialidades em Medicina. Por muitos anos foi considerada “irmã adotiva” das outras especialidades e isso ocorreu por várias razões, entre as quais, o desconhecimento sobre a natureza das doenças mentais e os enormes preconceitos que havia, e ainda há, sobre elas.

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12 A propaganda de bebida alcoólica, as tragédias e a reação social Publicado no Jornal Pequeno 11 05 2015.

Há uns 10 dias, nossa cidade foi mais uma vez abalada por uma tragédia, ao ser anunciada a morte de Laura Burnett Marão, uma criança de apenas 8 anos de idade, que nem começou a viver e, na companhia dos pais, fora vítima de mais um grave abalroamento entre o veículo que a conduzia e outro dirigido por uma pessoa em estado de embriaguez alcoólica. Junto a Laura se vão milhares de outras vítimas nessas mesmas condições diariamente nesse país. Vão-se sonhos, esperanças, e ficam a imensa dor e a tristeza insuperável de se perder um filho, uma filha ou um ente querido nessas condições inaceitáveis. Pais, filhos, mães, e muitas outras pessoas em estado deploráveis por verem seus entes queridos sumirem, como num sopro de mágica, desaparecerem na vida. Como Laura, milhares de pessoas já não estão 95


A propaganda de bebida alcoólica, as tragédias e a reação social.

mais conosco, porque, alguém embriagado, irresponsavelmente, sem qualquer condição de dirigir um veículo, lança-o contra outrem, que esperava viver mais. Estima-se que no Brasil 45 mil pessoas morram anualmente nessas condições. Em consequência dessas tragédias, ontem a litorânea foi sede de mais manifestações sociais, de apoio e de solidariedade à família de Laura e de milhares de outras vítimas desses acontecimentos. A Avenida, repleta de pessoas que foram solidarizar-se com a família dessa criança e com todas as outras famílias vítimas dessas tragédias, no fundo alimentam uma grande esperança de não ocorrer mais isso em nosso cotidiano. Esperança de termos medidas mais ostensivas e que sejam aplicadas às pessoas que irresponsavelmente tiram a vida dos outros protegidos por um manto da impunibilidade e do esquecimento. Pessoalmente, acho que temos que continu-

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ar avançando no rumo de medidas mais repressivas,

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mais preventivas e mais educativas que nos auxiliem a lidar melhor com tais problemas, muito embora se reconheça que houve avanços nessa área nos últimos 5 anos. Temos hoje leis mais pontuais, mais duras* * Em recente lei, 2/2016, a multa para a embriaguez passou a mais de R$ 1.000,00 e mais: exames de urina, sangue etc. Diga-se de passagem, expedientes investigativos nos Estados Unidos, por exemplo.


Crônicas do Cotidiano na Visão de um Psiquiatra _VOL 2

definindo medidas mais efetivas, que estão sendo aplicadas em nosso território nacional para controlar todos esses abusos e transgressões à vida e às regras sociais. Algumas dessas medidas funcionam, outras não. E não funcionam porque a fiscalização é deficiente na aplicabilidade dessas medidas, ou ainda pelo exagerado abrandamento das penalidades sobre os que transgridem, de forma grave, as regras e as leis que existem nesse contexto. Porém, há uma situação que me parece intocável, em razão do que é feito no sentido de controlar o uso de álcool em diferentes contextos, qual seja: a permanência da vigorosa propaganda de bebidas alcoólicas em nossos meios de comunicação. Quanto a isso, nos dá a impressão de que estamos diante de algo sagrado, intocável, pois ninguém ousa mexer um dedo sequer, nas diferentes áreas do poder, para alterar essa questão. Todos sabem do grande impacto que essas propagandas exercem quanto ao consumo de álcool pela população e os danos que esse consumo ocasiona à saúde pública, ao bem-estar social, à segurança da população, aos custos previdenciário, à economia e ao setor trabalhista deste país. Há incongruências estabelecidas na acintosa permissividade de se fazer propaganda de bebidas alcoólica, ante os índices alarmantes e assusta97


A propaganda de bebida alcoólica, as tragédias e a reação social.

dores das mazelas ocasionadas pelo consumo de álcool. E a questão é mais relevante ao se verificar que essa propaganda é feita em um país como nosso, cuja população predominantemente jovem, o segmento mais influenciado diretamente por essas propagandas. Só para meus leitores terem uma ideia, há altos índices de suicídio entre jovens usuários e dependentes de álcool; 13% dos que bebem são dependentes; 45% dos leitos hospitalares brasileiros são ocupados por alguém com problema relacionado ao consumo de álcool; que 75% dos acidentes automobilísticos com resultados fatais envolvem motorista que dirigia embriagado; mais da metade dos leitos dos hospitais psiquiátricos têm alguém com doenças alcoólicas; e 90% dos homicídios ocorrem após ingestão de álcool. Volto a dizer: são 45 mil pessoas que morrem anualmente, falecimento ocasionado por um motorista dirigindo embriagado.

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São índices assustadores que deveriam ser leva-

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dos em conta quando se analisa a propaganda de bebida alcoólica, cuja capacidade de influenciar condutas no sentido de induzir o consumo é inegável, sobretudo entre os jovens. Esses, com idade entre 14 e 17 anos respondem por 6% de todo o consumo anual de álcool do país. O número é preocupante, já que a lei proíbe


Crônicas do Cotidiano na Visão de um Psiquiatra _VOL 2

o consumo de bebidas alcoólicas entre menores de 18 anos. Jovens de 18 a 29 anos são responsáveis por 40% do consumo de álcool e, segundo o IBGE, esse grupo representa 22% (1/5) da população brasileira. Outro número estarrecedor; 7% da população jovem brasileira, com até 17 anos, já são dependentes de álcool, isto é, são alcoólatras. Se pensarmos que apenas pouco mais de 60% da população bebem 40% de todo o consumo anual de álcool e, mais ainda, que são jovens, fica evidente o risco representado pela publicidade que, cada vez mais, tem como alvo esse público. Evidentemente, forças econômicas poderosíssimas estão por trás das decisões políticas de não se tratar nem de proibir essas propagandas. Registra-se que, anualmente, a indústria gasta 30 bilhões de dólares com publicidade e que emprega 30 mil pessoas de forma direta nesse negócio. Um negócio gigantesco! Só que os custos médicos, sociais, econômicos e outros já apontados acima, deveriam funcionar pelo menos como um incentivador para o debate público sobre essa questão, se não, pelo menos, incentivar um debate ético sobre propaganda dessa droga no país. Quero, finalmente, me solidarizar com a família de Laura, com os milhares de outras famílias que nesse país estão passando por essa dor insuportável, 99


A propaganda de bebida alcoólica, as tragédias e a reação social.

por perder um filho, uma filha ou um ente querido, nessas condições. E é com muito pesar e tristeza que digo: Vamos mobilizar-nos cada vez mais para pressionarmos as autoridades constituídas a combaterem de forma mais ostensiva o consumo de álcool em nossas cidades! Com isso, evitar tragédias como a que houve

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com Laura, abatendo dolorosamente sua família.

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A Vigésima Copa do Mundo Publicado no Jornal O Imparcial 15 06 2014.

Há quatro dias iniciou-se em nosso país um dos maiores eventos esportivos de todos os tempos, o campeonato mundial de futebol. Um evento histórico que há 83 anos vem-se notabilizando e já se encontra no calendário esportivo internacional, tendo sua primeira edição ocorrida em 1930. Ao longo dos últimos anos, a Copa vem sofrendo muitas mudanças em sua forma de expressão e em sua finalidade histórica, a ponto de terem-na desconfigurado o suficiente para nos confundir quanto ao seu real papel na vida de um povo ou na vida do país que a sedia. As mudanças são tamanhas que o próprio comportamento da população mudou muito! O clima afetivo, emocional e as expectativas não são as mesmas de antes, “o espírito da Copa não baixou”, há muitas greves, protestos e muitas manifestações populares 101


A Vigésima Copa do Mundo.

disseminadas pelo país inteiro, revelando a imensa indignação e insatisfação popular em seu entorno. A corrupção desvairada do dinheiro público, obras superfaturadas e inacabadas, aplicação inadequada do erário, contratos espúrios e muitas outras situações colaboram para mudar o clima psicológico dessa ocasião. Esses fatos me levam a refletir que, se nós estivéssemos sendo observados a distância por um alienígena muito atento ao que se passa conosco, certamente nos perguntaria: “O que está havendo nesse país, que, às vésperas da Copa do Mundo, está sem o mesmo entusiasmo de antes?” “Onde tantos torcem contra o Brasil por rechaço político?” Pensa, ainda: deve ter havido algo muito importante com essa população, que sempre adorou Copas do Mundo, pois eles parecem divididos, chateados e até revoltados com o evento. De fato, essa é a realidade de uma Copa do Mundo: bem diferente de todas as outras que tive o pra-

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zer de assistir. Nelas, o futebol era o grande enredo

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e a população a grande beneficiária, em todos os sentidos. Todos se alegravam, vibravam, participavam ativamente de tudo. Parecia que estávamos em estado de graça e em consonância com o evento. Todos “juntos torcendo a uma só voz” e o país todo vibrando, entusiasmado, incentivando os jogadores a lutarem para trazer a taça de


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tal forma que tudo corria bem, sem grandes atropelos. A Copa era do povo, para o povo e pelo povo. O futebol transcorria simplesmente, os jogadores pareciam determinados, suavam a camisa para nos trazer a taça. Agora, a própria decisão política de trazê-la para o Brasil gerou polêmica, pois muitos achavam que o país estava despreparado para recebê-la* e, correríamos o risco de provocar uma grande decepção internacional. Assim, temos um país conflitado, dominado pelos cartolas, sem voz e vez e submetido às leis da FIFA, onde os Srs. Gerome e Blatter dão literalmente as cartas do jogo. Ambos, com bastante “expertise” em exercer com sabedoria a função de porta-vozes dos grandes interesses internacionais que se alimentam do futebol e que o transformaram em um meganegócio. Ambos os senhores, com muita habilidade, escolhem a dedo os países-sede, pois está bem demonstrado, haja vista o que ocorreu aqui conosco, que quem ganha é quem der mais para a FIFA. A escolha do país-sede “passa obrigatoriamente por uma rigorosa negociação técnica, politica, econômica e financeira” entre os distintos interessados, que juntos “protegerão o grande capital a qualquer custo”. * A triste constatação agora em 2016, por exemplo, é a de graves problemas (principalmente econômico-financeiros) que o legado da Copa nos tem deixado.

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A Vigésima Copa do Mundo.

Em nosso país, ela é a maior beneficiária. Veja que, por decisão governamental, a FIFA terá isenção tributária abrangente e a expectativa que essa renúncia fiscal seja superior a R$ 1 bilhão de reais. Tudo de graça e sem reclamação. E, ao que me consta, nosso país foi o único do mundo que sediou uma Copa do Mundo a fazer isso! Além do mais, para garantirem e defenderem literalmente seus interesses, os magos da FIFA, Blatter e Gerome, juntamente com empresários, autoridades públicas, a cartolagem do futebol nacional e sob as bênçãos do Congresso Nacional, nos fizeram engolir uma legislação federal espúria e inconstitucional, segundo especialista, denominada de “lei da Copa”, além de terem rasgado uma das leis mais importantes do futebol brasileiro, o Estatuto do Torcedor. A partir de então, a FIFA do Blatter e do Gerome passou a mandar no Brasil. Ao virem para cá, por dezenas de vezes, eram “recebidos como chefes de Estado”, adotando atitudes exigentes, impetuosas,

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arrogantes, e autoritárias ao longo de todo tempo que

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estiveram fiscalizando as tais obras dos jogos. Deram ordens, reclamavam, desafiaram autoridades, chacoalharam ministros, criticaram a competência dos nossos técnicos e da segurança pública, todos em consonância com suas exigências e com seus negócios.


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Para não os contrariar e seguindo rigorosamente as “regras da cartilha da FIFA”, o Governo desse país, responsável por trazer a Copa para cá, investe mais de 30 bilhões de reais de nosso minguado e suado dinheiro para construir as tais arenas e outras obras, as quais, depois serão lembradas como elefantes brancos corroídos pelo tempo e não servirão para nada. O mais constrangedor é ver nosso dinheiro adquirido com suor, luta e de forma honesta sendo aplicado em obras que não se transformarão em moradias necessárias para muita gente sem teto. Não se transformarão em empregos para milhares de pessoas desempregadas ou que nunca trabalharam. Muito menos se transformaram em transporte e vias públicas, para garantirem a mobilidade urbana, razão de tantas greves pelo Brasil a fora. Em Saúde, a condição é vergonhosa e precarizada, ou por incúria, ou incompetência, e finalmente, em educação e escolas milhões de estudantes não têm as mínimas condições de estudar. Finalmente, ao alienígena, eu diria: “Eis, caro amigo, algumas das razões que nos constrange a todos ante a atual Copa do Mundo, a qual já não nos pertence.” De futebol, mesmo, quase nada, pois o que há é muita mídia, muita propaganda em seu entorno**. **A Resposta, infelizmente trágica, foi o 7 a 1 ante a Alemanha.

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A Vigésima Copa do Mundo.

De um lado o império FIFA, sugando e levando tudo que é nosso com o aval do Governo brasileiro, do Congresso Nacional, de empresários corruptos nocivos à vida moral desse país, por outro a população ambivalente, insegura, temerária e revoltada com tantas contradições e falcatruas que vêm ocorrendo nesse país, onde futebol mesmo, só depois da Copa, pois isso que

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assistimos são jogos de futebol do Blatter e do Gerome.

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14 A violência como marca assustadora da sociedade Publicado no Jornal O Imparcial 05 05 2013.

É cada vez mais desanimadora a possibilidade de nós, nos próximos anos, vivermos em uma sociedade em paz, muito embora seja o grande clamor nos dias atuais. Todos clamam por Paz, por Justiça, por mais igualdade e, sobretudo por segurança. Este último apelo cresce em proporções avassaladoras em consequência do aumento dos índices de violência em nossa sociedade. É um tema que abastece a grande mídia nacional. Consideremos que boa parte do tempo dos noticiários, dos telejornais e de outras mídias é dedicado a anunciar fatos de conteúdos violentos e muitos com requinte de crueldades, inaceitáveis. Os anos passam, as reclamações se avolumam e parece que estamos imobilizados diante do avanço sistemático da violência entre nós. A violência*, sob qualquer ótica que a examinemos, * Diz a Bíblia, por exemplo, que o homem, após a Queda no Éden, instituiu o horror e o sexo em sua mente.

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A violência como marca assustadora da sociedade.

nos conduz a considerá-la como um epifenômeno que tem suas raízes nas dimensões individuais e sociais, onde um grande número de fatores de diferentes matizes concorre para sua expressão final. Há uma corrente de pensadores e de estudiosos, entre os quais sociólogos, antropólogos, juristas, psiquiatras e outros tantos profissionais, que consideram a violência como uma espécie de “ponta de um iceberg”, onde os verdadeiros problemas estariam submersos e o comportamento violento seria o pano de fundo, para não os vislumbrar. Isto é, a violência seria um sintoma que esconde a verdadeira doença a que estamos submetidos, e esta, por sua vez, expressaria as profundas contradições e desagregações tanto individuais quanto sociais da atualidade. Por outro lado, há os que acreditam que devido ao alto grau da sua presença e dos graves problemas a ela relacionados, ela própria se tornaria fenomenologicamente “o problema” com identidade, autonomia e independência no contexto social. Portanto, a violên-

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cia seria um fenômeno independente, com vida própria,

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não sendo um “sintoma” de algo que nos constrange, como vimos acima, mas ela, em si, seria a doença. Há verdades em ambas as afirmações. Acredito que a presença da violência em uma sociedade reflete tanto uma coisa quanto a outra, isto é, sintoma e doenças


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caminham juntos, de tal forma que o melhor seria entendermos a violência como um fenômeno composto de ambos os argumentos. Ocorre que passa a ser tão comum e frequente a prática da violência, que ela se tornou banalizada. As pessoas só se dão conta de suas inseguranças e nada mais. O fato violento passa a ser banal, comum e corriqueiro. As manifestações de indignação se dão de forma localizada e isolada, dissonante das medidas públicas que são utilizadas para seu enfrentamento. E como isto se daria? Através da criação de um ser humano violento, autor e vítima do próprio comportamento violento. Somos violentos em nossa natureza** carnal, mas estamos nos transformando em seres mais violentos. E é este homem violento que produz, fabrica e cultiva a violência. É um novo ser que está sendo construído pela sociedade moderna, indiferente à dor e ao sofrimento do outro, um homem que a cada dia pratica a maldade com requintes de crueldade, distante da ética, da bondade da crença, da fé, um homem que cultiva o desamor, arrogância, onipotência, ávido pelo poder, pela posse, sem solidariedade e sem humanidade, entre outras coisas. **A Bíblia assim o diz. Entretanto, a graça divina pode resgatar-nos.

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A violência como marca assustadora da sociedade.

Posso afirmar que o homem contemporâneo expressa a própria violência em sua natureza, embora não o seja. A sociedade que se constrói reflete o que se passa por dentro de cada um***. A impressão que se tem é que cada um de nós vive como se fosse morrer amanhã e temos que fazer tudo de forma rápida e ao nosso modo. Matamos os outros como se não fizessem parte de nós, ou como se nós mesmos fôssemos nossos próprios inimigos. Destruímos as plantas, os animais, como se não fizessem parte de nosso universo, exortamos o ódio como se fosse um instrumento de defesa, não sabendo que o ódio destrói a quem o sente e não aos outros. O homem que está sendo construído, está destruindo-se a si mesmo. Esta é a matriz da violência: não é o trânsito que mata, as drogas que destroem a Humanidade, muito menos a injustiça que nos destrói, muito embora se saiba que cada um desses itens é sumamente impor-

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tante na avaliação da situação e tenha sua importância

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relativa, mas o essencial está dentro de cada um de nós, e o pior é que muitos não sabem nem o que há dentro de si mesmo.

*** Considere-se ainda que a escola representa e reproduz a sociedade, através de sua tripla função: social, pedagógica e antropológica.


15 Abaixo a propaganda de bebida alcoólica Publicado no Jornal O Imparcial 05 05 2010.

Há bem pouco tempo houve em nosso país um dos mais importantes e oportunos movimentos populares a favor da regulamentação da propaganda de bebida alcoólica. O movimento foi encabeçado pelo Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo – CREMESP e, tão logo anunciado, muitas outras instituições de peso neste país aderiram ao movimento, como os demais conselhos regionais de Medicina e a Associação Médica Brasileira, que reconheceram muito valor nessa iniciativa. O movimento foi designado MOVIMENTO PROPAGANDA SEM BEBIDA, cuja meta seria atingir um milhão de assinaturas oriundas da população brasileira, a fim de solicitar a aprovação de lei que limitasse a propaganda de bebidas alcoólicas, a exemplo da atual legislação relativa à propaganda do cigarro. 111


Abaixo a propaganda de bebida alcoólica.

