As Feridas do Haiti

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Repórteres do Diário viajam ao Haiti a convite do Ministério da Defesa e trazem a história de um país assolado pela miséria, desemprego e corrupção. Em 2004, em razão de conflitos e extrema violência, houve intervenção da ONU com tropas armadas para garantir a segurança do povo. Caderno mostra que 10% da população está contaminada com o vírus da Aids e que 300 mil crianças são escravas domésticas ou sexuais



Assolado pela miséria e corrupção, país conta com o Brasil para achar o caminho da redenção

Os capacetes-azuis brasileiros em excursão pelas ruas de Porto Príncipe

PAÍS EM A

miséria no Haiti não é exceção, mas regra. Encontra-se disseminada por toda a parte e não poupa a maioria da população: 80% dos haitianos vivem abaixo da linha da pobreza, ou seja, com menos de 2 dólares por dia. O Haiti está localizado no mar do Caribe e se orgulha de ser a primeira nação governada por negros no planeta. A sua história de país livre, no entanto, é marcada por disputas internas, golpes de Estado, tragédias naturais, violência e guerra civil. Essa mistura explosiva resultou no atual quadro de pobreza extrema, desorganização e abandono. A situação do Haiti só é comparada à do Timor-Leste e do Afeganistão. No total, 80% da população, formada por 8,5 milhões de pessoas, vive sem água encanada, energia elétrica e banheiro em casa. A falta de infraestrutura básica e ações efetivas do governo haitiano nos campos da saúde, educação e trabalho têm exterminado prematuramente a população e criado uma geração de jovens sem futuro, sem perspectivas de melhora e com sonhos

diminutos de ter uma existência plena. No abismo de pobreza que o Haiti caiu, 23% das crianças sofrem de desnutrição e 10% dos moradores estão infectados pelo vírus da Aids. Ainda no âmbito da saúde, há problemas causados pela falta de saneamento básico e a contaminação de fontes naturais. O resultado não poderia ser outro: a população não tem água potável para beber. As pessoas compram, o que não é muito comum, ou coletam água em canais de esgoto para cozinhar, beber e tomar banho. Pelas ruas da capital, Porto Príncipe, sobram pedidos desesperados para matar a sede. A coleta de lixo é insuficiente para atender a demanda. O resultado? Pilhas de lixo orgânico espalhadas pela cidade, juntamente com esgoto e fezes. O cheiro da mistura é forte e chega a causar náuseas. Para o haitiano, cuja noção de higiene pessoal é restrita, esse cenário é parte natural da paisagem. A expectativa de vida no Haiti é de 53 anos – quase duas décadas a menos que a do brasileiro. O índice de analfabetismo chega a 47% e o

TRANSE desemprego atinge 70% dos moradores. Por isso, recorre-se ao escambo para sobreviver. Na frente dos casebres, troca-se de tudo. Além de falta de infraestrutura e dos sucessivos saques ao erário, a política sempre foi efervescente e resolvida, não raro, na base da violência, truculência e da comunicação repleta de ruídos. A história é a maior prova. Em 2004, conflitos armados se espalharam por todo o país. A Polícia Nacional do Haiti (PNH) contava apenas com 1,4 mil homens e não conseguiu evitar a violência nas ruas e a ação de gangues armadas. A situação ficou insustentável e ocorreu a queda do então presidente Jean-Bretrand Aristide. O presidente da Suprema Corte, Bonifácio Alexandre, assumiu o poder e requisitou a assistência da Organização das Nações Unidas (ONU). As tropas ingressaram no país com objetivo de restabelecer a segurança. Entre 2004 e 2007, ocorreram vários combates entre as gangues e os militares. O Haiti é o quarto país mais corrupto do mundo no ranking elaborado pela

Garota segura bebê em Porto Príncipe, capital do Haiti: 80% da população sobrevive com menos de US$ 2 por dia

Transparência Internacional. Na frente apenas de Myanmar, Somália e Iraque. O relatório avaliou 180 países. Missão No dia 1º de junho, foi iniciada a missão das Nações Unidas para a Estabilização no Haiti (Minustah). A missão é composta por 7.112 militares de 17 países e 1.858 policiais. O Brasil tem o maior efetivo com 1.298 militares e é o líder natural da ação. Os cinco anos de intervenção no país já custaram R$ 700 milhões aos cofres brasileiros. O mandato é renovado a cada 12 meses. O embaixador brasileiro no Haiti, Igor Kipman, afirma que a comunidade internacional trabalha com objetivo de reduzir de forma gradual a presença militar em 2011, quando será realizada a eleição presidencial. “É a comprovação de que o país está democraticamente equilibrado e as instituições estáveis. A meta, em 2011, é que a PNH esteja preparada e equipada para assumir a segurança do país. A partir daí, será possível reduzir a presença militar, não só do Brasil.”

‘O biscoito de barro choca’ ‘Foi muito gratificante’

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O repórter Raul Marques relata sua experiência de cinco dias no Haiti: choque ao ver parcela da população disputar com porcos alimentos num lixão; malária e desnutrição são as principais causas de morte no país

u imaginava que conhecia o real significado do termo miséria. Nos primeiros minutos em solo haitiano, no entanto, descobri que estava profundamente enganado. É certo que ainda faltam muitas coisas para termos um Brasil digno, seguro, sem desemprego, com oportunidades a todos e serviços de excelência nos campos da educação, saúde, trânsito e cultura. Mas estamos séculos à frente do Haiti. Nem precisa ser especialista para chegar a essa conclusão. No país colado ao mar do Caribe é possível presenciar situações absurdas, constrangedoras e degradantes com facilidade. Durante os cincos dias em que permaneci no país, vi pessoas lavando o corpo em águas fétidas, ingerindo água proveniente do esgoto e comendo lixo ou então alimentos imundos. Raul Marques

Foi chocante presenciar um menino, de 10 anos, engolindo a iguaria que representa a pobreza no país: o biscoito de barro. Ele nem fez careta ou protestou. A maioria das casas não conta com energia elétrica, água encanada ou banheiro. As pessoas fazem as suas necessidades fisiológicas em qualquer lugar. O conceito de privacidade não chegou ao Haiti ainda. Tudo isso não passou imune por mim. Choque é um termo que pode mensurar, mas não definir o meu estado de espírito em alguns momentos. Mas confesso que fiquei emocionado ao presenciar uma ação humanitária. Além de uma cesta básica com mantimentos de primeira necessidade, os Fuzileiros Navais do Brasil distribuíram a cada pessoa um copo descartável cheio de água e duas pedras de gelo. Era recebido como troféu.

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primeira vez que eu ouvi falar de tropas da ONU foi quando criança: um amigo ganhou um punhado de soldadinhos de plástico azul. Brincávamos de guerra e ele sempre falava que aquela tropa não guerreava, mas evitava a guerra. A partir de então passei a buscar informações e a admirar cada vez mais os soldados de capacete azul que davam suas vidas para preservar a paz. Quando soube que o Brasil iria coordenar os trabalhos de paz no Haiti fiquei bastante curioso em conhecer o trabalho. Em 2005, cheguei a fazer a solicitação de permissão de trabalho junto à tropa, mas, na época, foi negada. Mas quando recebi a notícia de que teria a oportunidade de viajar pelo Diário para cobrir matéria no Haiti fiquei eufórico; poderia enfim conhecer de perto o trabalho de nossos soldados da paz. Rubens Cardia

Foi muito gratificante ver a receptividade da população à tropa brasileira, um reconhecimento àqueles que se sacrificam a ficar seis meses longe da família, com poucos momentos de lazer e muito trabalho árduo, a patrulhar por horas, com mais de vinte quilos de equipamento por vielas estreitas sob o escaldante sol caribenho. Nesta viagem, o que mais me impressionou foi uma garotinha de pouco mais de um ano. Ela atravessou a rua e segurou firmemente os dedos de um fuzileiro naval. Abaixei-me para fotografá-los, e a menina se assustou e chorou desesperadamente... agarrou a perna do militar sabendo que ali ela estava plenamente segura, mesmo a poucos metros de sua família. Para mim, esta foi a mais sincera demonstração do reconhecimento e confiança demonstrada aos nossos capacetes-azuis.

Desde a infância, o fotógrafo Rubens Cardia sonhava um dia acompanhar os capacetes-azuis em missão de paz: certeza do bom trabalho do Brasil veio ao ver criança, assustada, se agarrar à perna de soldado


Salário-mínimo é equivalente a R$ 250, moeda norte-americana é bem aceita e escambo é prátic

Vista de feira de alimentos em Porto Príncipe, capital do Haiti: em vez de dinheiro, negócios são feitos com base na troca de mercadorias

Mulher vende quadros em rua de Porto Príncipe, capital do Haiti: falta de

Desemprego paralis Professor trabalha com militares

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elony Azor é exemplo de haitiano que lucra com a intervenção da ONU. É coordenador dos funcionários haitianos na General Bacellar. Antes da crise em que o país mergulhou, estudava direito e ganhava a vida como professor de inglês, espanhol e filosofia. Por razões financeiras, abandonou o curso e procurou emprego com os militares. Como é articulado, inteligente e aprendeu a língua portuguesa com facilidade, foi alçado a supervisor em 15 dias. Na esteira da promoção relâmpago veio um reajuste nos vencimentos. Azor ganha R$ 500 de salário e mostra que faz parte de um grupo seleto. Na entrevista, usava tênis Adidas, óculos de sol e relógio bacana. “Eu me sinto mais brasileiro que haitiano. O Brasil é um país de que nós gostamos muito.” Ele fala arrastado, mas não erra as palavras, não esconde que é fã do nosso futebol e sonha morar em solo tupiniquim.