Pela primeira vez, em nosso país, a propaganda de bebidas alcoólicas teria a oportunidade de ser tratada pela Câmara Federal como instrumento colaborador de um dos mais graves problemas de saúde pública, o qual onera sobremaneira o sistema de Saúde, o judicial, o penal e outros segmentos públicos. Sabe-se que a frequente e regular exposição à propaganda é responsável pelo consumo cada vez maior e precoce de álcool no Brasil, acarretando os inúmeros problemas por demais conhecidos de todos. As empresas do ramo de bebidas alcoólicas, em especial a cerveja, são patrocinadoras de eventos esportivos, musicais, shows e inúmeras atividades culturais, que atraem milhões de jovens – dando a entender que a juventude só deve ou pode viver à mercê do consumo de álcool, transformando assim o ato de beber em algo corriqueiro e banal. Isso impede que as pessoas vejam com profundidade, especialmente a

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juventude, as consequências desastrosas dessa prática.

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Considerem, por exemplo, o que houve em nosso país com a promulgação da lei seca, uma das mais importantes iniciativas do Congresso Nacional, lei esta que acabou com a tolerância ao uso de bebidas alcoólicas associado ao volante, com resultados visivelmente animadores que já comprovam a importância desta lei.


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Em São Paulo, Rio de Janeiro e Goiânia, bem como em outras cidades brasileiras, os atendimentos realizados por grandes hospitais expressam uma redução entre 17% e 30% no atendimento de pessoas envolvidas em acidentes com veículos ao dirigirem sob efeitos de bebidas alcoólicas. Tais dados revelam ser a lei uma grande conquista da população, como vem sendo ressaltado pelo ministro da saúde José Gomes Temporão. Ele nos informa, ainda, que, do ponto de vista econômico, pelos dados do IPEA, entre 2001 e 2003, os custos dos acidentes de trânsito em áreas urbanas envolvem perdas, somente em resgate e internação, de R$ 5,3 bilhões anuais em detrimento dos cofres da saúde. O valor é similar ao que é investido anualmente no Programa Saúde da Família para cobrir uma população de quase 100 milhões de pessoas, além de ser cinco vezes maior do que a quantia aplicada em todo o tratamento de pessoas portadores de HIV, que somam cerca de 200 mil pessoas. O mesmo instituto, em 2006, demonstrou que os impactos sociais e econômicos dos acidentes de trânsito nas rodovias brasileiras chegam a R$ 24,6 bilhões, valor esse principalmente relacionado à perda de produção tendo em vista a morte de pessoas ou a interrupção das atividades das vítimas. 113


Abaixo a propaganda de bebida alcoólica.

Observem que esses dados representam apenas um aspecto relevante do ponto de vista social, da saúde e da segurança relacionado ao consumo de álcool. Acrescente-se que 45% dos suicídios estão relacionados com o consumo de álcool; que, em 90% dos homicídios, há alguém embriagado; que 13% da população brasileira são dependentes de álcool, representando cerca de 26 milhões de pessoas que, por serem enfermas, necessitariam de tratamento médico especializado; que 45% dos leitos dos hospitais públicos são ocupados por alguém que tem problemas com álcool; que o consumo de álcool é a terceira causa de morte no mundo; e, por fim, que a metade dos atendimentos em prontos-socorros psiquiátricos relaciona-se a pessoas embriagadas e, mais da metade das internações nesses hospitais referem-se a esses pacientes. Note-se que os dados epidemiológicos demonstram a gravidade dos problemas ligados ao consumo de álcool, a despeito dos lucros exorbitantes auferidos

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pelas empresas que produzem as bebidas e veiculam

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incessantemente propagandas incentivadoras e estimuladoras do consumo indiscriminado do álcool. Outros argumentos são favoráveis para que haja uma melhor regulamentação da propaganda desses produtos. O álcool etílico não é uma mercadoria


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comum, como uma roupa, um carro, uma casa. É um produto altamente nocivo à saúde, sobretudo se abusado, considerando sua capacidade psicoativa de atingir áreas nobres do sistema nervoso central (cérebro) encarregadas de garantir o equilíbrio e a saúde mental dos indivíduos. O consumo abusivo de álcool está relacionado com inúmeras doenças mentais invalidantes e que evoluem de forma crônica, gerando disfunções graves no comportamento dos usuários. Em nossa opinião, deveria haver, além de rigoroso controle por parte dos órgãos que regulam a propaganda, mecanismos jurídicos que responsabilizassem de forma mais austera as empresas que promovem a propaganda do consumo de bebidas, a exemplo do que ocorre, no mundo, com o cigarro. Deveria haver, igualmente, maior controle por parte dos órgãos sanitários sobre a venda de bebidas e o credenciamento dos pontos de venda desses produtos. Caberia, por fim, maior fiscalização do cumprimento de leis que proíbem o uso de bebidas alcoólicas por menores de 18 anos, o que acontece atualmente de forma precária.

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16 Alcoolismo: doença que começa com o prazer e termina com dor Publicado no Jornal Pequeno 13 09 2010.

Dependência do álcool pode ser definida como um padrão mal-adaptativo de uso de álcool levando a pelo menos 3 de um conjunto de 7 possíveis sintomas, incluindo a tolerância, a retirada (abstinência), a perda de controle em limitar a ingestão do álcool, o desejo de reduzir a ingestão da substância, compulsão para procurar e aceitar a droga, a perda de outras atividades por causa do uso de álcool e uso continuado, apesar do conhecimento de seus efeitos negativos. Estas características psicológicas comportamentais acima citadas definem clinica e evolutivamente a doença alcoólica. O primeiro dos sintomas se refere à tendência que se desenvolve nos bebedores que estão desenvolvendo a dependência de beberem mais (aumentar o consumo de álcool) e a beberem mais rapidamente em uma mesma ocasião de consumo. A este fenômeno 117


Alcoolismo: doença que começa com prazer e termina com a dor.

chama-se tolerância. Pode surgir um estado emocional negativo (por exemplo, instabilidade do humor (disforia), irritabilidade exagerada, ansiedade difusa quando o acesso ao álcool é impedido, isto é, quando a falta de álcool. Quanto mais desenvolvida está a dependência alcoólica mais pronunciados são estes sintomas. Este fenômeno é chamado de síndrome de abstinência que, dependendo da situação, pode ser leve moderada ou grave. O consumo do álcool especialmente nos iniciantes, isto é, os que começam a beber, faz com que se sintam recompensados pelos efeitos advindos do consumo, que pode ser definido como um estímulo de reforço positivo pelas sensações de muito prazer (hedônica) e ante-recompensa (desprazer). Antirrecompensa é um conceito baseado na hipótese de que existem mecanismos cerebrais para limitar a recompensa e é representada ao nível neurocircuitos cerebrais portanto dentro e entre sistema

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neuroadaptações à ativação do sistema de recompensa.

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A perda de controle sobre a ingestão da bebida é outro fenômeno observado na doença. Há pessoas que começam a beber e não param mais, a não ser quando já estão muito intoxicados (bêbedos): quanto mais bebem mais querem beber em uma só ocasião. Como haveria de se esperar, nessas ocasiões ocorrem


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muitos problemas médicos e psicossociais com estas pessoas e uma das mais frequentes, são os acidentes ao dirigir veículos alcoolizados. Outro sintoma frequente é o fato de essas pessoas privilegiarem o consumo do álcool em detrimento de outros interesses. A pessoa deixa, às vezes, de fazer muitas coisas, que anteriormente lhe despertavam muito interesse e importância simplesmente para ficarem bebendo o dia todo e/ou todos os dias O conhecimento cada vez maior sobre os mecanismos neurobiológicos da dependência alcoólica é cada vez mais relevante para a consecução dos tratamentos farmacológicos da dependência, pois através destes estudos se podem entender a neurofarmacologia e os mecanismos neuroadaptativo que ocorrem com nosso cérebro e o álcool. O alcoolismo é uma doença crônica, que evolui de forma lenta e, muitas vezes, fatal. O óbito e a invalidez por alcoolismo é muito grande em nosso meio. É uma doença que provoca um sofrimento enorme para a família destes enfermos, muitas se sentem, inclusive, impotentes para lidarem com seus enfermos. É um transtorno recidivante, onde o alcoólatra recai por inúmeras vezes até alcançar a sobriedade. É progressiva e regida por comportamento impulsivo ao 119


Alcoolismo: doença que começa com prazer e termina com a dor.

consumo até atingir estágios compulsivos da ingestão cujo ciclo se dá em três fases: Binge (impulsividade/compulsividade) no consumo / intoxicação, abstinência por falta de álcool / efeito negativo (desprazer), e preocupação / antecipação da ideia de voltar a beber. Apesar de todas as dificuldades anunciadas sobre esta doença, a perspectiva de tratar e recuperar são cada vez maiores. Primeiro, diminuem a cada dia os preconceitos sobre esta enfermidade, isto é, as famílias e a própria pessoa já dispõe de informações suficientes para saberem que alcoolismo não é sem-vergonhice nem fraqueza de caráter, como muitos ainda pensam, mas, sim, uma doença grave recidivante, fatal que pode e dever ser tratada. Cresceu muito nos últimos 10 anos nosso conhecimento sobre as bases genéticas e neurofisiológicas desta doença, a partir de pesquisas avançadas que vêm

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se desenvolvendo no mundo todo sobre o alcoolismo,

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fato que favoreceu o surgimento de medicamentos cada vez melhores para o controle efetivo desta doença, tanto no controle da compulsão para beber, quanto na possibilidade dos enfermos se tornarem avessos para o consumo do álcool. Os recursos psicossociais de tratamento e os


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recursos de reabilitação de familiares do paciente também estão se desenvolvendo muito nessa área, o que tem ocasionado muitos avanços na recuperação desses pacientes (e seus familiares). Por último a importantíssima contribuição oferecida por grupos de autoajuda capitaneados historicamente por alcoólicos anônimos (AA) e grupos de familiares de alcoólicos, (NARANON) instituições* que considero das mais nobres e importantes na recuperação desses enfermos, e aqui em nosso Estado também desfrutamos de grupos fortes.

* A bem da verdade, incluamos a ação evangélica das igrejas reformadas e da Igreja Católica, cuja ajuda é importante.

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Ano novo, vida nova Publicado no Jornal O Imparcial 04 01 2015.

O título deste artigo corresponde a uma expressão antiga e ainda serve de axioma para muita gente. Define tudo que se espera na virada do ano que, juntamente ao glamour desse período, nos dá inspiração para transitar a data com alegria e contentamento. O que não faltam nessa ocasião são as celebrações e, nelas, a enxurrada de desejos de uns para os outros no sentido de conquistarmos saúde, paz, prosperidade, felicidades e tudo de bom no ano seguinte. Nesse fim de ano, não houve mudanças. Nos primeiros segundos do Ano Novo, muitos comemoraram e se confraternizaram: uns brindam, outros gritam, há ainda os que choram e se abraçam no melhor sentido da ocasião; beijam-se, acariciam-se, desejando o que há de melhor! As pessoas se desprendem 123


Ano novo, vida nova.

para comemorar*, brincar, beber, dançar e assim vai até o raiar do dia. Todos os anos, é sempre a mesma coisa. Passado o glamour, tudo volta ao de antes. Agora foi a vez do 2015, mais um ano que, como os demais, foi muito esperado e chega com os mesmos anseios e requintes de todos os anteriores. “Ano Novo, vida nova.” Para muitos será simplesmente a continuação do ano anterior, com os resquícios do ano velho. Para outros, seria preferível que não tivesse vindo devido aos fatos ruins que se nos acontecem: perdas, derrotas, sofrimentos, frustrações, amarguras e outras coisas. Há ainda, quiçá a maioria, os que esperam, de fato, que esse novo ano traga as mudanças necessárias que todos almejam, em diferentes aspectos de suas vidas: na saúde, na paz social, na segurança, na economia do país, nas finanças de cada um, no trabalho, na família e assim por diante. Em qualquer dessas alternativas e respeitando as

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particularidades de cada uma das circunstâncias des-

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critas, o mais importante não é a passagem do ano em si mesmo, do velho para o novo, muito menos as esperanças cultivadas por cada pessoa nessa ocasião, haja vista o que ocorre tradicionalmente, mas, sim, a * Diga-se que a comemoração também é exercitada nas Igrejas, contudo, a finalidade traduz-se na dádiva da graça divina.


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confirmação das mudanças que nós iremos empreender ou realizar dentro de nós mesmos. Eis os desafios. Determinar-nos e partir para as mudanças dentro de cada um. A luta maior está aí. Nossos medos, nossas expectativas, nossas inseguranças, os sofrimentos de cada, as angústias, as esperanças, as aspirações afetivas e materiais, a alegria contagiante, e muitas outras coisas que nos contornam e fazem parte das necessidades e que deverão ou não, serem mudadas. Nós fazemos os anos** e ele nos reinventa. Nós construímos o mundo, sob o qual nos submetemos. Certamente, na vida de cada um, há fatos que ocorrem que não dependem de nós e, sobre os quais não temos a menor influência, isso faz parte do destino. Há fatos que, apesar de lutarmos para que não aconteçam, acabarão acontecendo, mesmo em detrimento de nossa vontade e de nossa aceitação e, há fatos sobre os quais somos o sujeito principal, os responsáveis absolutos por eles, os quais ocorreram em consonância com nossa vontade e disposição de fazê-los. Na simbologia do Ano Novo essas são as três grandes possibilidades. **Machado de Assis, o príncipe dos nossos prosadores, em expressivo soneto lavra: “Mudei eu ou o Natal?”

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Ano novo, vida nova.

Sobre isso, há outro aspecto que acho relevante, qual seja; rever, nessa ocasião, nosso compromisso ante os fatos sobre os quais somos diretamente responsáveis. Quaisquer que seja as mudanças esperadas que ocorram, mesmo aquelas para as quais não temos ingerência, e que pertencem ao destino, também são partícipes e agentes importantes no seu transcurso, pois queiramos ou não, tudo que se passa no mundo, em princípio, deverá sempre começar dentro de cada um de nós. Então o Ano Novo é o tempo de se pensar assim, refletir sobre o que podemos fazer para transformar o mundo em algo melhor, para todos. Devemos ter novas atitudes, novos entendimentos, novos propósitos e novas intenções de mudar tudo aquilo que queremos mudar e a tudo que nos diga respeito, tanto no Ano Novo, quando nos anos que se sucedem. Muitos querem que as coisas mudem e não fazem esforço algum para tanto, ficam esperando, simplesmente esperando que o Ano Novo o faça.

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Sempre esperando que um milagre aconteça e que

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lhes seja favorável. 2015 chegou, trazendo consigo grandes desafios, sobretudo em áreas críticas e muito importantes da nossa vida associativa: a economia e a política, por isso mesmo devemos reafirmar a crença dentro de cada


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um de nós e selar o compromisso de sermos nós os mais interessados em enfrentar esses momentos difíceis, saindo de nossas áreas de conforto e irmos para as trincheiras em busca de melhores dias. Somos nós os protagonistas de nossas existências e os autores de nossas histórias***! Há, de fato, muito que se mudar em diferentes setores de nossas vidas, mas essa mudança deve começar dentro de cada um de nós. A felicidade, a saúde, a paz do mundo, o bem-estar de todos, a equidade econômica, a segurança social, a justiça que todos nós aspiramos, teremos que ir atrás e conquistar e, se for o caso, reconquistar tudo isso e não ficar sempre esperando que o Ano Novo nos traga o que queremos. Talvez seja essa a grande mudança que deveria ocorrer no Ano Novo, e em todos os outros anos novos que certamente ocorrerão: um novo homem, com mais determinação, com mais disposição de lutar para garantir as melhores coisas para todos nós. Um homem indignado com as injustiças, com as desigualdades, com o desamor. Um homem mais solidário e que se preocupe mais com o outro. Feliz 2015 para todos e para suas famílias!

***Este é um truísmo banalizado, entretanto atualíssimo. Os tratados filosóficos e religiosos o confirmam.

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Ansiedade nossa do dia a dia Publicado no Jornal O Imparcial 16 06 2010.

A partir de hoje, iniciarei uma série de artigos tratando de uma condição muito importante na nossa vida e que vem sendo abundantemente debatida nos meios acadêmicos e pela imprensa em geral, que é a ansiedade. Inicialmente, é importante que se esclareça o significado do que se conhece pelo nome de ansiedade, pois há, sobretudo entre os leigos, uma confusão em torno do conceito. A ideia predominante é que ansiedade é algo ruim, maléfico e prejudicial a todos. Passou a ser vista como uma condição problemática do ponto de vista emocional. A expressão corriqueira “fulano é ansioso, estressado, não relaxa” define bem a situação, pois muitos acreditam que pessoas sob esta condição vão muito mal e já estão com algum problema. Na realidade, houve uma verdadeira distorção do 129


Ansiedade nossa do dia a dia.

seu significado, muito embora se saiba que estas figuras existem: a do ansioso, do estressado, do problemático. Porém a ansiedade do ponto de vista médico e funcional é uma condição vital a todos nós e indispensável ao nosso equilíbrio e saúde, em todos os sentidos, físico, psíquico e social. Todos nós, indistintamente, somos ansiosos! É uma condição fundamental ao ser vivo para garantir nosso crescimento, nosso desenvolvimento e a nossa saúde. Não fosse a ansiedade, nós nos manteríamos em nossa primitividade e não sairíamos da idade da pedra lascada. Trata-se de um dos mais importantes mecanismos de adaptação de que dispomos, sem o qual não nos adaptaríamos às diferentes condições de vida, pois somos permanentemente estimulados por inúmeros e diferentes fatores, de naturezas diversas, e devemos lidar com todos eles sem prejuízos a nossa existência. É um fenômeno que significa um “sinal de aler-

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ta”, que nos adverte sobre perigos iminentes e desco-

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nhecidos. Tais perigos podem ser externos ou internos a nós mesmos, bem como podem ser reais ou imaginários. Dessa forma, a ansiedade é uma reação natural* e necessária para a autopreservação de nossa espécie. * Assim também a confirmam os livros sagrados, a exemplo do Corão, da Bíblia e outros.


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Não se trata de um estado normal, mas de uma reação normal, que sempre surge diante de situações novas. É um anúncio de algo novo, que está acontecendo ou que pode acontecer, ao mesmo tempo em que nos prepara para enfrentá-lo, lutando ou fugindo da nova situação. A ansiedade está presente ao longo do ciclo de vida do ser humano, sendo inerente a cada uma das fases de nosso desenvolvimento. Por exemplo, é normal** para o bebê que se sente ameaçado se for separado de sua mãe, o adolescente no primeiro encontro ou o adulto em uma entrevista de emprego, ou ainda para um idoso quando contempla a velhice e a morte, e para qualquer pessoa que enfrente uma doença. As sensações físicas e psíquicas reveladas pela ansiedade normal são de uma sensação difusa, desagradável, de apreensão, acompanhada de: mal-estar epigástrico, aperto no tórax, falta de ar, palpitações, sudorese excessiva, mãos e pés frios, cefaleia (dor de cabeça), súbita necessidade de evacuar, inquietação etc. Os padrões individuais físicos de ansiedade variam amplamente de pessoa a pessoa. **Afirma Tomás de Aquino, notável filósofo e teólogo católico, que “As paixões podem ser deliberadas ou subitamente indeliberadas. Por exemplo, o medo faz agir emocionalmente qualquer pessoa calma”. Suma teológica, vol. IV.

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Ansiedade nossa do dia a dia.