O coordenador Belony Azor fala português e sonha morar no Brasil

Cristóvão Colombo descobriu ilha

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atuam nos setores de refino de açúcar, moinhos de farinha, fabricação de rum, têxtil, cimento e turismo. Até por motivo de segurança, é raro ver o gourde (moeda haitiana) em circulação nas ruas de Porto Príncipe. O dólar é aceito em qualquer lugar, sem questionamentos ou cerimônia, e soa como música nos ouvidos da criançada. O salário-mínimo haitiano está avaliado em R$ 250 por mês. A guerra civil e a consequente presença de tropas de vários países não são de todo ruim para uma parcela de haitianos e, de uma forma ou de outra, movimenta a frágil economia. Somente a Organização das Nações Unidas (ONU) emprega mil intérpretes, com salário de marajá para os padrões haitianos: R$ 1,8 mil por mês. Cada tropa tem autonomia para contratar

Instabilidade política é lugar

Vista do mar do Caribe a partir de Porto Príncipe: ilha passou do domínio espanhol para o controle dos franceses; em 1794, revolta colocou fim à escravidão

ristóvão Colombo descobriu a Ilha Espanhola (que mais tarde seria dividida e rebatizada como Haiti e República Dominicana) em 1492. A chegada dos exploradores dizimou a população nativa, escravizada ou morta, até o final do século 16. O domínio espanhol durou até 1697, quando a

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desemprego é um problema crônico e afeta diretamente a espinha dorsal do país. Sem trabalho, as pessoas não conseguem ganhar dinheiro nem mesmo para adquirir o básico: comida e água. Cerca de 70% da população ativa aproximadamente 3,6 milhões de pessoas - não tem o que fazer profissionalmente. Elas vivem de bicos, muitas vezes em troca de comida, esmola, ajuda humanitária da ONU ou escambo, uma verdadeira febre. A agricultura consiste basicamente na subsistência. Há também produtores, com certa estrutura, que fazem as vezes de empregadores. A produção agrícola comercial é composta por café, cana-de-açúcar e arroz. A indústria é acanhada e não tem estatura para absorver a mão-de-obra disponível. As poucas empresas que funcionam de forma regular

influência francesa se fez presente. A Ilha Espanhola foi a mais próspera colônia da França na América no século 18, com grande exportação de açúcar, cacau e café. Em 1794, no entanto, os escravos se rebelaram e a servidão terminou abolida. O ex-escravo Toussaint Louverture tornou-se governador-geral em 1801. Dois anos depois foi deposto e morto pelos franceses.

O líder Jacques Dessalines organizou o exército e derrotou a França em 1803. No ano seguinte, foi declarada a independência e Dessalines se proclamou imperador. Após período de instabilidade, a ilha foi dividida em duas partes. A região oriental virou a atual República Dominicana. Dessalines e Louverture são heróis nacionais do Haiti.

O parlamentarismo é o sistema de governo que vigora no Haiti, com presidente eleito democraticamente e primeiro-ministro. A Câmara de Deputados tem 99 integrantes e o Senado, 30. O modelo é similar ao adotado na França. A constituição foi introduzida em 1987. O presidente René Preval foi escolhido em eleições diretas realizadas em 2006 e assumiu o comando em 7 de fevereiro. No ano que vem, estão agendadas eleições presidenciais. Jean Max Belleriveellerive, que era ministro de Planejamento e Cooperação Externa, assumiu recentemente o posto de primeiro-ministro. Substituiu Michele Pierre-Louis. Ela ficou no cargo um ano e foi afastada pelo Senado. Os parlamentares criticavam o desempenho de Pierre-Louis na retomada econômica. A troca repentina de primeiro-ministro e até mesmo presidente não é novidade. O Haiti tem histórico de ser uma nação conturbada no campo da política. No período entre a metade do século 19 e o começo do 20 nada menos que 20 governantes se revezaram no poder. Dezesseis deles foram depostos ou assassinados. Distúrbios Os distúrbios atuais ocorreram depois de ditaduras, governos despóticos e conspirações a partir da década de 60 até meados dos anos 80. Em 1991, o padre esquerdista e presidente Jean-Bertrand Aristide foi deposto em um golpe de Estado. Exilou-se nos Estados Unidos e retornou em 1993, com a economia

destroçada. Nesse mesmo ano, grupos paramilitares impediram o desembarque de soldados nortes-americanos em missão de paz da Organização das Nações Unidas (ONU). Entre 1994 e 2000, o Haiti registrou avanços com duas eleições

democráticas, mas p mergulhado em cris Aristide foi eleito pr novamente em eleiç suspeita de fraude. O diálogo do gov oposição ficou preju conflitos armados ec


a rotineira; missão de paz brasileira emprega haitianos e paga alguns trabalhos com cesta básica

emprego empurra população para o mercado informal

A produção agrícola no Haiti se baseia nas culturas de cana-de-açúcar, café e arroz: alimentos são comercializados nas ruas de Porto Príncipe

sa 70% da população haitianos para os mais variados serviços nas dependências militares. A maior base brasileira, a General Bacellar, emprega 82 nativos do Haiti. Eles fazem serviços gerais e limpeza de banheiros, salas e alojamentos - 67 deles são assalariados e recebem entre R$ 170 e R$ 300 por mês. Quinze trabalham em troca de cestas básicas. Escambo O escambo ainda é hoje a maneira mais comum de negociação no Haiti. Troca-se tudo o que se possa imaginar. É chegar, conversar e levar. Um ditado local diz que nada tem valor definido, tudo é negociável. A frente da casa é transformada em ponto comercial. O haitiano, aliás, tem o costume de fazer as suas atividades particulares na própria rua. Praticamente não existe calçada disponível para o pedestre.

É possível trocar roupas, frutas, legumes, grãos, artesanato, sapatos, quadros, remédios e móveis. Sem contar os alimentos, os objetos vendidos são usados e lembram mais quinquilharias. Há barracas exclusivas para a venda de comida, sobretudo linguiça e salsicha grelhada. Com um pouco de paciência, é possível encontrar arroz e feijão, doces, raspadinhas e carne assada. Não há qualquer cuidado no manuseio dos alimentos. Há barracas montadas ao lado de esgoto e lixo orgânico. Poucos comerciantes se preocupam em proteger os produtos dos mosquitos. Com a economia baseada em moedas, o escambo é pouco utilizado em outros países e sobrevive ainda apenas em regiões pouco desenvolvidas, como é o caso do Haiti.

r-comum na história do país

permaneceu ses. Em 2000, residente ção manchada com

verno com a udicado e, em 2003, clodiram na cidade

Igreja ao fundo da Praça Saint Pierre, no bairro Petion Valle, em Porto Príncipe: maioria do povo é católica

Religião é a católica, mas vodu tem simpatia popular

O Vista do Palácio Oficial do governo do Haiti: golpes e assassinatos de presidentes são lugar-comum na história do país, que tem forma de governo que mistura presidencialismo e parlamentarismo; presidente do Suprema Corte, Bonifácio Alexandre, assumiu em 2004 lugar de Jean-Bertrand Aristide, e pediu a intervenção da ONU para pacificar a nação, à beira de uma guerra civil de Gonaives e se espalharam pelo país. Aristide deixou o Haiti em fevereiro de 2004 e se exilou na África do Sul. O presidente da Suprema Corte, Bonifácio Alexandre, ascendeu ao poder e requisitou a assistência da Organização das Nações Unidas (ONU). A missão das Nações Unidas

para a Estabilização no Haiti (Minustah) foi iniciada em 1º de junho e perdura até hoje. Para o Conselho de Segurança da Organização das Nações Unidas (ONU), a desordem no país caribenho ameaçava a paz internacional e a segurança na região. Religião inclui catolicismo, protestantismo e vodu

haitiano, antes de tudo, é um povo religioso. Nesse quesito, o Haiti é parecido com o Brasil. Os católicos apostólicos romanos representam 64% da população. O Estado não é laico. O catolicismo é a religião oficial. O protestantismo também fincou raízes sólidas na cultura local. É seguido por 23,6% dos moradores. Em um passado recente, as primeiras igrejas evangélicas começaram a aparecer nas mais remotas regiões do país. Há ainda a presença de espíritas. Quase toda a população, no entanto, pratica o vodu, uma crença que combina elementos do catolicismo e religiões tribais da África. Sem visualizar qualquer conflito ou choque com a fé cristã. O vodu, inclusive, é associado em todo o mundo ao Haiti. Isso porque o ditador Jean-Claude Duvalier, o Baby Doc, se notabilizou ao usar os rituais da crença para amedrontar os detratores, inimigos e vítimas. O cinema de terror não perdeu a chance de mostrar a religião como uma evocação a demônios em ritos cujo feiticeiro crava agulhas em um boneco para que, assim, a vítima sofra dores terríveis, doenças incuráveis ou ataques cardíacos. No vodu, um deus principal, o Bon Dieux, é venerado com os antepassados. Na religião católica, a padroeira do Haiti é Nossa Senhora do Perpétuo Socorro. A santa é protetora dos aflitos.


Transporte coletivo é feito pelos ‘tap taps’, veículos coloridos e com buzina de alta potência sonora

Trânsito é lento e caótico O

motorista do veículo que tem a buzina mais potente tem a preferência no caótico trânsito do Haiti. Praticamente não existe sinalização, e os semáforos estão restritos a menos de dez nas avenidas principais da capital, Porto Príncipe. Para complicar ainda mais, as ruas são esburacadas, e o pedestre caminha por qualquer lugar. As calçadas são insuficientes ou usadas por comerciantes. O tráfego não tem organização e, até por esse motivo, é lento a maior parte do tempo em Porto Príncipe. As mortes causadas pelo trânsito na capital, portanto, são raras. Já nas estradas os acidentes fatais são comuns. O haitiano tem fama de exagerar na velocidade. Como ninguém é multado, as maiores atrocidades automobilísticas são cometidas no dia a dia. Ultrapassagem pela direita é a coisa mais usual. Quem reclama da manobra ou tranca a passagem é xingado com rapidez. Para-se em qualquer lugar para embarque e desembarque. O capitão de fragata da Marinha, Ítalo Rocha, não se acostumou com a frota do Haiti. “Tem carro caindo aos pedaços, sem condição nenhuma de rodar.” O motorista de veículo oficial da missão tem que redobrar a atenção para não se envolver em acidente. “Independentemente da gravidade, eles querem cobrar 20 mil dólares de prejuízo.” O haitiano tem o costume

de abandonar o veículo onde ele apresentar defeito, mesmo que se encontre em cruzamento, avenida movimentada ou ponto que coloque em risco o outro motorista. Outro problema grave é a qualidade da frota. Não há meio-termo: os carros são zero quilômetro ou extremamente velhos. Se falta dinheiro para comprar comida e água, imaginem-se as condições em que o possante é mantido. Há verdadeiras carroças de lata em funcionamento. Mecânicos

com todas as cores possíveis. E até pinta na lataria a imagem de jogadores brasileiros, como Ronaldo e Kaká, e do presidente dos Estados Unidos, Barack Obama. Há concursos para escolher os carros mais bonitos. Os que têm som mais potente ganham a preferência dos passageiros. ‘Tap taps’ coloridos são os meios de transporte coletivo no Haiti: passageiros se acomodam como podem e preferem os que possuem música mais alta

Os militares brincam que o Haiti tem os melhores mecânicos do mundo. A caminhonetes dominam o trânsito, sobretudo de marcas asiáticas como Toyota, Honda, Suzuki e Kia. A escolha não é feita apenas pela falta de qualidade das ruas. Os veículos são transformados em meios de transporte. Colocam-se cobertura e banco de madeira na carroceria e pronto: já pode levar passageiros. As primeiras linhas regulares de ônibus estão sendo implantadas. O transporte coletivo se completa com mototaxistas, que não ligam de levar passageiros sem capacete. Os “tap taps”, como são chamados os veículos de transporte, lembram os paus-de-arara que rodam no nordeste do Brasil. O tap tap não tem itinerário certo. Nem horário para sair ou chegar. Não existe garantia de segurança. O cobrador posiciona mais de 20 pessoas em um único carro. O haitiano decora o tap tap

As habitações típicas da maioria dos moradores do Haiti são construídas com placas de zinco: o calor obriga as famílias a dormir do lado de fora dos casebres, na mais completa escuridão

Para evitar a cobrança de imposto, moradores preferem não pintar suas casas: roupas são postas para secar em varais instalados nas ruas dos bairros Como ninguém é multado, as maiores atrocidades automobilísticas são cometidas no dia a dia. Ultrapassagem pela direita é a coisa mais usual. Quem reclama da manobra ou tranca a passagem é xingado com rapidez

Maioria das casas não tem energia elétrica e moradores dormem na rua

Ricos habitam os morros A divisão social no Haiti é diferente da brasileira. No país caribenho, quem mora no alto do morro tem dinheiro, status e anda em carros importados e de última geração. O pobre reside na parte baixa da cidade, em casas simples de tijolo e barracos de madeira ou de telhas de zinco. Poucas casas recebem pintura no Haiti. Para quem está de passagem, não há outra impressão que não seja a falta de zelo. Mas se trata, na verdade, do jeitinho haitiano de enrolar o fisco. O governo considera a construção concluída quando a tinta é passada nas paredes. Quando isso ocorre, o dono do imóvel começa a pagar imposto – similar ao nosso Imposto Predial e Territorial Urbano (IPTU). Devido ao calor, as pessoas que residem nas moradias mais simples optam por dormir na rua, apesar do breu. Não existe iluminação pública. A classe média dispõe de geradores. A maioria dos casebres, porém, não tem piso no chão, móveis e banheiro.

O haitiano decora o ‘tap tap’ com todas as cores possíveis. E até pinta na lataria a imagem de jogadores brasileiros, como Ronaldo e Kaká, e do presidente dos Estados Unidos, Barack Obama

Às vezes, são cobertos com plástico. O Diário teve acesso a um barraco de zinco com dois cômodos. Menos de 30 metros quadrados. O quarto para a família de sete pessoas tinha apenas três pequenas camas. Todo o resto é feito no outro espaço. Nenhum móvel. Apenas um fogão de lenha e sujeira acumulada. Conforto No bairro Pattion Ville, a realidade é bem diferente. A elite mora em casas confortáveis, com energia elétrica à disposição e toda a estrutura necessária para viver bem. Pattion Ville lembra até um bairro de classe média alta de Rio Preto. As ruas são mais limpas, há praças em ordem e prédios em perfeitas condições. As crianças até parecem mais felizes. A localidade abriga a Embaixada do Brasil e tem comércio forte e variado, com direito a restaurantes de cozinha contemporânea e lojas de grife.

As habitações de classe média ficam nas partes altas de Porto Príncipe


Falta de assistência médica atinge 80% dos haitianos, e expectativa de vida da população é de 53 anos

Aids atinge 10% do povo A

saúde precária é um dos elos da corrente de miséria em que está preso o Haiti. A maioria da população, 80%, não tem acesso a atendimento médico de qualidade, informação sobre prevenção de doenças, acesso a saneamento básico e noções mínimas de higiene. A influência desses fatores resulta na expectativa de vida do haitiano. Na média, 53 anos. A Aids tem presença marcante no país. O exército brasileiro estima que 10% da população - ou seja, 850 mil pessoas- seja soropositiva. Não é só o HIV, porém, que preocupa as autoridades internacionais. O haitiano morre em razão

de malária e diarréia e sofre, de forma ocasional, de febre, dor de cabeça e problemas na pele. Enquanto Rio Preto tem um médico para cada 200 pessoas, no Haiti a média é de um para cada dez mil. Parte dos profissionais de saúde deixou o país durante os distúrbios e foi trabalhar em países vizinhos, Estados Unidos, França e Canadá. Por outro lado, curandeiros e parteiras são requisitados. A população não tem acesso a remédios. As poucas farmácias que funcionam em Porto Príncipe servem geralmente à elite. Pequenos ambulantes comercializam comprimidos e outros tipos de medicamento de forma improvisada.

Eliane Luísa, 44 anos, é mãe de 11 filhos e viúva. O marido morreu em uma enchente. Ela é vítima do falho sistema de saúde haitiano. Luísa contou que quebrou um dos braços e não recebeu atendimento qualificado. Por isso, o braço ficou frouxo e ela não consegue trabalhar em nenhuma função que exija força e agilidade. Portanto, não tem como ganhar dinheiro para sustentar a família. “Hoje, não tenho nada para comer. De vez em quando, consigo água limpa para beber.” Ela enfrentou o forte calor de uma manhã para buscar a doação de alimentos em ação desenvolvida pelos Fuzileiros Navais do Brasil, em Porto

Príncipe. Como não recebeu senha no dia anterior, estava na fila na esperança de ser chamada de última hora. Não foi chamada e não escondeu a decepção de voltar para casa sem nada para alimentar a família. Os olhas não pararam de mirar o chão. Felicidade? Questionada se é feliz apesar de todas as dificuldades, respondeu sem rodeios: “Não sou de jeito nenhum. Estou doente, sem imaginar uma solução, e espero ajuda dos outros para sobreviver.” Após perder o alimento, saiu perambulando pelas estreitas ruas da capital.

As bases brasileiras contam com pequenos centros médicos para atendimento exclusivo das demandas diárias da tropa. Eventualmente, no entanto, as portas são abertas para os haitianos. Isso ocorre em situações emergenciais, com pessoas feridas em brigas, discussões e desentendimentos, mulheres em trabalho de parto e ataques cardíacos ou de qualquer natureza. Alexandre Santa Rosa é comandante da base Forte Nacional, instalada no bairro Bel Air - um dos mais violentos e problemáticos do país. Não é raro, afirma, receber pedidos de socorro, a qualquer hora do dia, de pessoas feridas por faca ou pedra.

O médico brasileiro encarregado de atender os haitianos foi apelidado carinhosamente pelos colegas de “costurador de cabeças”, a parte do corpo mais afetada em confrontos cotidianos. Os militares oferecem o primeiro atendimento médico e, se for o caso, encaminham a vítima para a unidade médica mais próxima. Mas nem sempre, como salienta Rosa, há vagas disponíveis. Cuba tem um acordo de cooperação com o Haiti e auxilia na formação de novos profissionais. Além de hospitais públicos, o Haiti conta com apoio da organização Médicos Sem Fronteiras.

Moradores de Porto Príncipe vasculham lixão, em meio a porcos, à procura de comida: malária e diarréia são principais causas de morte no Haiti

População usa água suja para beber

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falta de saneamento básico e o acúmulo de lixo também influenciam na saúde do haitiano. O esgoto corre livremente em pequenas canaletas sem proteção e principalmente no meio das ruas. O cheiro é forte, mas parece não incomodar nem mesmo as pessoas que compram e comem comida na rua. Em razão da necessidade, a população menos favorecida usa a água suja e contaminada para tomar banho, cozinhar e até mesmo beber. É comum ver haitiano se lavando com

canequinha no meio da rua. Não costumam, no entanto, permanecer muito tempo sem camisa. Dizem que só escravo fica pelado, e eles não estão mais nessa situação. O esgoto geralmente se mistura ao lixo e à fezes. A maioria dos casebres não conta com banheiro privado. As pessoas fazem as suas necessidades fisiológicas em baldes e jogam os dejetos em qualquer lugar, até mesmo em frente de casa, no quintal e terrenos baldios. Não há noção mínima de higiene pessoal. Existem banheiros públicos em determinados

Juventude sofre de desnutrição

pontos da cidade. Contam apenas com privada. Não há chuveiro, torneira ou qualquer artigo de “luxo”. Mas eles praticamente não são usados pela população. É necessário pagar uma quantia, ainda que simbólica, para entrar e usar. A coleta de lixo começou a ser feita recentemente e ainda não é suficiente para atender toda a demanda. Por isso, há montes de sujeira acumulados por praticamente toda a capital. No começo da missão de paz, a companhia de engenharia tinha de usar o trator com a finalidade de deixar a passagem livre para as viaturas.

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literatura médica define que a desnutrição pode ser causada por falta ou excesso de alimentação. Nem é preciso recorrer à ciência para descobrir que a primeira opção é a principal causadora do problema no Haiti. A desnutrição atinge 23% das crianças no país. Nos dois casos, não existe equilíbrio entre o que é ingerido e o que o corpo necessita. Porto Príncipe é repleta de crianças. Elas estão por toda a parte em busca de comida, água ou dinheiro. Pedem ajuda a todo instante. Quase 100% das crianças são raquíticas. Durante os cinco dias no país, a reportagem não conheceu nenhum jovem obeso. Nutrição

A falta de saneamento básico é responsável por doenças que se disseminam entre a população: o esgoto é descartado diretamente em cursos d’água ou atirado nas ruas com a maior naturalidade

Garoto improvisa brinquedo: desnutrição é alta entre os mais jovens

Na favela Cidade do Sol, a maior do país, religiosas brasileiras desenvolvem trabalho no Centro de Nutrição e Saúde irmã Rosalie Rendu. O espaço é mantido pela congregação católica Filhas da Caridade de São Vicente de Paulo. As mães haitianas recebem atendimento médico e são orientadas sobre nutrição e cuidados básicos de higiene.