Alguns indivíduos apresentam apenas sintomas cardiovasculares, outros, gastrintestinais, há aqueles que apresentam apenas sudorese excessiva. Outra característica da ansiedade normal é o fato de sempre surgir diante de uma situação sentida como real, portanto tem sempre nexo com algum fato ou evento seja interno ou externo a pessoa. A sensação de ansiedade pode ser dividida em dois componentes: a consciência de sensações físicas e a consciência de estar nervoso ou amedrontado. Como vimos, as sensações físicas são, em geral, muito desconfortáveis provocando um mal-estar difuso. As sensações de nervosismo são reveladas por inquietação, apreensão e medos que, de conformidade com o evento, podem ser muito intensos. Essas sensações sempre ocorrem diante de eventos incomuns e inusitados e o organismo fica preparado para o devido enfrentamento da situação nova que

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surge. Ocorre que quando o evento desaparece, todas

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essas sensações e sintomas que acompanham o evento ansiogênico (gerador da ansiedade), desaparece inteiramente e a pessoa volta para suas condições emocionais anteriores. Quando, todavia, os sintomas permanecem***, ***Diz-se baseado na Empeiria (senso comum) que “o problema não é o problema, mas a sua não solução”.


Crônicas do Cotidiano na Visão de um Psiquiatra _VOL 2

ao ponto de continuar prejudicando a pessoa em seu dia a dia e, sobretudo, em sua adaptação social, do lazer e do trabalho, podendo estar diante de ansiedade patológica, condição patológica que requer tratamento especializado e que tem atingido muitas pessoas nos dias atuais. Este tema será objeto do nosso próximo artigo neste jornal.

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19 As bases biológicas da dependência química Publicado no Jornal O Imparcial 11 01 2016

Neste artigo, destaco uma das mais importantes contribuições científicas na área da dependência química, no que diz respeito às suas origens. Por se tratar de um fenômeno ultracomplexo, a contribuição para o entendimento destas doenças vem de várias áreas do conhecimento: Psicologia, Sociologia, Fisiologia, Bioquímica etc., e, cada uma destas contribuições são relevantes e muito importantes. Um assunto muito atual, que está sendo debatido no mundo todo pela Neurociência e pela Psiquiatria é o conceito de Patologia Dual, aplicada à área da saúde mental. Este conceito é definido como sendo a concomitância entre um transtorno mental e a dependência química de uma droga em que ambas as condições fariam parte de um mesmo complexo neuropatobiológico, isto é, um substrato neurofisiológico único com 135


As bases biológicas da dependência química.

manifestações clinicamente diferentes. Ocorre que este conceito novo vem ocasionado muita confusão pela semelhança que pode existir com o conceito de comorbidade, tema já tratado neste jornal em artigos anteriores. Por comorbidade entende-se a coexistência de mais de um transtorno psiquiátrico em uma só pessoa, como é o caso do alcoólatra ser portador de depressão, o esquizofrênico ser dependente de cocaína, o fóbico ser tabagista e assim por diante. Ocorre que, nestes casos, as doenças têm origens distintas umas das outras, são independentes, e não se vinculam quanto à sua causalidade e seu aspecto clínico. Na patologia dual, a dependência química é um endofenótipo, isto é, uma característica estrutural interna de nosso organismo que não pode ser observada a olho nu, associado a um transtorno mental mais abrangente, que é uma doença mental. A patologia dual, embora seja um conceito novo, vem despertando interesses muito grandes entre os

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cientistas que trabalham na área da dependência ao

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ponto da Associação Mundial de Psiquiatria já dispor de um departamento que trata desta nova abordagem do problema da dependência de drogas. Este novo conceito de dependência modifica a conduta tradicional, em relação ao doente mental e o próprio dependente, uma vez que a abordagem de


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uma ou outra condição de forma independente não é suficiente justamente porque ambas fazem parte de um mesmo complexo neuropatobiológico. A dependência também apresenta aspectos genéticos bem caracterizados. Por exemplo, 10% (em média) das pessoas que fazem uso ou abuso de substâncias (álcool e outras drogas) desenvolvem dependência química que sugerem uma predisposição genética. Por outro lado, a alta prevalência de adição entre doentes mentais, com índices acima de 60%, sugere ser a patologia dual um endofenótipo ligado a esta condição psicopatológica. Ao mesmo tempo, em que a dependência química nesse grupo de indivíduos aumenta significativamente quanto à vulnerabilidade e aos transtornos mentais de base. Na clínica verificamos estes achados quando usuários de crack, álcool e cocaína além de dependentes destas drogas apresentam característica de concomitância de outra patologia mental, sobretudo com distúrbios de personalidade, depressão e transtornos de ansiedade. A dificuldade no diagnóstico da patologia dual decorre, segundo os pesquisadores, do fato dos complexos sintomáticos estarem compartimentalizados diferentemente nas classificações psiquiátricas atuais 137


As bases biológicas da dependência química.

(CID-10 e DSM-IV), que não levam em consideração que complexos sintomáticos clinicamente diferentes estejam relacionados aos mesmos substratos neurobiológico e etiológico. De acordo com o presidente da Sociedade Espanhola de Patologia Dual, Néstor Szerman, as altas taxas de prevalência de patologia dual orientam a afirmar que todos os programas dirigidos a indivíduos com doença mental grave deveriam organizar-se como programas de patologia dual, já que isto é mais a regra que a exceção. Esta, portanto, é mais uma importante porta que se abre no rumo do tratamento e recuperação destes milhares de dependentes de drogas que há no mundo e em nosso país e que sejam sempre bem-vindas estas

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aportações científicas.

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20 As compulsões do nosso dia a dia Publicado no Jornal Pequeno 11 01 2016.

Frequentemente se ouve falar em compulsão e, nos últimos anos mais ainda. Isso é atribuído aos avanços que vêm ocorrendo no tratamento e nos conhecimentos da Fisiopatologia desses comportamentos, bem como os avanços sobre as bases genéticas das causas das compulsões. A propósito, você sabe o que é compulsão? Pois bem, compulsão é um comportamento que se repete continuamente visando proporcionar determinado alívio ou conforto emocional, frente à sensação de ansiedade ou angústia. Esse comportamento compulsivo do ponto de vista psicopatológico e clínico são reações comportamentais considerados “mal adaptativos” porque a sensação de conforto ou alívio é passageira e após o ato (compulsão) temos uma sensação negativa, muitas vezes de “culpa” por não termos resistido 139


As compulsões do nosso dia a dia.

à vontade de fazê-lo. Mesmo assim, o sentimento de alívio ou gratificação continua mais forte, ensejando as pessoas a repeti-los. Ocorre mais ou menos da seguinte forma: estou ansioso por algum motivo, esta ansiedade passa a incomodar-me, a tornar-me inquieto, tenso, em expectativa. Passo a mexer com as mãos e adotar outros gestos, ficando em um pé e outro, para aliviar essa tensão. Resolvo ir à loja e decido comprar um objeto que desejo. Passo a usar o que comprei recente, todo animado e até “esqueço” aquela sensação negativa que me fez ir às compras, mas, passado esse primeiro momento, eu começo a me sentir culpado pelo fato de ter comprado algo sem necessidade e isto irá comprometer meu orçamento, etc., etc. Essa sensação vai me deixar ansioso, angustiado e inquieto. Já não dou muita bola para o que comprei, por isso parto e vou novamente às compras e prova-

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velmente voltarei para casa com algo novo, e recome-

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ço o círculo: culpa, ansiedade, compras, prazer, culpa, ansiedade, compras… Esse é mais ou menos um ciclo de acontecimentos que se observa no fenômeno das compulsões. No caso acima, em particular, eu me referi aos compradores compulsivos.


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Sobre as causas dos comportamentos compulsivos, diversos fatores colaboram: predisposição genética, influência familiar, problemas psicológicos e comportamentais, doenças mentais etc.). Em todos os casos, é, de fato, um comportamento mal adaptado de enfrentamento de sentimentos negativos (tensão, angústia, ansiedade, etc.) que frequentemente provoca inúmeros problemas familiares, econômicos, sociais, laborativos, psicológicos, podendo inclusive ocasionar doenças ás vezes graves, como no caso de Transtornos Obsessivos Compulsivos - TOC, Bulimia, Comedor e Bebedor Compulsivo

e muitos outros transtornos

que têm como base a ansiedade disfuncional. Esse comportamento poderá evoluir, ensejando as pessoas a perderem inteiramente o controle dos seus atos, a ponto de tornar a vida delas um transtorno, como é o caso do TOC. Em casos mais graves tornam-se dependentes desses rituais repetitivos, comprometendo sua capacidade de levar uma vida “normal”. Uma pessoa que lava as mãos várias vezes por dia compulsivamente, poderá adquirir outras “manias” tornando a vida um problema. Tipos de compulsões. Jogadores compulsivos – Esses enfermos podem ter sérios problemas familiares, econômicos e 141


As compulsões do nosso dia a dia.

profissionais, uma vez que toda sua atenção está voltada compulsivamente para o jogo: jogadas futuras, quanto irá ganhar, onde conseguir dinheiro para jogar, e assim por diante. Atleta compulsivo – Atletas de esportes radicais com práticas intensas nesses esportes desenvolvem um padrão de atividade tão intenso que subordinam muitas outras atividades em suas vidas por essas práticas. Tornam-se “dependentes de adrenalina” e em perigos impostos por esses esportes. Podem sentir-se tão relaxados com tais atividades e exercícios físicos a ponto de se transformarem em obsessão, passando a prejudicar o desempenho em outras atividades e na saúde em geral. Sexo compulsivo: insaciáveis, incontroláveis; seus atos e pensamentos só giram em torno dessas atividades e fazem de tudo para se satisfazerem. Comprador compulsivo – a pessoa precisa comprar para sentir-se bem, mesmo que depois se arrepen-

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da. É o caso a que me referi acima. Gastam muito, mas

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sem necessidades reais quanto ao que está comprando. Trabalhador compulsivo – o objetivo principal seria obter sucesso profissional, status, manter-se no trabalho. O trabalho pode ocupar a mente e o lugar de sentimentos e relacionamentos, com os quais talvez o trabalhador compulsivo não consiga lidar. Sente-se


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seguro e obtém gratificação através do trabalho; então, continua trabalhando cada vez mais, deixando de lado a vida social e o convívio com a família. Comedor e bebedor compulsivos anorexia, bulimia e o alcoolismo são comportamentos compulsivos relacionados à comida e à bebidas, em que as vítimas são pessoas excessivamente preocupadas com seu corpo ou com sua “imagem” frente aos outros e já se fala em “epidemia,” quando se trata desse assunto, pois muito grande é o número de pessoas que têm esse tipo de comportamento. Se não tratada, essas compulsões deixarão graves sequelas na vida das pessoas, isolando suas vítimas do convívio social, passando a viver num círculo vicioso e isolado, totalmente dependentes de suas compulsões. O tratamento recomendado é feito com medicamentos anticompulsivos, fármacos extremamente efetivos, quando utilizados de forma adequada e nesses últimos 15 anos houve um crescimento fabuloso desses medicamentos usados na clínica psiquiátrica. A outra abordagem é a psicoterapia cognitivo – comportamental, técnica bastante utilizada atualmente com excelentes resultados terapêuticos a esses enfermos compulsivos. O ideal é combinar ambas as técnicas. Há certamente outras abordagens que podem ser agregadas às duas acima descritas. 143


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As Drogas da Alma * Publicado no Jornal O Imparcial 23 02 2010.

Algumas*vezes surgem na sociedade murmúrios sobre o uso de drogas utilizadas para tratar os problemas mentais. Algumas pessoas radicais, em geral leigos, dizem que são drogas perigosas, fazem mal e que podem viciar; outros, defendem-lhes ardorosamente o uso, pois dão felicidade, alegria e prazer e resolvem tudo. Há, ainda, os mais moderados e cautelosos que dizem que quem sabe melhor sobre a utilidade ou não destas substâncias são os médicos e os que lidam com os problemas psiquiátricos e, portanto, sabem quando utilizá-las, e assim por diante. Essas drogas usadas para tratar dos problemas psíquicos chamam-se psicotrópicas, termo que se origina de dois outros vocábulos, psico e trópica. A primeira * Entidade de origem oriental que penetrou na civilização helênica e na romana, chegando até o orbe ocidental, agasalhada pelas igrejas ocidentais reformadas e católicas.

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As Drogas da Alma*.

provém do grego, que significa psique, alma, mente. A segunda significa direção, sentido, encaminhamento. Portanto, etimologicamente, são drogas que funcionam na mente, mais especificamente, no cérebro, sede material de nossa vida mental. São largamente utilizadas na prática médica, indicadas para um grande número de condições clínicas e marcaram história na medicina, pois são extremamente úteis no tratamento de inúmeros transtornos emocionais, psiquiátricos, entre estes: depressão, ansiedade, psicoses, manias, insônias, epilepsias e no desequilíbrio do humor e do stress. Se bem utilizadas, colaborarão para o equilíbrio e o bem-estar na vida de muitos portadores destas patológicas. Um fato, portanto, que contribuiu para a importâncias desses medicamentos foram os avanços neurocientíficos que atribuem às disfunções do cérebro, as origens das doenças mentais. Ninguém de sã consci-

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ência pode desconhecer que essas drogas recuperam

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esses pacientes. Ocorre que nem todos os transtornos humanos, poderão ser tratados com medicamentos, pois, do ponto de vista médico, existem situações que exigem outras intervenções e abordagens, de tal forma que o uso exagerado dessas drogas sem se discriminar-lhes


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o seu uso irá gerar graves problemas. Há em nosso país indícios de uso exagerado de psicotrópicos, especialmente de tranquilizantes. Muitos usuários dessas drogas, especialmente soníferos e ansiolíticos, as utilizam não por indicação médica e sim porque já são dependentes desses medicamentos. Em pesquisa recente o I Levantamento Domiciliar sobre o Uso de Drogas Psicotrópicas no Brasil, realizado em 2005 pela Senad/Unifesp, revelou que o uso de benzodiazepínicos (tranquilizante) foi maior entre a faixa etária igual ou maior que 35 anos e houve um predomínio no consumo no sexo feminino, comparado ao masculino, em todas as faixas etárias. Nesse levantamento, encontraram 0,54% da população de dependentes. (0,77%) com prevalência cinco vezes maiores que os homens (0,14%). Por outro lado, a prevalência de mulheres dependentes na faixa etária, maior que 35 anos chegou a 1,02%. O tranquilizante Clonazepan é o medicamento mais vendido no Brasil depois dos anticoncepcionais. Em 2008 foram vendidas cerca de 14 milhões de caixas desse medicamento no país. A posição da droga no ranking levanta a discussão se o brasileiro é um povo tão feliz e satisfeito como se diz. Outra situação é o excesso de prescrição desse 147


As Drogas da Alma*.

tipo de remédio em situações que a princípio não lhe exigiriam o uso. A sociedade pós-moderna preconiza que sejamos felizes** e tenhamos prazer a todo custo, mesmo que para isto venhamos a transgredir regras fundamentais de convivência como a ética e o dever. A exigência para se adquirir uma felicidade quase neurótica empurra muitos indivíduos à fantasiosa expectativa de uma alegria incondicional, uma paz de espírito escrava de soníferos e de outras drogas, não deixando as pessoas perceberem que o sofrimento também faz parte do amadurecimento humano. Esse entendimento tem sido de difícil assimilação nos dias de hoje, o que colabora para uma corrida desenfreada em busca de algo que possa, mesmo de forma efêmera e imediata, provocar a ilusão de acabar

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com a dor e com o sofrimento.

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** Aliás, as igrejas respaldam essa recomendação, fundamentados na Bíblia, por exemplo.


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As esperanças no final do ano * Publicado no Jornal Pequeno 04 01 2016

No*primeiro artigo sobre esse tema (“Paradoxos nos finais de ano”), comentava que a prática da criminalidade permanece crescendo, assustando e apavorando a todos. Que não tínhamos mais sossego e a insegurança tomava conta de nós. Comentava também que meios de comunicação, como rotina, não se cansam de anunciar crimes de todos os tipos de tal forma que são raros os dias que um noticioso não os anuncia, sobretudo e principalmente, os de corrupção, propinagem, lavagem de dinheiro e assim por diante. A prática de crimes é tão comum que se tornou banal! As pessoas já estão tão acostumadas que já os veem com certa indiferença. As reações não são como antes, quando havia muito incômodo, acredito por serem tão comuns e frequentes. Observe-se que se * À página 111 (Ano Novo, Vida Nova) trato da mesma temática, com discurso paralelo e algo diversificado.

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As esperanças no final do ano*.

chegou a um ponto tal que há quem diga que roubar entre políticos, ou na gestão pública, é natural, desde que nossos homens públicos trabalhem ou façam alguma coisa pelo povo. Isso é o que mais se ouve falar em qualquer roda de conversa ou em qualquer canto**. A conformação, a aceitação dessas idiossincrasias, a naturalidade desses crimes, a tolerância com o que é errado e injusto, correspondem, em meu entender, a uma situação bem pior do que aquela verificada em si mesma, na prática de tais crimes. Pois entendo que é através da consolidação, entre nós, dessa banalização do crime e da tolerância às injustiças, que se tem construído a cultura da impunidade, da descrença, da desconfiança, do despudor, da desesperança. Isso é muito ruim. Aceleradamente temos mergulhado em uma cultura inominada, sem rumo, sem sentido, sem propósito. Uma cultura do efêmero***, do superficial e do

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imediatismo. Uma cultura destituída da crítica e da

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autocrítica.

A tal ponto que parece que as pessoas

não percebem a extensão do abismo em que está se metendo. Não estão percebendo o caos total que é se perder a ética, a credibilidade na gestão pública, ** O bordão “Rouba mas faz”é corriqueiro. *** Confiramos as tatuagens, por exemplo.


Crônicas do Cotidiano na Visão de um Psiquiatra _VOL 2

a moralidade nas relações sociais. A tolerância social excessiva e descabida ante o crime, que é o que ocorre hoje, parece cada vez mais internalizada nas pessoas, o que as deixa imóveis e indiferentes, pois essas práticas já fazem parte do senso comum e do cotidiano. Não se pensa mais em combater esse fenômeno deletério com afinco, com denodo, com garra, pois é natural. É uma cultura em que tudo pode. É lamentável e terrível isso! Dias antes das festas de Natal e de fim de ano, onde regra geral todos pensam em mudar seus hábitos e comportamentos****, onde passam a agir diferentemente de como agiam antes, me ocorreu que seria uma bela oportunidade que nessas ocasiões especiais todos tivessem um tempinho para pensar em mudar suas atitudes, tornando-se mais intolerantes, mais indignados e menos lenientes diante dessas anomalias sociais e éticas com relação aos crimes que ocorrem nos dias atuais. Até em minha mensagem de Natal dirigida aos amigos eu desejava, entre outras coisas, que em 2016 nós nos aproximássemos mais uns aos outros, sobretudo, aos que nos amam e dos que mais precisam da gente. Que fôssemos mais intolerantes e mais sensíveis às injustiças, aos desmandos dos governantes, aos ****Confiramos também o Ano Novo (p. 111).

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As esperanças no final do ano*.

maus políticos, às mentiras, aos desonestos, aos maus, aos corruptos. Justamente tentando manifestar minhas preocupações com esses conformismos que têm tomado conta da gente. Ao mesmo tempo, percebo que qualquer mudança social que venha ocorrer nesse sentido irá depender da capacidade de todos, de reagir, de não aceitar e de lutar contra essas mazelas, que são todos os crimes que vêm ocorrendo, sobretudo, na esfera pública. Vai depender da ampliação de nossa consciência social e pessoal, sobre o que é certo e o errado, o justo e o injusto, o que é ético e imoral, o que é direito e dever e assim por diante. Sem isso, a meu ver, fatalmente ocorrerá o caos total, social, político, moral e econômico como já está acontecendo. Confira-se a situação de constrangimento e insegurança que estamos atravessando nessas áreas, ocasionada basicamente por atitudes de desmando, in-

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competência, fraudes, mentiras, falcatruas, engodos na

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gestão pública. Observe-se quem comanda o Senado da República, a Câmara dos Deputados, instituições absolutamente indispensáveis ao regime democrático, mas, literalmente tomadas por interesse escusos, de partidos políticos e de políticos viciados, carreiristas, oportunistas muitos dos quais só veem seus interesses.


Crônicas do Cotidiano na Visão de um Psiquiatra _VOL 2

Veja a quem está entregue nosso governo central

. A pessoas inconfiáveis, que praticaram ou per-

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mitiram que fossem praticados crimes nunca vistos ao longo da história recente e antiga desse país, mas, mesmo assim, estão aí, dirigindo um país política, econômica e moralmente insustentável. Diante das enormes contradições por que estamos passando nos últimos anos, atingindo áreas vitais que dão sustentabilidade jurídica, ética e política a nossa vida pessoal e social, acho uma situação razoável pararmos para pensar um pouco melhor sobre tudo isso, e tomarmos posições que resgatem nossa cidadania, rejeitando, a qualquer custo, situações de complacência e tolerância a esses crimes, sobretudo os de natureza política. É, de fato, muito sério o que estamos atravessando nos dias atuais. E, agora, que chegou 2016, com força total, acho também que é importante que se brinde sua achegada, com fé, amor quando, então, possamos confraternizar, abraçar-nos uns aos outros; que tenhamos mais esperanças de alcançarmos um mundo melhor; todavia, é imperioso que cultivemos a intolerância com os maus políticos, com os gestores incompetente e mentirosos, com corruptos, *****Infelizmente, não tem sido exemplar o comportamento de muitos que compõem o Poder Judiciário.

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As esperanças no final do ano*.

com os gestores públicos indiferentes às causas da educação, da segurança, da saúde e do bem-estar social e econômico. Sendo assim, poderemos mudar nosso rumo e nossa história;

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caso contrário, é rezar e pedir a Deus que nos dê proteção.

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23 As mulheres e o consumo de bebidas alcoólicas Publicado no Jornal Pequeno 06 10 2014.

Resultados de pesquisas recentes têm expressado que as mulheres brasileiras estão bebendo mais e de forma exagerada, o que sinaliza o agravamento desse problema entre nós. O consumo do álcool sempre foi significativo na população brasileira, tanto é que nosso padrão de consumo se encontra entre os mais elevados no mundo. O álcool é uma das poucas drogas que tem seu consumo incentivado pela sociedade. De acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS), a mortalidade e limitação da condição funcional humana associada ao consumo de bebidas alcoólicas superam aquelas associadas ao tabagismo. Calcula-se que, mundialmente, o álcool esteja relacionado a 3,2% de todas as mortes e 4,0% das Desabilidades funcionais na vida de alguém, e em país como o nosso o álcool é o fator de 155


As mulheres e o consumo de bebidas alcoólicas.

risco que mais contribui para a carga de doenças, sendo responsável por 6,2% do total dessas enfermidades. Os dados revelados pelo II Levantamento Nacional sobre o Consumo de Álcool e outras Drogas (II LENAD), realizado pela Universidade Federal do São Paulo- UNIFESP e pelo Instituto Nacional de Políticas sobre Drogas – INPAD, amplamente publicados pelos meios de comunicação, mostram que de 2006 a 2013 as mulheres aumentaram em 20% o consumo de álcool. Além disso, o que mais chamou atenção é que o padrão de consumo da bebida entre elas se modificou: além de beberem mais, fazem-no de forma rápida. Esta forma de beber é conhecida como “beber em binge” que é definido como um padrão de consumo de cinco doses de álcool em uma mesma ocasião e em pouco tempo, condição que leva a embriaguez mais rapidamente. Esta forma de beber poderá contribuir para

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o desenvolvimento do alcoolismo, que é uma doen-

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ça grave, a qual evolui de forma crônica e que um dos sintomas cruciais dessa doença é o descontrole no consumo. Assim, a pessoa, quando começa a beber, tem grande dificuldade em parar, de tal forma que muitos só conseguem quando já absolutamente embriagados. Outros sequer se lembrarão do que se


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passou no curso da embriaguez. Os dados do levantamento confirmam que as pessoas estão começando a beber muito cedo, em torno dos 12 anos. 7% dos adolescentes com idade entre 12 a 17 anos já são dependentes do álcool. Entre os jovens de 18 a 24 anos, 78% já fizeram uso da substância e 19% são dependentes. São índices muito altos que representam ameaça real à saúde mental, social e física desses jovens brasileiros. A situação atual é muito preocupante do ponto de vista médico, psiquiátrico e social: 1) as pessoas estão começando a beber muito cedo (12 anos); 2) 7% dos adolescentes já são dependentes de álcool; e 3) as mulheres estão bebendo mais e em “binge”. Essas são condições encontradas na pesquisa que mostram a gravidade desse problema que temos de enfrentar nos próximos anos. No caso de se iniciar o consumo precocemente, já se tem bastante conhecimento informando que o cérebro desses jovens, em torno de 12 anos, ainda está em desenvolvimento; portanto, não preparado para suportar a presença do álcool ou de outras drogas, condição que fatalmente irá provocar surgimento de inúmeras doenças mentais, físicas e sociais relacionadas aos danos cerebrais. 157


As mulheres e o consumo de bebidas alcoólicas.

Imagine-se em um país como o nosso, em que praticamente a metade da população é jovem, desengajada de trabalho, com baixo acesso à educação e com renda incerta. Isso tudo, associado ao uso compulsivo e doentio do álcool, definirá uma juventude sem perspectivas, forçosamente enferma pelas doenças provocadas pela dependência química e, na conjuntura atual, sem assistência médica e psicossocial. Em relação ao consumo de álcool entre as mulheres, já sabemos que elas respondem diferentemente ao álcool se comparadas com o consumo dos homens, isto é, as mulheres são menos tolerantes e mais sensíveis a molécula do álcool, graças à sua genética e à sua estrutura física, metabólica e funcional. Doses baixas de álcool provocam mais danos ao seu organismo. As doenças mentais e a dependência ao álcool se instalam mais facilmente entre mulheres, além de se embriagarem mais facilmente. Isso explicaria o aumento cada vez maior de casos de Síndrome Alcóoli-

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co-Fetal – SAF, que cresce assustadoramente entre as

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mulheres que ingerem álcool quando grávidas. Os fatos revelados na pesquisa reafirmam o que tenho dito há anos: a necessidade de uma política pública mais arrojada, mais consistente e mais embasada em evidências epidemiológicas sobre o consumo de


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álcool na população brasileira, especialmente em relação a crianças, adolescentes e mulheres. A continuar como se está, com autoridades que fazem vista grossa ao problema e não assumem as responsabilidades que lhes competem, as consequências fatalmente serão nefastas para todos nós.

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24 Atenção quanto ao uso de tranquilizantes Publicado no Jornal Imparcial 31 05 2015.

A descoberta dos tranquilizantes tem representado um marco histórico da Medicina. Um grupo de medicamentos altamente importantes, usado largamente na prática médica em diferentes especialidades para tratar uma infinidade de doenças ou situações médicas especiais e relevantes. Entre os tranquilizantes, os benzodiazepínicos, (BZ) são um dos mais importantes e um dos mais utilizados na prática médica. Uma das áreas que mais se trabalha com esses medicamentos é a Psiquiatria, muito embora não sejam os psiquiatras quem mais os prescrevam. Sabe-se que todos os medicamentos são potencialmente prejudiciais, quando prescritos ou utilizados de forma incorreta. Não é à toa que os ilustres farmacêuticos nos informam que a diferença entre um veneno e um medicamento, está na dose, pois um 161


Atenção quanto ao uso de tranquilizantes.

pode converter-se no outro e vice-versa. Esse axioma pode e deve ser aplicado quanto ao uso dos tranquilizantes, pois, apesar de serem medicamentos excepcionais, o abuso dos mesmos poderá representar grande ameaça à saúde, em todos os sentidos, particularmente quanto à saúde mental, pois o uso exagerado dessas drogas poderá determinar, entre outras coisas, dependência severa nos usuários. O consumo exagerado desses medicamentos pela população brasileira sempre foi fenômeno social que nos despertou muito interesse, pois somos um grande país consumidor de medicamentos, a ponto de figurarmos como o quinto maior mercado no mundo na área da indústria farmacêutica. Portanto, um mercado pungente, na venda de medicamentos comparativamente aos outros países no mundo. Entre os medicamentos mais vendidos, guardadas as devidas proporções, estão os tranquilizantes.

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E o consumo exagerado desses medicamentos é um

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assunto muito sério e grave do ponto de vista da Saúde pública e que, de certa forma, se mantém no anonimato, pois não se trata abertamente desse assunto nem mesmo em congressos e em outros eventos científicos, muito embora já existam evidências desse fato em nossa população.


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Os dados da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA) confirmam isso. Em nosso país, os ansiolíticos são os medicamentos mais vendidos, comparando-se com a venda de antidepressivos e emagrecedores. Em seus relatórios, a ANVISA elencou os medicamentos controlados mais consumidos em nosso país, desde 2007. É um trabalho digno de nota da Agência, pois quantifica o consumo dessas drogas vendidas através de receita controlada as quais poderão causar dependência química, entre seus usuários. Os ansiolíticos dominam a lista, que inclui todos os medicamentos de venda controlada, como emagrecedores, antidepressivos e anabolizantes. Os princípios ativos mais consumidos no país, entre 2007 e 2010, foram clonazepam, bromazepan e alprazolam, cujas marcas de referência são, respectivamente, Rivotril, Lexotan e Frontal. Mais de 10,5 milhões de caixas do Clonazepam foram dispensados em 2010, segundo informaram 41 mil farmácias cadastradas no Sistema Nacional de Gerenciamento de Produtos Controlados e este número é crescente desde 2007. A Vigilância Sanitária estima que este sistema de controle deva ter alcançado quase o total das farmácias 163


Atenção quanto ao uso de tranquilizantes.

em 2010, o que deverá permitir comparações a partir de agora. Acredito que o consumo exagerado de ansiolíticos, muitas vezes sem indicação médica, é certamente uma das causas principais que provocam dependência química destes medicamentos e o que mais atrai seu consumo exagerado, são seus efeitos de modificarem rapidamente estados emocionais psicopatológicos e desagradáveis como medos, fobias, insegurança, tristeza, irritações, desadaptações psíquicas e sociais. Essas substâncias de fato podem “obrar milagres”. Ao se verificar pacientes, enfermos graves, com poucas possibilidades de recuperação, se constata que, usando adequadamente esses fármacos, se recuperam plenamente de seus problemas, após certo tempo de uso. Nesses casos, o que está em jogo é a utilização médica correta, quanto à dose e o tempo de uso destes medicamentos.Porém, deve haver um controle rigoroso, tanto quanto para os que prescrevem, no caso os médicos, quanto para os que consomem, os pacientes,

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para que não haja problemas em decorrência do uso

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inadequado da medicação. Quando se trata da utilização dos benzodiazepínicos, a atenção deverá ser redobrada, devido ao risco de provocar dependência. Essa condição, ao se instalar, fará com que a pessoa use os medicamentos não


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mais por sua indicação clínica, mas pela necessidade mórbida de utilizá-lo, pela falta angustiante que ele fará, ao deixar de usá-lo. Nessas condições, instalou-se a dependência química, que é uma condição grave e complexa, que todos deveremos lutar para combatê-la. Para a indústria, que produz e vende esses medicamentos, acredito eu que muito pouco lhe interessa saber por que razão alguém toma seus medicamentos, se por necessidade mórbida (dependência), ou por necessidade clínica (médica). Mas nós, que fazemos Saúde com Ética e seriedade, temos que nos preocupar com milhões de pessoas que estão viciados nesses medicamentos e não sabem mais o que fazer para se livrar desses condicionamentos. Portanto, todo cuidado é pouco, quanto ao uso desses fármacos.

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25 Atividade f ísica, saúde mental e bem-estar social Publicado no Jornal O Imparcial 07 04 2013

Ontem comemorou-se em todo mundo o Dia Mundial da Atividade Física, certamente uma das datas mais importantes que temos para referenciar. A atividade diferenciada é indispensável para garantir e promover nossa saúde, o bem maior de nossa existência. Como tudo na vida, a atividade física deverá ser contextualizada para garantir seu valor e sua eficiência como instrumento de promoção da saúde, isto é, para que ela garanta suas prerrogativas e finalidade. Faz-se necessário que o praticante tenha uma boa alimentação, um bom estado emocional e relações sociais satisfatórias, de tal forma, que somente quando estas condições estiverem asseguradas, essas atividades colaborarão para o bem-estar da população de praticantes. Ao mesmo tempo, sabe-se que a prática regular, orientada e bem executada de atividades é o principal 167


Atividade Física, saúde mental e bem-estar social.

pressuposto que garantirá sua eficácia na promoção da saúde e, quando do rompimento desse equilíbrio, físico, psíquico e social a atividade, que supostamente era para corrigir distorções da saúde, passa a ser ela própria um gerador de problemas e de doenças a alguém. Nos últimos trinta anos, a prática e o conceito de atividade e exercício físico, coisas diferentes, vêm-se transformando. Na década de 70 houve a introdução do método Cooper que provocou uma verdadeira revolução em todo mundo no conceito e na prática da atividade física, sumarizado na famosa expressão “mexa-se”, momento em que as pessoas começaram a refletir sobre a importância da atividade e do exercício físico, na garantia da saúde. Na década de 80 prevaleceu o movimento universal da atividade física aeróbica. Nessa época surgiram as academias e a figura do personal training, que até hoje se destaca como um grande movimento ente nós.

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Na década de 90 emergiu o império do corpo*, o fisicul-

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turismo, com o culto ao corpo belo e sarado , onde homens e mulheres e até outros animais passaram a viver quase compulsivamente o culto ao corpo musculoso e bonito.

* Também denominado culto do corpo.


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Bebês embriagados Publicado no Jornal Pequeno 15 05 2010.

O álcool etílico é uma das substâncias psicoativas mais utilizadas pelo homem ao longo de sua história e seus efeitos sobre a mente e o organismo já são bastante conhecidos, pois sempre foi e continua sendo, especialmente na atualidade, uma das mais estudadas pela Neurociência. Na Inglaterra, na primeira metade do século XVIII, quando o consumo de gim era disseminado, as crianças nascidas de mães alcoolistas foram descritas como fracas, débeis e desatentas. Apesar disto, até o século passado, predominava a ideia de que o consumo de bebida que viesse a prejudicar o bebê durante a gravidez, era considerada moralista. Só em 1968, importantes trabalhos científicos demonstraram os efeitos teratogênicos do álcool, capacidade que o mesmo tem de induzir malformações biológicas em fetos de mulheres que bebem no 169


Bebês embriagados.

período da gestação. E, em 1973, foram identificadas alterações específicas dessas malformações nestas crianças nascidas sob essas condições, passando a serem denominadas de Síndrome Alcoólica Fetal (SAF). A SAF é uma condição grave e irreversível relacionada diretamente com a exposição do feto ao álcool, mas a Ciência ainda não identificou a quantidade de álcool consumido e o tempo de exposição às bebidas serão necessários para o desenvolvimento deste transtorno. No entanto, há estudos que comprovando o consumo de 20 gramas de álcool já é suficiente para provocar supressão da respiração e dos movimentos fetais, observados por meio de ultrassonografia. É uma condição que apresenta anomalias típicas na estrutura do crânio e da face e no comportamento. Apresenta alterações no crescimento e disfunções do sistema nervoso central, além de outras disfunções associadas. A expressão “efeitos fetais do álcool” é outra condição médi-

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ca que foi proposta para um grupo de crianças expostas

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ao efeito do álcool na vida intrauterina, mas que não possui a clínica completa da SAF. O quadro clínico se manifesta com Hipotonia muscular, incoordenação motora, irritabilidade exagerada, baixo peso ao nascer, retardo no crescimento (baixa estatura), retardo mental leve e moderado, dificuldades no


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aprendizado alterações morfológicas do crânio e da face, principalmente por apresentar: estreitamento da fissura ocular, lábios superiores finos e lisos, rebaixamento na fixação da orelha e nariz chatos e profusos. Como já é do conhecimento de muitos, o álcool etílico e várias outras drogas que agem na mente (psicoativas), ao serem ingeridos pela gestante atravessam a barreira hémato - placentária, o que faz com que o feto fique exposto às mesmas concentrações de álcool e outras drogas encontradas no sangue materno. Ocorre, todavia, que a exposição do feto ao álcool é maior, pelo fato de o metabolismo deste ser mais lento, tornando, portanto, a eliminação da substância mais demorada, fazendo com que o álcool permaneça por mais tempo no líquido amniótico. O etanol induz à formação de radicais livres de oxigênio que são capazes de comprometer a estrutura e função das proteínas e lipídeos celulares, aumentando a apoptose (morte celular), prejudicando, por conseguinte, a organogênese (mecanismo biológico que dá origem aos órgãos), fatos que explicariam os inúmeros problemas e prejuízos que sofrem as crianças vítimas deste transtorno, relativo ao seu crescimento e desenvolvimento. O álcool etílico também inibe a síntese de ácido retinoico, substância que regula o desenvolvimento 171


Bebês embriagados.

embrionário. Tanto o etanol quanto o acetaldeído (substância produzida no processo de metabolização do etanol em nosso organismo) têm efeitos diretos sobre vários fatores de crescimento celular, entre os quais o de inibir a proliferação de certos tecidos. Há outros fatores que tornam os fetos mais ou menos sensíveis aos efeitos do álcool: a quantidade da bebida ingerida, frequência de uso do álcool na época da gestação, o estado nutricional da gestante e a capacidade de metabolização do álcool da mãe e do feto. O consumo de álcool na gestação está também relacionado ao aumento do número de abortos, com o risco de infecções, descolamento prematuro de placenta, hipertonia uterina, prematuridade do trabalho de parto, etc. Apesar da gravidade epidemiológica e clínica dessa síndrome, pois se calcula que haja no Brasil um caso de SAF para cada 1000 nascimentos, ainda há enormes difi-

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culdades entre os profissionais em diagnosticarem alcoo-

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lismo em mulheres gestantes e, como se sabe, a cada ano elas estão bebendo mais e engravidando mais, especialmente adolescentes, de tal forma que a situação tende a se agravar, exigindo medidas preventivas especificamente para as gestantes.


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Carnaval Publicado no Jornal Pequeno 02 02 2013.