Biscoito de argila misturada com água e manteiga serve para encher a barriga vazia das crianças

Barro engana a fome C

rianças haitianas comem um biscoito feito com barro, água e manteiga. A iguaria, batizada como “Té”, é o símbolo máximo da miséria no Haiti e não alimenta, serve apenas para enganar a fome. Nos lugares mais carentes, o biscoito é produzido sem manteiga. Raramente leva sal, artigo de luxo para os padrões locais. Desesperadas pela falta de alimento para as famílias, as mulheres coletam uma espécie de argila em canteiros de obras ou terrenos baldios e produzem os biscoitos sem qualquer preocupação com higiene. Não só para consumo da prole, mas para ganhar uns trocados. Os ingredientes são manuseados em latas velhas, enferrujadas e sujas

no próprio chão. Pequenos pedaços de Té são separados e colocados para secar no sol, em cima de sacos plásticos ou madeira. São encontrados em toda a capital. Nádia Guerrier, 35 anos, fabrica os biscoitos de barro em frente de casa, em Cidade do Sol. A favela é a mais temida da cidade e abriga 350 mil moradores. A maioria não tem trabalho, energia elétrica, água encanada e banheiro privado. O Diário chegou no momento em que Nádia se encontrava concentrada na produção do ‘alimento’. Os baldes estavam lotados, até vazando. Ela trabalhava em frente de casa, sem usar luvas ou qualquer proteção. No mesmo local, havia esgoto e acúmulo de lixo orgânico. No começo, ela ficou desconfiada e

não quis papo. Mas, com calma, começou a relatar que faz a iguaria com finalidade comercial. Ela é mãe de seis filhos, todos pequenos. O marido está doente e os biscoitos, segundo ela, são a única fonte de

renda da família. Cada um é vendido a R$ 0,05. Nádia afirma que não dá o biscoito para as suas crianças, mas conta que elas aproveitam quando estão sozinhas e desrespeitam a ordem materna. Nem todo dia há comida à disposição. “Não tenho o que fazer e não posso brigar com eles. Afinal, comem isso porque estão com muita fome.” Ela mora em um casebre de zinco com dois cômodos, coberto com plástico. O chão é de terra e não existem móveis. Há apenas três colchões para toda a família. O bem mais valioso: três fotos amareladas da família. “A miséria me obriga a morar aqui. Não consigo terminar a construção da minha casa.”

Enquanto Nádia narrava o seu drama, um menino da vizinhança chegou, pegou um biscoito de barro e, sem pestanejar, mastigou tudo com a maior tranquilidade. Classe média Ele não fez careta nem apresentou indícios de que iria passar mal. O biscoito era engolido como se fosse chocolate. A classe média haitiana tem condição de comprar comida regularmente e ignora os biscoitos de barro. Não faltam na mesa banana, arroz, feijão, legumes e verduras. Eles gostam também de comer linguiça e salsicha grelhada. A carne e o embutido são comercializados em barracas de toda Porto Príncipe.

Cozinha do Inferno

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Crianças dividem comida: fome é regra, e falta de higiene também

Cozinha do Inferno está instalada no Haiti. Não, leitor, não se trata de trocadilho infame. No bairro La Salines, existe um complexo de galpões onde centenas de pessoas comercializam frutas, verduras, carnes, animais vivos e até comida pronta para ser consumida. O seu nome? Cozinha do Inferno. Sobra improviso no Mercadão local, assim como em todo o Haiti. Não há cuidados mínimos com a higiene pessoal, muito menos com as mercadorias. Para quem é de fora, é um exercício complexo distinguir a comida do lixo. O cheiro é forte, fétido e causa náuseas na cozinha, cuja origem do nome é um mistério. São vários galpões instalados lado a lado, com telhado de zinco. O clima é abafado e sufocante. A comitiva que visitou o local não aguentou e foi embora em menos de dez minutos. Há verdadeiras pilhas de lixo nas calçadas e no meio da passagem. São devidamente “supervisionadas” por porcos avantajados e sedentos, além de cabras. Tudo acompanhado de esgoto, moscas e insetos. Os comerciantes mais estruturados dispõem de pequenas bancadas para posicionar os produtos e, assim, chamar a atenção da clientela. São exceção. A massa de vendedores, no entanto, deixa as mercadorias sobre plásticos ou sem proteção. As comidas são encontradas primeiro pelos pés. Depois, pelas mãos. Há mais comerciantes do que espaço, e a passagem fica restrita. Dezenas de pessoas andam de um lado para outro em busca das coisas que desejam e pechincham bastante.

Haitiana prepara biscoito de barro e água para vender a R$ 0,05

Cachorro

Mulheres durante compras na Cozinha do Inferno: alimentos ficam no chão

A barganha faz parte do dia a dia haitiano. Ninguém diz de forma aberta, mas na Cozinha do Inferno há comerciantes que vendem ilegalmente carne de cachorro. A tática para enrolar o cliente é misturar as partes caninas às de outros animais. Para não levantar suspeitas, as cabeças dos cães são retiradas e escondidas. Apesar da insistência, nenhum comerciante fala no assunto.

Mulheres fabricam linguiça em local sem as mínimas condições de higiene


Unicef estima que existam no Haiti 300 mil crianças em escravidão doméstica e sexual

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A solidão dos ‘restaveks’ Faltam lazer, esporte ecomida às crianças

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Haiti se orgulha de ostentar o título de primeira nação governada por negros no mundo, mas não se envergonha de manter até hoje crianças em estado de escravidão. Os restaveks são crianças forçadas ao trabalho doméstico e à exploração sexual. O relatório Infância em Perigo: Haiti, divulgado pelo Unicef em 2006, estima que 300 mil crianças sejam exploradas dessa forma no Haiti. O termo restavek é originário do francês e quer dizer “ficar com”. Na prática, essas crianças são doadas pelos pais a famílias que residem na área urbana. São aceitas com a promessa de acesso à educação, estrutura doméstica e infância normal. Isso, no entanto, não acontece. Terminam transformadas em serviçais e não recebem roupas, conhecimento e carinho. Comem o que sobra. Na cultura local, existe uma ordem social clara: primeiro o homem se alimenta, seguido da mulher, geralmente responsável por colocar comida em casa, e dos filhos legítimos. O restavek é proveniente de família pobre, numerosa e da zona rural. É levado para os centros urbanos porque os familiares acreditam que, em lugar dotado de maior estrutura e possibilidades, poderá estudar, se desenvolver e aprender um ofício. A saga como restavek começa com menos de dez anos. No seio da nova família, não recebe amor nem afeto. Muitos não ganham sequer roupas. Andam pelados. A rotina de trabalho é pesada e inclui cozinhar, arrumar a casa e limpar, além das outras tarefas domésticas rotineiras. “Nem as esperanças das crianças nem as dos pais são efetivadas. A realidade é que elas tornam-se escravas das famílias anfitriãs. São sobrecarregadas de obrigações domésticas e expostas a condições psicológicas degradantes, como, por exemplo, no caso das meninas, a exploração sexual.” A informação é da estudante de direito Raísa Maria Londero. Ela participou de uma pesquisa chamada Brasil-Haiti: Um novo olhar sobre um novo Haiti, pela faculdade Fadisma, do Rio Grande do Sul. Durante 14 dias ela percorreu as cidades de Porto Príncipe, Leon e Jeremie, todas no país caribenho, para estudar os restaveks. Raísa afirma que as meninas são preferidas pelas famílias não só para o trabalho, mas em razão da exploração sexual. “Elas se prestam ao serviço de iniciação sexual dos filhos legítimos de seus donos. Quanto mais nova, melhor, devido ao risco pequeno de Aids.” As meninas são chamadas de “la pou as”, que significa “lá para aquilo”. Raísa constatou que as crianças são estigmatizadas pela sociedade. “Os rótulos que recebem são registros do forte preconceito que ainda impera entre os próprios haitianos.” Os restaveks são dispensados quando não dão conta do serviço doméstico ou não são mais objetos sexuais. Como não ascenderam socialmente, não são aceitos pelas famílias de origem e vão morar na rua. Na opinião da pesquisadora, é necessário que o governo haitiano encontre formas de acabar com esse sistema que esconde a exploração infantil com o argumento de ser uma prática tradicional e costumeira oriunda dos povos africanos.

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Crianças da Favela Cidade do Sol posam para fotografia: local quase não oferece atividades de lazer, esporte e cultura

s crianças haitianas que não são forçadas ao trabalho doméstico não encontram muitas oportunidades de lazer, educação e cultura no dia a dia. Elas nem sabem brincar direito, mas reconhecem a patente de um militar com rapidez e precisão. O pequeno Autiene Louise, 12 anos, não tem o que fazer a maior parte do tempo. Ele fica vagando por Porto Príncipe sem roteiro definido. Quando encontrou a reportagem, pediu um gole de água. Disse que estava com mais sede que fome. Vestia um short e um terninho que ganhou de um desconhecido. Sempre que seus olhos alcançam um militar, sobretudo brasileiro, se aproxima na esperança de ganhar água ou comida. Mora com o pai e a mãe e até arrisca palavras em português. A primeira frase que empurra da boca não condiz com a sua idade. “Eu não sei até quando vou viver.” E completa. “Mas quero ser jogador de futebol.” Topou ser fotografado, sorriu e fez até pose. Na hora de ir embora, arriscou um “obrigado” em português. Os amigos Júnior, 15 anos, e Philip e Dário, ambos de 16 anos, não forneceram os sobrenomes e falaram de forma unânime que não se cansam de procurar carros para lavar. “É a nossa diversão”, diz Philip, por meio do intérprete. Futebol

Apesar da pouca idade e do sorriso no rosto, Autiene Louise, 12 anos, diz que não sabe por quanto tempo vai viver

O trio estava parado em uma praça movimentada de Porto Príncipe à espera de possíveis clientes. O movimento no dia estava fraco e não tinham apurado nem um gourde. Ganham R$ 1,50 por serviço. Júnior, o caçula da turma, não havia comido nada até por volta das 15h e não escondia a vontade de mastigar alguma coisa. Ele pediu dinheiro para comprar comida, mas logo desistiu ao saber que se tratava de repórteres. “Jornalista nunca tem dinheiro.” A conversa só muda de figura quando o assunto é futebol. “Gosto do Kaká e do Ronaldinho Gaúcho,” cita Júnior. A criancice volta com rapidez e eles chutam as garrafas que encontram pela frente. E somem na multidão.


Vítimas de agressões e estupro recorrem à delegacia inaugurada há 2 meses, em prédio feito pela ONU

Mulher agora recebe atenção O

s direitos da mulher começam a ser reconhecidos no Haiti. A primeira delegacia feminina do país foi inaugurada há dois meses na capital, Porto Príncipe. O departamento funciona dentro de um forte que serve como base brasileira, no bairro Bel Air. A informação sobre o novo serviço se espalha com rapidez entre a população, e os atendimentos chegam a 20 por dia. Antes da construção da delegacia feminina, as mulheres eram atendidas em departamentos policiais comuns e não recebiam a devida atenção para as suas demandas, necessidades e problemas. Muitos casos de agressão nem chegavam a ser investigados e terminavam esquecidos no meio da papelada. Agora, a promessa é que será diferente. Toda denúncia que chega ao conhecimento da polícia é devidamente registrada e investigada. A delegacia é coordenada por Myriam Natacha Joseph, 36 anos. Ela afirma que os casos policiais mais comuns envolvendo a mulher no Haiti são estupro e agressão física. As mulheres não sabem direito como funciona o novo órgão e chegam a procurar o departamento sangrando, com feridas expostas. Antes de qualquer coisa, são encaminhadas para atendimento médico no hospital. “Estamos começando a mudar a nossa realidade. A mulher agora tem um lugar adequado para se queixar quando for vítima de

violência. Ninguém tem o direito de bater em uma pessoa, muito menos em uma mulher,” declara a coordenadora. Myriam diz que, até pela cultura, as vítimas têm medo de denunciar os parceiros e ficam sofrendo em casa todo tipo de humilhação. O trabalho da delegacia feminina do Haiti não é muito diferente do que é feito no Brasil. Em caso de agressão, a queixa é registrada oficialmente, e um policial é encaminhado até a casa da vítima para ouvir a outra parte. O objetivo é reunir informações completas sobre o que aconteceu. Dependendo da gravidade do caso, o agressor pode ser preso imediatamente. Se ele se esconder, fugir ou não atender o policial, o Tribunal de Justiça é comunicado e um mandado de prisão, expedido. Além de casos de violência, as haitianas procuram a delegacia para reclamar de homens que se recusam a ajudar na criação dos filhos, ou seja, não oferecem dinheiro para custear a alimentação. Outra reclamação comum é o não pagamento de salário. “Ter essa delegacia é um fato positivo. Espero que melhore a qualidade de vida da mulher do nosso país. Esse é o objetivo,” diz a coordenadora. O prédio da delegacia foi construído pela Organização das Nações Unidas (ONU) e está em fase de estruturação. O departamento conta com duas coordenadoras (que fazem as vezes de delegadas), 12 policiais e quatro investigadores. Mas ainda não tem um número de telefone para receber as denúncias.

Myriam Natacha Joseph, coordenadora da Delegacia da Mulher: ‘Ninguém tem o direito de bater em uma pessoa, muito menos em uma mulher’

Missão mata 43 militares, 3 do BR

O Mulher prepara mistura de arroz com feijão para vender

Fifi, com a filha, aguarda em fila por doação de água

Estabilidade O general Floriano Peixoto Vieira Neto: Haiti ainda não tem condições de ficar sem a presença da ONU

Patrulha noturna é tensa e exige cuidado da tropa

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Soldado brasileiro da missão de paz faz patrulha noturna na capital, Porto Príncipe: tropa toma cuidado para não atropelar haitianos que dormem na ruas

Diário acompanhou uma patrulha noturna do Exército pelas ruas escuras e sem iluminação de Porto Príncipe. Antes de sair da base, os civis da comitiva foram orientados sobre o que iria acontecer, qual era o plano de ação e como deveriam se comportar em caso de tiroteio, confusão ou ocorrência. O tenente Bernardo Guerra Rolla comandou a patrulha e relatou que, por medida de segurança, os jornalistas ficariam dentro de um círculo formado por militares. “Respeitem as ordens do sargento. Ele vai fazer o que for necessário para protegê-los, até mesmo puxar pelo pescoço e arrastar vocês para dentro da viatura.” Depois da palestra, os civis foram posicionados em quatro Urutus, carro de guerra blindado,com uma metralhadora no centro e

s cinco anos da missão de paz no Haiti deixaram um saldo de 43 militares mortos em confrontos armados, acidentes de trânsito e aéreos e operações. A maior baixa ocorreu na primeira semana de outubro de 2009. Um avião de vigilância caiu em uma área montanhosa e matou seis uruguaios e cinco jordanianos. A Organização das Nações Unidas (ONU) não divulgou o número de vítimas civis. Na lista de militares que morreram no Haiti, há três brasileiros. Em fevereiro deste ano, um acidente de trânsito matou o sargento Idevani da Silva, 41 anos. O soldado Rodrigo da Rocha morreu eletrocutado em agosto de 2007. Ele pisou em um fio de alta tensão. A outra vítima é o general Urano Teixeira da Matta Bacellar, 59 anos, que teria se suicidado em 2006. O componente militar da missão de paz da ONU é comandado pelo general brasileiro Floriano Peixoto Vieira Neto. O oficial ocupa o cargo desde abril de 2009 e é responsável por coordenar o trabalho desenvolvido por 7 mil homens.

Mulhereres e crianças observam ação de soldados em patrulha noturna: atividade requer cuidado que serve para transportar a tropa. O veículo trafega a menos de 50 km/h, faz um barulho tremendo e exala forte cheiro de combustível. Além do motorista e do responsável pela metralhadora, carrega seis passageiros. O motorista tem que

tomar cuidado redobrado para não atropelar os haitianos. Não existe iluminação pública nem na maioria das casas. Em razão do calor, as pessoas se deitam na rua e dormem em frente dos casebres feitos com telhas de zinco, madeira ou bloco.

Devido à imponência, o Urutu não passa despercebido. Durante as duas horas de patrulhamento, os militares não depararam com nenhum ato hostil nem suspeitaram de atividade ilícita. Parte do trabalho foi feito a pé pelas ruas da favela Cité Soleil.

Na sede da ONU em Porto Príncipe, Vieira Neto avaliou que o país vive atualmente clima de estabilidade em termos de segurança. Entre 2004 e 2007, no entanto, ocorreram confrontos entre militares e gangues com ideologia política e de marginais. Os grupos promoveram desordem, violência e sitiaram pontos como a favela Cité Soleil (Cidade do Sol). “Tenho convicção absoluta de que o trabalho dos contigentes resultou em situação de segurança. É um trabalho excepcional de efeitos facilmente identificáveis, ao ponto que você vê pessoas na rua, instituições funcionando, comércio, governo democraticamente instalado e poderes constituídos.” O general afirma que, mesmo com o clima mais tranquilo, a natureza da missão permanece igual. “Somos uma força de estabilização. O que mudou não foi a força, foi o país.” Segundo o general, a tropa hoje tem maior capacidade de enfrentamento. O general afirma que o Haiti não está preparado para caminhar sem a presença da ONU. “Uma saída em momento prematuro não resultaria naquilo que se visualizou no início.”


Analfabetismo atinge 47% do Haiti, que tem falta de professores qualificados e de material escolar Garoto da Cidade do Sol (à direita) faz aula de caratê com soldados do Exército Brasileiro; menino (à esq.) faz acrobacia em praça de Porto Príncipe

Estudo ainda é sonho no país O

analfabetismo atinge mais de 4,5 milhões de pessoas no Haiti. Significa que 47% da população não sabe ler nem escrever. O falho sistema público educacional haitiano cria um abismo entre as pessoas. A maioria das escolas, que no Brasil equivalem aos níveis fundamental e médio, cobra uma taxa anual do aluno. É ensino público com espírito de instituição privada. Além de abandonar os pobres, há falta de professores qualificados e de material escolar. As comunidades que moram em áreas rurais têm pouco ou nenhum acesso ao sistema de ensino. A maioria das escolas do Haiti é administrada por igrejas e Organizações Não-Governamentais (ONGs). Além do déficit de conteúdo, o aluno convive com a falta de infraestrutura. Em novembro de 2008, o prédio de três andares que abrigava uma escola desabou e matou 75 alunos e deixou cerca de 150 feridos. A capital, Porto Príncipe, é sede de pelo menos cinco universidades, que formam principalmente médicos, advogados e administradores de empresa.

“Infelizmente, falta educação para o nosso povo. E emprego também. Sempre estamos atrás dos nossos direitos, mas esquecemos dos nossos deveres.” A opinião é do intérprete Andregene Pierre, 53 anos. Desde 1994 ele é funcionário das Nações Unidas

e afirma que o país chegou a um nível intelectual tão baixo devido aos sucessivos golpes de Estado que aconteceram ao longo das últimas décadas. Pierre afirma que, a partir da década de 90, os melhores profissionais fugiram para outros países. Ou seja, o Haiti

perdeu pessoas qualificadas em várias áreas do saber. “Estamos vivendo como cachorro. Sonho em ver o Haiti em um rumo normal de crescimento.” O intérprete teve uma filha assassinada em 2006. Ela estava grávida e foi atingida por uma bala perdida.

Antes da crise em que o país mergulhou, Robenson Desrusseaux, 24 anos, era estudante universitário de informática. Ele não concluiu o curso e trabalha como faxineiro em uma base brasileira desde 2004. “É complicado falar no futuro, mas pretendo voltar a

estudar um dia. Aqui nunca vai melhorar. Se a ONU for embora, a violência volta.” Apesar de trabalhar em uma função em que não sonhou, Desrusseaux não reclama e diz que está em melhor situação financeira que muitos conterrâneos. Ele fala fluentemente o crioulo (língua nativa), francês, inglês e português. Miami Com organização e a correta administração do seu dinheiro, não falta nada em casa. O salário mensal é de R$ 400. Ele é casado, mas mora sozinho. Há três anos, a mulher trabalha em Miami, Estados Unidos, como garçonete. Ela está com os dois filhos do casal. O salário mensal de R$ 2,1 mil motivou a mudança. “Tenho muita saudade da minha família. Nos vemos duas vezes por ano.” Os pais que conseguem colocar o filho na escola fazem questão de que ele vá decentemente vestido e limpo. As meninas usam saias e enfeites no cabelo. Já os meninos estão sempre com calça social, sapato e camisa engomada.