Chegou o CARNAVAL. Uma das mais importantes festas populares inventadas pelos homens ao longo de sua história e certamente um dos mais poderosos e esperados momentos que cada pessoa anseia individualmente como motivo de festa, alegria e descontração. É um momento curioso, estranho, diferente e inusitado. Vendo-se de longe, o momento reflete inúmeras contradições. Parece que a festa, de forma mágica, conduz os brincantes a emergirem de um sonho muito real, às vezes duro e amargo de suportar, advindo do dia a dia, e ao mesmo tempo os leva , sem grandes esforços, a mergulharem em uma realidade muito sonhada e prazerosa, em que o tempo parece não existir. É um momento altamente inspirado por emoções, quem sabe um dos poucos momentos em que a pessoa humana seja levada realmente a se comportar 173


Carnaval.

só por emoções? Não há quem resista ao som contagiante do batuque proveniente de um pandeiro e de um tamborim , do som estridente de uma Bateria do balé de um Mestre-Sala e Porta-Bandeira e a coreografia de passistas, um pouco menos as cores exuberantes dos blocos e escolas de samba, embaladas pelos seus samba - enredos. Na realidade, o Carnaval* é tudo isto e muito mais. Não fossem os frequentes problemas que acontecem nestas ocasiões, tanto por conta de suas contradições como pelo seu ar emocionante com que se vive esse momento, poderíamos certamente dizer que o Carnaval seria a mais apaixonante aventura que se criou para levar o homem do céu ao inferno em pouco tempo, sem sair do lugar e desfrutando de todos os benefícios que isto pode trazer. Como enredo pessoal, o Carnaval parece conservar antigas tradições, no sentido genérico de assegurar

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a todos a possibilidade de sair um pouco da dureza do

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dia a dia e se lançar de cabeça para dentro da gente, rumo ao desconhecido. Isto é, é uma das mais importantes formas de relaxar descontrair e recarregar as energias. Já do ponto de vista sócio-cultural, o Carnaval vem-se desconfigurando, descaracterizando-se e * Seu único rival é o São João.


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transformando-se em um grande produto gerador de lucros e fabulosas riquezas. Essas mudanças no aspecto sócio - cultural são reveladas por inúmeros indicadores psicológicos e sociais, os quais, embora façam parte de nosso cotidiano, nesse período, ocorrem com mais frequência. O número de homicídios e suicídios cresce, o abuso dos mais variados tipos de droga, sobretudo álcool, tabaco e solventes é acentuado, os acidentes de carros aumentam além dos problemas de várias naturezas, como separações, gravidezes oportunísticas, abandono de casa pelos filhos e ou os pais e muitos outros problemas. Os momentos de alegria, descontração e descanso, transformam-se, para muitos, em um verdadeiro inferno e fonte de sofrimento.

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28 Dependência química, novas perspectivas Publicado no Jornal Pequeno 20 10 2014

No curso natural da dependência do álcool e outras drogas, existem diferentes sintomas que, de conformidade com a evolução da doença, se destacam uns sobre os outros. Neste artigo, trato da compulsão vulgarmente chamada de “fissura”, que é considerada um dos mais importantes sintomas para o diagnóstico desses transtornos. Esse sintoma interfere diretamente no quadro clínico, na evolução da doença e nas sucessivas recaídas que se observa no processo de tratamento e recuperação desses enfermos. Fissura e compulsão são sinônimos. São dois termos já largamente conhecidos pelo público, em geral, graças às centenas de artigos já publicados a seus respeitos, muito embora sua natureza fisiopatológica não seja plenamente conhecida. “Fissura” é um termo popular em nosso idioma. Entre os ingleses 177


Dependência química, novas perspectivas.

é denominada de “craving”, que nada mais é do que um desejo ardente, incontrolável, irrefreável de consumir a droga. Em princípio, só sente fissura quem é dependente, de qualquer que seja a droga. É um sintoma que pode estar presente em outros transtornos psiquiátricos, portanto não é exclusivo dos dependentes de drogas. O alcoólatra, então, sente fissura sempre que para de beber ou reduz a dose da quantidade de álcool; o tabagista sente o mesmo; o dependente de cocaína e de outras substâncias também sentirá fissura e assim por diante. A fissura apresenta as seguintes características clínica: 1 – Está presente na síndrome de dependência. 2 – Surge quando o consumo da droga é interrompido. 3 – A ânsia (compulsão) de consumir é quase sempre superior ao seu controle. 4 – Favorece sempre a recaída.

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5 – A obtenção da droga cessa os sintomas.

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6 – É classificada como leve, moderada ou grave. 7– Sua intensidade está associada à intensidade da dependência. 8 – É involuntária, evolutiva e envolve mecanismos neurobiopsicossocial.


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9 – Há drogas que aliviam os sintomas do “craving”. 10 – Interfere na decisão de se tratar. Estes 10 itens acima expressam claramente a gravidade desse problema e todos são muito importantes em sua caracterização. Desse modo, a dificuldade de aderir a um tratamento e as recaídas são indiscutivelmente as mais importantes consequências do “craving”, justamente por interferir diretamente no tratamento e na recuperação desses pacientes. Do ponto de vista neurobiológico, sabe-se que a “fissura” ocorre por disfunções de certas áreas do cérebro, principalmente na região hipotalâmica, originadas por reações neuroquímicas envolvendo os neurotransmissores cerebrais, principalmente, dopamina, noradrenalina, serotonina e acetilcolina disfunções essas que geraria o comportamento compulsivo nesses enfermos. Estudos de neuroimagem, utilizando técnicas como a tomografia por emissão de pósitrons (PET), por exemplo, têm permitido a identificação de tais anormalidades neurofuncionais, criando condições favoráveis para que em um futuro próximo se possa manejar melhor com este sintoma. Além do mais, graças aos recentes avanços nos conhecimentos originários 179


Dependência química, novas perspectivas.

da ressonância magnética (RM) funcional, já se pode vislumbrar as áreas afetadas pela compulsão, fato que certamente favorecerá uma maior compreensão da sua fisiopatologia e o advento de novas perspectivas para o tratamento e recuperação desses enfermos. Do ponto de vista do tratamento e reabilitação das dependências químicas, os últimos 10 anos foram muitos importantes, sobretudo no controle clínico e farmacológico dessas doenças. Nessa área especificamente os avanços foram expressivos, sobretudo com o surgimento de drogas denominadas de anticompulsivas, antifissura ou anticraving, as quais impedem ou reduzem drasticamente a busca incontrolável pelo álcool ou por outras drogas, diminuindo o mal estar físico, psicológico e emocional ocasionado pela falta da droga, bem como reduzindo o prazer ocasionado pelo consumo de tais substâncias. Os medicamentos indicados para esse controle cínico são considerados atualmente como fundamentais para o manejo ade-

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quado dos dependentes de drogas.

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Entre os transtornos que mais se beneficiaram com o tratamento medicamentos estão o alcoolismo e o tabagismo e o “craving”, por uso de cocaína. Outras drogas que estão sendo usadas para o tratamento de dependentes de cocaína, maconha, êxtase, etc.,


Crônicas do Cotidiano na Visão de um Psiquiatra _VOL 2

vêm sendo testadas e deverão ser lançadas em breve para o uso clínico, principalmente para o alcoolismo. Outros avanços significativos estão ocorrendo na área de terapia ocupacional e intervenções psicoterápicas, através de técnicas avançadas no tratamento e reabilitação destes enfermos, as quais possibilitarão diretamente maior adesão aos tratamentos propostos, impedindo os altos índices de recaídas que ocorre frequentemente nessa população. É lamentável que não se possa dizer o mesmo quanto à prevenção ao uso de álcool e outras drogas. Isto é, no âmbito de Políticas Públicas essa área é a que menos dá ênfase. Há um débito social muito grande com a população brasileira, dando a impressão de que os governantes não se preocupam com as populações futuras. As propostas são ineficientes, mal acabadas e acima de tudo mal delineadas metodologicamente o que compromete sua efetiva aplicação. Há um desinteresse institucional muito grande nesse sentido, apesar de falarem abundantemente sobre o assunto. Deveríamos ter Políticas Públicas preventivas mais abrangentes, consistentes e consequentes para fazer face à tão complicado problema, considerado por todos como um dos mais importantes problemas de saúde do mundo. 181


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Depressão, a morte em vida Publicado no Jornal Pequeno 13 10 2014.

A Organização Mundial de Saúde - OMS estima que até 2020 a depressão será a principal causa de incapacitação em todo o mundo e a principal doença dos seres humanos. Muitas pessoas se tornarão incapazes do ponto de vista funcional e improdutiva do ponto de vista laborativo (absenteísmo) e social. A depressão, além disso, acarretará muitos outros prejuízos, na saúde, na economia, na vida afetiva, emocional, previdenciária etc. Para a OMS, há no globo, atualmente, mais de 350 milhões de pessoas que sofrem de depressão e pelo menos 5% dessas pessoas que vivem em comunidade sofrem de depressão. No Brasil, estima-se que exista mais de 17 milhões de pessoas afetadas pela doença. Cerca de 850 mil morrem, por ano, em decorrência da enfermidade, especialmente por suicídio, 183


Depressão, a morte em vida.

onde a depressão corresponde ao principal fator de risco. A OMS informa também que nos próximos 20 anos a depressão deverá tornar-se a doença mais comum do mundo, afetando mais pessoas do que qualquer outro problema de saúde, incluindo cânceres e doenças cardiovasculares. No aspecto socioeconômico, a depressão é, entre as doenças mentais, a que mais acarreta custos econômicos e sociais para os governos, devido aos custos com seu tratamento e por afetar a capacidade produtiva das pessoas. Na Europa, estima-se que a depressão gere um custo de 250 euros por habitante e atinja 21 milhões de europeus, produzindo custos para a economia em torno de 118 bilhões de euros por ano. Ainda de acordo com o órgão, os países pobres são os que mais sofrerão com o problema, já que são registrados mais casos de depressão nesses lugares do que em países desenvolvidos. E os custos da depressão

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serão sentidos de maneira mais aguda em países em

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desenvolvimento, já que eles registram mais casos da doença e têm menos recursos para tratar de transtornos mentais. Esses dados expressam claramente que, embora a Ciência já tenha desvendado o caráter biológico da doença, o ambiente sóciocultural, as condições psicossociais


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e econômicas exercem enorme peso na clínica, na epidemiologia e na recuperação destes pacientes. O fato de vivermos em uma época e em uma sociedade conflitante, ameaçadora e instável do ponto de vista político, econômico, social e da segurança pública, colabora para gerar danos irreparáveis à estabilidade emocional, psicológica e social das pessoas, consequentemente para o desenvolvimento da doença. A descrença, as decepções, a desesperança e sentimentos nocivos são comuns nos dias atuais, pois provocam profundas rupturas psicossociais, que resultam na geração de comportamentos depressivos, bem como as frequentes e rápidas mudanças em nossas referências sociais, éticas, religiosas e afetivas, acabam vulnerabilizando-nos e, por conseguinte, geram mais depressão. O uso crônico de álcool e de outras drogas da forma como vem ocorrendo largamente em nossa sociedade (onde cada dia se bebe mais e, cada vez mais surgem drogas psicoativas mais poderosas para o consumo indevido) representa uma condição importante entre as causas de depressão na sociedade atual. Isso certamente explicaria o fato de muitos jovens de pouca idade e mesmo crianças estarem apresentando cada vez mais depressões e outras doenças mentais. Do ponto de vista psicológico, a depressão é a 185


Depressão, a morte em vida.

condição que mais causa sofrimento às pessoas, as quais referem dor na alma, incomparável a qualquer sofrimento humano. Os depressivos apresentam uma angústia vital que só eles são capazes de senti-la e descrevê-la. A vida perde a cor, o sabor e o sentido. As pessoas estão sempre amarguradas, inexpressivas e infelizes. Sentem-se sós no mundo e perdem inteiramente a esperança de se recuperarem de seus problemas. Para muitos, a crise depressiva é uma morte lenta e infindável, por isso muitos recorrem ao suicídio que corresponde a taxas altíssimas entre esses enfermos. Apesar de tudo, tem jeito. A depressão tem tratamento e as pessoas se recuperam inteiramente. O que se recomenda atualmente é que, além do tratamento rigoroso o mais precoce possível para o controle do episódio depressivo, às pessoas que já tiveram mais de um desses na vida, lhes seja oferecido tratamento profilático (preventivo) para evitar que a doença retorne.

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É preciso, portanto que haja uma ampliação

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dos dispositivos comunitários na área da saúde para se atender com brevidade esses enfermos. Que haja mais ambulatórios especializados para depressivos, para o atendimento o mais rápido possível essas pessoas, a fim de não ficarem perambulando por aí como ocorre atualmente.


Crônicas do Cotidiano na Visão de um Psiquiatra _VOL 2

Cumpre, portanto, encetar mudanças de atitudes políticas na área da saúde mental para abrir um leque de serviços especializados no atendimento desses enfermos e de suas famílias para enfrentarem melhor tais problemas: A depressão é uma doença como qualquer outra doença e as pessoas têm o direito de ser aconselhadas e receberem os mesmos cuidados médicos que é dado aos portadores de qualquer outra enfermidade. É uma doença evitável, prevenível e curável. Infelizmente, ainda existem muitos preconceitos em relação a ela, fato que, a meu ver, complica-lhe mais ainda o manejo.

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30 Doenças mentais e as redes sociais Publicado no Jornal Pequeno 04 10 2015.

Este é o quarto artigo que publico neste jornal tratando das distorções verificadas na utilização das modernas tecnologias eletrônicas. Em todos, destaquei os benefícios indiscutíveis que a era digital trouxe ao homem moderno, proporcionando-lhe meios para uma vida melhor e mais saudável. Destaquei também os riscos e os problemas que o abuso desses recursos poderia provocar na saúde mental e no comportamento das pessoas, se mal utilizados. Comportamentos obsessivos, compulsivos, síndromes ansiosas, depressões graves e as dependências eletrônicas, são, entre outros, os problemas mais frequentes que se observam na clínica diária quanto à utilização disfuncional dessas ferramentas. São cada vez maiores o interesse e os estudos desenvolvidos em todo mundo sobre esse tema, 189


Doenças mentais e as redes sociais.

muito embora se saiba que muitos desses transtornos ainda não foram catalogados como enfermidade pela Organização Mundial da Saúde - OMS. Acredita-se que, nos próximos anos tais condições poderão ser consideradas enfermidades tipificadas na Classificação Internacional das Doenças – CID -10. Entre as condições que vêm sendo estudadas largamente se tem os “dependentes de redes sociais”. Há diferentes formas de se definir o que são redes sociais, pois elas são organizadas de diferentes maneiras e interesses, todavia, trata-se de uma estrutura social composta por pessoas ou organizações, conectadas por um ou vários tipos de relações, que partilham valores e objetivos comuns. Uma das características mais importantes das redes é a sua abertura e porosidade, possibilitando relacionamentos horizontais e não hierárquicos entre os participantes. O conceito de rede surgiu na Sociologia e Antro-

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pologia Social, no final do século XX, como um novo

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paradigma das Ciências sociais, aplicado e desenvolvido em disciplinas como a Antropologia, a Biologia, os estudos de Comunicação, a Economia, a Geografia, as Ciências da Informação, a Psicologia Social e, sobretudo, no Serviço Social. No universo virtual, as redes sociais operam


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em diferentes níveis: de relacionamentos (Faceboock, Orkut, Myspace, Twitter), redes profissionais (como Linkedin), redes comunitárias (redes sociais em bairros ou cidades) e muitas outras. Elas ganham, a cada dia, mais importância, especialmente quanto à possibilidade de compartilhamento de informações, conhecimentos, interesses e esforços em busca de objetivos comuns. E, dada a facilidade de expansão, o prazer em manuseá-las, o alcance social das mesmas, sua operacionalidade e a eficiência nas comunicações, tudo isto tornou as redes em oportunidade de gerar grandes negócios. Todos esses benefícios fizeram com que inúmeras pessoas ficassem seduzidas e se entregassem de corpo e alma, a esse instrumento a ponto de adoecerem e perderem a noção de adequação e racionalidade em suas diferentes formas de expressão: entretenimentos, jogos, lazer, profissionalismo, afetivo, etc. Sabe-se que muitos dos usuários (que adoeceram pela utilização exagerada e descontrolada desses instrumentos e desses meios eletrônicos!), já apresentavam algum distúrbio psicopatológico anterior à utilização desses meios e encontraram neles os melhores escapes para seus problemas. Há outros que adoeceram pelos excessos, abusos e descontroles na utilização 191


Doenças mentais e as redes sociais.

de tais meios e ferramentas. Para ambos os grupos, o sintoma fundamental é a restrição da liberdade, isto é, as pessoas ficam literalmente presas a essas práticas, sacrificam todos os outros interesses e abandonam atividades vitais em troca da conexão permanente a uma rede virtual. Uma dessas redes largamente utilizada nos dias atuais é o WhatsApp, um sistema de comunicação de fácil acesso, sem ônus diretos aos usuários. Notabiliza-se pela rapidez em sua operação e por mensagens rápidas. O sistema é de uma eficiência inigualável e tem atraído muita gente, não só pelo alcance e abrangência social entre os usuários, mas pela rapidez e eficiência com que ocorrem as comunicações. Quando foi incorporada ao Faceboock o sistema disparou, e hoje, é considerado um dos mais importantes meios de comunicação no mundo intra e extras socialmente, dentre as ferramentas e das mídias eletrônicas.

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Observa-se que quanto mais eficaz, mais rápida,

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mais abrangente e de maior alcance social for a rede ou o instrumento, mais irá adquirir adeptos (usuários), mais chamará a atenção para si, e despertará mais interesses sobre seu funcionamento. O fato é que estão surgindo de forma assustadora novas formas desses meios eletrônicos de relacionamentos sociais e psicológicos entre os


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humanos que redefinem novos padrões relacionais que a cada dia se incorporam no seu cotidiano. As comunicações pessoais e empresariais, afetivas, emocionais, na área dos negócios do lazer e do entretenimento, enfim, em todos as áreas, verifica-se essa nova forma de relacionamento e pelo prazer que isso dá, abrangência de sua aplicação e a frequência de seu uso, muitos ainda não se deram conta de que também estão adoecendo. Então, pelo visto, a OMS, em breve, irá incorporar nos próximos anos, em sua classificação das doenças humanas, essas novas formas de adoecimento mental, o que devemos desde cedo especular para o que fazer com vistas a tratar e ou prevenir que tanta gente adoeça.

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31 Doenças reais, adquiridas nas práticas virtuais Publicado no Jornal Pequeno 15 06 2015.

É cada dia mais surpreendente a relação do homem com seus inventos! Essa era, a da Tecnologia, curiosamente está colaborando para o surgimento de outros adoecimentos comportamentais, em razão do uso descontrolado de alguns equipamentos que fazem parte desse contexto tecnológico. Informática,

Facebook,

Instagram,

Twitter,

WhatsApp, RPG, Candy Crush e Ask.fm, todos estes instrumentos virtuais são muito atrativos e surgem com uma velocidade impressionante, tornando-se difícil acompanhar essa evolução nos meios de comunicação do presente momento. Diante dessas ferramentas o homem se reinventa, redescobre facetas em suas próprias aptidões que nunca lhe haviam aparecido, causando-lhes um bem-estar esfuziante em suas habilidades e em suas versatilidades. 195


Doenças reais, adquiridas nas práticas virtuais.