Futebol é a paixão dos haitianos

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O intérprete Andregene Pierre culpa golpes de Estado

Menina com laços de fita: faltam vagas nas escolas, professores qualificados e material escolar

haitiano respira futebol o tempo tempo. Torce com paixão pela seleção brasileira e não perde oportunidade de praticar o esporte. A falta de bola ou de áreas adequadas não é suficiente para desanimar a criançada. Não é raro ver meia dúzia de meninos chutando uma garrafa pet na rua e tentando fazer gol em traves feitas com pedra. O basquete também é querido por influência dos norte-americanos. Até hoje os haitianos lembram com carinho o jogo da paz realizado em Porto Príncipe em 2004 entre o Brasil e o Haiti. Na ocasião, os craques Ronaldo, Roberto Carlos e Ronaldinho Gaúcho desfilaram pelas ruas em carros blindados do Exército e foram acompanhados no trajeto por milhares de pessoas. Houve verdadeira comoção. O presidente Lula esteve presente no estádio.

Os haitianos são torcedores apaixonados da seleção brasileira Menino com quimono: Exército ensina o caratê Caratê O país conta com uma liga que organiza um campeonato profissional. No momento, não há nenhum brasileiro atuando nas equipes locais. A Embaixada do Brasil afirma que sempre é consultada por atletas do Brasil interessados em se transferir para o Haiti.

São desaconselhados a ir. A seleção haitiana já está sendo preparada com o objetivo de obter a classificação para a Copa do Mundo, que será disputada no Brasil em 2014. O próprio Exército do Brasil apoia ações esportivas e abre as portas das bases para a criançada praticar esporte, como o caratê.

Garota usa enfeite na cabeça, hábito comum entre as meninas: educação ainda é sonho


Soldados e oficiais brasileiros matam a saudade com telefonemas, troca de e-mails com familiar

Rio-pretense aguarda cerv N

ão é patrulhar favelas perigosas, trabalhar dias seguidos embaixo de sol escaldante ou enfrentar as dificuldades estruturais de um país em guerra civil, mas a saudade da família e a distância de casa que afetam o emocional do soldado brasileiro. Os militares recorrem ao telefone e à internet para vencer os quase 10 mil quilômetros de distância e participar, ainda que de longe, da vida de quem ficou. Dentro das bases brasileiras, há telefones coletivos à disposição e acesso livre à rede mundial de computadores. É possível acessar a internet em cada contêiner que serve como alojamento. Durante todo o dia, tarde e noite, há militares ligando. Na frente de todo mundo, discutem-se questões de foro íntimo e compram-se e vendem-se carros e casas. Mesmo em outro país, a figura paterna não se esquiva de suas obrigações. O soldado rio-pretense Heitor Liebana Verjas, 20 anos, está no Haiti desde junho de 2009. Ele sente saudade de casa, de Rio Preto, dos pais e dos quatro irmãos. A família mora no Jardim Aclimação. Antes de embarcar para a missão, conheceu uma garota e quase começou um namoro. Mas teve que adiar os planos. “Quando voltar, pretendo procurá-la.” Verjas faz parte do Exército há dois anos. Serve em Lins, a 130 quilômetros de Rio Preto. A oportunidade de representar o Brasil na missão surgiu após muito empenho e dedicação. Apesar de pensar com frequência na vida que tinha, se diz contente. “Quis vir por três motivos: servir o País, ajudar as pessoas e ter uma grande experiência de vida.” A rotina é puxada e inclui patrulhamento pelas ruas de Porto Príncipe. “Fiquei chocado quando vi gente pegando água no esgoto para cozinhar e beber.” O sonho de Verjas é voltar e ser aprovado no concurso do Corpo de Bombeiros. Também não esconde que está louco para tomar uma cerveja gelada na avenida Bady Bassitt. Verjas não é o único representante da região no Haiti. Ele tem a companhia do cabo Everton Luís Barbosa, 23 anos, do bairro Santa Cláudia, em Mirassol. Está com saudade da cidade em que mora e das coisas que fazia. “Ainda bem que existe a internet. Do contrário, não sei como seria.” Todo dia conversa com os parentes. Barbosa entrou no Exército há cinco anos por influência de amigos. Solteiro, afirma que a família reagiu com um misto de surpresa e apreensão quando foi comunicada da missão, devido aos claros riscos de segurança. Ele faz de tudo na base, inclusive as fotos oficiais. O cabo aproveitou o período de dez dias de descanso para viajar para a República Dominicana e se hospedar em um resort. “Também queremos conhecer outros países. Lógico, estou aqui para ajudar. Se precisar, vou combater. O mais legal disso tudo é saber que a minha família me admira.” Todos os dias o sargento Cícero Edberto da Silva, 47 anos, conversa com a família pela internet, independentemente de estar atarefado ou escalado para missão especial. Mora em Brasília, é casado e tem duas filhas.

O soldado Heitor Liebana Verjas (à esq.), de Rio Preto, e o cabo Everton Luis Barbosa, de Mirassol: o 1º sonha com cerveja gelada na avenida Bady Bassitt

Soldados brasileiros durante exercícios

Exame detecta câncer

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O sargento Cicero Edberto da Silva fala com parente ao telefone: para suportar a distância da família, ele, que é de Brasília, recorre à religião Para suportar a distância de casa, Edberto recorre à religião. “Sou católico e rezo sempre.” Na base general Bacellar, participa de terço toda segunda e sexta e missa na quarta e domingo. O sargento tem 28 anos de Exército e revela que não é fácil ficar longe das pessoas de que gosta. De vez em quando, a tristeza bate forte. Apesar disso, nunca pensou

em desistir. “No Haiti, tudo é superação. Não existe dia simples. O jeito é ocupar a cabeça com muitas atividades.” Ele diz que não saberia o que fazer se não existissem os meios de comunicação. Os oficiais torcem para não chover. Nos dias sem sol, a internet fica lenta e os telefones chegam a falhar.

sargento Jefferson Luís da Silva Pereira, 41 anos, iria participar da missão de paz no Haiti em 2008, mas foi obrigado a adiar a viagem para um ano depois. Ele descobriu que era portador de um câncer, entre o coração, pulmões e esôfago, nos exames preventivos realizados pelo Exército antes do embarque. Pereira fez quimioterapia e radioterapia, se recuperou totalmente e está no país caribenho desde junho de 2009. “Se não fosse o Haiti, eu não teria descoberto a doença.” Participar da missão de paz é, nas palavras do próprio sargento, o fechamento de um ciclo na sua vida pessoal. O oficial recorreu à força de vontade para enfrentar o

tratamento, com o objetivo de retornar para a família, evitar a aposentadoria prematura e representar o Brasil na missão. A mãe de Pereira teve um câncer no mesmo lugar que o filho e não se recuperou. “Estou feliz. Tenho a certeza de que me curei e posso ajudar um povo sofrido.” É gaúcho de Santiago e morava em Brasília até o início da missão. Como a filha foi aprovada no vestibular de veterinária em Santa Maria, vai retornar para o Rio Grande do Sul. A família já providenciou a mudança. O sargento nem conhece o novo lar, mas decorou o endereço. “Estou mais forte espiritualmente. Aprendi a dar valor a outras coisas na vida e ter mais paciência, persistência e perseverança. Me considero um iluminado.”

Soldados gan

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rotina de trabalho do militar no Haiti é pesada, intensa e chega a consumir um mês inteiro sem parar. Participar da missão é uma escolha voluntária. O processo se resume a se inscrever e passar em exames médicos, físicos e psicológicos. A permanência no Haiti é de seis meses. O Brasil está no 11º contingente. A troca de posto da turma atual está prevista para ocorrer no final de janeiro de 2010. Nenhum militar em serviço deixa a base sem estar trajado com o “tudão”, ou seja, capacete, colete à prova de balas, cotoveleira, joelheira, luva, uniforme, fuzil e 60 projéteis. O equipamento básico de alguns é incrementado com granadas e armas não letais, como spray de pimenta e balas de borracha. Todo o equipamento pesa 20 quilos. O efetivo brasileiro chega a fazer 250 patrulhas em um único dia. O trabalho é realizado em blindados, caminhonetes ou a pé. Como o ritmo é forte, o coronel


es e torcem sempre para não chover porque o mau tempo prejudica a comunicação com o Brasil

veja gelada na Bady Bassitt Vir para cá foi uma decisão difícil. Cheguei a me considerar a pior mãe do mundo. Mas acredito que, no futuro, meu filho terá orgulho de mim

Os capacetes-azuis brasileiros a serviço da ONU no Haiti durante cerimônia de formatura: missão brasileira no exterior dura seis meses e a atual etapa está prevista para acabar em janeiro de 2010

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Força brasileira leva 7 mulheres A médica Daniela Alcantara, que deixou filho de 3 anos no Brasil para servir no Haiti: tradição familiar

No Haiti, tudo é superação. Não existe dia simples. O jeito é ocupar a cabeça com muitas atividades Cícero Edberto da Silva [FRAGEGRAF]

A sargento Lucimar da Silva Neves, de Campinas, trancou o curso de enfermagem: ‘não deixamos a parte feminina de lado, mas é necessário ter certa rusticidade’

Exército torna ruas transitáveis

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s: rotina em outro país não é problema, a não ser a saudade dos familiares

nham R$ 9,6 mil da ONU Alan Sampaio Santos afirma que o militar perde até cinco quilos de água em uma única saída, que chega a durar quatro horas. A dieta diária do militar é rica em calorias: 4,5 mil – o dobro do recomendado a um homem comum. A cada três semanas, o Brasil manda um avião carregado com suprimentos, munição, materiais de escritório e o que for necessário para a manutenção do trabalho. A base general Bacellar é a maior do Brasil no Haiti e oferece conforto aos militares nos seus 100 mil metros quadrados. Além de alojamento, tem campo de futebol, academia, oratório, lavanderia e barbearia. O auditório é transformado em cinema toda sexta-feira, com direito a pipoca, e no sábado tem jantar especial, com pizza, feijoada e churrasco. Dorme-se em contêiner dotado de camas, frigobar, internet, ar-condicionado e armários. O número de pessoas por contêiner varia de acordo com a patente. Até 12 soldados dividem 60 metros quadrados. No caso de tenente,

quatro dormem em 40 metros quadrados. Capitão e coronel são colocados em duplas. Comandante e o subcomandante têm espaços únicos. Cada mês trabalhado dá direito a quatro dias de arejamento, termo usado pelos militares para designar o período de recuperação. Os mais graduados optam por acumular até três semanas de descanso e visitam a família no Brasil ou conhecem países vizinhos ao Haiti, como República Dominicana (uma hora de avião ou sete horas de carro) ou Miami (duas horas de avião). Além de representar o Brasil, participar de um momento importante da história e ter um diferencial na carreira, fazer parte da missão também é lucrativo. A ONU paga um salário adicional a cada participante da ação. Um soldado que recebe R$ 600 de salário no Brasil ganha mais R$ 1,6 mil da ONU. Ou seja, durante toda a missão recebe R$ 9,6 mil. O salário pago pelo governo brasileiro é entregue normalmente para a família.

lém de patrulha e ações humanitárias, o exército brasileiro mantém no Haiti desde 2005 um efetivo exclusivo para desenvolver ações de engenharia nas cidades e nas próprias bases das tropas. Os 250 homens da companhia são responsáveis pela construção de ruas, terraplanagem, operação tapa-buraco, montagem de pontes e abertura de poços artesianos. No dia 31 de outubro de 2009, o Exército

desenvolveu atividade no orfanato Blessing Hands Foundation, em Kenscoff. Os militares construíram no local banheiro, cobertura e escada e instalaram a parte elétrica. As salas de aula, cozinha e banheiro receberam pintura. E doaram medicamentos e 200 quilos de alimentos. O tenente Eduardo Augusto de Oliveira afirma que 33 poços já foram abertos, e duas pontes de ferro instaladas. “Como as ruas são muito ruins, fazemos tapa-buraco com

frequência.” Para realizar a recuperação de vias, uma usina de asfalto foi instalada em Porto Príncipe. No começo da missão, a companhia de engenharia tinha outra obrigação: desobstruir as ruas interditadas pelas gangues ou repletas de lixo para que as patrulhas pudessem passar. Chile e Equador também desenvolvem atividades no campo da engenharia. O setor é subordinado diretamente à Organização das Nações Unidas (ONU).

Soldados brasileiros trabalham em pavimentação de rua em Porto Príncipe: tapa-buraco é rotina

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las são minoria, mas estão presentes e têm atuação destacada no contingente brasileiro que está no Haiti. Sete brasileiras deixaram a casa, marido, filhos e vida social para trás com o objetivo de representar o País na missão de paz. No time feminino, há três médicas, uma dentista, duas auxiliares de enfermagem e uma intérprete de inglês. A tropa brasileira tem 1.291 homens. Até por esse motivo, as militares se transformaram em amigas de infância e aproveitam os períodos livres para se encontrar, conversar e discutir os dilemas femininos. Há um apoio mútuo quando chega com força a saudade de casa, dos entes queridos e da vida no Brasil. A capitão Daniela Alcântara, 34 anos, é do Rio de Janeiro e faz parte dos quadros da Marinha há sete anos. É cirurgiã-geral e proctologista. Primeiro se formou e depois ingressou nas Forças Armadas. A influência foi grande dentro de casa. O marido e o pai são da Marinha. Não encontra dificuldades para desempenhar o seu trabalho. Daniela já se acostumou a conviver no ambiente militar e adota como política ser gentil, atenciosa, comunicativa e amiga de todo mundo. “Eles me respeitam e sabem o meu limite. Se quero ficar sozinha, vou para o meu contêiner. Sinto falta apenas da minha família. Isso me deixa chateada às vezes.” É mãe de um menino de 3 anos. O trabalho no Haiti vai durar até o final de janeiro. A internet ajuda a diminuir a distância. Quase todos os dias ela vê a criança por meio de uma câmera. “Vir para cá foi uma decisão difícil. Cheguei a me considerar a pior mãe do mundo. Mas acredito que, no futuro, meu filho terá orgulho de mim.” A sargento Lucimar da Silva Neves, 29 anos, de Campinas, é do Exército desde 2001 e atua como técnica em enfermagem. Pela missão, trancou o curso de enfermagem e vai retomá-lo quando voltar ao Brasil. “A mulher ingressou no Exército em 1992. Devagar, estamos quebrando barreiras e ganhando o nosso espaço, com respeito, flexibilidade e jeitinho.” Lucimar destaca que os homens são respeitosos tanto no campo pessoal quanto profissional e que, nas Forças Armadas, não existe tratamento diferenciado para a mulher. “Se precisar, estamos prontas para pegar os fuzis e combater. Claro: não deixamos a parte feminina de lado, mas é necessário ter certa rusticidade.” Para aguentar a rotina puxada, a técnica em enfermagem afirma que é preciso estar com o corpo em ordem. Todo dia tem de fazer atividade física. Mas não reclama. “Tudo isso vale pela experiência pessoal e profissional. E é muito bom representar o País.”


Haitianos são apaixonados pelos craques da seleção brasileira e dia de jogo vira feriado nacional

Bandeira do Brasil ajuda na proteção O

brasileiro brinca que não é o capacete ou o colete que garante a integridade física no Haiti, mas sim a bandeira do Brasil colada no braço. A relação que existe com os haitianos não é só militar, de segurança. Chega, em muitos casos, à amizade sincera. Há um respeito mútuo. Tanto que o brasileiro é chamado de “bon bagay”, ou seja, sangue bom. O Brasil é um País querido no Haiti. A admiração não ocorre só pela maneira como o soldado trata a população, mas por outro motivo: o futebol. Pelas ruas de Porto Príncipe, não é difícil encontrar haitianos usando camisas do Ronaldo, Robinho e Kaká. Os veículos até são decorados com as fotos dos craques brasileiros. O haitiano acompanha a seleção brasileira desde a Copa do Mundo de 1970, quando o Brasil foi campeão com atuações de gala de Pelé. Dia de jogo da seleção é feriado nacional no Haiti. A casa que tem televisão é invadida por centenas de pessoas. Dinheiro, carro e até a mulher são apostados. A Argentina é odiada no esporte. O militar brasileiro é recebido de forma respeitosa na maior parte de Porto Príncipe. A criançada faz algazarra e questão de estender a mão. Até os mais pequenos, que nem sabem falar direito, querem saudá-los. Só sossegam quando são correspondidos. O Diário acompanhou patrulhas pelas ruas da capital e constatou que o soldado não deixa de lado as suas obrigações, mas encontra tempo para dar atenção, conversar e até fazer carinho nas crianças. Quando esteve no Haiti, o soldado norte-americano não teve a mesma recepção que o brasileiro. As outras tropas que estão no país atualmente são respeitadas, mas não existe

Os caras (militares) são gente boa demais. Só alegria. Um dia ainda vou conhecer o Brasil

Existe um carinho muito grande. A gente dá atenção, além de garantir a segurança. Isso é importante para nós. Estamos aqui para ajudar

Júlio Nicolas Jean Batist, 13 anos

Alex Dantas do Espírito Santo, capitão da Marinha [FRAGEGRAF]

[FRAGEGRAF]

Crianças haitianas fazem questão de cumprimentar os soldados brasileiros: futebol garante popularidade relação de amizade. Um haitiano explicou que as outras tropas chegam, fazem a patrulha e vão embora. Às vezes, sem nada dizer. O capitão Alex Dantas do Espírito Santo, da Marinha, afirma que é surpreendente o respeito com que é tratado no dia a dia. A amizade, diz, só colabora para o sucesso da missão. “Existe um carinho muito

grande. A gente dá atenção, além de garantir a segurança. Isso é importante para nós. Estamos aqui para ajudar”, afirma o capitão. As crianças que moram ao redor das bases brasileiras ficam o dia inteiro na porta dos prédios oficiais. A proximidade gera um fenômeno na cultura local: estão aprendendo a falar a língua portuguesa, com direito até a

gírias. “Mano, me dá uma água”, grita um adolescente. A tropa brasileira está no Haiti há cinco anos. O menino Júlio Nicolas Jean Batist, 13 anos, é o símbolo da amizade entre brasileiros e haitianos. Ele fala bem o português e foi apelidado de Morcego. “Os caras (militares) são gente boa demais. Só alegria. Um dia ainda vou conhecer o Brasil.”

Militar brasileiro cura ferida de haitiana: brasileiros são respeitados Ele é goleiro e fã de Ronaldinho Gaúcho e Luís Fabiano. Morcego O sorriso fácil de adolescente desaparece apenas na hora de falar da sobrevivência. Tem 11 irmãos, não estuda e quase sempre não dispõe do que comer. “Queria

ajudar as pessoas.” Morcego diz que não consegue fazer nada para ganhar dinheiro. Ele perambula pelas feiras em busca de comida. “Não tenho nada para fazer.” O general brasileiro Floriano Peixoto Vieira Neto faz questão de dizer que a tropa do Brasil é respeitada devido ao comprometimento, dedicação e respeito aos costumes, leis locais e normas da ONU.

Distribuição de comida exclui os homens

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Liane Louise aguarda alimento e água doados por fuzileiros navais

Exército e a Marinha do Brasil promovem quase todas as semanas a distribuição de alimentos e água em Porto Príncipe e outras cidades do Haiti. Cada evento requer forte esquema de segurança para evitar confusões, vítimas e fraudes. As senhas são entregues um dia antes da distribuição para as mulheres ou meninas. Os homens são excluídos porque os militares descobriram que eles vendem as senhas e não levam o alimento para casa. É escolhido um lugar seguro e só entram as pessoas que vão receber a doação. Em pontos mais perigosos, um militar escolta a mulher até a casa. Em uma Ação Cívico-Social (Aciso), os fuzileiros navais distribuíram, além de uma cesta básica, um copo de água, com duas pedras de gelo, para cada pessoa. Não havia comida suficiente para atender a todas as mulheres que estavam na fila. Houve descontentamento. Fifi Melhom, 18 anos, não

Mulher recebe alimentos de fuzileiros navais: homens são excluídos da distribuição porque vendem senhas conseguiu esconder a decepção. Apesar da pouca idade, é viúva e tem dois filhos pequenos. O marido morreu de malária. “Não tenho nada para as crianças. Acabei de nascer e me

sinto cansada.” Como não conseguiu nada, disse que iria mendigar pelas ruas da capital. Há distribuição regular de água, leite em pó, arroz e farinha de milho.