Enquanto a maioria das pessoas faz uso moderado desses instrumentos para se comunicar ou como entretenimento, ou ainda como um meio fabuloso de comunicação social, muitos caem na trama on-line e não conseguem desconectar-se, aprisionando-se na virtualidade. A Associação Brasileira de Psiquiatria - ABP, alerta: “O vício tecnológico é um problema sério, semelhante às dependências químicas”. De acordo com os psiquiatras e psicólogos que estudam e vêm debatendo esse tema, somos informados que o agravante, diferentemente da dependência do álcool e de outras drogas, é uma condição que precisa ser mais bem conhecida. O Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais em sua última versão (DSM-5), documento da Associação Psiquiátrica Americana - APA, considerado uma espécie de bíblia da Psiquiatria americana, já incluiu a dependência em jogos eletrônicos na sessão III, indicando que ainda são necessários mais

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estudos a respeito. Já a fixação e relações disfuncionais

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em redes sociais e mensagens instantâneas é um fenômeno tão novo que ainda não entra na classificação - oficialmente, o termo usado para diagnóstico é uso problemático das tecnologias. Os especialistas advertem que é preciso cada vez mais prestar-se atenção a esses instrumentos, pois:


Crônicas do Cotidiano na Visão de um Psiquiatra _VOL 2

“O ambiente do século 21 não tem precedentes. A gente não pode demonizar a tecnologia, a gente vai ter de aprender a lidar com ela”, diz o psiquiatra Gabriel Bronstein, chefe do Setor de Dependência Química e Outros Transtornos do Impulso da Santa Casa da Misericórdia do Rio de Janeiro. Ainda assim, no cotidiano dos consultórios dos que tratam dos diversos transtornos virtuais, como os de jogos eletrônicos, das redes sociais, dos smartphones e de outros procedimentos on-line, são pessoas que, sendo dependentes dessas tecnologias, apresentam características comuns aos pacientes dependentes de álcool e de outras drogas, os quais apresentam prejuízos sociais e à saúde. Os sintomas principais nessa perspectiva são isolamento social, baixo rendimento laboral e escolar, dificuldade de parar de usar esses instrumentos ou ferramentas, fissuras graves para usá-las, passam mal quando não os dispõe ou se distanciam delas, recaídas. Um fato notório e relevante, que se observa nesses dependentes virtuais, é um apego intenso e surpreendente a essas ferramentas, incluindo-se aí as redes sociais, os equipamentos eletrônicos, sobretudo smartfones, e respectivamente o abandono lento e progressivo de atividades que, anteriormente lhes 197


Doenças reais, adquiridas nas práticas virtuais.

eram importantes. Vão deixando as coisas de lado nas quais tinham interesses de forma visível. Outro aspecto, relevante, é a identificação de estados psicopatológicos subjacente nessas pessoas, onde muitas nem sabiam que existiam e que as fixações afloraram nas relações com os esquemas virtuais. (doenças emocionais e de diferentes tipos que passam a se manifestar com o desenvolvimento da dependência virtual). Entre essas patologias, as que mais se destacam, são as depressões, transtornos de ansiedade, pânico e transtorno obsessivo-compulsivo. Há pacientes chegando aos consultórios médicos com algum desses problemas, e, durante a avaliação, se constata que os mesmos sofrem também de dependência em algum tipo de tecnologia. O uso funcional e disfuncional (patológico) dessas mídias eletrônicas, ou ferramentas on-li-

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ne, são inteiramente diferentes entre os respectivos

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usuários. E, o que está em jogo, para se distinguir uma coisa da outra, é a qualidade de vida que ambos passam a ter com o uso desses instrumentos. A favor da doença, citamos: mudanças frequentes no humor, tempo excessivo gasto com a atividade virtual, ocupando boa parte de seu tempo útil. Aumento


Crônicas do Cotidiano na Visão de um Psiquiatra _VOL 2

da tolerância quanto ao uso do eletrônico, conflitos internos e sociais ocasionados por isso, não suportarem se afastar desses equipamentos. Sentem-se vazios e sem sentido quando se distanciam dessas atividades. Recaídas são frequentes, quando conseguem, com muito esforço, afastar-se dessas ferramentas. O excesso de tempo desprendido nessas atividades é um marcador importante, mas não determinante, para a caracterização do transtorno. Essas pessoas, supostamente dependentes virtuais, por darem muita importância às relações com esses instrumentos midiáticos e eletrônicos, negligenciam as outras coisas e perdem o sentido e a importância destas, ensejando grandes prejuízos e, por consequência, estão adoecendo. A perda de interesse social (a pessoa deixa de se relacionar com as outras para se dedicar ao mundo virtual), os embates familiares e até alterações na saúde ocorrem. Sedentarismo e aumento de peso são os problemas mais evidentes. Portanto, recomenda-se que as pessoas tenham muita cautela na utilização dessas ferramentas, as quais só terão sentido se utilizadas enquanto instrumento de recreação (lazer), de trabalho, de pesquisa etc., se houver o desenvolvimento de transtornos psicopatológicos (mentais) 199


em razão de seu uso, transformar-se-ão em doenças mentais graves, semelhantes aos verificados com

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quem é usuário de drogas.

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Envelhecimento e depressão Publicado no Jornal Pequeno 10 08 2015.

A depressão é uma condição frequente em diferentes etapas da vida: na infância, na adolescência, entre adultos e, e em cada uma dessas etapas, teremos manifestações clínicas peculiares e incidências distintas. Entre as mesmas, a que mais se verifica é a depressão entre os idosos. Apesar da alta incidência de depressão nessa fase, o trato dessa condição ainda é muito negligenciado. É comum, recorrente, subdiagnosticada e subtratada, principalmente em nível dos cuidados primários de saúde. Prevê-se que as consequências na Saúde pública, do subtratamento da depressão no idoso, irão aumentar cada vez mais, devido ao aumento na taxa de envelhecimento da população. Do ponto de vista psiquiátrico, a depressão pode ser um sintoma, uma síndrome ou uma doença e, entre os idosos, pode apresentar-se sob uma dessas três 201


Envelhecimento e depressão.

condições, sendo imperioso, em qualquer uma das três, realizar-se o diagnóstico e iniciar-se o tratamento o mais cedo possível. Como disse acima, o envelhecimento da população é hoje um fenômeno transnacional desafiador em Políticas Públicas, tanto nos países desenvolvidos, quanto nos países em desenvolvimento. Os esforços se ampliam entre os governantes para construir uma política de saúde do idoso que garanta melhor qualidade de vida. No Brasil, impressiona a rapidez com que ocorre o envelhecimento da população, pois, segundo a Organização Mundial de Saúde (OMS), até o ano de 2025, a população idosa no Brasil crescerá 16 vezes, contra cinco vezes o da população total. Isso classifica o país como o sexto do mundo com população de idosos, correspondendo a mais de 32 milhões de pessoas com 60 anos ou mais (OMS,

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2006). Com esse aumento elevar-se-á a prevalência de

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doenças crônico-degenerativas, dentre estas, aquelas que comprometem o funcionamento do sistema nervoso central, como as enfermidades neuropsiquiátricas, as degenerativas e, particularmente a depressão. Os tipos de depressão frequentes entre idosos são depressão bipolar, depressão unipolar, distúrbio


Crônicas do Cotidiano na Visão de um Psiquiatra _VOL 2

distímico, distúrbios de ajustamento devido a outros transtornos orgânicos, os quais afetam a performance e a resposta ao tratamento das síndromes cerebrais orgânicas, próprias da idade. Além disso, citamos os quadros de depressão reativa, comuns nessa idade, que estão muito relacionados ao modo e a qualidade de vida dessa população. Todo ser humano em qualquer fase de sua vida, poderá experimentar sintomas depressivos. Nos idosos, a probabilidade de ter depressão é ainda maior, por haver limitações impostas pela própria idade*. A saúde geral e, em particular, a saúde mental são muito afetadas ante episódios depressivos por provocar um decréscimo significativo de suas habilidades e na qualidade de vida. Isso explica a alta incidência de suicídio entre idosos. Estudo realizado pela OMS, em 13 países europeus, mostrou que as taxas médias de suicídio entre pessoas com mais de 65 anos chega a 29,3 por 100.000 habitantes, e as de tentativas de suicídio, 61,4 por 100.000. Além dos dados serem elevados, a razão entre tentativas de suicídios e os consumados é muito próxima, quase 2:1. * A propósito, o prof. Ramiro Azevedo, em conversa comigo, afirmou que este é um assunto cruciante (Área da Saúde) tratado nas monografias, teses de mestrado, doutorado etc.

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Envelhecimento e depressão.

Os sintomas proeminentes da depressão no idoso são isolamento social, desesperança, angústia, sentimentos de culpa e remorso e anedonia (falta de prazer). Podem surgir alterações do sono, do apetite, da disposição geral, dificuldades em tomar decisões ou iniciativas, tristeza profunda e desalento acentuado em tudo que faz, além de inquietação ou inibição psicomotora. Rebaixamento da autoestima, do autoapreço e do autocuidado são condições sempre associadas a uma carência afetiva profunda, condições

muito

frequentes entre idosos depressivos, pois esses não se cuidam e dão muito pouco valor à vida**. Outro fato médico e psicossocial importante, é que, nessa fase da vida, ocorrem predisposições naturais para muitos agravos à saúde entre os idosos e isso os vulnerabiliza para desenvolverem muitos outros problemas de saúde, tanto física quanto comportamental, os quais não estão ligados só à depressão; por isso é sempre aconselhável que um idoso, ao P a l h a n o

pressiva, deve-se sempre verificar se se trata de uma

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apresentar um dos sintomas próprios da esfera de-

** O prof. Ramiro Azevedo também referiu a variável baixa condição socioeconômica (também cor da pele) e escolar, conforme as monografias e teses que tem corrigido.

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síndrome, de um sintoma ou da própria doença depressiva, três condições distintas, uma das outras.


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Para se prevenir adequadamente tais ocorrências depressivas nos idosos aconselham-se práticas regulares de exercício físico, ocupação, lazer e atividades intelectuais, as quais contribuirão para diminuição do sofrimento do idoso deprimido. Essas práticas físico-sociais além de oferecer oportunidade para o desenvolvimento de habilidades sociais, melhora o funcionamento psicossocial, eleva a autoestima e as funções cognitivas. Em casos mais severos, é imprescindível o tratamento psiquiátrico para controle da situação. O uso regular de medicamentos indicados a esta condição e o apoio psicossocial por meio de técnicas psicoterápicas especializadas são bem recomendados.

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33 Insônia nem sempre é doença mas, sim, sintoma Publicado no Jornal Pequeno 30 11 2015.

É certamente uma das piores queixas que alguém pode apresentar em se tratando de problemas de saúde! Uma noite mal dormida é muito ruim, imaginemos uma sucessão de noites mal dormidas; é terrível. As alterações logo se apresentam no dia seguinte: indisposição geral, mau-humor, cansaço matinal, irritabilidade, dor de cabeça e muitos outros sintomas extremamente desagradáveis que atrapalham a vida da pessoa. E se a insônia persistir, os sintomas se agravarão a ponto das noites se transformarem em “verdadeiros tormentos”. Desde a Antiguidade que a insônia, nome dado às dificuldades de se dormir, vem despertando grandes interesses e curiosidades. Filósofos, médicos, psicólogos e muitos estudiosos e curiosos sempre trataram desse assunto. Um desses foi Hipócrates que 207


Insônia, nem sempre é doença e sim sintoma.

relacionou a insônia a aborrecimento e à tristeza, enquanto Aristóteles tinha mais interesse nos estudos da fisiologia do sono, acreditando que essa era uma condição necessária para a manutenção da percepção. Desde essa época para cá, inúmeros estudos surgiram tratando-o sob diferentes enfoques e, atualmente, são inegáveis o valor e a importância que eles têm à luz da Neurociência, da Neurologia, da Psiquiatria, da saúde mental e da Medicina em geral, a ponto de ser considerado como um dos temas mais importantes entre os estudos médicos. Os distúrbios do sono são classificados em 04 categorias, estando as insônias na categoria das Dissonias, que são distúrbios que refletem anormalidades na quantidade, qualidade ou tempo de sono. Neste grupo estão também as hipersônias, narcolepsias, pesadelos, terror noturno, sonambulismo, entre os principais distúrbios.

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A insônia, dentre tais distúrbios, é um dos mais

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referidos, em torno de 20% dos adultos, sendo mais comum entre mulheres. Não é comum entre crianças e adolescentes, pois surge geralmente no adulto jovem (entre 20 e 30 anos) e se intensificará gradativamente com o passar dos anos, a ponto de ser muito frequente entre os idosos.


Crônicas do Cotidiano na Visão de um Psiquiatra _VOL 2

Clinicamente,

temos

a

insônia

primária.

Sua prevalência anual gira em torno de 30 a 40% entre os adultos. Em clínicas especializadas em transtornos do sono, aproximadamente 15 a 25% dos indivíduos com insônia crônica recebem o diagnóstico de Insônia Primária. Neste tipo de insônia a queixa principal é a dificuldade para iniciar ou manter o sono, que dura em geral no mínimo 1 mês e causa sofrimento clinicamente significativo ou prejuízo no funcionamento social ou ocupacional ou em outras áreas importantes da vida do indivíduo. Temos ainda insônias secundárias, que se apresentam como um transtorno médico, psicológico ou social subjacente: depressões, distress, transtornos de ansiedade, distúrbios ocupacionais, abuso de álcool e de outras drogas, bem como outros transtornos médicos que podem também alterar a neurofisiologia do sono, provocando insônias e outras alterações graves. Clinicamente há três tipos de insônia: insônia inicial, intermediária e a final. A inicial é muito frequente e a que mais comumente aparece como queixa nos consultórios. Nesta, a pessoa tem dificuldade de começar a dormir passando horas rolando na cama e o sono não chega. É uma situação angustiante e incômoda demais. Esta situação pode estar relacionada a 209


Insônia, nem sempre é doença e sim sintoma.

pessoas ansiosas, excessivamente preocupadas que estejam passando por problemas recentes ou são reações iniciais de episódio depressivo. A insônia intermediaria é aquela em que a pessoa inicia o sono, porém na madrugada não dorme mais ou fica acordando várias vezes na noite, tendo um sono interrompido, fazendo com que, no dia seguinte, tenha a sensação de não ter dormido nada. E, por último, a insônia terminal na qual a pessoa, acorda no raiar do dia, não consegue mais dormir. Este tipo é comum e muito angustiante observado em paciente portadores de depressões graves. A evolução dos meios de diagnóstico das insônias e o surgimento de modernos tratamentos farmacológicos e não farmacológicos destes distúrbios vieram ajudar muito o seu tratamento. Em princípio, deve-se sempre buscar as causas da insônia seja ela primária seja secundária, para orientar

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seu tratamento. O uso de medicamentos nem sempre

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é o único recurso e, se houver opção por este, deve-se sempre ter muita cautela para evitar que os portadores de insônia não fiquem viciados tornando-se hipnóticos. O maior cuidado que se tem de ter, no manejo terapêutico das insônias, é tratá-la após um diagnóstico. Isto é, tratar depois de saber de suas causas.


Crônicas do Cotidiano na Visão de um Psiquiatra _VOL 2

Prescrever medicamentos para fazer alguém dormir, é o que há de mais fácil na prática médica, e isso não se recomenda. Agora, ir atrás dos motivos que motivam as pessoas a não dormir, é o que se recomenda na prática clínica, e é o que está correto, pois, insônia, na absoluta maioria das vezes, é sintoma e não doença.

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34 Internar ou não internar dependentes químicos? Eis a questão Publicado no Jornal Pequeno 02 03 2015.

A disseminação do uso de drogas é certamente um dos maiores problemas da Humanidade nos últimos 50 anos. O índice de morbimortalidade produzida por esta prática supera as estatísticas epidemiológicas de mortes ocasionadas pelas guerras e por muitas outras doenças, que ocupam lugares de destaque nas estatísticas nacionais ou internacionais. A situação se complica ainda mais por se saber que o problema não se restringe somente aos usuários, mas atinge vítimas inocentes em qualquer lugar. As mudanças frequentes dos hábitos sociais, a labilidade* dos padrões de conduta moral, a velocidade cada vez maior das informações, o materialismo e consumismo notórios na sociedade atual, o referendo social e cultural do uso corriqueiro de bebidas * Traduzida em termos de “instabilidade emocional”.

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Internar ou não internar dependentes químicos? Eis a questão.

alcoólicas e de cigarros em casa e nos ambientes sociais, a desagregação sociofamiliar, a falta de diálogo franco entre pais e filhos, a curiosidade; a propaganda indiscriminada de bebidas alcoólicas como algo inofensivo, a inexistência de políticas públicas efetivas sobre álcool e outras drogas, a necessidade de autoafirmação do jovem perante um grupo, a propagação da ideia de que existem drogas “leves ou inocentes” e, em especial, a ganância desenfreada de alguns que encontram no tráfico ilícito de drogas sua maior atração. Estas são, entre tantas situações, algumas das causas desta explosão incontrolável do uso de álcool e outras drogas. A sociedade parece imobilizada sem saber nem por onde começar para participar adequadamente desta questão, pois como as medidas públicas são fragmentadas, isto favorecerá a desmobilização social para o enfrentamento da situação, adotando conduta meramente contemplativa. Apesar do tamanho do problema e da imobilização social há, no presente, setores da socieda-

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de que se encontram bem engajados nessa luta. Enti-

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dades públicas, privadas, religiosas, filantrópicas que, congregando pessoas sedentas de informação e auxílio, fornecem aconselhamento, permitem a troca de experiências e proporcionam tratamento aos dependentes. Talvez seja a família, de todos os segmentos sociais,


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a mais afetada, pois mães e pais desesperados batem às portas dessas instituições ou do Poder público, relatando que já perderam tudo: a paz, o sono, a saúde, o patrimônio. Agora, estão prestes a perder a esperança e a vida, levadas de roldão pelo comportamento suicida de um filho ou familiar que se atirou no poço profundo do vício, de onde não tem forças para sair. As opiniões sobre a melhor forma de tratar dependente de drogas, álcool e de outras drogas são divergentes, embora todos deem suas contribuições. A dependência química é uma doença grave que exige tratamento, mesmo à revelia dos usuários. O sucesso dessa iniciativa, como qualquer intervenção médica responsável, dependerá do acerto entre a medida usada e as necessidades do paciente. Qualquer atividade de atenção e reinserção social exige a observância de princípios legais, como o respeito aos dependentes de drogas ou álcool, a definição de projeto terapêutico individualizado e o atendimento ao doente e a seus familiares, por equipes multiprofissionais. Isto é o que está em lei, Art. 22, da lei 11.343/06. São raríssimos os casos de dependentes que conseguiram recuperar-se sem o auxílio da família ou de terceiros, da mesma forma sem o auxílio especializado de uma equipe profissional, bem 215


Internar ou não internar dependentes químicos? Eis a questão.

treinada e preparada para garanti-lo. Uma pesquisa americana revelou que 50% dos dependentes químicos apresentam algum tipo de transtorno mental, sendo o mais comum deles a depressão, e o transtorno de personalidade. Muitos são inaptos para aquilatar a própria doença e a nocividade do seu comportamento, por isto mesmo não aceitam qualquer tipo de ajuda. É na ocasião de risco de vida desses usuários é que a lei federal, abaixo citada, surge para apoiá-los e às suas famílias, garantindo seu tratamento sob internação. Isto está previsto na Lei 10.216 /2001. Estudos recentes mostram que o fato de alguém se internar em um hospital para se tratar involuntariamente, voluntariamente ou de forma compulsória, não macula o resultado desses tratamentos através dessas três condições, pois os pacientes podem beneficiar-se do que lhes é oferecido através das mesmas**. O que não se concebe mais, nos dias atuais, é esperar

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que um doente mental, grave como são os dependen-

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tes de álcool e outras drogas decidam, tão somente, se querem ou não se tratar já que lhe faltam estas prerrogativas em razão de sua doença.