Em uma ocasião, não havia comida, e os militares distribuíram baldes. Ninguém reclamou. As vasilhas seriam úteis para transportar água para casa.


Igor Kipman, embaixador do Brasil, afirma que ONU restitui 60% dos gastos do País com a missão

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embaixador brasileiro no Haiti, Igor Kipman, afirma que o Brasil investiu R$ 700 milhões na missão de paz no país em cinco anos e lidera a missão composta por 7 mil homens de várias nacionalidades. O Brasil desenvolve, além de patrulhamento, cooperação técnica, sobretudo no campo da agricultura, ações de engenharia, como a construção de ruas, abertura de poços artesianos, construção de pontes e doação de comida. “Na cooperação, buscamos ensinar a pescar e não dar o peixe. É necessário ter equilíbrio. Se você for na Cidade do Sol, haverá gente morrendo de fome, subnutrida. Estamos ensinado a pescar. É uma coisa que não acontece do dia para a noite. É um processo. Não se pode abandonar quem está morrendo de fome”, diz Kipman. Ele é embaixador no país há um ano e quatro meses, mas participou de forma ativa da missão brasileira, desde o início em 2004. No seu gabinete, discorreu durante uma hora sobre as questões fundamentais do Haiti nos quesitos segurança, política, emprego, miséria e desenvolvimento. Ele falou também que outro tentáculo fundamental da missão é a Organização das Nações Unidas (ONU) preparar a Polícia Nacional do Haiti (PNH). A meta, em 2011, é que a PNH tenha capacidade, técnica e equipamentos para assumir a segurança do País. A partir daí, segundo o embaixador, será possível reduzir a presença militar, não só do Brasil. Kipman recebeu o Diário em um luxuoso e seguro prédio que abriga a embaixada e, portanto, as principais decisões brasileiras, em Pattion Ville. O bairro fica na zona sul do Haiti e endereço da pequena, mas poderosa elite local. Diário da Região – Qual avaliação o senhor faz do papel desempenhado pelo Brasil no Haiti nos últimos cinco anos? Igor Kipman – É um trabalho solidário, cuja parte mais visível é a militar. Por quê? Os militares andam uniformizados, com a bandeira do Brasil no braço. Nós temos, a par disso, uma presença tão importante quanto a militar, que são técnicos da Embrapa, Emater, Ministério do Desenvolvimento Agrário, Codevasp e Ministério da Saúde. Eles estão espalhados por todo o país e ajudam em projetos agrícolas. Hoje, o Haiti talvez seja o país com maior cooperação técnica brasileira. Isso tem sido um apoio extraordinário ao governo e ao povo haitiano. Diário – Como é feita a doação de alimentos? Kipman – Outro braço da missão é a ajuda humanitária. No ano passado, ocorreram quatro furacões em três semanas. Cerca de 10% da população do país ficou desabrigada, ou seja, 800 mil pessoas. Não houve número importante de mortes, mas elas aconteceram. Em 2008, o Brasil enviou ao Haiti 15 mil toneladas de arroz e 500 toneladas de leite em pó. E disponibilizou recursos de R$ 500 mil para aquisição local de mantimentos. Diário - O povo haitiano não se acomoda e espera apenas a doação de comida para sobreviver? Kipman - Muita gente pergunta isso. Na cooperação, a gente busca ensinar a pescar e não dar o peixe. É necessário ter equilíbrio. Se você for na Cidade do Sol, haverá gente morrendo de fome, subnutrida. Estamos ensinado a pescar. É uma coisa que não acontece do dia para a noite. É um processo. Não se pode abandonar quem está

Brasil já investiu R$ 700 milhões no Haiti

Na cooperação, a gente busca ensinar a pescar e não dar o peixe. É necessário ter equilíbrio. Se você for na Cidade do Sol, haverá gente morrendo de fome morrendo de fome. Precisa-se de um pouco de bom senso para dosar a ajuda humanitária e a cooperação técnica. Diário – O que melhorou no país no período de intervenção da Organização das Nações Unidas (ONU)? Kipman – A diferença é enorme em comparação com 2004 (data em que começou a missão). Hoje, você vê limpeza pública, infraestrutura, estradas recuperadas. E existe dinâmica econômica. O comércio está melhor. Ainda falta muito, é verdade. Existe melhoria significativa no

fornecimento de energia elétrica. Até fevereiro de 2008, eu tinha 90 minutos de energia em casa por dia. Agora, tenho entre 6 e 8 horas. Venezuelanos e cubanos doaram e montaram três usinas termoelétricas. O Brasil elabora um projeto para fazer uma represa com geração de energia elétrica e irrigação. Diário – Por que a presença militar por tanto tempo? Kipman - Nunca se discutiu prazo para realizar a missão. O Congresso brasileiro autorizou a ida das tropas a critério do Conselho de Segurança da ONU. A prática é renovar o mandato a cada 12 meses. A primeira missão foi aprovada em 2004 e a última renovada em outubro de 2009. O compromisso do presidente Lula é de que permaneceremos enquanto o governo haitiano quiser. Não existe força de ocupação. Estamos convidados pelo governo. Diário – Não existe prazo para retirar as tropas? Kipman - A comunidade internacional está trabalhando com horizonte de começar uma redução gradual da

presença militar em 2011, quando será realizada eleição presidencial. O novo presidente assumirá em 7 de fevereiro. É a comprovação de que o país está democraticamente equilibrado e as instituições, estáveis. Diário – Se existe estabilização, por que a presença da ONU é necessária? Kipman - Além da segurança, uma das funções da ONU é selecionar, recrutar, preparar e treinar a Polícia Nacional do Haiti (PNH), que foi praticamente desmantelada em 2004. Na ocasião, a polícia tinha 1,4 mil homens sem equipamento e uniformes. Em cinco anos, aumentou para 10 mil policiais. Os entendidos julgam que 14 mil é um número suficiente, não ideal. Há três semanas, a Polícia Federal fez treinamento com eles e vai oferecer quatro cursos no ano que vem. A meta, em 2011, é que a PNH esteja preparada e equipada para assumir a segurança do país. A partir daí, será possível reduzir a presença militar, não só do Brasil. Diário - Em termos políticos, qual é importância

Um problema gravíssimo é a superpopulação carcerária. Aqui, existe meio metro quadrado para cada preso. As normas internacionais recomendam 2,5 metros quadrados da missão para o Brasil? Kipman –Tem importância em vários campos. Internacionalmente, é de projeção do Brasil no exterior. O reconhecimento dos parceiros internacionais é extraordinário. Está gastando um monte de dinheiro? Está. Mas existe retorno intangível. É o crescimento das tropas. Não é só do ponto de vista profissional. Já passaram mais de 12 mil militares brasileiros no Haiti. Há ganho pessoal, crescimento social, cultural e abertura de horizontes. Os militares voltam reconciliados com o Brasil.

Diário – Quanto foi investido pelo Brasil? Kipman - Tem se falado em torno de R$ 700 milhões no período de cinco anos. Diário – A ONU devolve parte do dinheiro gasto pelo Brasil no Haiti? Kipman - Hoje, a Organização das Nações Unidas restitui em torno de 60% do que é gasto (a cada R$ 1 milhão, voltam R$ 600 mil). Há países que participam da missão de paz rigorosamente pelo reembolso. A decisão corretíssima do governo brasileiro é manter a tropa em nível que é exemplo para todo mundo. A base é de Primeiro Mundo. No primeiro contingente, o general dormiu no chão. A estrutura melhorou com o tempo. Tudo isso foi crescimento, aprendizado. Diário – Quais os principais problemas hoje do Haiti? Kipman - O que precisa ser resolvido é a falta de emprego. Todo o resto virá como consequência disso. Mais de 70% da população está desempregada. Claro, tem o comércio informal. A comunidade internacional está se esforçando e buscando investimento externo para o país. Há problema de infraestrutura, energia elétrica, saneamento, saúde e educação. Diário – Por qual motivo o governo haitiano não investe em infraestrutura para melhorar a vida da população? Kipman - O governo não tem recurso para fazer tudo o que tem de ser feito. A comunidade internacional ajuda. A Espanha, por exemplo, paga o salário dos professores. A polícia nacional ameaçou entrar em greve por falta de pagamento de salários. O orçamento do governo é menor que as remessas de dinheiro de haitianos que estão nos Estados Unidos, Canadá e França. O comércio é informal e não recolhe impostos. Diário – Como o país está organizado? Kipman - É um modelo similar ao francês, com presidente e primeiro-ministro. Tem a Câmara de Deputados, com 99 integrantes, e o Senado, com 30 vagas – 29 estão ocupadas. Os poderes funcionam bem. Diário – E o Judiciário? Kipman – É uma área em que a ONU tem mandato para atuar e apoiar o governo. É um setor que está bastante debilitado. Você tem o sistema e juízes muito velhos, até sem condições físicas de desempenhar a função. Medidas estão sendo tomadas. Foi revitalizada a escola de magistratura. Mas não se forma um juiz em um mês. Diário – Existem unidades prisionais suficientes? Kipman - Um problema gravíssimo é a superpopulação carcerária. Aqui, existe meio metro quadrado para cada preso. Está muito abaixo das normas internacionais, que recomendam o mínimo de 2,5 metros quadrados. Existe ainda o problema da detenção prolongada. A pessoa fica presa esperando o julgamento, que pode demorar quatro, cinco anos. Em março será inaugurado um novo presídio, construído com recursos canadenses. Diário – Qual é a situação hoje do Haiti? Kipman – É um país em revitalização. Você tem estrutura e só precisa dar nova vida a elas. O Estado está presente. Precisa ter mais gente treinada e preparada. Faltam quadros. Existe evasão muito grande de cérebros. O profissional liberal vai embora para a França e Canadá. É necessário desenvolver um programa para reter profissionais capacitados aqui.


RETRATOS DO HAITI

O Haiti é um país de extremos. No mesmo cenário, é possível conquistar um sorriso, ouvir gracejo sobre o futebol brasileiro, testemunhar a relação de amizade entre militares e haitianos, mas a imagem mais marcante e inesquecível é ver a fome ea sede estampadas no rosto do povo. Dói ver humanos disputando alimentos com porcos nos lixões, algumas crianças comendo barro para preencher o vazio do estômago, outras nuas, em lágrimas, abandonadas pelas ruas


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