** Surpreendentemente, o auxílio religioso, prestado por missionários, padres etc., por vezes consegue efeitos valiosos.


35 Limpeza ética, justiça e cidadania Publicado no Jornal Pequeno 29 06 2015.

Às vezes me pergunto se é verdade o que estou vendo ou lendo nos jornais, revistas e telejornais, sobre as prisões desses figurões, homens ricos, influentes e poderosos, donos das maiores empreiteiras da construção civil e de dezenas de outras grandes empresas, sendo conduzidos algemados para a cadeia. Homens milionários, poderosos, influentes que por décadas dominaram inteiramente o mercado da Construção Civil e inúmeras outras empresas de diferentes atividades, tanto nacional quanto internacionalmente, davam as regras dos preços de bens e serviços, nas licitações e em outros negócios. Hoje os vejo sendo conduzidos por policiais federais, indo para trás das grades, algemados, cabisbaixos, saindo de suas mansões ou de suas empresas, direto para a cadeia. Chego a me perguntar se isso é verdade! 217


Limpeza ética, justiça e cidadania.

Pois, quando iríamos acreditar ou imaginar que, em tão pouco tempo, isso iria acontecer neste país, que, por muitos anos, esteve inteiramente dominado por “gangsters sofisticados” e milionários. Só via isso em filmes e em países sérios. A bem da verdade, essas práticas criminosas não começaram agora. Embora, semelhante à situação presente, não haja qualquer precedente na história recente deste país. Esses empresários e figurões (ladrões que dominavam tudo e davam as regras do jogo de forma corrupta, sempre têm existido) ocorre que suas práticas criminosas aconteciam em um clima de mais prudência através de aparente normalidade e isso era garantido pela eficiência de seus “lobbies”. Hoje, esse cenário é de mudança e os “caçadores viraram caça”. Atualmente se conhece bem mais sobre tudo isso, graças às investigações sérias e rigorosas da Polícia Federal, sob o comando do Ministério Público

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Federal, da Justiça Federal, e de muitos outros órgãos

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sérios desse país, que estão desvendando e esclarecendo tais crimes. Sabe-se, que, pelo tamanho das falcatruas praticadas, tais crimes não poderiam ter sido praticados por uns poucos criminosos, mas, sim, por uma rede gigantesca ou quadrilha organizada de bandidos de colarinho branco, que amealham fortunas do


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erário público, de forma inescrupulosa. Sabe-se, também, que os larápios exerciam influência sobre pessoas que exercem cargos importantes no poder e que exerciam também funções de notoriedade na máquina pública. Sem essas benesses, certamente não se sentiriam tão seguros ou à vontade para cometerem seus crimes. São milhões e milhões de reais surrupiados “ilegalmente”, retirados dos cofres públicos, para agentes privados, e, destes, para dirigentes e mandatários políticos, o que dá revolta. Funcionavam dentro de um esquema criminoso gigantesco, como tem sido amplamente divulgado pela imprensa. E, hoje, quando se vê que progressivamente essas coisas estão vindo à tona, percebe-se que esses ladrões (que tinham uma blindagem de chumbo que encobriam seus crimes) dispõem, agora, de uma blindagem de flandres. Desprotegidos, pedem socorro, apoiando-se em delações premiadas, para não apodrecerem nas cadeias. Que maravilha!!! Como isso nos alenta, conforta-nos, incentiva-nos a acreditar na Justiça, na Ética e em homens sérios e de bem. Veja, simplesmente através de “operação lava a jato”, poderia ser chamada Operação Sabão em Pó, pela limpeza ética que está promovendo. Já levou dezenas desses empresários e políticos corruptos para a cadeia. 219


Limpeza ética, justiça e cidadania.

Gostaria de destacar a coragem do Juiz Federal, Sérgio Moro, que com gestos sóbrios, firmes e destemidos e, convencido de sua responsabilidade como magistrado e cidadão de bem, tem enfrentado essa gang toda, e não se curva, apesar das ameaças que vem sofrendo, segundo a grande mídia. É um grande exemplo para nós. Ao mesmo tempo, percebem-se poucas vozes, provenientes

dos

diferentes

parlamentos

brasilei-

ros, levantarem suas vozes em apoio ao magistrado. Ao contrário, essas práticas estão atingindo a classe política em cheio, e, pelo visto, também é uma das grandes beneficiárias das falcatruas, principalmente alguns partidos da base aliada do governo atual. Chego a acreditar que vivíamos em um país fragmentado, “vários brasis”, dentro de uma só geografia. Um Brasil, dos homens sérios, trabalhadores, que praticam a Justiça, a paz, a equidade social, o bem comum, garantindo as chances e oportunidades para

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todos que fazem nosso país. Um Brasil, lindo, rico e

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próspero. Por outro lado, outro Brasil, negro e pobre. Repleto de homens maus, incompetentes e oportunistas, larápios e criminosos, que disfarçados de boas pessoas e honestas, exercendo os cargos mais importantes em diferentes setores, vêm implodindo a Nação com práticas imorais e levianas.


Crônicas do Cotidiano na Visão de um Psiquiatra _VOL 2

Um Brasil repleto de ladrões que destroem a ordem social e a moralidade pública enriquecem ilicitamente, praticam crimes para se manter no poder. É o Brasil dos corruptos, dos ladrões, dos políticos desonestos, e incompetentes, que nos destroem a cada dia. Nesse aspecto, vejo que não é só pondo esses corruptos na cadeia que iremos retirar nosso país das mãos de tantos bandidos e de tanta sujeira que é praticada aqui, muito embora se saiba que o que está ocorrendo seja muito importante para a soberania nacional, para a Ética e para a governabilidade. Mas, seria muito importante também que se repensasse esse modelo de gestão pública, mais eficiente, mais profissional e menos amadora, como é feito hoje. Que haja mais competência e menos amadorismo, na gestão pública! Que haja mais profissionalismo e menos improvisação! Que se repense um modelo político mais aperfeiçoado para se garantir práticas democráticas saudáveis, a fim de evitar-se tantas falcatruas entre os que exercem mandatos parlamentares, como o que ocorre hoje. É a correção dessas ambiguidades que nos fará crescer. Mas, enquanto isso não chega, não vamos deixar apagar as chamas da correição, da Justiça e da honestidade. Continuemos com a luta pela moralidade pública. 221


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36 Menoridade penal, estamos preparados? Publicado no Jornal Pequeno 11 01 2016.

Lamentavelmente nosso país padece de uma síndrome política denominada de “síndrome da improvisação”. Caracteriza-se por um conjunto de sinais e sintomas que ocorre na esfera da atividade pública; surge em geral de forma lenta e insidiosa e evolui no sentido oportunista, imediatista e impensada no trato de assuntos importantes. Essa síndrome é muito comum em gestores públicos e, particularmente, em parlamentares de qualquer esfera do Poder legislativo. Os acometidos pela síndrome são cidadãos que exercem funções pública em geral com mandatos parlamentares e, costumeiramente, adotam certas posturas e recomendam certas medidas no âmbito da esfera pública, sem aprofundarem-se nas causas dos problemas que querem atacar. Sempre propõem medidas paliativas e imediatistas, com pouco impacto no que 223


Menoridade penal, estamos preparados?

querem atingir de tal forma que,- em pouco tempo ,tais medidas se tornam inócuas, sem efeito na resolução de questões públicas. Essa síndrome também é conhecida síndrome da improvisação, do oportunismo e da superficialidade no trato da questão pública. Esse transtorno não é recente. Estudiosos acreditam que a síndrome surgiu desde o nascimento da República e, quiçá também em outras formas de governo, apareceram os primeiros afetados pela síndrome. Nessa perspectiva, reacendeu-se recentemente no Parlamento nacional uma grande discussão em torno de um Projeto de Emenda Constitucional PEC que prevê a redução da idade penal de 18 anos, como é atualmente, para 16 anos, como pretende tal projeto. As pessoas iriam responder criminalmente por suas atitudes com idade de 16 anos. Sobre essa PEC, aprovada pela Comissão de Constituição e Justiça – CCJ, uma comissão parlamentar

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importante que, segundo os entendidos, sendo apro-

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vado por ela, o projeto deslanchará. E, pela TV, viu-se o contentamento que alguns parlamentares expressavam, ao terem alcançado tal deferência. Fiquei a me perguntar: “Estão alegres, por quê?” Procurei ir atrás dos motivos de tanta alegria: E vejam: 1 - Todos os países que reduziram a maioridade


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penal não diminuíram a violência, como pretendem os parlamentares. Nos 54 países que o fizeram não houve registro de redução da violência. A Espanha e a Alemanha voltaram atrás na decisão de criminalizar menores de 18 anos. Hoje, 70% dos países estabelecem 18 anos como idade penal mínima. 2 - Nossa legislação já responsabiliza toda pessoa acima de 12 anos por atos ilegais. Segundo o Estatuto da Criança e do Adolescente, o menor infrator deve merecer medidas socioeducativas, como advertência, obrigação de reparar o dano, prestação de serviço à comunidade, liberdade assistida, semiliberdade e internação. A medida é aplicada segundo a gravidade da infração. 3 - Onde prender os supostos menores infratores criminosos? Nas cadeias, que as conhecemos? Nelas, o que não falta é podridão, desumanidade, incentivo ao crime, maustratos, corrupção formação de quadrilha etc. O índice de reincidência em nossas prisões é de 70%. Não existe, no Brasil, política penitenciária, nem intenção do Estado de recuperar os detentos. Uma reforma prisional 225


Menoridade penal, estamos preparados?

seria tão necessária e urgente quanto a reforma política. As delegacias funcionam como “escola de ensino fundamental” para a carreira de criminosos; os cadeões, como ensino médio; as penitenciárias, como universidades. 4 - O ingresso precoce de adolescentes, quer queiramos ou não, são seres humanos em formação no crime ou fora deste. Sua psicologia e seu desenvolvimento cerebral estão em pleno processo de formação. Imagine-se serem penalizados para que esse processo ocorra nas prisões desse país! A meu ver, esse sistema carcerário (penitenciário), que está aí, só faria aumentar o número de bandidos, e de toda espécie de criminosos, pois tornaria muitos deles distantes de qualquer medida socioeducativa, (teoricamente seria o local onde se daria

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essa medidas). Esses adolescentes acima de

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16 anos ficariam trancafiados como mortos-vivos, sujeitos à violência, inclusive sexual, das facções que reinam em nossas prisões. Já no sistema socioeducativo, o índice de reincidência é de 20%, o que indica que 80% dos


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menores infratores são recuperados. 5 - Há em nosso país uma superpopulação carcerária. Eles são, hoje, 500 mil pessoas presas, a quarta maior população carcerária do mundo. Perdemos apenas para os EUA (2,2 milhões), China (1,6 milhão) e Rússia (740 mil). 6 - Enganam-se os autores da PEC, que retirando os de 16 anos das ruas ou os penalizando, os traficantes ficariam injuriados e chateados com isso. Imediatamente passariam a aliciar os adolescentes de 15,

de 14 de

13 e assim por diante. Nós estamos lidando é com bandidos sociopatas, indiferentes a qualquer regra penal, consequências ou dor seja de quem for. Estão muito preocupados é com nossa sorte. Seus interesses serão sempre defendidos por quem tem qualquer idade como fazem os defensores do Estado Islâmico e outras facções criminosas, etc. 7 - Reduzir a maioridade penal é tratar o efeito, e não a causa. Ninguém nasce delinquente ou criminoso. Possivelmente, um jovem ingressa no crime devido à falta de escolaridade, de afeto familiar, por pressão consumista que o convence de que só terá 227


Menoridade penal, estamos preparados?

seu valor reconhecido socialmente se portar determinados produtos de grife etc. 8 - Por que não se investe mais em Educação, em Saúde em formação da nossa juventude, em vez de se pensar em penalizá-los ou achar que eles que são os responsáveis pela tragédia desse país? É mais uma tentativa de enganação desse parlamento onde as coisas mais importantes não são debatidas como deveriam: ouvindo a sociedade. O menor infrator é resultado do descaso do Estado, que não garante a tantas crianças creches e educação de qualidade; áreas de esporte, arte e lazer; e, a seus pais, trabalho decente ou uma renda mínima para que possam subsistir com dignidade em caso de desemprego. Segundo o PNAD, o adolescente que opta pelo ensino médio, aliado ao curso técnico, ganha em média 12,5% a mais do

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que aquele que fez o ensino médio comum.

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No entanto, ainda são muito poucos os cursos técnicos no Brasil. Hoje, os adolescentes entre 14 e 17 anos são responsáveis por consumir 6% das bebidas vendidas em todo o território nacional. A quem caberia fiscalizar?


Crônicas do Cotidiano na Visão de um Psiquiatra _VOL 2

Por que se permite que atletas e artistas de renome façam propaganda de cerveja na TV e na Internet? A de cigarro está proibida, como se o tabaco fosse mais nocivo à saúde que o álcool. Alguém já viu um motorista matar um pedestre por dirigir sob o efeito do fumo? Pesquisas indicam que o primeiro gole de bebidas alcoólicas ocorre entre os 11 e os 13 anos. E que, nos últimos anos, o número de mortes de jovens cresceu 15 vezes mais do que o observado em outras faixas etárias. De 15 a 19 anos, a mortalidade aumentou 21,4%. Portanto, não basta reduzir a maioridade penal e instalar UPPs em áreas consideradas violentas. O traficante não espera que seu filho seja bandido, mas, sim, doutor. Por que, junto com a polícia pacificadora, não ingressam, nas áreas dominadas por bandidos, as escolas, oficinas de música, teatro, literatura e praças de esportes? Punidos deveriam ser aqueles que utilizam menores na prática de crimes. E eles costumam ser hóspedes do Estado que, cego, permite que dentro das cadeias as facções criminosas monitorem, por celulares, todo tipo de violência contra os cidadãos. Que tal criminalizar o Poder público por conivência com o crime organizado? Bem dizia o filósofo Carlito Maia: “O problema do menor é o maior.” 229


Menoridade penal, estamos preparados?

O programa “Alexandre Garcia”, no canal a cabo Globo News, levou ao ar tema do Projeto de Lei Suplementar 23/2012 de autoria do senador Aloysio Nunes Ferreira (PSDB-SP). Além do propositor da pauta, marcou presença no programa a pesquisadora em criminologia pela Universidade de Brasília (UNB) Beatriz Vargas. Como de praxe, Alexandre Garcia iniciou o programa perguntando por que tantos jovens estão no crime (sem dizer quantos) e, num tom crítico, lembrou que o Governo federal declarou que a alteração da idade penal é cláusula pétrea e que só vai ocorrer mediante reforma constitucional. O senador tucano abriu a roda de conversa relatando o caso de uma mãe que o procurou, pois a sua filha foi assassinada pelo namorado. Este depois do crime comemorou o fato na rede e indo a um jogo de futebol. “O jovem que tinha 17 anos, um dia antes do crime, vendeu um rádio e uma bicicleta pra comprar

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a arma e matar antes de completar 18… Isso é o de-

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poimento dele (…) Ele merece uma punição com mais rigor, daqui a três anos ele vai estar solto com a ficha limpa e pode ser contratado pra ser segurança de uma creche”, disse o senador, ressaltando o fato de o jovem ser menor de idade. Ao ser questionada sobre a lei, Beatriz Vargas


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comentou legislações de alguns Estados norte-americanos que punem jovens desde os 12 anos. “Os Estados Unidos são um dos poucos países que permitem a pena de morte aos 12 anos (…) isso é possível nos EUA por que eles submetem os jovens a uma junta de médicos que faz uma bateria de exames pra descobrir se ele reage como um adulto (…) eu não concordo com esse mecanismo; a regra que deve prevalecer cumpre ser menos uma pesquisa pra capacidade dele de evolução e compreensão cognitiva (…) a questão não é saber se estamos tratando com alguém que já introjetou a norma, mas o tipo de tratamento que nós, sociedade, queremos dar a um ser especial, que é o adolescente; e aí eu tiraria a centralidade da punição”, disse a pesquisadora. “A minha divergência com a professora é que ela relativiza muito, subestimando o papel da punição como fator de inibição da criminalidade e da violência. A punição tem lugar, sim”, defendeu o senador tucano que contou com o apoio do apresentador que defendeu uma separação entre “jovens perigosos” e do bem. Na sequência, a professora desconstrói os argumentos apresentados por Garcia e Ferreira. “Eu acredito na responsabilização, não estou defendendo a sua ausência. A responsabilização nos ensina a viver em sociedade. A responsabilização também 231


Menoridade penal, estamos preparados?

entra na responsabilidade que o pai dá aos filhos em casa (…) não podemos transformar a punição na lógica irradiadora (…) há 22 anos que o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) não é cumprido, é com isso que nós temos que nos preocupar. Nós aparecemos com a polícia antes de aparecer com a saúde e com a escola”, criticou Beatriz Vargas. Próximo ao fim do programa, Alexandre Garcia e Aloysio Nunes Ferreira citam mais um caso de um jovem que, aos 16 anos, já tinha matado seis pessoas, voltando a defender mais rigor para com os jovens infratores. “Nós temos que tomar cuidado para não generalizar, não podemos tomar um caso individual para fazer uma modificação legislativa que vai atingir um contingente de adolescentes (…) a sua proposta tenta dar um tratamento diferenciado, mas ela, ainda, no meu modo de ver, ela peca por que parte de uma crença que a punição mais rigorosa é o grande modelo de redução desse tipo de violência”, disse a professora

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ao senador.

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Garcia e Ferreira voltaram a defender maior rigor punitivo e encarceramento aos jovens, no que a professora chamou atenção de que, em um ano, com a maioridade penal reduzida, não existirá cadeia que desse conta de tantos jovens presos e que os negros e


Crônicas do Cotidiano na Visão de um Psiquiatra _VOL 2

pobres serão as principais vítimas, no que ela é ironizada pelo apresentador que diz estar vendo “muito loirinho de olho azul” sendo preso. “Nós temos um estatuto que não foi implementado naquilo em que ele deveria ser implementado e que diz respeito a um tratamento diferenciado a esses jovens. Boa parte desses meninos são vulneráveis socialmente, são os meninos pobres, são os meninos negros desse país que respondem perante a justiça (…) se nós abrirmos a possibilidade mais rigor penal em pouco tempo nós vamos ter mais estabelecimento penal capaz de conter o número absurdo de população carcerária que nós vamos gerar (…) há um olhar da justiça criminal que é estigmatizado. O criminoso no Brasil, aquele que paga o pato ele tem um rosto”, finalizou Beatriz Vargas, que também lembrou o ator negro que foi preso no Rio de Janeiro sem provas, dizendo que, fosse um “loiro de olho azul” não seria preso. Todos os países que reduziram a maioridade penal não diminuíram a violência.

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37 Motorista, que dirigir embriagado, que se cuide Publicado no Jornal O Imparcial 17 01 2016.

Já é tempo de propormos mudanças profundas na relação que há entre nós e o consumo de álcool em distintas ocasiões. Apesar de todos os esforços e avanços que vêm ocorrendo nessa área, do ponto de vista médico, social e da segurança, a respeito do uso de álcool, parecem inabaláveis as ideias que giram em torno desta substância de tratarem-na como se fora uma substância simples, inofensiva e igual a muitas outras substâncias; e não o é. Todos os conhecimentos que temos na atualidade sobre o álcool expressam que ela é uma substância especial, sob diferentes pontos de vista: age no cérebro, isto é seu mecanismo de ação é cerebral portanto, é uma substância psicoativa; sua ação no cérebro conduz a alterações significativas do comportamento, os pensamentos, o humor, os sentimentos, a sexualidade, 235


Motorista que dirigir embriagado, que se cuide.

as emoções; o juízo de realidade, a senso percepção e o pragmatismo, funções imprescindíveis a saúde mental; é uma substância hedônica, isto é, dá muito prazer; é criminogênica (indutora de comportamento violento); provoca dependência química; provoca doenças neuropsiquiátricas, ente muitas outras ações. De tal forma que ingerir álcool não é um gesto simples e inofensivo, como muitos pensam. É um gesto que pode induzir a um padrão de consumo de insegurança tanto para o usuário quanto para os outros. Não é possível que haja qualquer dúvida sobre estas ações exercida pelo álcool em nosso comportamento e em nossa saúde. E vejam que não me estou referindo aos danos financeiros, laborais, econômicos, sócio-trabalhistas e da economia propriamente dita. Todos estes setores são também afetados pelo uso de bebida alcoólica. Por outro lado, se sabe que há padrões de segu-

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rança ao se beber e que os problemas surgem quando

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se transgredem alguns desses padrões de consumo. E é sobre isto que a sociedade vem-se inquietando e a grande imprensa está se manifestando quase que diariamente ao se ver que nos últimos anos vem crescendo assustadoramente o número de vítimas de


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acidentes de trânsito, ocasionados por motoristas* que dirigem sob efeitos de bebida alcoólica. Embora a imprensa local não tenha anunciado, sabe-se que dos mais de 43 mil acidentes de trânsito que já ocorreram em nosso Estado até setembro deste ano e dos quase 40 mortos nestes acidentes, 65% foram acidentes envolvendo motorista que usaram álcool. No Brasil, estima-se que 43 mil pessoas morram anualmente vítimas de acidentes de trânsito, ocasionados por condutores dirigindo sob efeito de álcool e que 37 mil pessoas morrem na cabine de seus veículos alcoolizados, conforme dados do CONTRAN. Por estes motivos é louvável e oportuna a ação do Governo federal em começar a cobrar na Justiça ressarcimento das despesas que o INSS tem com o pagamento de benefícios previdenciários decorrentes de acidentes de trânsito grave causados por motoristas infratores. O Governo brasileiro gasta 8 bilhões com as despesas decorrentes de acidentes de trânsito e quer que esse dinheiro seja devolvido aos cofres públicos, pelos motoristas infratores causadores de acidentes, especialmente os acidentes provocados por alta velocidade e por motorista que dirigem alcoolizados * Em termos de 2016 (fev. deste ano), o DETRAN expediu normas instituindo multa (mais de 1.000,00 reais), exame de urina etc., para punir os que dirigem sob efeito do álcool (ou de outros estupefacientes).

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Motorista que dirigir embriagado, que se cuide.

Outra medida extremamente importante foi a decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) tomada no último dia 27, quando a Segunda Turma da Corte considerou que o motorista que dirige alcoolizado, mesmo sem provocar danos, estará cometendo crime. Tomando como base o artigo 306 do Código de Trânsito Brasileiro, e, neste caso, está prevista pena de até três anos de reclusão. Por último, há dois dias o Senado Federal aprovou projeto de lei que instituiu tolerância zero a motorista que dirigir embriagado, opondo-se ao que prevê a lei atual em que são toleráveis taxas de até 0,6 decigrama de álcool por litro de sangue, para um condutor de veículo. Essas três grandes medidas sinalizam, entre outras coisas, que bons tempos virão. Parece estar acabando a era da incongruência, da imoralidade, da impunidade, da injustiça social e finalmente da intolerância.

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Nós queremos e somos a favor de uma sociedade justa

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e humana e não uma sociedade repleta de insensatos, irresponsáveis e negligentes que transformam nossas ruas em cenários de crimes violentos; e nossos veículos, em armas letais contra a vida dos cidadãos.


38 Não temos problemas com drogas, mas, sim, com o uso Publicado no Jornal O Imparcial 17 01 2016.

“Abaixo às drogas”, “Diga não às drogas”, “Drogas: bilhete sem volta”, “Drogas: o flagelo da humanidade”, “prevenção às drogas”, “combate às drogas”. Se todos observarem essas frases, e muitas outras parecidas, que vêm sendo largamente utilizadas nos últimos trinta anos, elas se referem a um grave problema de saúde, que é o uso de drogas. Porém colocam a própria substância como referência central do problema, não permitindo que outros fatores componentes também apareçam. Por força dessas expressões, a droga acaba figurando como a razão principal do problema. A isso eu chamo “drogocentrismo”. Essa situação drogocêntrica, da forma histórica como vem sendo colocada, levou todos a acreditar que o problema do uso das drogas na sociedade está centrado na substância e não no uso. A partir daí, construiu – se 239


Não temos problemas com drogas, mas sim com o uso.

uma ideia equivocada de que, para enfrentar esse problema, deveríamos combatê-la (veja a expressão “combate às drogas”), e com isso desencadeou-se uma corrida desenfreada e ingênua de “perseguição às drogas”, como se elas fossem, de fato, as responsáveis pelos problemas ocasionados pelo seu consumo. Ocorre que, passados todos esses anos, chegou-se à triste conclusão, baseadas no fracasso nas medidas públicas utilizadas para seu enfrentamento, de que as drogas não têm “ouvidos” e que as mesmas não podem ser combatidas. Até hoje, ainda temos muita dificuldade de organizar

medidas

consistentes,

seguras,

amplas

e abrangentes para se enfrentar esse problema do uso e dependência de droga. A nossa vaidade e nossa santa ignorância não nos deixam perceber que drogas são matérias inanimadas, inertes e o que vai definir seu papel é sua utilização, tanto é que existem drogas que

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salvam vidas e outras que a destroem, pois o que vai

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definir uma coisa da outra é o sentido de sua utilização. Quando recolocamos conceitualmente o problema e passamos a percebê-lo como sendo o uso das drogas o centro da questão e não as drogas em si, abre-se uma nova perspectiva para seu enfrentamento devolvendo a nós mesmos a responsabilidade de resolvermos


Crônicas do Cotidiano na Visão de um Psiquiatra _VOL 2

o problema onde nós somos o centro da questão e não a substância. Nós somos os usuários, nós é que vamos atrás das drogas, somos seres animados e individuais, dotados de alma, de consciência, de cérebro e de responsabilidade pelas nossas atitudes e nós é que haveremos de encontrar saídas para este grave problema que nós inventamos. As drogas cedem lugar, e no lugar delas entra o homem. Isso não significa que, diante do problema, as drogas, enquanto substâncias químicas, percam sua importância na contextualização do problema. As drogas de abuso, como são habitualmente designadas, são proprietárias de ações poderosíssimas e devastadora na vida de quem as utiliza de forma abusiva. São substâncias cada vez mais indutoras de dependências e capazes de provocar prazer de forma inesquecível, destruindo seus usuários em pouco tempo. Todas provocam danos irreparáveis no cérebro dos usuários, uma vez que alteram de forma profunda e permanente este órgão, provocando problemas de saúde mental de forma lenta e insidiosa. Mas, isso tudo só acontecerá se as utilizarmos. As drogas jamais sairão de seus lugares para atacar alguém ou fazer com que alguém as use. Quem as busca são as pessoas, com seus diferentes sentidos ou 241


Não temos problemas com drogas, mas sim com o uso.

motivação para seu uso. E isso temos que respeitar e prevenir. A partir desse novo enfoque, a forma indispensável de enfrentarmos essa problemática é adotando medidas mais arrojadas em matéria de Políticas Públicas que sejam mais abrangentes, mais contextualizadas, que privilegiem ações preventivas e ressocializadoras desses enfermos. Que se garanta assistência mais digna em Saúde pública ampliando a rede assistência aos enfermos e às suas famílias. Melhorar os meios e os recursos financeiros dos orçamentos destinados ao combate ao tráfico ilícito. Essas são algumas recomendações importantes para serem garantidas ações mais eficazes e mais efetivas diante desse grave problema de saúde pública. Resumidamente, é importante que se entenda, de uma vez por todas, que devemos dar prioridades às práticas preventivas e não reparadoras, e isso poderá ser efetivado via Educação em seu sentido mais pro-

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fundo. Só dessa forma estaremos, de fato, enfrentando

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essa problemática. Educação preventiva, uma boa assistência médica e psicossocial não só para os enfermos como também para familiares de usuários de drogas associadas à medidas ressocializadoras e integrativas são necessárias para a resolução desse problema.


39 Novas armas no tratamento das doenças mentais Publicado no Jornal O Imparcial 06 08 2010.

Cheguei de São Paulo neste final de semana onde fui participar de um dos mais importantes eventos na área do comportamento e da neurociência que tratou da Estimulação Magnética Transcraniana - EMT, novo procedimento terapêutico que procura tratar algumas doenças mentais, através da estimulação do cérebro por meio de corrente eletromagnética. Trata-se de um procedimento que vem avançando e ganhando notoriedade científica a todo momento nos últimos anos, representando um marco importante entre as diversas estratégias de tratamento das doenças mentais. A estimulação magnética se insere no âmbito dos tratamentos não farmacológicos e não psicossociais que pretende, através de estimulação física do tecido nervoso cerebral, restituir o equilíbrio e a saúde mental, alterados pelas doenças mentais. 243


Novas armas no tratamento das doenças mentais.

A história da estimulação física do cérebro como método de investigação e tratamento das doenças é antiga e, iniciou-se quando o médico e fisiologista italiano, Luigi Galvani (1737-1798), descobriu que o tecido do sistema nervoso é altamente excitável, sendo o primeiro cientista a tentar a estimulação física cerebral e, posteriormente, seus estudos serviram de base para os tratamentos físicos em psiquiatria. Nessa ocasião, todos os experimentos se baseavam na estimulação do sistema nervoso central por corrente elétrica. As pesquisas e os achados científicos foram tão importantes que, em 1937, dois psiquiatras italianos, Cerletti e Bine, introduziram a terapêutica em Psiquiatria utilizando a corrente elétrica, técnica denominada de Eletroconvulsoterapia (ECT) ou terapia por choque eletroconvulsivo, ou ainda, eletrochoque, método que mudou muito o processo de tratamentos, trazendo enormes mudanças e esperanças na recupe-

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ração destes enfermos.

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Logo que a ECT foi introduzida na prática psiquiátrica, revelou-se um verdadeiro sucesso em comparação aos discretos resultados terapêuticos até então obtidos com a utilização das drogas de que se dispunha na época, de tal forma que o método foi logo disseminado na Europa inteira e em diferentes partes do mundo como


Crônicas do Cotidiano na Visão de um Psiquiatra _VOL 2

sendo um dos mais importantes recursos terapêuticos que a Medicina acabara de adquirir. O sucesso do tratamento permaneceu por muitos anos, até que por inúmeros outros fatores, a ECT foi sendo proscrita e substituída por outros procedimentos, não menos importantes, para o tratamento dos doentes. Historicamente, dois fatos colaboraram para a derrocada da ECT. Primeiro, o uso abusivo de sua aplicação, pois passou a ser uma panaceia, utilizada para tratar todos os males mentais. Esse abuso resultou inclusive na desumana aplicação de choque elétrico, para fins não médicos, haja vista o que nos idos de 64, por razões meramente políticas, nosso regime de exceção usou criminosamente a ECT para punição de presos políticos que professavam crenças diferentes das propostas pelo regime autoritário de 64. Com a retomada médica da aplicação de ECT verificada nos últimos anos, o Conselho Federal de Medicina – CFM houve por bem regulamentar-lhe o seu uso para garantir condições absolutamente seguras e éticas quanto a sua aplicação. A indicação médica de sua aplicação ficou restrita a alguns casos psiquiátricos, como depressão grave com risco de suicídio, agitação psicomotora e comportamento violento, refratariedade aos tratamentos farmacológicos e esquizofrenia catatônica, 245


Novas armas no tratamento das doenças mentais.

condições clínicas que exigem atendimento emergencial e obtenção de respostas eficazes. Tanto sua indicação clínica quanto a sua aplicabilidade médica seguem rigorosamente as prescrições do CRF de tal forma que a ECT está ressurgindo com força total no cenário das terapêuticas psiquiátricas no mundo inteiro, especialmente agora que já se conhece muito mais sobre sua natureza, seu mecanismo de funcionamento no cérebro disfuncional dos pacientes com doença mental. Como vimos acima, em 1985 surgiu cenário no campo da psiquiatria a EMT que se vem revelando tão eficaz e tão eficiente quanto a ECT, já que consiste em passar corrente eletromagnética no cérebro. É um procedimento não invasivo, (não requer procedimento cirúrgico para realizar o tratamento), é indolor, as sessões são realizadas no consultório ou em domicílio, sendo absolutamente seguro, desde que se si-

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gam os protocolos internacionais de segurança. Como

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vimos, está indicada tanto para transtornos psiquiátricos quanto da Neurologia e a maioria absoluta dos trabalhos internacionais versam sobre o tratamento das depressões com indicação maior, sobretudo, em casos de depressões refratárias, isto é aquelas que não respondem a terapêuticas convencionais.


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Em vários países entre os quais os Estados Unidos e o Canadá sua indicação já se estende a muitas outras condições psiquiátricas. A EMT é hoje uma das áreas da Neurociência do comportamento que mais se dedica à pesquisa. Seu mecanismo de ação, (muito embora ainda já não esteja plenamente esclarecido), se dá através da estimulação dos neurônios cerebrais via corrente eletromagnética, depois que atravessa o escalpe (couro cabeludo) e o crânio (osso). Chega facilmente ao cérebro onde é transformada em energia elétrica e, através desta, estimulam as áreas que supostamente estão inibidas em razão da doença depressiva ou de outra natureza. Contrariamente ao que muita gente pensa, a EMT não chegou para desbancar os medicamentos indicados para o tratamento das doenças mentais. Entendemos que o grande salto na qualidade desses tratamentos se deu através dos medicamentos psiquiátricos e nada pode ameaçar estas conquistas, além do mais a todo tempo surgem novos fármacos excepcionais se firmando como grandes armas no combate a estas doenças. Nada impede, portanto, que a EMT seja aplicada simultaneamente com uso de medicamentos. Que seja bem vindo tudo que contribua para a derrocada dessas patologias! 247


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40 O Brasil, os brasileiros e a corrupção Publicado no Jornal O Imparcial 19 06 2016.

Com este título muitos podem pensar que nosso país adoeceu, que não está dormindo bem ou que algo de muito grave o atingiu, a ponto de tirar-lhe o sono, já que se sabe que este adjetivo insone representa uma condição psicopatológica relativa a uma alteração do sono de alguém. Todavia, permitam-me a ousadia, ao propor o título deste artigo; minha intenção era tão somente dizer que o brasileiro continua sintonizado com suas reivindicações, permanece em alerta, não baixou a guarda, continua na luta e em prontidão, vendo que muitas de suas reivindicações ainda não foram atendidas. Portanto, insone, aqui, não diz respeito à distúrbios do sono mas, sim, ao fato de a população mais jovem deste país manter-se acordada, atenta e com os olhos acessos para saber que rumos darão aos seus 249


O Brasil, os brasileiros e a corrupção.

pleitos, e para tanto se mantém inquieta, esbravejante, gritando alto para que todos ouçam suas reclamações, a meu ver justas e plausíveis diante do indiferentismo que vem ocorrendo com nossa Nação na gestão da coisa pública. Este levante nacional, portanto, é sobretudo uma demonstração de saúde mental do povo brasileiro reveladas pelas atitudes seguras e determinadas e por saberem muito bem o que querem. A demonstração de coragem, espírito de luta, de um caráter altivo e rebelde estão sendo confrontados com as incompetências e negligências do Poder público e com a famigerada corrupção que se alastra por este país em todos os cantos e que por tantos anos alimentou os donatários do poder. No dia 03 deste mês, na última quarta feira foi a vez de os médicos brasileiros se incorporarem às lutas que encantam todos. E isto aconteceu de forma de-

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mocrática, ordeira e sensata, com uma só voz, em todo

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Brasil, a classe manifestou sua indignação diante dos problemas graves da nossa Saúde pública, ante uma proposta politiqueira do Governo federal, visando importar milhares de médicos de outros países para aqui exercerem suas atividades profissionais. Em princípio, nada contra, até porque nós também


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saímos muito daqui para trabalhar e estudar alhures, além do mais não há nada melhor do que trocar experiências com colegas de outros países, bem como estabelecer alianças internacionais de colaboração mútua para se enfrentar certas situações no âmbito da saúde pública de um povo ou de uma nação. Ocorre que a proposta do Governo brasileiro desconsidera preceitos institucionais que regulam idas e vindas de profissionais médicos entre países, normas estas criadas e validadas pelos próprios governos entre as quais a validação do diploma destes profissionais - REVALIDA – para aqui exercerem suas atividades. Esta norma foi criada com o intuito inclusive de se saber o preparo e qualidade técnica dos serviços que serão prestados ao nosso povo. O Governo quer atropelar esta prerrogativa internacional permitindo que os profissionais importados não se submetam a tal avaliação, fato que poderá expor nossa população a muitos riscos. A meu ver, se o Governo pretende demonstrar sua intenção em resolver os problemas da saúde do Brasil através desse expediente, irá dar com a “cara na parede”, pois tudo indica que haverá mais confusão e menos solução. Ao mesmo tempo se sabe que esta medida, isoladamente, passa longe das soluções aos graves problemas já identificados de nossa 251


O Brasil, os brasileiros e a corrupção.

Saúde pública, por isto eu pergunto: por que não se propor um plano geopolítico de carreira e salário médico como o que já ocorre com o Ministério Público e o Judiciário e outros órgãos importantes da nossa vida profissional? Por que não fiscalizar ainda mais a aplicação dos recursos financeiros destinados à Saúde em nossos municípios? Por que que não se oferecem melhores condições de trabalho aos médicos que irão trabalhar nos municípios? Por que não garantir salários dignos e evitar que os médicos tenham que trabalhar uma carga horária exagerada para garantir uma renda mínima, digna a esses profissionais? Por não responderem a estas e a muitas outras perguntas é que nos encontramos nesta situação e não é com importação de outros profissionais que iremos resolver esses impasses ou atingir nossos objetivos. Agora, nós, médicos e a população brasileira, mais do que nunca, deveremos estar atentos, pois cutucamos “a cobra com vara curta” e baseado na lei da inércia

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insistirão em manter esta situação nos fazendo engolir

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estas propostas descabidas e ineficazes. Devemos, portanto, permanecer insones, pois em um cochilo, podemos colocar tudo a perder, perdendo-se a chance de estabelecermos um grande pacto nacional que garanta uma saúde de qualidade


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à população brasileira. Parabéns aos médicos, ao Conselho Federal de Medicina - CFM, à Associação Médica Brasileira AMB, à Federação Nacional dos Médicos - FENAM e a todas as entidades que fazem saúde em nosso país e que estão apoiando esse movimento cujo objetivo visa tão somente que readquiramos condições mínimas de trabalho capaz de oferecer uma assistência médica de qualidade ao nosso povo.

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